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Arnette Lamb

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Clã Mackenzie 03

Arnette Lamb
Traída
Série Clã Mackenzie 03
Uma filha ilegítima... Sarah Mackenzie acreditava ser filha, fruto do amor, de Lachlan
Mackenzie, Duque de Ross. Mas descobrir que em suas veias não corria nenhuma gota de
sangue nobre a deixou despedaçada, e incapaz de confiar no amor de Mackenzie. Sarah fugiu
em direção a Edimburgo, e abriu seu coração aos órfãos da cidade... para enterrar a dor e
começar uma nova vida. Um segundo filho esquecido... Separado de sua mãe, cuja afeição era
centrada no filho mais velho, o arrojado Michael Elliot se juntou à Companhia das Índias
Orientais. Mas anos depois, uma crise familiar o leva de volta para casa para ajudar no plano de
sua mãe: seduzir Sarah e fazer com que seu generoso dote, resolvesse os problemas da família
Elliot empobrecida. Unidos pelo engano e desejo... Impulsionado por um senso de honra,
Michael pretende conquistar o coração de Sarah. Ela, longe da família que a ama, lentamente,
se rende a seus encantos. Apesar do começo funesto, sua aliança floresce em uma união
apaixonada... e juntos eles começam a descobrir o poder curativo do amor…

Disp em Esp: MR
Envio do arquivo: Gisa
Revisão Inicial: Regina
Revisão Final: Lisa de Weerd
Formatação: Greicy
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Comentário da Revisora Regina: A história de Sarah Mackenzie e de Michael Elliot trata do


amor em todas as suas formas, e das consequências da falta deste também. A jornada do mocinho
e da mocinha é muito interessante porque ambos estão empenhados em ser verdadeiros com
suas emoções e seus princípios, e ao longo do caminho vão fazendo as pazes com o que não
conseguem entender do passado de ambos. A compreensão leva à superação de mágoas e ao
surgimento de uma forma mais aberta de se relacionarem com seus parentes e amigos. Ambos
são inteligentes, engajados, e belos. Há momentos engraçados, outros comoventes, mas no geral
o livro mantêm o tom levemente cômico, tornando a leitura divertida. Ambos são fofos!

Comentário da Revisora Lisa de Weerd: História leve, romântica com pitadas de humor.
Vale a pena ler.

PRÓLOGO

Rosshaven Castle
Highlands Escocesas
Fevereiro de 1785

Sarah percorreu com os dedos os lombos de uma coleção de contos infantis enquanto
esperava que seu pai compartilhasse com ela suas preocupações. Para sua surpresa, Lachlan
MacKenzie, Duque de Ross e com a reputação de ter sido um famoso libertino das Highlands,
preencheu seu cachimbo com dificuldade. Suas mãos tremiam tanto que seu anel de sinete
cintilou à luz do abajur. Seu querido rosto, com um rude atrativo acentuado pela passagem do
tempo, refletia agora a luta que se desenvolvia no interior de seu bondoso coração.
A tristeza de seu pai começou naquele dia de inverno, e Sarah desejava desesperadamente
ajudá-lo a aliviar o peso de sua perda. Tocou-lhe o braço.
— Agnes e eu costumávamos brigar pelo privilégio de fazer isso. Deixe-me encher seu
cachimbo.
Seus ombros largos se afundaram ao soltar o fôlego de repente.
— Eu não sou seu... — deteve-se e olhou-a fixamente. O carinho, imutável e quente, alagava
seus olhos. Com um evidente esforço, obrigou-se a falar. — Não sou seu pai.
Embora soubesse que o tinha entendido mal, Sarah ficou sem fôlego. Ele agia de maneira
estranha cinco anos antes, quando sua meio-irmã Lottie contraiu matrimônio com David
Smithson.
Quando outra de suas meio-irmãs, Agnes, partiu de casa em uma busca sem sentido, ele
sofreu durante meses. O dia que Mary exigiu seu dote, para poder ir a Londres para aprimorar
seus talentos artísticos com Sir Joshua Reynolds, seu pai vociferou e criticou até que sua madrasta,

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Juliet, veio em resgate. Sua debilidade como pai era consequência do amor que sentia por seus
filhos, sobretudo pelas mais velhas, suas quatro filhas ilegítimas: Sarah, Lottie, Agnes e Mary.
Nesta ocasião Sarah estava certa que estava irritado por seu iminente casamento com Henry
Elliot, conde de Glenforth, um homem que seu pai acreditava que não a faria feliz. Entretanto,
Sarah tinha tomado uma decisão e esteve refutando durante meses as objeções de seu pai.
Tinha que tranquilizá-lo outra vez.
— O fato de que me case com Henry na primavera e de que vá para Edimburgo, não significa
que deixe de ser sua filha.
Os olhos azuis dele se alagaram de tristeza.
— Dirá que sou o maior covarde das Highlands, mas se eu pudesse escolher, teria me
convertido em inglês antes que precisasse confessar a verdade. Oh, Sarah, querida!
Sarah, querida. Essa era a forma carinhosa que tinha para dirigir-se a ela. Sua voz e essas
palavras eram os primeiros sons que recordava; desde o berço.
— Me confessar o quê, papai? Que não posso ser de uma vez, filha, esposa, irmã e mãe?
Não sou como Agnes. Não vou abandoná-lo, mas quero ter minha própria família.
Seu pai era um homem dominante, tanto por sua estatura como por sua influência, mas
agora parecia inseguro. Acariciou-lhe a bochecha.
— Nunca foi realmente minha filha, filha de meu sangue.
Ela se afastou.
— Isso é mentira.
Uma sensação de irrealidade flutuou no ar. É obvio que era seu pai! Depois que sua mãe
morreu, em consequência do parto, ele tirou Sarah do asilo1 em Edimburgo e a criou junto com
suas meio-irmãs. Era uma história tão romântica que qualquer poeta poderia ter feito maravilhas
com ela. Era esperado da nobreza que deixasse seus descendentes ilegítimos aos cuidados dos
criados. Lachlan MacKenzie não o fez. Acolheu suas quatro filhas bastardas sob sua asa e se
ocupou pessoalmente de sua educação.
Um “não” categórico veio a seus lábios.
Ele agarrou a mão dela. A sua estava úmida. Seu carinhoso sorriso era vacilante.
— É absolutamente certo. Juro-o por minha alma.
As palavras de protesto se desvaneceram. Sarah acreditou nele. Presa de uma dor tão aguda
que a impedia de respirar, liberou sua mão e procurou refúgio junto à estante, ao lado das janelas.
Pela extremidade do olho viu-o aproximar uma vela da lareira e acender o cachimbo. Tinha a
sensação de ter se petrificado, convertida em um elemento a mais da sala, tão próprio desta como
os livros, os brinquedos do chão ou a tapeçaria que emoldurava a lareira. Este era seu lar, sua
casa. Seus rabiscos tinham manchado essas paredes. Seus sapatos tinham desgastado o tapete.
Aqui recebeu as reprimendas, seguidas da alegria do perdão.
— Não é possível que acredite que não a amo como se fosse minha.

1
Hospício poderia ser traduzido como hospício, casa de acolhida, ou poderia ser orfanato também.

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Mas não o era. Apertou os punhos sobre as páginas abertas da Bíblia familiar e fez um
esforço para conseguir que o ar penetrasse em seus pulmões. O familiar aroma do tabaco lhe
infundiu coragem.
—Como é possível que não seja meu pai?
— Eu expressei-me mal. — Bateu o cachimbo contra a lareira e se aproximou dela com as
mãos estendidas. — Para todos os efeitos eu sou. É minha filha, mas... — seu olhar se deslocou à
Bíblia, — não sou seu pai.
—Quem é? — Ela se ouviu perguntar, como se não fizesse parte da conversação.
Outra nuvem de tristeza turvou os olhos dele.
— Neville Smithson.
Neville Smithson. O Xerife de Tain, um homem a quem Sarah conhecia por toda a vida. Vivia
no outro extremo da rua. Ela tinha ensinado seus filhos a ler. Tocou distraidamente o colar de
contas de ouro que rodeava seu pescoço. Neville a tinha presenteado quando fez vinte e um anos.
Lottie estava casada com David, filho de Neville. Menos de uma hora antes ambas as famílias
estiveram no cemitério, no enterro de Neville Smithson.
Os médicos disseram que foi o coração. Falhou enquanto ele presidia as sessões do Tribunal
de Justiça. Morreu nos braços do duque. Sua inesperada morte — que foi um duro golpe para os
habitantes de Ross e Cromarty, — adquiria agora um maior significado para Sarah.
Ela não era um dos queridos filhos de Lachlan MacKenzie nem uma de suas filhas bastardas.
Todo mundo sabia que era ilegítima, sempre souberam. Mas Lachlan tinha apresentado ao mundo
suas garotinhas, como ele as chamava, como suas queridas filhas. E pobre daquele que brincasse
com isso.
Sarah pensou em suas meio-irmãs. Para ocultar os detalhes de seus nascimentos e sossegar
as especulações, todas elas compartilhavam um aniversário comum, embora tivessem mães
diferentes. Ele alardeava que eram o resultado de sua primeira visita a Corte como duque de Ross.
— É o pai de Mary, Lottie, e Agnes?
— Sim, mas isso não muda nada. Em meu coração você é irmã delas e minha filha.
Aos dez anos, Sarah deu um estirão. Tinha a mesma idade que Lottie, Agnes e Mary, mas era
muito mais alta que elas.
Outras diferenças adquiriam agora maior significado. Sarah sempre foi tranquila e gostava
de ler. Lottie assegurava frequentemente que Sarah não precisava ir à Corte com elas já que se
divertiria mais na biblioteca. Sarah foi uma criança tímida; na adolescência foi diminuída, não por
falta de inteligência, mas sim porque suas irmãs eram melhores líderes que ela. Agora todas se
foram, para viver sua própria vida. Ela não demoraria a fazer o mesmo.
A confissão de seu pai era curiosamente oportuna.
— Por que você esperou até agora para me dizer? — Ele cruzou os braços sobre o peito.
— Foi o último desejo de Neville. Você ainda usava fraldas quando a adotei como filha. Ele
não soube de sua existência até que você fez seis anos, quando viemos viver aqui. Quando o disse,
ambos estivemos de acordo em que era melhor que você não soubesse.
— Por quê?

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— Tememos que sua vida pudesse parecer uma mentira.


Sarah sentia tanto frio como se estivessem nas masmorras em vez de nesse quente
santuário.
— Foi trocar uma mentira por outra, papai.
O carinhoso apelativo queimou-lhe os lábios. Ele estava acostumado a elogiar sua
maturidade e sua sensatez. Entretanto, no mais profundo do coração, não devia opinar o mesmo
já que não acreditou nela o suficiente para lhe contar a verdade. Até agora.
A sensata Sarah. Nesse momento não se sentia nada racional.
A traição fez explodir sua ira.
— Como devo chamá-lo a partir de agora? Sua Graça? A tristeza deformou seu rosto, mas
sua determinação era tão forte como sempre.
— Não se zangue. Fizemos isso pelo seu bem.
— Se a mentira tiver coração, pulsa com o ritmo do diabo.
— Sarah, querida...
Ela levantou a mão como se assim pudesse deter suas palavras.
— Não sou sua Sarah. Meu pai está... está morto.
A dor a impedia de respirar. Neville Smithson havia confiado seus filhos a ela para que lhes
ensinasse, mas negou-lhe o mais importante: uma família de seu próprio sangue. E agora era
muito tarde para olhá-lo nos olhos e perguntar por que não a tinha reconhecido.
As consequências eram infinitas e desconcertantes.
— Sou a madrinha de duas de minhas próprias irmãs.
— E exerce uma boa influência nos filhos menores de Neville.
Os filhos de Neville; seus irmãos... embora Lachlan MacKenzie pensasse nela como sua filha.
Sarah não sabia no que acreditar.
— Mas eles não sabem que sou sua irmã.
— Diremos a eles.
Como? Perguntou-se ela, sentindo seu orgulho cambalear. Mas não os prejudicaria, não é?
David, o filho e herdeiro de Neville, certamente se alegraria e esperaria que Sarah ficasse de seu
lado em suas discussões com Lottie. O que diriam os menores? Olhariam-na de modo diferente?
— Neville queria que contasse? — Perguntou ela.
— Não houve tempo. Deus o levou rapidamente. Falou de sua esposa e logo depois de você.
A informação nem a alegrou nem a entristeceu. Sentia-se entorpecida.
— Sempre foi muito diferente de minhas outras garotinhas.
Isso era certo, mas Lachlan tinha querido a cada uma de suas filhas por igual. Com Agnes e
Mary fazia demonstração de uma grande paciência. Com Lottie de compreensão.
A Sarah, mentiu. E o que era pior, jurou-lhe que era a viva imagem da mãe do duque, uma
MacKenzie, o que era impossível.
Sarah buscou coragem.
—Tudo era mentira. Mentiu também sobre minha mãe?
—Não. Sua mãe era Lilian White, a irmã de minha querida Juliet.

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A madrasta de Sarah era além de tudo, sua tia, situação que tinha provocado muitos ciúmes
entre suas irmãs. E entretanto, durante todo esse tempo era Sarah quem tinha uma razão
insuspeitada para invejar os laços de sangue delas com Lachlan MacKenzie. Ela tinha quase seis
anos quando Juliet White chegou à Escócia para procurar a filha de sua irmã. Depois de conseguir
o posto de preceptora das quatro meninas ilegítimas, conquistou a paixão e o amor de Lachlan
MacKenzie. Pouco depois deu-lhe a primeira de suas outras quatro filhas e um herdeiro. Três das
meninas sobreviveram. Eles eram os irmãos menores de Sarah.
Embora na realidade não o fossem. Seus verdadeiros irmãos viviam na casa dos Smithson no
final da Rua Clan.
Deu uma olhada ao retrato de família, pendurado na parede em frente. Não era o melhor
trabalho de Mary, mas, sem dúvida, se tratava do mais íntimo até esse momento; o quadro
representava os MacKenzie descansando nas margens do lago Shin. A vida era fácil naqueles
tempos.
Uma das irmãs, Virgínia, que infelizmente, foi sequestrada, estava representada como um
anjo que aparecia atrás de uma sorveira2. O dia que a família abandonou a esperança de encontrar
Virgínia foi o mais triste da vida de Sarah. Até agora.
Aquela dor tinha desaparecido. Assim com faria esta, jurou Sarah. Mas tinha que saber mais
coisas sobre seu pai.
— Teve alguma outra palavra para mim?
— Neville te amava. Deixou para você dez mil libras.
Aquele foi o golpe final; Lachlan MacKenzie, o único pai que tinha conhecido, acreditava que
podia comprá-la. Algo começou a murchar dentro de Sarah. Queria escapar, aconchegar-se na
escuridão e chorar até que a dor diminuísse.
Mas a covardia não era própria dela. Tinha quase vinte e três anos e logo empreenderia uma
nova vida como condessa de Glenforth. Essa seria sua salvação do doloroso mundo em que se
converteram essa sala, esse momento e sua vida.
“Leva a marca dos MacKenzie, Sarah querida.”
Mentira. Não havia nenhuma gota de sangue MacKenzie circulando por suas veias.
Na realidade foi concebida por um homem que tinha brindado por ela em todos os seus
aniversários e a que vinha vê-la quando estava doente. Um xerife de sobrenome Smithson e não
um duque de sobrenome MacKenzie. Um homem que foi sepultado essa manhã, um homem que
queria comprar seu perdão da tumba.
A cruel verdade a cravou até os ossos.
— Neville Smithson me deixou um dinheiro manchado de culpa.
— Não. É a mesma Sarah MacKenzie de sempre. Eu não a teria renunciado ainda que... —
Lachlan deu um golpe à Bíblia. — Não teria renunciado você.
Ainda que Neville tivesse pedido, terminou ela mentalmente. Neville Smithson não a quis.
Era adequada para desempenhar o papel de preceptora de seus outros filhos, mas não o de filha.

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Sorva ou sorveira (Sorbus domestica L.) é uma árvore da família das Rosaceae.

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A lembrança de seu bonito rosto surgiu em sua mente, uma imagem que tinha gravada na
memória. Seu pai era um xerife imparcial e honesto, com a beleza de um arcanjo, Neville
Smithson, um plebeu.
Agarrou o colar com que ele a tinha presenteado e o arrancou. Uma chuva de contas
douradas caiu sobre o tapete e se dispersou sob os móveis.
— Sarah! É seu colar preferido.
Estava em cacos. Assim como ela se sentia.
— No que está pensando?
O som da voz de Lachlan a tirou da letargia na qual mergulhou sua mente.
— Acredito que devo ir a Edimburgo e contar a Henry.
— Sim, Henry e uma nova vida.
— Irei com você.
A negativa foi imediata.
—Não. Levarei Rose. — Sua criada era companhia suficiente. Ele suspirou derrotado.
—Se Glenforth não a tratar bem, ou a desprezar, farei com que deseje ter nascido na
Cornualha.
Tal declaração era tão típica dele que Sarah sorriu. Mas sua alegria não demorou em
desaparecer. Não tinha ocorrido a ela que Henry pudesse fazer outra coisa que aceitar a notícia de
boa vontade. Sua mãe, lady Emily, não ia ser tão generosa, mas em geral, nas discussões com sua
família, prevalecia a opinião de Henry.
Sarah só levaria o dote dos MacKenzie para Edimburgo. Fazia meses que Lachlan tinha
prometido vinte mil libras e posto seu selo no contrato de casamento. No que a ela respeitava, o
dinheiro de Smithson podia apodrecer; nem o resgate de um rei bastaria para conseguir que o
perdoasse. Com a ajuda de Henry, curaria as feridas que Lachlan MacKenzie e Neville Smithson
havia causado.
— Recolhe o colar, Sarah.
— Não. Eu não quero vê-lo novamente.

CAPÍTULO 1

Edimburgo, Escócia
Junho de 1785

— Lady Sarah!
Dois dos pupilos de Sarah, William Picardy e o menino que todos chamavam Notch3,
irromperam na sala-de-aula.

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Notch: v. fender, entalhar; cortar; marcar um ponto.

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Notch tirou de um puxão o gorro de lã. A eletricidade estática fez com que seu espesso
cabelo castanho ficasse em pé.
— O rei morreu!
Ela estava olhando para a lousa em branco pensando na estranha reviravolta que deu a sua
vida desde sua chegada a Edimburgo. O terrível anúncio de Notch a distraiu de seus próprios
problemas.
— Quem diz que o rei morreu?
Notch afastou o pequeno William do meio, e avançou um passo.
— Acaba de chegar a Guarda de Honra, em um casco de navio de guerra. Todo mundo sabe
que a Guarda de Honra não viria à Escócia sem uma boa razão. — Sua voz de adolescente se
quebrou e ele esclareceu garganta. — Eu digo que os velhos Hannoverianos gravaram seu epitáfio
e Pitt, o Jovem4, enviou a Guarda para nos dar a boa notícia.
A Guarda de Honra do rei era uma tropa de elite de soldados de cavalaria, todos eles
pertencentes à nobreza. Vinha servindo com grande pompa aos monarcas ingleses desde os
tempos de Henrique VIII. Com a chegada de Jorge I, os reis da dinastia Hannover5 relegaram este
corpo de cavalaria às cerimônias e ao serviço no estrangeiro, já que preferiam uma guarda do
Hesse, alemães como eles. A chegada da Guarda de Honra a Edimburgo certamente anunciava
uma mudança, mas não necessariamente a morte do rei.
O mais provável era que a razão para tal rumor estivesse na transbordante imaginação de
Notch, unida a sua necessidade de impressionar e controlar os órfãos mais jovens.
Sarah estava determinada a descobrir a verdade sobre o assunto.
— Escutou-os dizer que o rei morreu? — Perguntou. — Ouviu algum dos soldados dizer?
Ele a olhou de esguelha. Ela fincou pé.
— Quem disse isso?
Ele se afastou um pouco e protestou:
— Não precisavam me dizer isso Como se fosse um retardado!
Por sua fanfarronice mostrava ele tinha conseguido sobreviver sozinho nas ruas de
Edimburgo, desde os seis anos. Aos onze sabia tanto do mundo como um homem com o dobro de
sua idade. Entretanto, seu afã de agradar seguia sendo o de um menino. Fosse como fosse; ele
merecia seu respeito e sua orientação.
— Ninguém espera que prediga o destino dos reis, Notch. Nem sequer os bispos podem
fazer.
Ele olhou teimosamente para a ponta de seus sapatos excessivamente grandes. Seu casaco
negro de lã fazia muito tempo que se tornara de uma cor cinza esvaída e as calças estavam

4
William Pitt, dito o Segundo Pitt, foi estadista britânico. Primeiro-ministro da Grã-Bretanha (1783-1801 e 1804-1806), estabeleceu
as bases de uma etapa de prosperidade depois da Guerra da Independência norte-americana.
5
Dinastia Hannover. De origem alemã, dirigiu a Inglaterra de 1714 a 1789, após os Stuarts. Sob sua direção a Inglaterra viveu um
período de sólida unidade política, social e econômica, somente interrompida pelas consequências da queda da Bastilha, em 14 de
julho de 1789. Fase de grande atividade econômica e financeira, novos portos, entre eles Bristol, Liverpool e Glasgow, foram abertos
na costa ocidental, dilatando os horizontes comerciais britânicos.

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remendadas à altura dos joelhos. Só o cachecol, presente de Sarah, era novo. Isso e sua recente
mania para lavar o rosto e as mãos todos os dias.
Os outros meninos, quatro até o momento, veneravam cada uma das palavras que Notch
pronunciava. Ela tinha a esperança de fazê-lo compreender a responsabilidade que tinha como
líder. Era apenas uma criança, mas tinham lhe arrebatado sua infância. Sarah estava decidida a
devolvê-la.
Apoiou-se em uma das carteiras da escola.
— Entretanto, se o motivo da chegada da Guarda de Honra é só uma especulação sua e sua
teoria resulta ser errônea, não deve se sentir inferior, já que só estava expressando sua opinião.
Inclusive poderia aprender e trocar opiniões sobre o assunto com os outros. Por exemplo com o
senhor Picardy, aqui presente.
William Picardy, de oito anos, agarrou as puídas lapelas de sua jaqueta e se balançou sobre
os saltos. Seu cabelo castanho de corte desigual emoldurava um rosto de beleza quase angélica.
Perguntando-se como alguém podia ter abandonado nas ruas esse precioso menino, Sarah
resistiu ao impulso de abraçá-lo.
— Por que você acredita que a Guarda de Honra veio?
William se moveu com nervosismo ao ouvir que se dirigia a ele. Enquanto meditava a
resposta, seus olhos passaram das carteiras ao globo terrestre e ao fogo da lareira.
— O que vai ser, Foot? — Notch deu um golpe com o pé. — Está comigo ou contra mim?
Ele acabava de proporcionar a Sarah uma ocasião perfeita para ampliar a lição.
— Isto não é uma competição, Notch. Não é necessário que nenhum dos dois tenha razão ou
esteja equivocado. Sua amizade não depende de que um de vocês imponha sua opinião sobre o
outro. Podem aprender juntos.
A expressão em seus olhos se tornou amadurecida e sábia.
— Todos sabemos qual é nosso lugar, milady. Tanto eu como Foot, Sally e os Odds6.
O argumento de Sarah perdeu força. Os órfãos aos que se referia estavam em dívida com
ele, necessitavam-no tanto como ele a eles.
— Acredito... — William fez uma pausa, obviamente lutando com o costume de dar a razão a
Notch.
— Solta-o, Foot.
William suspirou e declarou:
— O rei esticou a canela.
— Isso. — Notch deu-lhe uma palmada nas costas e olhou para Sarah com expressão de
vitória.
Ela desistiu de tentar ensinar-lhes o que era democracia e responsabilidade partilhada. A
deles era uma vida dura; a segurança dos órfãos estava no grupo. Perseguidos e explorados pelos

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Odd: adj. estranho, esquisito, bizarro; casual, ocasional; excedente.

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mesmos adultos cujo dever era alimentá-los e protegê-los, os meninos desconfiavam de quantos
“pecadores que davam sermões”, como os chamava Notch.
Nenhum deles a conhecia o suficiente para confiar nela. Entretanto gostavam dela e isso lhe
proporcionava muita alegria, algo do que ultimamente andava muito escassa.
— Você já viu a Guarda?— Perguntou William.
— Não — respondeu ela. — esteve prestando serviço no estrangeiro durante quase toda
minha vida.
— Ela provém das Highlands — recordou Notch com tom educado. Logo ofereceu o cotovelo
a Sarah como se fosse um cavalheiro. — William e eu pensávamos ir ver a elite do rei. Você
poderia nos acompanhar.
William indicou a porta com a mão fazendo uma reverência.
— Smellie Quinn fechou os barris, em La Gaita e el Cardo7, para não perder nenhum detalhe
da Guarda de Honra.
— Os cavalheiros e as damas estão se arrumando — disse Notch.
— Venha conosco lady Sarah — bajulou-a William, agora menos acovardado. — Prometo-lhe
que conseguiremos um bom lugar na margem do caminho.
A lição semanal tinha terminado fazia horas, e se ficasse sozinha ali, passaria toda a tarde
pensando em feitos que estavam fora de seu controle e arrependendo-se de sua decisão.
Agarrou sua capa.
— Muito bem, mas só se deixarem de dizer que o rei está morto até que o ouçamos do
prefeito ou de lorde Preboste8.
— Dou-lhe minha palavra — Notch bateu seu punho esquerdo contra a palma de sua mão
direita.
— Esse é o sinal de sua palavra de honra — explicou William sobressaltado. — Ele não a
concede por qualquer coisa.
Sarah pensou que o gesto significava que estava disposto a lutar a murros para demonstrar
que tinha razão.
Notch encabeçou a marcha através do armazém convertido em sala-de-aula e a descida pela
sinuosa escada da igreja de St. Margaret. Passaram pelos confessionários e saíram na Rectory
Close pela porta lateral.
A luz do sol esquentava a tarde de primavera, e o onipresente vento assobiava nas esquinas.
As correntes enferrujadas dos letreiros de madeira pendurados por cima dos estabelecimentos
próximos, rangiam. Um sapateiro ultrapassou apressadamente Sarah e seus órfãos, com seu
avental de couro agitando-se ao vento. Seguiu-lhe um clérigo corpulento que segurava sua
empoada peruca com uma mão. O forte aroma de carvão, típico da cidade, impregnava o ar.

7
É o nome da taberna.
8
preboste (em francês, prévôt) vem do latim præpositus (em português, "preposto"). No Medievo e durante o Antigo Regime, o
preboste era um agente do senhor feudal ou do Rei, encarregado de ministrar justiça e gerir a propriedade que lhe era confiada.

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— La Gaita e el Cardo tem a melhor vista do percurso — disse Notch. — Sally e os Odd nos
guardaram um lugar.
Situar-se em frente de uma taverna na companhia de cinco das crianças de rua mais famosas
de Edimburgo, na presença dos vizinhos, não ia ajudar à reputação de Sarah, mas considerando
tudo o que tinha acontecido anteriormente, uma transgressão a mais não ia alimentar muito as
fofocas.
Que murmurassem. Tinha sofrido piores desprezos em sua vida. Que filho bastardo não o
tinha feito? Só que em seu caso a verdade sobre sua família tinha feito mil vezes mais dano a ela
que os insultos das matronas da sociedade.
— Tendo Notch perto — afirmou William, — ninguém a incomodará, milady.
Pensar em sua família MacKenzie a fez sentir culpa e pesar, dor e desejo. Precisava dos
conselhos de Lachlan, mas o orgulho a impedia de pedir. Ele havia escrito todos os sábados ao
longo de dois meses. Ao final, vendo que ela não respondia, deixou de fazer. Agora estava
realmente sozinha, e seguir adiante não era tão fácil como acreditou.
—Lá vai água! —Gritou alguém de cima.
Levados pelo instinto, Sarah e seus jovens amigos se apressaram a afastar-se antes que um
balde de água suja salpicasse a rua.
Eles dobraram a esquina e percorreram a High Street. De pé, formando três filas, os
habitantes de Edimburgo abarrotavam ordenadamente a rua esperando com ansiedade a chegada
da Guarda de Honra. O magistrado e o mineiro ladeavam o bispo de expressão severa. Até mesmo
Cholly, o varredor, tinha deixado de trabalhar. O desalinhado velho, com as costas encurvadas, um
avental que cobria suas folgadas calças e uma camisa que parecia um saco, estava apoiado no
cabo de sua vassoura. Uma barba descuidada obscurecia sua cara e seus olhos estavam protegidos
pela aba de um chapéu gasto.
Ela nunca se aproximou de Cholly o bastante para conversar com ele, mas sua presença era
uma constante em Lawnmarket. Em geral se movia pelos arredores de sua residência, ele também
fez amizade com Notch e sua turma, e estava em companhia do cocheiro.
Quando se aproximaram do botequim, Sarah encontrou os Odd. Assim apelidados por Notch
porque seu corpulento tamanho inclinava a seu favor as probabilidades em uma briga, os gêmeos
de nove anos eram, além disso, de aparência totalmente oposta. Right Odd, o loiro, colocou sobre
os ombros Sally, a órfã de quatro anos.
— Milady — disse Notch abrindo caminho entre um grupo de pessoas que olhavam para ele
com desaprovação. — você acredita que o Senhor Reverências virá?
O engenhoso e inteligente Notch, pensou ela. Gostava deste garoto, uma vez que recordava
sua meio-irmã, Agnes, que sempre era a primeira a meter-se nos atoleiros e a última em admitir
que isso a divertia. Fulminou-o com o olhar.
— Você quer dizer o conde DuMonde.
Antes que Notch pudesse responder, William agitou o extremo de seu cachecol novo e
franziu os lábios exageradamente, simulando um beijo.
— Mmmmuá! Oui, oui, Ma chérie!

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— William! — Ela bronqueou sem poder evitar rir.


Uivando de risada, Notch alvoroçou o cabelo de seu amigo.
— Bem dito, Foot.
William sorriu de orelha a orelha. Os comerciantes que estavam próximos bufaram
desgostosos. O mineiro golpeou um poste de luz com sua bengala. A caseira, a senhora
Edminstone, tampou os ouvidos.
— Pecadores dando sermões — disse Notch sussurrando.
Sarah limpou a garganta, em um esforço disfarçado para recuperar a compostura. Notch
chamou os Odds, que se afastaram para fazer lugar na margem da rua pavimentada.
Notch olhou atentamente rua abaixo e ao voltar-se disse:
— Esse conde franchute9 obriga seu lacaio a dormir no estábulo, mesmo que faça uma noite
de cão. Por isso Foot zomba dele.
William se aproximou mais e sussurrou:
— E tudo porque o pobre moço utilizou uma vez a manta da carruagem para manter-se
quente.
Tampando a boca com a mão, Notch disse:
—Enquanto lorde Reverência passava toda a noite apresentando seus “respeitos”, como ele
diz, a lady Winfield.
Sarah não conhecia o conde o bastante para que importasse se tinha uma amante. Seus
convites rompiam o aborrecimento das tardes que passava escrevendo cartas que nunca enviava
para sua família e tecendo cachecóis para os insolentes moleques da rua. Depois de viver rodeada
de tantos irmãos e amigos, não podia acostumar-se ao silêncio da vida em solidão.
Em qualquer caso, não podia permitir que os maus modos de Notch continuassem.
— Essa é também uma de suas opiniões. E é assunto meu.
— Ele carece das qualidades de um bom marido, lady Sarah. Aposto minha caixa de rapé,
que essa não é uma opinião minha apenas.
— É a verdade — declarou William soltando o fôlego.
Notch tinha apostado sua mais apreciada posse. O esmalte da caixa estava descascado e o
fecho tinha desaparecido há muito tempo, mas era seu tesouro. Com isso, além de tudo,
demonstrava a Sarah que seus amigos iam apoiá-lo. Colocou-os a seu favor, do mesmo modo que
tinha feito na vez anterior.
William, convenientemente impressionado, assentiu com a cabeça.
— Aí tem, milady. Notch não arriscaria sua caixa de rapé por uma mentira. Todos sabemos
que é assim. Esse convencido anão presunçoso só se preocupa com seu próprio aspecto.
— Não vale nem um haggis10 podre —resmungou Notch.

9
Francute parece ser uma forma de menosprezo pela origem do Conde.
10
Haggis é um prato tradicional da cozinha escocesa. Em banquetes é apresentado com pompa: é servido ao som de gaitas de foles
e cortado com uma espada pelo alto dignitário da mesa. O haggis consiste num bucho de carneiro recheado com vísceras, ligadas
com farinha de aveia.

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Momentaneamente derrotada quanto ao tema do caráter do conde DuMonde, e


resignando-se à camaradagem reinante, Sarah deu uma olhada à multidão. O nervosismo fazia
com que os espectadores se movessem como um campo de urze percorrido pela brisa. Risadas
alegres e murmúrios excitados anunciaram a iminente chegada da Guarda de Honra do Rei.
Sarah procurava preocupada entre os rostos das mulheres elegantemente vestidas,
tentando averiguar se lady Emily Elliot se encontrava entre elas. Dado que tinha culpado à mãe de
Henry pelas últimas calúnias levantadas contra ela, para Sarah parecia sábio conhecer o paradeiro
da bruxa egoísta que jurou tinha jurado destruí-la.
Quatro meses antes, quando chegou a Glenstone Manor, a residência da família Elliot em
Edimburgo, Sarah soube que Henry e sua mãe tinham prolongado sua estadia em Londres. Em vez
de ficar na mansão com os criados aturdidos por sua inesperada presença, ou voltar para as
Highlands, alugou uma casa em Lawnmarket e esperou a volta dos Elliot.
Anteriormente, Henry a tinha incentivado a levar adiante seus planos para ajudar os menos
afortunados, e ocorreu a ela utilizar a casa alugada para colocar a ideia em prática depois do
casamento. Para aliviar a solidão e ocupar o tempo, começou a ensinar em uma despensa,
convertida em escola, da Igreja de St. Margaret. Aqueles que não podiam permitir-se pagar um
tutor privado enviaram seus filhos. Os órfãos vieram sozinhos.
Mas então lady Emily apareceu em sua casa com a espantosa notícia de que Henry foi preso.
A isto seguiu o pedido, tanto do dote de Sarah, como da intervenção do duque de Ross, para obter
a liberdade de Henry.
Sarah se esqueceu de sua decisão de confessar que não era uma MacKenzie de nascimento e
logicamente perguntou a razão da prisão de Henry. Lady Emily se negou a dizer-lhe alegando que
não era adequado que uma futura esposa se metesse nos assuntos de seu noivo. Lady Emily
arqueou as sobrancelhas depreciativamente e tentou resolver a conversa dizendo que em lugar
disso deveria entregar seu dote conforme o lembrado e confiar em seu amo e senhor para o tema
exaustivo das finanças.
Lachlan MacKenzie tinha trabalhado muito para conseguir dotes para todas suas filhas.
Sabendo que Sarah era capaz de administrá-lo por si mesma, entregou-lhe o dinheiro. Logo que
chegou a Edimburgo, ela o confiou ao banqueiro James Coutts. Sarah, ofendida, negou-se a
entregá-lo a lady Emily. Não valia a pena recordar qual foi a resposta da condessa. Entretanto
levou a cabo a ameaça de destruir a reputação de Sarah, e agora só os órfãos assistiam suas aulas
dos domingos pela manhã. Obteve sua vingança quando soube que Henry ainda estava na prisão,
e agora de Sarah sabia por que ele foi preso.
— Olhem! Já vêm! — Gritou Sally dos ombros de Right Odd.
Sarah ouviu o som dos cascos dos cavalos que se impunha às exclamações de alegria e
deixou de procurar lady Emily Elliot. Um instante depois, o primeiro dos cavaleiros apareceu ante
seus olhos e ela entendeu por que a Guarda de Honra do Rei inspirava tanta admiração.
O primeiro oficial ia montado sobre um magnífico cavalo baio. Com o uniforme tradicional —
jaqueta azul, calças brancas até o joelho, — e um colar distintivo de seu cargo com a rosa Tudor,
atraía todas os olhares. As rajadas de vento, tão características de Edimburgo como o cortante frio

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do inverno, agitavam os penachos brancos de seu capacete. O cavalo estremeceu e sacudiu a


cabeça com vontade de galopar, mas o cavaleiro manteve as rédeas seguras e apertou mais os
joelhos contra os flancos do animal para controlá-lo.
Jorge II tinha acrescentado ao antigo uniforme botas até o joelho; Jorge III era o responsável
pelas capas de veludo forradas de pele e adornadas com a insígnia da rosa Tudor.
Toda a tropa, formada por treze cavalheiros cuidadosamente escolhidos, montando em
formação de três atrás do chefe, ocupava agora a rua. Os aplausos se elevaram entre a multidão,
mas o oficial os ignorou. Com o queixo levantado e a atenção posta em seus próprios assuntos,
para Sarah lembrava Lachlan MacKenzie quando enfrentava uma tarefa pouco apetecível, mas
necessária. Mas mais do que suas belas feições e seu porte real, para Sarah pareceu que havia algo
quente e estranhamente familiar no altivo militar.
Impossível, zombou silenciosamente. Simplesmente se sentia atraída por sua selvagem
atitude e seu aspecto autoritário.
— O rei bateu as botas? — Gritou Notch — Foi por isso que vieram a Auld Reekie?
— Silêncio! — Sarah agarrou o braço do menino. Auld Reekie era como se chamava às vezes
Edimburgo, em referência à fumaça acre produzida por tantas chaminés de carvão.
O primeiro oficial se virou o necessário para olhar o ousado menino. Logo sua atenção se
dirigiu para Sarah. Ela notou com horror que se ruborizava sob seu olhar. Entretanto seu sorriso,
lento e malicioso, acabou com a vergonha.
Um patife presunçoso, decidiu. Que o admirassem os meninos e as outras mulheres! Como
líder que era do grupo de cavalheiros mais respeitado da cristandade, provavelmente estava
acostumado que as mulheres o bajulassem. Sarah MacKenzie tinha melhores coisas que fazer,
como planejar uma entrevista com o prefeito de Edimburgo para tentar convencê-lo, de novo, a
converter a alfândega abandonada em um orfanato.
Virou-se para partir e esteve a ponto de se chocar com Rose, sua criada. Vestida com seu
melhor vestido e com o correspondente chapéu rosa, Rose mais parecia a esposa de um próspero
fazendeiro que a criada de uma dama.
— Por caso não produz alegria olhá-lo? — Rose sorriu como uma jovenzinha apaixonada. —
Dizem que quando um cavalheiro da Guarda de Honra beija uma mulher caem joias do céu.
Sarah deveria saber que sua insolente criada ia aparecer.
— Nesse caso não se esqueça de pôr as mãos no caso que um deles tome liberdades
contigo, pode ser que assim obtenha alguns rubis. Dedique um sorriso tolo ao eleito, Rose. Até
mesmo pode ocupar meu lugar.
Rose executou uma reverência perfeita, mas sua expressão insolente danificou o gesto.
— Há cidra e bolos frescos na despensa. Você está tão magra como Lottie.
Sarah ouvia essa comparação com frequência ultimamente, mas a mesa era muito grande e
estava muito vazia, e não conseguia decidir-se a levar uma bandeja para seu quarto como uma
solteirona a que tivessem desprezado. Saber que tanto seu bom humor como seu apetite
voltariam quando seu futuro estivesse claro, fez que recebesse a observação com a intenção com

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que foi feita. Rose estava preocupada. Sua lealdade era a toda prova e com frequência enfrentava
à ira do administrador dos MacKenzie por sair em defesa de Sarah e seus irmãos.
Passando pela frente de sua donzela, Sarah esboçou um falso sorriso.
— Obrigada por sua observação, Rose. Não posso nem imaginar onde eu estaria sem você.
— Estaria na casa a que pertence.
A admoestação foi feita com tanta suavidade que não lhe doeu.
— Isso é o que você acredita.
— Todos opinamos o mesmo — interveio Notch. — Está morto e enterrado em Gallow's
11
Foot .
Várias horas mais tarde, bateram na porta principal da casa de Sarah. Ao ver que Rose não
atendia a porta, Sarah deixou de tecer e foi ver de quem se tratava.
Arrependeu-se assim que a abriu.

CAPÍTULO 2

Plantado na soleira, o primeiro oficial da Guarda de Honra do Rei vestia nesse momento um
casaco marrom de veludo sobre um tartan12 com as cores dos Elliot, colocado a modo de kilt13. O
sporran14 levava inclusive a meia lua, o símbolo heráldico reservado para os filhos mais jovens..
A opinião que ela formara sobre ele mudou imediatamente. Também percebi porque ele
parecia familiar. A diferença de seu irmão mais velho, este homem tinha os Traços dos Elliot, o
mesmo aspecto enérgico que ela observara em alguns dos retratos de Glenstone Manor.
Era Michael Elliot, o irmão mais novo de Henry.
Henry. Seu orgulho se rebelou ao pensar no canalha com quem pensará em casar-se. Se
este segundo veio a Edimburgo para assistir o casamento de Sarah com seu irmão, fez uma longa
viagem para nada.
— Você é Michael Elliot.
Ele assentiu e cruzou as mãos atrás das costas exibindo a largura de seus ombros e seu
musculoso pescoço.
— Isso me disse minha babá.
Uma resposta estranha e muito pessoal para ser dirigida a Sarah que, por outro lado, já
estava farta dos falsos e avaros Elliot. Surpreendeu-lhe que Henry não tivesse falado da elevada
posição que ocupava seu irmão na Guarda de Honra Segundo Henry, Michael simplesmente havia
aberto caminho no exército da Companhia das Índias Orientais.
Para ela tanto fazia se era o dono de todos os navios mercantes da frota.

11
Gallow’s Foot: ao pé da forca – é como dizer que o assunto está definitivamente encerrado.
12
Tartan. tipo de tecido axadrezado típico dos escoceses, cujas cores remetem ao clã.
13
Kilt tipo de saia tradicional escocesa usada por homens .
14
Sporran s. tira de couro usado na frente do saiote escocês.

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— Para que veio?


— A verdade é que por dois motivos. — Olhou-a de cima abaixo.
Sem o casco e toda a parafernália de adornos do uniforme possuía uma rudeza, similar a das
Highlands, que atraía Sarah perigosamente.
Entretanto, continuava sendo um Elliot.
— E quais são?
— Tinha que conhecer a mulher que disse que antes se casaria com um cavalo de corrida
desdentado e cego, do que com meu irmão.
Isso era, entre outras amostras de desprezo, o que Sarah tinha espetado à mãe de Henry. A
malvada lady Emily a esteve intimidando e insultando, e ela respondeu com serenidade e
compreensão tanto tempo quanto foi possível. Quando esgotou sua paciência, Sarah se esqueceu
de falar com educação.
Lady Emily obteve exatamente o que merecia.
— Não me arrependo de ter sido grosseira com sua mãe.
A risada se insinuou na boca dele, suavizando a linha severa de sua mandíbula.
— Pelo menos a sua memória é melhor do que suas maneiras. Minha piedosa mãe também
disse que você era uma valentona — baixou a voz. — Entretanto, não mencionou quão linda é
você.
O sutil sarcasmo no tom de sua voz ia dirigido para sua mãe ou para Sarah? Tendo em conta
o horrível comportamento do resto de sua família, provavelmente seria o segundo.
Os irritantes Elliot. Podiam estar soltando elogios até que se esgotassem as minas de carvão.
Sarah já os conhecia.
— Você é muito amável — disse ela, pensando na realidade que era como um monstro que
escurecia sua porta. — Você disse que veio por dois motivos. Além de voltar a expressar meu
desejo de não voltar a pôr os olhos em nenhum Elliot novamente, o que você quer?
Michael se sentia como um servo que foi enviado para liquidar a conta com o açougueiro.
Ignorando a exclamação de surpresa dela, entrou e se aproximou da lareira dizendo por cima do
ombro:
— Conseguir com que mude de ideia, é claro.
Uma ambiciosa bastarda do duque de Ross, havia dito sua mãe referindo-se a Sarah
MacKenzie. Michael esperava encontrar-se com uma camponesa corada, de maneiras antiquadas
e língua viperina. Tinha acertado em parte, mas, por todos os Santos! Ela era uma alegria para os
olhos. Vestida com um traje de veludo de cor açafrão e seu cabelo dourado, tão brilhante como os
raios do sol, era a própria imagem da graça feminina. Seu vestido, ao contrário do que ditava a
moda, estava só ligeiramente volumoso nos quadris. Sua cintura era extremamente estreita, tanto
que o vestido ficava solto. Apostaria sua parte no seguinte carregamento de seda da China que
não usava espartilho.
— Não espere que lhe dê boas vindas; e deixe de me encarar.
— Estava fazendo isso?
— Sim. Está tão atordoado como um pastor quando desce das colinas na primavera.

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Michael riu, mas por dentro estava tentando desesperadamente encontrar algo inteligente
para dizer.
A expressão de gelado desdém dava-lhe a aparência de uma rainha.
— Pareço-lhe divertida?
Ele virou para que o lado direito de seu corpo pudesse se aquecer junto ao fogo.
— Não. Tenho sob minhas ordens um homem chamado Brodie com um sotaque das
Highlands que, embora não seja tão refinado como o seu, soa igual. O irmão de sua mãe era
pastor. Brodie conta histórias sobre o comportamento pouco decoroso de seu tio depois de passar
o inverno isolado. — virou-se para que também seu lado esquerdo desfrutasse do agradável calor.
— De modo que entendo a que se refere ao dizer isso e me pareceu engraçado.
Na realidade a última coisa que esperava encontrar em Sarah Mackenzie era senso de
humor.
— Ah!
Michael esteve a ponto de inchar-se como um peru.
— Respondendo a sua pergunta, direi que fiquei encarando-a porque você é muito atraente
e eu passei quase vinte anos na Índia, um lugar onde escasseiam as escocesas bonitas.
A adulação deveria fazer com que suas reservas desaparecessem e que estivesse disposta a
entregar seu considerável dote.
Pelo contrário, enfureceu-a. Aproximou-se dele com um suave sussurro das saias.
— Pegue suas belas palavras e vá dizê-las em algum templo de Shiva. Eu não estou a venda.
Santo Deus! Esta moça MacKenzie tinha fogo em seu interior, e além disso era inteligente.
Senão como poderia conhecer as deusas hindus? Michael gostava das provocações, de modo que
enfrentou com entusiasmo sua fúria.
— Ouvi dizer que isso você disse à condessa.
— Isso e algumas coisas mais. Bom dia senhor, estou certa de que seu regimento precisa de
você.
— Refere-se à Guarda de Honra
—Claro! —Agora já sabia onde tinha visto esses olhos azuis. — Você estava na rua ao lado
do trombadinha que me perguntou se o rei tinha morrido.
Segurou-o pelo braço e o levou até a porta.
— Notch não é um ladrão; ou pelo menos, acredito que já não rouba. Isso não é assunto seu.
Entretanto a Guarda de Honra é, e desejo-lhe o melhor, embora sinta muito que tenha vindo até
aqui para nada.
Segurava-o com uma força surpreendente; Michael plantou os pés no chão. Tinha que
distraí-la um momento e logo voltar a tentar convencê-la para que entregasse seu dote e se
casasse com seu irmão, ou vice-versa, tanto fazia o que acontecesse primeiro.
— De modo que esse tal Notch não a roubou.
Ela emitiu um sonoro suspiro, retirou a mão e cruzou os braços.
— É obvio que não. Por favor vá. Seu irmão teve o que merece, e eu não quero ter mais
nenhuma ligação com os Elliot.

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Depois da breve conversa com sua mãe, Michael pensava o mesmo, entretanto não tinha
por que confessá-lo. Sarah MacKenzie tinha assinado um contrato. Ele ia convencê-la para que o
cumprisse e logo se dedicaria a sua nova vida como civil.
Embora sua mãe e seu irmão tivessem lançado ao chão o sobrenome Elliot, Michael estava
disposto a fazer o que estivesse em suas mãos para ajudá-los, mas não ia permitir que nem Sarah
MacKenzie nem ninguém duvidasse de sua honra.
— Como pode estar tão segura que não quer ter nenhuma ligação comigo quando nem
sequer me conhece? — Falar com uma certa delicadeza talvez o ajudasse a conseguir seu objetivo.
— Embora pareça que minha mãe estava correta.
Os olhos dela arderam de ira.
— A única coisa na qual a condessa de Glenforth é melhor que os outros é na alta opinião
que tem de si mesma e na adoração que sente pelo inútil e mentiroso de seu filho.
A temperatura da sala ia aumentando e Michael estava decidido a desfrutar dela. Desde que
seu navio entrou no estuário de Forth, tinha o frio entranhado nos ossos. O clima quente da Índia
estava muito longe.
— Eu concordo completamente, eu não teria expressado melhor.
Isso foi uma surpresa para ela. Apoiou-se no alto respaldo de uma poltrona estofada de
couro.
— Espera você que eu acredite que não gosta de seu próprio irmão?
Fazia tanto tempo que Michael não via Henry que não seria capaz de diferenciá-lo de um dos
emperiquitados porteiros do Trotter's Clube.
— Certamente que não, afinal de contas acabamos de nos conhecer. —sentou-se em um
sofá pequeno. — Entretanto, é possível... — deixou a frase no ar enquanto tirava uma luva.
Acariciou o espaço vazio do assento e terminou—:...a menos que me convença que você não é
uma jovenzinha muito inteligente que extorquiu os Elliot. Nesse caso, a condessa de Glenforth
poderia, e com razão, processá-la por haver ficado sem seu dote.
Ela pôs uma preciosa expressão de assombro.
— A loucura é um traço típico da família Elliot.
Michael meteu a mão no sporran com a mesma cordialidade que um comerciante no dia de
mercado, tirou uma bolsa com suas guloseimas favoritas, e a ofereceu ao mesmo tempo em que
arqueava as sobrancelhas.
— Um caramelo?
Ela nem se moveu.
Michael mordeu um pedaço de gengibre coberto de açúcar e estendeu as pernas.
— No caso de que padeçamos de demência, um pouco desse seu sangue das Highlands nos
viria muito bem.
— Quantas vezes vou ter que repetir? Nego-me a me casar com seu irmão.
— Poderia você escolher piores maridos que Henry.
— Estou certa que sim, mas em uma prisão turca para devedores.

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Michael esteve a ponto de engasgar-se com o caramelo. Além de despertar sua curiosidade,
ele não importava se seu irmão podia saldar suas dívidas ou não. Ele concordou em falar com
Sarah para tranquilizar sua angustiada mãe. Entretanto, Sarah MacKenzie o intrigava cada vez
mais.
— Vamos lá! — Começou a dizer com cordialidade. — Meu irmão morre por você. Aprecia-a
de verdade.
— Importa-me o mínimo o que seu irmão quer ou a quem diz que quer.
— Mas houve um tempo em que ele importou-lhe; do contrário você não se comprometeria
em converter-se em sua esposa e a dar a luz a seus herdeiros. Tendo isso em conta, ele vai
aproveitar a menor oportunidade para recuperar seu afeto. Minha mãe se preocupa que você
tenha sido vítima de más influências.
— Vamos ver se eu entendi. Sua mãe, a condessa, está realmente preocupada com minha
reputação?
Michael sentiu uma pontada de remorso. Não invejava a difícil situação em que se
encontrava aquela linda e interessante mulher. Entretanto, ele só era o mensageiro escolhido para
dar as más notícias. Provavelmente não voltaria a vê-la nunca, exceto em enterros e batismos.
— Minha mãe se preocupa com seu bem-estar — disse, esticando muito a verdade, — e
pede sinceramente perdão por suas duras palavras.
— Duras? Chamou-me selvagem, mal educada e inútil.
Ele teria se encantado de ver por um buraco aquele desdobramento de fúria feminina.
— E você, o que respondeu?
O rubor cobriu suas bochechas e apertou as mãos com força sobre as dobras de sua saia.
— Chamei-a de corvo de bico retorcido.
Uma boa descrição, pensou ele ao recordar a careta de desprezo de sua mãe ao falar de
Sarah MacKenzie.
— Está muito arrependida.
— Não acredito. Se o sentisse de verdade teria vindo ela mesma.
Ocorreu a ele uma débil desculpa.
— Ofereci-me para vir. Queria conhecer a mulher que cativou o coração de meu irmão e
concordou em casar-se com ele.
— Ela o está usando.
Aquela dolorosa verdade foi como uma porrada para ele. Deveria saldar as dívidas de jogo
de seu irmão e desaparecer de Edimburgo. Michael podia permitir-se de sobra, já que durante seu
primeiro período de serviço na Companhia das Índias Orientais tinha sacrificado mulheres e
diversões para economizar dinheiro. Inclusive nos prósperos anos que se seguiram, administrou
sua fortuna com sabedoria. Entregar embora fosse apenas um centavo à família que o tinha
esquecido e agora o utilizava como mensageiro, feria seu orgulho. Entretanto, esse era um preço
muito pequeno que receava pagar para livrar-se deles; os MacKenzie tinham dado sua palavra, e
Michael prometeu que o recordaria.

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— Minha mãe se preocupa com a felicidade de seu filho. — Dizer “filho” em singular,
descrevia perfeitamente o lugar que ele ocupava na família. A estas alturas Michael já não se
importava.
— Que generoso por sua parte!
— É certo, e você não tem que tratar nada com ela se não quiser.
— O que significa que só teria que entregar a você meu dote.
— E logo casar-se com meu irmão como estava planejado.
— Não. Custou muito a Lachlan MacKenzie conseguir meu dote. Não vou permitir que
desperdice para proteger o orgulho masculino.
O respeito que sentia por ela triplicou, e de repente desejou conhecê-la melhor.
— Não parece que seu acordo pré-matrimonial a obrigue?
— Você quer dizer algo assim como um contrato?
Ela irradiava confiança em si mesmo. Oxalá Henry não tivesse caído em desgraça, como
havia dito sua mãe. Oxalá lhe tivesse caído o orgulho. Mas então, como poderia cortejar e
conquistar a aquela mulher enérgica e encantadora?
— É um documento legal.
Ela se aproximou da lareira e avivou o fogo.
— A lei não vai obrigar-me a cumprir.
Ele sorriu quando uma rajada de calor esquentou seus joelhos nus.
— Por que não? Já se perderam outros dotes por razões menos importantes que a mudança
de opinião da noiva.
Ela pôs o atiçador em seu lugar e sacudiu o pó das mãos.
— Ah, mas meus motivos se apoiam no princípio da "máxima".
Máxima? Michael sabia pouco sobre as leis que regulavam os contratos matrimoniais já que
Calcutá distava muito de ser um mercado matrimonial para a nobreza britânica. Mas sem dúvida
um contrato era um contrato.
— Está você segura de que o advogado de seu pai a aconselhou bem?
— A máxima jurídica, tanto nos Tribunais como na Chancelaria, determina que se um
contrato for contrário aos princípios e perigoso para a sociedade, é inválido— explicou ela, com a
paciência de uma preceptora para seu tutelado. — Asseguro-lhe que me casar com seu irmão é
contrário a qualquer princípio e além disso é um grande perigo para qualquer sociedade da qual
tome parte.
— Certamente essa lei se aplica só às classes inferiores — disse Michael, surpreso por sua
apaixonada e entendida exposição da lei.
— Que é exatamente o caso dos Elliot. — O sorriso dela era completamente sarcástico.
Divertido e mortificado ao mesmo tempo, Michael não sabia se ria ou ofendia-se, de modo
que adotou a atitude do soldado e enfrentou-a.
— Não pode alegar coação. Você escolheu livremente.
— Se você ou qualquer dos Elliot tentam seguir por esse caminho, serão vocês que se verão
coagidos. Não serei leviana quanto a isso.

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Michael acreditou. A palavra que definia perfeitamente Sarah MacKenzie era “formidável”.
Veio a sua memória outra das acusações de sua mãe.
— Minha mãe está certa de que você pensa como um homem.
— Fascinante — disse ela, rindo. — Sua arrependida mãe segue superando-se a si mesma.
A lealdade familiar desapareceu e se viu obrigado a recuar.
— Você a conhece muito melhor que eu, mas me inclino a concordar com você. Como
chegaram os Elliot e você a esta desagradável situação?
A surpresa que se refletiu nas elegantes feições dela foi autêntica.
— Pergunte a eles. É melhor que sejam eles quem conte a você. Duvido que entendesse meu
ponto de vista.
Aquela moça das Highlands tinha muito orgulho. Michael desejou poder conhecer todos
seus segredos e escutar todas suas opiniões.
Aproximou os pés do fogo.
— Meu pobre irmão definhando na prisão dos devedores e minha mãe não faz mais que
desvairar — atou a corda da bolsa de caramelos e a ofereceu. — A volta para casa não foi muito
agradável. — Baixou o tom de voz quando ela aceitou a bolsa. — Levo muito tempo longe daqui e
agora sou um estranho.
Ela o estudou da mesma forma que um general a um recruta, provavelmente em uma
tentativa de descobrir se estava sendo sincero. Michael relaxou; enfrentou inspeções durante a
maior parte de sua vida.
— Acredita que pode me subornar com caramelos?
— Não — se apressou a responder ele quando ela levantou a bolsa como se fosse jogá-lo. —
Me ocorreu compartilhá-los com você e pedir conselho sobre vários assuntos.
Embora não sabia em quais.
Ela se sentou na poltrona em frente, esquecendo-se da bolsa que tinha na mão.
— O que é que quer saber? Onde há um sapateiro decente? A quem escolher como alfaiate?
Michael não tinha intenção alguma de zangá-la. Foi até ali porque lady Emily havia
ordenado, já que sua mãe não pedia: Ordenava. Sua ousadia o deixou sem fala. A última ordem
direta que recebeu, além da de embarcar de Calcutá com destino a Edimburgo, recebeu-a do rei, e
isso já fazia cinco anos. Ao ver seu assombro a condessa de Glenforth acreditou, erroneamente,
que podia manipular seu filho menor.
O aroma fresco do perfume de Sarah chegou até seu nariz, fazendo que desaparecessem de
sua cabeça os pensamentos sobre sua mãe. Sarah cheirava a chuva de verão e a flores da
primavera. Interessava-o tanto a mulher como o tema de que estavam falando.
— Por que assinou o acordo matrimonial?
— Fui o bastante estúpida para pensar que seu irmão reunia as condições para ser um bom
marido e pai. Ele cometeu a estupidez de cobiçar meu dote.
Michael viu que teria que ir a Londres. Falaria com Henry e arrumaria este embrulho, logo
empreenderia sua nova vida. Enquanto isso, desfrutaria conhecendo Sarah MacKenzie.

