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12.

4 Repetição e Erros

A procura do sucesso e do controlo absoluto sobre a consistência dos


resultados está na origem no uso obsessivo de estratégias baseadas essencialmente na
repetição que geram uma atitude de frustração perante os erros.

A mera repetição revelou-se uma estratégia pouco eficaz, a não ser quando
usada em conjugação e alternância com outras.

Prática deliberada, implica clareza de objectivos, mas uma fixação nesses


objectivos leva frequentemente a descurar a atenção às estratégias delineadas para os
atingir e à experiência da sua prossecução, uma forma de end-gaining. Por isso,
geralmente a maneira como os estudantes procuram melhorar o seu nível de
desempenho é tentando fazer melhor, aumentando o esforço, usando força de vontade
ou fazendo exercícios repetitivos, na esperança de que os resultados acabem por
emergir. Os erros são descartados e fonte de frustração e os sucessos são desligados
da experiência que os motivou, na ânsia de os repetir. Os resultados desta forma de
agir são muitas vezes desapontantes e a mera repetição raramente conduz ao sucesso.
Alexander constata com alguma ironia, uma generalizada compulsão para a
insistência na repetição dos insucessos:

Seria de esperar que a repetida experiência do falhanço nos levaria por si só a


trabalhar de acordo com outro princípio1 (Alexander, 1985: 34).
O que leva um professor de TA a formular um conselho de evidente bom
senso:

Quando à primeira não tens sucesso, nunca tentes outra vez... pelo menos não
da mesma maneira2 (Macdonald, 1989: 1).
Mas mesmo numa obra com excelentes conselhos e estratégias para praticar
eficientemente, a adesão a este princípio só é proposta após uma elevada percentagem
de insucessos:


1
One would suppose that repeated experience of failure would itself lead [one] to set to work on a
different principle.
2
When at first you don’t succeed, never try again, at least not in the same way.

© Pedro Couto Soares


Se tens uma percentagem de sucesso muito baixa, tal como 1 sucesso em 15
tentativas, isso significa que o teu objectivo é demasiado difícil 3 (Kaplan,
2004: 19).
O que leva Kaplan (pp 40) a propor uma estratégia em que o objectivo é
conseguir 5 sucessos num mínimo de 10 tentativas. Uma percentagem que, na minha
opinião, continua a ser excessivamente baixa para justificar a persistência na mesma
estratégia.

Do ponto de vista funcional, a mera repetição envolve insistir no mesmo


padrão já conhecido. Melhorar, no entanto, envolve algo completamente diferente:
uma mudança nos padrões de funcionamento. A mudança consciente dum padrão
resulta inevitavelmente em aprendizagem: discriminar e distinguir entre vários
padrões possíveis de movimento ou acção, apreciar pequenas diferenças e detalhes e
ser capaz de escolher e agir com base nas várias alternativas.

Para ser capaz de discernir diferenças mínimas em padrões musculares tem de


haver uma diminuição na excitação proprioceptiva em geral, o esforço deve ser
reduzido ao mínimo. Como referimos no capítulo 5, de acordo com a lei de Weber-
Fechner da psicofísica o limiar da sensibilidade a uma mudança na excitação sensorial
é uma determinada fracção da excitação presente. Por isso, o esforço muscular
acrescido resultante de repetir ao ponto de ocorrer fadiga destrói a possibilidade de
discriminar pequenas mudanças nos padrões musculares, dessa forma minando o
processo de aprendizagem.
O esforço de vontade implica, psicologicamente, a justaposição do nível de
desempenho presente contra um objectivo ideal de desempenho ainda não atingido.
Obviamente a repetição do mesmo padrão significa que das repetições subsequentes
não resultarão grandes melhorias. Isso gera frustração que combinada com uma
reforçada expectativa de falhanço pode levar a um estado de ansiedade. A ansiedade
envolve uma inibição dos músculos extensores e hiper-activação dos flexores (o
reflexo do medo ou luta ou fuga). Este estado limitativo do movimento só pode
prejudicar um instrumentista.


3
If you have a very low percentage of success, such as 1 success in 15 tries, it means that your goal is
too difficult.

© Pedro Couto Soares


Neurologicamente a repetição dum padrão de movimento cria um circuito
neuronal reforçado. Esta repetição diminui assim a probabilidade de emergirem
padrões alternativos; o padrão repetido torna-se compulsivo e assim no contexto da
actividade não haverá outra possibilidade. O adágio “practice makes perfect”
transforma-se numa realidade bem mais inevitável: “practice makes permanent”. Só
prática perfeita levará à perfeição.

