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Como um cão

Traços

1. Festa. a) A escrita faz do pensar uma festa? b) Mas, se não me engano, em educação, quase não há festa! c)
Tão morta que é uma tristeza! d) Por isso mesmo!

2. No berço.

Nebulosas, conjuntos vaporosos, que convocam


as forças inumanas
que vivem no educador. Da jararaca.
Do jacarandá.
Da petiça.
Da samambaia. Do sol.
Da alamanda. Da lesma.
A escrita em educação pensamenteada
numa teia de aranha. A paixão de escrever
dançando na corda bamba. Por toda parte,
fabulação de beleza, poesia, lírica,
música, ditirambos. Contingência pura.
No extremo da abstinência, rouba-se a escrita no berço.

3. Bloco. Escrever sobre educação tem funcionado, na maior parte das vezes, como uma territorialidade. Trata-se
duma reprodução circular, duma progressão em vez de uma transgressão, de fotos de aulas, lembranças de escolas,
desejos presos na armadilha da representação de alunos, que fazem pesar sobre o ato de educar fortes interditos pueris,
persuasivos, idiotas. Trazer para essa escrita sons de aulas, blocos de escolas sem lembranças, vidas presentes e
ativadas, precipitadas, multiplicadas em suas conexões, é dar-lhe um máximo de extensão polívoca, em oposição à
escrita educacional definida pelo significante único, rebatimento e neutralização do social e do político.

4. De brincadeira. Brincar de escrever, usando a intensidade zero do desejo de educar como catapulta. Despojar a
escrita dos seus elementos representativos ou emocionais. Desmontar os modelos incorporados às palavras, que as
levam a realizar movimentos figurativos e a imitar alguém ou alguma coisa. Constituir um movimento novo e puro de
escrita, que extraia do escrever como evento a sua energia. Brincar de escrever que tão-somente inventa e devém muitas
escritas, abre o seu espaço a todas as espécies de eventos que aí podem ter lugar, a elementos que são heterogêneos, mas
que se afectam cada um a todos os outros.

5. O que é. Uma escrita que cria um mundo incerto e perigoso é a única força que faz o professor diferenciar-se,
isto é, tornar-se o que ele é, para além do que dele foi feito.

6. Contramão. Para escapar de uma escrita indiferenciada, que vale para tudo, e afirmar radicalmente a diferença
de uma escrita-artista da educação, importa investi-la de uma não-relação com a prática pedagógica e de afectos da Natureza.
Então, ela será apreciada justamente por estar saturada desses afectos e por não ter qualquer semelhança com aquela prática.
Tudo isso na contramão do moralismo otimista do amor pedagógico.

7. Ensina-se a escrever? (a) É possível ensinar a escrever? (b) Não sei se podemos ensinar a escrever. (c) Para
Nietzsche (2003, p.144 ss.), junto à oratória, a escrita é uma arte que não pode ser adquirida sem "a orientação mais minuciosa
e a aprendizagem mais penosa". (d) Agora, dizer, ao modo de Deleuze (1988, p. 54), - Vem, escreve comigo, implica escrever
para ou com os alunos?

8. Escrevo sempre diferente de mim. Escrever de um modo que não seja fusão, projeção nem identificação com
ninguém implica afirmar um princípio de diferenciação no próprio interior da escrita, que aspira à exterioridade absoluta.
Assim como dizer: Porque sou algo diferente de mim, porque estou sempre no exterior de mim mesma, é que escrevo
diferentemente de mim. Será essa diferença a única que me permite entrar num processo de devir-escritora, como ser
singular, real, que me torna outra? Talvez, uma educadora-escritora?

9. Espírito. Ao artistar a escrita em educação, tomamos partido rigoroso contra qualquer escrita nostálgica, redentora,
aconselhadora, messiânica, profética. Ao escrever, bebemos de fontes vivas. Uma necessidade de escrever nos persegue como
um cão. Sobre nossa cabeça, guinchando, esvoaça o morcego do espírito da escrita.

