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O DUALISMO NA SOCIEDADE E NA EDUCAÇÃO:

ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DE JOHN DEWEY1

Patricia Neumann2
Emerson Luis Velozo3

RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar algumas reflexões sobre o dualismo na


sociedade e na educação brasileiras a partir de John Dewey. Realizou-se uma leitura analítica
da obra Democracia e Educação escrita por Dewey em 1916 com foco principal no capítulo
titulado “Teorias do Conhecimento”. Os resultados mostram que o dualismo teve início a
partir de determinadas interpretações da teoria do conhecimento de Platão quanto à divisão
entre sensível e inteligível. Esta divisão se estendeu para as noções de conhecimento prático e
teórico. Alguns dualismos observados por Dewey são entre os pares empírico/racional,
particular/universal, objetivo/subjetivo e passivo/ativo. Reflete-se que o dualismo do par
empírico/racional influencia no valor social que se atribui ao trabalho, do particular/universal
na hierarquia de relevância que a sociedade dá para as disciplinas escolares, do
objetivo/subjetivo na forma de avaliar o conhecimento e por fim, do par passivo/ativo que
influencia na formação e manutenção do preconceito contra as minorias sociais. Considera-se
que a visão pragmática se opõe a visão dualista na forma de pensar e agir na sociedade e na
educação.
Palavras chave: Dualismo, Educação, John Dewey.

Introdução

John Dewey (1859-1952) foi um filósofo e pedagogo norte americano pragmático.


Segundo Abbagnano (2007) e Bausola (1980), o termo pragmatismo tem sua base inicial em
“Como Tornar as Nossas Ideias Claras” (1878) do filósofo e cientista norte americano Charles
Sanders Peirce (1839-1914). Mas é com William James (1842-1912), precursor norte
americano da psicologia funcional, que se coloca o termo pragmatismo na filosofia a partir de
1898. Uma coisa importante é que o pragmatismo não é entendido da mesma maneira por
todos os autores que foram ou são pragmáticos. Portanto, é preciso saber qual pragmatismo
está em questão. O risco que se corre em não saber de que forma é entendido o pragmatismo
por determinado autor é de se ouvir as críticas feitas a tal tipo de pragmatismo e pensar que

1
Artigo originado da nossa pesquisa sobre o sentido das atitudes emocionais na experiência educativa de Dewey.
2
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UNICENTRO. souhumanista@gmail.com
3
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNICENTRO. emersonvelozo@yahoo.com.br
sejam para todos, sendo que as críticas a um não se aplicam necessariamente a outro. Também
não se pode utilizar o pragmatismo de um autor para tentar compreender a teoria de outro,
mesmo que ambos sejam considerados pragmáticos. Mas o que significa dizer que se é
pragmático?

De forma geral, pragmático é quem acredita que uma afirmação teórica é relevante
quando ela pode ser verificada na prática. Entretanto, como dito acima, existem diferentes
compreensões do que isto quer dizer. Duas formas comuns de pragmatismo são que 1) a
proposição é verdadeira se puder ser verificada na prática e 2) a proposição é verdadeira se for
útil (BAUSOLA, 1980). Dito de forma simples, proposição é uma forma de mostrar para as
outras pessoas o que se pensa sobre as coisas da realidade. São descrições e reflexões sobre
objetos concretos e abstratos que existem no mundo. Ao dizer, por exemplo, plantas são
vegetais, utiliza-se uma linguagem, neste caso a língua portuguesa, que revela um
pensamento. Não nos cabe debater estas visões pragmáticas, mas os citamos porque estes
pragmatismos estão presentes no cotidiano das pessoas, embora, em geral, elas nem se
percebam. Além de ser algo presente na vida cotidiana, conforme diz Souza (2012):