Mas será que a perfeição é atingível ou desejável? Vimos como Bernstein


concluiu (Capítulo 4) que a trajectória do martelo é sempre diferente e portanto
qualquer movimento é irrepetível:

O processo de praticar com vista a adquirir novos hábitos motores consiste


essencialmente no sucesso gradual duma busca por soluções motoras
optimizadas para os problemas apropriados. Por causa disto, a prática quando
realizada adequadamente, não consiste em repetir os meios da solução dum
problema motor várias vezes, mas no processo de resolver o problema uma e
outra vez por meio de técnicas que vamos mudando e aperfeiçoando de
repetição para repetição... em muitos casos, a prática é um tipo particular de
repetição sem repetição4 (Bernstein, 1967).
Bernstein coloca assim a tónica no processo de resolução e não na solução.
Qualquer solução tem tendência a tornar-se definitiva e a cristalizar num hábito. Uma
característica da criatividade é a insatisfação permanente com as soluções encontradas
procurando constantemente alternativas.

Repetir um movimento é diferente de repetir a experiência da sua execução.


Nesse sentido uma mudança da focagem da atenção durante uma repetição torna a
repetição numa experiência diferente. Este é um dos pontos em que uma aparente
repetição deixa de o ser. Numa aula de Técnica Alexander a repetição do acto de
sentar e levantar não é uma mera repetição dum exercício, nem deve ser feita
mecanicamente. Cada experiência é diferente e deve ser acompanhada duma atenção
desprovida de pré-conceitos.


4
Texto original: “The process of practice towards the achievement of new motor habits essentially
consists in the gradual success of a search for optimal motor solutions to the appropriate problems.
Because of this, practice when properly undertaken, does not consist in repeating the means of solution
of a motor problem time after time, but in the process of solving this problem again and again by
techniques which we changed and perfected from repetition to repetition ... in many cases, practice is a
particular type of repetition without repetition”

© Pedro Couto Soares


No entanto a variabilidade do movimento condena ao insucesso qualquer
veleidade de tentar atingir absoluta consistência na execução repetida dum
movimento. É assim constatado que qualquer especialista desenvolve um reportório
de correcções para erros e inconsistências inevitáveis.

Mesmo malabaristas experientes continuam a cometer pequenos erros. Parece


ser humanamente impossível executar um dado movimento cada vez
exactamente da mesma forma. Os especialistas, são especialistas porque
dispõem de uma série de compensações para os inevitáveis pequenos erros,
não porque os não cometam (no entanto raramente cometem erros grosseiros)5
(Austin, 1976: 326).
A qualidade da afinação dum violinista caracteriza-se pela sua rapidez em
corrigir as notas atacadas ligeiramente acima ou abaixo da frequência pretendida e um
malabarista experiente reage adequadamente aos pequenos desvios das trajectórias
das bolas provocadas por lançamentos menos precisos. Daí a eficácia da
variabilidade da prática, por obrigar precisamente a desenvolver essa capacidade de
efectuar constantes correcções.

Para resolver de novo um problema seguindo o processo cognitivo que gerou a


solução, é necessário ter esquecido a solução, caso contrário basta evocá-la da
memória de curto prazo. É nesse sentido que Schmitt (2005: 350) afirma que o valor
duma repetição está no grau em que ela promove um completo processamento da
informação. Paradoxalmente o esquecimento obriga a um reprocessamento da
informação e promove a aprendizagem. A memorização é mais eficiente quando um
texto é lido e relido em momentos diferentes entre os quais há uma clara degradação
da memória. São as sucessivas, mas espaçadas, releituras ou reevocações que
fortalecem o traço de memória.

Neste sentido a repetição sucessiva duma passagem arrisca-se a ser uma perda
de tempo. No entanto o que leva a persistir nessa estratégia? É a aparente eficácia no
curto prazo que leva à confusão entre desempenho e aprendizagem. Resultados menos
satisfatórios no imediato podem gerar melhores resultados no médio e longo prazo, e
resultados imediatos podem revelar-se frustrantemente efémeros quando testados no
dia seguinte. Músicos experientes têm uma consciência implícita deste facto, como

5
Texto original: “...even expert jugglers still make small errrors of execution. It seems to be humanly
impossible to execute a given movement exactly the same way each time. The experts are experts
because they have a set of compensations for the unavoidable small errors, not because they don’t
make errors. (however they seldom make big errors).”

© Pedro Couto Soares


confirma o pianista Jorge Bolet: “Não obtenho os resultados do que pratico hoje,
amanhã ou depois, mas provavelmente dez dias ou duas semanas mais tarde”6 (citado
em Chaffin et al, 2002: 44).

Por outro lado quando a solução motora está fresca na memoria é


relativamente fácil repetir o programa. O importante é desenvolver a capacidade de
recrutar o programa motor na primeira tentativa. Para isso é necessário numerosas e
frequentes repetições nessas condições o que implica alternância, prática variada e
aleatória.