10. Para escrever é preciso ler... Como Nietzsche (1995, p. 47-48) mostrou, essa máxima não é válida para todos os
casos. Muitas vezes, para escrever é preciso deixar de ler, é preciso defender-se da mera reação à leitura, subtrair-se a
situações e relações em que se fica sujeito a suspender a iniciativa e tornar-se apenas reativo. Aquele erudito que, "no fundo
não faz senão 'revirar' livros" perde "totalmente a faculdade de pensar por si". Ou seja, se não revira muitos livros, ele
não consegue pensar; se apenas critica, aprovando e reprovando o que já foi pensado, "ele próprio já não pensa", só
reage aos pensamentos lidos. O seu instinto de autodefesa encontra-se embotado, pois, se assim não fosse, ele "se
protegeria dos livros". O erudito é um leitor em ruínas, um fósforo que se necessita riscar para que brilhe, isto é, para
que emita supostos pensamentos um décadent, no sentido nietzschiano.

11. Combinações. Pode-se pensar a escrita-artista em educação como uma grandeza determinada e um número
determinado de centros de força. Disso se segue que ela tem de passar por um número calculável de combinações, no
grande jogo de dados da existência do educador. Em um tempo infinito, cada combinação possível está alguma vez
alcançada, infinitas vezes. Cada uma dessas combinações expressa o mundo da educação que infinitas vezes já se
repetiu e joga seu jogo in infinitum.

12. A obra. Essa escrita, com seu caráter de simulacro, é singularidade que perturba a realidade da educação e que
melhor representa o seu pensamento como jogo afirmador do acaso. Ela escava o campo da moralidade e da religião, as
motivações inconfessáveis que estão na origem dos valores éticos pretensamente absolutos, a valorização da
racionalidade científica. Afirma, então, uma ciência alegre, o luxo intelectual e a filosofia dos espíritos livres, que
celebram o corpo, os instintos e a Terra.

13. Interditos. Ao escrever, nos esquecemos, por momentos, do mundo dos estados de coisas da educação,
embora a este mundo estejamos fadados.
Odiamos, com todas as forças, a humanidade e a bondade educacionais,
que nos provocam náuseas.
Revoltamo-nos contra o mundo do Bem. Devotamo-nos ao partido do Mal. Escrevendo,
de maneira insensata,
não há lei que não nos deleitemos em transgredir, nem coletividade que não violemos.
Escrever nos torna eminentemente trágicos. Escrever é, assim, um movimento impulsivo,
feito em nome da condenação do instante presente em proveito do futuro.
Escrever nos faz aberrantes ao extremo. Exige a morte dos seres aparecidos.
Renovada, nossa escrita se desinteressa de qualquer benefício, prestígio, divulgação,
opõe-se à ordem natural,
e liga-se à morte, que é condição da vida. Ela se assume como uma escrita mal-dita.
E, gloriosa, ousa, imagina, cria problemas, como faz todo aquele que artista,
em lugar de resolver problemas.
É desse modo que combate a angústia e o desgosto.

14. Intempestiva. A escrita-artista é mais profunda que o tempo e a eternidade. Ela luta pelo tempo por vir, em que
sejam revigorados os modos de expressão da educação.

15. Estilo. Liga-se tal escrita a uma prova, a uma seleção, como objeto da vontade e da liberdade. Repete-se a própria
escrita, fazendo dessa repetição o objeto do escrever, aquilo que encadeia a escrita, salva e cura a repetição do Mesmo e da Lei
Moral. Há, nela, ao mesmo tempo, todo um jogo místico de perdição e de salvação, de morte e de vida, de doença e de saúde.
Além de toda uma potência, "que é a da repetição do eterno retorno" (DELEUZE, 1988, p. 28).

16. Escrita-esquizo. À escrita-representacional pergunta-se: O que quer dizer? À escrita-artista: - Como funciona?
Nos dois tipos de perguntas, existem mundos diferentes. De um lado, encontra-se uma escrita da qual se faz exegese ou
justificação, algo cognitivo, uma lógica do conhecimento extraperspectivista. De outro, uma escrita para a qual valem apenas
funcionamentos posicionais no mesmo complexo educacional, renúncia a qualquer interpretação, opção exclusiva pela
utilização operatória. Maquinação de uma escrita, que é somente produtiva, nem expressiva, nem representativa.
Privilegiamento de uso; produtividade em relação à expressividade; utilização operatória em detrimento do sentido exegético.
Perseguição de uma lógica da invenção. Escrita que não sai da razão, mas renova a arte do pensamento ao reenviar "o
pensamento para a arte" (RAJCHMAN, 1991, p.58).