O pragmatismo foi acusado de reduzir a verdade ao utilitário. Contudo não é o


pragmatismo uma filosofia vulgar. Aquilo que os filósofos pragmatistas
entendem por prático, por útil, deve ser bem compreendido para evitar
equívocos conceituais. Os critérios de utilidade e praticidade defendidos por
eles nada mais são do que a vida, como experiência humana. Em outras
palavras, a aplicabilidade do conhecimento à vida prática. Isso Dewey
defendeu com sua filosofia. O conhecimento, para o pragmatismo, se dá por
uma atitude antiintelectualista, isto é, negando qualquer tipo de razão
transcendental, racionalismo ou idealismo. Lembremo-nos de que o
pragmatismo é um tipo de empirismo, mas não preso às emoções e aos fatos
observáveis e às leis científicas a partir deles formuladas. Sendo assim, o
pragmatismo retira o conhecimento do plano metafísico e o coloca nas mãos
dos indivíduos, vinculando-o ao plano pragmático, útil à vida (p.230).

Nesse sentido, conhecer tem relação com o que Dewey (1959) chama de experiência e
confronta o princípio dualista na sociedade e na educação. Ser pragmático, para Dewey, se
refere às experiências que as pessoas vivenciam sendo “relações mútuas, pelas quais os
corpos agem uns sobre os outros, modificando-se reciprocamente. Esse agir sobre outro corpo
e sofrer de outro corpo uma reação é [...] o que chamamos experiência” (TEIXEIRA, 1954).
A experiência não é algo somente do ser humano, esclarece Teixeira (1954), mas ela faz parte
da existência dos objetos animados e inanimados do mundo. O mundo é composto por uma
infinidade de elementos que interagem no tempo e no espaço. Esta contínua interação faz com
que a realidade seja instável e a instabilidade, por sua vez, leva à mudança. As coisas se
modificam a partir das relações entre si e esta relação que proporciona alguma mudança é o
que Dewey entende por experiência, porém, nem toda experiência é inteligente.

Teixeira (1954) nos ajuda a compreender que Dewey entende por experiência
inteligente aquela da qual faz parte o pensamento. Mas só isto também não basta, pois muitas
experiências estão permeadas por pensamentos, mas nem por isso são inteligentes. Trata-se de
um pensamento específico que é o pensamento reflexivo. Com o pensamento reflexivo é
possível perceber, ter consciência da experiência, isto é, de suas relações e consequências.
Esta experiência pensante e reflexiva é o que Dewey dá o nome de experiência educativa.
Assim, quando se fala que Dewey é pragmático, quer dizer que ele entende que a pessoa
conhece quando é capaz de perceber as conexões entre as coisas e aplicar esta percepção nas
situações da vida, isto é, vivencia a experiência educativa. Percebemos que Dewey entende
que o conhecimento deve ser aplicado na vida, mas que é insuficiente pensar que o
conhecimento é tudo e somente o que se pode verificar na prática e/ou que é conhecimento se
for útil. Dewey vai além destes pragmatismos e diz que o conhecimento surge da experiência
inteligente e que este tipo de experiência favorece a aplicação do conhecimento em termos
práticos, pois segundo ele, conhecimento serve para “tornar uma experiência livremente
aproveitável em outras experiências” (DEWEY, 1959, p.373). Ser pragmático para Dewey é,
portanto, saber aproveitar as experiências para o crescimento pessoal e social.

Assim, a ideia de verdade também se modifica. Rocha (2011) explica que para Dewey
não existe verdade em sentido absoluto porque como as coisas estão sempre conectadas umas
as outras e elas têm relação de influência mútua, esta influência entre as coisas altera a noção
de verdade como se fosse uma certeza inabalável. Em geral, aquilo que não se admite dúvida
é visto como verdade. Mas para Dewey, a verdade existe apenas enquanto tem importância
para a vida das pessoas e por isso o que é verdade hoje pode não ser amanhã e o que é verdade
para uma pessoa pode não ser para a outra, isto é, verdade não é definitiva, ela é um processo
tal qual a vida, ela também está em constante mudança.