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— Se quiser chatear de verdade minha mãe, deveria jantar comigo na Estalagem do Dragão.
Me disseram que os maiores fofoqueiros e políticos da moda jantam ali.
Aceitaria ela o desafio? Ele esperava isso, já que não gostaria de comer outra vez só com
homens. Já teve o suficiente com as semanas passadas a bordo do navio.
— Prometo me comportar como um cavalheiro.
— Não vou mudar de ideia sobre sua família de modo que, por que iria você desejar jantar
comigo?
Porque tinha intenção de fazer com que mudasse de opinião sobre um dos Elliot. Estava em
jogo sua considerável fortuna. Mas antes tinha que falar outra vez com sua mãe e inteirar-se dos
detalhes da prisão de seu irmão. Logo retornaria a suas pacíficas e tranquilas habitações alugadas.
— Eu pedi para que jante comigo porque acredito que você é uma boa companhia,
imensamente mais agradável que uma tropa de cavaleiros que passaram muito tempo no mar, ou
que uma mãe que mal conheço.
Conseguiu surpreendê-la, porque abriu a boca e voltou a fechá-la, para logo desviar o olhar
para o fogo.
— De acordo, mas com uma condição.
Estabelecer condições era uma forma de vida no serviço no estrangeiro. Michael soube que
estava a ponto de ganhar.
Ela se levantou e devolveu a bolsa de caramelos. Estava quente e úmida devido ao suor de
sua mão. De modo, pensou, que não está tão tranquila como quer me fazer acreditar.
Levantou-se por sua vez, com a esperança de partir com uma nota alegre.
— Prometo usar a faca e o garfo, comer com a boca fechada e deixar o chapéu e as luvas
com porteiro.
— E o que acontece com suas boas intenções? Onde as deixará?
— Elas são parte do meu caráter. —Tomou sua mão, levou aos lábios e a beijou. — Pergunte
ao rei. Ele confirmará.
A brincadeira pareceu agradável porque tentou não sorrir e afastou a mão lentamente.
Elevou os olhos ao teto e logo olhou a palma de sua mão.
— Não caiu nenhuma pedra preciosa do céu.
Estava se referindo à antiga lenda, uma das muitas que havia sobre a Guarda de Honra.
— Tem que me declarar seu amor para obter as preciosas joias. — Uma ideia maravilhosa,
embora não teve mais remédio que admitir que fosse impossível.
Ela a descartou, demonstrando o que opinava de seu atrevimento.
— Você é um Elliot. O charme é algo comum nos homens de seu clã.
Sim, e seu irmão a tinha escolhido como esposa.
Michael fez uma reverência, dissimulando a contrariedade que sentia.
— Devo buscá-la amanhã às nove da noite?
A expressão dela serenou.
— Só se eu puder levar um convidado.

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Michael não discutiu por seu desejo de levar um acompanhante; era capaz de arrastar ele
mesmo o bispo de Saint Andrews até a mesa, contanto que Sarah MacKenzie jantasse com ele.

CAPÍTULO 3

Nesse mesmo dia, mais tarde, sentado diante de um prato de bacalhau com arroz, Michael
bebeu um gole de vinho e esperou que sua mãe perguntasse sobre seu encontro com Sarah
MacKenzie. Dada sua insistência anterior surpreendia-o que estivesse demorando tanto a tocar no
assunto. Pensava contar unicamente o que lhe permitisse sua consciência. Depois se dedicaria a
averiguar os detalhes sobre a prisão de seu irmão. Por agora só o interessava observar à mulher
que o havia trazido ao mundo. Aquilo dava o que pensar.
Alegrou-se de vê-lo, logo que nasceu? Ela o teria achado um bebê bonito, e que teria valido
a pena sofrer os dores do parto? Sabia que aquilo era uma estupidez e impróprio de um homem,
mas estava certo de que ele guardaria para sempre na memória, como se fosse um tesouro, a
lembrança de seu filho recém-nascido. Se o decoro e sua esposa o permitissem, inclusive
desfrutaria presenciando o parto. Dar as boas vindas a uma nova vida devia ser um verdadeiro
milagre. Depois de passar tantos anos em um país onde se enclausuravam as mulheres e inclusive
as excluíam das refeições, Michael estava muito interessado na forma de viver de uma mulher
cristã.
O vestido de cetim branco de sua mãe e a pesada peruca empoada formavam um grande
contraste com os rubis da família que adornavam seu pescoço e dedos. Algumas rugas devido à
idade rodeavam sua boca, fazendo que seus lábios parecessem sempre franzidos. Era bem mais
baixa que Sarah MacKenzie, mas continuava sendo uma mulher magra, com mãos bonitas e pele
bem cuidada.
Enquanto passava manteiga num pãozinho, ela se queixou de tudo, desde a lentidão do
correio até do pequeno tamanho das letras do Scots Magazine.
— E o que dizer daqueles cortiços imundos? — continuou protestando. — estragaram o
agradável passeio até o porto para ir ver os navios.
Bico retorcido, o epíteto de Sarah, descrevia perfeitamente a atitude depreciativa de sua
mãe. Era uma mulher ainda atraente, ou ao menos elegante e na moda, mas por desgraça
também mal educada, a quem não interessava absolutamente seu filho menor nem o que tinha
sido de sua vida nos últimos quinze anos.
Michael não tinha previsto que sua indiferença o incomodasse e doesse nele. Os homens
adultos não necessitavam da atenção de suas mães. Ou sim? E se não a necessitavam, por que
sentia esse vazio em seu interior?
— Esperava poder acrescentar uma galeria de retratos à casa — continuou ela, — mas com
esse imposto sobre as janelas nenhum bom arquiteto vai querer trabalhar em Edimburgo. Aqui
não podem construir uma mansão decente. Se fosse pelo Tesouro, voltaríamos a viver em
fortalezas com buracos para a fumaça e janelinhas para que entrasse a luz. Em Londres não, é
obvio. Pode imaginar Chatham aceitando tranquilamente que lhe digam quantas janelas pode ter?

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— Não acredito que Pitt precise de dinheiro para as janelas — disse Michael sem poder
resistir.
— Como tampouco precisariam os Elliot se nossos investimentos em carvão continuassem
sendo produtivos.
A riqueza dos Elliot provinha das propriedades da família em Fife, onde Michael cresceu.
Como conhecia o negócio só por cima, decidiu responder com cordialidade.
— Estou certo de que Henry faz tudo o que pode, mãe.
— É claro.
Ela pegou sua taça de vinho e a levou aos lábios. O copo estava vazio mas fingiu engolir para
que não se notasse que já bebera tudo. Ela fez isso duas vezes desde que tinham servido a comida.
Fez soar a campainha para chamar o criado. Quando o mordomo apareceu e completou sua
taça, nem sequer se dignou a olhá-lo.
— Os impostos sobre a exportação comem todos nossos lucros. Transportar carvão para o
Báltico se converteu em um negócio muito caro.
Ao olhá-la, Michael se deu conta de que não sabia, ou não podia recordar, qual era a cor do
seu cabelo. Um filho deveria saber coisas assim sobre sua mãe, coisas como o nome de suas
melhores amigas ou de que livros gostava; deveria conhecer as coisas que eram importantes para
sua família. Quando se casasse e tivesse filhos, trataria os seus com mais carinho. Conheceriam
uns aos outros, viajariam juntos e compartilhariam pensamentos e opiniões. E sobretudo se
manteriam leais entre eles.
Ela suspirou e bebeu da taça.
— Pobre Henry. Quando penso no que estará sofrendo nessa cela... —Apertou mais os
lábios e levou uma mão perfeitamente cuidada à garganta.
Os rubis cintilaram à luz das velas. Haveria mais joias? Um cofre cheio de gemas familiares?
Michael reconheceu com tristeza que sabia muito pouco sobre o legado dos Elliot.
Rebuscando na memória, encontrou uma vaga lembrança dessa mesma sala, com suas
paredes revestidas de madeira, o lustre de cristal e o chão atapetado, mas era incapaz de recordar
quando esteve ali pela última vez. O teto não era então muito mais alto e a mesa uma enorme
extensão de carvalho coberta de renda? Quantos anos teria quando se sentou em uma das
cadeiras de respaldo alto e seus pés ficavam pendurados sem chegar a tocar o chão?
Provavelmente uns seis ou sete.
Nesse tempo se sentia desajeitado. Agora se sentia desorientado.
— Está me escutando, Michael?
Quando ele apareceu em Glenstone Manor, ela se desculpou, embora brevemente, por
estar visitando o vigário. Michael viu sua mãe pela primeira vez depois de quinze anos na
penumbra do vestíbulo. A urgência de seu tom ao falar despertou nele o instinto protetor e o
obrigou a dirigir-se rapidamente a Lawnmarket para acabar com o dragão: Sarah MacKenzie.
Ao pensar nisso, irritou-se por ser tão impetuoso. Deixou o garfo.
— O que aconteceu exatamente com Henry? Não chegou a me dizer isso
Ela virou a cabeça e respirou sonoramente pelo nariz.

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— O culpado é esse descarado do duque de Richmond. Aproveitou-se da inocência de seu


irmão e o arrastou a uma casa de jogo clandestino.
Aquilo não combinava com o que Michael sabia sobre Richmond e se arrependeu de não ter
perguntado a sua mãe todos os detalhes antes de sair correndo para confrontar-se com Sarah
MacKenzie.
— Sua Graça tem fama de frequentar os melhores clubes de jogo, mas sua honra nunca foi
posta em dúvida.
Ela ficou imóvel e logo perguntou:
— E como você sabe se esteve servindo na Índia?
Pelo tom com que o disse parecia que a profissão de seu filho era desprezível. Michael,
como segundo na linha de sucessão, tinha poucas oportunidades na vida, além de aceitar as
migalhas que lhe desse a família. O que diria sua mãe se soubesse a fortuna que conseguiu? Não
pensava contar-lhe.
— Me conte o que aconteceu.
— Richmond o enganou com um jogo de dados que certamente estavam adulterados, e
quando Henry se negou a pagar-lhe quinze mil libras, o maldito duque fez com que o prendessem
e eles o levaram. É horrível.
— Quinze mil libras é muito dinheiro para jogar no jogo de dados.
O mordomo serviu as pêras ao brandy e logo tirou os restos de comida da mesa.
— Sim, Michael, estou certa de que para você é uma fortuna — disse ela quando o
mordomo se foi.
Ele esteve a ponto de começar a rir, mas em vez de fazê-lo pensou em Sarah. Ela foi
definitiva ao afirmar que não ia esbanjar seu dote pagando uma dívida de jogo. Ele tampouco
gostava de esbanjar e tinha a sensação de que ambos estariam de acordo em muitas coisas mais.
Ela inclusive era capaz de sacar e reluzir a lei e falar da “máxima”. Máxima. Quantas
mulheres, ou homens, conheciam sequer o significado dessa palavra? Viu-se obrigado a
reconhecer que não muitas.
— Recebi uma carta do advogado de Henry — prosseguiu sua mãe, deduzindo por seu
silêncio que estava de acordo com ela. — O duque quer levar o assunto ante a Câmara dos Lordes.
Sugere-me que façamos chegar até Richmond uma quantia simbólica. — Elevou a vista e olhou
para Michael com um sorriso. —Deveria nos devolver o dinheiro que gastamos para comprar seu
posto no exército.
— Devolvi-lhes isso há muito — soltou Michael, cheio de assombro. Por outro lado, deixou o
exército no dia que se uniu à Guarda de Honra.
— Sim? — A risada dela ricocheteou no teto. — Refere-se a essas pequenas somas que
enviou? Não eram presentes para mim? Comprei escovas aos pobres porque naquela época não
precisava me preocupar com dinheiro.
Preocupar-se com dinheiro? Ele esteve mandando pontualmente para sua casa a metade de
seu salário durante seis anos. Teve uma adolescência difícil e se viu obrigado a lavrar um futuro.
Quando se apresentava uma missão perigosa, oferecia-se como voluntário. Quanto mais perigosa

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era a missão, maior era a recompensa. Agora sabia por que sua mãe não se apercebeu do envio do
dinheiro: não dava importância.
— Inclusive o recomendamos para que estivesse à frente da Guarda de Honra.
Isso era mentira. A nomeação foi o resultado de sua bravura em uma sangrenta batalha na
planície de Madras. O líder da Guarda de Honra era eleito por voto secreto entre os membros da
mesma. O posto de primeiro oficial da Guarda de Honra não podia ser comprado, motivo pelo
qual ele tinha desejado ocupá-lo.
Esta noite escolheria outro chefe. Michael estava preparado para entregar as rédeas. O
chamado de sua mãe proporcionou a desculpa perfeita para deixar o serviço militar para trás. O
que não esperava era que lhe pedisse dinheiro. Pelo que pode ver até agora, podia ir esquecendo-
se de suas românticas esperanças.
— Nenhum homem poderia desejar uma família melhor que a dos Elliot —disse com
sarcasmo.
A menos que se tratasse de um Bórgia ou de um Médici.
— Temos muita sorte — ronronou ela. — Por isso eu nunca gostei da garota MacKenzie.
Mira muito alto para ser uma bastarda. Teve muita sorte ao despertar o interesse de Henry.
— Duvido, mãe. Ela é muito atraente.
Ela encolheu os ombros com indiferença, mas o olhou como um encantador de serpentes
olharia a uma cobra furiosa.
— De uma maneira provinciana.
Descrever como provinciana a elegante beleza de Sarah, era como dizer que o palácio do
marajá em Bombay era um simples pavilhão de caça. A comparação era tão absurda que não
ocorreu a Michael nada a dizer.
— Tenho certeza que consigo um compromisso, mas talvez possa encontrar o modo de
tirar-lhe esse dote. Se não ocorrer outra maneira, então lhe faça a corte. Estou certa de que Henry
não se importará, a menos que você se rebaixe e... e... arrebate-lhe a virgindade.
Cortejar Sarah para enganá-la? Sua mãe realmente esperava que ele concordasse em
desacreditar uma dama? Estava sozinho há muito tempo. A maior parte de sua vida nem sequer
recordava que tinha um irmão. Sua diferença de idade era de três anos. Não tinham crescido
juntos. Henry foi mandado para educar-se na casa do duque de Argyll e Michael ficou na
propriedade da família no campo. Seu tutor foi o filho do vigário. Permaneceu muitos anos
afastado, tanto de sua família como de seu país, e não conseguia encontrar nem um só vínculo
com a mulher que o tinha levado em seu seio ou com o irmão que administrava as propriedades
familiares.
Como podiam esperar que Michael cortejasse e se aproveitasse da mulher que seu irmão
escolheu como esposa? Isso era uma imoralidade. E além de tudo o ofendia.
Sua mãe o avaliou com o olhar.
— O certo é que se parece com a família de seu pai, e todos os homens dessa família têm
êxito com as mulheres.

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Michael não tinha chegado a conhecer seu pai. O conde visitava Fife duas vezes ao ano e
suas visitas eram breves e formais. Tinha morrido três anos depois que Michael embarcou para a
Índia. A notícia de seu falecimento lhe foi comunicada de forma oficial. O bilhete chegou meses
depois do enterro, por correio comum.
— Michael, tem que prestar atenção em mim. Não temos tempo a perder. Você tem que
cotejá-la no lugar de Henry.
Henry queria conquistar Sarah e esta odiava os Elliot. Como tinha se envolvido com eles?
— Quanto vão dar por sua aposentadoria? Espero que seja mais do que nós pagamos.
Michael já não se surpreendia com nada, de maneira que se limitou a olhá-la fixamente. Ela
seguia acreditando que ele tinha um salário. Disse ao azar uma cifra modesta.
— Duas mil libras.
Ela franziu a boca formando uma imagem que encaixava perfeitamente na descrição de
Sarah.
— Entrega-me isso e eu me encarregarei de levar a Londres. Pode ser que essa quantia seja
suficiente para tranquilizar Sua Excelência. Não podemos permitir que discutam os assuntos da
família no Parlamento.
Sabendo que se permanecia um segundo mais em companhia de sua despótica mãe,
acabaria por quebrar a taça, Michael ficou em pé.
— Eu mesmo me ocuparei de fazê-lo depois de amanhã.
— Tenho que ir a Londres para visitar uns amigos e devo ir ocupar-me de Henry.
Michael tentou raciocinar com ela, por muito que lhe chateasse.
— Henry necessita artigos de higiene e outras coisas que não se podem dizer em público.
—Tolices. Sou sua mãe.
Não havia mais que dizer. Michael apertou seu guardanapo.
— Eu não gosto que me acusem de dizer tolices.
Ela ficou imóvel pela surpresa.
— Seu pai jamais me permitiu dar uma opinião.
E com toda a razão, pensou Michael, perguntando-se se o mau caráter de sua mãe era de
nascimento.
— De acordo, vai e não regule em gastos para que Henry se encontre cômodo. — A julgar
pela energia com a que fez soar a campainha, Michael se deu conta do quanto havia lhe custado
ceder. Machucou-o ao acrescentar—: Pode tomar o porto no estúdio. Não há dinheiro para
brandy nem para charutos. A governanta preparou-lhe um quarto; na ala da família, é claro.
Ele deduziu, pelo tom de sua voz, que ela estava fazendo uma grande honra. Entretanto,
como filho que era, tinha esperado algo mais que cortesia de sua parte. Aquilo não era algo que
fosse ocorrer em um futuro imediato, de modo que enquanto isso manteria a distância.
— É muito amável, mãe, mas aluguei uma suíte na Estalagem do Dragão.
—Tont...
— Milady — a interrompeu, — vou me alojar ali.
— Você disse “suíte”. Por acaso trouxe contigo uma amante ou se casou?

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De verdade acreditava que teria se casado sem anunciar a sua família? Semelhante ideia
nunca teria passado pela sua cabeça.
É uma estranha, disse seu orgulho ferido. É uma maldita decepção, respondeu o coração.
Supera-o, acrescentou o curtido soldado.
— Não; viajo com um criado.
Turnbull racharia de rir ao ver-se rebaixado a essa categoria.
— Pode se permitir ter um criado?
Michael teve vontade de gritar de desespero, mas em vez de fazê-lo disse a sua mãe o que
acreditava que ela queria ouvir.
— Sou poupador até a medula, mãe.
Ela percebeu que ultrapassou a linha e lhe dirigiu um sorriso apaziguador.
—Manterá-me informada de seus progressos com essa tal MacKenzie?
—É obvio. Quer que lhe dê um relatório agora?
— Só se for boas notícias.
Ia levar seu castigo.
— Disse a ela que você se desculpava por tê-la chamado de selvagem mal educada.
— Não se atreverá a ficar do seu lado?
Não, não ia fazer. Tentaria deixar clara sua lealdade aos Elliot.
— Ela sente por ter dito que você era um corvo de bico retorcido.
— Oh! Ela vai me pagar por esse insulto. Encarregarei-me de que a ponham no pelourinho,
em Mercant's Cross, junto a outros estelionatários e ladrões.
— Também afirmou que pensava defender-se ante qualquer demanda que puséssemos
contra ela.
— Acredita que sabe tudo. Nenhuma família decente enviará seus filhos a essa escola
dominical que ela tem, e isso é só o princípio.
Uma professora; isso encaixava perfeitamente com Sarah.
— Amanhã de noite vou jantar com ela.
— Lembre-se do que eu disse sobre deixá-la inutilizável para o seu irmão.
Ignorando a grosseria de sua mãe, Michael lhe desejou boa noite e fugiu em direção às
escuras ruas de Edimburgo. O vento impregnou até os ossos, mas preferia andar antes de pedir a
sua mãe que emprestasse a carruagem da família.

Um condutor de tílburis se ofereceu para levá-lo, mas ele recusou. Não podia suportar ver-se
confinado em um desses oscilantes e rígidos cubículos. Quando deu com algo que lhe resultou
familiar — um par de luzes torneadas, — seus dentes tocavam castanholas.
Com a esperança de que a estalagem estivesse logo após a esquina seguinte, encurvou os
ombros e seguiu andando. As rajadas de vento moviam seu kilt, congelando suas partes íntimas.
Malditas tradições; a partir de agora colocaria calções por baixo.
— Hah, um cavalheiro que não tem dinheiro para um tílburi.

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Michael se esqueceu do frio, deteve-se e olhou para ver de onde tinha saído a voz. De entre
as sombras saiu um homem curvado, com uma manta sobre os ombros e arrastando pelo chão.
Em uma mão levava uma vassoura.
Era de verdade um varredor ou se tratava de um delinquente? Não sabia. Dirigiu-se a ele
com o tom que reservava para os mendigos mais persistentes de Calcutá.
— O que quer?
Movendo expressivamente um braço sob a débil iluminação, o homem declarou:
— Uma coroa na cabeça e um cofre cheio de ouro me fariam muito feliz —declarou o
homem, movendo as mãos expressivamente sob a débil iluminação. —Além de um castelo cheio
de bonitas moças das Highlands só para mim.
O absurdo da resposta não diminuiu a desconfiança de Michael. Estava sozinho, em uma rua
fracamente iluminada, e em uma cidade em que esteve em contadas ocasiões fazia anos. Deu uma
olhada por cima do ombro, procurando possíveis cúmplices.
O homem riu.
— Não vale a pena se dar ao trabalho pelo moedeiro vazio de um Elliot.
— É melhor que ambos conservemos os clientes — advertiu Michael, notando que o homem
os receava a todos. — Ocupe-se de seus assuntos.
— Farei-o assim que você deixar de ocupar-se dos de lady Sarah.
A observação do homem era tão ridícula que Michael esteve a ponto de começar a rir. Mas
não podia; suas mandíbulas estavam a ponto de congelar-se de frio.
— Me escute bem, quem quer que seja — disse apertando com firmeza os dentes. —Não
vou...
— Cholly. —O desconhecido levantou a cabeça. — Assim é como me chamo.
Logo voltou a se colocar entre as sombras, mas não antes que Michael pudesse vislumbrar
seus olhos.
O brilho que havia neles contradizia seu aspecto de velho, e a mão que sustentava a
vassoura parecia forte. Para ser um homem de ruas, falava corretamente e tinha os dentes bem
cuidados. Michael deixou de pensar no assunto. Não estava no labirinto de ruas dos bairros baixos
da Calcutá, e sim em Edimburgo, onde um homem se reconhecia e julgava segundo as cores do
tartan de seu clã. E que parecia também ser a cidade mais fria do mundo.
Deu umas fortes patadas no chão e sonhou com a sensação de esquentar o traseiro diante
de um bom fogo. Virou-se e voltou sobre seus passos.
O cabo da vassoura repousava sobre os úmidos paralelepípedos.
— Não é por aí — disse o varredor. — Você ia bem encaminhado. A Estalagem do Dragão
está logo que passar Pearson's Cióse. A não ser que o assuste um velho armado com uma
vassoura, preocupado por uma moça de boa família que está sozinha no Auld Reekie.
Michael se virou.
— Como é que você sabe tanto sobre Sarah MacKenzie?
O homem estava escondido entre as sombras.

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— Por esse menino, Notch. Tem a língua tão ligeira como a moral dos Elliot. Todos nós
estamos dispostos a defender à moça, de modo que ande com cuidado ou procure que a Guarda
de Honra lhe cubra as costas.
Michael voltou a olhar para trás. A rua estava deserta, o que era uma sorte porque era
incapaz de pensar em nada que não fossem seus trêmulos ossos e suas encolhidas partes íntimas.
— De acordo — esquivou ao varredor e continuou até a próxima luz. — Que tenha boa
noite.
— O alfaiate de Putnam Cióse tem calções curtos para levar debaixo do kilt e manter
quentes suas aristocráticas pelotas.
Michael continuou seu caminho, ignorando o insulto. Respirou de alívio quando viu o
letreiro que pendia por cima das portas em forma de arco da Estalagem do Dragão.

Na tarde seguinte Sarah revisou suas notas para refrescar a memória. Tinha que apresentar
suas reivindicações ao prefeito Fordyce. O mais sensato na hora de falar com um homem era
apresentar os dados sem fazê-lo responsável por nada, insistir em que estava convencida de que
ele já sabia o que era que não funcionava e suplicar que tivesse paciência com ela em sua rústica
tentativa por averiguar as causas. Fazê-lo pensar que a ideia ocorreu a ele, lisonjear seu senso de
justiça e levá-lo até onde ela queria. Sorrir docemente e suspirar de alivio por seu talento para
ajudar a uma simples mulher a encontrar uma solução lógica aos problemas.
Podia fazer; Juliet, a duquesa de Ross, a tinha ensinado bem. Entretanto, a ideia de ter que
valer-se da astúcia para que os ricos e poderosos cumprissem com seu dever cristão, a deixava de
mau humor. As mulheres não deveriam fingir-se inferiores para poder realizar uma boa obra.
O que pensaria Michael Elliot de seus métodos? Na realidade não deveria preocupá-la. Para
ser sincera, não importava nada sua opinião. Mas sentia curiosidade. O que faria ele quando se
desse conta que o tinha enganado? Tendo em conta o exemplo de sua família, certamente não
entenderia seus motivos nem simpatizaria com sua causa. A única coisa que preocupava os Elliot
era o dinheiro.
Rose entrou no aposento. Em cima do vestido de musselina branca com diminutas flores de
urze estampadas, levava um avental com cós de renda. Um recatado e engomado gorrinho,
perfeitamente colocado, cobria seu cabelo negro. Sobre o braço levava o vestido preferido de
Sarah.
— É uma verdadeira má sorte — disse com aborrecimento, — que esse atraente soldado
tenha resultado ser um Elliot.
Desde que Sarah contou a ela do encontro dessa noite com Michael, a criada não fez mais
que resmungar, cada vez com maior dramatismo.
— Laura, quer dizer, a criada de lady Jane, diz que os pós do cabeleireiro de Dewar's Cióse
são os melhores de Escócia — acrescentou a criada, pondo o vestido sobre a cama. — Quer que
mande Notch comprá-los amanhã?
Sarah ainda não tinha encontrado um pó que não a fizesse espirrar. As pessoas a
consideravam uma simplória por não usar peruca, mas ela não se importava com as opiniões

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desses prepotentes. Seus olhares de censura não iam obrigá-la a ficar em casa nem a abandonar
seu objetivo.
Dobrou suas notas e as colocou no bolso do roupão.
— Diga a ele que traga só um pouco.
Rose se aproximou da penteadeira e pegou um par de pentes de prender cabelos de prata.
— Não tem sentido estragar outro lote. Sente-se aqui e tentarei fazer algo com seu cabelo.
Sarah apagou o abajur e se afastou da escrivaninha para sentar-se na banqueta, em frente
ao espelho. Rose escovou seu cabelo recém lavado até que Sarah sentiu um formigamento no
couro cabeludo e ronronou de prazer.
— Notch se inteirou pelo carteiro que o irmão de lorde Henry vestia o tartan com as cores
de seu clã quando foi ver o alfaiate de Putnan Cióse. Segundo o carteiro, encomendou um bom
vestuário — Rose suspirou com tanta força que a chama da vela que havia em cima do
penteadeira piscou. — É uma pena que Deus determinou que ele fosse um Elliot. O plaid15
assentou-lhe bem?
Sarah tinha renunciado a negar que ele parecesse atraente.
— Bastante, tem as pernas retas e é mais alto que Lachlan MacKenzie.
Rose assentiu com tanta energia que lhe moveu todo o corpo.
— Ah ah! Não foi isso o que eu disse em High Street, com Notch e outros de testemunhas?
Mas garanto que tem os joelhos tão gordos como couves amadurecidas.
Sarah conteve uma gargalhada. A primeira vez que ouviu essa expressão estava em Glasgow
com sua família assistindo o baile da colheita. Ao ver o conde de Clyde com o tartan de seu clã,
Rose declarou que seus joelhos pareciam couves amadurecidas. Com treze anos, Sarah e suas
irmãs riram como meninas às que estivessem fazendo cócegas. Passados os anos seguia sendo
uma brincadeira entre elas e uma fonte segura de diversão.
— A verdade é que o que menos me preocupava eram seus joelhos.
— Você ainda é jovem. Pronto — Rose assegurou os pentes de prender cabelos. — Melhor
que ir com o nariz avermelhado — Tocou seu nariz. — É muito pouco romântico que uma mulher
espirre em público.
Sarah examinou o penteado em forma de oito que fez Rose e gostou.
— Obrigada, mas não acredito que esta vá ser uma noite romântica.
Rose apertou a escova contra o peito.
— Deus não o queira! É um Elliot. Mas, e se houver ali algum outro cavalheiro? Usando esse
vestido vai conseguir que muitas cabeças se virem.
Sarah não gostou do que isso significava, mas Rose estava sorrindo e era difícil encontrar
alegria naquela casa. Esta noite era importante. O vestido lhe dava confiança. Gostava da
sensação de levar em cima um montão de metros de seda.
— A única coisa que me interessa é falar com o prefeito Fordyce.

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Plaid: refere-se tanto ao modo de usar o tartan quanto ao padrão xadrez da peça.

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— Se a olhar depreciativamente por não levar o cabelo empoado, assegure-se de lhe


explicar o efeito que os pós causam a você. Se isso não der resultado, diga o mesmo que você
disse à condessa quando esta chamou a atenção. Esse bonito patife que tem por filho também
deveria inteirar-se.
Sarah se levantou e se enfrentou com o olhar de sua criada no espelho.
— Não vou dizer nada parecido. Ele descobrirá sozinho. Agora traga meu vestido. São quase
nove.
Rose ficou onde estava.
— Quando vai dizer a ele que não é filha do duque de Ross? Ou não vai dizer? Já sabe o que
disse Sua Graça, e não pense nem por um momento que ele vai ficar de braços cruzados
esperando que lhe ocorra alguma desgraça.
De momento era melhor ignorar a promessa de Lachlan MacKenzie de protegê-la. Sarah se
levantou e tirou o roupão.
— Isso eu tenho reservado só para lady Emily. O que quero esta noite é convencer o
prefeito.
Rose trouxe o vestido e o sustentou para que Sarah pudesse vesti-lo. A seda rangeu
enquanto se acomodava ao corpo. Logo a criada foi afofando a volumosa saia.
— Foi uma grosseria por parte da condessa enviar seu filho mais novo para lhe exigir o
dinheiro. — estremeceu de desgosto.
Ante a menção das maquinações daquela mulher, Sarah teve vontade de vomitar e ficou de
mau humor. Sabia Michael que estava sendo utilizado ou era ela que estava confundindo sua
atitude distante com orgulho ferido? O instinto lhe disse que se tratava do último.
— Dá-me a sensação de que ele não gosta dela.
Rose destampou o frasco do perfume preferido de Sarah e aplicou-lhe a fragrância no
pescoço e nos pulsos.
— Esse é outro ponto a seu favor. Só espero que também tenha herdado o comportamento
cavalheiresco da outra parte da família. Não se parece com lorde Henry em nada. Entretanto, por
que anda procurando sua simpatia? Acredito... — Rose fez uma careta. — Sinto muito.
Sarah não se ofendeu absolutamente. Fazia muito que tinha feito as pazes consigo mesma
pelo equívoco cometido ao escolher Henry Elliot. Desde seu encontro do dia anterior com
Michael, passou muitas horas pensando nele e comparando-o com Henry.
— Não tem do que se desculpar.
— Você simpatizou com ele — afirmou Rose, com voz cheia de apreensão.
— Michael se encontrava... desconfortável, e admitiu não conhecer muito bem à condessa.
Esteve muito tempo na Índia.
— Como é na realidade... além de ser um Elliot?
— Comporta-se como um cavalheiro e em nenhum momento me olhou nos olhos quando
mencionou meu dote. Acredito que o fracasso de sua missão o satisfez. Mas é tão tenaz como
Agnes quando coloca uma ideia na cabeça.

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— Milady... — Rose mostrou uma expressão pensativa que a fez parecer mais jovem do que
os quarenta anos que tinha.
Os olhos de ambas se encontraram.
— O que acontece Rose?
— Tenho medo que os Elliot a magoe novamente.
Rose estava preocupada, como de costume. Sarah lhe dirigiu um largo sorriso.
— Isso jamais. Só vou porque quero que seja testemunha de minha conversa com o prefeito
Fordyce.
— Você é muito inteligente para o gosto dos Elliot... ou para a gentinha importante deste
asqueroso lugar — resmungou Rose, apontando-a com a escova.
— Ainda não tive êxito — colocou a pilha de papéis na bolsa, — mas considerando o quão
bem me preparei, deveria ser capaz de apresentar um bom argumento.
Rose foi ao lavabo e voltou com um pano úmido.
— Tem os dedos manchados de tinta.
Sarah limpou as mãos e sucumbiu por um momento ao nervosismo.
— De verdade espero que vá tudo bem esta noite.
— Conseguirá que esse prefeito mude de ideia sobre a alfândega. Não foi você quem
convenceu a Sua Graça que deixasse que Agnes partisse para a China?
— Isso é algo de que me arrependo.
—Não se preocupe com essa diabinha. Além de aprender a lutar dessa forma tão estranha,
também aprendeu umas quantas artimanhas femininas.
A querida Agnes enfrentava o mundo a sua maneira.
— Essa é uma palavra muito feia para descrever a inteligência.
— É uma questão de princípios, milady. Você não deveria empregar seu dote em um edifício
que está caindo. Você não é a responsável por esses pobres meninos. A responsabilidade é dos
comerciantes e dos homens dos grêmios que semeiam sua semente nessas prostitutas que logo
abandonam seus filhos a sua sorte.
Sarah começou a sentir tristeza, já que Rose havia descrito perfeitamente a atitude do xerife
de Tain, que seduziu à mãe de Sarah para depois abandoná-la, deixando-a morrer em Edimburgo.
Entretanto, Lachlan MacKenzie se encarregou da filha bastarda de Smithson e a educou como se
fosse dele. Por que Lachlan havia dito que se parecia com sua avó paterna quando a verdadeira
família de Sarah vivia tão perto?
Uma mão lhe tocou o ombro.
— Vai escrever para ele? Ele a ama e você está destroçando seu coração.
Sarah conhecia bem esse sentimento, mas como ia enfrentar agora Lachlan MacKenzie? Ele
havia dito mil vezes que Henry Elliot não era o homem adequado para ela. Assegurou-lhe que
Henry ia matá-la de aborrecimento antes que passassem quinze dias depois do casamento, mas
ela não escutou seus conselhos e partiu para preparar o acordo matrimonial.
Se fosse honesta consigo mesma teria que admitir que não era a Henry a quem tinha
querido. Qualquer que fosse seu estado de ânimo, tanto se estava serena como zangada, Sarah

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era perita em ler entrelinhas e em adivinhar o que pensavam os outros. Ouvira sua madrasta dizer
frequentemente que uma mulher inteligente sabia por instinto quando tinha chegado o momento
de retirar-se. Era por isso que Sarah havia escolhido Henry. Não porque o amasse realmente mas
sim porque tinha renunciado a encontrar o tipo de homem que desejava. Henry era o menos
desagradável. E não só isso; já tinha chegado o momento de deixar o lar e voar sozinha. Lachlan e
Juliet estavam ocupados criando sua segunda família, e, embora Sarah amasse muito a todos,
sabia que se estava interpondo em seu caminho. Quanto Henry, agora era evidente que só a tinha
querido porque necessitava de seu dote.
— Escreva amanhã — a súplica saiu do coração de Rose e devolveu Sarah à realidade. — Dê
a ele uma alegria. Conte que passou uma noite convencendo o prefeito de Edimburgo que
enfrentasse aos dirigentes da cidade.
Sarah seguia vendo muitos obstáculos. Quando já estivesse assentada, as coisas seriam mais
fáceis. Reuniria a coragem suficiente para atravessar a cidade e visitar a tumba de sua mãe. Até
então já teria perdoado Lachlan por mentir a ela ao dizer que se parecia com uma MacKenzie.
— Ainda não, Rose.
— Quando chegar o momento, ele estará esperando.
Rose tinha razão. Mas o que continuava intrigando Sarah era o que diria Michael Elliot
quando averiguasse de quem era o edifício da alfândega. O que ia fazer se ele descobrisse a
verdade antes que ela tocasse no assunto naquela noite?

CAPÍTULO 4

Michael chegou às nove em ponto em uma carruagem de aluguel. Depois de ajudar Sarah e
Rose a subir, ocupou o assento em frente a elas iniciou uma conversa agradável sobre a boa
qualidade da comida na estalagem. No chão da carruagem havia tijolos quentes e grossas mantas
cobriam as almofadas. A união de ambas as coisas fazia que a carruagem desse uma sensação de
comodidade.
O anfitrião levava uma capa de lã em cima da jaqueta, e calças de veludo marrom. Um lenço
no pescoço, de cor amarela brilhante com um nó simples, acrescentava um toque de cor a sua
aparência varonil e ressaltava sua pele bronzeada pelo sol. Suas botas refletiam a dourada luz dos
abajures da carruagem.
Do ponto de vista de Sarah, o traje moderno fazia um forte contraste com a vestimenta
tradicional que o viu usar anteriormente. Perguntou-se se ele se sentiria diferente conforme
vestisse de uma maneira ou de outra. Embora tivesse gostado de conhecer a resposta, esse era o
tipo de pergunta pessoal que só poderia fazer uma irmã ou uma esposa. Certamente, Sarah
MacKenzie não podia fazê-la a Michael Elliot. Esse tipo de confiança era uma das muitas coisas que
ela esperava do casamento.
Michael conversou alegremente durante o curto percurso pelas ruas escuras e estreitas.
Tudo foi bem até que desceram da carruagem. Michael colocou uma mão nas costas de Rose e lhe
ofereceu o braço, enquanto chamava o porteiro.

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— Esta é a senhorita Rose, a acompanhante de lady Sarah — disse Michael. — Ocupe-se de


que esteja confortável e entretida.
— Ponho-a no salão de baixo com Turnbull?
— Isso. Atenda-a bem e que sirva o que ela quiser.
Rose parecia estar a ponto de derreter-se.
— Obrigado, milord. — Procurou Sarah com o olhar e logo desviou os olhos para os joelhos
de Michael. — Surpreenderia-me que tivessem couves. Não vi nenhuma madura por aqui.
Sarah esteve a ponto de começar a rir; teve que tampar boca e virar-se. Aquela noite
Michael não levava a saia escocesa de modo que Rose não podia ver seus joelhos. Tinha-a
conquistado de tal modo que ela se esqueceu de que era um Elliot e ainda estava fazendo elogios
a ele.
Esta noite o comportamento dele estava sendo impecável e, como Sarah recordava muito
bem, tinha belos joelhos.
— Trata-se de uma piada particular? — Perguntou ele com um sorriso de curiosidade que
incrementou seu atrativo.
Rose riu com dissimulação enquanto seguia o lacaio da estalagem, com as costas mais
rígidas que uma tábua.
— Efetivamente — confessou Sarah, — e muito ruim para contar-lhe.
— Se você diz. —Cruzou a porta com ela e a ajudou a tirar a capa.
Ao olhá-lo de relance, Sarah teve a sensação de que o tinha decepcionado por não
compartilhar a piada com ele. Era como se houvesse se recolhido sobre si mesmo; uma reação que
tinha observado frequentemente em Notch.
Notch e Michael Elliot. O que a tinha levado a compará-los? Era impossível que um menino
sem pais e o distinto filho de um aristocrata tivessem algo em comum.
— Tenho alguma coisa na face?
Pensaria nas similitudes depois, de momento tinha outras coisas nas que pensar.
— Não, não tem nada.
— Diria-me isso se o tivesse?
— É obvio. Deixar que riam de uma pessoa é algo cruel e desconsiderado. Jamais cairia tão
baixo.
— Bem. E agora pode me explicar por que esse tipo moreno que está atrás se dirige para nós
como se fosse Suleiman entrando em estado de Buda à frente do exército Otomano?
Uma analogia muito interessante, mas claro, ele era um soldado. Virou-se. Tratava-se do
prefeito e Michael Elliot não o conhecia. Havia se arriscado e tinha se saído bem.
Entrelaçou seu braço com o de Michael, animada por ter acertado.
— É o prefeito Fordyce. É o convidado do qual lhe falei.
— Não parece estar muito contente — murmurou Michael.
Fordyce era um homem enérgico e elegante que sempre estava com pressa. Usava uma
jaqueta curta de cor verde garrafa combinando com calças até o joelho. Suas meias eram de um

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branco deslumbrante assim como a camisa de babados, e sua elegante peruca foi polvilhada de
cor verde clara. Seu cenho perpétuo era tão característico nele como seus gostos refinados.
Michael disse por baixo:
— Você está certa de que quer jantar conosco?
O prefeito não queria jantar com Sarah, mas Michael não tinha porque saber.
— Nosso bom prefeito sempre parece zangado. Essa careta que vê, é na realidade um
sorriso.
— Nos lugares nos quais estive não é.
Sarah riu quando ouviu a resposta rápida e espirituosa dele, e se perguntou em quantos
lugares exóticos ele esteve. Seguia tentando conter a risada quando o prefeito chegou até eles.
— Obrigado pelo convite, Elliot. Encantado em conhecê-lo.
— Digo o mesmo — respondeu Michael, olhando para Sarah com perplexidade.
— Todo mundo está desejando dar boas vindas à Guarda de Honra —disse Sarah, a modo
de explicação por ter convidado Fordyce em nome de Michael.
Fordyce a saudou com uma reverência.
— Boa noite, lady Sarah. Você está tão liinda como sempre. O vestido que leva é um
Tremaine, não é assim?
A seda cor azul safira era um desenho criado pelo grande modista. Agnes o tinha enviado a
Sarah no verão anterior por seu aniversário. Livrou-se de responder quando o hospedeiro
conduziu a um salão privado.
Um enorme fogo ardia na lareira e a mesa estava preparada para três comensais. Em uma
das paredes se via um par de tochas Lochaber formando uma cruz, nas outras pendiam quadros
de paisagens de estilo holandês. Sarah escolheu a cadeira em frente à porta e Michael tomou
assento junto ao fogo, deixando o prefeito a que ficava em frente às antigas armas das Highlands.
— Vão beber algo antes do jantar? — Perguntou o hospedeiro usando um avental.
Michael se voltou para Sarah e arqueou as sobrancelhas.
— Deseja tomar algo, milady?
Sarah desejava duas coisas; a primeira que a boa sorte durasse toda a noite, a segunda
poder dirigir-se ela mesma ao hospedeiro e que este lhe respondesse. Amaldiçoou o homem a
quem tinha ocorrido o ridículo costume de fazer que as mulheres falassem com os homens através
de outro homem.
— Diga a ele que tomarei um vinho, se não ser muito forte — disse a Michael. — Caso
contrário tomarei uma cerveja Johnson.
— Certamente, senhor. É o mesmo vinho que bebeu ontem à noite a Guarda de Honra.
— Tem sorte de que tenha sobrado algo — disse Michael, dirigindo-se a Sarah.
— E isso por quê?
— Alguns de meus camaradas tomaram gosto ontem à noite.
O alegre hospedeiro deu uma palmada na própria coxa.

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— Ninguém pode dizer que a Guarda de Honra não rendesse as honras que merecia depois
de que você se fosse, senhor. Esse palerma que venceu, mal se viu na mesa, exceto seu nariz.
Depois disso, ficou completamente imóvel.
— Estou seguro de que hoje teve uma boa dor de cabeça. E você, o que vai tomar, Fordyce?
O prefeito levantou sua taça vazia.
— Tomarei um pouco de vinho.
— Nesse caso, traga esse estupendo vinho — ordenou Michael. — E deixe a porta aberta.
Muito considerado de sua parte, pensou Sarah; sobretudo quando minutos mais tarde o
conde DuMonde e sua amante se sentaram em uma mesa no salão comum, justo diante de seus
olhos. DuMonde estava de costas para Sarah, mas esta não precisava ver seu rosto para saber que
estava sorrindo com afeto a sua amante já que nos olhos da dama se via que o prazer era mútuo.
Sarah se sentiu estranhamente incômoda. Já tinha visto esse tipo de olhar antes; assim era
como sua madrasta olhava para Lachlan MacKenzie e David Smithson para Lottie.
— Acontece algo? —Perguntou Michael.
— Não, tudo vai muito bem.
Segundo Notch, lady Winfield era a amante de DuMonde. Agora, ao vê-los juntos, Sarah já
não ficou com nenhuma dúvida.
— O prefeito e eu estávamos a ponto de começar a falar do tempo — disse Michael, fazendo
a Sarah um gesto com as sobrancelhas a modo de súplica.
— Ultimamente está fazendo frio — disse ela.
— Muito mais que na Índia, eu asseguro.
Continuaram conversando amigavelmente enquanto desfrutavam de um banquete que
começou com um suculento cordeiro enfeitado com tomilho e pimenta moída. Enquanto isso,
Sarah continuou olhando de esguelha ao casal do outro salão.
Sentia inveja, mas não porque queria ocupar o lugar de lady Winfield. Ela gostava do francês,
é obvio, já que era um homem alegre e divertido; pode ser que demais para pensar seriamente
nele como marido. Os ciúmes de Sarah eram produto de seu desejo de amar, desejo que não lhe
inspirava DuMonde. Ela desejava o amor que brilhava nos olhos de lady Winfield. Ao lado de seu
homem, a amante de DuMonde parecia encontrar-se no paraíso.
Sarah decidiu que o francês deveria casar-se com sua amante, e prometeu que assim diria a
ele.
— Estamos aborrecendo lady Sarah — observou Michael. — Parece-me que os assuntos do
rei não a interessam.
Ela era capaz de escutar e observar ao mesmo tempo, de modo que sabia que estavam
falando sobre o domínio inglês na Índia. Perguntou-se se deveria comentar algo sobre o tema e
decidiu que sim. Era a maneira perfeita de distraí-lo. Começou a formar um montinho de miolos
de pão com a unha.
— A expansão inglesa é um tema espinhoso para um escocês das Highlands.
Michael depositou sua taça de vinho na mesa.
— Você é jacobita?

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— Não sou o que se entende tradicionalmente por jacobita. Além disso, o príncipe Carlos
Stuart já é muito idoso para lidar com o trono, no caso que as pessoas o quisessem, o que não é o
caso. Fracassou em sua obrigação de perpetuar a dinastia dos Stuart.
O prefeito afastou seu prato.
— Teve uma filha com outra mulher a quem reconheceu como legítima.
Sarah não tinha mais remédio que reconhecer que essa foi uma decisão muito nobre, mas
esse tipo de coisas se conseguiam facilmente quando se tinha um irmão cardeal e duque de York.
— Dado que lady Charlotte não pode arrebatar o trono dos Hannover, a coisa é discutível. O
que me incomoda é que vamos procurar nossos monarcas nos Hannover. Não seria melhor que
nossa família real tivesse nascido aqui e falasse nosso idioma?
— Isso é interessante — Michael pôs o cotovelo sobre a mesa e apoiou a mão no queixo. —
E qual seria esse idioma, o escocês, o Gales, o irlandês ou o inglês?
Fazia perguntas inteligentes e ela valorizava esse traço.
— Touché. Apesar de tudo, eu acredito que uma vez sentados no trono, deveriam ter a
cortesia de aprender a dirigir a seus súditos em sua mesma língua.
O prefeito Fordyce soltou um forte arroto.
— Sinto muito — se desculpou. — Jorge III fala inglês.
— Depois de três gerações de reis Hannover? Me parece que é um pouco tarde.
— Ela tem razão, Fordyce. Não é muito pedir em troca de obter incontáveis riquezas e de
ocupar um lugar na história da nação mais importante do mundo.
Como o tema tinha capturado seu interesse, o prefeito se aproximou mais à mesa.
— Seu lema é aumentar os impostos e esbanjar dinheiro. Deveria deixar de olhar em direção
da Escócia para encher as arcas reais e pôr os olhos em outra parte.
— Isso ele faz — respondeu rapidamente Michael. — Desde que perdemos as colônias
americanas está decidido a ter à Índia sob o punho.
Sarah saltou.
— Mas não sente nenhum respeito pela cultura de seus súditos nestas ilhas. Durante trinta e
seis anos proibiu os escoceses de usar o tartan e tocar a gaita de fole, os galeses perderam tudo, e
dos irlandeses tirou o direito a vestir-se de verde.
Michael elevou a mão.
— Assim é como se impõe qualquer país, inclusive a Inglaterra. A primeira regra em uma
conquista é reprimir.
Sarah só sabia o que tinha lido em livros e periódicos.
— O que obteve nosso Governo da Índia?
— Seu comércio. Sua riqueza. Suas peculiaridades únicas no mundo.
— Você é contrário ao rei? — Perguntou Sarah.
— Não, apoio-o totalmente. Na Índia se necessita de um Governo imparcial que evite que as
diferentes facções religiosas se destruam entre si.

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— Você fala de liberdade religiosa — disse Sarah. — Esse é um conceito estranho vindo do
primeiro oficial da Guarda de Honra. Henrique VIII, seu fundador, pôs em ridículo nossa fé. Sir
Thomas Moore se converteu em mártir por isso.
Um ligeiro sorriso zombador indicou a leve retirada dele.
— Pode ser que a coroa tenha aprendido com os enganos do passado.
Fordyce deixou cair seu garfo no prato.
— Onde o hospedeiro foi procurar mais vinho? Em Borgonha?
Michael piscou um olho para Sarah.
— Estamos aborrecendo o prefeito Fordyce com nossa conversa sobre reis e diplomacia.
Parece-me que prefere falar de arrecadar impostos.
Sarah não desfrutava de uma conversa tão amena desde que deixou a sua família.
Entretanto não estava ali para encetar um debate com Michael Elliot, mas sim por outro motivo.
Nesse momento seu objetivo era o outro homem presente na mesa.
— Lamento-o, prefeito Fordyce.
O hospedeiro voltou com o vinho. Michael pegou a garrafa e se encarregou de voltar a
encher o copo do prefeito.
— Lady Sarah você não sabia que Elliot se retirou da Guarda de Honra? —Perguntou
Fordyce. — Ontem o estiveram celebrando até a madrugada; pelo menos isso é o que disse o
hospedeiro.
Michael não tinha aspecto de ter passado a noite na farra.
— Por isso vieram; para acompanhá-lo até em casa —acrescentou o prefeito.
Ela não acreditava nem por um momento que o motivo para voltar para casa fosse a
aposentadoria. O que ele queria era seu dote. Até onde estaria disposto a chegar para consegui-
lo?
— Sério? — Perguntou — Essa é a razão de que tenha voltado para Edimburgo precisamente
agora?
— Sim, bom... — respondeu ele girando o pé da taça entre o polegar e o indicador. — Já
cumpri com meu dever para com o rei e o país. — voltou-se para Sarah e acrescentou:— E dá no
mesmo em que continente estejam os interesses de Sua Majestade.
— Uma resposta inteligente — murmurou ela.
— Me alegro de que o pareça.
Se Sarah conseguia fazer com que Michael Elliot desse baixa da Guarda de Honra, suas
oportunidades para convencer o prefeito e dono do edifício da alfândega, seriam maiores. Já tinha
chegado muito longe, posto que estavam conversando tranquilamente.
Os criados retiraram os pratos e voltaram com uma bandeja de figos, cerejas e laranjas.
DuMonde e lady Winfield abandonaram a estalagem. A julgar pelo olhar de adoração nos olhos da
mulher, Sarah soube aonde se dirigiam.
— Gostaria de um pouco de fruta? — Perguntou Michael.
Sarah tinha jantado mais do que devia fazer uma mulher em público, mas a conversa tinha
aberto seu apetite. Escolheu um figo grande e o cortou em quatro partes enquanto se preparava

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para lançar seu primeiro ataque verbal. Quando terminou, deixou a faca e olhou para Michael, que
estava comendo uma cereja.
— Michael sabia você que nosso prefeito se preocupa muito com a crescente quantidade de
crianças que são abandonadas nas ruas de Edimburgo?
— Qualquer cifra é excessiva — interveio o prefeito, mastigando um gomo de laranja.
Michael nem o olhou.
— Uma preocupação muito louvável.
Vendo-se objeto de seu olhar de curiosidade, Sarah notou todo o peso da responsabilidade,
mas estava decidida a ganhar essa batalha.
— A maioria tem menos de dez anos. A Igreja nunca proporciona mais de vinte e cinco pares
de sapatos por ano.
O confiante prefeito cuspiu uma semente de laranja.
— Há outras organizações que os ajudam. A Sociedade Caridosa das Damas reúne tudo o
que consegue.
Sarah soube o momento exato em que Michael compreendeu que aquilo era algo mais que
uma simples conversa ociosa, já que seu penetrante olhar passou dela para Fordyce. Sentindo-se
repentinamente insegura, colocou-lhe a mão no braço.
— Os esforços de nosso bom prefeito são louváveis, mas por desgraça não são suficientes.
Fordyce também se deu conta do que pretendia e sua expressão se tornou gelada. O assunto
de converter a alfândega em orfanato era irritante.
— Sou um homem caridoso — afirmou, na defensiva.
Ela aproveitou a oportunidade e se lançou.
— Isso é um eufemismo. Sua caridade não conhece limites.
— Lamento não estar de acordo com você, milady — disse ele com tom terminante. — As
queixas pelo imposto sobre as janelas me mantiveram ocupado todo o dia de ontem. Demorarei
um ano em arrumar as coisas. Isso sim que é prioritário. — lavou as mãos na terrina com água e as
secou com um guardanapo.
Como? Protestou Sarah mentalmente.
— Se fizermos caso das cifras do ano passado, antes do próximo Natal haverá dez meninos
mais enterrados em Penny Cairns. O que você vai fazer para evitá-lo?
— Penney Caires? —Perguntou Michael, cravando os olhos na mão de Sarah.
Ela apertou ligeiramente o braço dele, coberto por um suave e quente veludo, perguntando-
se se teria ido muito longe. Decidiu que não. A pergunta que viu em seus olhos lhe deu uma pausa.
— Umas tumbas pouco profundas e cobertas com umas quantas pedras em vez de uma
lápide.
— Mas é terra consagrada?
As lágrimas lhe fecharam a garganta ao pensar na crueldade com que se tratava os pobres.
— Não sempre.
Fordyce deixou a laranja pela metade.
— Este não é o lugar mais indicado para falar de mortos ou da alfândega.

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Sarah deu rédea solta a sua ira; não podia dar-se por vencida.
— Ah, não? Embora provavelmente um desses mortos seja um menino que não chegará a
cumprir os três anos? É que não o vê? — Seu olhar foi de um homem a outro. — Para comprar a
alfândega bastaria uma mínima parte dos impostos arrecadados.
— Impossível! — Exclamou o prefeito — Procure financiamento privado se quiser. A cidade
não tem dinheiro. Já disse lorde preboste.
Por sorte vinha preparada.
— Consegui mais ajuda. Falei com o grêmio de carpinteiros. Ofereceram-se a fazer alguns
berços. Os comerciantes de Bull Cióse doarão mantas e lençóis. Saint Margaret nos dará as
carteiras da escola que já estamos usando e os trabalhadores da pedreira prometeram lousas
novas.
— Passarão décadas antes que consigam obter o dinheiro suficiente das pessoas comuns.
Isso era certo. Graças à condessa de Glenforth e sua desumana vingança, as famílias com
título já não incluíam Sarah nos acontecimentos sociais, com o que agora só podia contar com os
cidadãos normais.
— Nunca pensei em fazê-lo sozinha — admitiu, — mas alguém tem que dar o primeiro
passo.
— Quanto vale a propriedade? — Perguntou Michael, intervindo na discussão.
Sarah se encheu de alegria; ainda sem saber quem era o dono do edifício estava de seu lado.
— Agora mesmo três mil libras; uma quantidade exagerada. Está completamente em ruínas.
O gesso se desprendeu das paredes e a maior parte do solo está podre. A escada de trás está
passável, mas a escada principal não tem corrimão.
— Quanto custarão as reparações?
O prefeito pareceu desconcertado, e com razão.
— Nove mil libras — respondeu Sarah. — Essa quantidade inclui a alimentação de um ano.
Não é muito dinheiro, só o bastante para fazer o trabalho como Deus manda. Uma vez que ceda a
propriedade inclusive eu aprenderei a cravar pregos se for necessário.
— Elliot, tem que entender — se apressou a dizer o prefeito, — que é uma má ideia. Embora
o edifício fosse uma doação — que não vai ser assim, — teria que ter em conta os móveis e o
pessoal necessário para mantê-lo. Aos meninos basta e lhes sobra sendo aprendizes. Imagine —
zombou, — órfãos com criados e casa própria.
— Cuidadores, milorde — insistiu Sarah; — mulheres que limpem e cozinhem, alguém que
atenda as feridas e as contusões dos meninos, adultos que ajudem a lhes lavar o cabelo e que
sequem as lágrimas. São criaturas que se converteram em órfãs porque seus pais não se
importavam.
O sarcasmo de Fordyce não tinha fim.
— E também uma lavadeira e alguém para cerzir as meias?
— Uma lavadeira? — Tamanha injustiça lhe chegou à alma. — A maioria das criança só têm a
roupa do corpo. Essas aprendizagens das quais fala não são mais que trabalhos forçados.

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— A resposta é não. — Fordyce dobrou com cuidado o guardanapo e se dirigiu a Michael. —


É muito esforço, mas embora não o fosse, é algo que nunca vai acabar. Lady Sarah vem ver-me
todas as semanas pedindo o mesmo. Depois nos pedirá que enviemos esses moleques para
Edimburgo à universidade. —Dirigindo-se a ela acrescentou: — Consiga que Elliot libere seu dote e
assim poderá comprar o edifício.
Tranquila, disse-se Sarah. Segue assim e evite o tema da dote, porque é evidente que o
prefeito dá por feito que já está em poder dos Elliot.
— Eu não sou a culpada de que essas crianças saiam à rua para roubar e morrer de frio.
— Você está me acusando de má conduta? — Perguntou ele, nervoso.
Os rumores diziam que em sua juventude visitava de vez em quando às mulheres do
Pleasure Cióse, mas seria injusto recordar seus velhos pecados. Sarah sabia que devia apelar a seu
sentido de dever cristão.
— Certamente que não, prefeito Fordyce. Você tem uma reputação impecável. Você fala e
age em nome dos habitantes de Edimburgo. Você é sua consciência e sua voz. Se ajudar os órfãos,
cumprirá com a promessa que fez de obter que as ruas fossem mais seguras para todos, coisa que
fez com que os habitantes de Edimburgo o elegessem. Mas não é possível que acredite que não
tem obrigação alguma com os mais desafortunados, simplesmente porque lhes está proibido
votar.
Ele resmungou contra a taça.
— Eu não faço as leis eleitorais — resmungou ele.
— Entretanto trata com atenção os dignatários estrangeiros e se ocupa de vigiar seus
interesses embora não participem de nossas eleições nem paguem nossos impostos.
Por fim tinha conseguido abrir uma greta em sua firme oposição, já que ele suspirou
dizendo:
— Você sente paixão por esse orfanato.
— Se não nos apaixonarmos pelas coisas que são importantes, como assegurar a dignidade
dos nossos e pensar no futuro, é que não somos melhores que os animais.
— Prefeito Fordyce — o tom de comando de Michael soou como um disparo em meio da
conversação. — Estou disposto a comprar a propriedade e deixá-la aos cuidados de lady Sarah, em
nome dos Elliot.
Sarah quase se desmaiou de alívio.
O prefeito o olhou com a boca aberta.
— Você não pode comprá-la.
Michael lhe dirigiu um olhar de advertência.
— Lamento não estar de acordo.
O prefeito se zangou de verdade e olhou-o jogando faíscas pelos olhos.
— Acreditei que tinha me pedido que viesse para tirar da cabeça dela a ideia de comprar a
alfândega. Esperava que você se negasse redondamente e terminasse de uma vez com suas
demandas. Você não pode comprar uma propriedade quando os Elliot já possuem a metade da
mesma.