17. Um caso. (a) Escrever sobre educação tem a ver com o que, nela, se viveu ou se vive. (b) E se não se viveu nem se
vive nada que valha a pena ser escrito? (c) Como assim? Todo mundo vive; logo, todo mundo escreve. (d) Só que escrever é
um "caso de devir", "sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se", é um processo, "uma passagem de Vida", que "extravasa
qualquer matéria vivível ou vivida" e "atravessa o vivível e o vivido" (DELEUZE, 1997, p. 11).

Riscos

1. Ubi?(Onde?) Escrever feito um jogo ideal, puro, inocente (cf. Deleuze, 1998). As palavras vão nascendo da
imaginação de princípios plásticos, anárquicos e éticos; os quais, mesmo inaplicáveis na realidade educacional, não integram
regras preexistentes. Cada ação de escrever - cada escritura-ação - inventa suas regras. A cada página, parágrafo, frase,
palavra, sílaba, letra, acento ou ponto, o acaso é afirmado e ramificado, constituindo um lance; enquanto cada lance produz
eventos ideais. Escreve-se, jogando, sem vencedores ou vencidos. Não é nem um professor nem uma professora que
escrevem, já que só se escrevem não-sensos. Escrever assim, de modo indiscernível é a própria realidade do pensamento
educacional, o inconsciente desse pensamento, pois cada palavra produz uma distribuição de singularidades neutras ou de
eventos ideais. Essa escritura-ação não existe; ou melhor, só existe no pensamento educacional. E não tem outro efeito senão
o de perturbar a realidade, a moralidade e a economia da educação. Assim, ela é feita por atos enigmáticos, não por atos
simples e claros para si mesmos. Trata-se de uma escrita apaixonada pelo pensamento inefável. Escrita de um tempo
superficial dos eventos tomados em sua relação com o devir, que remete ao passado e ao futuro simultaneamente. Escrita toda
ela realizada num campo transcendental impessoal e pré-individual, cuja emissão ocorre pelo aspecto problemático e
paradoxal de que se reveste a linguagem em sua gênese. Escrita que não tem a consciência da pessoa e o ponto de vista do
indivíduo como meios porque é feita sobre uma superfície in-consciente, nem individual nem pessoal. Escrita essencialmente
produtora de artistagens, cujo campo é uma região submetida a determinadas perturbações, onde são produzidos certos
efeitos. Escrita como efeito produzido por um campo transcendental, o qual, por sua vez, também produz um campo a sua
volta e impõe perturbações. Como singularidade na cultura, é uma escrita que, à sua volta, produz novas maneiras de
acontecer no mundo. Não há nenhum objeto dessa escrita, já que o próprio objeto, sobre o qual a força de escrever se exerce,
também é uma força. Escrever sobre a escrita-artista em educação produz posturas diferentes daquelas produzidas pela escrita
sobre didática, currículo, metodologia, fundamentos, planejamento, avaliação, etc. Estilos de literatura educacional? Uma
obra de arte, desde que a superfície física das ações e paixões cotidianas ceda lugar à superfície metafísica em que aparecem
os eventos educacionais puros.