A partir desta visão pragmática que Dewey refuta o dualismo que, segundo
Abbagnano (2001), é um termo que surgiu no século XVIII possivelmente com Thomas Hyde
em 1700 para expressar a teoria de Zoroastro de que há dois princípios (bem e mal) que lutam
um contra o outro. Mas é com Descartes que o dualismo ganhou o significado que se utiliza
hoje de que existem duas naturezas separadas sem que uma influencie a outra sendo elas a
natural (corpo físico) e a espiritual (mente). Esta ideia também foi uma das origens para a
concepção tradicional de ciência na qual se acredita que a razão tem autonomia e não depende
de outros elementos que compõem a vida. Vale lembrar que conceito de dualismo surge no
XVIII, mas o pensamento dual é mais antigo e surge com a interpretação da teoria do
conhecimento de Platão.

Dewey (1959) é contra a ideia de separação entre mundo mental e material e seus
derivados como, por exemplo, a separação entre filosofia e ciência. Ele refuta a ideia de que
filosofia é apenas fruto da razão (pensamento) e do conhecimento imediato (a priori) e a
ciência é somente uma ação prática. Para Dewey o conhecimento, a razão e a prática estão
unidos e inter-relacionam-se. Ambas, filosofia e ciência se unem “no processo do
conhecimento para compreensão das condições e relações históricas e sociais” (PINAZZA,
2007, p.72). Para Dewey (1959), o princípio dualista se mostra na educação em várias
situações, como na separação entre a consciência e o corpo físico, em que a consciência se
interliga com a inteligência e a cognição. Juntas, são responsáveis pela aprendizagem. Nesse
contexto, o corpo físico não tem relevância sendo visto, inclusive, como um inconveniente.
Essa separação rompe a relação entre a ação do sujeito e a consequência que o mesmo recebe.
Este rompimento impede que haja contato com o significado. Sem significado a ação não
experiência inteligente. O dualismo separa ação de significado em que a ação fica para o
corpo (o corpo age) e o significado fica para a consciência que é responsável por atribuir
significado para as coisas sem relação com o corpo físico e com os objetos do mundo. Mas
antes de refletirmos sobre alguns dualismos presentes na educação a partir da visão de Dewey,
vejamos dois momentos na história que influenciaram a crença de que conhecimentos prático
e teórico estão desconectados como se cada uma existisse por si independente do outro.

1. Duas Influências para a Divisão entre Conhecimento Prático e Teórico

Quando se fala em conhecimento, é comum até hoje as pessoas o dividirem em prático


e teórico e não raro se pensa que são coisas totalmente sem relação entre si. A fala que
escutamos nas conversas do cotidiano “na teoria é uma coisa, mas na prática outra” aponta
para a ideia de que prática e teoria são não apenas díspares, mas opostas. Para
compreendermos a origem desta crença, Dewey (1959) nos ajuda ao voltar em dois momentos
históricos sendo fiel ao seu princípio de que é preciso conhecer o que aconteceu no passado
para se compreender melhor o que acontece no presente. Acompanhamo-lo nesta breve
viagem pela história. Primeiro voltamos à Grécia e depois vamos para os séculos XVII e
XVIII.

Segundo Dewey (1959), a sociedade grega foi fértil em pensadores e em diversidade,


pois as cidades não eram iguais. A divisão entre o que se chama conhecimento prático e
teórico tem sua base em Platão e Aristóteles que, embora discordassem em várias coisas, eles
estavam de acordo quanto a entender a experiência como aquilo que é prático. O que é
prático, material, utilitário não podia ser considerado conhecimento. A divisão não estava
entre prática e teoria, mas entre experiência e conhecimento, visto como coisas opostas.
Experiência para os gregos é tudo que tem relação com as coisas concretas do mundo, as
atividades e ações úteis para algo como o trabalho, o lazer e a guerra. O objetivo da
experiência é sempre algo material e ela é incompleta, insuficientes em si, instável e mutável.
Observamos, portanto, que para os pensadores gregos a experiência tinha um valor negativo,
pois dela não se podia chegar ao conhecimento. Há que se lembrar de que naquele contexto as
pessoas em geral utilizavam os mitos para explicar os fatos da realidade e os filósofos surgem
com a proposta de explicar as coisas através do pensamento racional. Por isso a experiência
foi vista como imperfeita para compreender o mundo e passou-se a buscar algo além do
concreto. Certo que não se passou subitamente do pensamento mitológico para o racional.
Este foi e ainda continua um processo no desenvolvimento da humanidade.