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Sarah observou atentamente Michael, tentando descobrir algo que indicasse seu estado de
ânimo. Ele continuou impassível, com os olhos postos no vinho de sua taça.
— De quem é a outra metade?
— Minha — respondeu o prefeito.
— Nesse caso acabaremos a transação quando eu voltar de ver meu irmão em Londres.
— Mas quem se ocupa das propriedades da família é lorde Henry, e a condessa nunca
permitirá que caia em mãos de lady Sarah. A menos que mude de ideia.
— Ela o fará. Boa noite, prefeito Fordyce.
O prefeito se levantou para sair com a velocidade de uma raposa tentando fugir para o
bosque.
— Cumprimente lorde Henry de minha parte. Maldito Richmond. Qualquer um teria
pensado que um homem de sua categoria jogaria limpo.
— Sim, bom... — Michael se dirigia a Fordyce, mas olhava para Sarah.
Embora não afastasse os olhos dela parecia distraído. Ela perguntou-se se ele estaria
zangado e esperando o momento para confrontar-se com ela.
— Parabéns, lady Sarah. — O prefeito se despediu com uma leve reverência. — foi um
prazer.
Quando ficaram sozinhos, Sarah percebeu que Michael se recolhia mais em si mesmo.
Afastou a vela e disse alegremente:
— É uma pena que não possamos escolher a nossa família.
Ele entreabriu os olhos.
— Vai me perdoar que eu seja tão franco, mas se não tivesse estado de acordo em casar-se
com meu irmão, você e eu não estaríamos aqui sentados, desconfiando um do outro.
Ter acreditado nos Elliot foi a pior das decisões de Sarah.
— Você está zangado comigo porque a condessa ocultou informação.
— A questão da alfândega não apareceu na conversa que tive com minha mãe.
— Não é possível que você esteja zangado comigo por pensar que os habitantes de
Edimburgo têm uma responsabilidade a cumprir a respeito de Notch e todos esses desventurados.
— Não, não estou zangado por isso. Estou aborrecido porque acredito que poderia ter me
dito que minha família possuía a metade do edifício. Em vez disso decidiu fazer o mesmo que
antes tinha condenado: me pôr em ridículo.
Maldita fosse sua memória.
— Me perdoe, mas ferir seu orgulho é um pequeno preço a pagar por salvar os órfãos de
Edimburgo. Eles não têm ninguém, Michael. Não têm pais que os queiram e lhes deixem uma
herança. Ninguém os deita de noite nem os tranquiliza quando têm pesadelos. Veem-se obrigados
a lutar sozinhos para sobreviver. — Conteve uma lágrima. — Sinto tê-lo enganado, mas, como ia
eu saber que você seria tão generoso?
Ele a olhou com uma expressão que não pressagiava nada bom.

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— Poderia ter-se dado ao trabalho de averiguá-lo. É certo que pertenço ao clã Elliot, mas
não sou meu irmão. Eu não teria apostado quase todo seu dote em uma partida de jogo de dados
com o duque de Richmond.
Ela acreditou, entretanto uma amostra de generosidade de sua parte não bastava para
perdoar os pecados dos Elliot.
— O que ocorreu com Richmond foi casualidade. Henry teria acabado por ofender a
qualquer outro nobre. O que aconteceu foi uma sorte para mim, porque ainda não tinha
pronunciado os votos matrimoniais.
— Não me entendeu. O que quero dizer é que quem caiu em desgraça foi ele, não eu —
insistiu Michael, — e você está me culpando também só por meu parentesco com ele. Isso é tão
injusto quanto alguém fazê-la responsável por que Notch seja órfão. Você não teve nada que ver
com isso, do mesmo modo que eu não tive nada que ver com as atividades de meu irmão em
Londres.
Ela sentiu uma pontada de culpa, até que recordou seu primeiro encontro.
— Ontem você se apresentou em minha casa, exigindo meu dote.
— Sem nenhum resultado. Como já lhe disse, acabava de chegar depois de um longo período
de ausência. Tudo o que está acontecendo aqui era novo para mim.
Ocorreu uma ideia terrível a ela.
— Sua família não lhe escreveu comunicando o compromisso? Ao notar que ele se
distanciava ainda mais, soube a resposta. Entretanto lhe veio à mente outra pergunta. — Você
renunciou à Guarda de Honra porque lady Emily pediu?
— Não, foi minha decisão. —Aliviada, apertou-lhe brandamente a mão. —Obrigada por doar
a propriedade. Não vai se arrepender. —Ele riu sem alegria.
— Já estou me arrependendo.
Ele parecia verdadeiramente pesaroso; Sarah esperava que se tratasse apenas de um efeito
da pouca iluminação.
— Além disso mente muito mal.
— Sim, bom... — Olhou-a com cautela. A vacilante luz da lareira jogava sobre seu rosto e o
movimento das chamas fazia com que seus olhos brilhassem. —Se sabia que meu irmão é um
esbanjador, porque aceitou casar-se com ele?
— Já disse. Acreditei que o amava.
— Quem mente mal agora, Sarah?
Ela sentiu a atração de seu olhar e teve um instante de debilidade. Os homens intrépidos
sempre a tinham atraído, mas quando chegava a conhecê-los melhor sofriam uma mudança e essa
ousadia que lhe parecia tão interessante se tornava invariavelmente em um empenho por
dominá-la. Gostava dos homens enérgicos, mas só até que quisessem acabar com sua liberdade de
pensamento e sua independência.
Nesse momento Michael Elliot lhe parecia irresistível. Queria conhecê-lo melhor. Tinha
julgado-o mal e ele tinha indicado claramente seu engano.

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—Se me disser o que está pensando — disse ele, —conseguirei sapatos para todos os órfãos
de Edimburgo.
Seu sorriso a atraía como um ímã.
— Parece-me um bom trato.
O interesse fez com que os olhos de Michael brilhassem e que acentuassem seus traços.
— Amanhã?
Era muito impetuoso.
— Para saber o que estou pensando?
Ele se inclinou para frente.
— Para compartilhar ideias.
Ela se recostou para trás ao captar uma baforada do sedutor aroma dele.
— Bom, eu já sei o que ronda pela sua cabeça.
— Sim? — Olhou com intenção a mão de Sarah que seguia apoiada em seu braço. — Então
vamos fazer um acordo. Você me diz que eu estou pensando e se estiver errada terá que me
acompanhar ao sapateiro e escolher os sapatos você mesma.
Só uma covarde teria voltado atrás, e ela não o era.
— Você não estava pensando em ir ver o sapateiro e escolher sapatos.
— Considere-o uma condição de última hora. — Colocou uma mão sobre a dela e com a
outra lhe rodeou o braço. — me diga no que eu estava pensando, e insisto que o faça com todos
os detalhes ou que admita que só estava fazendo suposições.
— Espera que seja capaz de lhe dizer em nosso segundo encontro o que acredito que está
pensando? E em um lugar público? — Sacudiu a cabeça. —Deveria ficar envergonhado.
Ele ficou de pé de um salto e fechou a porta de repente. Retornou a seu assento e voltou a
apoderar-se de sua mão.
— Prometo segurá-la se desmaiar.
Em vez de assinalar o fato de que todos os clientes da estalagem sabiam que agora estava a
sós com ele e que estariam suspeitando que ele estava tomando liberdades com ela, decidiu lhe
demonstrar que não era presa fácil. Olhou a seu redor.
— Me segurar? Impossível. Não tenho lugar onde cair.
Ele se aproximou dela.
— A que hora quer que vá procurá-la?
Chamá-lo descarado era pouco. Era mais exato chamá-lo imprudente. Sarah já tinha o
edifício da alfândega nas mãos. Tinha ganhado.
Surpreendeu-o olhando-a.
— Ainda não perdi.
— Quer que vá procurar mais vinho e assim tem tempo para pensar?
Ela riu e tentou afastar a mão.
— Se beber mais vinho vai ter um problema, porque terá que me levar a minha casa.
Ele riu e entrelaçou seus dedos com os dela.

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— Resposta equivocada. Não estava pensando em embebedá-la tanto para que não fosse
capaz de andar. Ganhei.
Ela estava encantada, mas esse homem era muito mais embriagador que o vinho.
— Neste momento não estava tentando ler sua mente.
— Claro que sim, e já que se equivocou não vai ter mais remédio que vir comigo amanhã.
A prudência exigia que desse marcha ré.
— Você disse que ia a Londres para ver Henry. Por favor me solte a mão.
Ele obedeceu.
— Você tem boa memória no que se refere a meu irmão.
Dado que Michael acabava de aparecer em cena, o mais provável é que não tivesse nem
ideia do alcance de sua inimizade com os Elliot.
— Quando você terminar de falar com Henry, é possível que se arrependa de ter me
conhecido — disse ela.
— Não aposte seus preciosos olhos azuis ou os perderá.
— E isso sem mencionar o fato de ter me presenteado com um edifício e haver-se oferecido
para restaurá-lo — continuou ela como se não tivesse ouvido a adulação. — Não sei como
agradecê-lo.
— Sim, bom... — O olhar dele pousou em sua boca. — Tem um pedaço de miolo no lábio.
Permite-me?
Começou a aproximar o guardanapo dos lábios dela, mas enrugou a testa e o substituiu pelo
dedo.
— Assim está melhor. — Com um movimento tão suave que ela mal percebeu, rodeou-lhe o
pescoço com a mão e a atraiu para si. — Sei como pode me agradecer. Permita que a beije?
Ela não esperava que ele perguntasse com tanta amabilidade, sobretudo tendo em conta
que com os olhos estava ordenando que cedesse. Lhe ocorreram várias respostas, mas a atração
que sentia por ele era tão intensa que ignorou todas.
— Você pensa que é prudente?
— Quem está pensando?
Nós dois, respondeu ela mentalmente.
Ele voltou a emitir uma risada suave e sedutora.
— Eu não podia tê-lo expressado melhor, Sarah. Eu adoro sua maneira de pensar.
Sarah ficou sem fala ao ver que Michael tinha lido seu pensamento. De repente só via ele,
como se estivesse hipnotizada e quando Michael roçou suavemente os lábios dela com os seus,
deixou cair a cabeça para trás e fechou os olhos. Ele a sustentou e a beijou, primeiro com
curiosidade e depois com decisão. A paz e a experiência que Sarah sentiu entre seus braços a
levou a desejar ficar entre eles e descobrir todas as coisas que certamente ele estava imaginando.
Michael tinha sabor de cerejas doces, e cheirava como o bosque ao entardecer. Cheia de
alegria, teve o impulso de lhe rodear o pescoço com os braços e chegar até os limites do decoro.
Pareciam os amantes que tinha estado observando no salão contíguo. Um homem e sua amante.
Ela recuou, chocada com a ideia.

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— Michael, você tem que parar.


Ele segurou sua nuca com maior firmeza. Quando abriu os olhos, neles seguia havendo
paixão, mas sob esta se escondia uma determinação que a assustava e atraía ao mesmo tempo.
— Querida Sarah, se o protesto é em nome do decoro. Seja honesta consigo mesmo, pelo
menos.
— Antes você disse que eu não sabia mentir.
— Então admita que você gostou de sentir meus lábios sobre os seus. Admita que você
gostou.
Ela esteve a ponto de admitir, mas não podia fazê-lo.
— Covarde.
Sarah recuperou seu orgulho.
— É um desconhecido para mim e não vou perder a inocência contigo.
— Que tipo de inocência? Há muitas formas de amadurecer.
Se ele queria falar com franqueza, que assim fosse.
— Não vou me apaixonar por você.
— E entretanto desejava se casar com meu irmão, portanto não é possível que seja inocente
nos assuntos do coração. Oh, sim, estou seguro de que é virgem! É uma mulher decente e estará à
altura das expectativas de seu marido.
Ela riu.
— Chamá-lo de louco é subestimá-lo.
— Você disse que não nos conhecíamos. Vamos remediar isso. Me pergunte algo pessoal.
Era realmente persistente e além disso continuava lhe acariciando o pescoço com os dedos.
Sarah não pôde resistir a perguntar:
— Por que sorriu quando nos viu ontem na rua?
— A resposta a isso é longa e aborrecida.
Michael desviou a atenção para os lóbulos das orelhas de Sarah e ela conteve um suspiro.
— Então falemos de Notch. O que pensou ao vê-lo?
— Pareceu-me divertido apesar de seu descaramento. Nunca dirigi a Guarda de Honra
através de uma cidade escocesa — deu de ombros. — Sentia-me contente por estar em casa. Quer
saber algo mais antes que volte a te beijar?
Sua franqueza a desarmou ainda mais, e a curiosidade se impôs.
— Você se sente um homem diferente, vestidos como você está agora , com o tartan ou com
o uniforme da Guarda de Honra ?
A pergunta deve tê-lo pego de surpresa porque teve que parar e pensar.
— O certo é que o capacete é uma chateação e eu não gosto das capas; são muito
chamativas para estes tempos modernos — respondeu por fim.
— E o kilt?
As bochechas de Michael avermelharam ligeiramente e ele coçou o nariz para dissimular um
sorriso incipiente.
— É uma piada privada — explicou.

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— Sou das Highlands. Sei tudo sobre os homens e seus kilts.


— Como...?
— Enganchando a saia em uma sarça e separando as dobras. Uma vez um cão farejador tirou
o tartan de meu irmão. Ficou ao redor dos tornozelos. Era ainda um menino pequeno e aquilo o
encheu de vergonha.
— Eu não tenho de que me envergonhar — Michael pigarreou e acrescentou: —
Respondendo a sua pergunta, a maioria das vezes prefiro um traje de estilo moderno. E agora,
minha curiosa Sarah, se já não tiver mais perguntas, eu gostaria de beijá-la.
Ela ficou imóvel, a ponto de desmaiar, apreciando o calor que ele trouxe para sua alma.
— Não quer saber nada sobre mim? — Resmungou quando ele se aproximou.
— Claro que sim. Teria a amabilidade de abrir a boca. Tenho verdadeiro desejo de provar sua
língua viperina.
Antes que ela tivesse tempo de sorver o ar, ele inclinou a cabeça e se apoderou de seus
lábios com um beijo que a despojou da capacidade de pensar. A cabeça começou a lhe dar voltas
com visões de uma ociosa e idílica tarde; uma manta estendida debaixo de um velho carvalho,
junto ao quente mar e um homem reclinado a seu lado, trançando flores em seu cabelo e
acariciando seu pescoço com os dedos.
Também viu a si mesma coberta com uma virginal camisola branca, tombada em uma
enorme cama de lençóis brancos, esperando o homem que não demoraria em reunir-se com ela.
Notou que Michael deslizava a mão por debaixo do corpete e se apoderava de um seio.
Estremeceu de desejo quando ele acariciou suavemente o mamilo. A resposta foi um gemido
masculino que vibrou contra seus lábios, e depois a língua dele se inundou em sua boca com um
ritmo sedutor que a derreteu por dentro. Com cada carícia, com cada movimento, sentia-se
devorada, seduzida e arrastada à rendição total.
Afastou-se, completamente assustada.
— Não. Pare. É o irmão de Henry.
Ele tinha os lábios úmidos pelo beijo, e a expressão de seus olhos era como o próprio céu.
— Isso é uma covardia de sua parte, Sarah.
Maldito fosse. Ela mesma tinha procurado isso.
— Não pode mudar o fato de que sua família se comportou muito mal comigo.
— Sim, bom... — Ele riscou com o dedo a curva de seus lábios. — Vou sentir sua falta
enquanto estiver em Londres.
Michael tinha uma forma de falar um tanto estranha. Começava as frases com um “Sim,
bom” para logo continuá-las com algo que não tinha nada que ver com a afirmação original, ou
mudava de assunto completamente.
Ela acabava de dar-se conta dessa peculiaridade e era uma das coisas com as quais ia ter que
andar com cuidado com respeito a Michael Elliot. Ele tinha sempre uma resposta para tudo.
— O que vai dizer a Henry sobre mim? — Perguntou, irritada.
Ele sorriu alegremente.
— O que penso não, certamente.

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Pela Santa Margaret! Esse homem era capaz de acabar com o próprio diabo.
— E o que é o que pensa? —Seu sorriso parecia infantil, mas a expressão de seus olhos era a
de um predador e a mão com que estava acariciando seu pescoço se tornou mais ousada. — diga-
me.
— Sim, bom. Acredito que o averiguarei muito em breve — retirou a mão lentamente.
— O que é que vai averiguar?
Ele deu um golpezinho na ponta do nariz dela.
— Se ele é capaz de cravar as unhas.
Ele havia tornado a fazer.
— Qual a ligação entre ver se ele é capaz de cravar as unhas com beijar-me? —perguntou
desconcertada. — E não negue que isso era o que estava pensando.
— Não estava pensando em beijá-la. — levantou-se e segurou sua cadeira. — Minhas
intenções, como a minha imaginação, vão além de uns simples beijos.

CAPÍTULO 5

Sarah sentou-se no tapete em frente à lareira em seu quarto, vestida com a camisola e
roupão. Serviu duas xícaras de leite quente e açucarado e ofereceu uma a Rose.
A criada, sentada à sua frente, tinha trocado seu melhor vestido por uma camisola e um
gorrinho de dormir que lhe dava aspecto de duende. Rose soprou o leite fumegante e elevou os
olhos por cima da xícara.
— Vai me contar agora o que o prefeito disse?
Sarah ignorou outra pontada de culpa por sua desavergonhada maneira de comportar-se
com Michael Elliot naquela noite. Ele esteve conversando amavelmente com ela durante todo o
trajeto, como se nada tivesse acontecido. Quando viu que Sarah estava prestes a entrar em casa,
ele virou-se para partir, mas depois mudou de ideia.
— Quer que eu dê alguma mensagem a Henry? — Perguntou.
— Sim. Diga a ele que não vai conseguir meu dote.
— Porque pertence ao homem com quem se casar?
— Efetivamente, e a próxima vez escolherei melhor.
— Milady? — Rose parecia preocupada. — Você está mal?
Sarah expulsou de sua cabeça a última conversação que manteve com Michael.
— Não, Rose. Eu estou bem.
— Garanto que o prefeito ficou impressionado com o que você pretende fazer, não é?
Sarah resumiu em poucas palavras a conversa relativa à aquisição da alfândega.
— Santa Margaret bendita! — Exclamou Rose. Sua alegria desapareceu tão rapidamente
como tinha chegado. — O que acontecerá se a condessa se nega a repassar sua parte?
Sarah não havia pensado nessa possibilidade. Entretanto, Michael fez uma promessa e tinha
aspecto de ser um homem de palavra.
— Seu filho mais novo é muito persuasivo.

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Isso era um eufemismo; desde que se tinham despedido, Sarah não foi incapaz de deixar de
pensar nele, em sua generosidade e em sua mão acariciando seu seio. Nenhum homem jamais
havia tocado aí.
Ela estremeceu com a lembrança.
— Você está com frio milady? — Rose se dispôs a levantar-se. — Avivarei o fogo. Os Odd
encheram hoje os baldes.
— Não. Sente-se. —Rose voltou a sentar.
— Ele é simpático — disse. — Mas lorde Henry também é, não?
Sarah não teve escolha senão admitir isso, entretanto a cordialidade de Henry carecia de
emoção. Ambos os irmãos pediram sua permissão antes de beijá-la, mas Michael não esperou sua
resposta.
— Caso o charme seja uma característica de família, então no clã Elliot passa por via paterna.
— Não há nada mais certo — disse Rose. — O que conseguiu foi muito bom. Os órfãos terão
um teto sobre suas cabeças. Pobrezinhos, necessitam de alguém que os ajudem. Depois de falar
com o senhor Turnbull, o lacaio de Michael, surpreendeu-me muito que acabasse convencendo-o.
Turnbull fala muito bem dele, e não é porque esteja a seu serviço. Nós sabemos distinguir a
diferença.
Sarah suspeitou que Rose tinha muito boa opinião do outro Elliot.
— Me fale do lacaio de Michael — disse.
— O senhor Turnbull não é dado às fofocas. —Sarah provou o leite e acrescentou outro
pouco de mel.
— Do que falaram?
Fez-se evidente que foi sobre algo do agrado de Rose.
— Do general. Assim é como chamam o primeiro oficial.
— Chamam Michael de general? Como Gage e Percy?
— Somente quando ninguém os ouve. É um segredo entre a Guarda de Honra; assim é como
chamam a si mesmos. — Fez uma careta de desgosto. — Estão muito orgulhosos de seus
juramentos e cerimoniais masculinos.
Sarah sorriu.
— E você acha que isso não é fofocar?
Rose manteve a xícara em equilíbrio sobre seus joelhos e afastou o gorro de dormir dos
olhos.
— Esperava descobrir algo importante. Como por exemplo se o general está casado ou
comprometido, mas não consegui. O senhor Turnbull é uma tumba, igual a lady Juliet quando está
zangada com Sua Graça.
Michael casado. Sarah não havia pensado nisso e se fosse sincera consigo mesma, a
possibilidade de que pertencesse a outra mulher a incomodava.
— Mas esse Turnbull fala sem problemas da Guarda de Honra ?
— Leva um diário sobre isso. Chama-as memoires — Rose alargou a palavra francesa. —
Deve estar até as tampas de ouro. Assim foi como entrou em serviço do general.

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— Por escrever um livro ou porque este estava encadernado com ouro?


— Por nenhuma das duas coisas — Rose se inclinou para frente, pondo sua melhor voz de
mistério. — Verá, o livro se queimou em um malfadado e misterioso incêndio em Calcutá. Pelo
menos isso é o que diz o senhor Turnbull.
Sarah imaginou Rose, cativada por um criado que tinha viajado muito.
— Seu senhor Turnbull parece bastante melodramático.
A pele de Rose adotou um tom carmesim e ficou a olhar fixamente a xícara.
— É um homem muito refinado para uma criada das Highlands.
Sarah começou a ficar encolerizada.
— O que você diz é horrível. É tão boa como qualquer criada da Casa Real. É bonita e nunca
houve um só lacaio que não virasse a cabeça ao vê-la passar —Recordou seu dito escocês favorito:
— É uma Highlander, Rose, o melhor que há nesta ilha e além.
Rose levantou o queixo. Estendeu o braço, agarrou sua xícara e bebeu com a elegância de
uma duquesa.
— Eu disse a ele que poderia ler seu livro em escocês e também no idioma que rabisca o rei,
se me desse vontade. Aí foi quando ele disse que o diário foi reduzido a cinzas, mas que ele tinha
tudo em sua cabeça.
Rose também se sentia sozinha já que era estranho que demonstrasse tanto interesse em
um encontro. Pode ser que a razão pela qual Sarah tivesse permitido que a conversa com Michael
se tornasse tão pessoal, fosse o tédio. Que ele vá plantar bananas e leve suas próprias bobeiras.
Havia um monte de assuntos que a interessavam mais. Milhares. Como por exemplo a noitada de
Rose, que tanto a agradou.
Sarah deixou sua xícara.
— Parece-me que o senhor Turnbull gosta de falar de si mesmo.
— Não tanto a ponto de fazê-lo todo o tempo. Fez-me muitas perguntas a seu respeito. —
Sarah brincou com seu cabelo.
— Duvido que surrupiasse alguma intriga. —Rose sacudiu a cabeça e afastou o gorro dos
olhos.
— Quando me perguntou por que não tínhamos feito a bagagem e voltado para as Highlands
depois que você se negou a casar-se com lorde Henry, respondi-lhe que você já estava farta de
recusar propostas de casamento da metade dos duques casadouros da Escócia. Disse-lhe que os
pares do Reino vão em manada ao castelo Rosshaven, procurando-a como mariposas atrás de uma
chama.
Sarah riu em silêncio.
— Mentiu-lhe.
— Só depois de ouvi-lo dizer que o general tinha um harém de cinquenta mulheres. Nem
sequer seu pai teve tantas, e isso porque foi o maior dos descarados até que se reformou.
As proezas de Lachlan MacKenzie na arte da sedução eram legendárias. Os rumores diziam
que tinha quebrado mais corações que todos seus contemporâneos juntos. Oh sim, pensou Sarah,

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a mulher que depositasse sua confiança no duque das Highlands — tanto na qualidade de amante
como de filha, — estava condenada a sofrer.
Afastou Lachlan de sua mente com decisão, e antes que se desse conta sua cabeça se
encheu de imagens de Michael Elliot.
Minhas intenções vão além de uns simples beijos.
Estremeceu ao recordar sua desavergonhada declaração. O excesso de confiança a levou a
uma derrota temporária, mas ela era a sensata Sarah MacKenzie. Havia sofrido um erro de
julgamento passageiro. Dali em adiante seria ela quem marcaria o tom de seus encontros,
mantendo a relação no terreno da amizade, e é obvio, acabaram-se as apalpadelas.
— Não diz nada bom das mulheres da Índia se cinquenta delas compartilhavam por vontade
própria a mesma casa e o mesmo homem —resmungou Rose. — Seguro que lady Lottie teria algo
a dizer sobre o tema.
Sarah estava convencida que o que diria sua irmã seria algo irrepetível e inaceitável.
— Que mais aconteceu com Turnbull?
— Nada importante até que Notch e William entraram às escondidas na estalagem. — Uma
ruga de preocupação deformou sua fronte. — Isso foi depois do toque de silêncio.
Os meninos perambulavam à vontade pelas ruas de Edimburgo, mas aquilo ia acabar em
breve. Graças a Michael Elliot não demorariam para estar metidos em uma confortável cama no
orfanato, às dez em ponto, em vez de burlando o oficial e seu toque de silêncio. Estaria Michael
disposto a dar-lhes alguma lição de geografia ou de história se ela pedisse? Continuaria dirigindo-
lhe a palavra depois de falar com Henry? A possibilidade de que não o fizesse a preocupava.
— Não quer saber o que fez Notch?
Sarah removeu o fogo para dissimular sua inquietação.
— Claro que sim. Comportou-se como sempre?
— Ah! Agiu igual a lady Mary quando o conde de Wiltshire lhe disse que uma mulher carecia
da capacidade mental e da disciplina necessárias para ser uma grande pintora.
Sarah recordou a dita ocasião como se tivesse acontecido ontem.
— O conde menosprezou Mary. Depois de haver passado todo o inverno pedindo sua mão
em casamento, deveria tê-la conhecido melhor.
Rose assentiu com tanta energia que o gorro de dormir quase caiu.
— Tornava-se louco de raiva porque Mary o tinha sob controle.
— Agora Mary é feliz — disse Sarah — Como nós. Me conte mais sobre Notch.
— Perguntou a Turnbull se o rei estava morto.
— E o que respondeu Turnbull?
— Depois de olhá-lo como se fosse uma mancha no melhor tartan de seu senhor,
perguntou-lhe quem era ele e o que estava fazendo em um salão reservado para pessoas
importante.
Sarah não pôde conter um gemido.
— Já imagino a resposta de Notch.

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— Sim, você o conhece bem. Esse desgraçado respondeu a Turnbull o mesmo que responde
a todo mundo.
Sempre que faziam essa pergunta a Notch, ele gostava de proclamar que se dedicava a
roubar os moedeiros dos cavalheiros.
— Tem que deixar de dizer que é um ladrão ou o oficial o encerrará na prisão de Tolbooth
para chateação de todos. O que fez Turnbull?
— Guardou seu moedeiro e disse a Notch que fosse esperar que passasse uma carruagem e
se atirasse diante dela.
Sarah riu e colocou em seu lugar o ferro com o qual esteve revolvendo o fogo.
— Estremeço só de pensar na reação Notch.
— Você ficaria orgulhosa dele. Quando eu disse a ele que vigiasse suas maneiras e que
recordasse o que você ensinou, virou-se para Turnbull e perguntou educadamente sobre o rumor
de que o rei tinha passado desta para a melhor. Turnbull se tranquilizou e disse que o rei gozava
de uma saúde de ferro. Então explicou a ele que a Guarda de Honra estava em Edimburgo para
cumprir com uma tradição. Sempre escoltam seu general para casa quando este termina seu
serviço. Em seguida votam entre eles para escolher um novo general.
— Espero que Notch tenha agradecido.
— Não exatamente. Ao sair disse a Turnbull que informasse ao general que se estivesse
pensando em tomar liberdades com você, lamentaria não ter nascido na Cornualha.
— Notch disse isso?
Lachlan MacKenzie tinha pronunciado essas mesmas palavras.
— Me parece que foi coisa de Cholly. A fantasia de Notch fez o resto. Depois que o garoto
saiu, inteirei-me pelo Turnbull que o general se hospedava na estalagem.
Aquilo pegou Sarah de surpresa já que acreditava que Michael residiria em Glenstone
Manor. Isso explicava que tivesse ido buscá-la em uma carruagem alugada em vez da carruagem
com o escudo dos Elliot, e que estivesse tão informado dos preços da estalagem.
— Turnbull disse por que se alojava ali?
— Não, e isso é por culpa do maldito inglês que há nele, já que não gostou nada que
perguntasse. Inchou-se como um peru e disse que um cavalheiro da categoria do general podia
ficar onde tivesse vontade. Então eu afirmei que só um pecador a ponto de enfrentar os fogos do
inferno ficaria com a condessa. Como vê tentei ganhar sua simpatia contando a ele a verdade
sobre ela e compartilhando o que sabia, como fazem os bons criados entre si.
— Agradeceu-lhe isso?
A xícara se agitou no pires. Rose tentou estabilizá-la mas esteve a ponto de derramar o leite.
Deixou-a de um lado com um bufo.
— O muito desgraçado me disse que eu tinha uma boca muito suja e que se fosse uma
mulher da Índia, já teriam me cortado a língua e o nariz. É claro que eu lhe disse que ele estava
bêbado por culpa da cerveja.

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Sarah havia lido coisas sobre o costume de ter haréns. Mas tirar a informação de um livro e
imaginar Michael com um monte de mulheres ao seu dispor, eram duas coisas completamente
diferentes. E por desgraça ambas a irritavam. Voltou a afastar Michael Elliot de sua mente.
— Rose, você está sorrindo.
— Como gosta de dizer lady Agnes — se defendeu Rose, — ontem à noite passei muito bem.
Sarah riu. Agnes era melhor em anular os esforços de um pretendente do que Lottie em criar
problemas. Rose merecia uma pausa da atmosfera de solidão que existia naquela casa. Sarah se
alegrou de que a noite anterior tivesse proporcionado isso.
— Não consegui me inteirar de por que o general se aloja ali.
— Pode ser que goste mais.
— Poderia ser. A Estalagem do Dragão é um lugar encantador, inclusive o pessoal do salão
de jantar. Ali foi onde me encontrei com Turnbull. Quando se despediu pude ver a cozinha, e está
tão limpa como a despensa do cozinheiro de Rosshaven. A criada da lavanderia me mostrou uma
das salas; uma vaga, é claro. Não consigo imaginar Turnbull sob o mesmo teto que esses folgazões
de Glenstone Manor. — Bocejou e sacudiu a cabeça. — O menino que se encarrega das chaminés
da estalagem comentou que o general alugou a suíte até setembro. Deu ao rapaz da estrebaria
uma coroa por cuidar do seu cavalo. Uma coroa de gorjeta! Nem sequer Sua Graça dá uma coroa
por isso.
Sarah não achou que Michael pudesse ser rico dado que havia exigido seu dote. Ele também
prometeu que iria comprar a metade da alfândega do prefeito Fordyce. Possuía dinheiro suficiente
para liberar Henry? O que aconteceria se voltassem de Londres juntos?
Sarah ficou muito nervosa. Não viu Henry e nem teve notícias dele desde muito antes de sua
prisão. Suas conversas foram com lady Emily. Os detalhes do delito cometido por Henry e seu
castigo chegou até ela através de Notch, que por sua vez se inteirou pelo varredor. Uma nota de
Mary anexando um artigo recortado do Weekly Journal confirmou a notícia da desgraça do Conde
de Glenforth.
Rose terminou o leite.
— O pai de Turnbull era o mordomo do conde de Suffolk. Ali é onde se tornou tão arrogante.
Quando o terceiro filho do conde se uniu à Companhia das Índias Orientais, Turnbull foi com ele. O
pobre homem caiu de uma batalha, e depois Turnbull ficou a serviço do general. Ao que parece
teve uma vida cheia de aventuras na Índia.
— Pensava pedir a Michael que ensinasse história aos meninos quando o orfanato estivesse
terminado.
— As aulas dele não vão poder superar às suas. Todo mundo sabe que o governador de Tain
poderia contratar alguém de Oxford para seus filhos e entretanto só contratou você.
Sarah se sentiu esgotada só de pensar em contar a verdade sobre sua família.
— Você está muito cansada, milady — disse Rose ao vê-la bocejar. — Vá para a cama.
Amanhã nos espera um dia muito longo. Se não necessitar de mais nada levarei a bandeja.
Sarah entregou sua xícara vazia a Rose.

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O que contaria Henry a Michael? Como isso afetaria a opinião que Michael tinha dela?
Diminuiria seu interesse? Aquela possibilidade a entristeceu, já que o achava interessante.
Inclusive muito, advertiu-lhe uma vozinha.
Apagou o abajur e se meteu na cama, perguntando-se se a inimizade por ela era coisa só de
lady Emily. O que aconteceria se Henry a odiasse e influísse Michael?
Entretanto enquanto fechava os olhos e começava a adormecer, não podia deixar de
recordar a mão dele em seu seio e seus lábios sobre os dela.

No dia seguinte, já avançada a manhã, Sarah e Rose — cesta com o almoço e utensílios para
escrever em riste — se dispuseram a empreender o longo passeio até a alfândega. Sarah planejou
inspecionar cada canto e começar a tomar nota de todas as reparações que eram necessárias.
O primeiro item da lista seria fazer uma recontagem das janelas quebradas, seguido dos
degraus que faltavam e das tábuas do chão.
O sino de St. Giles deu as doze justo quando chegavam no último baluarte da porta leste da
cidade. Carruagens e tílburis abarrotavam a rua e rajadas de vento dispersavam o lixo. Em High
Street ainda ficavam sinais da multidão que veio ali essa mesma manhã, mais cedo, para ver a
Guarda de Honra partir. Michael a teria procurado entre a multidão? Teria se decepcionado ao
não vê-la? O que pensaria dela depois de visitar Henry?
— Milady! — Rose agarrou o braço de Sarah e a fez retroceder de um puxão.
Tinha estado a ponto de meter-se debaixo de um carro carregado de carvão.
Tinha que deixar de preocupar-se com esse Elliot em particular. Michael podia acreditar o
que quisesse. Sarah MacKenzie seguiria adiante, com sua aprovação ou sem ela.
Trocou a caixa com o material de escrever de mão e prosseguiu seu caminho a Reekit Cióse,
como chamavam à zona próxima ao porto.
Aprisionada entre uma moradia muito alta e um armazém que se usava para guardar cal
viva, a alfândega de quatro pisos parecia uma caixa de cartas encaixada entre dois gigantes. Em
frente a Harbor Street e ainda por cima do estabelecimento do fabricante de fios se encontravam
os becos dos grêmios dos ferreiros e os fabricantes de velas. As tabernas e as lojas onde se
vendiam tortas a um centavo, estavam por toda a vizinhança, o aroma de terra mitigava o dos
comércios e a miséria. Décadas de imundície aderiam às arcadas de pedra dos edifícios, e os
poucos vidros que ficavam nas janelas estavam cinzentos devido à falta de limpeza.
A maioria das crianças abandonadas procediam dessa zona de Edimburgo, e a primeira vez
que Sarah passou ali, pouco depois de conhecer Notch, tentou encontrar alguma similitude entre
algum dos órfãos e as esgotadas prostitutas que frequentavam as tabernas e vagavam pelos
arredores. A experiência foi deprimente e durou muito pouco. Sarah se deu conta que aquelas
mulheres mal eram capazes de mantê-las e preocupar-se com elas, e muito menos de lamentar a
perda de um filho ao qual tinham dado as costas anos atrás.
Se não fosse por Lachlan MacKenzie, Sarah poderia ter estado entre esses órfãos. Não estava
acostumada a pensar naquilo porque então voltava a experimentar a dor da última conversa que
ambos tiveram.

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Agora a boa sorte estava a ponto de chegar para alguns dessas crianças, e Sarah se sentia
muito orgulhosa por sua participação no assunto. O reconhecimento oficial pelo orfanato recairia
diretamente nos Elliot. Essa ironia a incomodava. Não é que esperasse louvores por cumprir seu
dever cristão, já que era responsabilidade das mulheres preocupar-se com as crianças, sobretudo
se estas tinham crescido rodeadas de carinho e comodidades. Entretanto não era justo que os
Elliot levassem todo o mérito quando haviam se oposto a isso durante tanto tempo.
Até que Michael chegou; o Elliot que fazia ferver seu sangue e despertava sua paixão. Seu
estômago deu um tombo.
— Lady Sarah! — Notch se deteve diante dela patinando. — Devia ver o casco do navio de
guerra, lady Sarah. Disse que nunca viu nenhum.
— Não tinha visto um em Edimburgo desde que Notch saiu da casca — interveio William.
— Fecha o bico, caipira com cara de neném.
William se zangou como fazia sempre que Notch zombava dele por ser tão bonito como uma
menina.
Sarah não pôde dizer que não. Além disso, sentia curiosidade por ver o enorme e intrépido
navio.
—Muito bem — disse. — vamos dar uma olhada ao casco do navio com placa da Armada
Real.
Com Rose a seu lado e os meninos encabeçando a marcha, percorreram as duas quadras que
os separavam do cais. O bonito casco do navio de guerra, ancorado a curta distância, dominava o
porto de Edimburgo. Os estandartes ondeavam em distintos lugares entre os arranjos, e o convés
era um formigueiro de soldados com uniforme de gala.
Em um grande alarde, pensado para impressionar os espectadores, escotilhas do navio
estavam abertas. No cais, os gaiteiros do regimento Black Watch realizavam uma boa
interpretação de Loch Lomond. O patriotismo se apoderou da multidão. Os olhos das mulheres se
encheram de lágrimas e os homens lutavam por conter a emoção.
— Estou seguro de que pode fazer com que os franceses saiam voando por cima da água. —
Um Notch muito impressionado fez ranger as articulações dos dedos. — Vê os canhões, Foot?
Todos estão engatilhados e preparados para nos defender.
Um brilho amarelo atraiu a atenção de Sarah. Michael Elliot estava na proa do navio com
uma luneta no olho e seu característico lenço ondeando ao vento. Ele vestia a capa e o chapéu
com o distintivo que ela recordava da noite anterior, e o cabelo negro recolhido na nuca. Rodeado
como estava dos membros uniformizados da Guarda de Honra, parecia um próspero homem de
negócios ou um jovem aristocrata.
— Olhe, milady — gritou Notch. — É lorde Michael e a está saudando.
E também a estava olhando através da luneta. Seu coração começou a pulsar com rapidez e
se arrependeu de não ter cuidado mais de seu aspecto; mas seus planos eram passar a tarde
trabalhando em seu projeto e não se exibindo ante um Elliot.
— Não é um lorde — disse, na falta de algo melhor que dizer.
— Tanto se for lorde ou um grumete, a está saudando.

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— Não se comporta como um lorde — indicou William. — Eu acredito que é decente até a
medula.
— Estou segura de que ele tem a mesma opinião sobre si mesmo, William. — Sarah teria
desejado poder retirar essas palavras. Avanços amorosos à parte, não se podia acusar Michael de
comportar-se de um modo desprezível.
— Essa é sua opinião e a de Foot — interveio Notch olhando-a de relance. — Conseguiu
colocar seus cabelos em pé, não é?
Algumas vezes Notch conseguia tirá-la do sério, e nisso consistia grande parte de seu
encanto. Sarah não tinha a menor intenção de falar de seus sentimentos por Michael nem com ele
nem com ninguém.
— Se isso é o que acredita, Notch, então está tão equivocado como com o assunto da morte
do rei.
Recordar Notch seu mais recente disparate teve o efeito desejado.
— O rei se encontra bem. Sei de boa fonte — disse envergonhado.
— Ontem à noite se excedeu com Turnbull — disse Rose.
— Turnbull e eu — concedeu Notch, — nos tornamos bons amigos. Veja? Está ali, ao lado do
general. Estou certo de que gostaria de ver a senhorita Rose com esse alegre chapéu.
— Tome cuidado, patife — Rose lhe deu uma cotovelada no ombro.
Sem alterar-se, Notch se aproximou dissimuladamente de Sarah.
— É verdade que você falou com o prefeito para que lhe cedesse o edifício da alfândega?
— Quem lhe contou isso? — Perguntou Sarah.
— Cholly ouviu o faroleiro dizer, que o ouviu do mordomo do prefeito. Os atos de caridade o
põem de mau humor.
Rose ficou boquiaberta.
— Já basta de tolices.
— É verdade?
— Sim, é certo — respondeu Sarah ao ver o brilho de esperança que brilhava nos olhos do
menino, — e eu gostaria de contar com sua ajuda para ir fazer verificações hoje.
— Agora?
— Dentro de um momento.
Os meninos estiveram saudando e assobiando até que o vento inchou as velas e o navio saiu
da baía. Sarah conteve um acesso de melancolia ao ver Michael partir, e disse a si mesma que sua
única preocupação era ter que esperar para lidar com a alfândega. Notch voltou a colocar a boina.
— Será melhor irmos ver o novo alojamento.
Uma vez na alfândega, colocou as mãos nos quadris e começou a inspecionar o edifício.
— Como disse esta manhã a Foot e a Cholly — informou, — todos as crianças farão turnos
para vigiar as portas de noite.
— Protegeremos nossas mulheres, nossas coisas e a comida que houver na despensa —
declamou William, como se estivesse recitando uma lição.

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Sarah passou toda a tarde escutando seus planos e suas preferências, e prometendo que
seriam realizadas. Graças a Michael Elliot, as crianças abandonados de Edimburgo iam ter uma
oportunidade. Mudaria de ideia quanto a ajudá-la depois de falar com Henry?
Desanimou-se ao imaginar as mentiras que este ia contar a Michael. Com uma atitude mais
minuciosa, perguntou-se que opinião mereceria de Michael seu irmão mais velho e o que ambos
os irmãos diriam um ao outro, depois de ter estado tanto tempo sem se ver.

CAPÍTULO 6

— Deus santo, irmãozinho! — Surpreendeu-se Henry, ao ver Michael. — É um ramo


impressionante da árvore genealógica dos Elliot. Se eu tivesse tendência a sofrer alucinações,
juraria que é o velho Hamish ressuscitado. Entre, entre.
Michael conteve o fôlego ao abaixar-se para cruzar a porta da cela que Henry compartilhava
com outros dois homens. Desde que a carruagem cruzou a Ponte de Londres e entrou na Black
Man Street, o fedor dos antros onde se servia genebra e a depravação em geral, provocaram-lhe
náusea. Ver seu irmão mais velho depois de tantos anos, produziu-lhe um turbilhão de emoções.
— Não é um lugar muito confortável, não é Michael? — Henry agitou a mão indicando a
pequena cela em que só havia três catres, dois abajures e um balde para dejetos esquecido.
Vestes sujas pendiam de pregos na parede. Henry usava um colete com seu correspondente
calção de cetim azul escuro e uma camisa marrom amassada. Seus sapatos faltavam as fivelas e
não usava meias.
Michael disse a primeira coisa que lhe passou pela mente.
— Esta prisão acaba de ser construída.
— Assim é. Os rebeldes de Gordon destruíram a anterior os oitenta16, mas os proprietários
não puderam reconstruí-la antes. Sempre se pode tirar proveito dos pecados humanos — disse
Henry aproximando dois tamboretes a um barril que fazia as vezes de mesa. — Sente-se.
Michael dobrou suas largas pernas para poder sentar-se no instável tamborete.
— Tirar proveito?
— Ter este alojamento me custa um xelim ao dia. Poderia ter um quarto privado por duas
libras por semana, mas...
As esperanças de Michael caíram de um golpe ao enfrentar a realidade, o que era estranho
tendo em conta a sujeira e a depravação tão comuns em Calcutá. O impulso de ajudar seu irmão
surgiu de forma espontânea.
— Vendi a alfândega.
A expressão alegre de Henry deu lugar a uma careta de desprezo, fazendo que se parecesse
ainda mais com sua mãe.

16
Os Motins ou Levantes de Gordon ocorreram na Inglaterra em 1780, quando protestantes criaram tumultos e destruíam
propriedades dos católicos residentes em Londres, inclusive os católicos irlandeses. Durante estes tumultos, foram destruídas várias
propriedades, tais como igrejas, prisões e casas comerciais. Houve cerca de 210 mortes, a maioria destes eram rebeldes.

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— Você o fez sem me consultar? Quanto ganhou por ela? Espero que tenha sido uma boa
quantia.
— Quando estiverem assinados os documentos os Elliot receberão umas mil e quinhentas
libras por sua parte.
— Me entregue agora o dinheiro e falemos dos detalhes depois.
Para grande decepção de Henry, Michael não confiava nele, de modo que este último tirou
da carteira os documentos e os artigos de escritório e os pôs em cima do barril.
— Vamos deixá-lo resolvido agora.
A atitude de Henry se tornou decididamente gélida. Rabiscou seu nome no pergaminho e o
atirou a Michael.
Michael apertou os dentes ante a rudeza do gesto, mas tentou se colocar no lugar de seu
irmão. Se a situação fosse inversa também seu comportamento seria bastante desagradável. Em
qualquer caso aquilo era uma simples transação de negócios.
— Se quiser o dinheiro vai ter que estampar seu selo — disse Michael, voltando a pôr o
documento da venda em cima do barril.
— Que descuido de minha parte — Henry agarrou uma bolsa de tecido pendurada de um
prego em cima de sua cabeça.
Enquanto contemplava Henry derreter a cera e pôr o selo familiar, Michael não pôde deixar
de pensar no irônico da situação, o lugar e os protagonistas. Em geral eram os filhos mais novos
que iam em busca de seus irmãos mais velho para pedir dinheiro e conselho.
— Quando contarmos isto a nossos filhos, riremos.
— Você tem algum?
— Não, não estou casado.
— Nem eu,— Henry riu. — Se necessitasse um pregador cada vez que meu velho amigo
começa levantar-se, estaria no cárcere por uma razão completamente diferente agora.
Os outros ocupantes da cela também riram. Michael não viu a graça.
— Nos deixem sozinhos — ordenou Henry aos homens que estavam escutando.
Os outros ficaram de pé, com apatia e os olhos chorosos, e foram até a porta.
Michael de repente se sentiu desconfortável e colocou seu tamborete de frente à única
saída da cela.
— Falando de pregadores — disse, ao não encontrar outra coisa da qual falar, — meus
parabéns por seu compromisso com lady Sarah MacKenzie. Ela é encantadora.
Henry jogou para trás seu assento, colando os ombros contra a parede.
— Você a conheceu?
— Sim.
Henry olhou fixamente para Michael.
— Bom, solta-o já, homem. O que disse ela de mim?
Michael se sentia acossado pela culpa por causa do desejo que sentia por ela, mas agora, ao
olhar para Henry, não pôde evitar pensar que Sarah merecia alguém melhor que o conde de
Glenforth.

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— Ela disse que você é um inútil e um embusteiro.


— Por perder quinze mil libras? Deus, essa moça é uma caipira!
— Também disse que preferiria casar-se com um cavalo de corrida, desdentado e cego,
antes que contigo.
Henry coçou a face sem barbear.
— Deveria ter pensado antes de me propor casamento.
A mente de Michael ficou em branco. Os ruídos da prisão se converteram em um zumbido.
— Vejo que o deixei sem fala, irmãozinho.
Michael recuperou a calma e tirou a bolsa de caramelos. O aroma acre do gengibre
dissimulou o fedor do lugar, do mesmo modo que o fazia na Índia. depois de colocar um pedaço
na boca, entregou a bolsa a Henry, que teve a desfaçatez de agarrar um punhado.
— Sim, bom... —continuou Michael. — Lady Sarah mudou de ideia sobre casar-se com você.
— Pois será melhor que faça. Como se diz vulgarmente, ela sozinha fez a cama, e minha
intenção é pular ali com ela cada vez que eu desejar.
A reação instintiva de Michael foi sair em defesa da mulher que advogava pelos órfãos de
Edimburgo, mas quem era essa outra Sarah, a que tinha proposto casamento a Henry Elliot, que
esbanjava dinheiro?
Muito desconcertado para chegar a uma conclusão a respeito dela, trocou de tema.
— O que aconteceu com o duque de Richmond?
— O bastardo estava usando um jogo de dados adulterados, mas os escondeu sem que eu
percebesse— esboçou um sorriso torto. — Nesse momento me encontrava ligeiramente bêbado.
— Embora não tenha provas, estou certo que havia testemunhas que possam falar em seu
favor.
— Richmond comprou a todos a base de dinheiro e favores — grunhiu Henry, com a
aspereza dos vendedores de tapetes do bazar de Calcutá.
— Quem eram?
— Não me lembro.
— Então como sabe que os subornou?
— Porque sou um conde — declarou. — Mas a palavra de um conde escocês não vale nada
frente à de um duque inglês. — Passeou o olhar atentamente pela cela e acrescentou: — Já vê
para que me serviu o título.
— E o que vai fazer?
A cara de Henry adotou uma expressão de total arrogância.
— Melhor dizer o que não vou fazer: pedir desculpas em público a Richmond. Ultrapassou os
limites.
— E isso não é um pouco imprudente de sua parte?
Henry se moveu e o tamborete voltou a ficar com todos os pés no chão. Levantou-se de um
salto e começou a passear pelo pequeno recinto sem janelas.
— Se esquece de quem é o herdeiro de Glenforth.
Michael riu.

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— Não espere que me ajoelhe diante de você.


Henry ficou sério.
— O que devo esperar de você, irmãozinho?
Se isso era a única coisa que Henry tinha previsto pedir a Michael, então iam passar aí um
bom tempo, de modo que Michael abordou o único tema que ambos tinham em comum.
— Nossa mãe me pediu que conquistasse sua noiva para conseguir seu dote, sempre e
quando sua virgindade ficasse intacta.
— Uma magnífica ideia — Henry estalou a articulação de um dedo, — pode inclusive ficar
com sua maldita virgindade; mas não me deixe um bastardo para manter.
A cada minuto que passava Michael sentia que era melhor pertencer a um ramo da árvore
genealógica dos Bórgia.
— E do que serviria se você se nega a se desculpar com Richmond?
— Eu me ocuparei disso quando chegar o momento. Agora o que preciso é do dinheiro. —
Contemplou a roupa de Michael. — Tem um pouco economizado?
— Eu posso emprestar-lhe algumas centenas de libras — confessou Michael sem saber por
que.
— Me emprestar? Por Deus, homem, sou o herdeiro da família!
— E isso implica que meu dinheiro seja seu?
— Sim, a menos que prefira que o deserde.
Michael ficou olhando, incapaz de fazer outra coisa. Ao final Henry riu.
— Era apenas uma brincadeira, Michael. Sempre é tão condenadamente sério?
Michael riu também, embora a brincadeira não tivesse nenhuma graça.
— Deve ser por meu sangue escocês. Quer que vá ver Richmond de sua parte? Na Índia
estive com alguns homens que o conhecem muito bem.
— Vai se quiser, mas que ele não vá acreditar que eu disse que o fizesse. Averigua até onde
tem intenções de chegar por esta suposta ofensa. Depois volte aqui para me informar.
Michael reuniu uma paciência que não sabia que possuía, e não fez nenhum comentário. No
transcurso da hora seguinte estiveram conversando, ou melhor dizendo, Michael esteve
escutando as histórias de Henry e seus problemas, as aventuras de Henry em Londres, e os
sentimentos de Henry em relação às propriedades familiares em Fife.
Michael perguntou a seu irmão sobre Sarah e Henry foi muito sincero.
— Tem vinte e três anos e é uma bastarda de Lachclan MacKenzie. Deveria estar agradecida
que eu tenha pensado sequer em convertê-la em minha esposa. Por Deus, Michael, teria que
conhecer essa família. Uma das irmãs, Mary, vive em Londres e vê a si mesma como a próxima
Reynolds17. Confesso irmãozinho, que lamento o dia que decidi baixar o nível por Sarah
MacKenzie. Se pudesse ver seu pai falaria com ele.
— Onde está o duque de Ross? —Henry riu sem humor.

17
Joshua Reynolds foi um pintor inglês retratista, nascido em 1723,em Plymouth.

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— Quem demônios sabe? Estou tentado pedir meu advogado que mande alguém às
Highlands para buscá-lo.
— Espero que tenha sorte e o localize.
— Bom, sou um homem de recursos, embora me encontre neste horrível lugar.
Michael, repentinamente impaciente por sair dali, entregou a Henry uma bolsa com moedas
e se despediu.
Enquanto cruzava as portas da prisão de King's Bench, lançou duas moedas ao prisioneiro
que estava sentado na caixa das esmolas. Uma vez na carruagem, seus pensamentos passaram de
Sarah e seu irmão à audiência com o duque de Richmond que tinha que solicitar, e depois a uma
reunião de negócios na Companhia das Índias Orientais a que tinha que assistir. Quando
terminasse com tudo o que tinha que fazer em Londres, voltaria para Edimburgo no primeiro
navio disponível.

Por que Sarah mentiu sobre as circunstâncias que se produziu seu compromisso com Henry?
Essa e outras perguntas não deixavam de dar voltas na cabeça enquanto observava o rapaz
da estrebaria da Estalagem do Dragão enganchar uma parelha de cavalos na carruagem nova.
Turnbull se encontrava a seu lado, conversando com um lacaio sobre as vantagens que tinha
a pólvora sobre a fuligem para tirar brilho às botas. A discussão proporcionou a Michael um
descanso de todas as notícias contraditórias que teve conhecimento desde que chegou a
Edimburgo e no transcurso de sua visita a Londres.
Segundo Turnbull, lady Sarah era muito solicitada pela aristocracia das Highlands, ou ao
menos isso dizia sua criada, insistindo em que tinha recebido propostas de casamento de todos os
clãs importantes. Se isso era certo, por que não se casou anos antes com alguém de uma dessas
famílias que podiam considerá-la verdadeira realeza das Highlands?
Possuía mais encantos femininos do que os necessários. E além disso, era inteligente, culta e
apaixonada. Excitou-se só de pensar em tê-la entre seus braços e beijá-la outra vez.
Mas havia algo mais em Sarah MacKenzie. Junto a todos seus atributos sedutores coexistiam
uma mente alerta e uma feroz determinação. Quando se tratava das coisas que a interessavam
não dava lugar à negociação.
— Já está pronto, milorde. — O cavalariço passou as rédeas ao chofer.
Michael subiu na carruagem. Já tinha se informado de como Sarah chegou a estabelecer o
compromisso com Henry. O que não entendia era por que.
Mas não demoraria para averiguá-lo.
Turnbull empilhou as coisas que Michael havia trazido de Londres para Sarah no chão da
carruagem. Quando ele entrou na cabine, colocou cuidadosamente o casaco.
Turnbull cuidava muito de seu aspecto, traço que admitia orgulhosamente ter aprendido nos
joelhos de seu pai. Na Índia, as pessoas normais o tratavam como se pertencesse à realeza e
estava sendo tão difícil a ele quanto a Michael acostumar-se à vida em seu próprio país.
A carruagem pôs-se a rodar pelo caminho, e Michael se preparou para o curto trajeto até
Lawnmarket.

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O vento assobiava entre os edifícios e os homens e as mulheres que estavam na rua


seguravam com força os chapéus. O fedor da fumaça do carvão parecia menos abrasivo,
demonstrando a Michael que era certo que não demoraria para acostumar-se a ele.
Ao que não acabava de acostumar-se era em ouvir às pessoas falando em escocês, tinha que
concentrar-se para entender a pronúncia de sua língua materna. Por ter crescido em Fife, o
primeiro idioma que aprendeu foi o escocês. Entretanto, entre a nobreza de Edimburgo o idioma
mais falado era o inglês. Quando sua mãe percebeu de que não a entendia quando lhe falava,
contratou um tutor e proibiu Michael de falar em escocês. A ordem caiu no esquecimento quando
a visita dela a Fife terminou e retornou a Glenstone Manor.
O cabelo de sua mãe, quando era jovem, era muito liso e de cor castanha, igual ao de Henry.
Essa foi uma das coisas em que se fixou Michael quando foi visitá-la em companhia de Henry.
Michael se enfureceu ao recordar seu irmão e a humilhação que tinha feito cair sobre o clã
Elliot. Entretanto, durante a longa ausência de Michael, os tempos tinham mudado na Escócia e
ainda mais em Londres.
Em um beco próximo, um par de vira-latas brigavam entre si pelo direito a montar uma
fêmea no cio. Um balde de águas sujas e fedorentos caiu como uma cascata de uma janela e os
animais deixaram imediatamente de brigar.
Na próxima esquina, um carreteiro golpeava seu boi com o látego, pouco disposto a mover-
se. Michael sorriu ao recordar o grande valor que os hindus outorgavam ao gado. Se um boiadeiro
da Índia tratasse com crueldade um boi, acabava no Ganges com uma pedra atada aos pés.
— Senhor? — Chamou-o Turnbull, que estava olhando para a rua pelo guichê —. Contei ao
senhor que a criada de lady Sarah teve a desfaçatez de me agradecer por fazê-la passar um
momento tão entretido? Essa criada é puro veneno. Disse-lhe o que fazem na Índia às mulheres
insolentes.
Michael se deu conta de que essa era a queixa principal na lista que Turnbull estava
recitando desde que saíram de Londres.
— Duvido que gostasse disso.
— É uma escocesa das Highlands. Os Highlander aprendem que há um inglês a quem odiar,
antes de inteirar-se de que há um Deus a quem adorar.
— Era melhor não ter lhe dito que é de Suffolk — não pôde evitar dizer Michael.
— Não houve necessidade de dizer-lhe. Possui o olfato de um cão de caça para detectar o
sangue inglês.
Michael coçou a face para ocultar um sorriso.
— Acredito ter ouvido você jurar que ameaçava cortar-lhe o nariz.
Turnbull suspirou enquanto estirava as luvas.
— Temo que passei muito tempo na Índia.
O pretendido domínio absoluto da Índia por parte dos ingleses ia ser muito discutido nos
anos vindouros; nesse momento Michael se alegrava de ter deixado esse problema para trás. Já
tinha muitos aqui, em Edimburgo, e o principal deles era sua própria reação ao ver Sarah
MacKenzie. Do convés do Intrepid, com toda a Guarda de Honra por testemunha, agiu como um

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galã doente de amor, saudando e despedindo-se de uma mulher que nem se incomodou em
tomar conhecimento.
Entretanto, quando momentos mais tarde se reuniu com ela no vestíbulo de sua casa, o
primeiro registro do seu cérebro que não tinha nada a ver com a decepção da despedida ou com
as mentiras que ela havia contado.

CAPÍTULO 7

— O que aconteceu? —Perguntou Michael. Ela levantou a mão enfaixada.