2. As forças. Enquanto o tempo do mundo é infinito, não teve início nem terá fim, as forças da escrita-artista, embora
múltiplas, são finitas, presentes em toda parte. Forças que só existem no plural, que não são cada uma em si, mas
somente na relação com outras, e que não são alguma coisa, mas um agir sobre outras forças. Não se pode dizer que
elas produzem efeitos nem que se desencadeiam a partir de algo que as impulsionam, porque implicaria distingui-las de
suas manifestações e enquadrá-las nos parâmetros da causalidade. Elas tampouco podem não se exercer porque isso
seria atribuir-lhes intencionalidade e enredá-las no antropomorfismo. As forças dessa escrita simplesmente se efetivam,
irradiando vontades de potência, agindo sobre outras, resistindo a outras, querendo estender-se até o limite,
manifestando um querer-vir-a-ser-mais-forte, o que explicita o seu caráter intrínseco à escrita mesma.
3. O fora. Aquele que escreve sob a pressão do Fora, do deserto, do exílio, vê fragmentar-se a própria unidade
subjetiva e desaparecer a forma da interioridade de qualquer essência do Eu. Então, aquele Fora-de-Si, que diz "Eu
escrevo", não pode representar um sujeito, não pode ambicionar um Eu idêntico a si mesmo, porque integra uma
linguagem sem sujeito atribuível. As mãos que escrevem não são dele, nem de ninguém, muito menos de algum autor,
que nada mais é do que um sujeito inventado. Elas escrevem uma escrita anônima, despersonalizada, liberta das garras
de qualquer sujeito desaparecido no discurso. Então, só há um ser: o ser da linguagem que habita o espaço literário,
prenhe de um eterno movimento (cf. BLANCHOT, 1987). Quem escreve? Ora, um Desdobrado, cuja palavra passa a
constituir um espaço de transgressão, em que tudo o que é fixo se torna móvel, as verdades são abaladas e vêem-se
desmanchadas as dicotomias interior/exterior, sujeito/objeto, eu/mundo. Esplendor de um escrevinhador impessoal...

4. Reino do devir. (a) Andava matutando: - O que podemos escrever em educação, hoje, nas condições de luz e
visibilidade que são as nossas? (b) Já, eu, questionava: -Nessa escrita, como se exerceriam as relações de forças
móveis? (c) De minha parte, eu ruminava: - Como seria escrever sobre o informe, sobre o não estratificado, sobre o
espaço de singularidades selvagens onde as coisas não são ainda? (d) E eu: - Quais seriam nossos modos de existência,
dobras, processos de subjetivação? (e) - Jacaré achou as respostas para essas perguntas? Nem eu... Talvez, só valha a
pena dizer: Damos escrita para aqueles que são incapazes de fazê-lo; mas esses dão devires à nossa escrita, sem os
quais ela seria impossível.

5. Furacão, clarão, trovão. Traçadas numa zona de turbulência, onde se agitam pontos singulares e relações entre
esses pontos, as palavras da escrita-artista não são nem corpos visíveis, nem pessoas falantes, mas um borbulhar de
forças.

6. Nível. Nessa escrita, nada é determinado, nada tem forma. Tudo está ainda por acontecer, num nível constituído
somente de afectos e de singularidades.

7. Desmembrado. É preciso afectar e ser afectado para poder escrever. Escrever é ser desmembrado. É
metamorfose constante. É abertura de um futuro que nunca começou. Errância total.