Acerca do que seria então o conhecimento, vamos a uma breve noção da teoria do
conhecimento de Platão. Esta teoria diz que existem dois mundos, o sensível que pode ser
percebido pelos sentidos e o mundo inteligível que só pode ser apreendido pelo pensamento.
O mundo sensível é o mundo das coisas físicas e que se mostram pela aparência enquanto o
mundo inteligível é feito de ideias perfeitas e imutáveis. A realidade é composta por ambos os
mundos e o inteligível é mais amplo que o sensível. Na realidade existem quatro diferentes
modos de conhecimento, cada um correspondente a sua extensão de alcance. Desses quatro, o
primeiro (Eikasía) é o mais limitado. É o modo de conhecer pelas imagens. O que se percebe
são somente cópias das coisas sensíveis. Por exemplo, uma pintura, uma escultura, arte em
geral pertence ao nível da Eikasía. O segundo (Dóxa) é a crença ou opinião das sensações e
percepções. Esse modo de conhecimento descarta provas da veracidade, está ligada ao que os
sentidos afirmam como verdade. Exemplos são hábitos e costumes. Permanece enquanto for
útil para o dia a dia ou até que outro ocupe seu lugar. É um modo de conhecimento subjetivo,
pois depende do estado físico e mental de cada pessoa e também da cultura (PLATÃO, 1965).
O terceiro modo de conhecimento (Dianóia) é o conhecimento matemático. Ele se
diferencia da Eikasía e da Dóxa porque os objetos da matemática são sempre idênticos a si
mesmos, não admitem mudanças e contradições, ou seja, a falsidade das imagens e das
opiniões. O quarto e último modo de conhecimento (Noésis) é o mais amplo. Ele depende da
intuição intelectual para ser apreendido. Nesse nível estão as ideias verdadeiras das coisas e
suas relações. Trata-se de conhecer a essência das coisas, a verdade incondicional. As ideias
são base da realidade e do conhecimento (PLATÃO, 1965).

O contato com a verdade (as ideias) não está disponível de forma imediata para a
percepção sensível. Para Platão “a realidade concreta, a dos entes existentes de fato, só resulta
para nós em realidade na medida em que a convertemos em conceitos, noções ou ideias. Antes
disso, a realidade empírica é sombra” (SPINELLI, 2006, p.267). Embora invisível (para quem
não ascendeu a ele), o mundo inteligível é cognoscível e a ele está relacionada a epistéme, ou
seja, o que se conhece pelo intelecto. O sensível e o inteligível são mundos muito diferentes e
o objetivo de Platão foi encontrar o equilíbrio entre eles “visto que na maioria das vezes é o
sensível que se impõe ao inteligível, é necessário, em alguns momentos e sob certos
propósitos, que o inteligível se imponha” (SPINELLI, 2006, p.269). Não significa que o
sensível não seja uma forma de saber, mas o que Platão coloca é que o conhecimento do
mundo sensível não é ciência nem verdade. São impressões de cópias e opiniões que mudam e
se contradizem (SPINELLI, 2006).