— É só uma pequena ferida.
— Ah! — Interveio sua criada, enquanto se encarregava do chapéu e do casaco de Michael.
— Poderia ter ficado sem mão.
Sarah dirigiu um sorriso ao criado que acompanhava Michael.
— Você deve ser Turnbull. Como está? —Turnbull fez uma reverência, com o chapéu ainda
entre as mãos.
— Muito bem, milady, obrigado. A senhorita Rose disse que a tampa do depósito de carvão
da cozinha estava solta. Me ocorreu passar e dar uma olhada.
Sarah olhou de esguelha para Michael, mas se dirigiu a Turnbull.
— Não tinha por que incomodar-se.
Michael voltou a ser atormentado pelas dúvidas e as perguntas que ela suscitava nele,
entretanto, um fato era inegável: Sentia-se atraído por aquela mulher inteligente e independente.
A atmosfera que a rodeava estava impregnada de amizade e da promessa de algo mais.
Esboçou um sorriso; gostava dos mistérios.
— A reparação do depósito de carvão é algo entre você e Turnbull.
— Não é nenhum incômodo, milady. —O valete endireitou as costas e entregou o chapéu e
as luvas à criada. — O certo é que desde que cheguei aqui tenho pouco o que fazer, de modo que
se o depósito tem que ser reparado, que dano pode fazer que eu dê uma olhada?
Ela enrugou a testa, indecisa.
Michael já havia se inteirado de sua idade, mas essa era uma das poucas coisas que
conseguiu surrupiar de Henry. Segundo seu irmão ela nunca pedia conselho. A intuição dizia a
Michael que na realidade era que lhe custava pedir ajuda.
— Turnbull gosta de manter-se ocupado — disse Michael, posto que ao que parecia ela tinha
deixado o assunto em suas mãos. — Está acostumado a cuidar de uma casa inteira e é muito
competente.
Sarah tomou uma decisão com a rapidez de um general experiente.
— Rose, acompanha o senhor Turnbull à cozinha e quando tiver salvado nosso fornecimento
de carvão, se assegure de que coma alguns bolos desses que fez esta manhã. Duvido que na Índia
tenham boa comida escocesa.
Tinha apaziguado à criada com a mesma facilidade que tinha feito com o prefeito.

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— Por aqui, senhor Turnbull — disse Rose. — vou preparar o chá. E há uma geleia de
groselha que vem diretamente da cozinha de minha mãe nas Highlands.
Ambos os servos desapareceram pelo corredor, um atrás do outro. O aspecto de duende da
falante Rose era o complemento perfeito para o alto e circunspeto Turnbull.
— Passou bem em Londres? —Perguntou Sarah.
À exceção de sua visita a Henry, a viagem foi muito agradável. Os investimentos de Michael
na Companhia das Índias Orientais iam de vento em popa. A vida civil estava se tornando cada dia
mais apetecível.
— Foi muito produtivo. — Ele ergueu o pacote volumoso que estava carregando. — Eu
trouxe um presente e uma mensagem de sua irmã Mary.
— Já vejo. — Sarah fez um gesto em direção à biblioteca. — Que amável por parte de Mary.
Deixa-o em qualquer lugar.
Michael depositou o presente no chão, entre uma cadeira e a mesa onde estava o abajur, e
inspecionou a bem provida estante da biblioteca. Sua anfitriã ficou olhando-o junto a um vaso de
barro com uma frondosa palmeira.
Tinha esperado que Sarah se comportasse com acanhamento já que não era o tipo de
mulher que sucumbia a uma repentina sedução sem sentir remorsos, sobretudo tendo em conta
que Michael e ela acabavam de se conhecer. Henry assegurava que não estava apaixonada.
Michael sabia que isso não era certo. perguntou-se quantas das coisas que Henry contou sobre
Sarah eram reais e quantas se deviam aos preconceitos.
Michael se encontrava muito desconcertado e decidiu ir com cautela. A opinião que tinham
dela, ele e seu irmão, ao que mal conhecia, era muito diferente. Conciliar ambas as opiniões
tentando salvar ao mesmo tempo a honra do clã Elliot era um desafio. Michael passou a vida no
estrangeiro saltando obstáculos e por irônico que fosse, agora ia fazer o mesmo, com a diferença
de que, nesta ocasião, os países estranhos eram Escócia e Inglaterra. Queria fazer um lugar no seio
de sua família, e pensava empregar o tempo necessário para examinar seus desconcertantes
sentimentos sobre Sarah MacKenzie.
— Como se feriu? — perguntou
— Com um martelo e pouca pontaria — moveu o dedo. — É pouca coisa, de verdade. Rose
exagera muito.
Quando passaram a noite juntos na Estalagem do Dragão, Michael deixou claro seu interesse
em vê-la utilizar um martelo. Sorriu ao pensar em quão valente era.
— Como está a unha? — Perguntou.
— Temo que mal. Notch disse que não seria capaz de acertar um castelo com uma maçã. Vi-
me relegada às funções de inspetora e conselheira.
— E que conselhos lhes deu?
— Quando William quis saber se meu sangue era azul de verdade eu disse que não, mas que
o seu era. Embora não foi um dia especialmente produtivo, ao menos foi divertido. — Um genuíno
sorriso reforçou tal afirmação. — Em qualquer caso acredito que você gostará do que fizemos.
— Estou seguro de que sim.

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— Como foi que conheceu minha irmã?


Não ia ser difícil acostumar-se à franqueza de Sarah.
— Por meu irmão. Em Londres todo mundo fala dela, em especial o conde de Wiltshire, que
diz sem disfarces que vai casar-se com ela antes do Natal. Fiquei curioso e fui vê-la. Não se parece
nada com você.
O carinho brilhou nos olhos azuis de Sarah.
— Mary é muito bonita e tem muito talento.
— Igual a você.
— Obrigada — olhou a mão, — embora em meu caso o talento seja discutível.
— Você é muito mais alta que ela, e mais tranquila. Se não me houvessem dito que eram
irmãs nunca teria adivinhado.
— Eu poderia dizer o mesmo de Henry e você.
— Quem é mais tranquilo?
— Nenhum dos dois. — aproximou-se de uma desordenada escrivaninha que havia junto às
janelas dianteiras. — preparei um inventário e um plano preliminar de trabalho para as reparações
que terá que fazer na alfândega.
Michael a olhou enquanto ela rebuscava entre a pilha de livros e papéis. Banhada pela luz do
sol, vestida com um traje cor lavanda pálido ajustado com um delicado cós branco, parecia digna
de um rei. Sua virilidade cobrou vida.
Ela queria falar da reparação de um edifício velho, ele agarrá-la entre seus braços e beijá-la
outra vez. Mas se fizesse isso não teria alternativa senão fazer a temida pergunta. E não estava
seguro de querer conhecer a resposta ainda.
Pensa muito — havia dito Henry dela. — Se perguntar a Sarah MacKenzie por seu cavalo
favorito, ela dirá quem engendrou o animal, o que este comeu e onde está enterrado.
— Acreditei que você gostaria de abrir o presente de sua irmã. — Michael manteve um tom
de voz cordial. A temida pergunta ia ter que esperar.
Mary falou com muito orgulho do talento de Sarah.
Sarah deu uma olhada ao pacote fechado, era evidente que se tratava de um quadro.
— O que pintou agora? Os membros do Parlamento comodamente sentados sobre as costas
dos homens comuns?
Sua controvertida irmã era famosa pelas caricaturas que fazia dos líderes políticos da
Inglaterra e a falta de ética destes.
Michael não queria que lhe pendurassem a etiqueta de hipócrita.
— Admito que sinto curiosidade, mas se está insinuando que vi esse quadro se engana —
Sarah lhe dirigiu um olhar que dizia claramente que não acreditava. Michael não podia consenti-lo.
— Não xeretei entre suas coisas. Não sou desse tipo de homens. O presente é seu e de ninguém
mais.
— Sinto muito, acusei-te sem motivo.
— Sim, bom... a perdoo. Você não quer saber o que enviou Mary, A Rebelde?
Sarah apertou sua elegante mandíbula.

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— Assim é como a chamam agora?


Ele tinha observado em Mary a mesma expressão defensiva quando saiu o tema de Sarah.
— Não respondeu minha pergunta, mas sim, assim é como a chamam os governantes. O fato
de que representasse vinte e cinco membros escoceses da Câmara dos Lordes, atados e
amordaçados na parte de atrás da sala, causou muita polêmica.
Ela continuou revolvendo os papéis.
— Sarah!
Ela o olhou com um suspiro.
— Como diz frequentemente, esteve muito tempo longe daqui. Os políticos da Escócia e da
Inglaterra não mudaram. Os desenhos de Mary são uma incômoda lembrança de que os ingleses
acreditam superiores a seus vizinhos do norte. —Voltou a rebuscar. — Onde meti esses cálculos?
Michael se aproximou do quadro embrulhado.
— Se tivesse que escolher entre essa lista que parece não encontrar e o presente de Mary
que está ao alcance da mão, escolheria o último. — Tocou o pacote. —Mas eu não vou abri-lo.
— Aqui está — disse ela, levantando os papéis com um sorriso de triunfo. — Verei isso
depois.
Michael tinha carregado o maldito quadro por toda Londres e agora ela o ignorava. Mary
tinha prognosticado a reação de Sarah ao abrir o presente e Michael estava desejando ver se tinha
acertado.
— Mary também envia uma mensagem verbal.
Um leve brilho de impaciência apareceu nos olhos de Sarah, que voltou a suspirar com
dramatismo.
— Michael prefiro deixar a minha família fora de nossa... associação...
Esse afastamento era o que preocupava sua irmã e Michael tinha empenhado sua palavra.
— Prefiro cumprir a promessa que fiz a Mary.
— Está bem, diga.
— Roga para que escreva para seu pai e resolva suas diferenças com ele. Em quinze dias
senão tiver feito, ameaça copiar um certo nu de Eva, pintar seu rosto nele, e entregá-lo ao lorde
Protetor de Edimburgo.
Sarah desviou sua atenção às janelas; de perfil era mais bonita e feminina que qualquer
representação de Eva, a mãe da Humanidade. Era evidente que a separação de sua família
também a estava afetando.
— Ao que parece Mary e você se tornaram bons amigos.
É capaz de lançar o mais mordaz dos insultos camuflado entre as mais formosas palavras —
tinha advertido-o Henry. — Tome cuidado para não cair em suas armadilhas dialéticas.
É muito inteligente — tinha assegurado Mary, — para esse néscio e preguiçoso de seu
irmão.
Michael se sentia atraído pela ideia de cair na armadilha de Sarah MacKenzie. A única coisa
que lamentava era que seu irmão a tivesse conhecido primeiro.

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Clã Mackenzie 03

— Sua irmã Mary é a segunda mulher mais interessante que conheci desde que parti da
Índia.
Essa declaração pôs um pouco de cor nas faces de Sarah.
— Não interessa saber o que fiz no orfanato?
Teria ferido seus sentimentos? Não levou em conta essa circunstância, o que não era de
estranhar já que o que mais lhe interessava saber era por que se afastou de uma família que a
amava profundamente e que se preocupava com seu bem-estar. Michael queria ver os MacKenzie
reconciliados. Desejava que entre os Elliot reinasse a harmonia, mas seu maior desejo era
satisfazer sua própria curiosidade sobre a encantadora mulher que tinha diante de si. Enfim, se a
única coisa que podiam falar era da reparação de um edifício em ruínas, que assim fosse.
— Sim, interessa-me muito ver os progressos que tem feito, mas não me perguntou o que
Henry achou da ideia.
Ela se recolheu sobre si mesma como se houvesse se recoberto com uma malha protetora.
— Espero que o tenha convencido a fazer algo altruísta e que se desprenda da propriedade.
A palavra caridade não era um vocábulo que Michael pudesse associar facilmente com seu
irmão nem com nenhum dos homens encarcerados em King's Bench. Entretanto, não estava
disposto a compartilhar com Sarah a opinião que merecia seu irmão, nem tampouco defendê-lo. A
discussão pela venda do edifício da alfândega foi breve. Ante a perspectiva de receber mil e
quinhentas libras, Henry se mostrou impaciente por estampar sua assinatura. Com o ganho pagou
a estadia em um dos apartamentos privados da prisão e colocou de tudo, desde tapetes de lã a
mulheres complacentes.
O melhor que Michael podia fazer era modificar ligeiramente a história.
— Henry se alegrou em se livrar do edifício.
— De acordo. Ele precisava do dinheiro. Falaram de mim?
Ocorreu dizer uma meia verdade.
— Fazia muitos anos que não nos víamos. Falamos de um monte de coisas.
— Perfeito. — beliscou a atadura do polegar. — Preferiria que Henry e sua mãe se
esquecessem de mim por completo.
Não tinha incluído Michael.
— Devo entender que conheceu um Elliot a quem não odeia?
— Não os odeio, Michael — disse em tom de queixa. — Mentiram-me e sujaram meu nome
porque nasci bastarda. Há uma coisa que me deixa intrigada. — aproximou-se dele. — Quanto
tempo Henry tem que permanecer no cárcere?
— Até que pague Richmond — Para desolação de Michael, Henry havia acumulado mais
dívidas desde sua prisão.
Sarah se sentou em uma das duas poltronas estofadas em couro, com os papéis sobre o
regaço.
— Você vai pagar?
Michael ficou nervoso.
— Você acha que eu posso pagar?

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— Que pergunta mais estranha! Sua fortuna pessoal ou a falta dela não são de minha
incumbência. Não obstante, se eu estivesse em seu lugar e tivesse ganho o dinheiro
honestamente, não o esbanjaria para pagar as dívidas de jogo de ninguém. Estava me referindo às
minas de carvão de Fife; acreditei que tiraria o dinheiro dali.
Sua mãe e Henry diziam que Sarah pensava como uma camponesa. Na opinião de Michael
era uma mulher prática e sincera. Quando perguntou a Henry sobre a propriedade, este
respondeu com as mesmas queixas que sua mãe: que os benefícios das minas eram mínimos por
culpa das elevadas taxas de exportação. Essa foi pelo menos a explicação que havia dado a eles o
capataz, porque nenhum dos dois era parte ativa na gestão dos negócios da família.
Pareceu-lhe normal compartilhar suas ideias sobre o assunto com Sarah.
— Tenho que ir verificar. Parece que as taxas de embarque para o carvão são muito
elevadas.
A expressão dela serenou e o tom de sua voz se tornou doce como o caramelo.
— O rei Jorge tem que tirar o dinheiro de algum lugar. Inclusive você disse isso — sorriu e
lhe entregou os papéis. — E agora vai olhar isto?
Michael se sentou na outra poltrona sem saber o que responder à aguda réplica dela. A
primaveril fragrância de Sarah se fundia com o aroma do couro e dos livros antigos. Era uma
mistura embriagadora que perturbava e seduzia o homem que a desejava com loucura.
— Você não ficou ofendido, hein, Michael? Eu estava brincando.
— Não, não me ofendi.
Ao revisar a lista e o plano de trabalho, Michael recordou outra das histórias que Henry
contou sobre ela com tom depreciativo. Como presente de aniversário para o duque de Ross,
Sarah projetou um sistema de irrigação a base de tubos para o pavilhão de caça favorito de seu
pai. Inclusive encarregou alguns trabalhadores locais que fizessem o trabalho e o fiscalizou ela
mesma. Naquela época tinha quinze anos.
Henry estava escandalizado, tanto pela anedota como pelo orgulho com que ela contava. A
Michael pareceu algo digno de admiração e muito inteligente. Não pôde evitar sorrir.
— Tem muita imaginação Sarah MacKenzie. — Ela tinha incluído um mapa com a zona do
cais. — Até mesmo desenhou um pequeno estábulo na parte de trás, embora o cavalo seja um
pouco disforme.
Ela deu um sorriso.
— Supõe-se que é uma vaca. Já disse que a talentosa era Mary.
Boa observação, pensou Michael. Dava-lhe inveja o grande carinho que ela sentia por essa
irmã que tinha ofendido a metade do Parlamento e enfeitiçado à outra metade.
— Pergunto-me o que o talento de Mary terá capturado nessa tela. — Deu uma palmada ao
quadro embrulhado.
— Logo.
Sarah se inclinou para frente e cruzou as mãos. A verdade é que o ferimento parecia sem
importância. Ainda assim, Michael prometeu a si mesmo que seria a última lesão que se fizesse na
alfândega.

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— Deixando de lado minha falta de talento, as crianças vão necessitar de leite — disse ela.
— A vaca pode pastar aí — assinalou um ponto do mapa, — no campo que há ao lado da fundição
do Anderson. Anderson também prometeu proporcionar dobradiças novas para as portas e grades
para as lareiras. Acredito que para as crianças será bom compartilhar a responsabilidade de cuidar
da vaca.
Ela esteve muito ocupada. Apesar disso, para alegria de Michael e, se devia acreditar no
porteiro da Estalagem do Dragão, encontrou tempo para terminar com sua relação com um tal
conde DuMonde.
— Não lhe parece que as crianças sairão ganhando? — Perguntou ela.
Michael voltou a prestar atenção ao tema.
— Sim, mas, quando comprou a vaca?
Ela pôs uma divertida expressão de desconcerto.
— Ainda não a tenho, mas a terei. Sir Gilbert Gordon se ofereceu a nos conseguir uma vaca
saudável. William assegura que sabe ordenhar.
— E em caso de que não saber?
Ela encolheu de ombros.
— Então ensinarei, a ele e aos outros.
A imagem da majestosa Sarah agachada junto a uma vaca o fez sorrir.
Ela elevou o queixo e sua voz se tornou suave como a seda e desafiante.
— Você acha isso engraçado?
— Sim. Nunca na minha vida, vi a filha de um duque que trabalhando no estábulo antes do
amanhecer.
— Então é que não conhece o duque de Ross. Não importa em trabalhar nem que suas
filhas o façam. — Pelo brilho de felicidade em seus olhos, estava ensimesmada em uma lembrança
agradável.
— Conta-me — Disse ele, impaciente por saber o que era o que a fazia tão feliz.
— Crescemos no campo. Lachlan não se casou até que nós tínhamos seis anos. Ensinou-nos
a montar e a cuidar de nossos próprios pôneis. Todas tínhamos alguma responsabilidade, e se
alguma não cumpria com seu trabalho, castigava todas.
Aquilo era um detalhe mais que acrescentar ao mistério que rodeava Sarah e sua pouco
convencional família.
— É verdade que tem três meio-irmãs e que todas vocês nasceram no mesmo dia de mães
diferentes?
— Todas nascemos de mulheres diferentes e celebramos o aniversário no mesmo dia por
comodidade e para nossa própria proteção. Lachlan MacKenzie era um pouco descarado. Temia
que nossas mães ou suas famílias tentassem nos afastar dele ou que nos utilizassem como moeda
de troca. É muito possessivo.
Michael gostava do duque de Ross.
— Conhecem suas mães?
Sarah olhou ao teto, e, como se tivesse recitado milhares de vezes a resposta, disse:

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— Só uma de nós. Agnes e sua mãe são iguais. Lottie e Mary não se interessam por conhecê-
las, são muito teimosas. A minha morreu no parto.
Michael se sentiu envergonhado. Henry não contou nada sobre o assunto, reforçando a
convicção que Michael tinha de que seu irmão e Sarah eram mais desconhecidos que um casal.
— Lamento que morresse.
— Não o faça — respondeu ela com voz carente de emoção.
A ele ocorreram um sem-fim de perguntas mais.
— Quem foi sua mãe?
Ela começou a brincar com a atadura que cobria a mão, com um sorriso.
— Dou- a resposta de sempre? A que nos ensinaram a dar?
— É evidente que está desejando fazer, de modo que por favor, continue.
— Quando nos perguntavam, tínhamos que dizer: Não posso dizer como se chama minha
mãe, mas não é... uma Elliot, ou uma MacGregor, ou da família que pertencesse a pessoa que
fazia a pergunta.
Era óbvio que o duque de Ross havia coberto todos os ângulos para proteger suas queridas
filhas. Michael estava intrigado pelas duas que faltava conhecer.
— Lottie e Agnes são tão francas como Mary e você?
Ela sacudiu sua cabeça.
—Mary e eu somos amadoras comparadas com elas — murmurou com tristeza.
Michael imaginou às quatro jovens deixando boquiaberta a Corte com seu engenho e
independência.
— É um alívio saber que não é uma Elliot. Sentiria-me culpado por ter beijado alguém da
família.
Ela o repreendeu com o olhar.
— Isso é tudo o que terá que saber sobre nós, Michael, e agora que já contei algo de mim,
por favor, diga-me se é casado.
Ele levantou-se e abraçou-a.
— Se estivesse comprometido com outra, não a teria beijado.
Seus belos lábios se curvaram em um sorriso de desculpa.
— Deveria tê-lo sabido. O reto, honrado e firme Michael Elliot jamais atuaria de um modo
tão pouco cavalheiresco.
— Faz com que pareça extremamente previsível.
— Se você for previsível, então o rei é turco. —Ele começou a excitar-se.
— Se você está procurando por perdão, é muito provável que consiga.
Ela se tornou tímida de repente. Michael não podia permitir. Levantou-lhe o queixo e a
olhou nos olhos, que lhe devolveram um olhar de sinceridade e afeto. Por mais que tentasse negar
seu desejo por ela, sabia que não ia conseguir. De modo que escutou seu coração e a beijou.
Ela se derreteu em seus braços e seus lábios se suavizaram contra os dele. Michael abriu-lhe
a boca para aprofundar o beijo.

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Ela o devolveu com a mesma paixão e impaciência, fazendo-o desejar uma maior intimidade.
Acariciou-lhe os braços e as costas, querendo afundar os dedos em seu cabelo e beijar cada curva
e recurva de seu corpo. O desejo estava se convertendo em luxúria, obrigando-o a aceitar a
contragosto que tinha que soltá-la ou possuí-la ali mesmo, na biblioteca.
Fazendo uso da força de vontade de um monge, interrompeu o beijo e se afastou. Seus
lábios brilhavam e um brilho de surpresa cruzou seu olhar.
— Maldição! — Exclamou ele.
O sorriso dela se tornou perspicaz.
— Decepcionado?
Quando Michael estava abrindo a boca para responder, entrou Rose com uma bandeja de
chá nas mãos.
— Acabo de prepará-lo —informou a criada, depositando a bandeja na mesinha.
— Obrigado, Rose. — Sarah se afastou mais dele. — Daremos um pouco de tempo para que
repouse. Como vai Turnbull com o depósito de carvão?
Michael esteve a ponto de soltar um gemido de frustração.
Rose parecia a ponto de saltar de alegria.
— Arrumou-o rapidamente, e agora se pôs a organizar o estábulo. Mas antes comeu três de
meus pães-doces.
O olhar malicioso de Sarah animou Michael. Se ela podia tirar importância do beijo, quem
era ele para discutir?
— Tem um cavalo aqui? — Perguntou.
— Sim — respondeu ela olhando à criada. — Obrigada Rose.
A criada fez uma reverência e se apressou a sair da sala.
— Assim que sua mão se cure irei cavalgar com você.
— Que forma tão interessante de formular um convite! — Exclamou ela querendo dizer
justo o contrário.
Michael voltou para o assunto que estavam tratando antes que Rose trouxesse o chá.
— Se tivesse uma esposa, não a teria beijado, Sarah.
Ela se cobriu sob um manto de orgulho.
— É possível que já tenha alguma em mente.
— Não, isso tampouco, e sinto ter deixado de beijá-la. Não voltarei a fazê-lo —dedicou um
sorrisinho malicioso. — Não finja que não voltaremos a nos beijar porque você também gostou.
Isso responde a sua pergunta?
Ela ficou encantadoramente nervosa.
— Só o perguntava porque estou procurando voluntárias para a junta diretiva do orfanato.
Me ocorreu que sua esposa ou sua noiva poderiam estar interessadas em dar uma mão.
Ele se perguntou se na realidade foi essa a razão de sua pergunta. Gostava de pensar que
não; tinha a esperança de que quisesse a informação por motivos pessoais.
— Se eu tivesse uma esposa ou noiva, quereria conhecê-la?

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Ela dirigiu a ele o mesmo olhar que certamente a rebelde Kate dirigia a Petrucio em A
megera domada.
— Essa é uma pergunta estúpida.
Mas que dava no mesmo, porque estava sorrindo. Michael reuniu coragem e abordou um
tema que sabia que ia ser espinhoso.
— Seu pai vai ajudá-la?
— É impossível que meu pai me ajude com o orfanato. Sua família vive em Tain.
Michael deu outro passo para a temida pergunta.
— Henry me disse que seu pai desaprovava o casamento.
— Efetivamente. Disse que os Elliot acabariam por me aborrecer. Estava correto.
Michael dissimulou sua exasperação.
— Se você estava aborrecida a última vez que a vi, eu sou o sultão de Madras.
A expressão tormentosa que apareceu no rosto de Sarah não anunciava nada bom.
— A última vez que me viu estava no convés do Intrepid, muito longe para saber qual era
meu estado de ânimo.
Acompanhado de toda a Guarda de Honra e com o melhor almirante do rei presente,
Michael a tinha olhado e saudado como um adolescente doente de amor.
— Estava falando da tarde que passamos juntos na estalagem — esclareceu, recordando que
naquela ocasião ela nem sequer tinha dado mostras de reconhecê-lo.
Ela se levantou de um salto e foi verificar o fogo que ardia sem nenhum problema na lareira.
—Eu gostaria de esquecer essa noite. Tampouco então devia deixar que me beijasse.
Michael não teve a intenção de beijá-la nem então nem agora, mas depois de passar várias
horas em sua companhia se sentiu muito atraído por ela. E ainda estava, com a diferença de que
agora sabia que ela sentia o mesmo.
— Parece-me que acredita que não deveria ter ocorrido nenhum beijo. Mas isso não muda o
fato de que tenha desfrutado de nossa intimidade, por mais breve que tenha sido.
— Oh, de acordo — cedeu ela a contra gosto — Se você é tão arrogante que precisa ouvir-
me dizer isso, admito que nossos beijos, por mais breves que fossem, distraíram-me por um
momento. E estou agradecida.
Michael não se divertiria tanto se ela se confessasse tão louca como ela costumava dizer que
era a família dele. Estalou em gargalhadas.
— Pare de rir de mim!
Ele continuou rindo.
Ela o olhou de frente.
— Pensa o que quiser, Michael Elliot, mas estive e estou agradecida. Se não fosse por
Lachlan MacKenzie eu seria uma menina abandonada a mais nas ruas de Edimburgo.
Michael sentiu como se houvessem lhe dado uma bofetada, mas inclusive sob os efeitos da
surpresa, tentou chegar ao fundo da verdade.
— Nasceu aqui, em Edimburgo?

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— Sim. No Asilo de Saint Columba, mas não desejo sua compaixão. Só disse isso porque
pensei que devia saber por que estou tão empenhada em ajudar Notch e as outras crianças, além
de ser minha obrigação como cristã.
Sarah foi uma órfã de Edimburgo. A injustiça da situação chegou ao seu coração. Teve que
reunir toda sua força de vontade para não lançar-se sobre ela e abraçá-la outra vez. Em vez disso,
pensou nos aspectos positivos de sua infância.
— Me alegro que seu pai seja um homem decente, mas não me surpreende.
— Nem sequer o conhece.
Michael se zangou ao ouvir seu tom condescendente.
— Entretanto, decepciona-me comprovar que sua filha é uma covarde.
Sarah começou a soltar fumaça, mas estava mais zangada consigo mesma que com ele.
Chegaria um momento em que a atração que sentia por ele desapareceria. Até então seguiria
adiante e acalmaria o orgulho ferido de Michael.
— Só estou pensando nos problemas que conduziria uma relação sentimental entre nós.
Esquecendo toda delicadeza, Michael baixou o tom de voz.
— Faz cinco minutos estava fazendo algo mais que cortejá-la. E você estava mais que
disposta.
— Sim, mas não voltará a acontecer. Agora que falou com Henry, sabe que o esforço é em
vão. — Acaso não ia dizer-lhe nunca o que Henry tinha contado sobre ela?
— Sim, bom... — Jogou uma olhada nos papéis. — A visita foi muito ilustrativa. Agora
conheço melhor meu irmão.
Esse costume que tinha ao falar a punha furiosa. Que o diabo os levasse, a ele e o que Henry
houvesse dito dela. Agora Sarah tinha sua própria vida. Entre pôr em marcha o orfanato e lutar
contra a atração que sentia por Michael
Elliot era incapaz de pensar com coerência. Decidiu mudar de tema.
— O que vai fazer agora que deixou a Guarda de Honra ?
— Não decidi, mas eu gosto muito da ideia de fazer parte da direção do orfanato. Quer dizer,
no caso de aceitar homens para o posto.
Essa maneira de falar que tinha e seu engenho, iam ser a perdição de Sarah.
— Claro que o terei em conta. Os homens devem ser tratados como iguais.
Desta vez sua risada a agradou. Voltou a sentar-se.
— Falando nisso, perguntava-me se você poderia passar por minha escola dominical e
ensinar historia ou geografia as crianças. Você viajou muito e acredito que eles têm respeito por
você. Ainda estão aprendendo a ler, mas acredito que parecerão uma digna audiência.
Michael assentiu, inclinando brevemente sua elegante cabeça.
— Irei se me prometer uma coisa.
Apoiando-se em sua experiência anterior, Sarah soube o que ia pedir.
— Mais beijos, não.
Ele deu um sorriso que teria derretido uma freira.

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— Me dê sua palavra que não vai voltar a condenar-me pelos crimes que cometeram minha
mãe ou meu irmão.
Por que tinha que ser um Elliot? Seu estado de ânimo se tornou cinzento.
— Querem meu dinheiro por um contrato matrimonial apoiado em falsidades. Henry
assegurou ser um homem de honra. Era mentira.
Ele se recostou na poltrona e esticou suas longas pernas.
— Isso não me importa.
Ela acreditou. Michael Elliot estava acima da mesquinharia de sua mãe e de seu irmão mais
velho. Não ria das opiniões de outros nem abusava dos menos afortunados. Além disso parecia um
poderoso chefe das Highlands, totalmente cômodo com seu paletó cinza feito sob medida e suas
calças.
Não deveria querer saber nada dele. Era irmão de Henry, entretanto ambos os irmãos mal se
conheciam.
— Está de acordo em esquecer o assunto de meu dote?
— Sim — respondeu ele cruzando os braços sobre o peito. — Até que seu pai me ofereça
isso.
O coração começou a lhe retumbar no peito. Tinha que mudar de assunto.
— Henry encontrou a forma de sair dali? — Perguntou fracamente.
Michael alcançou o bule e encheu as xícaras de ambos.
— Suponho que sairá do mesmo modo que entrou.
Ela estava segura de que Michael não era tão ingênuo para acreditar nisso.
— Estará velho e grisalho antes que possa ganhar dinheiro suficiente de outros prisioneiros.
No King’s Bench são todos devedores e criminosos. O único dinheiro que há ali está escrito em
folhas de papel.
— Henry só passa a noite na prisão. Todas as manhãs o deixam em liberdade para que possa
reunir o dinheiro para saldar a dívida. Isso foi o que recomendou Richmond.
Sarah olhou fixamente o vapor que saía de sua xícara e se perguntou se Henry teria êxito.
— É um bom plano, caso funcione.
— Esperemos que sim. E você, está disposta a esquecer as ofensas dos Elliot?
A petição era razoável e era possível que beneficiasse Sarah. Queria lavrar um futuro em
Edimburgo. Tinha falado com o conde DuMonde, que com grande cortesia concordou em deixar
de visitá-la pelas tardes. Segundo Notch os fofoqueiros estavam ocupados com as notícias sobre o
orfanato e especulando sobre seu jantar com Michael Elliot. Ao menos o primeiro dizia algo em
favor dela. O último era uma cruz que teria que suportar.
— Está bem. — Ofereceu-lhe a mão direita enfaixada para selar o pacto. —Vai dar aula no
domingo? —Ele rodeou os dedos dela com cuidado.
— Só se você estiver ali.
Sarah tentou dar uma resposta despreocupada apesar de que o momento estava carregado
de intimidade.
— Certamente. Sou muito boa estudante.

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O olhar dele deslizou até a mão ferida, examinando-a com cuidado.


— Prestará atenção, Sarah?
— Eu sempre presto atenção.
Sua forma de sorrir indicou que ele pensava recordá-la dessas palavras em outra ocasião.
— Nada de travessuras nem de risadinhas tolas?
Com um professor tão atraente? Deu-lhe vontade de começar a rir mas sabia que ele se
aproveitaria disso.
— Esqueci-me desse costume quando minha madrasta nos ensinava. Quer leite e açúcar?
— Só açúcar — seu olhar a queimava, — sou muito guloso.
Sarah não sabia se era ele quem conseguia dar um tom provocador à mais inocente das
frases, ou se a culpada era sua própria imaginação. Então recordou o caramelo de gengibre que
ele havia dado a ela em sua primeira visita.
— Onde ouvi isso antes?
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Certamente o ouviu de um cavalheiro de maneiras impecáveis, honestas intenções e um
indubitável bom gosto para as coisas importantes. Além disso, sou muito bom em julgar o caráter
das pessoas.
Estava se referindo a ela e saber isso fez que sua cabeça rodasse. Por experiências passadas
sabia que recostar-se contra ele seria um bom remédio para o enjoo, mas tinha que erigir algum
tipo de defesa para proteger-se de sua sedução e o que dava melhor resultado para isso era
pensar em seu irmão.
— Não colocou açúcar no chá — observou ela.
Ele acariciou seu pulso e a sensível pele do antebraço.
— Não, não o fiz.
O ambiente entre eles foi espessando-se. Ela fez um esforço por controlar a conversa.
— Falando de suas boas intenções, está preparado para ir visitar o sapateiro amanhã pela
manhã? Recorda que se comprometeu a conseguir sapatos para todos os órfãos.
— Comprometi-me a pagar os sapatos depois que você admitisse seus sentimentos.
— Está tentando escapulir?
— Você o está fazendo?
— Estamos fazendo os dois. Eu poderia acompanhá-lo amanhã pela tarde.
A menos que as aparências enganassem, Michael Elliot parecia ter dinheiro. Entretanto, o
resto de sua família não. Ele dispunha de aposentos em uma estalagem e era generoso com os
que o atendiam. Recordava o que contou Rose sobre a coroa que ele deu de gorjeta ao rapaz da
estrebaria para que cuidasse de seu cavalo.
— Fez os acertos para pagar o sapateiro?
— Os membros da Guarda de Honra são pessoas solidárias. Todos quiseram ajudar.
— Então não é um homem rico?
— Neste momento, sinto-me mais rico que um rei.
Ela encontrou a força necessária para afastar a mão dele.

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— Essa não é uma resposta. Fez uma oferta muito generosa para ajudar os órfãos, nesse
momento não era possível que soubesse que a Guarda de Honra ia colaborar.
— Claro que sabia. Como disse, sou um excelente juiz do caráter das pessoas. E
respondendo a sua indiscreta pergunta, se tivesse dinheiro, não o teria utilizado para comprar a
liberdade de meu irmão?
A fez parecer uma intrometida, mas foi o dinheiro o que originou o problema com os Elliot.
— Não o conheço o suficiente para responder isso. Teria comprado a liberdade de Henry?
— Ah, agora entendo! O que a preocupa é que se Henry de repente ficar em liberdade e se
veja obrigada a se confrontar com ele.
Sarah não se assustava em admitir seus enganos, de fato adoraria ter a oportunidade de
olhar Henry nos olhos e dizer exatamente o que pensava dele.
— Vão soltá-lo logo?
— Não sei. Tem mais dívidas, além das de jogo. Insultou o duque de Richmond e este
ameaçou levar o assunto ao Parlamento.
Sarah agarrou sua xícara de chá apesar de sua mão que tremia.
— Não me surpreende.
Ele também bebeu um sorvo, com irritante tranquilidade.
— Até que ponto conhecia Henry antes de formalizar o compromisso?
O chá de Sarah adquiriu um sabor amargo.
— Evidentemente não o bastante. — Deixou a xícara e se aproximou da mesinha auxiliar. —
Continua querendo que abra o pacote?
— Boa tentativa Sarah, mas...
— Mas é um cavalheiro da cabeça até a ponta de suas elegantes botas importadas.
— De momento sim — disse ele com tom de advertência. — Estou esperando a resposta.
— Perguntou a Henry se me conhecia bem antes do compromisso?
— Apostaria minha reputação que é virgem.
Ela ficou boquiaberta.
— Não é a isso ao que me referia — protestou com tom ofendido.
Ele riu sem vontade, com uma expressão que dizia claramente que tinha pensado tomar
mais liberdades.
Ela afastou os olhos, incapaz de olhá-lo.
— O compromisso foi um engano, isso não é suficiente?
Ouviu-se o som de uma xícara ao se chocar contra um pires e Michael se levantando.
— Sarah, olhe-me.
Estava tão perto dela que notava seu calor e sua força.
— Não.
Segurou-a com suas fortes mãos e a obrigou a virar-se. Seus olhos estavam cheios de
determinação.
— Quando meu irmão abraçava você não estremecia.
Ela respirou fundo e ao soltar o ar se agitou o lenço do pescoço.

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— Não. Não o fazia.


— Agora está tremendo.
Oh, Deus! ia beijá-la outra vez, e ela era incapaz de dar com as palavras necessárias para
fazê-lo mudar de ideia.
Ele levou a mão até seu queixo e, com uma ligeira pressão, jogou sua cabeça para trás. Seu
aroma evocava os sonhos de qualquer mulher apaixonada. Não!, Exclamou seu coração; não podia
amar Michael Elliot.
— Foge Sarah — sussurrou ele, — se tiver medo do que sente, foge.
— Diga-me que não acontece o mesmo com você.
— Não posso, mas tampouco vou enganar a mim mesmo. Prefiro enfrentar as dificuldades.
— E vencê-las.
— Não. Prefiro superá-las. Só se deve derrotar os inimigos, e você, Sarah MacKenzie, está
muito longe disso. Tocou-a no peito.
— Teme algo, mas o mantém oculto aqui, em seu coração.
Ela arqueou as sobrancelhas, convidando-o a revelar seu ponto fraco. Michael não pensava
despir sua alma ante ela nem por todo o ouro do mundo.
— Agora, a minha curiosidade, já pode abrir o presente de Mary.
— É um déspota.
— Só está zangada porque pedi que admitisse o que sente por mim.
Sarah desatou a corda e desempacotou o quadro com mãos trêmulas.
— Oh, Mary! Como pôde?
Ao ouvir seu suspiro de pesar, Michael jogou uma olhada por cima de seu ombro.
No clássico estilo de seu mentor, Joshua Reynolds, Mary tinha representado Sarah e um
homem que só podia ser o duque de Ross. O vestido de Sarah estava pintado com todo detalhe,
dos cardos bordados na barra até os que rodeavam o atrevido decote. Lachlan usava o vistoso
tartan dos MacKenzie e um elaborado sporran de chefe.
Nas costas de ambos ardia um fogo em uma enorme lareira de pedra, e o quarto estava
cheio de pequenos detalhes. Os brinquedos de seus irmãos pequenos estavam esparramados pelo
chão, e ainda por cima da mesa havia restos de comida. Era como se Sarah e seu pai tivessem sido
congelados no tempo.
Na parte de cima do quadro se via o retrato de uma mulher levando uma faixa com as cores
dos MacKenzie. A julgar pelo vestido passado de moda e a coroa ducal, devia ser a mãe do duque.
A habilidade de Mary ia muito além dos detalhes normais em uma aquarela. Sua capacidade
para capturar o carinho e a alegria que compartilhavam pai e filha era superior à dos grandes
professores.
Sarah segurava a moldura com tanta força que tinha os nódulos brancos e as lágrimas
salpicavam o corpete de seu vestido cor de lavanda.
— Essa é sua avó? — Perguntou ele.
Ela soluçou mais forte.
Ele tirou a pintura e se deixou cair no tapete.

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Clã Mackenzie 03

— Por que se entristece tanto, Sarah? É evidente que a ama. Sei que é obstinada, mas não
pode negar seu carinho. Estou seguro que você deu muitas alegrias a sua família.
Rodeou-a com os braços e lhe esfregou as costas. Ela se aconchegou como um gatinho
contra seu peito.
— Você não entende.
— Eu gostaria de entender. — percebeu que ela não usava espartilho, mas Sarah MacKenzie
não precisava recorrer a artifícios. O que precisava era um amigo, e Michael estava desejando
assumir esse papel.
— Quando mudou de ideia e decidiu não se casar com Henry, o duque disse que já a tinha
avisado, não é? — Perguntou com tom risonho.
— Parece como se o conhecesse.
— Estou começando a fazê-lo. E depois ordenou que voltasse para casa.
Ela sorveu pelo nariz.
— Conhece-me muito bem para me dar ordens.
Michael tirou o lenço e o entregou.
— Claro que a conhece. Ou é que de verdade ficou em Edimburgo para se livrar dos cuidados
da metade dos duques solteiros das Highlands?
O humor dela experimentou uma mudança, o momento de fraqueza desapareceu como se
nunca tivesse existido.
— Isso foi o que Rose disse a Turnbull.
— Você é o tema de conversação favorito de Rose.
— Exagerou o número de nobres que veem a Tain.
— Graças a Deus. Não tenho nada que fazer frente a um duque.
— Não desejo nenhum marido, seja príncipe ou mendigo.
— Nem sequer Claude DuMonde?
Sarah colocou-se em guarda, secou os olhos e fungou pela última vez.
— Como soube de sua existência? —Michael pensou no outro Highlander que tinha
conhecido ultimamente.
— Pelo porteiro da estalagem. Ele ouviu esse varredor de rua dizer que está disposto a
brandir a vassoura para defender sua honra.
— Ele se chama Cholly. — Levantou o quadro do chão e o colocou virado para a parede. —
Se inteira de todos os rumores antes que comecem a circular por aí. Notch lhe disse que ele
também poderia escolher uns sapatos novos.
— Duvido que Cholly se levante cedo, porque passa a noite perambulando pelas ruas.
Ela lançou um olhar para a porta da rua e colocou a mão atrás da orelha.
— Ouve como desliza a vassoura? É ele varrendo as escadas enquanto falamos.
Michael não se preocupava se o insolente indivíduo estava varrendo as escadas ou os
telhados. Agora que tinha ajudado Sarah a dominar sua dor, formulou a pergunta que esteve
evitando.

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Clã Mackenzie 03

— Cholly pode vir amanhã conosco a Cordiner's Hall. Agora o que eu gostaria de fazer é
solucionar um assunto que temos pendente.
Ela pareceu ficar alerta, e tinha um bom motivo.
— Eu perguntei Henry porque vocês se comprometeram com tanta rapidez, o que me leva à
temida pergunta...
— E é?
— Por que propôs casamento a ele?

CAPÍTULO 8

No dia seguinte, ainda irritada com a pergunta e a seguinte disputa, Sarah ficou no estábulo
escovando seu cavalo. Era impossível que Michael soubesse, certo? Com certeza esteve
especulando, tentando confirmar suas suspeitas.
Mas quantas das coisas que ele fazia se podiam atribuir ao sentimento de lealdade? O
mesmo Michael admitia frequentemente que era um estranho ali e que os problemas que os Elliot
enfrentavam eram uma novidade. Sarah se perguntava o que sentia por ela. Em um instante
pensava que seu interesse era sincero e no seguinte que era um canalha que fazia o trabalho sujo
de seu irmão mais velho.
A maior parte do tempo não sabia o que pensar. Entretanto, sua incerteza estava
impregnada de tristeza já que Michael possuía boas qualidades. Não hesitou em ficar de seu lado
diante de Fordyce. Apressou-se a oferecer sua ajuda em forma de sapatos para os órfãos. Não
obstante, essas boas ações não desculpavam o fato de que se uniu a lorde Henry e a lady Emily
contra Sarah; a menos que quisesse ficar com seu dote.
Por que você propôs casamento a Henry?
Sarah passou toda a noite e toda a manhã recordando a dúvida que tingia a voz de Michael e
vendo a espera em seus olhos. Era impossível que conhecesse os motivos que se ocultavam atrás
da promessa que fez aos Elliot; nem sequer Henry, por muito desesperado que estivesse, teria
revelado os detalhes.
O dilema de Sarah era cada vez maior, tinha que endurecer seu coração.
— Algum dia eu vou ter um cavalo. — Notch se sentou escarranchado sobre a sela de
amazona de Sarah, que Turnbull levou ao estábulo no dia anterior.
Sarah foi ao estábulo para tentar de evadir-se de seus perturbadores pensamentos sobre
Michael Elliot e aproveitou a distração que Notch acabava de proporcionar.
— Que tipo de cavalo será? — Perguntou.
Ele contraiu o rosto em uma careta de desprezo e esfregou a coxa.
— Um que não esteja castrado.
Rose colocou a cabeça da dependência contígua, onde estava limpando a janela que
Turnbull acabava de instalar.
— Vigia sua língua em presença das damas. Aqui não toleramos vulgaridades.

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Clã Mackenzie 03

Notch lhe dirigiu um olhar assassino. Há muito havia deixado de responder a Rose, embora
ainda se atrevesse a fazê-lo de vez em quando; o costume de se defender estava muito arraigado
nele.
A criada lhe dedicou um sorriso, agradecendo suas boas maneiras.
— Se for o bastante esperto perceberá que o melhor é ter uma égua, porque parirá
potrinhos para você. —Ele pensou atentamente.
Sarah passou uma escova pelas crinas de seu cavalo com certa dificuldade devido à mão
enfaixada.
— Criar potros é uma forma de ganhar a vida, não é?
— Viu, lady Sarah? — Gorjeou Rose. — Eu não disse que Notch era um menino esperto?
Qualquer dia o veremos passeando pela High Street com um monte de gente importante atrás
pedindo favores.
Notch encheu peito, cheio de orgulho, e colocou o pé no estribo pendurado na sela.
— Será uma égua alazã — afirmou, — com uma mancha branca entre as orelhas e...
— Uma boca tão suave como a manteiga? — Terminou Sarah.
— Sem dúvida alguma, milady — moveu as pernas e agitou rédeas invisíveis. Agora que não
estava usando nem a boina nem o enorme casaco, parecia pequeno e jovem.
E além disso usava roupa nova.
— Está com uma camisa muito bonita, Notch — disse ela. Ele tocou o tecido da manga.
— Uma contribuição do prefeito, eu dei as minhas a Foot. Ainda as pode usar umas quantas
vezes.
Notch se negava a chamar de caridade às coisas que lhe davam. Aceitava todas as
contribuições e logo repartia a roupa, os mantimentos e os valiosos centavos entre as outras
crianças. Não demorariam todos em deixar os sombrios e fedorentos becos. Uma vez no orfanato,
Notch passaria o dia na sala-de-aula e o tempo livre sendo o que era em realidade: uma criança.
Momentos como o presente seriam o habitual em sua vida em vez de ser a exceção.
Açulou o imaginário corcel, dedicando-lhe elogios.
— Lady Sarah? — Perguntou. — Cholly disse que hoje o general ia almoçar com a velha
condessa emproada. — Olhou de esguelha para Rose esperando para ver se o repreendia e ao ver
que não era assim, acrescentou: — Levava uma pasta cheia de papéis.
— Estou certa que tinham que falar de negócios. — Seria mais adequado dizer que tinham
que pensar em como solucionar sua má situação financeira.
— Manterá sua promessa de contribuir com sapatos à causa?
— Sim — afirmou Sarah sem duvidar.
Michael Elliot não estava muito contente com ela, mas não ia descontar nos órfãos. Por
causa destes últimos, Sarah estava disposta a esquecer de momento a discussão que ambos
tiveram. Ela concordou em reunir-se a ele nessa mesma tarde, e isso era o que pensava fazer,
embora de uma maneira um tanto inesperada e convincente, ou ao menos isso esperava.
— Senhorita Rose? — A atenção de Notch se centrou em outro assunto. — Essa condessa
sabe ler?

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Clã Mackenzie 03

A criada examinou o cristal reluzente.


— Não lê nada que adoce esse caráter azedo que tem.
Notch riu e também Sarah. Não obstante a curiosidade acabava com ela. Lady Emily estava
suspeitosamente tranquila desde que Michael pisou em chão escocês, e não é que Sarah
frequentasse as mesmas casas ou lojas que a condessa. Sarah gostava de ir ao mercado com Rose
e ainda não havia coincidido com lady Emily na livraria ou na papelaria onde comprava penas e
tinta.
Tampouco frequentavam a mesma igreja já que Sarah preferia a alegre atmosfera da capela
de Saint Margaret à severidade de Saint Stephen. Perguntou-se se Michael acompanharia sua mãe
aos serviços religiosos.
Uma aterradora visão de Michael Elliot surgiu em sua mente.
Por que você propôs casamento a Henry?
A pergunta soou como uma acusação, e era se levasse em conta o atrevido comportamento
dele e suas descaradas promessas de seduzi-la. Mas se ela se visse obrigada a justificar-se ante
Michael, ele também devia fazer. Suas intenções para com ela eram honestas? Todos os aspectos
da relação entre ambos estavam sob suspeita. Os Elliot queriam seu dote, necessitavam-na. Estava
em jogo a salvação de Sarah, por isso Michael não podia conhecer a verdade sobre seu
compromisso. O que mais a preocupava era sua própria ambivalência sobre o lamentável assunto
de sua promessa de casar-se com Henry.
— Cholly diz que ontem você colocou o general para correr e ordenou que ele fosse montar
um escândalo em outra parte — declarou Notch com regozijo. — Você realmente esquentou-lhe
as orelhas e o expulsou daqui com o rabo entre as pernas?
Sarah estremeceu ao evocar a desagradável cena.
— Não estávamos de acordo em um assunto importante e particular. Espero que o varredor
não vá contando por aí.
Notch a olhou com perplexidade.
— Cholly riu muito a dizer-me, mas ele não se acotovela com a nobreza.
Rose saiu da toca onde estava.
— Eu vou dizer algumas palavras para esse Cholly, só para me assegurar.
Notch saltou da sela.
— Oh, não, senhorita Rose! Cholly não quer saber nada de mulheres. Diz que são como uma
praga. Se conseguem aproximar-se dele a uma distância menor que a longitude de uma vassoura,
sairá correndo em direção contrária.
Rose bufou com enfado.
— Está excedendo-se.
Coisa que é habitual nos homens de Edimburgo, pensou Sarah. Ainda fervia de indignação
por culpa de Michael Elliot, mas ainda assim não podia deixar de perguntar-se como foi o encontro
dele com a mãe.

E mantenha-se afastado, Michael Elliot!

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Clã Mackenzie 03

Bom, ele voltaria a apresentar-se em sua porta, mas da próxima vez seria mais cuidado ao
fazer as perguntas. Não se deixaria enganar por um rostinho bonito e um olhar sedutor, agora ele
sabia que, sob sua aparência elegante e sua atitude caridosa, espreitava uma verdadeira megera.
Está confabulado com eles, Elliot embusteiro.
Ele respondeu que não era como seu irmão.
Você é pior.
Enquanto ela fechava a porta no seu nariz, um preocupado Turnbull saiu correndo do beco.
Supunha-se que as mulheres não deviam proteger sua privacidade nem impor suas próprias
opiniões. Michael pensou que ela se saía muito bem fazendo ambas as coisas.
Tem ideias próprias o tinha advertido Henry ao falar de Sarah. Se der tempo a ela para
pensar antes de responder, se arrependerá de ter feito a pergunta.
Michael emitiu um suspiro de frustração.
— Eu também, acho que é uma chateação — disse sua mãe, interpretando mal o suspiro.
Michael não se incomodou em corrigi-la; estava muito desconcertado por seus sentimentos
por Sarah MacKenzie.
De pé no salão de Glenstone Manor, contemplou a imagem do quinto conde de Glenforth,
vestido com seu tartan. Deixando à parte a roupa fora de moda e a barba, era como se estivesse
se olhando em um espelho, dada a grande semelhança que tinha com seu ilustre antepassado. A
julgar pelo sabre que Hamish Elliot segurava entre suas enormes mãos, o bisavô de Michael foi um
formidável soldado. Também foi um desumano homem de negócios e um notório mulherengo.
— Pintou-o um holandês — explicou lady Emily. — Os Elliot fugiram da Europa com Carlos I.
Esse holandês era muito ostentoso, e ruim com o pincel. Henry escolheu um bom pintor inglês
para o seu.
Sacudiu com o lenço para a tela que exibia o retrato de Henry. O gesto não serviu de nada já
que a superfície da pintura e a moldura estavam tão limpos como o resto da mansão. Inclusive os
escudos e as desgastadas tochas de guerra estavam brilhantes.
Michael sabia pouco sobre seus antepassados. O conhecimento e a herança dos Elliot foram
passados a Henry. Sua avó viveu em Fife, o lugar onde Michael cresceu, e algumas de suas coisas
continuavam ali. Não obstante, ela morreu anos antes que Michael nascesse.
O velho administrador assegurava que a condessa viúva não podia suportar Glenstone
Manor depois que a mãe de Michael se incorporou à família. Sua esposa era de opinião de que
lady Emily enviou sua sogra ao campo. Nesse momento Michael entendeu sua avó, entretanto,
sua mãe tinha solicitado essa reunião e ele ainda tinha uma leve esperança de que pudessem
encontrar algum ponto em comum para chegar a um certo grau de entendimento.
Depois de tudo, era sua mãe. Tinha manias e fobias, alegrias e tristezas. Se chegasse a
conhecê-la, deixaria de vê-la como uma estranha.
Escolheu um assunto de conversa neutro.
— Você viu as tapeçarias antigas de Rouen? Eu acho que você gostaria.

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Clã Mackenzie 03

— Sim. Henry me levou ali um ano depois de voltar de sua grande viagem. A verdade é que
me pareceram alegres e agradáveis. É claro, Henry gostou mais dos trabalhos em pedra e
mármore. Arrastou-me por toda a Europa, e nos hospedamos nos melhores lugares.
Michael percebeu o orgulho e o carinho no tom de sua voz. O humor de sua mãe sempre
melhorava quando falava de seu irmão e do passado. Sentiu uma pontada de ciúmes por quão
unidos eram. Claro que Henry sempre viveu sob o mesmo teto que sua mãe e agora era Michael
quem tinha que fazê-lo. Ela bem podia ficar do seu lado para cortar a distância entre ambos,
interessando-se por ele, mas não tinha vontade de fazer.
Michael voltou a iniciar a conversa.
— O palácio do sultão em Bombay está cheio de mosaicos marroquinos, do chão até o teto.
— Pagãos.
Era impossível que fosse tão ignorante, e esperava que não fosse uma fanática.
Michael se sentiu obrigado a defender o país que chamou de lar durante tantos anos.
— Sua arte é atemporal e nem sempre de natureza religiosa. Chesterfield comprou toda
uma parede que pertencia a um antigo palácio dos arredores de Bombay e a levou para sua casa
de Bath, pedra por pedra. Dizem que o comprou por uma quantia ridícula.
— Sério? Pergunto-me por que você não nos enviou um igual.
Se ela tivesse perguntado por que não havia trazido para casa uma tribo de beduínos,
Michael não se surpreenderia mais.
— Não sabia que você gostasse desse tipo de coisas.
— Nunca se interessou pelas necessidades da família — disse ela com um tom de voz mais
razoável.
— Sim, bom... — Virou-se e começou a andar pelo corredor até a saleta. —Agora entendo
por que queria uma galeria de retratos.
A ascendência familiar estava disseminada pelos vestíbulos, as salas e os patamares das
escadas. Aquela confusão era um fiel reflexo dos sentimentos de Michael para sua família.
— Suponho que poderíamos nos arrumar com umas quantas janelas somente, mas menos
de doze indicaria que estamos passando dificuldades, e isso seria terrivelmente humilhante.
Michael ficou incomodado com seu egoísmo. A única prova de que a bolsa dos Elliot estava
nas últimas eram os rumores, já que ela se vestia à última moda. Nesse dia usava um vestido de
manhã de seda verde claro com um imenso saiote adornado com borlas douradas e laços. Sua
peruca empoada, muito alta, era enfeitada com um ninho de verdade, com pássaro e tudo. A ave
parecia tão real que dava a impressão de que em qualquer momento o pardal ia deixar cair seus
excrementos sobre os ombros nus de sua mãe.
Repreendeu-se por esse pensamento tão pouco amável. Se continuasse julgando-a e
criticando-a por coisas que escapavam de seu controle, nunca ia poder estabelecer as bases de
uma relação de afeto entre eles. Henry administrava —embora mal, — os bens familiares. Ela era
uma mãe, não podia fazer nada, dependia de seus filhos. O que precisava era de segurança.
— Estou seguro de que as coisas melhorarão. —Ela suspirou com muita tristeza.
— E quando Henry vai voltar para casa para ocupar-se de tudo?

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Michael percebeu sua angústia e aproveitou a oportunidade.


— Estou pensando ir a Fife para ver o que se pode fazer com o carvão. Tenho certa
experiência como comerciante. — O certo era que esteve no comando dos milhares de
trabalhadores que construíam caminhos e diques em previsão da chegada das monções, mas se
preocupava que sua mãe pudesse acreditar que estava se exibindo se dissesse.
Ela elevou a vista para ele, mas não o olhou de frente.
— Não seria melhor que utilizasse o tempo em se ocupar dessa terrível moça MacKenzie? O
que precisamos são vinte mil libras em efetivo. Tanto ela como seu pai prometeram. Se Henry
tiver que prestar contas por uma inocente aposta que fez com um duque desonesto, Sua Graça, o
duque de Ross também deveria por quebrar o acordo que fez com pessoas honrada.
Aquele raciocínio tão retorcido deixou Michael totalmente perplexo; seu primeiro impulso
foi lançar-se em defesa de Sarah, mas logo recordou as palavras cheias de ira que ela havia
pronunciado.
Não se preocupe mais com o assunto de meu compromisso com seu irmão, Michael.
Tornaria uma freira antes de me casar com Henry Elliot.
— Está me escutando, Michael?
Michael voltou para presente ao ouvir o tom de reprimenda de sua mãe.
— Só conseguiremos o dinheiro do dote se Henry se casar com ela. —Inclusive enquanto o
dizia, desprezou a ideia. Apesar de ter partido da casa dela zangado, ainda queria Sarah para si.
Enfrentaria o pai dela e exigiria a dote só quando, como marido de Sarah, tivesse direito a
fazê-lo.
— Conseguiremos esse dinheiro. Espere e verá — disse sua mãe mostrando seu rancor.
— Mãe — indicou ele com paciência, — não espere que Lady Sarah vá correndo a Londres
para garantir com seus votos uma dívida de jogo.
Ela o fulminou com o olhar.
— E eu me pergunto de quem é a culpa, Michael. Henry a cortejou e estou segura que você
pode advogar por sua causa. É seu irmão e embora não tenha seus recursos, seguro que pode
fazer um esforço.
Ele teve a sensação de ser um lacaio ao qual ordenavam fazer algo que não estava
preparado. Ou acaso estava sendo muito suspicaz? Não tinha nem a menor ideia. Pareceu-lhe
prudente dissimular a verdade.
— Na realidade sou um estranho tanto para Henry como para lady Sarah. — E para você,
esteve a ponto de acrescentar; mas a realidade era que a mera ideia de fazer o que sua mãe lhe
dizia parecia uma missão impossível.
— Sim, permaneceu longe da civilização durante muito tempo. As jovens de hoje em dia têm
umas ideias muito estranhas sobre o casamento. Aconselhei Henry que não pedisse sua mão.
Parecia estranho nela tendo em conta o tamanho do dote de Sarah.
— Qual foi exatamente a vantagem que levou Henry a proposta de casamento?
— Nosso bom nome e ter herdeiros legítimos. Até mesmo se mostrou de acordo com as
ridículas condições que ela impôs.