8. Viver. Escrever é um pensamento de vida, não uma receita de felicidade nem uma sonolência gostosa, nem uma
irresponsabilidade divertida.
Profundo vitalismo: os modos de vida inspiram maneiras de pensar e escrever; os modos de pensar e escrever
criam maneiras de viver.
A vida ativa o pensamento e a escrita; o pensamento e a escrita afirmam a vida.
Como fazer da escrita uma arte de viver? Como torná-la vivível?
Como criar unidade entre vida ativa e escrita afirmativa? Escrever é dobrar o Fora, como faz o navio com o mar.
Fazer do pensamento uma experiência do Fora, escapar do senso comum,
desestruturar o bom senso,
entrar em contato com uma violência que nos tira da recognição
e nos lança diante do acaso,
abalando certezas e o bem-estar da verdade.
Perder as referências conosco e com o mundo exterior, afastar-nos do princípio da realidade,
romper com as referências cognitivas,
promover uma ruptura com a doxa,
colocar em dúvida o próprio pensamento,
o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem.
Escrever é criar,
aligeirar e descarregar a vida, inventar novas possibilidades de vida, fazer nascer o que ainda
não existe,
ao invés de representar o que já está dado e admitido.
9. Quomodo? (Como?) A escrita representacional pode ser: (1) monista, que considera o texto como consistindo
uma unidade, fundado sobre si mesmo, inengendrado, resistente ao que não é ele próprio; (2) bipolar, que considera o
texto engendrado pelo encontro entre uma forma e uma matéria. Tanto uma quanto a outra maneira de escrever evitam a
descrição direta do próprio texto e supõem uma sucessão temporal, que parte de algum princípio textual, chega ao texto
constituído, depois de passar por aquilo que o esquema textual não estaria tematizando suficientemente: a própria
operação textual. Assim, um texto é algo a explicar e não aquilo em que a explicação deveria ser encontrada. Já um
texto da escrita-artista não é acabado, nem dele se dá uma explicação; mas um processo em desenvolvimento, uma
realidade relativa, uma determinada operação complexa, ativada vitalmente. Um texto desses, enquanto se efetua, não
esgota de uma única vez os potenciais da realidade educacional, mas designa o seu caráter de devir. Por isso, tal texto
tem a capacidade de defasar-se em relação a si próprio, de resolver defasando-se, de resultar numa incompatibilidade
inicial, rica em potenciais, num sistema tenso, supersaturado, acima do nível da unidade. Ele é mais uma onda ou um
corpúsculo, uma matéria ou uma energia, que desdobra e defasa aquele tido por seu autor. O texto da escrita-artista é
díspar; é disparação; é sistema formado por emissões de partículas, que implica um estado de dissimetria; continuuns
de intensidades puras que operam como fatores individuantes, em processos de individuação constitutivos de
indivíduos, mas que nestes não se esgotam; blocos de devires; conjugações de fluxos; diferença fundamental. Precário,
mutante e mutagênico, campo de realidade virtual, esse texto agita-se na resolução de um sistema objetivamente
problemático.

10. Cur? (por quê?) A escrita-artista usa, sempre, a arma da crítica, que ela própria forja, para escapar dos
artifícios que são o refúgio da tradição, a miragem da erudição por ela mesma, a abulia do bom senso ou a anomia do
senso comum, os valores superiores à vida. Ela critica a secularização em educação por meio da errância política e da
revolução permanente. Para nomadizar o pensamento, escreve, seguindo Nietzsche, primeiro, como um camelo; depois,
como um leão; para escrever, enfim, como uma criança lúdica. Metamorfoses que encobrem perigosos simulacros...

11.Quibus auxiliis? (por quais meios?) O desejo de escrever é sempre agenciado, maquinando sobre um plano
de imanência ou de composição; plano que deve ser construído ao mesmo tempo que o desejo agencia e maquina, e o
texto é maquinado e escrito. Não basta dizer apenas que esse desejo é histórica ou subjetivamente determinado, porque
essas determinações apelam para instâncias estruturais que desempenham o papel de lei ou de causa, de onde o texto
nasceria. O desejo de escrever é um operador efetivo, que se confunde com as variáveis de um agenciamento; de modo
que só se deseja escrever em função de um agenciamento em que se está incluído: por exemplo, um seminário, um
bando, alguns "relacionamentos de duplos, mais do que de casais" (DELEUZE, GUATTARI, 1996, p. 68).

12. Quid? (O quê?) Sobre o que se escreve numa escrita-artista, esquizo-analítica, micropolítica, pragmática,
diagramática, rizomática, cartográfica? (1) Escreve-se sobre a profissão, o trabalho, as aulas, as férias, a aposentadoria,
animais, crianças, adultos, brancos, negros, público, privado, homem, mulher, segmentos determinados, planos de
organização; (2) escreve-se também sobre desvios, quedas, impulsos, flexibilidades, fluxos moleculares, micro-devires,
blocos de devir, continuuns de intensidade, conjugações de fluxos, planos de consistência; (3) escreve-se, ainda, sobre
linhas de fuga, celeridade, limiares. Escreve-se numa intertextualidade para criar novas significações; de modo seletivo,
apropria-se de textos da tradição educacional ou de argumentos adversários para deslocar-lhes o sentido original.

13. O máximo do problema! Lançar o texto como uma pedra por uma máquina de guerra: problema da
velocidade absoluta do pensamento.