Dewey (1959) atenta para que na época de Platão, o que conduzia o comportamento
dos cidadãos eram os costumes e a tradição, que por sua vez eram reconhecidos como
experiência. A tradição estava diretamente ligada ao pensamento mitológico e a teoria do
conhecimento surge para refutar este modo de compreender as coisas. Ao ver de Platão, a
experiência dependente de “hábitos, apetites, impulsos instintivos e emoções” (DEWEY,
1959, p.289) era um tipo de prisão do homem. Preso às sensações da experiência, o homem
não se desenvolveria. Sendo a experiência particular, múltipla, inconstante e insegura, cabia
buscar pelo que fosse universal, uno, estável e seguro, ou seja, a verdade, o conhecimento.
Mas como chegar ao conhecimento? Para os gregos seria pela inteligência racional. O
conhecimento se refere ao mundo real enquanto a experiência ao mundo que parece ser: o
irreal. O conhecimento é baseado na noção dos princípios das coisas e a experiência baseada
em tentativas de acerto e erro desprovidas de razão. A experiência para os gregos não garante
certeza. Disso deriva a crença de que o que provém do intelectual, do racional é mais nobre
que o que provém do material e do concreto (DEWEY, 1959). Vemos que a divisão entre
experiência (sensível) e conhecimento (inteligível) em Platão foi interpretada como dois
aspectos opostos e sem relação e a partir desta interpretação tudo o que é entendido como
duas partes que não se relacionam entre si é visto como dualismo. Assim, temos uma das
influências para a crença na divisão entre teoria e prática. Vejamos outra que junto a Dewey,
deixamos a Grécia e vamos aos séculos XVII e XVIII.

Nesta época, a experiência muda radicalmente de significado. Se para os gregos ela era
uma forma de manter a tradição e impedir o progresso, para os modernos ela é aquilo que dá o
colorido para a neutralidade do conhecimento racional expresso em princípios gerais. A
preocupação dos modernos é que o conhecimento precisa significar algo para as pessoas, pois
se não se torna apenas doutrinas úteis aos que detém autoridade sobre os demais. A autoridade
representada pelos considerados eruditos precisa ser questionada e a forma de fazer isso é
mudar a maneira de conceber a experiência. O homem moderno anseia por descobrir coisas
novas e pra isso precisa da experiência não mais como apenas prática, mas como “meio de
adquirir conhecimentos” (DEWEY, 1959, p.293).

A experiência como meio para ter conhecimento, ou seja, considerar que os objetos
materiais são a base da verdade leva à crença de que o intelecto deve ser passivo para receber
as informações do ambiente. Os empiristas modernos utilizam esta reviravolta da experiência
para combater as ideias que se sustentam na tradição e na autoridade de sua época (DEWEY,
1959). Percebemos que os gregos utilizam o intelecto para refutar a tradição representada pela
experiência, e os empiristas modernos usam o conceito reformado de experiência com o
mesmo intuito, o de contrariar a tradição de sua época. Isto parece indicar que uma das
origens da divisão entre conhecimento teórico e prático se relaciona ao fato de confrontar o
que se encontrava vigente na sociedade de cada época. Na sequência, observamos que há um
investimento intelectual de alguns autores, sendo Dewey um deles, para debater esta divisão
como uma tentativa de modificar tanto algo vigente da sociedade quanto da educação, para
mostrar que não apenas os conhecimentos prático e teórico são vistos como desconectados,
mas também apontar demais dualismos em outras questões da vida social e educacional.

2. Alguns Dualismos na Sociedade e na Educação

Para Dewey (1959), as partes que em geral são consideradas opostas, possuem relação
entre si, mas na maioria das vezes as pessoas não percebem a relação que há entre elas. Para
ele, esta divisão das partes vem da própria organização social em que se separam as pessoas –
por quem tem mais e menos dinheiro, por o que é ser homem e o que é ser mulher, por quem é
o chefe e quem é súdito, dentre tantas outras. Estas divisões prejudicam as relações sociais,
pois cada parte do par habita um mundo próprio, cada um tem com seus padrões e valores,
tem uma maneira de sentir a vida. O dualismo tem por base a desconexão, a independência no
sentido do isolamento das partes.

Dewey (1959) cita dualismos que pensamos ainda influenciam nossa sociedade e
educação. São eles a antítese entre 1) empírico e racional, 2) particular e universal, 3) objetivo
e subjetivo e 4) passivo e ativo. Dewey diz que a divisão do empírico e do racional aponta que
conhecimento empírico serve às pessoas que se ocupam das atividades práticas do dia a dia,
com o útil. Em geral, o empírico é desvalorizado e visto como algo desprovido de cultura, de
razão. Em outras palavras, quem se ocupa das coisas práticas não precisa pensar. O oposto
disso é quem se dedica ao conhecimento racional voltado ao intelecto e ao teórico. Este é
visto como conhecimento puro, que possui significado e é mais importante que a prática. Não
precisa ser aplicado, pois é autossuficiente.