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Clã Mackenzie 03

Ah, Sarah, pensou ele, sendo uma mulher de tão nobres ideais, encontrou o modo de atrair
a ira do diabo.
— Que condições?
— Um monte de bobagens. — Lady Emily fez uma pausa para raspar um pouco de cera de
um dos dois candelabros. — Reservar propriedades para as filhas que pudesse ter, prometer que
todos os filhos, incluídas as moças, receberiam educação...
O que diria sua mãe se soubesse que Michael se mostrou de acordo em compartilhar seus
conhecimentos de história mundial com as crianças do orfanato de Sarah? Uma oportunidade
assim era como um oásis de paz em meio de um mar enfurecido.
Ela soprou com desgosto.
— Só passando uma manhã em companhia dessa mulher, entende-se perfeitamente por que
as mulheres não tem nada a fazer nas salas-de-aula, e muito menos diante delas.
As boas intenções de Michael desapareceram diante da superficialidade de sua mãe.
— Nem sequer se Sarah compartilhar seus conhecimentos com os habitantes menos
afortunados de Edimburgo? Estou certo de que se dá conta das vantagens de educar as criança
abandonadas.
— A esses moleques sempre bastou ser aprendizes. Um trabalho honrado que os mantenha
longe das ruas e de nossos moedeiros.
Michael não pôde evitar pensar que nisso tinha razão; as crianças tinham que aprender uma
profissão além de ler e escrever.
— Por que os artesãos locais não se encarregaram deles?
— Não tenho nem ideia, embora seja provável que essa mulher tenha afugentado os
melhores com suas exigências e sua arrogância. Espera que Henry lhe dê uma atribuição para suas
atividades caridosas. — Lady Emily estremeceu de aversão. — Dinheiro para livros e para viajar às
Highlands todos os anos na Véspera de ano novo. Inclusive exigiu desfrutar de uns dias livres no
outono para ir a Londres.
— Dias livres?
— Ela tem ali uma irmã, como as tem em quase todas as partes. Seu pai é como um cão —
apertou com força os lábios. — Chamavam-lhe O patife— resmungou. — Mas eu estava disposta a
passar tudo isso por alto porque Henry queria à moça.
Aquela versão diferia muito da de Henry. A única coisa que ambos coincidiam era no
desagrado que sentiam por Sarah MacKenzie.
— Meu irmão confessou que amava Sarah MacKenzie?
— Amor? Que ideia tão ridícula, Michael! Os casamentos se realizam por motivos práticos.
Embora Henry não aceitasse meu conselho neste caso, ao menos reconhece o valor de minha
experiência.
Ela começou a chorar.
— Eu gostaria de ir a Londres e oferecer consolo a ele, mas não temos dinheiro.
Era ela quem necessitava de consolo e não Henry. Michael não podia fazer outra coisa que
oferecer-lhe. Afinal de contas, era sua mãe.

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Clã Mackenzie 03

— Verei o que posso fazer. —Ela sorriu, já de melhor humor.


— Me alegro de ouvi-lo. Pensávamos que nos tinha dado as costas.
De verdade era isso o que acreditava? Era estranho, já que os Elliot nunca tomaram
nenhuma moléstia por ele. Como era possível que esperassem que um menino, que tinham
mandado para longe de sua casa numa tenra idade, sentisse afeto por aqueles que o tinham
separado de sua família? Ele fazia o que podia — tanto em Fife como na Índia, — para ser leal aos
Elliot. Quando criança escrevia a seu pai todos os sábados, como era sua obrigação. Entretanto
aquilo não servia de nada se suas cartas não obtinham resposta. E mais, a falta de interesse que
demonstrava seu pai por ele alimentou o convencimento que Michael tinha de que, ao ser um
segundo filho, era dispensável. Só na Índia pôde prosperar e converter-se em seu próprio dono.
— Que curioso, mãe! Vocês acreditavam que eu os tinha abandonado e eu pensava que era
o contrário.
— Tendo em conta quão limitados devem ser seus recursos não o reprovo — disse ela, sem
dar-se por aludida, — mas já é hora de que contribua com algo às arcas da família.
Em certo modo ela tinha razão. Deixando à parte o tempo que tinha passado ao serviço da
Coroa, o que tinha feito ele por sua família além de lhes mandar um pouco de dinheiro? Deu-se
conta que parte do afastamento era culpa dele. Se confessasse o êxito que teve em seus
investimentos, a relação entre ambos seria mais fácil.
A voz da razão, a mesma que o tinha mantido com vida na batalha e permitido triunfar no
comércio, mandou-lhe um aviso. A voz exigia que averiguasse se a aprovação e a lealdade
compradas tinham algum valor. Michael não tinha resposta para isso, mas decidiu tentar, com a
esperança de mudar a situação.
— Direi a Turnbull que se ocupe de tudo.
— De onde tirou o dinheiro?
— De onde você acredita? —Perguntou, sem saber que outra coisa dizer.
Ela o olhou com sagacidade.
— Jogando faraó no Trotter's! — Jogou para trás a cabeça, fazendo que uma chuva de pó
caísse da peruca ao tapete. — Henry e você se parecem mais do que acreditava. Os dois herdaram
a boa sorte de minha família. Os Fletcher têm um dom para ganhar no jogo.
Perder quinze mil libras — ou a quantidade que fosse, — e insultar um duque importante,
não podia dizer que fosse ter dom para o jogo. A lógica de sua mãe não tinha sentido, mas Michael
não viu razão alguma para lhe dizer que seu irmão e ele eram tão diferentes como a noite e o dia.
Em vez disso, sorriu amavelmente e lhe devolveu um de seus insultos.
— Eu posso pagar-lhe a viagem e dar-lhe dinheiro para outras coisas que você precisa. Será
que vai ser o suficiente duzentas libras?
A julgar pela forma em que apertou os lábios, sua mãe se deu conta do sarcasmo.
— Agora que já solucionamos o assunto, tenho uma surpresa para você. A partir de agora é
o visconde de Saint Andrews. O título não tem propriedades nem rendas associadas. Pertenceu ao
pai de sua avó, mas acredito que deveria ser seu, lorde Michael.

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Clã Mackenzie 03

Fazia tanto tempo que as pessoas se dirigiam a ele chamando-o senhor, general, ou
simplesmente Elliot, que Michael não sabia muito bem o que sentia ao ter um título.
— Não sei o que dizer.
— Não tem que dizer nada, mas acredito que me deve uma explicação por sua atuação no
assunto do edifício da alfândega. Não tinha direito a comprá-lo para logo dá-lo de presente. Estou
horrorizada.
Disse-o como se o dinheiro de Michael fosse dela. Ele esteve a ponto de perder a calma, mas
fez um esforço por manter um comportamento civilizado. Como se atrevia ela a falar como se ele
fosse um filho ingrato que vivia a suas custas?
— O prefeito disse que pensei chamá-lo Asilo Elliot para Pobres?
— Por mim é indiferente como se pusesse a porta principal de madrepérola. Deveria ter
falado comigo antes. Eu proíbo que ponha nosso sobrenome em uma entidade beneficiente, ainda
mais quando não temos dinheiro. Henry está na prisão e deveria empregar até o último xelim em
pôr fim a essa desagradável circunstância. Ele é o herdeiro e merece toda nossa atenção.
— Sim, bom... —Segundo isso, ela também deveria renunciar a viajar a Londres, mas Michael
sabia que sua mãe não ia fazer tal sacrifício. — O que disse Fordyce?
— Nada que tivesse sentido. Tem a absurda ideia de que está interessado em Sarah
MacKenzie e ela em você. — riu sem alegria. — Que tolice!
Michael começou a perder a paciência.
— E o que respondeu você ante a absurda ideia de que Sarah MacKenzie me ache atraente?
— Vamos, Michael — gorjeou ela. — Não se zangue comigo por isso. Fordyce não se dá
conta de que possui o encanto dos Elliot. Eu sei que estava fingindo. Recorda que me casei com
seu pai, e você se parece mais a ele do que imagina. Não se estranha que você pareça atraente a
essa moça das Highlands. Os homens da família Elliot já eram famosos por conquistar às mulheres
desde antes que Henry nascesse.
— Isso é melhor que ter fama de estúpido e de não saber comportar-se em uma mesa de
jogo, mãe.
O pescoço dela adquiriu uma cor vermelha intensa, mas esse foi o único sintoma visível de
seu aborrecimento. A irritação desapareceu com a mesma rapidez que tinha chegado.
— Tenho uma ideia, e não sei como não me ocorreu antes.
Michael teve um mau pressentimento.
— Do que se trata, mãe?
—Tem que descobrir de quem é a casa onde ela vive. Consiga com que rescindam o aluguel.
Quando ela se inteirar do despejo pode pô-la em uma casa em nome de Henry. Nada muito
elegante, afinal de contas é uma bastarda.
Michael ficou sem fala de assombro.
— Se começar a correr o rumor de que você teve alguma ligação, a única coisa que tem que
fazer é negá-lo. Só ficará uma leve mancha em sua reputação.
Michael tinha levado durante anos uma vida de honra e tinha ensinado aos jovens recrutas a
fazer o mesmo, pregando com o exemplo.

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Clã Mackenzie 03

— Com mancha ou sem ela, a resposta é não.


— Sei que estou pedindo que faça um sacrifício, mas esta família também o faria por você.
A cabeça de Michael começou a doer.
— Mãe, me refresque a memória, o que esta família tem feito por mim?
Ela piscou com a inocência de um cordeiro recém-nascido.
— Compramos um posto no exército e assim que este desgraçado assunto se solucione,
tenho planejado encontrar uma esposa aceitável com um dote decente.
Aquela perspectiva o encheu de temor.
— Sim, bom... — Procurou algo para mudar de assunto, mas era difícil quando o que na
verdade desejava era sacudir sua mãe por seu egoísmo. E o que era ainda pior, como ia poder
dizer algo quando desejava Sarah para si mesmo?
— Se me desculpar, vou falar com Turnbull. Quando quer partir para Londres? — Perguntou
fracamente.
Ela passeou pela saleta enquanto ia sacudindo bolinhas de pó com seu lenço de seda.
— Amanhã, caso que haja um navio com camarotes como Deus manda. Não posso suportar
as viagens longas em carruagem, nem uma dessas embarcações cheias de buracos, com camarotes
do tamanho de um armário e sem alojamento decente para os criados.
— Quantos vai levar?
— Posto que somos praticamente indigentes, só Betsy e um lacaio. Necessitaremos
alojamentos e dinheiro para subornos enquanto estivermos ali. Está seguro de que pode se
permitir isso?
A Michael era tão difícil prestar contas como receber ordens de sua mãe, mas se não lhe
desse alguma explicação ela podia chegar a suspeitar de algo sobre seu estado financeiro. A maior
parte de seu dinheiro estava sempre investida em algum carregamento, mas podia recuperá-lo
caso necessário. Não vivia com grandes excessos nem apostava. Voltou a pensar com amargura
que Henry jogou quinze mil libras do dote de Sarah. Certamente mais. Michael não obtinha o
dinheiro das mulheres. Se um homem não podia fazer frente a suas dívidas, não tinha por que as
contrair.
— Está pensando melhor, Michael?
Pensou em ir com ela e enfrentar Henry em sua presença, mas ele tinha dado sua palavra a
Sarah, e tinha que ir verificar o assunto do carvão em Fife.
— Não mãe. Direi a Turnbull que se ocupe dos detalhes e do dinheiro. —dirigiu-se para a
porta.
— Acreditava que ia comer comigo.
Michael tinha perdido a vontade de tudo.
— Diga ao cozinheiro que guarde minha parte e assim poderá levar isso para a viagem.
— Muito boa ideia. Nesses navios a comida é horrorosa. Não se esqueça de averiguar quem
é o dono da casa onde vive Sarah MacKenzie.
Magoado e desanimado, Michael amaldiçoou a si mesmo por ser um estúpido sentimental.
Colocou de lado seus sentimentos feridos, despediu-se de sua mãe e se encaminhou para a

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Estalagem do Dragão. Pensou em ir à igreja, mas no fundo sabia que nem sequer uma bênção do
Papa podia aliviar a dor que embargava sua alma. Tinha nascido no seio de um ninho de víboras e
não sabiam como sair dali. O dever exigia que fizesse um esforço para redimir os Elliot. O devia a
Hamish Elliot e à avó que lhe deu um lar em Fife.
Pelo pouco que conhecia de sua mãe e de Henry supunha que ia ser inútil, mas Michael
tinha que tentar. Algum dia teria filhos e não suportava pensar que eles fossem pagar o preço
pelos pecados cometidos por uma avó egoísta e um tio débil.
Sentiu-se aliviado ao saber que Sarah tinha concordado nesse dia para realizar uma boa
ação. Depois de sofrer na desagradável companhia de sua mãe, pensava sentar-se na carruagem
de Sarah e desfrutar de sua bondade.
Ao chegar à esquina do Pearson's Cióse com a High Street, viu uma figura conhecida.
— Essa moça das Highlands deu-lhe um bom repasse quando mostrou o gênio.
Michael o ignorou. A última vez que o tinha visto, o homem estava apoiado contra um poste
de luz, perto de Sarah, escutando a furiosa diatribe desta. Que Michael merecesse não fazia mais
que incrementar seu desconforto. Olhando para trás agora, soube que se equivocou ao acusá-la,
mas Henry assegurava que Sarah se aproximou dele para lhe propor casamento.
Por desgraça, Michael acreditou. Ou o que procurava era que ela confirmasse que não
estava apaixonada por Henry?
Não lhe ocorreu nenhuma resposta, e supôs que se devia a seu crescente afeto por ela.
Fosse qual fosse a razão, Michael não deveria tê-la acusado. Deveria ter sido mais esperto e não
ter dado uma desculpa para que ela o excluísse de sua vida.
— Longe daqui, estúpido Elliot!
— Mesmo que você desse sapatos a todos os órfãos da Cristandade, ela seguiria sendo
muito boa para os Elliot.
Sendo um homem acostumado a ter outros sob suas ordens, o insulto foi como jogar sal em
uma ferida aberta. Michael se virou abertamente e enfrentou o intrometido Cholly. Voltou a
surpreender-se pela força e a aparência deste.
— Me escute bem, desprezível fofoqueiro — disse Michael cravando o olhar naqueles olhos
azuis que não pareciam pertencer ao rosto manchado de fuligem. — Se voltar a manchar meu
nome ou o de lady Sarah, limparei as ruas contigo.
— Então será melhor que convoque a Guarda de Honra porque vai necessitar de sua ajuda.
Estavam separados por vários metros de distância, entretanto Michael percebia a
determinação daquele homem.
— E você faria melhor em morder a língua, estúpido velho senil.
O varredor soltou uma maldição em escocês, tirou o avental, esticou-se em toda sua altura e
brandiu a vassoura como se fosse uma lança.
— Vamos discuti-lo.
Michael voltou a examinar o homem. Podia atirá-lo ao chão, mas não seria uma briga justa.
Ambos ficaram parados em frente à tabacaria, onde tinha começado a se reunir um grupo de
pessoas.

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Clã Mackenzie 03

— Olhem, rapazes — o varredor se dirigiu aos espectadores. — Se este Elliot continuar


pensando aparecerá o covarde que leva dentro. A covardia é típica de seu clã.
Aquilo foi muito. A ira que Michael estava contendo desde o dia anterior explodiu com força
incontrolável. Por Deus, tinha vontade de brigar! Tirou o chapéu e a capa de um puxão, os lançou
a alguém que estava perto, e começou a subir as mangas, sem perder de vista o rosto do homem
que o fulminava com o olhar.
— Aposto duas libras que o Elliot será o último a cair — ressoou uma voz entre a multidão.
— Se tivesse duas libras, aceitaria a aposta — respondeu outra voz. — Cholly sabe o que faz.
— Acabe com esse bode, milorde.
Quando ambos estavam à distância de um braço, Cholly balançou a vassoura. Michael a
apanhou no ar e tentou arrebatá-la de suas mãos, tarefa nada fácil, mas a raiva de Michael estava
descontrolada. Moveu-se, procurando um melhor ponto de apoio. O varredor soltou um grunhido
e fez o mesmo. Só se mantinham em pé por força de vontade. A agilidade era o que sempre tinha
dado vantagem a Michael e foi isso que utilizou para dar um pontapé na perna de seu oponente.
Uma patada bastaria para tombá-lo de costas.
— Aqui vem lady Sarah!
Ambos os homens ficaram imóveis. O olhar de ferocidade de Cholly se dirigiu para o som do
cavalo que se aproximava. Michael também desviou a vista para ali, com o mesmo receio.
A interrupção jogou a favor do varredor, que empurrou Michael e zombou dele.
— O que ela vai dizer se o vê metido em uma vulgar briga de ruas, Elliot?
Diria que era um valentão, acusação que ele não poderia refutar, admitiu Michael.
Entretanto os últimos acontecimentos tinham acabado com suas boas intenções. Virou a cabeça
justo quando Cholly desaparecia em um beco, deixando a vassoura para trás.
— Aqui tem seu chapéu e sua capa, milorde — disse o homem que tinha ao lado, — embora
não posso dizer que você tenha sido o ganhador.
Michael começou a arrumar roupa com a mente posta no que ia dizer Sarah e perguntando-
se como era possível que tivesse subestimado um simples varredor.

CAPÍTULO 9

Sarah conduziu seu cavalo entre as pessoas que se amontoavam em Pearson's Close. Na
mão esquerda levava as rédeas de outro cavalo. A cabeça e os ombros de Michael apareciam por
cima dos espectadores. Atrás dele o varredor se afastava rapidamente entre a multidão com a
capa ao vento, abandonando a cena. Sarah ouviu as aclamações das pessoas, mas ninguém
explicou a ela o que motivou a briga entre dois homens tão diferentes.
Quando Michael elevou a vista, sua expressão, assemelhava-se a de uma criança que foi
surpreendido roubando caramelos.
— Espero não ter interrompido uma briga importante — disse Sarah muito contente.
— Não. — Michael colocou cuidadosamente o chapéu. — Era só uma diferença de opiniões
sem importância.

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De entre as pessoas ouviram algumas gargalhadas.


Ela se fixou em sua expressão rígida e na forma em que apertava a mandíbula.
— Nesse caso, espero nunca vê-lo realmente irritado.
— Boa ideia. — Deu uma olhada à velha égua. — O que leva aí?
Sentindo sua arrogância, ela se aproximou e deu-lhe as rédeas.
— Eu prometi para passar hoje para ir ver o sapateiro. Já que não disponho de carruagem,
consegui arreios adequados para você.
Todos os problemas que teve para conseguir aquele pangaré de andar lento, valeram a pena
ao ver a expressão de assombro na cara de Michael.
Ao ver que já não iram poder desfrutar de uma boa briga, os espectadores se dedicaram a
fazer alguns comentários muito pouco amáveis sobre o enorme cavalo marrom.
— O espetáculo terminou, cavalheiros — anunciou Michael. — Já podem ir.
Todos protestaram, mas ainda assim obedeceram. Ele não pareceu estranhar; Michael Elliot
parecia estar tranquilo repartindo ordens a outros.
Passeou ao redor de seu cavalo, sacudiu a cabeça e riu sem alegria.
— Seu critério para os cavalos só se vê superado pelo que tem para escolher marido.
Excetuando os vendedores das lojas próximas, a rua ficou vazia.
— Se você não gostar da égua, pode montar meu cavalo.
Ele deslizou o olhar pelo joelho dela que estava cruzado por cima da sela de amazona e
tampada com as dobras da saia de montar. Seu estado de ânimo se tornou tormentoso.
Sarah esperou, desafiando-o em silencio a insultá-la. Ele tinha se metido em sua vida e
jogado com seus afetos. Desejava ter um enfrentamento com ele, e Pearson's Cióse parecia um
bom lugar para começar a despojá-lo de seu orgulho.
Um momento depois, ele começou a rir com vontade. Seus ombros se agitavam e a exótica
pluma que levava no chapéu dançava no ar.
Ela se encrespou.
— O que é que você acha tão engraçado?
Ele secou as lágrimas.
— O que está me acontecendo ultimamente.
Já que seu cuidadoso plano tinha falhado apenas ao começar, posto que Michael Elliot não
se sentia humilhado absolutamente, Sarah mudou de tática.
— Não espere compaixão por minha parte. Você procurou isso.
Ele riu mais forte.
—Exijo que deixe de rir agora mesmo! —Ele sorveu pelo nariz, fechou os olhos e continuou
rindo baixinho.
O cavalo de Sarah se moveu com nervosismo. Ela segurou as rédeas e acariciou o pescoço do
animal para acalmá-lo.
— O que é isso? Você enlouqueceu?
— É muito possível. — Michael olhou para o céu, mas indicou a égua. —De onde tirou este
despojo?

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Sarah, um pouco mais tranquila, fez um esforço por aparentar inocência.


— Você não gosta?
Ele deu-lhe um olhar feroz que adicionou atração a seu semblante. Tirou as luvas e arranhou
as orelhas da égua.
— Este animal já era velho na época de Jorge II.
Ela sentiu uma enorme satisfação até que ele acrescentou:
— Vou levar esta pobre criatura ao estábulo da estalagem e trazer meu cavalo. Você vá para
a sapataria.
Aquele desgraçado a estava despedindo!
— Parece-me que já se divertiu o bastante, Sarah.
Ela não estava disposta a resolver o assunto e se aproximou mais dele com o cavalo.
— A partir de agora acredito que o melhor seria que você deixasse de me tratar com
familiaridade.
Um carro fúnebre passou a toda velocidade por seu lado.
— Devo chamá-la de lady Sarah? — Perguntou Michael por cima do ruído.
Algo no tom de sua voz a advertiu de que estava pisando em terreno perigoso, mas não
podia voltar atrás.
— Você tem algo contra a boa educação?
— Absolutamente — o tom se voltou ameaçador. — Mas inteira-se de uma coisa, minha
travessa Sarah: terei muito gosto em me dirigir a você como uma dama quando se comportar
como tal.
— Elliot miserável!
Ele soltou o fôlego e passeou o olhar pelas lojas da calçada de em frente.
— Isso já disse antes.
— E seguirei dizendo.
— O que acontece? Minha muito educada Sarah ficou sem insultos originais?
Aquilo não ia durar muito, tendo em conta que ele se colocou em sua vida, frustrando suas
boas intenções, fazendo com que acelerasse o pulso e despertando suas fantasias.
— Ainda não inventaram palavras para descrever sua família. E eu não sou sua Sarah.
—Sim, bom... — Uma advertência brilhou tenuemente nos olhos dele. — Vai Sarah. O
sapateiro e seu bando de órfãos estão esperando-a.
Sarah o olhou enquanto ele levava o pangaré, sentindo-se muito desgraçada.
— Não tem nem o menor senso de humor — disse ela a suas costas.
Ele se voltou e colocou uma mão atrás da orelha.
— O que disse?
— Eu disse... — interrompeu-se ao perceber o tom gritante de sua própria voz.
Ele sacudiu a cabeça com um aspecto tão inocente como o de uma criança rezando.
— Vai ter que gritar mais, Sarah.
Ela já estava gritando, mas o que ele queria era provocá-la. A julgar pelas expressões de
curiosidade das pessoas que estavam olhando-a das janelas, os vizinhos também a ouviram.

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Sentiu-se muito arrependida, e quando ouviu que Michael falava com carinho com animal, sentiu-
se ainda pior.
Obrigou seu próprio cavalo a dar meia volta e se juntou ao fluxo de carruagens, liteiras e os
onipresentes carros de carvão que circulavam pela High Street. Ao chegar a Cordiner's Hall, em
Com's Cióse, viu que ali se reunia uma vintena de órfãos.
Notch se separou de outros.
— Lady Sarah! — O menino tirou a boina e a colocou sob o braço. Estava muito excitado,
com os olhos tão abertos e brilhantes como botões de cobre. — i Você já ouviu falar da briga entre
o general e Cholly? O vendedor de queijos da High Street diz que não foram mais que bravatas e
nada de ação, até que você chegou.
A inimizade entre Michael e Cholly seguia assombrando-a.
— Por que brigavam?
— O alemão da taverna do Selo Azul — ou seja, Reamer Clark, — viu tudo do principio ao
fim, a muito curta distância. Diz que Cholly provocou o general mencionando a descompostura
que você lhe deu. O general acusou Cholly de ser um maldito fofoqueiro e jurou que varreria as
ruas com ele, desde o Reekit Cióse até o velho castelo.
Sarah teve que admitir que se tratava de uma ameaça impressionante e certamente
aumentada pela imaginação infantil.
— De modo que se limitaram a trocar insultos.
— Só a princípio. O general se lançou contra Cholly, que se colocou fora de seu alcance.
Reamer diz que Cholly se movia como um professor de balé.
Sarah se perguntou se Michael estaria arrependido por dar mau exemplo aos meninos. Não
ia demorar para averiguá-lo, caso cumprisse com sua palavra. Cordiner's Hall ficava a pouca
distância da Estalagem do Dragão. Se não se entretivesse chegaria ali antes que os rumores
esfriassem.
— O que você viu, milady?
— Que nenhum dos dois tinha machucados. — Pensando bem, só tinha visto Cholly de
costas, quando se afastava.
Notch pôs uma expressão de desencanto.
— De todo modo, eu gostaria de ter estado ali. As apostas estavam a favor do general.
Nenhum escocês decente aceita que insultem seu clã e prossegue seu caminho alegremente.
— O que exatamente Cholly disse?
— Assegurou que os Elliot eram uns fodedores de sapos... —Engoliu em seco ao usar um
termo tão vulgar. — Uh, chamou-os camponeses beija sapos. Isso é o que ele opina dos Elliot.
Ela pensou que era uma opinião muito acertada.
— Acabou, Notch.
— Sinto muito. Poderia ter ganho apostando em Cholly.
— Você crê que um varredor velho pode vencer Michael Elliot, que é um perito soldado?
— Perdoe, lady Sarah, mas sobreviver na rua é um bom treinamento. E Cholly não é velho.

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Certamente parecia que sim a Sarah, já que levava as costas sempre encurvadas e a cabeça
permanentemente abaixada. Entretanto, além de varrer bem a rua e de sua relação com Notch e
os outros, Sarah sabia muito pouco sobre Cholly.
— O general virá apesar de tudo?
— É claro. A briga o entreteve, nada mais.
— Bem. — Notch mostrou com a cabeça o grupo de órfãos do outro lado da rua. — Se não
vier vão ficar decepcionados.
As outras crianças esperavam impacientes na calçada e olhavam através das janelas das lojas
situadas em ambos os lados de Cordiner's Hall. As meninas, com suas caras manchadas e seus
vestidos sujos, pareciam bonecas às que tivessem arrastado pelo barro sem nenhum cuidado.
Todas as capas estavam rasgadas ou mal remendadas. As calças eram muito curtas, as saias se
arrastavam úmidas e em farrapos pela rua. Alguns dos meninos maiores não tinham chapéu nem
boina de nenhum tipo que os protegesse do vento; à maioria gotejava o nariz e tinha as orelhas
avermelhadas.
Aquela injustiça despertou a ira de Sarah, que prometeu ir a todas as alfaiatarias desde
Grassmarket até Farley Cióse para conseguir vestimentas apropriadas para cada um dos órfãos. De
momento iam ter que conformar-se com os sapatos.
Olhou para Notch com carinho.
— Estão aqui todos seus amigos?
Ele deu um pontapé em uma pedra. A sola do sapato se moveu.
— Todos menos Left Odd. Por doze centavos conseguimos um trabalho de aprendiz com o
açougueiro de Niddrys's Wynd. A ideia de ir foi dele.
A maioria das vezes o termo aprendiz era um eufemismo para dizer escravo. Apoiando-se na
teoria de que Left Odd ia obter algo em troca, os órfãos tinham reunido com muita dificuldade o
dinheiro para conseguir ao menino um posto de trabalho. Já o tinham feito antes, colocando todas
suas economias em assuntos parecidos, frequentemente com resultados desastrosos.
Não obstante, Sarah conhecia o açougueiro de aves. O senhor Geddes citava as Escrituras e
todos os domingos à tarde alugava uma carruagem para sua pequena família. Para ficar tranquila
quanto ao bem-estar de Left Odd, Sarah prometeu ir conhecer a esposa do açougueiro.
— Espero que seu amigo esteja bem ali.
Notch meteu as mãos nos bolsos cheios de remendo do volumoso casaco que levava.
— Você já sabe que Left Odd não é dos que fazem travessuras. Vai sair desse açougue com o
grau de oficial. — Em voz baixa e vulnerável acrescentou—: prometeu nos trazer uma pluma de
faisão a cada um.
Nem sequer a expectativa de receber um presente despertou o entusiasmo de Notch em
relação ao posto de aprendiz de seu amigo. Sarah sabia que o menino tinha visto muita miséria e
experimentou muitos fracassos em seu afã por escapar da pobreza e a fome.
— Onde jantou ontem à noite? — Perguntou ela.
— Cholly nos conseguiu trabalho de arrancar forros para o fabricante de baús. A cozinheira
da pensão Moffat tinha algumas sobras e nos vendeu isso por dois centavos.

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Vender as sobras da cozinha era uma prática habitual e uma renda extra para os servos mais
afortunados. Aquele tipo de trabalho era muitíssimo melhor que dobrar as costas para tirar o
revestimento de tecido de baús velhos.
— Seguro que quando chegaram em casa — em qualquer lugar que estivessem, — a comida
já estava fria.
— Não, porque também nos vendeu umas brasas. Acendemos uma fogueira nos estábulos.
Foot conseguiu um balde de leite.
Falava da comida como se fosse um acontecimento, e certamente o era para um grupo de
crianças menores de doze anos. Nessa idade, o maior problema de Sarah era decidir qual seria o
próximo livro que leria.
Acrescentou os vendedores de mercearias à lista de pessoas às quais visitar em nome dos
órfãos.
— Poderia ter ido a mim para que os ajudasse.
Ele deu de ombros. Entretanto, sob a fachada de despreocupação, percebia-se um grande
orgulho.
— Estávamos muito longe.
— Ainda assim...
— Esquece, lady Sarah. Se nos alojássemos com você, todos esses estirados e essa velha
condessa iam começar a fazer comentários mal intencionados em maior velocidade que você
quando recita a lista dos reis da Escócia.
Os olhos dela se encheram de lágrimas ante tanta valentia. Os que se autoproclamavam
como a flor e nata de Edimburgo poderiam aprender uma lição de humanidade daquele menino.
— Logo melhorarão as coisas. —Ele dedicou a ela um estranho sorriso.
— Sim é, estaremos felizmente instalados no Reekit Cióse.
— Efetivamente.
Notch ficou de melhor humor e a olhou com olhos de menino travesso apesar de sua
aparência de dureza.
— É verdade que você alugou um pangaré e o levou ao general para que o montasse?
— O general já está chegando! — Gritou Sally.
Michael montava um elegante baio, o mesmo cavalo que ela admirou quando ele chegou a
Edimburgo. Neste momento, vestido com roupa de civil, Michael se parecia muito pouco ao
primeiro oficial da Guarda de Honra; até que o olhou nos olhos. Neles reconheceu a determinação
e a arrogância de um homem nascido para mandar e obrigado a fazer represálias.
Sarah se preparou.
junto a ele ia um cavalariço vestido com a libré de seda azul da Estalagem do Dragão. Pela
rua passou um homem empurrando uma carreta de lixeiro; o baio se moveu para um lado e logo
pareceu que ia encabritar-se, mas Michael o dominou sem problemas.
Notch colocou a boina.
— Com sua permissão, milady — murmurou, pondo-se a correr para Michael. — Bem-vindo,
general — Gritou, depois de saudar o cavalariço.

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Michael desmontou sem dignar-se a olhar Sarah, e entregou as rédeas ao cavalariço. Logo
manteve uma longa conversa com Notch, que indicou as crianças.
— Mas antes, general — disse Notch, — me fale dessa briga que teve com Cholly. Realmente
o chamou de covarde quando você o chamou de estúpido velho senil?
Michael apoiou uma mão no ombro do menino e o obrigou a caminhar para Sarah.
— Já falaremos disso depois. Me alegro em voltar a vê-la, lady Sarah.
A boa educação a obrigou a ignorar seu tom irônico.
— Digo o mesmo, senhor.
— Teve uma manhã agradável?
As boas intenções de Sarah se esfumaram.
— Foi bastante aborrecida.
— Como é isso possível, milady? — Perguntou Notch. — Cholly disse que esteve dando
voltas por todo Grassmarket procurando o pior pangaré possível.
— Deveríamos elogiar seu esforço, Notch — interveio Michael, — entretanto pelo que
entendi, os MacKenzie são famosos por sua habilidade para escolher o melhor do que seja.
O insulto velado impulsionou Sarah a dizer:
— Essa é uma das muitas qualidades excepcionais de meu clã.
— Espero descobri-las todas. — Os olhos de Michael se encheram de promessas sensuais.
Notch esticou o pescoço para olhá-lo.
— Está aborrecido com ela por essa brincadeira da égua?
— Não, aborrecido não.
Sabendo que o que Michael queria dizer era que estava mais que aborrecido, Sarah o olhou
nos olhos com atrevimento e sorriu.
Notch suspirou de alívio.
— Bem. O senhor MacCrumb diz que ficaria com ela embora não tivesse todos os dentes.
— O senhor MacCrumb é um homem de bom gosto.
— Nada disso. Não suportamos a ideia de vê-lo dançando ao redor de milady, mas suas
contribuições são muito generosas.
Sarah, que já tinha ouvido o bastante, cruzou as mãos.
— Falando de generosidade, pode me ajudar? Aqui não há degrau para montar.
— Eu o farei. — Notch ficou a quatro patas diante do cavalo. — Cobrarei-lhe um centavo.
— Notch vai ganhar um centavo — anunciou Foot.
A notícia se estendeu entre o grupo de crianças que olharam Sarah com ansiedade.
Michael se colocou ao lado do menino.
— Eu farei, moço.
Sabendo que um centavo era quantia suficiente para dar jantar aquela noite a todas as
crianças, e entendendo a razão pela qual Notch queria ganhar aquela quantia, Sarah dirigiu a
Michael um olhar penetrante.
— Estou segura que Notch pode fazê-lo. Pode me ajudar a manter o equilíbrio?

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Michael entendeu tudo no momento e lhe ofereceu o braço. Seus músculos pareciam de
aço. Ela descansou sobre ele todo seu peso e ele o aguentou sem esforço. Ao baixar mal roçou
Notch com o pé.
Quando Notch se levantou de um salto e sacudiu o pó das mãos, Michael o olhou com
expressão pensativa.
— Obrigada — disse Sarah, entregando ao menino um centavo. Ele o guardou.
— Já estamos preparados para comprar esses sapatos, general.
— Reúna as tropas, rapaz — assentiu Michael sem deixar de olhar para Sarah.
Notch pôs-se a correr pela rua gritando:
— Me escutem todos! Os que estejam aqui para conseguir sapatos, digam.
Gritos, uivos e uma avalanche de crianças foram a resposta. Reuniram-se em torno dele, até
que Michael ficou a seu lado e o separou dos outros.
Acercou-se de Notch e lhe falou com seriedade, mas Sarah não foi capaz de entender o que
estava dizendo. O moço o escutou com atenção sem deixar de passear o olhar entre seus amigos e
as portas do comércio que continuavam fechadas. No interior esperavam três sapateiros. A parte
superior das lojas era uma sala grande onde se reunia o grêmio de sapateiros para levar adiante o
negócio.
Michael apertou o ombro de Notch lhe dizendo uma palavra final de ânimo. O menino
assentiu energicamente, girou nos saltos e se aproximou de seus amigos. Levantou os braços e
lançou um potente assobio.
— Já basta de gritar. Formem uma fila aqui, começando por Foot e Peg. —Indicou o espaço
vazio que tinha na frente.
Michael se meteu no edifício e saiu pouco depois com um sapateiro ancião. A primeira a
entrar foi Peg, a maior das meninas.
Sentindo-se excluída, Sarah pediu ao cavalariço que fosse vigiar seu cavalo. Segurou a
incômoda cauda da saia de montar e se reuniu com Michael no interior do estabelecimento.
Um intenso aroma de graxa e couro impregnava o ar. Nos fundos da loja, os aprendizes —
com pregos aparecendo entre os lábios, — esgrimiam martelos e maços enquanto aprendiam o
negócio. Abaixado junto a um abajur, um menino de dentes tortos enfiava uma agulha para
costurar uns laços em um par de sapatilhas de seda.
— Peg quer umas botas resistentes — disse Michael a modo de explicação, — mas eu
acredito que ficarão melhor umas com botões.
Ainda não se dera conta de que a vida de Peg se desenvolvia na rua. Para ele Peg era uma
tranquila menina de doze anos vestida com roupa desprezada. Não podia reprová-lo por ser tão
generoso.
—Diga a ele, lady Sarah — suplicou a menina. — diga a ele que esses sapatos não servem
para andar entre a palha em Bruntsfield.
Sarah pegou um de cada e os comparou.

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Clã Mackenzie 03

— Estou de acordo que os de botões são elegantes — o entregou ao sapateiro, — mas Peg
necessita de botas. — Olhou Michael nos olhos e arqueou as sobrancelhas. — Pode ser que da
próxima vez lhe compremos uma com botões.
Ele entendeu.
— Nesse caso, botas para Peg.
Sarah se dedicou a observar, falando só quando Michael solicitava sua opinião. Ele parecia
estar contente sendo tão generoso, e ela desejou pedir que compartilhasse com ela o que sentia,
entretanto, não sabia como ia poder fazer e mantê-lo a distância ao mesmo tempo. Ao final os
nervos a obrigaram a sair dali.
Quando chegou a vez de Right Odd, este tirou Sally de cima dos ombros. Nada mais que pôr
o pé no chão, a menina começou a chorar e a tentar subir até seus braços. Cravou-lhe seus
diminutos dedos e seu rostinho angélico se contraiu de raiva. O xale rosa que Sarah lhe tinha
tecido somente dois meses antes, estava em farrapos e sujo. O vínculo especial que tinha com os
corpulentos irmãos Odd provinha de algo mais forte que o sangue. Sarah tinha perguntado a
Notch o motivo, mas ele se esquivou da pergunta. A lealdade obrigava a não falar do assunto e ela
o entendia. Até que ela mesma não se inteirou da verdade sobre seu nascimento, mal existiam
segredos entre Sarah e suas meio-irmãs.
A esposa do sapateiro saiu da loja com um pedaço de caramelo na mão e o manteve diante
da desconsolada menina.
Sally levantou a cabeça e a virou como se a tivessem esbofeteado.
— Não aceite caramelos de estranhos — resmungou Right Odd. — Calma Sally — a colocou
no quadril, — ninguém vai pôr uma mão em cima de você.
Sarah se encolheu por dentro ao pensar nos diferentes motivos para que uma adorável
menina se comportasse assim.
— Passe ela para cá, —disse Notch, estendendo os braços. — Vamos Sally, Notch vai cuidar
de você. Quer esperar aqui comigo enquanto Odd vai procurar seus elegantes sapatos novos?
O pranto se converteu em soluços e o olhou com cautela.
— Quando tivermos os novos sapatos iremos correr pela grama, quer que vamos agora?
Grossas lágrimas escorregaram pelas bochechas sujas da menina, deixando um atalho de
pele rosada.
— O general me deu esta coisa para que ninguém saia da fila — disse ele, mostrando a vara.
— Mas olhe ali — compôs uma cômica careta e agitou a vara em direção à fila de crianças que
seguiam esperando. — Parecem um grupo de turcos em disparada! Preciso alguém valente que
me ajude com eles. Quer me dar uma mão, Sally?
Ela soltou uma risadinha e se agarrou a ele.
Ele a levantou e a colocou nos ombros com um grunhido.
— Eu já sabia que iria resgatar Notch.
Ela arrebatou sua boina e golpeou-o na cabeça, lançando um alarido de risada.

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Clã Mackenzie 03

— Ah ah, canalhas! Nossa Sally é um capataz temível. — Agarrou-a com força pelas coxas e
percorreu toda a fila, relinchando e trotando como um cavalo. Right Odd se apressou a entrar na
loja.
O resto das crianças foram saudando Sally, até que um deles, de uns nove anos, tentou
agarrar a vara. Sally a pegou contra seu magro peito e sacudiu a cabeça com força, fazendo que
Notch estivesse a ponto de perder o equilíbrio.
— Já basta, Patrick — ordenou cravando os pés no chão. — Deixe que Sally se entretenha.
Sally açulou Notch como se fosse a princesa dos contos. Conforme foram percorrendo a
fileira de órfãos, foi tocando a todos com sua varinha mágica.
Michael saiu da loja e chamou Notch, que se aproximou a grandes pernadas com Sally
saltando sobre seus ombros.
—Você é o próximo — disse Michael, — e logo começaremos com os pequenos.
— E o que acontecerá com Sally? Os únicos que sabe como tratá-la somos Odd e eu. Prefiro
esperar.
— Vai agora. Estamos às ordens do sapateiro.
Michael arrancou à menina dos ombros de Notch, mas estremeceu ao ouvir seus gritos
ensurdecedores.
— Olhe! — Disse ele, sustentando-a com os braços estendidos. — Ali há um cavalo rosa.
Ela se deteve no meio de um grito, com as pernas pendurando, e olhou a seu redor.
—Onde?
— Ali. — A apoiou no quadril e mostrou um cavalo cinza pintalgado.
— É branco — replicou ela muito zangada.
— Sabe? Parece-me que me pegou, Sally. De que cor é meu cavalo?
— Vermelho.
Começaram a discutir sobre a cor e o tamanho de todos os cavalos que passavam pela rua,
de dois cães que brigavam por um osso, e inclusive de um meirinho vestido de escuro a quem Sally
qualificou de escaravelho.
Right Odd apareceu com um par de sapatos negros com fortes fivelas de madeira. Michael
lhe entregou a menina e logo se aproximou de Sarah com uma espécie de jactância masculina.
— Não esteve mal — disse, — para ser um Elliot mentiroso e conspirador.
Acreditava que gostava das crianças, e Sarah teve que reconhecer que era verdade.
— Sinto muito tê-lo insultado, mas não vi você vir correndo me agradecer por deixar de lado
a briga que tivemos.
Ele descreveu um círculo ao redor dela, procurando.
— Onde a colocou?
Esse homem era capaz de acabar com a paciência do santo Jó.
— Já basta, Michael.
— Pararei quando as rãs criarem pelo. — deteve-se e a olhou muito sério. — Você me
chama por meu nome e entretanto eu não posso fazer o mesmo.
— Tem algum outro título, além de general?

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— Sim, visconde de St. Andrews.


Sarah reviu a opinião que tinha dele e acrescentou a modéstia à crescente lista de
qualidades que possuía.
— Sério? —Ele pareceu desconcertado.
— Não, na realidade estou agasalhado em Cowgate North. —Ela não teve mais remédio que
começar a rir.
— Por que não o mencionou até agora?
— Porque não o perguntou.
Sarah executou sua melhor reverência, com a sensação de que a tinham posto em seu lugar.
— Mil perdões, lorde Michael.
— A verdade é que me concederam o título recentemente.
Ela recordou que esse dia ele tinha almoçado com lady Emily e soube a quem se devia essa
repentina ascensão na escala social. A conclusão a que chegou lhe resultou preocupante. Esperava
que não se colocasse do lado de sua mãe, porque a condessa de Glenforth corrompia tudo o que
tocava.
Como de costume, Sarah se interessava muito em saber o que ele opinava do assunto.
—Está contente?
Ele deu de ombros, mas pareceu a ela que gostava bastante da ideia.
— Vai ocupar um assento no Parlamento? — Henry não se deu ao incômodo de fazê-lo.
— Preferiria ocupar um lugar na Câmara dos Comuns.
Michael preferia escolher o caminho difícil e fazer frente a uma votação entre os cidadãos
com direito a voto. E além disso, consolava às meninas assustadas e arrebatava o senso comum
das mulheres incautas..
— Vai gostar de passar longas temporadas em Londres, enquanto durem as sessões?
Ele a olhou com receio.
— Ainda não ganhei.
Entretanto, Sarah estava disposta a apostar o dobro de seu dote de que ganharia.
— Se eu pudesse votar, votaria por você.
— Milady! — O sapateiro com avental apareceu à porta. — Necessitamos sua ajuda com os
menores.
Sarah deixou Michael na calçada, a contragosto. Ele sempre conseguia cercar conversação
com ela sem nenhum esforço e ela desfrutava tanto se o tema fosse agradável como se fosse
controvertido.
Mais tarde, quando a menor das crianças estivesse com seus sapatos novos, Sarah tinha a
esperança de continuar seu animado bate-papo com Michael.
Com tão alentadora ideia saiu da loja e descobriu apenas a égua na rua, com a sela de
amazona sobre o lombo fundo. O cavalo de Sarah, Michael e o resto dos órfãos tinham
desaparecido.
O curtidor entregou uma mensagem de Michael entre gargalhadas: se queria que ele
devolvesse o cavalo, tinha que segui-los até o edifício da alfândega.

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Clã Mackenzie 03

—Maldito desgraçado!
Michael se afastou bem a tempo. As luvas passaram roçando por sua cabeça.
— Não me chama caipira? — Levantou as mãos para proteger-se. —Acreditava que todos os
Elliot eram uns caipiras.
— E são, sobretudo quando se comportam como vulgares ladrões.
De pé na entrada do edifício em obras, Michael tossiu para ocultar uma risada.
— Nos desculpa, Notch?
Nem o aludido nem seus amigos se moveram. Sarah deu um golpezinho na coxa com a vara.
— Sim, por favor. Vou ensinar o grande rei dos brincalhões o que conseguiu com seus ardis.
— Se me der com essa vara, a coloco de barriga para baixo sobre meus joelhos.
— Antes terá que se arrastar até sua toca Elliot e obter a sua vara..
Notch passeou o olhar de um a outro, cheio de excitação.
— Você não vai bater em Lady Sarah, não é general?
Na ausência do duque de Ross, alguém tinha que pôr em seu lugar a aquela mulher e
Michael gostaria muito de fazer esse trabalho.
—Admito que é uma pena, Notch.
Michael agarrou Sarah pelo braço e a conduziu ao que ia ser a biblioteca.
— Não faça caso de seus gritos, moço, e tampe os ouvidos dos menores.
Assim que a porta se fechou os sentidos de Sarah se agudizaram. O aroma de mofo, gesso
úmido e madeira podre era acre e as marteladas nos pisos superiores ressoavam pelo teto. O pó
flutuava até o chão coberto de entulhos.
Michael se aproximou dela, caminhando sobre trapos e cristais quebrados.
— Surpreende-me que me insulte quando a única coisa que fiz foi te dar um pouco de seu
próprio remédio.
Ele tinha razão, mas ela não estava disposta a admitir.
— É um Elliot desumano. E deixa de me fulminar com o olhar! É exatamente igual a seu avô.
—Outra vez a tragédia Elliot! Tinha-me esquecido de que esteve convidada em Glenstone
Manor.
— Uma visita da qual me arrependo.
— Me diga uma coisa. Estava sofrendo outra decepção amorosa quando conheceu Henry?
Ela escolheu um balde amassado.
— Não foi o orgulho ferido o que me levou aos braços de seu irmão.
Ele se deixou cair sobre um barril de pregos.
— Henry diz que só o beijou uma vez. Admite que o resto das vezes a estava cortejando.
As outras vezes? Fazia que o tempo que tinha passado com Henry parecesse um noivado.
Seu primeiro impulso foi negá-lo, mas o assunto Henry sempre suscitava problemas entre eles. O
fato de que Michael tivesse doado aquele edifício e que compartilhasse com ela a preocupação
pelas crianças abandonadas, deveria delimitar a fronteira de sua associação com o perigoso e
encantador filho mais novo dos Elliot.

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Sarah revisou as janelas do lado leste da sala.


— Você acha que será suficiente colocar persianas ou cortinas nesta sala?
—Se quer evitar que apodreçam e que percam cor, terá que pôr as duas coisas. —
desabotoou a jaqueta e cruzou de braços. — por que estava tão impaciente por se casar?
— É evidente que não estou. — aproximou-se das prateleiras novas da parede. — Se
alegrará em saber que o livreiro de James Court doou quatro caixas de livros para esta sala.
— Outra vez mudando de assunto? Qualquer um te acusaria de ser volúvel, Sarah
MacKenzie.
— Qualquer um poderia ir para o inferno.
— Ou poderia ser um aliado, se me contasse a verdade. Como chegaram a se comprometer?
Não que ela temesse contar-lhe, mas antes que terminasse de explicar ele conseguiria que
lhe despisse a alma.
— Quer saber o que aconteceu entre Henry e eu? — Cada baile, cada abraço apaixonado,
cada suspiro. Não tinha ocorrido nenhuma dessas coisas. — Dirá-me você em troca qual é seu
temor mais profundo? — O olhar dele vacilou.
Ela o pegou, mas a alegria durou pouco.
— Nega ter proposto casamento a Henry? — Perguntou ele.
— Isso é injusto. — Sarah deu um chute no balde, que saiu ricocheteando pelo chão. —
Você tem que responder primeiro, ou se conformar com a versão da história que deu seu irmão.
— Você gostaria de saber o que eu acredito? — Disse ele com astúcia.
Ela ficou a olhar pela janela.
— Não me interessa. Ah, aí estão Rose e Turnbull! Vamos nos reunir com eles?
— É uma teimosa, Sarah MacKenzie — sussurrou Michael, agarrando-a pelo braço.
E ele estava agindo de acordo com uma informação antiga.
— Os homens inteligentes são encantadores. Deixe de franzir o cenho ou começarei a
chamá-lo de Hamish Elliot. Não era famoso por cobrir-se com peles de animais e lançar-se sobre
sua presa? — Livrou-se de sua mão e abriu a porta de um puxão.
Ele a segurou, obrigou-a a retroceder e fechou a porta de repente. Do teto caiu uma chuva
de gesso.
— E suponho que os MacKenzie vestiam roupa interior de castor e bebiam o chá em conchas
de madrepérola.
A intensidade de sua ira era evidente; Sarah pôs distância entre eles.
— Era de esperar que dissesse algo assim.
— Pode remediá-lo se me diz com que Sarah MacKenzie estou falando.
Ela abriu caminho entre os montes de serragem.
— Não sei o que quer dizer.
— Pois espera que vou te dizer, a Sarah que vi em Cordiner's Hall era uma mulher que
transbordava amor e esperança por um grupo de crianças de rua. É a mulher que se derrete em
meus braços e me beija como se acabasse de encontrar o paraíso.
As palavras caíram sobre ela, que começou a perder a compostura.

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— Entretanto existe outra Sarah que espreita atrás desses preciosos olhos azuis. É
igualmente encantadora e tão preparada como um erudito de Oxford. É capaz de dar respostas
inteligentes com a habilidade da pessoa mais experimentada da Corte. — Deslizou o olhar pelo
ombro dela. — Essa Sarah cospe fogo ante a mais leve menção de meu sobrenome.
A ira dela perdeu intensidade.
— Nesse caso não o pronuncie.
— Isso é impossível, posto que eu também sou parte do clã Elliot. Suponha que eu tivesse
inimizade com o duque de Ross e que você me amasse, renegaria sua ascendência MacKenzie?
Ela duvidou ao escutar a palavra amor. Entretanto a resposta era fácil por dois motivos. Deu-
lhe a única que podia dar naquela situação.
—Sim.
Ele a prendeu com o olhar.
—A que parte da pergunta está respondendo, Sarah? — Michael, que era muito hábil para
detectar as ambiguidades, transformou-se em um predador, em um homem à caça de sua mulher.
Sarah saiu pela tangente, sentindo-se extremamente feminina.
— A mais importante. E acreditava que fosse me chamar de lady Sarah.
A expressão dos olhos dele se transformou em um olhar de luxúria.
— Mudei de ideia. Não quero que se comporte como uma dama.
Sarah deixou de olhá-lo, fazendo um esforço por parecer distante.
— Ah, sim? E como deveria me comportar?
— Com total abandono.
Sua face ardeu e seu coração disparou.
— Sem inibições. —Ela engoliu em seco.
— Sem dúvidas.
Seus ouvidos começaram a zumbir.
— Eu a quero nua e desinibida na cama, Sarah.
— Não. — A negação entupiu sua garganta.
— Sim, bom...
Fez com que se virasse e a atraiu para seus braços. Aproximou seus lábios aos dela, detendo-
se antes que se tocassem. O convite que se lia em seu olhar a manteve cativa.
— Hoje, enquanto eu sustentava Sally nos braços, esteve me observando. A expressão de
seus olhos fez com que eu desejasse beijá-la. Recorda o que estava pensando?
A verdade escapou de seus lábios com um suspiro.
—Sim.
—Bem.
Atraiu-a para si com a suavidade e a confiança que ela já conhecia, e pressionou sua boca
contra a de Sarah. Ela se sentiu engolida por sua força, protegida e excitada de uma vez. Sua
intensa masculinidade despertou a parte desavergonhada que ele acreditava que havia nela. Suas
mãos a acariciavam por toda parte, sua boca a devorava e, quando o último vestígio de resistência

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se rompeu, Sarah não foi capaz de recordar nenhuma só razão para negar o amor que florescia em
seu coração.
Quando ele retrocedeu, seu rosto revelou uma intensidade de sentimentos e uma decisão
aterradoras. Ela empreendeu uma covarde retirada, desejando poder dizer algo inteligente.
—Do que estávamos falando?
—Acredito recordar que do nível de sua luxúria.
A vulgaridade do comentário devolveu as forças dela.
— Não tenho nada disso, e além disso estava falando de odiar os MacKenzie e especulava
sobre estar apaixonado por mim.
Ele observou que seu rosto e pescoço estavam avermelhados.
— Só para te desconcertá-la.
— Por quê?
— Porque quando está confusa, minha querida sabichona, se esquece de que prometeu me
odiar.
Sarah recuperou sua energia.
— Tenho um bom motivo — afirmou apertando os punhos. — Disse que os Elliot eram uns
caipiras.
— Eu não nego.
— Já ouvi, mas, onde estão toda essa razão e experiência que passou anos procurando nos
livros? Onde se colocou a Sarah MacKenzie desafiante que mostra sua brilhante inteligência e seu
engenho e os leva como medalhas à honra?
— Eu me referia a sua atitude feudal. Você fala de minha desgraça como se fosse um
passatempo.
— Passatempo? Passatempo! — Michael elevou os braços ao céu. — O que você
empreendeu é uma condenada guerra.
A cólera dele disparou a dela.
— O que está em jogo é minha maldita liberdade. Tenho que me defender.
Ele abriu a porta de um puxão.
— Nesse caso, espero que você e sua liberdade vivam felizes para sempre.
— Aonde vai?
— A Fife. Depois de discutir com você estou desejando extrair o carvão com minhas próprias
mãos.
Ela o seguiu ao corredor, surpreendida por sua confissão.
— Quando voltará?
— Quando prometer cantar louvores a meu sobrenome.
Estava gritando, mas ela sabia que sua cólera não era tão intensa, já que não tinha os
ombros tão rígidos e sua forma de andar possuía de novo a conhecida jactância.
— Quando isso acontecer, você já será velho — respondeu.
Ele continuou andando pelo salão sem deter-se.

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— Então rezarei para que aceite em seu coração um ancião de barba cinza — disse com uma
risada falsa.
Por mais que odiasse a si mesma por isso, Sarah sabia que ia sentir saudades dele.
— Mas voltará?
Ele se virou, seu corpo emoldurado pela luz do sol e a expressão de sua face entre as
sombras.
— Sim. E quando o fizer espero que arrume um encontro entre seu pai e eu.
A autoridade de sua voz a inflamou como o fogo ao petróleo.
— Por que?
— Essa é uma pergunta óbvia, Sarah, e além disso já a respondi. Vou reclamar o dote para
mim mesmo. Um dos Elliot tem que assinar a paz com um dos MacKenzie.
Ela ficou paralisada e teve dificuldades para falar.
— Não deveria fazer as pazes comigo primeiro?
A maliciosa risada dele ressoou no estreito corredor.
— Você e eu faremos mais que isso, se, enquanto isso, não rompamos a alma ou o pescoço
um do outro.
— Não penso escrever a meu pai.
— Então tentarei encontrá-lo eu — declarou Michael com muita amabilidade. — E como
recompensa pelo atraso, receberei um retrato seu muito interessante.
O nu de Eva. O ultimato de Mary.
— Se minha irmã for tão malvada em fazer isso, exijo que me entregue esse quadro.
— Pode estar segura de que assim o farei. — tirou o chapéu e realizou uma mesura. —
Algum dia.
Deu meia volta, saiu à luz do sol, montou em seu cavalo e se afastou cavalgando.

CAPÍTULO 10

Depois de ter passado quinze dias em Fife, Michael entrou em Edimburgo com um monte de
problemas e muito poucas soluções. Quando a carruagem cruzou Queensgate, todos os sons e
aromas desagradáveis da cidade lhe deram as boas vindas. Quando uma procissão de tílburis
iguais interrompeu a circulação de High Street, percebeu que havia sentido falta daquele lugar.
Sentia falta dos aristocratas de roupa elegante que caminhavam cinco passos adiante dos criados
com roupa usual. Sentia falta dos sinos da Igreja dando as horas. Sentia falta das discussões entre
os ariscos comerciantes e os lentos carreteiros.
E sentia falta de Sarah. Ela era a primeira coisa em que pensava cada manhã e a última que
recordava cada noite.
Um par de carros, carregados até os batentes de carvão, avançavam com dificuldade em um
cruzamento. A estadia em Fife foi algo mais que uma simples olhada à propriedade familiar;
significou uma volta ao passado. Em tão somente um dia o idioma de sua infância se tornou tão
familiar ao ouvido como o inglês.

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Os únicos que pareceram desconhecidos foram os problemas. A deterioração que havia


observado quando jovem se converteu em ruína. As antigas máquinas consumiam mais carvão do
que extraíam. Os carrinhos de mão oxidados deixavam escapar o carvão que transportavam à
superfície. Os baldes cheios de buracos esgotavam pouca água. Os mineiros, obrigados a
permanecer com os tornozelos metidos na água gelada, trabalhavam a contragosto.
Os mineiros descontentes faziam com que suas esposas se sentissem desgraçadas. Um clero
empobrecido era de pouca ajuda entre tanta pobreza. Entretanto, entre a comunidade mineira
não havia nenhuma criança abandonada nem nenhuma Sarah MacKenzie. Reviveu mentalmente
seu último encontro com ela e como riram.
Para sua surpresa, a próxima vez que a viu, estava deitada languidamente no Jardim do Éden
e seus olhos brilhavam de paixão.