14. Teoria materialista. Fazer uma teoria materialista da escrita é: (1) expressar um mundo possível; (2) pôr
eventos a bailar; (3) desmascarar a mediocridade e a compaixão; (4) denunciar a crueldade, a hipocrisia e o
ressentimento; (5) execrar o prosaísmo, a vulgaridade e o tédio; (6) perguntar pelo valor dos valores; (7) transvalorar a
moral tradicional que habita a educação.

15. Quando? (A que horas escrever?) - Pode ser a qualquer hora.


A preferida é a meia-noite, o fim da noite, a hora mais noturna, a mais misteriosa, a mais obscura, a mais deserta, hora
das bruxas e das aparições, das falas com o demônio, hora dos grandes enigmas, hora do trânsito, da passagem, hora na
qual termina um dia e começa o seguinte, ponto crucial entre uma jornada e outra.
16. Quis? (Quem?) - Quem escreve de modo artista? Ora, são os animais de rapina, os selvagens sagazes, os franco-
atiradores, os ousados, terrestres, estrangeiros, guerreiros, legisladores, artistas, pensadores, poetas, afirmadores,
experimentadores e criadores, que agem em nome da doutrina do círculo vicioso e dela fazem a condição sine qua non da
escrita universal. Aqueles que escrevem excedendo-se e reservando-se o direito de malograr. Aqueles que escrevem não
porque possuem um projeto de escrita e tentam realizá-lo, mas porque encetam o ato de escrever para ver se existe uma
intensidade que produza alguns efeitos. Escritores da inocência alegre de um em-fant que só sabe falar a única palavra
ajuizada: - Sim!

Setas

1. A escrita-artista está em constante fluxo, apesar de nossas tendências biológicas, perceptivas, lingüísticas e culturais
nela identificarem formas estáveis. Ela também não varia de acordo com o ponto de vista de quem escreve, mas jamais atinge
o estado de ser.

2. O caráter inapreensível dessa escrita deve-se a que ela não é produto de nenhum sujeito uno, permanente e idêntico a
si mesmo, mas de sujeitos larvares, precursores sombrios, dinamismos espaço-temporais, ressonâncias rizomáticas, séries de
diferenças intensivas.

3. Sendo maquinada por afectos múltiplos, variações do corpo, vontades de potência, a escrita-artista é perspectivista,
não deriva de um ponto de vista transcendente e incondicionado, tal como a consciência ou a razão; possui um caráter
condicionado, não relativo nem parcial, implica não a conclusão de que não se pode escrever a Verdade, mas a conclusão,
bem mais radical, de que não há nenhuma verdade a ser escrita.

4. Na concepção da escrita-artista, não há distinção entre teoria e prática: a escrita não é uma teoria sendo feita sobre a
prática educacional, que cobiçaria atingir a sua essência, descobrir as suas leis ou reduzi-la a seus conceitos. Nada há para ser
conhecido em alguma instância metafísica chamada "prática educacional"; nada há que possa transcender essa prática e tomá-
la como objeto; não há, lá, nenhum sujeito, nenhuma identidade permanente, nenhum sentido por trás dela, nenhum fiador
universal ou olhar divino, nenhuma substância inalterada por trás dos sucessivos acidentes, que seja suporte de diversos
atributos; nenhuma prática, enfim, que seja fundamento para a escrita. O que tomamos como "fato educacional", criado pela
escrita, é sempre já resultado da atividade cognitiva e interpretativa humana. Por isso, a escrita-artista não vai deixar de ser,
também ela, uma forma de esquematização da prática, introduzida por um "sujeito", ou seja, pela necessidade prática e
vontade humana de falsificar o mundo, de impor formas ao que é disforme, de simplificar o que é complexo, de regular o que
é caótico, de dar sentido ao que é sempre não-senso, de criar o Ser no que não conhece outro estado senão o do devir.

5. A escrita-artista constitui objetivamente o mundo da prática educacional, que não é independente da organização que
lhe damos; nem tem sentido porque falta o ponto de vista transcendente para conferir-lhe uma finalidade; tampouco representa
esse mundo, já que ela é antiteleológica, anti-substancialista e anti-realista.