A repetição mecânica é anestesiante, adormecendo a atenção. A insistência no


seu uso é uma manifestação da tendência universal para o end-gainig na acepção de
Alexander, que reconhece a importância da alternância:

Um padrão adequado de perfeição física e mental implicam uma


adaptabilidade que torne fácil a uma pessoa mudar duma ocupação em que um
certo grupo de músculos é empregue, para outra envolvendo acções
musculares totalmente diferentes7 (Alexander, 2002: 143).

Atitude Perante os Erros

É atribuído ao flautista americano Julius Baker um aforismo que reflecte uma


atitude drástica e dogmática perante os erros: “You will never make a mistake if you
never make a mistake”, nunca cometerás um erro se nunca cometeres erros
(Nyfenger, 1986). A ideia de evitar erros durante a prática, contrasta com atitudes
mais permissivas, que vêm no erro um elemento fundamental da aprendizagem.
Como afirma Green (2003), tocar uma nota errada pode ser construtivo, útil ou
mesmo esclarecedor.


6
Texto original: “I don’t really get the results of what I practice today, the next day, or the next day,
but probably from ten days to two weeks later.”
7
Texto original: “A proper standard of mental and physical perfection implies an adaptability which
makes it easy for a man to turn from one occupation in which a certain set of muscles is employed, to
another involving totally different muscular actions.”

© Pedro Couto Soares


Na minha experiência pessoal e pedagógica observo com frequência uma
obsessão em repetir que oscila entre dois extremos: sucessivas repetições de sucessos,
na hlfânsia de os tornar consistentes, até que o cansaço físico ou mental levam a
cometer um erro que induz novas repetições para recuperar o sucesso; ou, repetições
sucessivas de um erro até conseguir um sucesso gerando a convicção de que a
estratégia repetitiva, e não o acaso, está na origem do resultado positivo.

O contrabaixista B. Green reforça esta dicotomia ao afirmar que

Os amadores praticam até tocarem correctamente; os profissionais praticam


até não poderem tocar incorrectamente8 (Green, 2003: 75).
No entanto não creio que as duas atitudes sejam apanágio de amadores ou
profissionais, mas sim duma incapacidade de avaliar e reflectir na experiência de cada
repetição e numa atitude de aversão ao erro.

Voltando aos procedimentos utilizados na aprendizagem do malabarismo que


podem ser frutuosamente extrapoladas para a prática musical, vejamos o que propõe
M. Gelb:

Pratica deixar cair as bolas intencionalmente. Quando a bola cai, observa onde
ela aterra e dessa forma ajusta os lançamentos. Pratica fazer dos teus erros a
base para novos padrões criativos do teu malabarismo9 (Gelb, 1994: 82).
Na mesma linha de pensamento, Nachmanovitch (1990) afirma que uma nota
errada numa improvisação pode ser a origem duma nova ideia musical, que se for
explorada, passa a justificar a imprescindibilidade do erro cometido.

A perfeita nota errada é o título dum livro do pianista William Westney (2003)
que afirma não haver erros, mas apenas resultados inesperados.

Por isso Michael Gelb enfatiza o papel pedagógico do erro:

Para atingir uma completa expressão devemos continuamente experimentar,


dedicando igual atenção aos sucessos e aos falhanços. O caminho para


8
Texto original: “Amateurs practice until they Play it right; professionals practice until they can’t play
it wrong.”
9
Texto original: “Practice dropping the ball intentionally. When the balls drop, watch where they land
and adjust your throws accordingly. Practice making your mistakes the base for new creative patterns
in your juggling.”

© Pedro Couto Soares


acelerar e fruir o processo de aprendizagem exige que vejamos os sucessos e
os falhanços como igualmente instrutivos e valiosos10 (Gelb, 1994: 70).
Na mesma linha Donald Weed (1990) afirma que uma das ferramentas
pedagógicas fundamentais da Técnica Alexander é encorajar as pessoas a cometerem
erros com frequência, argumentando que muitos professores de sucesso reconhecem
que se não cometemos erros frequentemente provavelmente estamos a praticar de
forma pouco eficiente. 11 Jonhston (2002) define como “polidores de objectos
brilhantes” aqueles estudantes que praticam obsessivamente aquilo que já dominam
evitando dessa forma a frustração dos erros inevitáveis ao praticar aquilo que
verdadeiramente necessitam de melhorar. Repetir aquilo que está bem é tão inútil
como repetir da mesma forma aquilo que está mal. Se a prática dum estudante soa
sempre bem, talvez os vizinhos agradeçam, mas algo de errado se passa com a sua
prática. Weed vai mais longe:

Outra importante técnica que eu ensino em relação aos erros é aprender os


erros sonoramente. Aprendi este conceito cantando em coros. Os maestros de
coro sempre disseram para cometer os erros em voz alta. Dessa forma torna-se
mais fácil para eles descobrirem onde estão os erros para os poderem corrigir12
(Weed, 1990: 14).
Esta atitude positiva perante os erros que Westney (2003) apelida de
“honestos” porque são reconhecidos, observados e analisados implica uma libertação
do sentimento de culpa e do desperdício de energia que acarreta. O importante é
processar o erro com a mesma atenção que o sucesso. As crianças ficam
surpreendidas ou divertidas, mas não sentem culpa e não precisam de instruções,
quando deixam cair um objecto de cujo peso não têm ainda um esquema e
reconhecimento que lhes permita aferir a força necessária para o segurar. Vai daí,


10
Fuller emphasized that to achieve full expression we must continually experiment, focusing equal
attention on successes and failures. The path to accelerating and enjoying the learning process requires
us to see success and failure as equally instructive and valuable
11
Atreve-te a estar errado, “dare to be wrong” (Leibowitz, 1997) é o título dum livro da professora de
TA da Julliard School of Music.
12
Texto original: “One of the tools which I encourage everyone to try is to make mistakes often. Many
teachers in success education state that if you are not making a lot of mistakes, then you are probably
doing something wrong. One of the first tools to acquire in learning to experiment, a necessary aspect
of learning the Alexander Technique, is a willingness to make mistakes and a willingness to be wrong.
Another important technique that I teach with regard to mistakes is to learn mistakes loudly. This a
concept which I learned singing in choruses. The choir directors always said to make your mistakes
loudly. That way it would be so much easier for the directors to find where the mistakes were in order
to correct them.”

© Pedro Couto Soares


deixam o objecto cair vezes sem conta, como uma brincadeira., até afinarem os seus
músculos.

Por isso o mestre Zen do tiro com arco repreende o seu aluno:
Mas o que é que se passa consigo? Sabe perfeitamente que não se deve
incomodar com os tiros falhados. Do mesmo modo, deve abster-se de se
alegrar com os tiros bem-sucedidos. Tem de se libertar desse oscilar entre o
prazer e o desprazer. Precisa de aprender a manter-se em serena indiferença,
alegrar-se como se tivesse sido outro, que não o senhor, a executar um bom
tiro. Não calcula como isto é importante” (Herrigel, 1997: 67).
Há de facto situações excepcionais em que a repetição do erro pode ser
pedagogicamente útil e promover a aprendizagem. Alcântara (1996: 191) cita três:

Clarificar a consciência do que o instrumentista está de facto a fazer; cultivar


uma apreciação do que está correcto contrastando-o com o incorrecto; libertar do
receio paralisante de cometer o erro com as tensões e mau uso que provoca.

Reid13 (1965: 129-130) e Werner14 (1996: 162), referem este tipo de situações.
Ao executar rapidamente, sem preocupação em conseguir perfeição ou clareza, é
possível ter a sensação de tocar sem esforço e por vezes uma nova forma de controlo
pode emergir de forma surpreendente.

Admitir a possibilidade de errar pode ser libertador, da mesma forma que o


receio de falhar é por vezes a causa do próprio falhanço. Green & Gallwey (1986)
descrevem um exemplo dum violoncelista que numa masterclass pretendia resolver
uma dificuldade numa passagem que costumava falhar. O professor pediu-lhe para
mostrar como é que falhava e a aluna ao ser-lhe dada a permissão para falhar, tocou a
passagem sem erros. Um exemplo flagrante do efeito irónico (capítulo 4) invertido:
tentar evitar o erro, resulta nele; tentar evitar o sucesso, resulta no sucesso. Uma


13
Texto original: “By attempting to execute full scale passages with excessive rapidity, even to the
extent of not getting some of the notes in place, wrong controls with their accompanying stiffness will
be released. This should succeed in removing imposed disciplines and habitual coordinative responses,
with the result that intuitive processes assert themselves. In this way new coordinative paterns, usually
in greater conformity with nature will emerge because they have been allowed to happen.”
14
Texto original: “If you want to play the exercise form beginning to end very fast, as always,
effortlessly, then you must sacrifice playing it perfectly. It may sound strange, but there is therapeutic
value in letting your fingers rip on a difficult passage while playing many wrong notes. It gives the
feeling of what effortless execution will feel like. Admittedly, this should only be done occasionally,
but it does have a purpose.”

© Pedro Couto Soares


experiência porque certamente muitos músicos já passaram, mas que raras vezes é
explorada pedagogicamente.

© Pedro Couto Soares

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