Na biblioteca recém restaurada da alfândega, Sarah deslizou a escada até o centro da parede
coberta de prateleiras. O mecanismo rangeu.
— Avisarei ao carpinteiro — disse Rose, entregando um monte de livros encadernados em
pele.
Sarah se encarregou do último dos vinte e quatro volumes da História do Antigo Parlamento,
de John Rushford, e o colocou junto à Introdução à Ciência Elementar, de lorde Edward Napier.
No centro da sala de teto alto, viam-se, uniformemente repartidas, uma mescla de mesas e
cadeiras de diferentes estilos. O antigo globo terrestre ocupava um lugar entre as janelas, as quais
estavam abertas para aproveitar o ensolarado dia de primavera. Outro mais novo, com os nomes
de todos os oceanos e o continente de Nova Holanda com sua famosa Botany Bay, ostentava um
lugar de honra na sala-de-aula de cima. Este globo, junto com dinheiro suficiente para comprar
braseiros para todas as salas, era presente da duquesa de Ross.
Sarah tinha enviado a sua madrasta uma nota de agradecimento pelos presentes, mas não
era isso o que Juliet Mackenzie desejava. Suplicou a Sarah que enviasse a Lachlan MacKenzie uma
carta de reconciliação. Sarah não podia. Ainda não.
— Lady Sarah! — A cabeça e os ombros de Sally apareceram no oco da janela. —O general
veio para casa. — A menina levantou dois dedos. — Vem com cinco pessoas.
— Com três — disse uma voz grave de baixo.
— Três pessoas. — A menina fechou a mão e levantou um só dedo. — Há três pessoas com o
general.
Henry? Sarah apertou os dentes. Acabaria enfrentando-o, mas primeiro tinha que aceitar o
que sentia por seu irmão. Só de pensar em voltar a ver Michael tinha vontade de pular e seu
coração se enchia de alegria.
— Com quem veio?
No batente da janela apareceram mãos sujas de adolescente e Sally subiu mais quando Right
Odd levantou.
— Não são daqui — disse quando seu nariz e sua testa ficaram à vista. —Por seu aspecto
parece que vêm do campo. E também veio Turnbull.

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— Pergunto-me quem serão os outros dois. — Rose recolheu a caixa de livros vazia. — Vou
ver?
— Iremos as duas. Estou segura de que lorde Michael vai querer fazer um monte de
perguntas.
Sally e Right Odd desapareceram de vista. Rose revirou os olhos.
— Quando ele ver o que você fez, vai se surpreender.
Tinha feito muito progresso. O dormitório das crianças tinha camas suficientes para todos,
com colchões novos e lençóis velhos, mas limpos. Todas as salas dispunham de um abajur e uma
caixa de fósforos, e o barril de azeite do porão mal estava usado.
Os sonoros passos de Peg ressoaram pelo corredor.
— Estão saindo da carruagem, milady — gritou.
Sarah se apressou a sair, depois de sacudir o pó das mãos e ajeitar a saia do vestido.
Michael estava dizendo algo ao chofer. Turnbull permanecia de pé junto a um homem que
ajudava uma mulher a descer da carruagem.
— Lady Sarah — saudou Michael aproximando-se. — Apresento John e Helen Lindsay,
velhos amigos de Fife.
O casal, com mais de quarenta anos, mas magros e com bom aspecto, permanecia de pé
ombro a ombro. Ambos estavam bem vestidos, ela com um traje de lã azul e ele com um terno de
lã de estilo pároco de cor marrom. O cabelo dela se tornou branco como a neve muito cedo,
dando a impressão de que era a mais velha do casal, mas era uma impressão enganosa. O de mais
idade era o marido e ela parecia estar muito orgulhosa de ser sua esposa. A mulher levava um
ramalhete de urze nos braços.
— Estou encantada de conhecê-la, lady Sarah. Estas flores são para você. As primeiras do
ano. — Olhou com cautela a seu marido. — Mantivemo-las na água todo o tempo.
John Lindsay franziu o cenho.
— Para John foi um aborrecimento — disse Michael.
— Obrigada. —Sarah se encarregou do cheiroso ramo e enterrou o nariz nele. Recordou sua
casa, as Highlands e a família que não era realmente dela. Conteve a melancolia e olhou para
Michael. Sua atitude tranquila a levou a dizer a primeira coisa que lhe ocorreu. — Também foi um
aborrecimento para você?
— Absolutamente. Como disse a John, vale a pena o trabalho para ver um sorriso na face de
uma mulher. — Seu sorriso era muito atraente.
— Trabalho? — Perguntou.
— Nada disso — insistiu Helen. — E se qualquer um dos homens presentes se lembrar de
algo que sua mãe lhes ensinou, não voltará a dizer que as mulheres são um incômodo.
A atenção de John passou dos batentes das altas janelas ao chão impecavelmente varrido,
mas sua boca se curvou em um sorriso.
Michael riu.
— Vamos, amigos, entrem para ver seu novo lar.
Seu lar? Isso era novo para Sarah.

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— Os Lindsey são órfãos? — Perguntou, olhando Michael nos olhos.


Turnbull soltou uma gargalhada. John riu. Helen espirrou para dissimular sua diversão.
Michael tirou as luvas sem sorrir e as entregou a Turnbull, que as segurou contra seu peito.
— Se desbotar pagarei com a mesma moeda — respondeu ele, se aproximando de Sarah e
esfregando as mãos.
Completamente desarmada pelo duplo sentido do comentário, Sarah virou e se dirigiu
diretamente a Rose, que retrocedeu de um salto.
O ar se impregnou com a fragrância da urze esmagada. O aroma levou Sarah a prometer em
silêncio que manteria a guarda alta.
Entregou as flores a Rose e logo mudou de ideia.
— Não, espera. Vou pô-las em água. Michael vai apresentar os Lindsey.
Michael a viu ir, pensando que ia explodir de felicidade. Ela o convertia no mais humilde dos
apaixonados, mas também lhe inspirava uma coragem que suspeitava que ia necessitar nesse
momento. O pensamento mais importante que vinha à mente era que ela sentiu sua falta e que
isso a aturdia até o ponto de agir com estupidez.
Aleluia!

— Maldito estúpido! — Amaldiçoou Sarah. Segurou com força as tesouras e foi cortando os
caules da urze.
Michael Elliot respondia a cada palavra que ela pronunciava com a velocidade de um gato
perseguindo um camundongo, mas se pensava continuar com essa autoritária forma de
comportar-se, ela se encarregaria de fazer com que se arrependesse.
Colocou parte da urze em um vaso de cristal com uma tranquilidade que contradizia as
emoções que a consumiam por dentro.
— Mostrei-lhes os aposentos grandes de cima — disse Rose entrando na habitação. — Os
que estão em frente ao estábulo.
— Por que os trouxe aqui?
— Queriam vir para Auld Reekie. O filho é fabricante de cadeiras no grêmio de carpinteiros.
A nora está grávida de seu primeiro neto. Helen está convencida de que vai ser uma menina.
— Não demorou nada em inteirar-se de tudo — observou Sarah.
— Helen provém do campo e é tão amável como um escocês de Tain. Lorde Michael se
inteirou de que queriam vir viver aqui.
Sarah estava tão concentrada em trocar sarcasmos com Michael Elliot que perdeu a
oportunidade de perguntar por que os Lindsey estavam ali. Entretanto, abordar o tema na
presença dos interessados seria uma grosseria.
— Vão ficar — admitiu Sarah.
— Por quê?
— Não sei, mas vou descobrir.
Sarah encontrou Michael sozinho na biblioteca, examinando as novas estantes.
— É uma sala muito bem desenhada, Sarah.

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— Obrigada.
— Conseguiu que o encadernador mudasse de ideia.
— O quê?
— Disse que tinha prometido umas quantas caixas de livros, mas aqui há mais.
— Em Edimburgo há mais de um encadernador. De onde conhece os Lindsey?
— Criei-me em Fife e eles são dali.
— E quem são exatamente?
— John é carreteiro, mas em Pittenweem dizem que é melhor como pai. Helen adota até
mesmo às crias de ganso. Eles dois se encarregarão de cuidar dos órfãos.
Sarah planejava cuidar deles ela mesma; o orfanato era seu sonho. Entretanto, era Michael
quem tinha a bolsa do dinheiro e, a julgar pelo tom definitivo de sua voz, tinha decidido limitar a
participação de Sarah.
Tinha que convencê-lo de outra forma.
— Serei necessária para dar aula e... e para um monte de coisas mais. — O medo e os nervos
a levaram a olhar para as unhas.
Ele apoiou o quadril na borda de uma mesa e a observou.
— Os Lindsey viverão aqui com os órfãos, que necessitam de uma mulher que limpe e
prepare a comida. Ocupará-se das feridas e das contusões das crianças. Os Lindsey os ajudarão a
lavar o cabelo e secarão suas lágrimas.
Sarah tinha dirigido essas mesmas palavras ao prefeito Fordyce durante o jantar na
Estalagem do Dragão. Michael recordava. Sentia-se muito lisonjeada.
— Helen fará com que seus pesadelos se tornem em sonhos agradáveis e você encherá o
cérebro deles de conhecimentos e os defenderá até a morte.
— Sim, com todas minhas forças.
— Por quê? Porque poderia ter sido um deles, ou porque é um deles?
Nesse dia o encanto de Michael estava bastante limitado.
— O que é que isso quer dizer?
Ele bateu no espaço vazio da mesa, convidando-a a sentar-se a seu lado.
— Você vem de uma família cuja lealdade deixa em ridículo a dos Hannover, e entretanto
não lhes escreve e eles não vêm vê-la.
Ela cruzou a sala e se sentou o mais longe possível dele.
— Eles têm seus próprios problemas.
— Acredito que queria se casar com Henry para poder viver em Edimburgo.
— Já começamos outra vez com isso?
— Sente-se parte de Auld Reekie porque nasceu aqui.
Em certos aspectos, e sobretudo por sua relação com o orfanato, Sarah tinha a sensação que
seu lugar estava em Edimburgo. Não obstante, ainda não se sentia o bastante a vontade na cidade
para visitar o túmulo de sua mãe. Entretanto, o fato de que ele tentasse surrupiar a informação,
levou-a a agir com obstinação.
— Isso não tem nem pé nem cabeça. Poderia ter vindo aqui sozinha.

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— Mas então não sabia. Suspeito que é mais atrevida agora que quando estava na casa de
seu pai, e muito mais do que quando chegou aqui.
Sarah não pensava dizer a ele se estava certo ou não.
— Arrumei-me bem em Edimburgo.
— Exatamente, e isso a emociona muito. Não esperava viver aqui sendo uma mulher
solteira.
Muito emocionada? Como se atrevia?
— Asseguro que a vaidade não teve nada que ver com isso.
— Estou de acordo. Digamos melhor que está orgulhosa do que conseguiu. Está tão claro
como a água. Agora me diga por que este edifício tem o telhado de ardósia.
Ela recebeu a mudança de tema com agrado.
— Não tive escolha. A junta de grêmios exige que os tetos sejam assim por medo de outro
incêndio. Foi caro.
Michael não deixou de perceber sua tentativa de mudar de assunto. Esperou com ansiedade
a entretida conversa que estava a ponto de ocorrer.
— Não se interessa saber quanto custou?
Ele se levantou e se aproximou um pouco dela.
— Esbanjou o dinheiro?
— Jamais esbanjei um só xelim.
— Comparou preços?
Ela deu uma olhada para a porta.
Ele examinou o abajur de pé.
Decidindo com evidente satisfação que ele ia manter-se a distância, Sarah voltou a sentar-se
na cadeira.
— Pedi preço a três artesãos, sem que nenhum deles soubesse.
Ele já sabia qual seria sua resposta, mas queria voltar a ver esse orgulho que tinha. Passou
na frente da lareira, aproximando-se um pouco mais. Junto à lareira uma peneira estava secando
uma pasta para converter a polpa de árvore em papel. Fez girar o globo terrestre.
— Qual contratou?
— O que deu um preço intermediário.
— Bem feito. — Michael deteve o globo e tocou a Índia com o indicador. — O que aconteceu
durante a minha ausência?
— Tivemos algum problema com o açougueiro que tinha Left Odd como aprendiz. Falei com
o magistrado, que impôs uma multa ao senhor Geddes — o açougueiro, — e nos devolveu o
menino.
Ele parou junto a uma mesinha sobre a qual havia uma caixa de cortiças para escrever e uma
vela para queimá-las.
— Comportou-se mal com o garoto?
— Sim — Sarah se revolveu na cadeira, esquecendo a necessidade de encontrar uma via de
escapamento. — Geddes não proporcionou uma cama a ele e dava-lhe comida em mal estado.

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Ele chegou até a mesa diante da qual ela estava sentada em quatro pequenos passos.
— Como se encontra agora?
— Bem, exceto por sua afeição pelas aves.
— Já não quer matar frangos?
— Duvido que o tenha feito alguma vez. A verdade é que agora é uma bênção para seu
irmão. Ambos repartem o trabalho de cuidar de Sally.
Michael recordou o momento que passou com a menina em Cordiner's Hall.
— Uma boa tarefa.
Sarah ficou em pé, olhou para a porta e percebeu que não tinha via de escape.
Michael tirou a bolsa de seus caramelos preferidos e a ofereceu.
— Essa é a razão de que Notch e outros vivessem nas ruas? — Perguntou enquanto ela se
aproximava. — É frequente que se maltrate os aprendizes?
— Sim — Sarah colocou a mão na bolsa. — A culpa é dos empregadores que tentam
aproveitar-se deles. Se os meninos não tiverem ninguém que se preocupem por eles, seguirão
maltratando-os.
Michael percebeu que a ferida do polegar dela tinha se curado sem deixar cicatriz.
— Apresentarei-me ao chefe dos grêmios e insistirei em que eles mesmo se controlem.
— Isso é o que eu pensava fazer. — Sarah mordeu o caramelo e lambeu o açúcar dos dedos.
Michael babava ante o gesto inocentemente provocador.
— Não é possível que, sob a tutela de John Lindsey, acabem todos convertidos em
carreteiros.
— Duvido que Sally tenha aptidões para isso. — A resposta de Sarah foi sarcástica, o que
despertou em Michael a vontade de provocá-la.
— Alguém devia ter arrancado os cardos que tomou no desjejum esta manhã — disse.
Ela ergueu a cabeça com olhos cintilantes.
— Você é um arrogante.
Ele pegou outro caramelo da bolsa.
— O que acontece é que não está acostumada que um homem a deixe sem palavras.
Sarah soltava fumaça. Sem um assunto neutro que falar não havia margem para o engano na
resposta, sobretudo quando se tratava de temas pessoais que eram os que interessavam. Michael
tinha cortado sua saída, mas tanto fazia. Uma vez descoberto seu plano o único que ela tinha que
fazer era neutralizá-lo.
— Não fiquei sem fala. Como vão as minas de carvão?
— A maioria delas deixaram que produzir por culpa dos impostos à exportação e por
diferentes causas.
Ela aproveitou a pausa.
— E o que vai fazer?
— Para que voltem a ser rentáveis terei que investir uma boa quantidade de dinheiro,
comprar maquinaria nova e construir navios de transporte maiores.
— Mas continuará tendo que pagar os impostos, que são muito elevados.

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— Sim, mas o traslado do carvão será mais fácil. A isso teria que acrescentar que o porão dos
navios terá maior capacidade e necessitará menos homens para transportá-lo.
A habilidade de Michael para resolver os problemas era um bom augúrio para os órfãos que
tinha aceitado tutelar. Ela se encarregaria logo mais de recordá-lo de que tinha prometido dar aula
de história mundial a eles, no momento estava mais interessada em expressar sua opinião.
— O Parlamento deveria legislar melhor. Os ricos deveriam assumir uma maior carga
tributária.
— Vamos passo a passo, Sarah. Não acredite que os donos das minas estão se aproveitando
da situação.
— Há quem pense que um mineiro bom e trabalhador pode ganhar dezoito xelins por
semana.
— Como sabe isso?
— Uma vez, jantando no Trotter's, os cavalheiros do reservado do lado passaram toda a
noite falando do tema em voz alta.
Ele brincou com a bolsa de caramelos, mas tinha a mente em outra parte.
— Quando foi isso?
Ao ouvir seu tom despreocupado, ela respondeu com cautela:
— Nos bons tempos.
— Antes de conhecer os Elliot.
— Depois.
— Henry a levou ali antes do compromisso.
— Sim.
— E você passou a tarde escutando a conversa de outras pessoas?
— Isso. A capacidade de seu irmão para falar de coisas interessantes deixa muito a desejar.
— Nesse caso, por que concordou em se casar com ele?
Foi como se dissesse cheque mate, o que despertou rapidamente a cólera de Sarah. Nesse
momento não gostaria de falar de Henry; os assuntos financeiros do orfanato exigiam toda sua
atenção.
— O que vai fazer a respeito às minas e onde vai encontrar financiamento? — Perguntou,
surpreendendo-o.
—Ainda não decidi.
Tampouco ele estava disposto a revelar de onde ia tirar o dinheiro para modernizar a
propriedade dos Elliot. Como a maioria dos homens acreditava-a incapaz de entender algo assim.
— Pode ser que tenha subestimado ao calcular o que o orfanato vai necessitar. O gasto do
telhado foi imprevisto e a contribuição dos vendedores de comestíveis muito pouca— declarou
ela, cruzando os dedos.
— Helen gostou muito do pátio de ervas. Fala em plantar uma horta ali.
— Isso eu tinha pensado, mas o dono também gosta de seu terreno. Só aceita se plantarmos
tabaco e entregarmos a colheita, e um terreno afastado do edifício da alfândega não seria prático.
— Chegaremos a um acerto. Escreveu para seu pai?

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Ela se levantou e dirigiu-lhe seu melhor olhar de desprezo, mas pela expressão dos olhos
dele soube que já conhecia a resposta. Sentiu-se humilhada. Mary tinha cumprido sua ameaça.
— Onde está o retrato?
— Em um lugar secreto.
Sarah, nua para que ele a visse. Ou melhor dizendo, o rosto de Sarah no corpo nu de outra
mulher. Em qualquer caso o que isso implicava era uma afronta para seu senso da decência.
— Não pode considerá-lo seu.
Ele a olhou com expressão faminta.
— Claro que posso. Mary me enviou isso expressamente, sem pensar em gastos, já que veio
custodiado pelo conde de Wiltshire em pessoa, que voltou para Londres assim que eu me
encarreguei do presente.
— O conde o viu? Alguém o viu?
— Não sou tão moderno para permitir tal coisa, Sarah MacKenzie.
Ela se sentiu verdadeiramente provinciana, mas também tinha curiosidade. Relaxou ao
pensar que ele não tinha nenhum desejo de mostrá-lo a ninguém.
— Parece-se comigo?
— As sardas são intrigantes, se tivermos em conta onde estão.
— Não — foi o único que ela conseguiu dizer.
— Não? — Perguntou ele timidamente. — Quer dizer que não tem sardas ou que não é
possível que Mary seja tão malvada?
Ela tinha a sensação de estar diante de um menino incorrigível.
— Pintou-me com sardas no corpo? — Perguntou lenta e concisamente.
— Sim.
— Vou matá-la.
— Disso estou certo, sobretudo quando vir a cicatriz.
Sarah deu um murro na mesa.
— Também me pôs uma cicatriz?
— Uma bastante intrigante. — Deu um passo para ela e tocou-a na têmpora. — Começa aqui
— foi baixando o dedo pela bochecha e a mandíbula de Sarah, até a sensível pele do pescoço, —
continua por aqui...
Ela afastou a mão com uma palmada, detendo o sensual percurso.
— Até onde? Onde termina?
— Isso só um marido pode dizer a sua esposa — respondeu ele, com uma falsa expressão
ofendida que lhe dava o aspecto de um descarado.
— O demônio tem sensibilidade — cuspiu ela. — Até onde chega a cicatriz?
Ele sacudiu a cabeça devagar.
—Termina em um lugar estratégico, e não vou mencionar nenhuma parte do corpo em
concreto, na presença de uma virgem.
Uma fúria assassina se apoderou de Sarah.
— Vou proclamar aos quatro ventos todos os segredos de Mary desde os muros de Tain.

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— E por que não da Ponte de Londres? Ali é onde se encontram seus caluniadores.
Sim, mas o infame retrato estava em Edimburgo.
— Vai me entregar esse quadro.
— Quando tiver comprovado que quem o substitui em minha cama é a mulher autêntica.
Sarah ia pegar a pintura mesmo que tivesse que disfarçar-se de ladrão e entrar às
escondidas na Estalagem do Dragão.
— Dorme com o retrato?
— Só quando não tenho o original.
— Só um Elliot seria capaz de dizer algo tão vulgar.
— Sim, bom... — Franziu os lábios em uma desculpa exagerada e pouco convincente. —
Enquanto continuar me mantendo a distância por culpa do que outros fazem, me olhará com
desconfiança. Até um rufião se tornaria louco se o tratassem assim. E eu não sou, Sarah.
Esse raciocínio carecia de base e Sarah ficaria encantada em demonstrá-lo.
— Além do tema da maldade de Mary MacKenzie, tampouco estamos de acordo em um
assunto que é muito importante para mim.
— Sobre se minha família deveria ou não ter seu dote.
— Exato.
— Ainda não perguntou qual minha opinião.
— Qual sua opinião? — Ela riu. — É evidente que acredita que lhes pertence.
— Não. O que eu acredito é que pertence a seu marido.
A natureza independente de Sarah se rebelou.
— Pertence a mim. Lachlan MacKenzie sabia que eu não ia esbanjar o dinheiro. Por isso me
entregou.
Sarah percebeu que Michael não estava convencido pela expressão de seus olhos. Preparou-
se para o que ele estava a ponto de dizer para rebatê-la.
— Seu pai duvidava, e com razão, de que meu irmão fosse um marido adequado para você e
que você fosse capaz de ver que era uma má escolha.
Seria certo isso? Sarah foi forçada a admitir que provavelmente fosse. Entretanto isso não
dava direito a Michael de exigir o dote de Sarah em seu primeiro encontro.
— Se não está de acordo com sua família, então por que se interessa por uma mulher a qual
é evidente que desprezam?
O penetrante olhar que lhe dirigiu fez com que ela se ruborizasse.
— Boa observação, Sarah MacKenzie — disse ele com muita dramaticidade. — Pensava que
estava perdendo seus dotes de observação, mas já vejo que não.
Pode ser que Michael Elliot fosse capaz de converter uma ameaça de morte em uma
insinuação, mas cometeu o engano de menosprezar os MacKenzie.
Sarah recorreu à resposta que tinha preparada.
— Pegue sua condescendência e coloque onde caiba. Seria incapaz de reconhecer um
elefante embora o tivesse diante de seu nariz de Elliot.
Aquilo deu resultado, a julgar pela expressão de assombro de Michael.

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— Por que me dá a sensação de que esta briga tem muito pouco a ver com Henry Elliot ou
com o dote? — Perguntou ele por fim.
— Porque é um homem, e como tal crê que suas opiniões são a missa. Os de sua espécie
procuram inimigos e você declara a guerra em nome do orgulho ferido.
— Ao menos os homens não brigam por insinuações desconjuradas. Nem guardamos rancor
durante muito tempo aos de nossa espécie por algo que disseram quando os ânimos estavam
esquentados.
— Faz com que as mulheres pareçam superficiais.
— A maioria são, porque nunca tiveram acesso aos assuntos importantes.
— Assuntos como a guerra, a conquista e as armas?
Ao ver que sua honra estava sob suspeita, Michael ficou agressivo.
— O poder é o que domina o mundo.
— Um mundo que vocês, os homens, governaram mal e a base de disputas.
— Disputas? — Estava tão nervoso que começou a passear em círculos. — Eu diria que a
perda das colônias americanas foi algo mais que uma disputa.
De modo que pensava vencê-la com um de seus “assuntos importantes”. Sarah se lançou de
cabeça ao debate.
— A princípio não.
— Foi para quebrar a lei.
— Uma lei originada por uma disputa.
— É necessário ter leis.
— Leis justas.
Ele franziu o cenho e sacudiu a cabeça, para clarear as ideias.
— Acredita que deveríamos ter permitido que as colônias se tornassem independentes?
— Acredito que deveríamos ter deixado que prosperassem.
— Como prosperassem? Que raciocínio é esse?
Simples lógica, esteve a ponto de dizer ela, entretanto sabia o que ia responder ele.
— Eles são a nossa semente. Se estivermos controlando-os, eles nunca farão nada novo por
si mesmos. Serão como fomos nós em outros tempos e suas brigas serão iguais as nossas.
— Brigarão entre eles do mesmo modo que os escoceses das Highlands.
Ele sabia que era injusto dizer isso, mas antes que pudesse acrescentar algo, ela se adiantou.
— Talvez sim e talvez não. E se os tratamos com respeito? Se houver alguma verdade no que
eu li sobre a força e a capacidade das mulheres das colônias, estas fizeram ouvir sua voz nas
disputas dos homens.
— Espero que meus irmãos americanos as controlem.
— Ria de mim, enquanto puder, Michael Elliot, mas a sua espécie está em declínio.
Ele riu, mas sua alegria estava cheia de carinho.
— Acredito que deveria me render já. — Ela aproveitou sua rendição.
— De acordo, e como compensação vou exigir que você me dê dinheiro para comprar uma
parelha de cavalos e um carroça.

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— Por quê?
— O fabricante de rodas diz que John Lindsey e seus aprendizes necessitam um carro.
— Para fabricar rodas não se necessita uma carroça.
O tom definitivo de sua voz despertou a ira de Sarah. Porco arrogante! Como se atrevia a
estar ali, se gabando de ter um quadro obsceno dela, e não tentar sequer beijá-la? Tinha-a
manobrado tranquilamente, descrevendo a cicatriz do retrato, mas não foi mais adiante. Qual era
seu jogo agora?
Ao não encontrar resposta alguma se dirigiu para a porta pelo caminho mais longo, disposta
a apostar suas penas novas que ele quereria saber aonde ia.
— Aonde vai?
Ela sorriu, contente de que ele não pudesse ver sua face.
— À lavanderia.
— Sarah.
Também esperava o tom implorante de sua voz. Agora fingiria desculpar-se e logo tentaria
beijá-la. Abriu a porta.
— Sarah!
Tal e como ela previu, o caráter dominante de Michael se mostrou. Era exatamente igual ao
resto dos homens a quem tinha permitido que a cortejassem. Assim que esgotavam as reservas
de palavras doces, recorriam ao autoritarismo.
Sarah suspirou, preparando-se para uma aborrecida demonstração de poder masculino. Se
lhe ocorresse exigir explicações dela, era capaz de atirar algo.
— Você rugiu, lorde Michael? — Perguntou, virando-se.
— Onde acredita que vai?
A caixa de fósforos o acertou em pleno peito, mas ele mal notou. O fogo que lançavam os
olhos de Sarah o manteve cativo. Aquela moça das Highlands tinha muito caráter e ele ardia em
desejo de capturar essa energia e conservá-la para si.
Se estivermos controlando-os, eles nunca farão nada novo por si mesmos.
Ao vê-la ali de pé, orgulhosa e sem medo, Michael entendeu o significado de suas palavras.
Outra das muitas qualidades de Sarah Mackenzie era o seu amor pela humanidade. Ele queria
descobrir todas, mas antes tinha que lhe dar espaço e o que era ainda mais importante, tinha que
respeitá-la. De modo que isso excluía qualquer tentativa de fazer o que verdadeiramente queria:
beijá-la apaixonadamente e sentir como se rendia em seus braços.
Conteve seus desejos e escolheu ser sincero.
— Fiz com que se zangasse. — Entretanto o que mais o preocupava era tê-la decepcionado.
— Por favor, diga-me porque.
— Não — ela olhou a caixa de fósforos no chão, — hoje não. —Saiu da sala com altivez,
entre um rumor de saias.
Dê tempo a ela para pensar em uma resposta e se arrependerá de ter perguntado.
Michael entendeu outra das coisas que Henry e havia dito sobre Sarah. Entretanto, neste
caso, a causa do descontentamento de um homem era a razão do regozijo de outro.

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Recolheu a caixa de fósforos e examinou seu intrincado desenho, mas não deixou de pensar
nela. Sarah não respondeu sua pergunta dizendo “nunca”, o que havia dito foi “hoje não”, o que
indicava que em algum momento, no futuro, explicaria o que ele havia dito para irritá-la tanto.
O futuro. Isso soava muito bem. A vida junto a Sarah MacKenzie prometia ser uma fonte
constante de alegria. Imaginou que as filhas que lhe daria herdariam toda essa coragem e
inteligência. Continuou com aquela deliciosa fantasia até que a caixa de prata esquentou entre
suas mãos.
— Lorde Michael?
Ela apareceu na porta e seu sorriso anunciava que estava a ponto de dar uma notícia
desagradável.
— Sim?
— Um lacaio acaba de trazer uma mensagem de parte da condessa de Glenforth. — O
sorriso de Sarah se tornou malicioso. — Retornou de Londres e ordena que você jante com ela
esta noite.
O agradável sonho de uma vida feliz junto a Sarah MacKenzie se esfumou ante o temor à
noite que o esperava. A menos que Sarah estivesse exagerando ao transmitir a mensagem.
— Duvido que tenha sido uma ordem.
— Rose escutou a mensagem diretamente da boca do lacaio de sua mãe, que deixou
instruções semelhantes com o porteiro da Estalagem do Dragão.
— Quem disse que o lacaio esteve na estalagem?
— Notch ouviu seu amigo Cholly, que nesse momento estava falando com o porteiro, dizer.
Cholly interrogou o criado de sua mãe, o que lhe disse que a condessa estava transbordante de
alegria.
— O que você vai fazer esta noite?
Ela deu outro de seus sorrisos enigmáticos.
— Coisas de mulheres, é claro.

CAPÍTULO 11

Horas mais tarde, vestida com a vestimenta vulgar e áspera de uma criada, Sarah subiu pelas
escadas traseiras da Estalagem do Dragão. A vela de um candelabro de parede enferrujado
proporcionava uma débil iluminação, mas a apagou por precaução. Viu-se imediatamente rodeada
de escuridão, e o medo apertou o peito.
A porta de cima aberta dava no segundo andar bem iluminado e nas suítes de Michael.
Enquanto continuava subindo, a escada rangeu, deixando-a ainda mais nervosa. Perguntou-se por
que não veio com sapatilhas.
Esteve a ponto de soltar uma gargalhada traiçoeira. Seus planos para aquela noite eram
fazer se passar por um ladrão, para tanto, pegou roupa emprestada e planejou tudo. Tinha
chegado inclusive a permitir que os meninos formassem parte da conspiração e agora, a única
coisa que lhe ocorria pensar em tão crucial situação, era em sua má escolha de calçado.

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Pense no prêmio, tinha aconselhado Notch, se pensar muito nos problemas que pode ter,
meterá-se totalmente neles. Ao recordar o conselho, mais que sentir-se aliviada sentiu uma nova
onda de culpa.
Então imaginou o quadro de Mary e reuniu coragem. Ao chegar no último degrau, deu uma
olhada a Notch, que fingia muito bem estar ocupado em dar brilho ao corrimão de carvalho com
sua boina. Inclusive estava assobiando uma canção popular sobre as vicissitudes de uma dama
desconsolada e seu encantador, mas arruinado galã.
Notch piscou para ela. Uma porta se abriu e se fechou de repente. O menino ficou imóvel e
lançou um olhar de advertência. Ouviram-se passos, mas Sarah, de sua posição, não podia ver
quem andava pelo patamar de cima. Quando Notch se voltou para onde se ouviam os passos,
Sarah ficou quieta, com um pé em cada degrau e as mãos tremendo de medo.
Tinha chegado até ali movida pelo desespero, por culpa do nu pintado por Mary. Se Michael
fizesse o que devia e tivesse lhe entregado o retrato, Sarah não se seria obrigada a roubá-lo na
véspera de seu aniversário. A estas horas se encontraria a salvo em sua casa, com a consciência
limpa e pensando em como ia celebrá-lo no dia seguinte. Rezou para que a celebração não fosse
com ela na prisão de Tolbooth.
O falso retrato de Sarah com cicatrizes e sardas, exibido diante os olhos de todo o mundo.
Deprimia só de pensar.
Um sonoro arroto atrás da porta fez com que seus joelhos tremessem. Parecia uma raposa
assustada tentando evitar uma matilha de cães de caça.
Michael havia saído da estalagem uma hora antes, às oito. A estas alturas estaria comendo
o primeiro prato de seu jantar com a condessa.
A lentidão de Turnbull foi o que impediu que Sarah entrasse imediatamente no quarto. Até
poucos minutos antes o criado não tinha descido para jantar e jogar sua costumeira partida de
whist com o padeiro da estalagem. William estava situado no patamar das escadas dianteiras para
dar o alarme em caso de que Michael voltasse de improviso. Peg tinha tomado posições na
cozinha, com o pretexto de aprender a fazer um guisado.
Apareceu um cliente bêbado, com o colete mau abotoado e a peruca torta. Sarah se
apressou a ocultar-se atrás da porta aberta e se colou contra a parede. Pela estreita fresta entre a
porta e o batente da mesma, viu que o homem se dirigia para a escada principal, onde se
encontrava Notch.
Um aroma de cera fresca e gesso velho assaltou seu nariz.
O homem parou, cambaleando, e olhou para Notch.
— O que está fazendo aqui, vagabundo? — Perguntou, pronunciando mal as palavras por
culpa da cerveja. — Parece com um desses meninos das ruas.
O coração de Sarah disparou. Ouviu que o jovem William lançava uma maldição do patamar
das escadas de frente.
Notch enfrentaria esse homem? Por favor, que não o faça, suplicou em silêncio.
— Ofereci-me para ajudar, milorde — disse Notch, limpando com mais ímpeto.
— Me parece um batedor de carteira.

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— Oh, não, milorde! Sou muito orgulhoso para pedir e muito estúpido para roubar. Tome
cuidado com esses degraus, o corrimão é mais antigo que Robert Bruce.
Uma vez satisfeito, o bêbado começou a descer as escadas. Notch fez um gesto a Sarah para
que se apressasse.
Guardado sob o vestido de lã havia um avental com os bolsos cheios das coisas que ia
precisar para separar a tela da moldura. Tinha visto Mary montar centenas de telas, de modo que
desmontá-la deveria ser fácil. Também havia trazido pederneira, aço e mecha.
Pressionou os volumosos bolsos contra as coxas, saiu do vão das escadas e seguiu Notch até
a porta do quarto de Michael.
— Se apresse, milady — sussurrou Notch, abrindo a porta. — Dois golpes significam que vem
alguém, um, que é o general em pessoa.
— Se ele vier, tem que se esconder — disse ela, com tanto medo que mal podia respirar. —
Não vou permitir que se meta em problemas por minha culpa.
— Como se já não tivesse enfrentado um par de demônios por nós!
— Eu estou falando sério, Notch.
— Se continuar discutindo, com certeza que a pilham. Vou voltar a perguntar, milady, não
quer que me eu encarregue de pegar o que seja que está procurando?
Nem ele nem Foot tinham questionado suas razões para aquele roubo.
— Não.
— Tente fazer isso de forma rápida e silenciosamente. — Empurrou-a para o interior. — E
não estrague nada, do contrário jogam a culpa nas criadas.
Sarah se introduziu no quarto de Michael, sentindo-se mais só do que nunca.

Depois de terminar o pescado, Michael deixou a faca e o garfo e limpou a boca.


— Você vai contar o que a deixou tão contente?
Sua mãe riu como uma donzela na Corte, fazendo com que os diamantes de seus brincos
cintilassem e que um sorriso aparecesse no rosto do lacaio que estava a suas costas.
— Depois da carne — respondeu ela alegremente. — Dar as boas notícias antes da vitela
pode atrair a má sorte e não quero que nada estrague a noite.
Resignando-se a esperar, Michael indicou com a cabeça ao mordomo que podia retirar seu
prato e que enchesse a taça de vinho. Enquanto o criado obedecia, Michael tentou deduzir quais
eram as boas notícias às quais se referia sua mãe. Ele não tinha nenhuma dúvida de que estavam
relacionadas com Henry, já que a maior preocupação dela era seu primogênito. Entretanto, aquela
noite, sua mãe era a mulher alegre que ele sempre imaginou que era, e queria desfrutar disso.
— Está-me obrigando a brincar de adivinhações, mãe. Suponho que Henry ganhou o
bastante nas mesas de jogo para pagar a liberdade.
Ela gorjeou de prazer.
— Não, mas pode ser que não seja necessário.
Se não era jogando às cartas ou jogo de dados, de onde provinha o inesperado golpe de
sorte de Henry?

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Lady Emily fez soar a campainha para chamar o lacaio embora ele estivesse muito perto.
Quando este ficou a seu lado, indicou que servisse a carne.
Michael se alegrou, já que quanto antes terminasse o jantar, antes se inteiraria do motivo da
felicidade de sua mãe, que ainda não fez nenhuma só pergunta sobre ele nem sobre o que
aconteceu durante sua ausência. E o que era ainda mais estranho; ainda não havia mencionado o
dinheiro — ou melhor, a carência deste, — o que geralmente era o centro de suas conversações.
Não obstante, tinha que admitir que em geral aquela noite representava um avanço em
relação a suas reuniões anteriores.
Quando puseram diante dele o prato de vitela, cravou uma das partes e lhe pareceu tenro e
suculento. No espesso molho de cor marrom se viam alho poró e cenouras. Michael achou que era
a melhor comida que tinha provado desde que saiu da Índia, onde o cordeiro ao curry e o arroz
estavam presentes em cada menu, incluídos os ingleses. O relógio de pêndulo do canto deu oito e
meia. O som o recordou do comentário de Sarah sobre o tranquilo jantar que havia compartilhado
com Henry no Trotter's Clube.
Invadiram-lhe os ciúmes, e com eles chegou a inevitável e inquietante pergunta: por que ela
concordou em casar-se com Henry? Por muita habilidade que demonstrasse para evitar a
pergunta, Michael suspeitava que estava correto ao supor que ela queria ir para Edimburgo, e o
casamento com Henry lhe proporcionava os meios para fazer isso.
Havia muitas coisas em Sarah MacKenzie que desconcertavam Michael, e o tranquilizava
saber que dispunha de muito tempo para obter as respostas. Ela se preocupava com ele, sobre
isso não tinha nenhuma dúvida, e se tivessem se conhecido em circunstâncias normais, o
compromisso entre ambos teria seguido um curso mais fácil. Basta de sonhar, ordenou-lhe a parte
mais prática de sua natureza. Sua prioridade devia ser centrar-se no presente e chegar a conhecer
a mulher sentada em sua frente na mesa.
A sala estava em silêncio, salvo pelo som dos talheres.
Perguntou-se se todas as refeições transcorriam assim em Glenstone Manor. Provavelmente
sim, dado que sua mãe não era aficionada a conversar, costume que evidentemente tinha
transmitido ao herdeiro da família. O silêncio deixava Michael nervoso. Que melhor momento
para fomentar os vínculos familiares que o simples ritual de partir o pão? Era quase um crime
contra a natureza humana deixar passar essa oportunidade.
Provou as cebolas e as cenouras e lhe pareceram muito bem cozidas. Os pãezinhos estavam
rangentes e a geleia de laranjas amargas era um prazer que o recordava de sua infância.
Entretanto precisava falar.
— Felicita o chef por mim, mãe.
Ela assentiu e arqueou as sobrancelhas, mostrando sua concordância.
— Henri o trouxe de Paris há cinco anos — murmurou com a boca cheia. —O lorde Preboste
e o decano dos grêmios não demoraram para seguir o exemplo de Henry.
Era normal que sentisse um fraco pelo mais velho de seus filhos; Henry não só era a cabeça
visível da família, mas também além disso era quem a mantinha. Michael não podia deixar de
pensar em quão diferente seria aquela noite se Henry tivesse se comprometido com uma mulher

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diferente de Sarah MacKenzie. Dado que não conseguia encontrar nenhuma razão lógica para o
casamento entre Henry e Sarah, consolou-se pensando que este jamais se celebraria.
Michael a queria de verdade e se alguma vez topasse com o escorregadio duque de Ross,
pensava lhe dizer isso e umas quantas coisas mais.
O inquietante silêncio se prolongou.
Embora o certo era que Michael não foi ali para tecer uma animada conversação. Para isso
procuraria Sarah. Encheu o vazio recordando o apaixonado discurso dela sobre os defeitos dos
homens. Henry dizia que era uma filósofa e Michael estava totalmente de acordo.
Tentou imaginar Henry e Sarah juntos, mas teve outro acesso de ciúmes. Viu Henry
presidindo a mesa, com uma faca afiada na mão e trinchando o ganso de Natal. Viu Sarah, sentada
frente a ele no outro extremo da mesa, falando sem parar da grave situação em que se
encontravam os órfãos de Reekit Cióse.
Michael imaginou Henry tentando fazer ouvidos surdos ao indesejável sermão sobre o dever
cristão. Não o interessava. A faca cortou o ganso em fatias irregulares, inadequadas para a mesa
dos criados de um aristocrata e muito mais para a mesa deste.
Sarah anunciava que ia mandar Notch a Cambridge. Henry grunhia.
Sarah queria celebrar um baile para apresentar Peg, a jovenzinha órfã, em sociedade.
Henry, com a paciência tão esgotada como a comida que tinha a frente, cravava a faca no
ganso destroçado e começava a jogar maldições sobre a sala, a casa e as promessas que tinha feito
a Sarah.
— O que é o que o diverte tanto? —perguntou sua mãe.
Michael deixou de sonhar e coçou o nariz para dissimular sua diversão.
— Estava pensando em algo que disse John Lindsey.
— Quem é John Lindsay? Um amigo da Índia? —Graças a Deus! Por fim mostrava interesse
por algo da vida do Michael.
— John é um fabricante de rodas de Fife. Fui ali enquanto você estava em Londres.
— A propriedade está em ordem? —Perguntou ela. — Os criados não se tornaram
preguiçosos, não é?
Michael se ergueu mais na cadeira.
— Não. A casa em si está bem conservada. Os Lindsey vieram comigo para Edimburgo. Vão
viver no orfanato e ajudarão com as crianças.
Ela franziu o cenho, mas comparado com outras vezes, seu desagrado era relativamente
pequeno.
— Não quero ter nada a ver com esse lugar. E lhe advirto: se colocar o sobrenome Elliot no
edifício, mandarei alguém para que o tire e não deixe nem rastro.
Pensando-o bem, Michael ia chamá-lo “A Casa de Sarah”. Sim, isso era o mais adequado,
afinal de contas a ideia foi dela, de modo que era ela quem devia receber o reconhecimento. Era
melhor que a mãe de Michael não se implicasse no projeto; ele já tinha suficientes problemas para
conquistar o coração de Sarah. O que diria ela quando dissesse? Não, não diria. Em vez disso, iria
ver o trabalhador da pedreira e lhe faria uma surpresa.

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Clã Mackenzie 03

— Michael, espero que tenha ido a St. Andrews em nome da família.


É obvio; Michael não foi ver as propriedades que acompanhavam seu título, já que não
existiam; mas sua mãe não tinha culpa dado que a herança não provinha dos Fletcher.
Sacudiu os miolos das mãos.
— Estive inspecionando as minas. Vai custar bastante dinheiro, mas uma vez que terminem
as melhorias estou seguro que vão seguir sendo produtivas durante dez anos mais, pelo menos. A
maquinaria nova...
— Vá a Londres e comente com Henry, que é quem tem que tomar a decisão. Em qualquer
caso, não devemos falar de negócios à mesa. Não somos uma família de comerciantes.
Ele se sentiu como um menino recebendo uma reprimenda por algo tão grave como peidar
em público ou comer com as mãos. Não estava disposto a deixar passar o insulto, e menos ainda
essa noite.
— Por que tem que desprezar os comerciantes, mãe? Aposto o que for que eles têm os
bolsos cheios, coisa que não acontece com os Elliot.
— Também estarão os nossos — disse ela, pondo a pergunta de lado. —Tenho que voltar
para Londres dentro de uma semana, mais ou menos. —Empurrou o prato. — Você gostaria de me
acompanhar?
Alegrou-o que ela perguntasse, mas não estava disposto a deixar Sarah outra vez, tão logo.
Ainda o assombrava que sua mãe não apreciasse os esforços que estava fazendo pela família.
— Agradeço, mas não posso. Possivelmente em outro momento. Disse Henry que voltasse
para Edimburgo?
— A verdade é que não. Henry agradeceu muito minha visita, mas eu não tinha dinheiro
para ficar mais tempo. Além disso tenho que fazer algumas disposições.
— Disposições para que?
— Para o concerto que vou patrocinar no mês de julho.
— Um concerto. Que interessante!
Ela fez soar a campainha. Quando o mordomo ficou a seu lado, mostrou-lhe a taça para que
servisse mais vinho. — Já pode servir a sobremesa.
— Para mim não. — Michael começou a dar batidinhas com os dedos no braço da cadeira.
— Não? Bom, Henry é muito guloso. Levei-lhe uma caixa de marzipã dessa confeitaria em
Binderstock Row, e se emocionou tanto que qualquer um diria que lhe tinha comprado um
ducado. — riu com regozijo. — Não falou de outra coisa durante dias. Empenhei-me em que
tivesse um traje novo. Sim, a verdade é que passamos um tempo muito bom.
Quase parecia que estivesse tentando convencer Michael, coisa estranha dado que este
nunca teve motivos para duvidar do quão bem se dava sua mãe com o herdeiro da família. Ao
menos já sabia no que gastou o dinheiro que deu a ela.
Surpreendia-o que ainda não tivesse perguntado por Sarah MacKenzie.
— Então Henry vai bem nas mesas de jogo?
— Temo que a sorte o abandonou — respondeu ela, perdendo o bom humor e apertando os
lábios.

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Clã Mackenzie 03

— Mas você disse que tinha boas notícias — disse Michael com um mau pressentimento. —
localizou o duque de Ross?
— Quem é capaz de encontrá-lo? — Levantou o pulso em um gesto de exasperação e o garfo
saiu disparado por cima de seu ombro. O lacaio se apressou a recolhê-lo e a lhe dar outro. Ela o
olhou atentamente e continuou: — O advogado de Henry enviou um homem, primeiro a Tain e
logo ao castelo Kinbairn, a propriedade do duque nas Highlands. Sua Graça não está em nenhuma
parte.
— Pode ser que simplesmente não queria ver esse homem.
— Não, perguntou a todo mundo, inclusive aos adversários do duque. Ninguém viu lorde
Lachlan em nenhuma parte, há meses. O mais provável é que tenha uma amante em algum lugar,
embora sem dúvida a mantenha em segredo.
— Quanto tempo Henry vai continuar procurando-o?
Ela dirigiu um sorriso condescendente que Michael não entendeu.
— Estou segura que tanto quanto seja necessário. Henry traz um assunto entre mãos. Não
devemos nos preocupar com a falta de educação dos MacKenzie.
Michael deixou passar o insulto. De momento sentia curiosidade por saber qual era a razão
do bom humor de sua mãe.
— Vai me contar de uma vez qual é a boa notícia, mãe?
— É claro. — Deixou de falar enquanto o mordomo punha um prato de mingau diante.
Agarrou a colher e terminou dizendo: — Tem a ver com você, Michael.
Não era possível que tivesse realizado sua promessa de procurar-lhe uma esposa. Ou sim? A
comida lhe revirou no estômago.
— Deixa de franzir o cenho, Michael. É uma notícia maravilhosa. Conheci a jovem mais
interessante de Londres.
Ele conteve um gemido, rezando para que suas suspeitas fossem equivocadas.
— Que sorte para você, mãe! De quem se trata?
— Não consigo recordar seu nome. Lady Anne? Não, não é isso. Era um nome escocês. —
Agitou a mão. — Embora se tivermos em conta o que aconteceu, o nome é o de menos. Essa
mulher resgatou minha bolsa das mãos de um ladrão.
Michael relaxou um pouco.
— Uma aristocrata enfrenta um ladrão de ruas por você, e você não recorda seu nome?
— É obvio que não foi ela, e além disso sou um desastre para os nomes. Tenho certeza que
quem recuperou foi o seu lacaio. Ela só teve a gentileza de devolvê-la. Oh, Michael! Desespera-me
que estivesse tanto tempo longe de casa. Como vai conseguir se comportar em sociedade?
O relógio deu nove horas. O tempo transcorria a passo de tartaruga. Será que não ia chegar
à medula da questão de um vez, para que ele pudesse voltar para a Estalagem do Dragão, a
contemplar o retrato de Sarah?
— Tem que falar longamente com Henry e pedir que ele o ensine a se comportar, sem se
envergonhar por isso. Na casa dos Elliot não há lugar para o orgulho.
— Essas são palavras de meu pai?

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Clã Mackenzie 03

— Não, são minhas. É uma das muitas coisas que contribuí a esta família. Não suporto a má
educação e a desordem. Seu pai sabia e agiu de acordo.
Indo viver em outra parte, suspeitou Michael. Logo que pensou isso, recordou sua promessa
de tratar sua mãe com amabilidade, e mais agora que já não tinha nenhuma dúvida de que estava
tentando lhe encontrar uma esposa.
Ela deixou cair a colher no prato de mingau vazio.
O mordomo se apressou a retirá-lo e preencheu as taças de vinho dos dois.
— Conseguiu trocar de casa essa MacKenzie?
Se ela soubesse o muito que ele desejava Sarah MacKenzie, expulsaria-o de Glenforth Manor
e o despojaria do título que acabava de lhe conceder. Entretanto, isso carecia de importância
comparado a passar a vida sem Sarah MacKenzie.
Manteve um tom de voz despreocupado, contendo a alegria que o tema provocava.
— Não, a menos que conte o orfanato.
— Já não é necessário que siga se preocupando com ela, a não ser que queira ter algo a ver
com essa causa caridosa.
Henry tinha mudado de ideia sobre casar-se com Sarah a qualquer preço? Gostaria que fosse
assim, pensou Michael, porque ela estava decidida a romper o contrato matrimonial e Michael a
tê-la para si.
— Por que Sarah Mackenzie deixou de interessar?
— Não me importa absolutamente. O advogado de Henry nos assegurou que, no referente
ao dote, o contrato nos favorece.
Uma verdadeira pena, como diria Sarah. E o que era pior; essa notícia era uma ameaça para
os progressos que Michael fazia com ela. Sua melhor oportunidade residia em conquistá-la antes
que a família Elliot causasse mais estragos, mas não sabia como. Não podia depender da amizade,
já que para isso precisava de muito tempo. Sua melhor chance era a paixão, mas se perguntava se
seria capaz de seduzi-la com esse propósito. Ao ver-se enfrentado à possibilidade de perdê-la, não
teve dúvidas de qual era a resposta.
— Estou segura de que poderemos ficar com o dinheiro.
Sem o duque de Ross, não; pensou Michael.
— É por isso que você está tão feliz?
Ela sorriu de prazer e lançou o guardanapo sobre a mesa como se estivesse atirando moedas
aos pobres.
— Claro que não. Na realidade se deve à Providência. Graças à jovem que recuperou minha
bolsa, apresentaram-me a Vicktor Edelweiss Lucerne.
Tirou de sua pequena bolsa um folheto impresso da Ópera de Viena, no qual se elogiava o
talento de um jovem.
— Fique com ele — disse. — Eu tenho mais. Vamos fazer um monte deles, em inglês, é claro.
Michael guardou o folheto no colete. Nunca tinha ouvido falar desse homem, mas a julgar
pela expressão do rosto de sua mãe, o tal Lucerne devia ser alguém importante.
—Está contente por tê-lo conhecido?

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Ela afundou os ombros, exasperada.


— Oh, Michael! Nem sequer sabe as coisas importantes. Tem que se pôr em dia. Vicktor
Lucerne é o melhor compositor da Europa. Sua amiga ficou impressionada quando mencionei
Henry. Lady “o que seja” me assegurou que Lucerne estaria encantado em vir a Edimburgo dar um
concerto, por uma pequena quantia de dinheiro. Tem que ser em julho. Venderemos entradas,
ganharemos um monte de dinheiro e de passagem, conseguiremos congraçarmos com o rei.
Espero que ele assista.
O rei Jorge viajar para a Escócia? Impossível. Jorge III estava há anos demonstrando
claramente o quão pouco ele estava interessado na Escócia, se não fosse para encher seus cofres
com o dinheiro dos escoceses. A opinião que mereciam seus súditos do norte era do
conhecimento público, inclusive em um país tão longínquo como a Índia.
Entretanto, recordar isso agora a sua mãe, era improcedente. Em seu lugar abordou o tema
que mais ela gostava.
— No que vai ajudar Henry a presença do rei?
— Se o rei nos fizer essa honra, não poderá ficar do lado de Richmond. Tudo isso que se diz
sobre despojar Henry das terras e do título, desvanecerá no ar como um rumor fora de moda.
Rebaixar à categoria de rumor o fato de despojar Henry de seu título era algo muito difícil;
os assuntos do Parlamento eram uma coisa muito séria.
— Mãe, se Henry quisesse dedicar um momento a pedir desculpas a Richmond, não teria
que preocupar com isso. O duque não guardará rancor, asseguro-lhe isso.
— Henry não vai pedir perdão a esse jogador profissional, tanto se for duque ou não.
Esperava uma maior lealdade de sua parte. Esse homem extorquiu seu irmão.
Além de ser uma reprimenda para Michael, dizer algo assim era perigoso.
— Richmond deixou claro que só aceitará uma desculpa por parte de Henry.
— Isso já sei, mas o rei é um admirador de Lucerne, que não vai atuar em Londres. Estou
segura que só está ali de visita porque lady “o que seja” tem uma irmã que vive em uma das
melhores áreas. Agora que penso, é muito bonita. Usava um colar de jade de uma insólita cor rosa
que ela mesma comprou no Oriente, onde também conseguiu sua criada. Henry não deve saber
nada do concerto até que eu veja o rei; o pobre teve uma decepção atrás da outra, seguro que
uma surpresa o animará.
— É evidente que essa dama do colar rosa e a criada oriental está encantada com esse tal
Lucerne — disse ele, temendo que ela fosse se fazer de casamenteira.
Ao ver sua expressão de desconcerto, Michael soube que a tinha interpretado mal.
— O que vai fazer?
— Assim que voltar para Londres solicitarei uma audiência com Sua Majestade e lhe
entregarei um convite para que a família real completa venha ao concerto. Quando tiver aceitado,
pedirei-lhe que fale com Richmond em nome de Henry.
— E o que fará se ele se negar?
— Não diga tolices, Michael. Não vai rejeitar a oportunidade de ver Lucerne.

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O desdém com que disse acabou com a esperança de Michael de desfrutar de uma noite
agradável. Jogou sua cadeira para trás.
— Obrigado por um jantar tão delicioso, mãe. Se não há nada mais, eu vou, não sem antes
desejar boa sorte em sua tentativa de trazer o rei para Edimburgo.
Ela se moveu para levantar-se e o mordomo se apressou em ajudá-la.
— Uma coisa mais Michael — disse ela quase ronronando. — Desta vez vou necessitar de
mais dinheiro. Para ir ver o rei tenho que estar na moda. Acredita que poderá consegui-lo?
Michael se levantou e a acompanhou para fora da sala de jantar, preparando-se para sair
dali correndo.
— Ultimamente estou tendo bastante sorte jogando whist — mentiu. —Tenho um punhado
de notas.
— Mais de quinhentas libras? —Perguntou ela com ingenuidade.
Ele pediu sua capa e seu chapéu, sorrindo para evitar soltar uma maldição.
— Mais ou menos essa quantia, mãe.
— Pode me trazer amanhã?
A única coisa que Michael pôde fazer foi indicar com a cabeça ao lacaio que abrisse a porta
para ele.
— Michael! — Chamou ela. — Outra coisa; não é que importe muito, mas Henry me pediu
que lhe perguntasse isso.
Michael teve um mau presságio.
— Diga.
— Sente curiosidade em saber por que você não declarou seus bens como ordena a lei a
todos os soldados que voltam da Índia.
Malditos fossem Pitt, o Jovem, e sua asquerosa Lei da Índia. Michael mordeu o lábio para
não gritar que seus bens só interessavam a ele. Ela tinha se comportado de uma maneira bastante
agradável durante toda a noite, mas já estava de volta a mulher manipuladora e intrometida. Deu-
lhe vontade de desinvestir em um ou dois negócios e lhe entregar o dinheiro para liberar Henry,
mas isso equivaleria a comprar seu carinho, e ia contra seus princípios. Não faria nada.
Entretanto, estava preso em sua própria armadilha.
— Não se ofenda tanto, Michael. Henry só fez uma pergunta.
Ele escolheu a resposta mais segura.
— Não sei do que pode lhe servir, além de envergonhar mais à família. Melhor será deixá-lo
pesar que fiz uma considerável fortuna.
Isso despertou seu interesse, já que esboçou um estranho sorriso maternal.
— Você o fez?
A pergunta deixou seus nervos arrepiados.
— Com o pagamento de um oficial? — Forçou um sorriso. — Você diz como se tivesse
chegado ao mais alto do exército de Sua Majestade em vez de tomar parte das forças da
Companhia.
Ela franziu o cenho, desconcertada.

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Michael se alegrou disso e se despediu dela desejando boa noite. Enquanto percorria o
conhecido trajeto até a Estalagem do Dragão, mal podia conter a ira que a pergunta de sua mãe
tinha despertado.
O problema da injustiça de Sua Majestade provinha de manter dois exércitos independentes
na Índia, cada um sob um comando diferente. No Exército da Índia era difícil progredir, já que seus
efetivos eram controlados pela Companhia das Índias Orientais. Michael tinha prosperado ali, mas
isso foi antes da chegada de grande número de forças da Coroa. Estes últimos desfrutavam de um
bom pagamento, inclusive depois da aposentadoria, e suas missões eram menos arriscadas.
A desastrosa lei de Pitt, do ano anterior, não afetava Michael já que ele tinha renunciado
para unir-se à Guarda de Honra.
Perguntou-se por que Henry havia trazido o tema à luz.
Seguia pensando nisso quando começou a subir a escada da estalagem e esteve a ponto de
tropeçar com William Picardy.