Percebemos que a divisão entre o empírico e o racional vem, inicialmente, da


interpretação da teoria do conhecimento de Platão e ainda influencia na atualidade em
algumas situações, sendo que uma das consequências desta divisão é a crença de que as
pessoas que efetuam um trabalho manual são menos importantes que as pessoas que têm um
trabalho intelectual. As pessoas que realizam trabalhos de âmbito intelectual e que se julgam
superiores às outras agem baseadas neste dualismo muitas vezes sem se perceber, embora
nem sempre o trabalho intelectual seja o mais valorizado, como no caso do trabalho dos
professores. Inclusive o status que se dá a determinadas profissões em detrimento de outras
também tem como uma das bases esta ideia da separação entre empírico e racional. Nos dias
atuais observamos que uma profissão pode ser valorizada ou desvalorizada socialmente pelo
par empírico/racional, mas também por outros fatores. Hoje a proporção do valor social não
está relacionada apenas à divisão social do trabalho, na qual as elites, ao se negarem a realizar
trabalhos mais “sujos” e que necessitam de mais esforço físico, assumem os trabalhos mais
“limpos” e “confortáveis”. Existe, por exemplo, a valorização na experiência corporal quando
ela está associada a diferentes manifestações artísticas ou esportivas.

Observamos que o empírico se liga ao que é particular e o racional ao universal. Para


Dewey (1959), o particular se mostra, por exemplo, no ensino de conteúdos específicos, de
partes de um todo. O universal se mostra no ensino de leis e relações. A questão não está em
haver o particular e o universal, mas em tratá-los como mundos isolados. Esta divisão fica
nítida quando se transmitem os conteúdos em instituições educacionais sem relacioná-los
entre si como se as disciplinas nada tivessem a ver uma com a outra. Ainda, conforme
observamos na educação atual, na hierarquia de relevância que a sociedade dá para as
disciplinas e para o conhecimento. Disciplinas como língua portuguesa e matemática são
vistas como mais importantes que todas as demais. Pensamos que uma das bases da crença de
hierarquia do conhecimento, demonstrado pelo julgamento de que uma área é mais importante
que outra, é a desconexão entre o particular e o universal. As disciplinas são particulares e
formam um conjunto ao se relacionarem entre si. Este conjunto se transforma em um todo que
vai além da simples soma de suas partes. Quando se julga que uma disciplina é mais ou
menos importante que a outra, está implícita a crença de que uma não tem conexão com a
outra e que em termos da totalidade do conhecimento uma determinada área se sobrepõe à
outra. O que temos é um todo fragmentado e disforme no qual algumas consequências são a
ênfase na quantidade de coisas que se diz ser conhecida em vez da qualidade acerca do
conteúdo, a falta de relação entre um objeto de uma área e de outra, a falta de relação entre os
objetos da mesma área de conhecimento e a crença de que uma profissão é melhor que a
outra, uma vez que como dito anteriormente, cada profissional é visto socialmente pelo tipo
de conhecimento que se acredita que ele possui e aprendeu nas instituições de ensino.

Acerca do par objetivo e subjetivo, Dewey (1959) explica que se refere ao “saber”. O
saber objetivo se refere às coisas que são externas à pessoa. Do lado objetivo estão os
conhecimentos reunidos por um grupo. A ideia que se acredita é que o conhecimento objetivo
leva em consideração todos os elementos importantes de determinada coisa e que recebe
suporte de pessoas entendidas no assunto, crença esta ligada à ideia tradicional de ciência. O
saber subjetivo tem relação com coisas da pessoa individual, ou seja, o conhecimento é
influenciado pelo que a pessoa pensa e sente de onde se acredita que é limitado e imperfeito
de forma a não se poder confiar nele. Assim, o saber subjetivo é comumente visto como algo
baseado na própria pessoa, no que vem da sua opinião, e o saber objetivo, algo baseado em
fatos que se apoiam no consenso de pessoas especializadas, numa crença verdadeira
justificada.