6. Todo conhecimento conceitual ou categorial produzido por essa escrita é uma ficção reguladora, não tem valor de
verdade, mas é relativo, interpretativo e antropomórfico. Só pode ser assim, já que todo conhecimento não é uma verdade
ontológica - mesmo que esta fosse apreendida por meios intuitivos -, mas estritamente operatório.

7. A escrita-artista integra uma doutrina da imanência.

8. Cada texto é fragmentado e parcial; mas a escrita-artista em si não seria dada por sua soma, já que essa soma é
contingente, encontra-se em devir permanente, enquanto sua perspectiva está continuamente se modificando.

9. Eternamente movente, maximamente diferenciada, heterogênea, incontável, inumerável, a escrita-artista é um


vir-a-ser que não deriva de um estado anterior e nunca atinge um estado final. Ela carece de medida, fundamento e
finalidade. Ela é acaso, contingência e necessidade. Caso fortuito, delírio, pathos da distância. Fluxo do acontecer,
continuum infinito de pontos de vista, força singular de experimentação do alargamento de horizontes.
10. A escrita-artista é uma maneira de escrever, nem mais avançada ou progressista ou evoluída ou científica ou
lógica ou natural ou erudita do que as outras escritas. Ela não sublima, não cura, não suspende a vontade, o desejo, o
querer... Só que ela sabe rir, comover, mover pernas e asas...

Marcas

A escrita-artista não é nunca simples. Ela não normatiza, não representa, não conta história, não ilustra nem narra
o que se passou. Algo passa por ela. Traços, riscos, setas, marcas de espírito nela se exprimem e arrancam a
significância do texto. De qual texto? Ondas, cascatas, olhos de ciclones, as palavras desse texto não correspondem a
formas, mas só captam forças, que se exercem na folha em branco. Em branco? De jeito nenhum; pois, se assim fosse, o
escritor poderia reproduzir um fato exterior, que funcionasse como matriz da escrita. Uma folha nunca está em branco,
à espera de ser preenchida. Uma folha está, desde sempre, cheia! Povoada de muitos clichês, opiniões, imagens,
lembranças, fantasmas, significantes. Por isso, o escritor-artista é um faxineiro: ele esvazia, raspa, escova, limpa (cf.
DELEUZE, 2002). Ele escreve sobre os códigos, palavras de ordem, regimes de signos, para rechaçá-los, embaralhá-
los, invertê-los, subvertê-los. No entanto, ele distingue o que lá pulula: aquilo que favorece a escrita, o que a
obstaculiza, aquilo que a bloqueia, o que deixa passar intensidades. Porque ele sabe que, se apenas desmanchar
reativamente o que encontra na folha, engendrará outros clichês; OS quais, como cabeças de hidra, renascerão enquanto
paródias, plágios, achados: "Tanta gente toma [ ... ] um plágio por uma audácia, uma paródia por um riso, ou, ainda pior, um
miserável achado por uma criação" (ibid., p. 92). Portanto, é entre a cópia e a criação que o escritor faz marcas: livres,
acidentais, irracionais, involuntárias, ao acaso, Agora, essas marcas podem não dar em nada, estragar a folha, não eliminar os
dados. Acontece que o escritor sabe o que quer fazer, mas não sabe como fazê-lo, nem no que vai dar. Uma questão de
maneiras de pensar e de modos de agir: artistagens da vida...

Referências

BLANCHOT, Maurice. o espaço literário. Rio de janeiro: Rocco, 1987.


DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de janeiro: Graal, 1988. ________ Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.
________ Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998.
________ Francis Bacon: lógica de la sensación. Madrid: Arena Libros,2002.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1874 - Três novelas ou "o
que se passou?". In: _________ Mil platôs: capitalismo e esquizofre-
o

nia. VaI. 3. Ed. 34, 1996.

NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

__________III Consideração Intempestiva: Shopenhauer educador.


In: _________Escritos sobre educação. Rio de janeiro: PUC- Rio;
São Paulo: Loyola, 2003. P. 138-222.
RAJCHMAN, John. Lógica do sentido, ética do acontecimento. In:
ESCOBAR, C.H. (org.). Dossier Deleuze. Rio de janeiro: Holón Editorial, 1991. p. 56-61.

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