CAPÍTULO 12

Pum!
Ao ouvir o golpe na porta, Sarah deixou quietas as mãos sobre o tecido meio enrolado.
Olhou para a moldura vazia e para o trapo protetor que jazia junto a este, no chão.
Um golpe significava que Michael havia voltado.
Seus pés se moveram, mas a mente ficou em branco por causa do medo. Terminou de
enrolar o tecido para poder levá-lo, correu para a porta e a abriu de um puxão. Notch estava
perto, com o olhar posto em Michael que estava subindo pela escada com William tagarelando,
logo atrás dele.
Não tinha chegado ao patamar ainda, de modo que ainda não podia vê-la. Alguns degraus
mais e a descobriria.
Notch a agarrou pelo braço e empurrou. A saia ficou presa na porta, obrigando-a a deter-se.
Conteve um gemido de pânico.
Paralisada de medo, foi contando os degraus pelo ruído que faziam as botas. Ou era seu
próprio coração? Os segundos foram transcorrendo em câmera lenta.
Notch começou a mexer na fechadura. Michael continuou subindo.
— Malditas anáguas femininas! — Vaiou o menino, para dizer logo: — Vai.
Sarah se lançou para a saída. Notch fechou a porta.
— Ei, você! — Gritou Michael. Ela esteve a ponto de tropeçar.
— Deixe em paz a criada, general — disse Notch, — só é uma faxineira. Vai embora, moça.
Teve uma noite agradável, general? O relojoeiro disse que ia chover, mas você traz a capa seca.
— Está muito simpático esta noite, Notch. Se não me engano estava falando de anáguas
femininas com a criada. Um tema muito interessante.
Sua voz ensurdecedora flutuou ao redor de Sarah, que ficou com a boca seca. Adiantou um
pé com cuidado para afastar-se pouco a pouco dele sem chamar sua atenção.

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— Anáguas? Ah! Ouviu-o bem, mas o entendeu mal, general. Converteram-se em meu
juramento favorito. Juro por elas ao menos vinte vezes ao dia. Não é, Foot?
William assentiu gaguejando.
— Saia daqui, moça — disse Notch a Sarah.
Ela olhou de frente e, rogando por receber ajuda divina, aproximou-se um pouco mais da
porta.
— Temo que vou pedir que ela fique, Notch. — A desculpa de Michael soou oca. — Eu
gostaria de falar a sós com lady Sarah.
Ela fechou os olhos com força. Um gemido escapou de seus lábios.
— Ouve como se queixa? Não é mais que uma criada com as costas doloridas. Saia daqui,
moça.
— O que leva na mão? — Perguntou Michael.
Sarah olhou para baixo. A saia do vestido de criada, menos larga que a de uma dama, não
conseguia ocultar de todo o tecido enrolado, o qual se movia em sua mão trêmula.
William ficou nervoso.
— O plano falhou.
— Fecha o bico! — Vaiou Notch.
William se calou, obedientemente.
— Vão, cavalheiros. — A ordem de Michael não admitia discussão.
Notch ficou sério e esclareceu a garganta.
— Não podemos ir e deixá-la a sós com você, general. Não seria correto.
Sarah começou a mover-se outra vez, tentando cruzar aquela porta.
— Sarah? Vai deixar que sejam seus cúmplices que respondam por seu “plano fracassado”?
— Ela não fez nada — disse Notch muito sério. — Saia correndo por essa porta, milady. Nós
o manteremos longe até que você esteja sã e salva em sua casa.
— Isso, Sarah. Se comporte como uma covarde.
O muito asqueroso! Tomara que Michael Elliot caísse em um pântano e ficasse ali até o dia
do Julgamento Final.
— Sarah?
Ela suspirou com resignação e se virou. Notch plantou os pés, colocou as mãos nos quadris, e
enfrentou com coragem Michael, cuja atenção estava centrada em Sarah. William foi se
aproximando devagar do começo das escadas.
O coração de Sarah se encolheu diante da coragem daqueles meninos.
— Notch — disse, — temo que lorde Michael tem razão.
Notch virou a cabeça, cheio de preocupação.
— Sinto muito, milady, mas veio andando tão depressa que esteve a ponto de arrastar Foot
pela frente e o garoto não teve tempo de me avisar.
— Os dois fizeram tudo o que puderam. Obrigada.
— Como soube que era ela? — Perguntou William.
Michael passeou seu ardente olhar pelo corpo de Sarah.

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— Eu a teria reconhecido em meio de uma monção.


— O que é uma monção? — Perguntou William fazendo uma careta, ao pronunciar a
estranha palavra.
— É um temporal, muito frequente na Índia, que se caracteriza por suas abundantes chuvas
— respondeu Sarah, sem fazer caso do brilho de satisfação nos olhos de Michael.
Notch passeou o olhar de Sarah a Michael.
— Isso significa que a reconheceria em qualquer parte, senhor?
— Inclusive na cova mais escura, na noite mais sombria.
O menino captou rapidamente o significado dessas palavras; seus jovens olhos se fixaram
nos adultos e na situação. Sarah estava certa de que ele não ia abandoná-la, mas, sabia Michael?
— Falta um quarto de hora antes que soe o toque de silêncio — Michael indicou as escadas
com a cabeça. — Têm o tempo justo para chegar à alfândega antes que os detenham.
Sarah tinha que encontrar a forma de dizer a Michael que Notch ia em busca de ajuda, mas
não sabia como fazer sem pôr em perigo sua posição.
A única opção que ficava era agir com astúcia.
— Notch é um menino muito esperto — afirmou, captando a atenção de Michael e lançando
um significativo olhar para Notch.
Michael a olhou de acima a abaixo.
— Muito — disse ele com muita segurança. — Notch viu muitas coisas em sua curta vida. —
Baixou a vista para o tecido. — Duvido que as entenda todas, e expô-lo aos assuntos dos maiores
poderia ser prejudicial para ele. Alguém de sua idade imita o que vê.
Uma raiva silenciosa se apoderou de Sarah.
— Entendo-o perfeitamente.
— Muito bem, Sarah — Michael tirou as luvas e tocou Notch no ombro. —Não me
surpreenderia nada que Notch descesse por essa escada e fosse chamar o magistrado.
— Não acredite que não vou fazer — gabou-se o menino. — Lady Sarah já sofreu muito por
culpa dos Elliot.
A reação de Michael foi imediata; entrecerrou os olhos como amostra de solidariedade com
sua família. Apesar de sua situação, Sarah não podia permitir que Notch condenasse Michael pelas
más ações de sua família. Ela não tinha demorado nada em perceber que isso era uma estupidez.
— Este problema procurei eu, Notch — admitiu. A maior parte da culpa era de Mary, mas ela
não estava ali para responder por isso.
Notch baixou a vista para o chão.
— Você não vai poder sair disto sozinha, milady. O magistrado ficará de seu lado assim que
você lhe contar a verdade.
— A verdade — repetiu Michael, arrastando as palavras.
— Assim é, general. Lady Sarah queria surpreendê-lo com uma moldura nova para seu
quadro favorito. Isso é o que leva na mão.

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— Que amabilidade de sua parte, querida Sarah! — Começou a dizer Michael com voz
galante. — Ouvi dizer que o magistrado é um fervoroso seguidor da arte bíblica. Você também o
ouviu?
Arte bíblica. Eva no Paraíso. Os escrúpulos de Sarah desapareceram. Ele não merecia que ela
o tratasse com imparcialidade. Acabava de ameaçá-la, muito astutamente, de mostrar o nu a
todos os homens que fossem em sua ajuda.
Estremeceu de vergonha.
— Se esqueça das autoridades, Notch — ordenou ela. — Não há necessidade de incomodá-
los a estas horas. — Ele assentiu.
— Então me limitarei chamar Cholly.
— Não faltaria mais nada — declarou Michael, rindo. — Chama o varredor. Convoque os
fofoqueiros. Convide os carreteiros. Retire os móveis e abre uma maldita exposição. Chamaremos
de “A Melhor Experiência Cultural para o Homem Atual”.
Ela soltava faíscas pela descarada tentativa de Michael por intimidar. Não seria capaz de
cumprir a ameaça, mas causaria estragos com ela.
Notch se dirigiu para as escadas.
Michael deixou de rir e estendeu a mão para Sarah, desafiando-a com o olhar.
— Diga ao garoto que está completamente a salvo comigo.
Só um idiota acreditaria em tal coisa, ainda assim, ela tinha que convencer Notch de que era
verdade.
— Notch! — Aceitou a mão de Michael. — Volta. — Sua voz se quebrou e ela esclareceu
garganta. — Você também, William.
Notch se deteve. William subiu no corrimão esperando.
Sarah desviou os olhos, tentando conter o estremecimento que ameaçava romper sua
calma. Não podia acovardar-se diante de Michael Elliot. Ele a tinha pilhado. Bem por ele. A tela
seguia nas mãos de Sarah. Não teve coragem para atirá-la ao fogo que ardia no dormitório de
Michael, mas o faria se ele se negasse a permitir que ela a mantivesse.
— Notch, William, não é necessário que se preocupem comigo, nem que vão em busca de
ajuda.
— Diz isso porque está tão assustada como um ganso à véspera de Natal.
Michael levantou as sobrancelhas. O muito desgraçado estava se divertindo.
A responsabilidade dessa aventura noturna era dela. Era ela quem meteu os meninos nessa
confusão, e era ela quem tinha que tirá-los dela. Entretanto, Michael não fazia mais que piorar a
situação e por esse motivo o faria pagar. E no processo demonstraria que Sarah MacKenzie não
era um ganso a ponto de ser sacrificado.
Colocou a tela atrás das costas e dirigiu a Notch seu sorriso mais amável.
— Sei que está preocupado por mim. É um verdadeiro paladino e melhor amigo.
Ele se esticou mais.
— Os verdadeiros cavalheiros não levam as damas atrás de uma porta fechada.

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— Também fazem — disse William. — Esse franchute convencido leva todas as noites lady
Winfield ao piso de cima com seu “Ma chérie”.
A risada bailou nos lábios de Michael.
Sarah teve vontade de perder os modos e dar-lhe uma bofetada. Em vez disso idealizou uma
vingança de outro tipo.
— Notch, ficaria mais tranquilo se lorde Michael der sua palavra que vai se comportar como
um cavalheiro?
— Teria que jurar por sua honra — respondeu Notch.
— Ou por sua caixa de rapé — interveio William.
— Possivelmente queira fazer agora essa promessa — disse ela, voltando-se para Michael.
O humor desapareceu da expressão dele.
Sarah se alegrou por essa pequena vitória.
— Vejamos, tem que ser um juramento sincero. Algo como que não vai procurar represálias
por nada do que ocorreu aqui esta noite.
— O que são represálias? — perguntou William.
— Uma temporada no Tolbooth — explicou Notch com autoridade.
— Seria melhor que fôssemos procurar Cholly. — William deslizou pelo corrimão, detendo-
se na curva do patamar.
Turnbull apareceu no final das escadas.
— Estamos chamando a atenção — anunciou Michael distraidamente, descansando todo
seu peso sobre uma perna. — O que vai fazer Sarah?
Te odiar pelo resto de minha vida, prometeu ela em silêncio.
— Faz com que Turnbull saia daí — murmurou muito a seu pesar.
— Turnbull — disse Michael, — se assegure de que os meninos vão para sua casa e se
distraia conversando com os Lindsey.
— Um bate-papo muito longo, milorde?
— Exatamente. Estou seguro de que têm muito do que falar.
Turnbull sorriu com afabilidade.
— Certamente que sim.
Michael acrescentou algo em um idioma que ela não entendeu. Os olhos de Turnbull se
dilataram de surpresa, mas recuperou rapidamente a compostura.
— E o que acontece com seu juramento? — Perguntou Notch.
— Não jurou por nada — protestou William.
Sarah relaxou.
— Parece-me recordar ter ouvido dizer que o cavalheirismo era uma forma de vida para
você, Michael.
Ele se dirigiu a Notch a contra gosto.
— Juro por minha honra que vou perdoar lady Sarah por seu plano fracassado.
Sarah pensou que a astúcia do Michael não conhecia limites.
— Tem que acrescentar que não vai procurar represálias.

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— Está tentando a sorte —murmurou Michael em voz baixa para que só Sarah ouvisse. — Se
despeça de seus amigos.
Ela obedeceu.
Turnbull indicou aos meninos que o seguissem.
Sarah se apressou a entrar no quarto de Michael.
Parecia que fazia toda uma vida que esteve ali, de cócoras no chão e mordendo as unhas por
um retrato. Agora, pela primeira vez olhava de verdade a suíte. Por ser alugada, era espaçosa e
estava bem mobiliada. Uma porta à esquerda dava para o dormitório, do que só se via a borda da
colcha azul de veludo.
Em ambas as dependências as paredes eram de estuque e as vigas do teto estavam recém
envernizadas. Um par de poltronas de respaldo alto emolduravam a lareira, sobre cujo suporte
havia uma série de caixas de cobre e madeira. O relógio era um dos empetecados desenhos de
Nathaniel Hodges.
Surpreendeu-a a ausência de retratos em miniatura da família sobre a lareira ou em
qualquer das mesinhas repartidas por toda a estadia. Claro que se sua família fosse como a dele,
tampouco ela teria seus retratos à vista.
Segundo o relógio, eram quase dez, o que a levou a recordar o comentário de Michael sobre
o toque de silêncio.
A porta se fechou e ele se aproximou dela. Sua cabeça, agora despojada do chapéu, ficava
somente a um palmo de distância do teto.
— Se acomode.
Ela ficou onde estava.
— Para isso teria que ir a outro lugar.
— Entretanto, eu quero que esteja aqui, e além disso temos que falar de vários assuntos
importantes.
Sarah se fixou na lareira. Levantou a pintura enrolada.
— Vou destruí-la.
Ele pendurou o chapéu e atirou as luvas em uma mesa, como se estivesse se preparando
para passar uma noite agradável em vez de planejando uma sedução.
— Esta noite não, Sarah.
Ela se lançou para o fogo.
Ele se lançou para ela.
Michael estava muito perto, era muito rápido, e seus braços pareciam tiras de aço.
Ela se retorceu, tentando soltar-se.
— Não pode me deter.
Ele a soltou, levantou as mãos e sorriu.
— Nem vou tentar. Adiante, faça que tem que fazer.
O tecido tremia nas mão, mas Sarah não podia mover o braço para atirar o retrato ao fogo.

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— Mary me assegurou que se vingaria — disse ele com tom razoável. — E depois que me
contou a história de Lottie e a dúzia de estômagos frescos que pôs em seu leito nupcial, acredito -.
Entretanto, não acredito que vá destruir um quadro tão bonito.
Sarah era incapaz. Para vingar-se deveria pintar o rosto de Mary sobre o seu próprio e exibir
o tecido na Ponte de Londres. Essa ideia a tranquilizou um pouco, fazendo-a sorrir.
— Pode estar seguro de que Mary vai receber seu castigo por este trabalho falso.
Ele sacudiu a cabeça com expressão paciente.
— Se isso parece a você um trabalho falso, então o rei é um MacKenzie.
— Em que idioma falou a Turnbull e o que disse a ele? — Ela perguntou, intrigada,
ignorando-o.
Ele levantou a tampa de cristal de um frasco de caramelos, ignorando a pergunta. O aroma
de gengibre impregnou o ar. Ofereceu-lhe um e quando ela disse que não, agarrou um e voltou a
pôr a tampa.
— O que se apoderou de você para que enchesse de porcaria a cama matrimonial de Lottie?
— Perguntou ele.
Como explicar a ele toda uma vida de intimidade fraternal? Que palavras eram as adequadas
para transmitir a relação entre quatro irmãs que enfrentavam sem cessar o estigma da
ilegitimidade? A palavra lealdade era curta para descrever os laços especiais que vinculavam às
quatro meio-irmãs.
Decidiu sair-se pela tangente.
— O mesmo tipo de brincadeira que levou Lottie a jogar cerveja negra em meu perfume.
Ele tirou a gravata e desabotoou o botão superior da camisa.
— Foi isso o que provocou sua ira?
Tratando de não perder os nervos ao ver um homem despindo-se em sua presença, Sarah
deixou o tecido sobre o assento da poltrona que estava em frente a ela e se apoiou atrás do
respaldo dela. Para não ficar embevecida olhando o pelo negro que aparecia pela camisa aberta,
ficou a examinar atentamente o descanso de cabeça que havia no respaldo. Não viu vestígios de
gordura, o que queria dizer que Michael não colocava fixador no cabelo.
O relógio deu dez horas. Ao menos Notch e William se encontravam a salvo com Turnbull.
Michael pegou o tecido e o pôs no colo.
— Lottie estragou seu perfume favorito?
Ela não pôde evitar olhar o lugar onde descansava agora o tecido. As calças ajustadas
ressaltavam a musculatura de suas pernas. Não era de estranhar que controlasse com tanta
facilidade seu fogoso cavalo.
— Ela o fez?
Sarah engoliu a vergonha, mas não pôde fazer o mesmo com o mau humor.
— Viver com Lottie na mesma casa é razão suficiente. — Ao escutar a irritação de sua
própria voz suavizou o tom: — Entretanto não fiz sozinha, e além disso, Lottie merecia. Mary e
Agnes me ajudaram. Isso é o que acontecia geralmente quando éramos jovens; uníamos-nos três
contra a quarta.

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Ele tirou a fita que segurava seu cabelo e as largas mechas caíram sobre seus ombros.
— Não é de estranhar que Notch e o resto gostem muito de você, porque é mais aficionada
às conspirações que eles. — Se reacomodou no assento e apoiou os pés em uma banqueta
adornada com borlas. — Entretanto, é uma péssima ladra.
Vê-lo comodamente instalado a levou a ser a ser imprudente.
— Cinco minutos mais e teria saído daqui sem problemas.
— Cinco minutos mais e teria ido atrás de você. Como se ela fosse deixá-lo entrar!
— Não pode ficar com esse retrato. Isso é ruim de qualquer ângulo que olharmos.
Ele o agitou para ela.
— Você o viu?
Sarah o fulminou com o olhar.
— Mentiu sobre as sardas.
Ele apoiou o tecido enrolado nas pernas e o abriu.
— Você diz porque as que Mary pintou não se parecem com as que tem ou porque não tem
nenhuma?
Ela lançou um bufo de desdém e conteve o impulso de afastar o olhar.
— Não vou dizer isso a você. — Se ele podia ocultar o que tinha falado com Turnbull, ela
também podia ser evasiva.
— É um trabalho precioso. — Michael acariciou o tecido com um dedo, riscando a curva do
quadril da modelo.
Ela não teve mais remédio que estar de acordo, apesar de estar vendo-o de reverso.
Imitando o estilo exuberante de George Lambert, Mary tinha desenhado Eva deitada
languidamente em um luxuoso divã de veludo branco e a tinha rodeado de uma paisagem de
samambaias e exóticas flores rosas, ninfas e peludas criaturas dos bosques. O azul do céu da parte
superior era exatamente como o dos olhos de Sarah.
Tinha que reconhecer que Mary tinha proporcionado a Sarah um precioso cabelo que caía
em suaves ondas até a cintura. Por desgraça se tinha esquecido da modéstia mais elementar e
nem sequer um véu cobria seu corpo. Mary tinha elogiado as formas femininas, da pele mais
escura dos mamilos até o pelo escuro da parte inferior do corpo. Entretanto, o tamanho dos seios
era um assunto discutível. Sarah não pôde evitar ruborizar-se.
Ele sorriu de modo brincalhão ao ver sua confusão.
— Deixa de olhá-lo como um estúpido! Pintou-me nua, Por Deus!
— Para ser franco, minha querida Sarah — Michael conteve a risada, — não acredito que a
religião tenha nada que ver aqui. Mary a pintou completamente nua para mim.
Sarah estremeceu.
— Foi ideia sua? — Até esse momento não tinha ocorrido que ele pudesse exercer alguma
influência sobre Mary, a ideia era descabelada. Entretanto, pensando bem, Michael sempre
conseguia ativar suas emoções. Pode ser que também tivesse conseguido influir em Mary.
Ele acariciou a superfície do retrato com um brilho de malícia nos olhos. O cabelo solto e
cumprido suavizava a expressão diabólica de seu olhar.

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Quando falou sua voz era suave e sedutora.


— Infelizmente não sou eu quem merece o elogio. A ideia foi de Mary, eu me limitei a olhar.
Mary era completamente capaz de fazer algo tão ultrajante. Provavelmente ambos
estiveram falando das distintas partes do corpo como se tratasse das dobradiças de uma porta.
— É por isso mandou isso a você em vez de a lorde Preboste, como ameaçou fazer? —Ele
deu de ombros.
— Eu só disse a ela que lorde Preboste não ia apreciar seu trabalho. Foi sua ideia mandá-lo
com o conde de Wiltshire. Acredito que desejava livrar-se dele durante uns dias, ou ao menos isso
é o que ela disse. —Ele retornou a Londres imediatamente.
Mary ia ter que tomar uma decisão sobre o atraente conde; Sarah tinha que preocupar-se
com Michael Elliot.
Sarah fingiu indiferença, impaciente por deixar para trás o assunto.
— Mary deveria pintar o que quer de verdade, não sei por que se limita a imitar outros.
Ele voltou a enrolar o retrato, como se soubesse a que se referia, e o depositou no chão,
junto a sua poltrona.
— Seu talento é muito maior que o de seu mentor.
O elogio tocou uma fibra sensível em Sarah. Mary era excêntrica, obstinada, e mais ousada
que Agnes. Era capaz de capturar a alma de uma pessoa no tecido com uma pincelada. Com uma
pluma podia realizar caricaturas dos políticos. Movidos pela inveja, seus contemporâneos lhe
punham apelidos como “Mary, a Rebelde”. Reynolds e os de sua geração a recebiam com os
braços abertos. A alta sociedade de Londres não sabia o que fazer com Mary Margaret MacKenzie.
O conde de Wiltshire sim, já que tinha jurado convertê-la em sua esposa na Abadia de
Westminster, diante de toda a congregação.
Sarah a amava muito. No ano seguinte se sentariam diante de um bom fogo, com pipocas
das colônias, e ririam tanto do retrato como da vingança de Sarah, qualquer que tivesse sido.
— Você se importaria de me contar o que é que a diverte tanto?
Invadiu-a a melancolia, mas ela o ocultou. Tinha que mudar de assunto, entretanto percebeu
que não podia.
— Estava pensando em que algumas coisas não mudam nunca.
— Por exemplo, o carinho que sente por Mary e o que ela sente por você.
Ele não deveria conhecer tão bem os sentimentos de Sarah.
— Sim, mas não se engane, apesar disso Mary vai pagar muito caro pelo que fez.
— Quando chegar o momento eu gostaria de poder ver por um buraquinho. — tirou o colete
e o depositou no braço da poltrona. Um folheto caiu flutuando até o chão.
Sarah precisava entreter-se com algo para evitar olhar como Michael se despia e perguntas
subsequentes deste, de modo que recolheu o papel. Um nome lhe chamou a atenção. Leu o texto
com interesse.
— Onde você conseguiu isso?
Uma vez que já se havia posto confortável, ele voltou a acomodar-se no assento.
— Minha mãe deu-me isso, ela o pegou em Londres. Ouviu falar desse tal Lucerne?

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Essa inocente pergunta proporcionou a Sarah a oportunidade de esquecer de suas


perturbadoras ideias sobre Michael Elliot. Conhecia muito bem o músico, já que sua meio-irmã
Agnes viajava como acompanhante e guarda-costas do jovem compositor.
Acaso andava Michael à caça de informação? Sua expressão de curiosidade parecia sincera.
Tinha passado quinze anos na Índia, o que podia explicar sua ingênua pergunta sobre Vicktor
Lucerne, que tinha doze anos e só viajava de navio até Londres. Entretanto, negava-se a
apresentar-se ali.
— Conhece-o? — perguntou ele.
— Lucerne está muito na moda na Europa. À idade de três anos construiu uma escada e se
sentou sobre ela para chegar ao clavicórdio. Compôs sua primeira ópera como presente para si
mesmo na ocasião de seu sexto aniversário. diz que suas sonatas para violino são as melhores, e
seus minuetos são os mais populares.
— Por que sabe tanto dele?
Não pensava em lhe falar de Agnes ainda, antes tinha que ouvir tudo o que tinha ele que
dizer sobre o tema.
— Eu gosto de me inteirar das coisas, sem importar o tema de que se trate. por que
pergunta?
— Minha mãe pediu a ele para dar um concerto em Edimburgo.
Sua mãe? Se lady Emily estava implicada, também Henry devia estar. Isso significava
problemas. Se Henry se atrevia a utilizar Agnes como objeto para levar Lucerne a Edimburgo e esta
se inteirava, Henry ia se arrepender pelo resto de sua vida.
— Que interessante! — Disse, sem saber que outra coisa dizer. — Como aconteceu?
— A verdade é que foi por acaso. Um ladrão roubou a bolsa de minha mãe em Londres e
uma amiga de Lucerne o recuperou.
Uma terrível suspeita se apoderou de Sarah.
— Outro músico encontrou a bolsa de sua mãe?
— Não, isso é o estranho. Uma dama da nobreza a devolveu.
— Uma dama da nobreza? — Maldita voz trêmula!. — Quem?
— Minha mãe não conseguiu recordar o nome. Também ficou muito impressionada com o
colar de jade rosa que essa mulher usava e sua criada oriental.
Sarah a conhecia perfeitamente, e também sabia o quão ágil era Agnes Elizabeth MacKenzie
com as mãos. Era capaz de roubar uma bolsa com uma facilidade que despertaria a inveja de
Notch. Entretanto, embora Agnes não tivesse roubado a bolsa, coisa perfeitamente possível, era o
bastante inteligente para dizer a alguém que o fizesse para conseguir conhecer lady Emily.
Sim, Agnes devia ter provocado o encontro já que era muita coincidência. O colar de jade
rosa era um artigo muito raro. Quanto a Tia Loo, a criada de Bangkok, era inconfundível. E já que
Agnes se encontrava em Londres, provavelmente o assunto do concerto foi planejado entre ela e
Mary. Sarah se perguntou com que fim o tinham feito e como poderia surrupiar mais informação
de Michael sem despertar suas suspeitas.
Colocou o descanso de cabeça.

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— Surpreende-me que sua mãe tivesse tempo para alguém além do pobre Henry.
— Segundo minha mãe, essa mulher e ela se tornaram amigas. A dama estava desejando
conhecer outra escocesa.
Agnes era capaz de trazer a luz os segredos de qualquer um antes que este — neste caso,
esta, — se desse conta de que os tinha contado. Entretanto, Henry também estava implicado, e
este era o problema de Sarah. Ele estaria sabendo do encontro entre lady Emily e Agnes?
— Presumo que lady Emily lhe falaria de Henry.
Michael sorriu, mas o sorriso não foi sincero.
— Como diz minha mãe, a boa samaritana não podia deixar de fazer perguntas sobre Henry
e os Elliot.
Se Agnes seguia metendo-se nos assuntos de Sarah, esta ia arrancar-lhe a cabeça. Mas, e se
essa era a forma que Agnes tinha de ir em seu socorro? Agnes não conhecia a verdade sobre quem
era o pai de Sarah, embora se soubesse tampouco teria importado. Criaram-se como irmãs e,
deixando de lado as travessuras, eram muito leais umas com as outras. Que não existissem laços
de sangue entre elas não mudava nada. Entretanto, Sarah não estava preparada ainda para
enfrentar Agnes e lhe contar a verdade.
Em qualquer caso, Sarah precisava saber se Agnes manteve sua identidade em segredo
diante de lady Emily.
— Está seguro de que sua mãe não se recorda o nome dessa mulher?
— Completamente. Acreditava recordar que se chamava Anne, mas não estava segura. Você
conhece a mulher que viaja com Lucerne?

CAPÍTULO 13

Sarah tentou fingir desembaraço.


— Eu? Eu não tenho o menor talento para a música e asseguro que não me movo nos
mesmos círculos que Vicktor Lucerne. Embora se trate de uma história interessante e estou
encantada de que sua mãe tenha feito uma amiga. —Era impossível que ele soubesse quão falsa
era tal afirmação, já que travar amizade com Agnes MacKenzie podia supor um problema para
lady Emily.
— De modo que os Elliot podem contar que comprará uma entrada?
O fato de ele ter tirado parte da roupa o fazia parecer mais cínico que nunca. Sarah não se
acovardou.
— Desculpe, mas não. Antes prefiro atirar um punhado de xelins pela privada mais próxima.
— E se com os lucros meu irmão pudesse ficar em liberdade?
Isto suscitou outra pergunta.
— Henry sabe do concerto?
— Não. vai ser uma surpresa.
Isso era um ligeiro consolo. No transcurso de sua única visita a Rosshaven Castle, Lottie
obsequiou Henry com um longuíssimo discurso sobre as façanhas das irmãs MacKenzie e o lugar

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em que se encontravam todas. Através dela, Henry se inteirou da estranha vocação de Agnes e de
seus motivos. Gostaria que lady Emily seguisse conservando seu segredo, porque se Henry
chegasse a saber que Agnes estava implicada, tentaria desbaratar seus planos, fossem quais
fossem.
Depois, quando Sarah falasse com Rose da amizade de Agnes com lady Emily, um brilho de
otimismo aliviaria o desastre que se formava. A criada ia rolar de rir.
— Sarah? O que vai fazer se puserem Henry em liberdade?
— Direi a ele que vá para o inferno e darei graças ao diabo por encarregar-se dele.
— Vamos, está certa de que não quer assistir o concerto para ajudar o pobre Henry?
Sarah relaxou um pouco ao ouvir a ironia de sua voz. Ela sabia sobre o que era tudo, e
Michael não.
— Por mim seu irmão pode apodrecer na prisão de King's Bench.
— Sim, bom... Vou propor-lhe um trato, Sarah; o retrato será seu se me disser a verdade. Por
que se comprometeu em casar-se com o condenado Henry?
No transcurso de uma das múltiplos discussões que ambos mantiveram sobre o tema,
Michael disse que acreditava que ela se comprometeu com Henry só para ver cumprido seu desejo
de ir para Edimburgo. Estava completamente enganado, mas embora confessasse a verdade a ele
agora, ele não acreditaria.
Apressou-se a dar uma explicação que acreditou que o tranquilizaria.
— Henry esteve de acordo em me permitir construir um orfanato em Edimburgo. A maioria
dos maridos não teriam sido tão magnânimos.
— Ah, as desprezíveis estipulações! Entretanto eu não descreveria Henry como magnânimo.
Não parecia estar convencido.
— Não há nada de mal em que uma mulher vele por seus interesses. Sua mãe não gostou,
de modo que acrescentou suas próprias condições, embora não tenham nenhum valor legal, mas
suponho que você já sabe disso.
— Não, mas sinto muita curiosidade. — cruzou os braços. — Quais foram as exigências da
condessa?
Sarah não podia deixar de olhar os braços de Michael nem de admirar a forma em que seus
músculos esticavam o tecido da camisa. Baixou o olhar para seu regaço, onde percebia o vulto de
sua masculinidade.
— Quer se sentar?
Ao ouvir suas provocadoras palavras, ela olhou para as mãos e voltou para o tema das
estipulações de lady Emily.
— Sua mãe exigiu que construíssem uma ala inteira para ela em Glenforth Manor e uma
mesada um centavo mais alta que a minha. Já disse a você que tem medo de que a enviem a Fife e
Henry havia prometido transladá-la para ali. Sua vida e seus amigos se encontram aqui.
Michael lançou um assobio de assombro fingido.

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— Essa é uma razão muito imaginativa de por que concordou em se casar com meu irmão,
querida, mas não a principal. — Esticou suas largas pernas, recostando-se com a tranquilidade de
um conquistador ante os vencidos.
— Tente novamente—murmurou. — E desta vez fale a verdade.
Incapaz de ficar quieta, Sarah começou a andar pela sala e se deteve em frente a ele.
— Tire essa expressão satisfeita de sua cara, Michael Elliot. Não tenho nenhuma necessidade
de mendigar por um marido, se for isso o que quer ouvir.
— Eu disse isso?
— Não, mas insinuou. Além disso, por que insiste tanto em saber? Por que ia contar a você o
motivo pelo qual concordei em me casar com seu irmão?
Em vez de lhe dizer que ela era um prêmio que inclusive um rei desejaria, Michael disse algo
que ela já sabia.
— Porque a quero para mim — respondeu.
Ela cruzou os braços e lançou um grande bufo.
— Isso você já disse antes. Me perdoe, mas com um incentivo de vinte mil libras estou
segura de que teria me proposto para a canonização.
— Jamais faria tal coisa. Depois de estar dez minutos em sua companhia ninguém acreditaria
em mim.
Ela entrecerrou os olhos, tinha cílios tão longos que lhe sombreavam as bochechas. Parecia
uma princesa mesmo vestida com a roupa de uma criada.
— Tem caído mais baixo que o ventre de um sapo, e já que esta noite sua divisa é a
sinceridade, diga-me por que gastou nove mil libras para arrumar o orfanato, quando seu irmão
necessita de dinheiro para sair do cárcere.
— A resposta a isso é... —Michael não terminou a frase; o última coisa que interessava
nesse momento era Henry. E falar de suas finanças.
O primeiro lugar de sua lista de prioridades era ocupada por desfrutar da presença de Sarah.
Seriam seus seios tão exuberantes como os tinha pintado Mary ou utilizava algum artifício?
— Perdeu o fio da conversa? — Perguntou ela.
— Nada disso. Já que tocou no assunto dos ventres, devo dizer que Mary pintou um muito
bonito; suavemente arredondado e suplicando as carícias de um homem.
— Eu odeio você.
— Não, não me odeia. Você gosta, e se pudesse trocaria meu sobrenome pelo de Munro,
Brodie, ou o de qualquer outro clã que conte com sua simpatia.
O olhar dela voltou a desviar-se para a virilha dele.
— Já sabe o que dizia Shakespeare sobre as rosas e os nomes. Está demonstrado que todos
os Elliot cheiram igual. —A proximidade dela estava excitando-o, e se ela continuasse olhando sua
virilha, não demoraria para encontrar-se com uma surpresa.
— Oh, vamos Sarah, se anime! — Caia nua e sem inibições em minha cama, rogou em
silêncio.
— Como vou animar-me se insiste em ficar com esse quadro?

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— Já conhece minhas condições. — E também as conhecia o pequeno general oculto sob


suas calças.
Com os braços ainda cruzados, Sarah cravou os dedos nos cotovelos.
— Como vou poder cumpri-las bem se não deixarem de mudar? Primeiro me diz que me
entregará o retrato se em troca entrego o original. Logo diz...
— Alto aí.
— Por que?
O tom agudo de sua voz a delatou. Michael aproveitou seu momento de debilidade.
— Vou aceitar as duas coisas, sempre e quando o original seja você.
— Depois de tudo o que aconteceu é impossível que me deseje.
— Parece-me que não o entendeu. — bateu na coxa. — Sente-se aqui e direi com todo
detalhe por que a desejo e o que podemos fazer para remediar.
— Nada disso. Estou muito bem onde estou. — Para demonstrar deixou cair os braços e
passeou o olhar pelo aposento, como se estivesse passando um bom momento.
O relógio deu onze horas.
Sarah se sobressaltou, revelando o seu verdadeiro estado de espírito.
Michael olhou com intenção para o dormitório.
— Podemos ir para outro lugar.
Ela o obsequiou com seu habitual bufar de desdém.
— Asseguro que nem minha inteligência nem minha consciência desapareceram. Você
entretanto, esqueceu de sua promessa de se comportar honradamente.
— Honra-la ocupa um lugar importante na minha lista de prioridades.
— Me honrar? Sei no que consiste o posto de amante. Já me ofereceram isso antes.
O ciúme começou a apoderar-se de Michael.
— Quem?
Ela virou o rosto.
— Michael, se você terminou de fazer perguntas aborrecidas, eu vou.
Não, ainda não vai partir.
— Devo entender então que não se dedica a beijar e apresentar a conta?
— No que diz respeito a você, fazer isso não tem nenhum interesse para mim.
— Se dá tão mal em mentir como roubar. A menos que já não se interesse em conseguir o
retrato.
Ela demonstrou seu aborrecimento elevando seus bonitos olhos para o teto.
— Não penso em me deixar ser apanhada nesta estalagem e forçada ao casamento por essa
tela; que é exatamente o que acontecerá se alguém me encontrar nua com você neste quarto.
A posteriori talvez, porque uma vez que Michael tivesse Sarah ali nua, nem um exército de
pais revoltados poderia impedir que fizesse amor com ela.
— Se casar com um homem estando comprometida com outro? Tem umas ideias muito
liberais, Sarah MacKenzie.
Ela percebeu tarde demais o deslize; o rubor da vergonha tingiu suas faces.

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— Michael Elliot, é um bruto.


— Sim, bom... — Contemplou o tapete onde repousava o tecido enrolado. —Está noiva de
meu irmão. Eu diria que você é mais uma gratificação.
Sarah deu uma olhada à porta de saída.
— Queria ir para casa já. Desculpa-me?
— Ainda não. — Michael levantou o retrato por um de seus extremos e apoiou a mão nele.
Quer continue comprometida ou não, o casamento entre Henry e Sarah ficava fora de toda
discussão, e não só porque Michael tivesse jurado que ela ia ser dele. Henry ficaria no cárcere até
que pedisse publicamente perdão a Richmond, coisa que não aconteceria nunca já que Henry
possuía muito orgulho para humilhar-se.
— De que mais quer falar? —Perguntou ela. — E se tentar romper a promessa que fez a
Notch, começarei a gritar pela estalagem e farei com que o metam no cárcere por escândalo
público.
A presença do magistrado forçaria um casamento entre eles, mas recordar a Sarah só
serviria para irritá-la mais.
— Falta outro assunto — disse ele. — Obviamente você não escreveu para o Duque de Ross.
Será que é porque também não consegue encontrá-lo?
Os olhos emitiram um brilho de compreensão.
— Também?
— O advogado de Henry enviou um homem às duas propriedades do duque. Lachlan
MacKenzie não está em nenhuma delas. Nem sequer seus inimigos sabem onde se encontra.
— Não tenho a menor ideia. As idas e vindas do duque de Ross são assunto dele, e se o
conhecesse o entenderia.
— Acredito que é muito estranho que tenha desaparecido quando uma de suas filhas tem
problemas.
— Não necessito de sua ajuda para me defender dos Elliot.
— Entretanto, é um homem de família e um pai protetor. Duvido que pedisse permissão
para fazer algo por seu bem.
— Nesse caso você mesmo admite saber que não vai manter-se afastado durante muito
tempo.
— Está há três meses desaparecido e a duquesa não está preocupada.
Sarah tentou assimilar aquela afirmação contraditória. Lachlan estava há três meses
desaparecido? Isso queria dizer que devia ter partido pouco depois de lhe escrever a última carta.
Apostaria o que fosse que Juliet sabia exatamente onde se encontrava Lachlan.
Independentemente de como resolvessem as coisas, Sarah sabia que tinha que esclarecer
situação.
— Se lady Juliet aceita sua ausência, você deveria fazer o mesmo.
— Estou seguro de que tem razão — disse Michael. — Minha mãe e Henry deixaram de
procurar a Sua Graça, o duque de Ross. É possível que esteja simplesmente esperando-os
escondido em algum lugar?

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Sarah riu.
— O duque de Ross não é um covarde, se a isso se refere. Não existe batalha que Lachlan
MacKenzie tenha decidido fugir.
— Estou seguro que sua coragem é lendária, mas onde está? Você não tem nem ideia. Mary
não tem nem ideia. As duas estão se vendo forçadas a se casar com homens aos quais juram não
desejar. Que tipo de pai volta as costas a filhas que diz amar? Para não dizer que as malcriou sem
remédio.
A obstinação de Sarah fez sua aparição.
— Eu não sou uma malcriada.
Ele riu e sucumbiu à tentação de pegar outro caramelo.
Sarah esteve tentada a dizer que não era filha de Lachlan, mas um sexto sentido a
aconselhou que guardasse essa revelação para a condessa de Glenforth.
— O duque de Ross não pode ser responsável pela má escolha que fizemos Mary e eu
quanto a homens — disse em seu lugar.
Ele voltou a rir, de tão boa vontade nesta ocasião que se moveram os ombros.
Ela se aproximou da porta. Ele se precipitou para ela com a agilidade de um gato. Sem o
colete seus quadris e suas extremidades pareciam muito estreitas para suportar seu amplo torso.
— Não me toque — ordenou ela.
— Por que não? Teme recordar o quanto você gosta da sensação de meus braços ao redor
de seu corpo? A forma em que sussurra e pressiona seu peito contra o meu quando a beijo?
Ela tinha ouvido falar essas coisas antes, mas nunca da boca de um homem que tivesse
razão. Não obstante, Sarah MacKenzie aprendeu a ser audaz convivendo com três irmãs as quais
se davam muito bem com o estúpido jogo do cortejo. Decidiu fazer dela, adornando-a, uma das
respostas mais geniais de Mary.
Para dar efeito, olhou para Michael de cima abaixo.
— O prazer que senti quando me abraçou foram só coisas do momento. Não dê mais
importância do que tem nem tome como uma permissão para voltar a me tocar.
Ele ficou muito quieto, e ela teve o arrepiante pressentimento de que o tinha subestimado.
Michael pousou o olhar na ombreira do vestido que ela usava e que voltava a arranhar a
pele.
— Sarah — disse ele com tom ameaçador, voltando a levantar a vista. Quando os olhos de
ambos se encontraram baixou a voz. — O prazer que encontrou entre meus braços é o anúncio da
paixão que haverá entre nós. Amaremo-nos e outorgaremos a nossos filhos a capacidade de
encontrar seu próprio amor para toda a vida. Minta para salvar seu orgulho se quiser, mas não
minta a você mesma. — Suas palavras eram mais perigosas porque não se moveu para tocá-la. Seu
encantador sorriso incrementou a confusão de Sarah, já que se sentiu cativa dele e ao mesmo
tempo livre. — Tem uma capa? — Perguntou Michael.
Ela se controlou com esforço.
— Não.
Ele vestiu a sua e realizou o romântico gesto de abrigá-la com seu tartan.

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— Apesar de tudo, minha querida Sarah — disse ele sem deixar de sorrir, —por mais que
sinta dizer, as cores dos Elliot lhe caem muito bem. Se a houvesse visto usando o tartan de nosso
clã, Hamish a teria raptado sem mais.
Ela abriu a porta, completamente desarmada.
— Eu o devolverei amanhã.
— Não, eu irei a sua casa. — Encarregando-se tanto das emoções dela como de sua pessoa,
levou-a pelas escadas de trás, até o estábulo, evitando que a vissem na sala comum. Essa pequena
e inesperada consideração chegou diretamente ao coração de Sarah. Michael a sustentou no
braço como um cavalheiro e pediu a melhor carruagem da estalagem.
Enquanto lhes preparavam a carruagem, o ferreiro se aproximou deles.
— Lorde Michael, Cholly, o varredor, está esperando-o nos estábulos do Carter's Cióse. Está
mais furioso que um inglês sem uma garrafa de genebra.
Michael parecia exasperado.
— Quem é esse condenado Cholly? — Perguntou sem dirigir-se a ninguém em particular.
Sarah não conhecia a resposta; tinha a cabeça cheia de visões de crianças e amor duradouro.
— Por que razão te defende um maldito varredor? — Murmurou Michael enquanto a
ajudava a subir à carruagem e se sentava a seu lado.
O peso do braço dele sobre os ombros dela era digno de ser considerado; Sarah sabia que
ele estava mandando uma mensagem: nessa batalha de vontades ele ia ser o vencedor.
Para sua surpresa, ela estava começando a assumir o papel de vencido.
— O que vai fazer? — Perguntou, pensando que ele ia rir dela pelo suave tom de sua voz.
— Já que neste momento não posso ter você, estou bastante zangado. Quando a tiver
deixado em sua casa, eu vou descobrir se esse tal Cholly vale a pena.

CAPÍTULO 14

— Feliz aniversário!
Sarah ficou parada na soleira da porta do edifício da alfândega, surpresa.
Notch, os Odd, William e Sally começaram a dar pulos. Rose soltou um assobio e Helen
Lindsay aplaudiu. John Lindsey, exibindo sua roupa de gala das Highlands se somou ao caos,
tocando a gaita de fole.
Sarah se viu embargada pela felicidade e seus olhos se encheram de lágrimas. Agora
percebia que a indisposição de Rose naquela manhã era fingida. Quando Sarah voltou da Igreja
encontrou um bilhete de Rose, totalmente recuperada, em que dizia que se encontraria com Sarah
na alfândega.
— Há bolo e cidra. — Notch a agarrou pelo braço e a arrastou pelo corredor, até a biblioteca.
Uma das mesas estava coberta com uma toalha engomada, sobre o qual estavam dispostos
um bolo, uma terrina cheia de laranjas e cerejas, e um grande ramo de urze branco. Uma onda de
nostalgia invadiu Sarah. O agudo som da gaita de fole se converteu em um lamento, de acordo
com seu estado de ânimo.

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Rose, com os olhos chorosos, tirou dois lenços da manga e deu um a Sarah.
— Lang mae yer lum reek18 — disse a criada com um sorriso.
Isso era precisamente o que Sarah necessitava: sorte.
— Obrigada, Rose. Como conseguiu que todo mundo guardasse segredo? Ninguém disse
nem uma só palavra, nem sequer as crianças.
— Eles não souberam até esta manhã.
— Muito esperta. O bolo, foi você que fez?
— Quem seria se não eu? — Perguntou Rose, com descaramento.
— A senhora Rose diz que o bolo tem dentro mariposas de ouro — William apareceu junto à
criada. — Isso é verdade, lady Sarah?
— Sim, há umas doze grande assim. — Indicou o tamanho com o indicador e polegar
ligeiramente separados. — Se sua porção tiver uma mariposa dentro, Rose te dará um xelim.
Ele franziu o cenho.
— Isso é muito ouro para valer só um xelim, não é Notch?
— Sim, o joalheiro de Luckenbooths paga um bom preço.
Aquelas crianças não sabiam o que eram as tradições familiares; durante toda sua vida só se
preocuparam por sobreviver um dia mais. Mas isso acabou. Agora tinham uma casa com camas
confortáveis, comida em abundância e pessoas que se preocupavam com eles. Cuidar deles se
converteu em algo natural para Sarah.
— Se vender as mariposas, o que vamos colocar em seu bolo de aniversário? — Perguntou
ao líder do grupo.
Notch franziu o cenho.
— A única que sabe quando é seu aniversário é Sally, porque Right Odd a viu nascer.
Cada vez que Sarah acreditava saber tudo sobre eles, encontrava-se com outra surpresa.
— Nesse caso, que cada um escolhe um dia — disse uma voz autoritária muito familiar.
Michael estava na porta com um ramo de rosas sob o braço. — Feliz aniversário, Sarah.
O ânimo dela se elevou. Sua vida estava rodeada de incerteza há meses, mas com a ajuda
daquelas pessoas tinha encontrado seu lugar, e o futuro que via diante de si era tão deslumbrante
e valioso como as mariposas de ouro. A quem mais tinha que manifestar gratidão era a Michael
Elliot; sem ele o orfanato ainda continuaria sendo um sonho.
Antes que Michael fosse para Fife, havia pedido a ele que ensinasse história para as crianças
em sua escola dominical.
— Lembrou-se das lições — disse ela.
Michael se esquivou das crianças excitadas e cruzou a sala.
— Sempre cumpro minhas promessas, Sarah. São para você — disse, entregando as flores a
ela.

18
Lang mae yer lum reek é uma saudação que deseja vida longa e próspera, literalmente, que o fogo de sua lareira fique aceso por
muito tempo.

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Da noite para o dia passou de ser um patife impulsivo e íntimo a um amigo galante e
generoso. Ao vê-lo defender-se da enxurrada de perguntas dos outros, admitiu que estava muito
interessado neste homem sedutor, com seu ar militar e seu aspecto imponente.
— Obrigada por se lembrar... de tudo. — Sua voz tremeu de regozijo e esperança.
Notch ficou entre eles.
— Cholly disse que você não se demorou muito tempo a noite passada com Lady Sarah,
antes de acompanhá-la de volta para sua casa.
Só o suficiente para conquistar seu coração e sua alma. Agora, ao ver Michael e Notch
juntos, Sarah entendeu por que estava acostumada a ver alguma semelhanças entre eles. Nenhum
dos dois conhecia o que era o amor de um pai, e apesar disso ambos seguiam adiante.
— Quando nos despedimos, lorde Michael estava zangado — disse ela.
Ele a olhou com olhos famintos.
— Sim, bom... Depois de dizer boa noite, brigar outra vez com o varredor perdeu seu
atrativo. —Notch coçou a cabeça, desconcertado.
— Cholly não conta do mesmo modo. Ele diz que decidiu não te dar um nariz ensanguentado
e umas costelas quebradas, e isso foi depois que eu dissesse que você nos deu, a Foot e a mim sua
palavra de tratar bem lady Sarah.
Michael riu, mas Sarah suspeitou que seu bom humor se devia em parte ao orgulho. Ela
sabia que ele era muito cavalheiro para continuar falando do assunto com o suscetível Notch.
Para ajudá-los, apoiou uma mão no ombro de Notch.
— Quer que corte o bolo?
Notch assentiu e um sorriso infantil, que poucas vezes se via nele, apareceu em seu rosto.
— Vou encontrar em meu pedaço quase todas as mariposas.
— Eu que vou encontrá-las! — Afirmou Foot, seguido de um coro de declarações similares
por parte das outras crianças.
Depois que serviram o bolo e a comida e de entregarem os prêmios, Michael pegou Sarah
pelo braço e a levou ao salão.
— Algum conselho mais antes que comece a dar a aula?
— Por que? Crê que vai precisar?
Michael pensou que ela parecia mais alegre que nunca; os olhos brilhavam de felicidade e a
boca exibia um sorriso permanente. Se sentia falta da companhia de sua família no dia de seu
aniversário, dissimulava muito bem.
Michael conteve seu próprio nervosismo.
— Minha experiência no ensino começa com a obediência absoluta e termina com as táticas
militares.
Ela riu.
— É um método perfeito para controlar os meninos e Sally. Se assegure de separar Notch e
Foot. Foot é o que lê melhor e se oferecerá rapidamente como voluntário, mas Notch zombará
dele baixinho.
Dizia-o como se não fosse assistir à aula.

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— Aonde você vai se sentar? — Perguntou Michael aborrecido por essa razão.
A expressão dela se tornou pensativa.
— Tenho algo a fazer.
— Não pode esperar? —Ela suspirou.
— Não, levo vinte e três anos esperando. —Ele arqueou as sobrancelhas, animando-a em
silêncio que se explicasse.
Ela piscou e ofereceu um sorriso a ele.
— Uma coisa mais. Tem farelos no rosto.
Fosse qual fosse sua importante missão, ela não pensava contar nada a ele. Michael quis
protestar e oferecer-se para acompanhá-la, mas ela estava sorrindo de novo.
— Me ocorre uma forma muito agradável de me liberar dos miolos, sobre tudo aqueles dos
lábios, mas seria necessária sua cooperação — disse ele.
Ela elevou o olhar ao teto, fingindo exasperação.
— Estou segura que você poderá tirar isso sozinho. Boa sorte com a aula.
Sarah começou a afastar-se, mas ele não podia permitir que partisse.
— Quanto tempo vai estar fora?
A melancolia voltou a apoderar-se dela.
— Eu não sei.
— Como vai chegar até lá? — Michael não podia emprestar sua carruagem, já que tinha
enviado Turnbull a Glenstone Manor para que entregasse a lady Emily o dinheiro prometido.
— Alugarei um tílburi.
Voltou para a biblioteca e escolheu uma rosa do ramo. Depois disse algo em voz baixa a sua
criada, a qual assentiu e a ajudou a colocar a capa.
Enquanto Michael a via sair, pareceu-lhe que a sala ficava gelada. Entretanto, as crianças
não demoraram para reclamar sua atenção, e ele passou a hora seguinte explicando as
complexidades da cultura e a história dos habitantes da Índia.
Controlar as crianças resultou ser bastante mais fácil que conseguir convencer Rose.
Quando esta por fim decidiu proporcionar a informação, Michael se apressou a seguir Sarah. Vinte
minutos depois saiu do confinamento do tílburi em que esteve bamboleando sem cessar por toda
Edimburgo. O antissocial portador estendeu a mão para cobrar e então foi quando Michael se deu
conta de que gastou todo o dinheiro em resgatar as mariposas douradas de Sarah.
— Eu pagarei, Elliot. Você vá ajudar à moça — disse alguém do outro extremo da rua.
Era Cholly, o varredor. Estava sentado no chão, com as costas apoiadas contra um poste de
luz e segurando o cabo da vassoura com as mãos. Algo em sua postura disse a Michael que estava
ali há um bom tempo.
Vá ajudar à moça.
Sarah estava em dificuldades? O medo pôs seus pés em movimento. Rodeou o tílburi e pôs-
se a correr junto ao muro que rodeava o asilo de Saint Andrews. Uma vez que cruzou a porta do
antigo recinto, saltou por cima dos arbustos e de uma cerca de pedra construída pelos pedreiros

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na Alta Idade Média. Um bando de verderones19 saiu voando com muito ruído e os esquilos
subiram nas árvores.
Ao rodear pela esquina de trás, reduziu o passo.
Ela estava sentada em um pequeno cemitério e a cor rosa de seu vestido oferecia um forte
contraste com o cinza das lajes de pedra. Sua capa de cor azul escura se estendia em leque sobre
uma das lápides. Nas mãos sustentava a rosa.
Michael conteve o fôlego ao ler o que estava escrito no túmulo mais próxima.

Aqui jaz a amada mãe de Sarah,


Lilian White,
Reclamada pelo Senhor
Em 20 de Junho de 1762

Mais que um tributo aos mortos aquelas palavras eram uma declaração de afeto de um pai
para sua adorada filha. Michael decidiu que o duque de Ross era tão complicado como difícil de
encontrar. Onde estaria?
Sarah olhou por cima de seu ombro e descobriu Michael.
— Veio correndo todo o caminho? — Perguntou-lhe.
— Não. — Procurou algum sinal de tristeza no rosto dela. Ainda tinha os olhos alagados em
lágrimas e o nariz avermelhado pelo pranto.
— Como veio até aqui? — Perguntou ela. — Como me encontrou?
Michael se deixou cair junto a ela, muito aliviado para ficar de pé.
— Com um tílburi e através de Rose — respondeu.
Sarah baixou a vista para a flor que tinha na mão. Ao caule já não ficavam espinhos porque
os tinha arrancado com as unhas. Segundo suas palavras tinha esperado vinte e três anos para
visitar o túmulo de sua mãe.
Michael voltou a olhar a lápide.
— É uma lápide muito bonita.
Ela apertou as mandíbulas, elevou o rosto ao vento e respirou fundo pelo nariz. Lutou contra
a dor enquanto ele a observava e ganhou a batalha.
Havia dito a ele que sua mãe morreu ao dar-lhe a luz; mas ouvi-lo e ver o túmulo eram duas
coisas muito diferente. O primeiro emocionava, o segundo comovia. Sarah tinha encontrado a paz
ali; tinha obtido forças ao sentar-se naquele túmulo tão bem cuidado. Michael percebia sua
coragem.
— Que tal se saiu no orfanato? — Perguntou ela. Ele levantou as mãos.
— Consegui sobreviver, e sem nenhuma ferida. —A rouca risada dela não escondia as
lágrimas que tinha derramado.
— Me fale de sua mãe. —Ela fez girar a rosa.

19
Pássaro silvestre da família dos pardais.

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— Era uma órfã das colônias, da Virgínia. Lachlan a conheceu na Corte.


Michael quis perguntar por que o duque de Ross não se casou com a mãe de Sarah, mas a
resposta não era assunto dele.
— Você é parecida com ela?
— Quando criança sim — sorveu pelo nariz, — mas agora dizem que me pareço com meu
pai.
— Quem disse?
— Minha tia Juliet, a esposa de Lachlan. E ele concorda. —Ele recordou a história que Sarah
contou sobre uma preceptora que conquistou o amor de um duque.
— Onde está ele, Sarah? —Ela colocou a rosa sobre o túmulo.
— Eu não sei, mas agora que já estou pronta descobrirei.
Michael ficou em pé e lhe ofereceu a mão. Quando os dedos dela tocaram os seus, ajudou-a
a levantar-se sem esforço.
— Deve estar com frio — disse ele.
— Um pouco. — Ela sacudiu a capa. Michael a ajudou a colocá-la.
—A estalagem está perto, quer me acompanhar para beber um copo de vinho quente?
— Vai me entregar o retrato sem colocar condições? — Michael ficou calado, surpreso por
sua franqueza.
— E caso a resposta comece com um “Sim, bom”, não penso escutar.
Michael não era capaz de recordar a última vez que uma mulher tinha falado com ele com
tanta clareza, mas é que só existia uma Sarah MacKenzie.
— Faço isso?
— Sempre que decide não responder. — Sarah entrelaçou seu braço com o de Michael e
começou a andar pelo caminho. — Logo muda de assunto ou faz uma pergunta. Assim é como
evita ter que responder às perguntas incômodas.
Sentindo-se lisonjeado, Michael quis beijá-la naquele mesmo momento, mas as regras do
decoro o impediram.
— Já que me conhece tão bem, vou pensar em devolver o retrato.
Ela levantou uma sobrancelha.
— Sem condições — acrescentou ele a contra gosto.
— É a bondade personificada — disse ela com ironia. Quando saíram dos terrenos do asilo,
Michael procurou o varredor, mas a rua estava deserta.
— Quem conseguiu mais xelins?
— Quem você acha?
— Notch. — Ela riu. — Eu vou conseguir algum? —Michael pensou em várias respostas, mas
as descartou todas.
— Eu estou pensando em dar-lhe um prêmio melhor e mais pessoal.
Ela corou.
— Já imagino qual.
— Sim, bom...

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— Eh! Como eu disse.