Na educação observamos este dualismo, por exemplo, na utilização das provas.


Notamos que, em geral, as pessoas não gostam de fazer provas sejam elas como forem.
Muitos estudantes recorrem, inclusive, à estratégia de burlar as regras e “colam” as respostas
para atingir a média ou ainda para outras finalidades como ficar entre os melhores da turma
em notas. Mesmo que para muita gente as provas não sejam agradáveis de realizar, muitas
pessoas as aceitam sem questionar sua relevância porque acreditam que a prova é um tipo de
avaliação objetiva do conhecimento. Não conseguem imaginar como se poderia “medir” o
conhecimento sem as provas. Não pretendemos afirmar se as provas são ou não um meio
objetivo de avaliar o conhecimento, o que refletimos é sobre uma possível consequência da
divisão entre objetivo e subjetivo, uma vez que acreditamos e concordamos com Dewey que
inexiste conhecimento totalmente objetivo de um lado e subjetivo de outro, mas que ambos
estão conectados. Quando se exige que haja apenas o considerado saber objetivo oriundo da
concepção tradicional de ciência frente aos fatos, na verdade se impede que as pessoas
pensem a respeito, uma vez que já está respaldado por um grupo de conhecedores. Ao mesmo
tempo em que se criam provas “objetivas” para avaliar o desempenho dos estudantes, nossa
sociedade tem exigido deles criatividade, autonomia de pensamento e julgamento que são
processos psicológicos diretamente relacionados ao desenvolvimento da parte subjetiva da
vida. O fato é que nossa sociedade exige habilidades das pessoas e nem sempre oferece
condições para que sejam desenvolvidas, visto que aprender e ensinar são processos
permeados tanto pelo que se entende por objetivo quanto pelo subjetivo.

Por fim, quanto ao par passivo e ativo, Dewey (1959) afirma que se refere ao
conhecimento. Este dualismo se evidencia na crença de que o conhecimento empírico, prático
é adquirido de forma passiva, isto é, basta receber as impressões sensoriais das coisas: a
consciência apenas recebe e recolhe as sensações. Já o conhecimento racional, abstrato é
adquirido de forma ativa. Nesse caso a consciência é ativa porque pensa e reflete em busca do
conhecimento. Não o recebe de lugar algum, a não ser de dentro de si mesma. Exemplo desse
dualismo é quando se classificam as pessoas entre as que gostam de coisas práticas e as que
são livres para pensar e ter cultura. Lembramos aqui que é comum em nossa sociedade a
crença de que as pessoas que não tiveram ou não prosseguiram os estudos escolares ou ainda
as que são pobres economicamente; estas não teriam cultura, seriam incultas, ignorariam o
conhecimento.

Vemos que o conhecimento que se julga que estas pessoas ignoram seria o ativo, que
por sua vez é chamado de “cultura”. Quando ouvimos falar como “aquela pessoa não tem
cultura”, “aquela criança vem de família sem cultura”, dentre outras, tem por uma das bases
este dualismo entre o conhecimento recebido de maneira passiva ou ativa. Uma consequência
da visão de que determinadas pessoas não tem cultura (sendo cultura neste dualismo vista
como conhecimento racional e abstrato) é a crença que estas pessoas são incapazes de
aprender a pensar e por isso necessitam que alguém pense por elas. Observamos que este
dualismo é uma das crenças que sustentam na nossa sociedade o preconceito contra as
minorias sociais como os pobres, os negros, as mulheres, os indígenas, etc, sendo diversas
vezes grupos tratados como inferiores em relação aos que supostamente detém o
conhecimento ativo que neste caso seria o grupo representado pelo “homem” “branco”
“economicamente favorecido” e “culto”, sendo a este, portanto, outorgado o poder para
pensar e comandar os demais. Entretanto, a Antropologia nos ensina que a cultura é uma
dimensão inerente a todos os seres humanos, e que se diferencia de acordo com as sociedades
ou grupos sociais.

Considerações finais
Vimos que ter atitudes pragmáticas é uma das maneiras de se contrapor à visão
dualista, pois se trata de relacionar o conhecimento com a vida do cotidiano e sua
aplicabilidade real. Tal aplicabilidade, porém, não significa um egoísmo no qual o útil é visto
apenas como benefício para uma pessoa sozinha, nem como o princípio da utilidade que
defende que toda ação deve ser aprovada ou desaprovada a partir da proporção que aumenta
ou reduz o bem-estar e a felicidade dos grupos sociais e ainda nem como a ideia que as coisas
são úteis quando têm aplicabilidade sempre imediata. Ter atitude pragmática em relação à
sociedade e à educação é uma postura prática e teórica que discorda que as coisas estejam
desconectadas e isoladas, pois acredita que o conhecimento teórico e o prático estão
conectados de forma que um influencia o outro constantemente, bem como todos os demais
pares que são considerados opostos como o empírico/racional, o particular/universal, o
objetivo/subjetivo, o passivo/ativo, dentre outros. Desta influência entre os pares se acredita
que vem a mudança que por sua vez provoca a instabilidade, ou seja, a vida, a sociedade, a
educação não ficam estáticas no decorrer do tempo e as ideias e práticas tidas como verdade
em determinada época se transformam em outras ideias e práticas.

A atitude pragmática levanta reflexões sobre as consequências de uma visão dualista


como vimos no decorrer deste texto, mas também nos leva a pensar em outros pontos como o
de que adotar diferentes conhecimentos daqueles que se possui não se trata apenas de uma
questão de lógica e de argumentos racionais, mas implica em uma mudança de visão de
mundo porque não é somente um tipo de conhecimento que explica um fato da realidade, mas
sim um conjunto de fatores que constroem o conhecimento teórico e prático. Também nos
leva a pensar sobre a visão de ciência tradicional, uma vez que a ciência embasa a educação
formal. Quando vemos as coisas relacionadas, percebemos que aquilo que é visto como regra
e como certeza na verdade é permeado por valores e crenças. Ideias como as de racionalidade,
de empiria, de rigor, de explicação surgiram influenciadas por um conhecimento
historicamente construído e sustentado por valores sociais. Tanto a visão dualista quanto a
pragmática estão permeadas por crenças e valores. A questão é que são crenças e valores
diferentes e estas diferenças influenciam a forma como vemos a educação, o que esperamos
dela e como a organizamos. A visão pragmática não só refuta a dualista, mas propõem uma
maneira diferente de pensar e agir na sociedade e na educação.

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BAUSOLA, Adriano. O Pragmatismo. In: ROVICHI, Sofia Vanni. Filosofia Contemporânea:


do século XIX à neoescolástica. São Paulo: Loyola, 1980, p.p. 459-472.

DEWEY, John. Democracia e Educação. São Paulo: Editora Nacional, 1959.

PINAZZA, Mônica Appezzato. John Dewey: inspirações para uma pedagogia da infância. In:
OLIVEIRA-FORMOSINHO, Júlia; KISHIMOTO, Tizuco Morchida; PINAZZA, Mônica
Appezzato (Orgs.). Pedagogia(s) da Infância: dialogando com o passado, construindo o
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PLATÃO. A República, vol. II. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1965.
ROCHA, Eliezer Pedroso da. O Princípio de Continuidade e a Relação entre Interesse e
Esforço em Dewey. 2011. 160f. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação.
Universidade de São Paulo, São Paulo. 2011.
SOUZA, Rodrigo Augusto de. Os Fundamentos da Pedagogia de John Dewey: uma reflexão
sobre a epistemologia pragmatista. Revista Contrapontos, vol.12, n.2, 2012, p.p.227-233.
TEIXEIRA, Anízio. A Pedagogia de Dewey. In: DEWEY, John. Vida e Educação, 4ed. São
Paulo: Melhoramentos, 1954.

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