Repreendido e com razão, Michael conteve a necessidade de defender-se. Esse dia era de
Sarah.
Percorreram em um agradável silêncio a curta distância até a estalagem. Umas pombas
rechonchudas rebolavam pela rua e nas cornijas dos edifícios. Poucos comerciantes abriam suas
lojas nos domingos à tarde, e o grêmio de artesãos estava completamente fechado. Calçadas
estavam desertas e pelas ruas só circulavam carruagens e tílburis.
O dia era quente e somente uma nuvem de vez em quando cobria de sombras brevemente a
cidade. Com a pressa, Michael havia deixado a capa no edifício da alfândega, mas não sentia sua
falta. Recordou o frio que notou ao chegar à Escócia e decidiu que o afeto que sentia pela mulher
que ia a seu lado não era a única mudança que tinha experimentado sua vida desde que partiu da
Índia. Agora também gostava do clima de Edimburgo.
O porteiro da Estalagem do Dragão se apressou a lhes deixar passar. Michael se deteve,
momentaneamente cego pela diferença entre a claridade de fora e a penumbra do interior.
Quando seus olhos se acostumaram, viu que as cadeiras e as banquetas estavam de barriga para
baixo em cima das mesas e do balcão. Uma criada estava esfregando as danificadas pranchas do
chão, e o penetrante aroma de sabão e de cândida impregnava o ar.
Sarah abanou o rosto com a mão. Michael a ajudou a tirar a capa.
— Quer vir aos meus aposentos?
Ela cravou seus olhos nos dele.
— Será apenas até que a criada tenha terminado e o ar volte a ser respirável — se apressou
a acrescentar Michael.
— Deixe de tentar parecer inocente, Michael Elliot, porque sua ousadia estragar o efeito.
Ele sorriu, e a conduziu para as escadas.
— Eu acho estranho não tropeçar com William ou com Notch nos degraus...
— Lorde Michael!
Michael se voltou e viu que o dono da estalagem se dirigia depressa para eles.
O homem lhe entregou uma caixinha azul.
— Alguém deixou isto para você.
Sarah ficou boquiaberta.
— Quem? — Perguntou em tom seco.
O hospedeiro deu de ombros, e como obrigavam os bons costumes, dirigiu-se a Michael
embora a resposta fosse para Sarah.
— Trouxe-a o porteiro. Disse que um desconhecido a entregou.
— Suba duas jarras de vinho quente em seguida.
— Sim, milorde.
Michael aceitou a caixa, impaciente por levar Sarah, e escoltou esta até seus aposentos.
Sarah foi subindo as escadas com muito cuidado. Há apenas um momento tinha feito
mentalmente as pazes com Lachlan MacKenzie. Este, como se tivesse lido seu pensamento, tinha-

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lhe enviado o que mais simbolizava o afastamento entre eles: o colar de Neville Smithson. Tanto a
caixa como o colar eram um presente de aniversário de seu verdadeiro pai.
Quando se sentou em uma das confortáveis poltronas, Michael lhe entregou a caixa.
— Acredito que isto é seu.
Sua mão tremeu quando abriu o fecho e levantou a tampa. Sobre o forro de cetim
descansava uma nota dobrada e sob esta as contas douradas, algumas delas quebradas, e todas
sem trespassar, tal e como ela as tinha deixado. A crueldade de Neville Smithson ainda lhe doía
como uma ferida aberta. Tinha perdoado Lachlan MacKenzie. As palavras do duque ressoaram em
seus ouvidos.
Jamais teria renunciado você, Sarah, querida.
Voltou a fechar a tampa.
— É Seu? — Perguntou Michael.
— Não o quero. Fique com ele e dê de presente. Atira-o ao lixo.
— Vamos ver Sarah. É muito valente para fugir de uma folha de papel e de um punhado de
contas. Leia a nota.
O tom de comando em sua voz a surpreendeu.
Uma forte batida ressoou na porta.
— Leia agora mesmo. — Enquanto Michael se aproximava para ver quem chamava, Sarah
abriu a caixa e tirou a nota. Ali, escritas com a letra inconfundível do duque de Ross, estavam as
seguintes palavras:
Volte para nós, Sarah, querida, porque sem você estamos tão quebrados como estas contas.
A súplica da mensagem fez com que as lágrimas caíssem pelas bochechas.
Michael se ajoelhou a seu lado com uma jarra fumegante na mão e o olhar fixo na nota.
— Eu troco com você — disse com um sorriso vacilante.
Ela aceitou a troca e quando rodeou com as mãos a jarra quente, a tristeza remitiu. No
transcurso dos últimos meses se comportou como uma covarde, sem pensar jamais na dor que
sua família estaria sofrendo.
Porque eles, os MacKenzie eram sua família. Por suas veias não corria o mesmo sangue, mas
o amor que lhe professavam morava em seu coração. Sua vida tinha transcorrido entre eles,
juntos tinham regozijado com cada novo nascimento e chorado a perda da querida Virgínia.
Ao recordar a dor daquela tragédia, Sarah soube que sua fuga tinha causado outro doloroso
golpe para a família. Não mereciam essa crueldade e menos ainda por culpa do orgulho de uma
mulher que foi educada com carinho e bondade.
Afogou um soluço.
A taça desapareceu de sua mão e Michael a levantou da poltrona e a rodeou com os braços.
— Calma — a tranquilizou, acariciando suas costas e embalando-a. — Tudo vai ficar bem,
Sarah.
Como? Tinha arrasado o castelo de Rosshaven, muito concentrada em compadecer-se de si
mesma para fixar-se na destruição que deixava atrás. Seus irmãos menores não deviam entender.

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Juliet certamente culpava a si mesma, e conhecendo sua madrasta, Sarah sabia que não suportava
sozinha aquela carga.
Onde estava Lachlan?
— Ai, Michael! Comportei-me como uma estúpida.
— Impossível. Você nunca poderia ser.
— Sou uma egoísta. Até você disse que era uma malcriada.
— Estava exagerando. É teimosa e decidida.
— Sou uma irresponsável. Fiz muito dano a eles.
Ele pôs um lenço na sua mão.
— Não fez de propósito. Tem muito coração para ser cruel, sobretudo com os MacKenzie.
— Oh, sim! O orgulho me afastou deles.
— Por que?
— Tinha a sensação de ser um estorvo. Mary e Agnes estavam fora, correndo aventuras,
Lottie casada com um homem a quem ama desde que era uma menina, e Lachlan e Juliet têm
outra família.
— Pensou que não precisavam de você.
— Isso e algo pior. Queria ter minha própria família e não quis escutar meu pai. Sabia que
Henry não era o homem adequado para mim.
Michael a manteve à distância de um braço. Inclusive com os olhos chorosos era fácil ver sua
inquietação.
— Cometeu algum assassinato? — Perguntou.
Sarah tinha os ombros encurvados pelo peso da dor.
— Não.
— Colocou em perigo a soberania do reino?
Ela exalou um trêmulo suspiro.
— Responda-me Sarah. Que você fez?
Ela esquivou seu olhar.
— Não.
— Roubou algo, além de meu coração?

CAPÍTULO 15

A dor de Sarah diminuiu, deixando em seu lugar uma faísca de esperança. Entretanto, nesse
momento, não podia ocupar-se daquilo; havia ainda muitas questões a serem esclarecidas.
— Tentei roubar o retrato — respondeu, esperando que ele entendesse.
— Como ladra você é um verdadeiro desastre — replicou ele com tom zombador, como se
estivesse repreendendo-a.
— E você é um canalha por se aproveitar das circunstâncias. Sabe que estou muito triste
para me defender.
Ele sorriu de orelha a orelha, como um marinheiro ao ver o mar.

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— Declaro-me culpado. Por que pediu a Henry que se casasse com você?
Ela respirou fundo e fixou o olhar no galão dourado que ele levava na jaqueta.
— Você não vai acreditar em mim. Meu argumento vai parecer muito ingênuo, e na
realidade é. Entre nós aconteceram muitas coisas.
— O suficiente para que saiba que sou um homem que forma suas próprias opiniões...
quando lhe dá a oportunidade.
Aquelas eloquentes palavras acabaram com todas as dúvidas de Sarah.
— Eu propus porque foi o primeiro homem com toda a dentadura que ao menos podia ler
minhas condições. —Um sorriso apareceu nos olhos de Michael.
— E ele esteve de acordo com elas.
— Sim. Veja, um dos requisitos é que devo ter dinheiro e meios próprios. Sou muito...
— Obstinada.
— Qualquer homem que me negar o direito a decidir sobre o que é meu é...
— Um estúpido. — Ele a atraiu para si. — Está melhor sem ele.
Apertou-a contra seu corpo como uma alma procurando sua outra metade. Sua
determinação se filtrou nela, impulsionando-a a render-se, exigindo que descobrisse o que sentia.
Ela desabou em seus braços e desfrutou da sensação de sua força, porque sabia, sem
dúvidas, que Michael Elliot a desejaria sempre e que era honesto até a medula. Não tentou
sufocá-la com a arrogante autoridade masculina, pelo contrário, quase sempre recorreu à
paciência e à compreensão. E à sedução, admitiu Sarah. Ele pegou seu rosto entre as mãos,
pressionou os lábios contra os olhos e as faces dela, e secou suas lágrimas com seus beijos. Com
um terno sorriso, Michael moveu ligeiramente a cabeça e aproximou sua boca da dela. Ele
cheirava a lugares exóticos e era o cavalheiro dos sonhos de Sarah feito realidade.
— Está me seduzindo — disse ela sem fôlego.
— Só como prelúdio do êxtase. — Sua boca desceu sobre a dela, murmurando: — Eu te amo,
Sarah MacKenzie, eu juro.
O desejo se apoderou dela e, enquanto ele aprofundava o beijo, permitiu que o juramento
que Michael acabava de fazer penetrasse em seu cérebro até que a necessidade que sentia dele a
enjoou.
Como se tivesse lido seu pensamento, Michael deslizou as mãos pelas costas dela e a atraiu
mais para si, demonstrando a intensidade de seu desejo. Ela se pegou a ele, desejando mais,
tentando aproximar-se mais e sufocar o fogo que ardia entre eles, mas as chamas se avivaram
quando introduziu a língua na boca, atiçando o inferno, alimentando sua luxúria e incitando-a a ir
em busca do grande prazer que com toda segurança estava por chegar.
Acariciou-a com as mãos, moveu os quadris contra ela e, quando o movimento adquiriu um
ritmo constante, Sarah não pôde conter um gemido.
Ele a levantou do chão, como se não pesasse nada.
— Segure-se em mim.
— Como se eu pensasse em te soltar! — murmurou ela, apoiando a cabeça sobre seu
ombro.

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Uma gargalhada retumbou em seu peito e os móveis dos aposentos passaram ante os olhos
de Sarah convertidos em uma mancha imprecisa. Uma vez no dormitório, Michael voltou a
apoderar-se de sua boca, em um beijo que ia além da sedução, já que continha uma promessa
muito valiosa para expressá-la com palavras.
Quando a depositou lentamente no chão, os joelhos de Sarah se dobraram e o quarto
começou a girar como um torvelinho. Ele afrouxou os intrincados nós das costas do vestido e o
deslizou até os quadris. O ar fresco do dormitório acariciou-lhe os braços, arrepiando sua pele,
mas o contato das mãos de Michael sobre seus seios acabou com qualquer sensação de frio. Sua
própria natureza agressiva saiu à luz e, tomando a iniciativa, soltou-lhe os botões do colete e
introduziu os dedos por debaixo do forro de cetim. Quando tentou tirá-lo ele encolheu os ombros
e o objeto caiu ao chão.
Começou a debater-se com os botões da camisa, e ele, ao perceber sua dificuldade,
interrompeu o beijo o tempo suficiente para agarrar a parte dianteira e abri-la de um puxão.
Os botões se estrelaram contra a parede.
Sarah conteve o fôlego ao ver os músculos de seu peito e de seus braços. Michael Elliot, mais
corpulento do que ela imaginava, surgiu ante ela enchendo sua mente de impressões
contraditórias: força e gentileza, elegância e poder.
Ele se esticou mais.
— Assustei-a?
Jamais poderia ter medo; sua musculatura despertava todas e cada uma das fantasias de
Sarah.
— Não. É... bonito. — Pela expressão aflita dele, parecia que disse que tinha verrugas no
queixo. — De uma forma completamente masculina —acrescentou rapidamente.
— Isso me tranquiliza. — tirou as botas. — Mas você está com muita roupa.
O olhar de Sarah seguiu a linha de pelo negro que se ia estreitando pelo ventre até
desaparecer sob a cintura das calças de veludo de Michael. As mãos dele se moveram para a
braguilha, mas se detiveram.
Ela levantou a vista e descobriu que a estava olhando.
Esquecendo a urgência, Michael se aproximou dela e o coração de Sarah começou a
retumbar como os tambores na noite de Todos os Santos. Ele cravou seus olhos nos dela e a
levantou pela cintura até que ambos ficaram à mesma altura. Manteve-a assim sem esforço
aparente, e voltou a beijá-la. De novo se viu atraída por sua força e deixou vagar as mãos por seus
braços, seus ombros e seu pescoço. Era tão duro e robusto como uma rocha, e entretanto, sob
essa aparência se escondia um coração amável e carinhoso.
Ele separou a boca da sua, levantou-a mais e, quando tocou seus seios com os lábios, Sarah
esteve a ponto de desmaiar. Jogou a cabeça para trás e lhe rodeou a cabeça com as mãos,
aproximando-o mais, desfrutando da sensação do cabelo sedoso de Michael deslizando entre seus
dedos.
O lento avanço da língua deste sobre seus mamilos e a suave sucção de seus lábios
provocaram uma punhalada de desejo no ventre e mais abaixo. Fez com que umedecessem as

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zonas mais ocultas de seu corpo e descobriu, enquanto ele seguia com o amoroso assalto a seus
sentidos, uma estranha sensação de enorme vazio no núcleo de sua feminilidade.
O hálito quente e ofegante de Michael contra sua pele provocou nela um estremecimento
de desejo. Seus dedos dos pés se enroscaram e suas pernas penderam inertes no ar. Tentou
agarrar-se a ele, segurar-se com os joelhos a seus quadris, mas a volumosa saia impedia.
Ele separou sua boca da dela e, quando os olhos de ambos se encontraram, Sarah viu
refletida sua própria paixão no olhar de Michael. Ofegantes, comunicaram-se sem palavras no
idioma surdo do desejo, da necessidade e dos anseios mais profundos de suas almas
A expressão dele parecia perguntar: Como se sente, amor?
A salvo contigo, respondeu seu coração.
Ele sorriu e a deitou na cama. Levantou-se e terminou de tirar seu vestido pelos quadris,
para logo lançá-lo ao chão junto com as anáguas e a regata. Depois seu olhar faminto iniciou um
íntimo percurso que começou nos seios e terminou nas virilhas. O ar ardia nos pulmões, mas
desejava tanto voltar a tocá-lo que suas mãos formigavam. Elevou os braços a modo de súplica.
Ele sorriu, agarrou-lhe os pulsos, virou-os e a beijou nas palmas das mãos. Ela fechou os olhos,
mas ele sussurrou seu nome obrigando-a a olhar.
Avançando com desesperadora lentidão, sem deixar de murmurar e gemer sua aprovação,
saboreou-a dos pés até a pele suave e sensível do interior dos braços. Quando deslizou a boca das
costelas até ao umbigo, Sarah sentiu que despertava nela uma profunda necessidade. Quando lhe
separou as pernas com as mãos, deixando-a exposta ante seus olhos, ofegou de surpresa.
Michael lhe ofereceu um sorriso diabólico e dirigiu a boca para o lugar mais íntimo de seu
corpo. Sarah se levantou a toda velocidade, ficando fora de seu alcance. Negou com a cabeça,
muito envergonhada para falar. O que ele tinha em mente ia além da decência e ela, ainda em
meio da confusão que sentia, não era capaz de conceber uma intimidade tão grande.
— Tudo bem, minha recatada Sarah — disse ele, tirando as calças.
Ela ficou olhando, surpreendida. Como suspeitava, Michael tinha umas pernas muito bem
formadas, mas sua virilidade, que se elevava com audácia entre suas virilhas, a fazia reformular
um monte de ideias infantis. Engoliu saliva para eliminar o nó que se formou na sua garganta.
— Quer uma taça de brandy? — Perguntou ele olhando-a com expectativa.
Tanta cortesia em meio de um desejo tão evidente levou um sorriso aos lábios de Sarah.
— Se tiver que ir além de onde seu braço alcança para me trazer isso então não.
Ao ouvir aquilo, ele se colocou em cima dela, deslizando os braços por debaixo de seus
ombros para não descarregar todo seu peso sobre Sarah. Ela separou as pernas e sentiu a carícia
de seu membro na face interna da coxa.
Ele respirou fundo e se afastou. Logo trocou de postura e deslizou uma mão entre suas
pernas. Ela ofegou ante o contato, lhe arrancando um gemido. Michael apoiou a cabeça no ombro
de Sarah, como se estivesse esgotado, e ela notou o comichão de seu cabelo comprido sobre a
pele, mas a sensação parecia vir de longe; seu cérebro estava pendente dos estragos que ele
estava causando com seus ágeis dedos.

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Os quadris de Sarah se moveram por vontade própria, compassadas com o movimento da


mão de Michael, entretanto, à medida que as carícias se prolongavam e ampliavam, sentiu-se
como se estivesse se elevando às alturas. Com uma explosão de puro êxtase, experimentou algo
tão místico que acreditou estar entrando no verdadeiro céu. Extenuada, chegou à conclusão que a
paixão era na realidade um som porque reverberava por todo seu corpo com pequenos sussurros
de júbilo.
Ele se levantou, elevou-lhe os quadris e se acomodou entre suas coxas. Ela notou o roçar de
sua excitação e se moveu para recebê-lo.
— Fica quieta, Sarah — disse ele com voz rouca. — Não sei nada sobre virgens, mas ouvi que
a dor é rápida e é melhor fazer sem opor resistência.
Sarah adorou ouvi-lo admitir que ela era sua primeira virgem.
— Deixei de resistir quando me tirou toda a roupa.
— De tudo não. — impulsionou-se para ela e acrescentou entre ofegos:— Negou certos
prazeres que eu queria dar-lhe.
— Qualquer mulher decente se oporia a algo assim.
— Sim, bom... da próxima vez você não vai se opor. E agora estou desejando fazê-la minha,
querida, e se o que estou vendo em seus olhos é real, acredito que você está preparada para se
desprender dessa virgindade, o que está me provocando um comichão em um lugar inominável.
— Os lugares inomináveis não estão permitidos.
Ele entrecerrou os olhos, tentando ter paciência.
— Falo muito, não é? — Sentiu-se obrigada a dizer Sarah. — Estou tagarelando para não
dizer nada.
Ela sentiu a gargalhada dele contra o estômago.
— Querida Sarah, é um gosto ouvi-la “tagarelar”, mas quando um homem está prestes a
fazer amor com uma mulher...
— Ele tem que continuar. Claro que sim. Mas não pense que acredito que seja um dever que
a mulher tenha que suportar.
Ele exalou um forte suspiro.
— Sabe muito sobre o tema?
— Sei tudo, exceto esses “certos prazeres” que tentou me impor.
— Sim, bom. Neste momento estou pensando em outro prazer.
— Mas se eu sigo tagarelando não o fará.
Ela parecia envergonhada e provocativamente atrevida ao mesmo tempo.
— Me perdoará se eu lhe causar alguma dor quando a fizer minha?
— A única coisa que não posso suportar é a demora.
Ele a possuiu rápida e completamente. O olhar de Sarah expressou surpresa e dor, e Michael
a tranquilizou com palavras suaves e com longos e profundos beijos.
Agora que a dor havia diminuído, Sarah tornou-se na agressora; encontrou um ritmo que lhe
arrancou profundos gemidos e incrementou a própria necessidade deles. Ele se introduziu
profundamente nela, possuindo-a por completo, para logo retroceder, como a maré. Quando a

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pressão se tornou muito intensa, Sarah sentiu que o êxtase se apoderava dela. Michael, sabendo
que ela estava à beira do orgasmo, cobriu-lhe a boca com a sua no instante em que ela gritava e,
um segundo depois, correspondeu esse grito com um rugido de satisfação masculina.
Sentindo-se incrivelmente completa, Sarah o rodeou com seus braços, até que a respiração
de ambos se normalizou e ele tombou a seu lado, arrastando-a consigo.
Os detalhes do quarto eram mais definidos; a luz do abajur brilhava mais que antes, o
relógio soava com uma cadência constante. Sarah percebeu que os baús com a roupa de Michael
estavam muito bem colocados contra a parede, e ainda, por cima da penteadeira, como soldados
em um desfile, estavam alinhados seus pentes, suas escovas e os artigos para barbear.
Sobre a mesa junto à cama, aproximadamente à distância de um braço, encontravam-se um
decantador e um copo. Michael tinha oferecido vinho, mas ela estava muito fascinada por ele e o
amor que a esperava para dedicar mais que um pensamento passageiro ao oferecimento.
Beber um copo de água agora parecia algo muito apetecível, mas sua sede diminuiu ante a
perspectiva de ter que sair de entre os braços de Michael.
Ele deu um beijo rápido nela, afastou os lençóis e saiu da cama. Com a mesma rapidez,
deteve-se e se cobriu.
— Sarah?
— Mmm, sim?
— Tenho que me levantar e me ocupar de algumas coisas para...
— Claro — disse ela, com repentino acanhamento. — Faça o que tem que fazer.
— Mas é que não tenho perto nada que pôr, exceto o traje com que vim ao mundo.
— Isso é o que levo eu também.
Ele ofereceu a ela um sorriso carregado de tranquilidade masculina.
— E devo confessar que lhe cai maravilhosamente.
O desconforto de Sarah desapareceu.
— É melhor que levar um tecido de saco.
— Exatamente. Estava-me perguntando se você ia se sentir envergonhada por minha nudez.
Sua preocupação agradou-a e compreendeu que o respeito pelos outros era algo inato nele.
— Não — respondeu. — Mas bem que vou desfrutar em olhar.
Ele levantou várias vezes as sobrancelhas com expressão lasciva e zombadora.
— Olhe o quanto quiser, querida.
— Mas se vir um ou dois roupões, poderia deixá-los por aqui perto.
Ele cruzou o dormitório, descalço e completamente nu, até chegar à cômoda. Umedeceu um
pano suave com a água da jarra e retornou à cama. Cheia de assombro, Sarah observou como
começava a lhe lavar as partes mais íntimas do corpo. Enquanto realizava a tarefa, sorria sem
nenhuma inibição.
— Está com sede?— perguntou Michael.
— De água — respondeu ela.

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Ele colocou um par de roupões aos pés da cama e lhe serviu um copo de água de uma
garrafa que estava tampada com uma rolha. Ela saciou sua sede e logo deslizou sob os lençóis. Ele
diminuiu a intensidade da luz do abajur, meteu-se na cama e recostou Sarah contra seu peito.
O som do relógio se fez mais forte.
— Não vou poder dormir — disse ela.
— Eu sei. — Michael lhe acariciou o braço.
— Nunca estive na cama com um homem.
Ele riu em silêncio e lhe beijou a fronte.
— Eu sei.
— Temos que dormir nus?
— A ideia me atrai.
— Nunca havia...
— Sido possuída duas vezes em uma noite, que é o que acontecerá se não dormir.
Ela percorreu seu peito com os dedos.
— Já disse que saí de Tain em busca de aventuras.
— Aventuras — repetiu ele pensativamente. — Continue provocando e parecerá que a
guerra é um nada, Sarah.
O espesso pelo negro dele fez cócegas na palma de sua mão.
— Está cansado?
— Não, absolutamente.
Ela percorreu a borda do lençol com uma unha.
— Eu seria capaz de começar a dançar.
Ele cobriu a mão dela com a sua.
— Houve um pouco de sangue. Você vai estar dolorida.
Ela o olhou fixamente nos olhos, nos quais ardia o desejo.
— Se dançarmos, só me doerão os pés — disse ela, afastando o olhar.
Ele emitiu um grunhido vacilante.
—Sabe dançar o reel20 em par? — Perguntou ela.
— Só na variante deitada.
Ela soltou uma risadinha e o abraçou.
Michael a apertou contra si e logo a virou para que ficasse de frente para ele. Só os
separavam o lençol e seu senso de honra.
Ela apoiou a mão contra a mandíbula de Michael, com uma sensação cálida e acolhedora. A
barba incipiente fez cócegas na palma da mão.
— Mas se não deseja...
Ele grunhiu, transpassou-a com o olhar e a segurou com mão de aço.
— Minha pequena aventureira, move a outra mão e descobrirá um novo território de
“desejo”.

20
Reel – uma das quatro danças folclóricas da Escócia.

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— Sim, bom...
— Sarah! Eu vou devolver a brincadeira em espécie.
— Disse que queria que me comportasse como uma rameira em sua cama, mas não estou
fingindo. Sinto-me deliciosamente desavergonhada. E a palavra “deflorada” não basta para
descrever o que aconteceu aqui.
Michael não conseguia decidir o que ele gostava mais em Sarah, se seu corpo ou sua
inteligência. Quando ela deslizou as mãos sob os lençóis e o acariciou, esqueceu-se por completo
de toda noção de cavalheirismo e fizeram amor novamente.
Mais tarde, muito esgotado para mover-se, recostou-a contra ele e adormeceu, com a alma
em paz e o corpo satisfeito.
Despertou ao som da voz de sua mãe. Abriu os olhos. A luz do sol alagava o quarto.
A condessa de Glenforth se encontrava aos pés da cama, com um nervoso Turnbull a seu
lado.

CAPÍTULO 16

— Michael, acorda!—Ordenou sua mãe. — Você tem que se levantar. Ocorreu uma desgraça
— Respirou fundo e olhou para Turnbull. — Não me avisou que havia uma mu-mulher na cama de
Michael.
O lacaio moveu a boca, mas não emitiu nem um único som.
Muito aborrecido para preocupar-se com a boa educação, Michael subiu mais os lençóis
para ocultar sua nudez e Sarah, que estava aconchegada contra seu peito. Ela escondeu-se
debaixo dos cobertores.
Sua mãe continuou fulminando-o com o olhar, tão imóvel como uma estátua.
— O que faz você aqui? — Perguntou Michael.
Turnbull retorceu as mãos com nervosismo.
Sua mãe agitou uma folha de papel.
— Richmond ordenou que transladem Henry para uma prisão de Botany Bay, uma colônia
penal do outro lado do oceano. Temos de fazer alguma coisa! Vão deportá-lo acorrentado.
— Ele mereceu — murmurou Sarah contra o ombro de Michael.
Os olhos de sua mãe pousaram na roupa dispersa pelo chão e logo nos dois ocupantes da
cama.
— Essa mulher é Sarah MacKenzie?
— Isso não é assunto seu, mãe. Turnbull, espera no corredor. Mãe, vai para a saleta.
— Espero que a saleta fique em Glasgow — disse Sarah.
— O que disse? — Exigiu saber sua mãe. — Não vou permitir que siga pondo os Elliot sob
suspeita.
Michael levantou uma mão para fazê-la calar e começou a contar até dez, em um intento
por controlar seu caráter.
Turnbull saiu a toda pressa.

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Quando Michael chegou aos seis, ouviu que sua mãe dizia:
— Se essa rameira continua contando mentiras sobre mim, ou se tiver tido algo que ver com
a deportação do pobre Henry, ocuparei-me de que a metam no cárcere por vender seus encantos
baratos entre a nobreza.
Michael escutou que Sarah emitia um grunhido surdo.
Michael se rendeu.
— Mãe! — Explodiu. — Vá para a outra sala agora mesmo! Reunirei-me com você dentro de
um momento.
— Teremos que fazer algo para solucionar este embrulho. — Deu meia volta e saiu dali,
fechando a porta.
Michael afastou os lençóis, pegou um dos roupões e lançou o outro a Sarah.
Ela tinha um aspecto maravilhosamente desalinhado, com o cabelo loiro caindo até a cintura
em um matagal de cachos, e a pele ligeiramente avermelhada de ira. Ou era de vergonha?
— Como você está? — Perguntou ele.
Ela olhou-o de esguelha.
— Traída.
— Por quem?
Ela agarrou o roupão e o colocou, mas era tão grande que suas mãos ficavam
completamente cobertas. Quando tentou dobrar as mangas para liberar os dedos, o movimento
fez que seus seios se movessem.
Apesar do problema que o esperava na sala contígua, Michael não pôde evitar outra
pontada de desejo. Tinha planejado passar todo o dia na cama com ela, fazendo amor e uma vez
satisfeito, pedir que subissem a refeição. Mas se sua forma de mover-se era um sinal de seu
estado de ânimo, Sarah não tinha o menor interesse em voltar a fazer amor com ele.
Levantou-se e estendeu uma mão para ajudá-la a sair da cama.
— Fale comigo Sarah. Diga-me o que está pensando.
Ela retirou o cabelo dos olhos que agora soltavam fogo. Saiu da cama, ignorando a ajuda que
ele oferecia, e começou a recolher sua roupa a toda velocidade.
Ele se aproximou da porta com intenção de lhe dar uns minutos para que se tranquilizasse.
— Só será um momento.
Para seu assombro, ela saiu pela porta diante dele e se aproximou até sua mãe.
— Uma entrada em cena impecável, lady Emily — disse Sarah. — Mas não me enganou.
— Enganar? — repetiu a mãe de Michael, olhando para Sarah de cima abaixo. — Ah! Era de
esperar que uma bastarda das Highlands se comportasse de uma maneira tão deplorável.
— Nesse caso, vou dizer-lhe algo. O duque de Ross não é meu pai. A única coisa que fez foi
me acolher quando meu verdadeiro pai me abandonou.
Michael ficou paralisado, perguntando-se quantas surpresas mais o esperavam. Essa era a
recompensa por uma noite de amor maravilhosa?
O olhar de sua mãe passou dele a Sarah.

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— Esperava algo melhor para Michael, mas agora já não se pode fazer nada — disse lady
Emily por fim.
— Como esperava algo melhor? — Atacou-a Sarah. — Tratou-o de uma maneira horrível, e
isso quando se dignava sequer a pensar nele. O único que lhe importa é Henry. Michael era tão
somente um bebê e você o abandonou em Fife para que os Lindsey o criassem.
Lady Emily contemplou as mãos, rígida de indignação.
— Permitirei que se case com você, mas não por quinze mil libras — Levantou os olhos e
brocou Sarah com um olhar de aço. — Se quiser que Michael se case com você, uma ple-plebéia, o
preço será de trinta mil libras.
Sarah cruzou de braços e lançou um bufo.
— Não existe nenhum dote; não sou filha de Lachlan Mackenzie.
— Desde quando sabe? — Perguntou lady Emily.
— Contaram-me no dia anterior a minha chegada a Edimburgo.
Michael acreditou, e entendeu nesse instante por que se negou a estabelecer contato de
qualquer tipo com Lachlan MacKenzie. Estava ferida e confusa.
— O duque de Ross assinou o contrato matrimonial — discutiu sua mãe. —Tenho um
mandato judicial que o obriga a liberar os recursos que depositou no banco do senhor Coutts.
— Você é tola? — Sarah levantou a voz. — Eu li a lei e você não pode reclamar meu dote.
Nenhum tribunal estará a seu favor.
Ao ouvir aquilo a atitude da mãe de Michael mudou.
— Duvido muito que vamos necessitá-lo — disse, teimosa e orgulhosa. — Fiz alguns acertos
para que o grande Lucerne venha aqui para dar um concerto. Os benefícios da venda das entradas
bastarão para liberar Henry.
O mau humor de Sarah se transformou em desprezo.
— Esses acertos dos que fala, você os fez com uma dama da aristocracia que conheceu em
Londres? Uma com um colar de jade rosa e uma criada oriental?
A expressão de lady Emily tingiu com desconfiança.
— O que tem ela?
— Resulta que é Agnes MacKenzie. Criamo-nos como irmãs e ela é uma das filhas
verdadeiras do duque de Ross.
Michael soltou uma maldição.
— Tolices!
— Ouça bem, Lady Emily— disse Sarah entre dentes. — Se voltar a me acusar de dizer
tolices, arrancarei-lhe a peruca e a atirarei ao balde de lixo mais próximo. Eu não digo coisas
estúpidas!
Ao ver que suas esperanças de liberar Henry desapareciam, lady Emily suavizou o tom de sua
voz.
— Duvido que aquela mulher seja sua irmã, mas embora o seja, não tem nenhum direito a
interferir em meus planos para o concerto.
Michael se sentia como se estivesse em meio de um pesadelo.

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Entretanto, Sarah não tinha terminado ainda.


— Mas será que não percebe, estúpida Elliot? Foi Agnes quem se aproximou de você.
Provavelmente foi ela mesma quem lhe tirou a bolsa. Agnes MacKenzie a enganou em represália
por quão mal você me tratou.
— Como você sabe? A menos que a incitasse a fazê-lo.
— A palavra “lealdade” fez parte alguma vez de seu limitado vocabulário?
— Se o que diz é verdade, e ela não é na realidade sua irmã, por que ia ser leal com você?
Sarah levantou as mãos para o teto e saiu da sala dando pernadas.
— Fora! — Gritou Michael a sua mãe, depois de abrir a porta de saída.
Ela ficou em pé, cheia de incredulidade.
— Não. Não pode me ordenar que vá. Permiti que Henry estragasse sua vida, não vou
consentir que você faça o mesmo.
Michael fechou a porta cheio de raiva e começou a passear
— Vou te manter afastado dessas horríveis casa de jogo, embora para isso tenha que
empregar todas as minhas forças — continuou dizendo ela. — Não vai perder o tempo em Londres
sempre que te dê a vontade.
— Mãe! — Gemeu ele com frustração.
— Vai ser alguém.
Michael deu um murro na lareira. O relógio deu um salto e a coleção de caixas caiu ao chão.
— Já sou alguém, mãe. Se tivesse se incomodado em perguntar, saberia.
Acostumada como estava a dar ordens, ela nem se inteirou.
— Não importa o que diga lady Sarah, deve saber que nunca quis enviá-lo a Fife. Foi coisa de
seu pai. Proibiu-me “malcriar a outro de seus filhos”, como ele dizia. Eu só tinha dezesseis anos
quando fiquei grávida de você, e era muito jovem para enfrentar meu marido.
Santo Deus! Não era mais que uma menina quando deu a luz a Henry. Uma criança
educando outra criança. Por que Michael nunca se inteirou da idade que tinha sua mãe?
Porque suas primeiras lembranças eram os de um menino de cinco ou seis anos, montando
em seu pônei ante um pai de cabelo grisalho, e demonstrando sua habilidade com o arco e as
flechas. Lady Emily era como uma pequena sombra na imagem, ou nem sequer estava presente.
— Não vamos mandar seus filhos a Fife — declarou sua mãe. — Os educaremos aqui.
— Educar meus filhos? Primeiro tenho que engendrá-los!
Ela ficou rubra e desviou o olhar para o dormitório. Michael tentou controlar sua ira ao dar-
se conta do quão absurdo era o que acabava de dizer.
— Mãe — começou a dizer com paciência. — Eu amo Sarah Mackenzie, e eu vou fazê-la
minha esposa, mas se não sair antes que ela se vista e saia por essa porta, não vai haver nenhum
casamento.
A expressão de lady Emily se suavizou.
— Claro que ela vai se casar com você. Você tem o charme dos Elliott, não está arruinado
por culpa do jogo, e tendo em conta o caráter que ela tem, é mais que suficiente para você.
Parece-se com seu avô, sabe? Autoritário e muito dono de si.

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— Mãe!
— Vamos, Michael. Não grite assim. É impossível que possa vestir-se sozinha.
Para demonstrar que estava equivocada, a porta do dormitório se abriu de repente e uma
zangada — e ainda despenteada — Sarah, irrompeu na sala.
— Eu disse — choramingou a mãe de Michael. — O vestido está mau abotoado. E olhe o
cabelo dela. Terá que fazer algo com ele antes de chamar o pároco para que os case.
— Nos casar? — Sarah riu. — Jamais. Já estou farta dos Elliot.
— Que outra coisa se pode fazer?
— Vou demonstrar. — Erguendo a cabeça, com o cabelo penteado de má maneira caindo
pelos ombros, Sarah se dirigiu à porta.
— Pare!— Estalou Michael com sua voz de general.
Fazendo ouvidos surdos à ordem e cega a tudo o que não fosse sair correndo, Sarah
continuou andando.
— Um passo mais, Sarah MacKenzie, e a trarei de volta arrastada.
Ela lançou um bufo, meteu os sapatos debaixo do braço e agarrou a maçaneta da porta.
— Digo-o a sério, Sarah. — Michael se lançou para a porta e fechou o ferrolho. — Não vai a
nenhuma parte.
Ela estampou o pé na tíbia dele e ele estremeceu de dor.
— Abre essa maldita porta.
Ele a agarrou pelo braço e a obrigou a retroceder, logo se voltou para sua mãe e ordenou:
— Fora!
A condessa olhou para Sarah com ansiedade.
— Espero que além de causar sua ruína não vá machucá-lo.
Sarah estremeceu de raiva.
— Causar minha ruína? ? A única coisa a preocupa é que se danifique a mercadoria. —Lady
Emily retrocedeu um passo.
— Nunca me desgostou realmente, Sarah MacKenzie.
Sarah fingiu sentir-se aliviada.
— Não pode você imaginar o quão feliz que me faz escutar isso. Você é uma mulher cruel e
egoísta que não saberia reconhecer a diferença entre gosto e desgosto embora o arrastassem por
baixo dessa estúpida peruca empoada que leva.
Michael não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo.
— Você disse a Henry que me enviasse a Fife. — disse lady Emily, erguendo-se.
— Isso é uma enorme mentira. Henry mal falava de você. A única coisa que falava Henry era
sobre Henry.
Michael tinha a sensação de estar em meio de uma briga entre dois tigres de Bengala.
— Só encontrou Henry três vezes, antes de mandar esse contrato — cuspiu lady Emily.
— Nesse caso, o quatro deve ser meu número da sorte — zombou Sarah. —Amaldiçoo o dia
que pus os olhos em seu filho. — Fulminou Michael com o olhar. — Nos dois! Deixe-me sair daqui.
Ele a segurou mais forte.

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— Se acalme, Sarah. Na realidade não é comigo com quem está zangada.


— Então é tão estúpido como ela. Seduziu-me e pediu a ela que viesse para que nos
encontrasse juntos. E agora afasta a mão de meu braço. Vou embora.
A mãe de Michael se aproximou da porta.
— Não. Alguém tem que ir procurar o pároco, e serei eu.
Michael pôs Sarah atrás dele.
—Sim, mãe, você vai, mas à Igreja notificaremos Sarah e eu.
Assim que tirou o ferrolho, Sarah deu um empurrão nele e saiu correndo para o corredor.
Lady Emily saiu atrás dela. Em sua pressa por chegar à porta, Michael esteve a ponto de atirar sua
mãe ao chão.
Quando conseguiu afastá-la e sair ao corredor, deteve-se em seco.
No patamar se encontravam William, Turnbull, os Odd e um magistrado furioso.
Sarah saiu correndo da estalagem em companhia de Rose e com Notch pisando nos
calcanhares.

Lágrimas de vergonha e pesar caíam pelas faces de Sarah e se mesclavam com a água da
banheira. O arrebatador e masculino aroma de Michael a perseguia, e por mais que ensaboasse a
pele ou a quantidade de perfume que jogasse à água, não conseguia livrar-se de seu aroma
embriagador.
Também as lembranças de sua ternura se negavam a abandonar sua mente. Estremeceu e se
afundou mais na banheira.
Não só tinha traído o amor e a lealdade da família MacKenzie, além disso tinha jogado fora
todas as chances de um casamento de amor ou de levar uma vida respeitável em Edimburgo.
Todos a apontariam com o dedo dizendo que era uma mulher promíscua e que não era apta para
fiscalizar o orfanato. O orgulho e a obstinação tinham provocado sua queda e sua sedução.
Na rua, os sinos de Saint Giles anunciaram meio-dia. Assim que conseguisse controlar as
emoções que foram provocadas pelo desastroso encontro com lady Emily, Sarah pensava escrever
o recurso que ficaria anulado a tentativa dos Elliot de apoderar-se de seu dote. Mas como ia
concentrar-se em recuperar o dinheiro se não conseguia deixar de chorar? Escondeu o rosto entre
as mãos, rendeu-se à tristeza e soluçou. Não sabia por que lhe puseram quando era pequena o
apelido de Sensata. Pelas coisas que tinha feito no transcurso dos últimos seis meses, teria sido
mais acertado chamá-la Sarah, a Parva.
Mas a estupidez da noite anterior, era um nada comparada com seus outros enganos. Tinha
entregado o coração a Michael e, quando mais necessitava de seu apoio, ele se comportava como
um verdadeiro Elliot.
Seu estômago se revolveu ao recordar os insultos e as mentiras que a mãe de Michael havia
dito, mas ainda a surpreendia mais seu próprio comportamento. Fazer alarde de seu pecado e ter
provocado o maior escândalo da cidade ao ir embora coberta tão somente com o roupão de um
homem e recém saída da cama deste.

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Clã Mackenzie 03

No que estava pensando? Em nada; Michael e a paixão que ambos tinham compartilhado
tinha eliminado seu senso de decência.
Inclusive sabendo a verdade, Sarah não podia evitar desejar estar enganada. Seu coração
rompeu ao recordar a declaração de amor de Michael e sua própria resposta.
Eram sinceras as palavras de carinho de Michael? Era sincera sua promessa de amor?
Pode ser que sim, mas nenhum homem aceitaria de bom grado uma harpia como
companheira para toda a vida.
A sensação de perda e a decepção foram como uma punhalada; levou as mãos ao ventre
com a esperança de acalmar a dor. Recordou as mãos de Michael ao acariciá-la, sua boca tocando-
a em lugares que não podiam ser pronunciados fora do leito conjugal.
O leito conjugal. O pranto aumentou. À luz do dia, as horas de gloriosa paixão eram como
um pesadelo. O rumor sobre todo aquele assunto se estenderia como uma praga.
Sarah, surpreendida na cama de Michael Elliot. Sarah, gritando como uma lavadeira com a
condessa de Glenforth. Sarah, completamente desarrumada, saindo da estalagem em uma
carruagem. Sarah, o tema de conversa em todos os botequins e salões.
Lachlan MacKenzie sofreria por sua desonra. Justo quando ela acabava de fazer as pazes
com seu passado, atirava pela amurada seu futuro. Inclusive na suposição de que Michael a
perdoasse, ela não podia perdoar a si mesma.
Audaz e temerária. Era ambas as coisas e muitas mais. A necessidade de fugir a levou a dar
por terminado o banho e a vestir-se. Ordenou suas ideias nos tranquilos limites do dormitório e
redigiu os argumentos para refutar a reclamação dos Elliot sobre o dinheiro que tinha depositado
no Banco de Edimburgo.
Conteve outro acesso de vergonha e pediu uma carruagem, mas quando chegou ao banco
descobriu que lady Emily não tinha apresentado o mandato judicial; não obstante, o senhor Coutts
a assegurou que, embora tivesse recebido tal documento, não teria liberado o dinheiro.
Sarah se inteirou por um empregado que lady Emily havia partido de viagem a toda pressa
em direção a Londres. A notícia da queda de Sarah ia de caminho à Corte de Saint James.
Muito perturbada para suportar mais companhia que a sua própria, retornou a sua casa e
começou a escrever cartas de explicação e desculpa para sua família.
Um momento depois, Rose apareceu na porta.
— Lady Sarah, venha depressa. Notch diz que Cholly e o general estão brigando em
Pearson's Cióse pelo que aconteceu ontem à noite.
Sarah pôs-se a correr pelas ruas de Edimburgo como se a perseguissem todos os demônios
do inferno. Não podia suportar a ideia de que Michael desonrasse a si mesmo em uma briga de
ruas por sua culpa. E com o varredor! Que motivos tinha o estranho Cholly para sair em sua
defesa? Sua ousadia ia fazer com que o metessem em Tolbooth, porque era dever do magistrado
fazer cair todo o peso da lei sobre qualquer trabalhador normal e comum que atacasse um
membro da nobreza. Também se sentia responsável pela grave situação em que se encontrava
Cholly. Na esquina entre a High Street e Pearson's Cióse, encontrou-se com a multidão reunida
para a ocasião.

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— Dez libras mais pelo varredor — exclamou alguém. — Partiu o lábio do general.
—E por que não? O general o chamou de velho estúpido intrometido.
— Isso foi depois de que Cholly lhe dissesse que era um Lowlander21 beijador de sapos.
— Aposto todo meu dinheiro no general. É muito rápido para o velho Cholly.
— Abra os olhos, amigo. Cholly não é velho.
Cada vez mais envergonhada, Sarah foi abrindo caminho a cotoveladas entre a multidão de
espectadores que os animavam. Divisou Notch e seus amigos do outro lado da rua. Sally
contemplava excitada o espetáculo dos ombros de Right Odd.
Ambos os homens estavam concentrados na briga, rodeados por uma multidão. Michael
estava em frente a ela, mas as largas costas de Cholly lhe bloqueavam a visão. Michael se moveu
para a esquerda para se esquivar de um golpe.
Agora que Sarah podia vê-lo bem, olhou para ver se encontrava alguma ferida. O sangue do
lábio partido tinha manchado a gravata branca. Tinha o colete e as calças sujas e rasgadas. A parte
superior de uma de suas bochechas estava inchada, o que tornava seu semblante mais ameaçador
ainda. Seu coração deu um tombo pela preocupação. E se ficasse aleijado para sempre ou
acabasse morto?
Podia acontecer porque era evidente que seu oponente era muito hábil com os punhos.
O certo era que o varredor sem seu capote parecia mais jovem. Possuía costas largas e seu
cabelo descuidado e sem brilho; uma prova de sua humilde condição. Mostraria sua cara sinais da
briga? Sarah saberia se ele se virasse.
Michael apertou os dentes e lançou uma saraivada de murros. Sarah estremeceu ao saber
que seu oponente ia acabar com um olho roxo.
— Ei, amigos! — Gritou o homem que estava ao lado de Sarah. — Lady Sarah veio assistir.
Cholly lançou uma conhecida maldição escocesa e atacou. Michael se esquivou mas o
seguinte golpe pegou em cheio na mandíbula. A cabeça foi para trás e ele cambaleou. O varredor
aproveitou a oportunidade e se lançou à carga como um touro enfurecido, cravando Michael
contra uma porta, que cedeu quando a madeira se lascou. Ambos os homens transpassaram a
soleira sem fixar-se em nada que não fosse a briga.
Sarah se lançou atrás deles antes que as pessoas voltassem a fechar fileiras e a impedisse.
Uma vez no interior segurou à porta, a qual pendurava, torcida, de suas dobradiças.
— Fora daqui todo mundo! — Gritou.
A resposta foi uma série de vaias e protestos.
A suas costas se ouviu o ruído de algo quebrando-se. Os espectadores que estavam mais
perto esticaram o pescoço para ver melhor a briga.
Sarah estava decidida a terminar com aquilo e a julgar pelas expressões dos presentes,
nenhum deles ia ajudá-la. Não conhecia ninguém.
— Vá chamar o magistrado — gritou ao ver Notch —. E busca Turnbull.
O menino assentiu e saiu correndo.

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Lowlander originário das planícies, um insulto porque os Highlanders são das terras altas.

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Ela empurrou com o ombro a porta quebrada e tentou voltar a colocá-la. As dobradiças
protestaram. Sarah não se deu por vencida e a porta se colocou em seu lugar depois de um último
empurrão. Passou o ferrolho.
O ar se encheu de grunhidos e assobios. Um pouco de cerâmica se estrelou contra o chão.
Virou-se e tentou ver algo na estadia fracamente iluminada. Os postigos das janelas estavam
fechados e só permitiam a passagem de uns fios de luz.
— Michael! Pare! — Gritou.
Escutou um sonoro grunhido, seguido de mais ruídos.
Sem saber o que fazer, dirigiu-se para os postigos e os abriu de tudo. O mobiliário foi
tomando forma, viu uma grade de lareira e uma mesa de marchetaria sobre a qual descansavam
uns quantos cachimbos e um pote de tabaco. Teve o tempo justo para fixar-se naquelas coisas
familiares antes que ambos os opositores caíssem sobre a exposição de artigos do fumante.
Michael agarrou o varredor pelos ombros, elevou-o do chão e o lançou contra uma cadeira.
A luz deu totalmente na face de Cholly e Sarah o reconheceu.
Era Lachlan MacKenzie.
— Papai! — Exclamou.
Ele se virou para ela, tentando recuperar a respiração. Naquele momento, o punho de
Michael se estrelou contra sua cara.
— Michael! — Sarah cruzou rapidamente a sala e segurou seu braço. — Por favor, pare. Tem
que parar. Se afaste dele.
Ele sacudiu a cabeça, aturdido, o peito inchado e os punhos fechados para continuar com a
briga.
— Vai matar o duque de Ross — disse ela, agarrando-o pelo braço. — Não é um varredor. É
Lachlan MacKenzie.
Ele piscou, tentou recuperar o fôlego e por fim prestou atenção nela.
— O que disse?
Ela se deixou cair ao chão, junto à cadeira sobre a qual estava o duque de Ross, muito
calado.
— É Lachlan MacKenzie.
Para seu assombro, Michael jogou a cabeça para trás e começou a rir.
O duque gemeu e levou a mão ao pescoço dolorido.
— Sarah, querida? — Perguntou com voz insegura.
— Estou aqui, papai — sussurrou ela, afastando seu cabelo dos olhos e olhando para ver se
tinha alguma ferida grave. Entretanto, as lágrimas lhe turvaram a visão. Lachlan MacKenzie estava
há meses em Edimburgo. Tinha estado cuidando dela, disfarçado de varredor.
O amor fez-lhe um nó no peito.
— Diga algo, papai.
— Ai Sarah, querida! — Pôs uma mão sobre as dela. — Pensei que nunca voltaria a falar
comigo.
— Sinto muito, papai. Não te trouxe mais que humilhação e desonra.

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— Não, quem sente sou eu. Deveria ter ido buscá-la ontem no cemitério, mas acreditava
que amava este miserável.
— E me ama, estúpido intrometido.
Lachlan entrecerrou os olhos.
— Vai pagar por isso, canalha desprezível. Por Deus que se Hamish ainda estivesse vivo me
ajudaria a acabar com você.
— Acabar comigo? É você quem não tem forças para levantar-se.
Lachlan tentou levantar-se da cadeira.
— Quieto — ordenou Sarah, apoiando uma mão no seu peito para detê-lo. Levantou o olhar
e acrescentou: — Michael vá procurar um pano úmido. Juliet não vai me perdoar nunca se tiver
destroçado o rosto.
Lachlan sorriu de orelha a orelha, mas estremeceu de dor.
— Estou seguro de que Elliot também perdeu seu bonito aspecto. Com essa cara vai
demorar bastante em afundar outra moça.
— Papai, se cale.
— Isso que diz é certo, Ross — interveio Michael, apoiando uma mão no ombro de Sarah
com atitude possessiva, — porque vou me casar com Sarah assim que tenha curado as feridas de
seu rosto.
— Antes um Stuart voltará a sentar no trono da Abadia de Westminster, maldito
desgraçado.
— Pela Santa Maria bendita! — Exclamou Michael. — Todos os MacKenzie são tão teimosos
como vocês dois? Pergunto-me como lhes permitem andar pelo mundo.
Michael queria convertê-la em sua esposa. Queria-a apesar do espetáculo em que se
converteu e embora não fosse de sangue azul.
Sarah secou as lágrimas, completamente feliz, e olhou com carinho ao homem coberto de
farrapos e que se dedicou a varrer as ruas para protegê-la.
Lachlan deve ter pressentido seu estado de ânimo.
— É verdade que quer ter este Elliot fanfarrão por marido? — perguntou-lhe.
Michael grunhiu a modo de advertência.
— Volte a dizer algo assim e não o convidarei à cerimônia, Sua Graça.
— Oh, por favor, parem de brigar! — Suplicou Sarah.
— Será necessário algo mais que um murro para me manter afastado. O que aconteceu com
o resto dos Elliot?
Sarah recordou o que tinha acontecido essa manhã e voltou a entristecer-se. Levantou a
cabeça e olhou para Michael.
— Sinto muito as coisas que disse a sua mãe.
— E eu sinto não ter intervindo antes. Ela merecia, e também pede que você a perdoe.
— Já me transmitiu suas falsas desculpas com antecedência; no dia que nos conhecemos.
Ele levou uma mão ao coração.
— Juro por minha honra que ela disse que sentia.

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— Honra! — Soprou Lachlan. — O que sabe um Elliot sobre a honra?


— Silêncio, papai.
— Por que lady Emily foi para Londres?
— Para pagar Richmond.
— Como? O senhor Cutts se negou a lhe entregar meu dote. De onde pôde tirar essa
quantidade de dinheiro?
Michael pressionou o pano contra a bochecha ferida, com expressão repentinamente
envergonhada.
Lachlan riu.
— Vai dizer a verdade a ela ou faço eu, Elliot?
Sarah passeou o olhar de um homem a outro, cheia de confusão.
— Dizer-me o quê?
— Eu dei o dinheiro — admitiu Michael.
— Mas ainda há mais, Sarah, querida, mas deixemos que este desgraçado sofra enquanto
lhe conta tudo.
— Tudo do quê?
— Ao longo dos anos obtive uma boa quantidade de dinheiro, investindo na Companhia
das Índias Orientais.
— Segundo um amigo, Cameron Cunningham, a única vez que Michael Elliot perdeu
dinheiro foi com um carregamento de chá durante uma rebelião no porto de Boston — interveio
Lachlan rindo.
Sarah não sabia se zangava-se com ele por não ter dito antes ou voava para seus braços.
Decidiu recorrer à lógica.
— Nem todo o dinheiro do mundo será suficiente para pôr Henry em liberdade, se não pedir
perdão.
— Isso é verdade — disse Michael com tristeza.
— Conheço Richmond muito bem — interveio Lachlan. — Não vai perdoar a ofensa, e pode
ser que o lugar de Henry seja Nova Holanda. Nesse caso o título passaria a ser seu.
— Ele não quer isso, papai — disse Sarah, cheia de orgulho. — Quer ocupar um banco na
Câmara dos Comuns por méritos próprios.
O duque de Ross flexionou os dedos de sua mão direita e logo a ofereceu a Michael.
— Vai precisar fazer uso desse tipo de sensatez para dirigir minha Sarah.
Ela soprou.
Michael ajudou o duque a levantar-se.
— Tenho uma pergunta a fazer. Se você não é seu pai, quem é?
Lachlan levou as mãos aos rins e se estirou.
— Diga Sarah.
Michael passou um braço por cima dos seu ombros e a atraiu para si.
—Sim, diga-me.

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Convencida do amor de Michael e na presença do único pai que tinha conhecido, Sarah falou
de Neville Smithson.
Quando Sarah terminou de falar, Lachlan esclareceu garganta.
— Sinto muito ter dito isso dessa forma, Sarah, querida — a tristeza deformou seu rosto, —
mas não podia me sobrepor à dor. Era meu amigo.
As pessoas diziam frequentemente que mais que amigos pareciam irmãos. Com aquela
confissão as feridas de Sarah cicatrizaram. Michael percebeu e a empurrou para Lachlan, que a
recebeu com os braços abertos.
Ela desfrutou do abraço; lembrança de toda uma vida de amorosos cuidados.
— Neville queria a reclamar como dele, Sarah, mas eu não era capaz de renunciar a você.
Atrás dela se ouviu um forte golpe.
— Por Deus! — Exclamou Michael. — O que foi isso?
Lachlan olhou além de Sarah com os olhos exagerados pela surpresa.
Sarah se virou e gemeu.
Parada na soleira da porta estava uma mulher muito zangada e extremamente perigosa,
com uma pistola carregada em cada mão.
— Michael — cantarolou Sarah. — Apresento minha irmã, lady Agnes MacKenzie.

EPÍLOGO

Um mês depois.

O sol entrava em torrentes pelas vidraças da Igreja de Saint Margaret, lançando uma
brilhante chuva de cores sobre o chão de pedra. Sarah, de pé no vestíbulo, virou a cabeça e olhou
para seu marido.
Ele devolveu o olhar com um largo sorriso.
— Está pensando melhor?
— Hoje deixei de pensar. De momento meu lema é sentir e ser muito feliz.
— Isso é bom, porque Lachlan MacKenzie diz que não a quer de volta.
Como se ela fosse deixar Michael Elliot!
— Isso é porque você quebrou o nariz dele. Juliet não deixou de zombar dele. Conseguiu
com que toda a família e todos os vizinhos de Tain se divirtam a suas custas.
Uma repentina insegurança deformou os traços de Michael.
— É um pai maravilhoso, Sarah. Perdoará-me se eu não for tão bom com nossos filhos?
Pareceu que ela ia explodir de amor.
— Acredito que vai se sair muito bem, Michael. A menos que você pense que os filhotes
MacKenzie são perfeitos.
A gargalhada dele ressoou nas antigas paredes, confundindo-se com o som das conversas
que aconteciam na nave da igreja. Dentro de alguns minutos, Sarah e Michael iam mostrar a

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constância dos votos que tinham pronunciado, acrescentando seus nomes tanto no Livro dos
MacKenzie como na Bíblia familiar.
— Preste atenção ao Clã MacKenzie. — Michael colocou uma mão atrás da orelha. — Você
está ouvindo?
Sarah se emocionou ante o familiar som. Se se concentrasse era capaz inclusive de distinguir
o tom apaixonado de Agnes, da sofisticada forma de falar de Lottie. Todas as filhas de Lachlan
perambulavam por ali enquanto ele assumia o papel de pai orgulhoso.
Todos os MacKenzie vieram a Edimburgo para o casamento de Sarah. Mary, com seu
caderno de desenho na mão, encontrava-se perto do altar, deixando imagens do acontecimento
para as futuras gerações. O tenaz conde de Wiltshire em seus calcanhares. Notch e outros órfãos
não se separavam de Agnes, que atraía as crianças como a luz às mariposas. Desde o
desaparecimento de Virginia, cuidar das crianças se tornou em sua cruzada pessoal.
No outro extremo da igreja, no abside22, lady Emily conversava com Vicktor Lucerne, que
tinha composto uma comovedora marcha nupcial para a ocasião. A mãe de Michael, finalmente,
percebeu o quão egoísta e orgulhoso era Henry. Essa arrogância o fez com que o sentenciassem a
ser deportado à colônia penal de Botany Bay. Além de dedicar-se a bajular o jovem Lucerne, Lady
Emily punha todos seus esforços para convencer Michael a assumir o título de Conde de
Glenforth.
A família Smithson também veio a Edimburgo para o casamento de Sarah. Agarrando a mão
de Michael e ajoelhando-se ante o altar, Sarah fez as pazes com Neville. Embora soubesse que
nunca pensaria nele como seu pai, ocupava um lugar especial em seu coração.
Outros convidados, amigos de Michael, vieram de Londres e Glasgow. Os membros da
Guarda de Honra tinham organizado uma recepção na noite anterior. Sarah foi pega de surpresa
com a chegada de um convidado em particular. Lorde Edward Napier, conde de Cathcart,
considerado como o melhor estadista e erudito do momento.
— Sarah? — Sussurrou Michael. — É meu amor?
Ela se sentiu invadida por uma sensação de paz.
— Sou sua esposa.
Manchas de cores dos vitrais brincaram com os nobres traços de Michael.
— Não respondeu à pergunta.
— Sim, sou seu amor — respondeu ela, desconcertada pela pergunta.
— Bem. Agora feche os olhos e estenda a mão.
— Por quê?
— Porque seu marido pede isso.
O tom de comando foi um desafio para Sarah.
— Tem uma estranha maneira de formular uma petição.
Ele pôs cara de desespero.

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Abside, do latim absis ou absidis e originariamente do grego apsis ou apsidos, que significa arco ou abóbada), é a ala de um
edifício (normalmente religioso) que se projeta para fora de forma semicilíndrica ou poliédrica e em que o remate superior é
geralmente uma semi-cúpula (planta circular) ou abóbada (planta poligonal).

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— Por favor?
Ela obedeceu e, quando os lábios dele tocaram os seus notou que algo frio e pesado caía na
palma de sua mão.
Ele se afastou e olhou de forma significativa para a mão de Sarah.
Ela também a olhou e viu que nela descansavam, intactas suas contas douradas. O paradoxo
a cativou, Michael a tinha ajudado com base na compreensão e amor a arrumar as desavenças
com sua família. Graças a ele, tanto a unidade da família MacKenzie como o colar foram
restaurados.
— Viu? — disse ele. — É verdade que chovem joias do céu quando beijo meu amor.
Sarah o rodeou com seus braços, mais feliz do que qualquer mulher tinha direito de ser, e
deu graças a Deus e a toda a corte celestial pelo presente do amor de Michael Elliot.

FIM

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