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Psicologia da Criança e do Adolescente: uma abordagem a partir da ética


profissional

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Miguel Ricou
University of Porto
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NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2004, vol. XIII, n.º 3

Psicologia da Criança e do Adolescente: uma


abordagem a partir da ética profissional

Miguel Ricou

RESUMO convencimento, poderemos ser levados trabalho do psicólogo com a criança e no


O trabalho com crianças ou adoles- a pensar que tudo compreendemos e seu relacionamento com as pessoas
centes levanta dificuldades acrescidas resolvemos, reduzindo a pessoa ao “todo responsáveis por ela.
dado que, muitas vezes, estes não social”, e falhando no alívio do seu
possuem o discernimento necessário sofrimento individual.
para definirem e assumirem as decisões No trabalho com adultos parece ser A autonomia familiar
no sentido do seu melhor interesse. mais simples apercebermo-nos da sua As preocupações com as crianças
Compete por isso ao profissional, em unicidade, já que melhor identificamos a são tão antigas como a humanidade
conjunto com a família, definir as linhas forma como estes se expressam, bem uma vez que a infância sempre foi e
de acção no trabalho com as pessoas como nos damos conta dos diversos sempre será uma etapa do desenvolvi-
desta faixa etária, envolvendo-as nas hábitos e rotinas que desenvolvem ao mento do ser-humano. Contudo, a inter-
tomadas de decisão. Contudo, é da longo do seu desenvolvimento. Contudo, pretação das suas necessidades, bem
relação entre o melhor interesse da no que às crianças diz respeito, podere- como, as condições consideradas neces-
criança ou adolescente e do desejo da mos ser tentados, seja pelas maiores sárias para um desenvolvimento har-
família que surgem os dilemas éticos dificuldades de comunicação, seja por monioso, têm sofrido uma grande evo-
mais complexos. Nessa altura o profis- não conseguirmos assumir uma visão lução ao longo dos tempos.
sional deve estar bem consciente das mágica, dita infantil, do mundo, a mais Uma das características dos siste-
prioridades na relação terapêutica, e depressa generalizarmos os problemas mas complexos, a par da unicidade, da
estar atento aos problemas relacionados para os enquadrarmos em conjuntos interactividade, e da diversificação1, é a
com a obtenção do consentimento infor- sistematizados de sintomas que, por adaptação através da evolução, pelo
mado e com a confidencialidade. vezes, mais não servem do que para que se torna compreensível e até inevi-
Palavras-chave: Ética profissional; reduzir a angústia do profissional. Outras tável um conjunto de mudanças sociais
psicologia; infância; adolescência; con- vezes, poderemos ser tentados a inter- e éticas na forma como se encara hoje o
sentimento informado; confidencialidade. pretar a vontade dos “adultos” como o desenvolvimento infantil e se define,
melhor para aquela criança, ignorando dessa forma, o que será tratar bem ou
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as especificidades de cada uma delas, tratar mal uma criança. Se não existem
numa atitude que só não pode ser apeli- dúvidas que, à luz de um princípio de
dada de autista porque as suas causas responsabilidade social, os adultos
INTRODUÇÃO não estarão centradas na incapacidade devem zelar pelo bem-estar das crianças,
Se é verdade que o todo é sempre mas sim na ignorância. essa responsabilidade, na linha do
maior que a soma das partes, não As crianças não são adultos pe- defendido por Hans Jonas2, assume
deveremos esquecer que, como psicólo- quenos, pelo que o seu funcionamento valores diferentes consoante a formação
gos ou mesmo como profissionais de não pode ser avaliado por critérios de cada indivíduo. Vivemos na era da
saúde em geral, a “parte” da realidade semelhantes aos utilizados com os informação e da educação.
social, a pessoa, é um todo complexo e adultos. Logo, se a relação do profissional
único, pelo que nunca a poderemos de saúde com a criança desempenha 1. A primeira grande mudança está
encarar de ânimo leve. Ou seja, temos um papel do mesmo nível de importância relacionada com a crescente complexi-
que estar conscientes que facilmente, que com o adulto, os princípios que a dade do mundo, pelo que a educação é
animados pelos nossos conhecimentos devem orientar serão, necessariamente, hoje um dos pilares centrais das socie-
e embriagados pelo nosso auto- diferentes. É disso que pretende tratar dades modernas. Sem ela dificilmente
este artigo, ainda que o objectivo não se poderá hoje pedir responsabilidades
Psicólogo clínico; Mestre em Bioética; Coordenador seja o de formular regras de actuação, às pessoas. Nesse sentido, o Estado
da Unidade de Ética e Psicologia do Serviço de mas sim promover a reflexão sobre as assume o papel de proporcionar um
Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina
da Universidade do Porto
diferentes questões que se colocam no mínimo de educação a todas as pessoas

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para que estas possam assumir as suas por definição, mantém uma ligação O consentimento
responsabilidades na sociedade. Con- privilegiada com a criança, sendo por Já o dissemos que, ainda que com
tudo, o aumento da complexidade leva à isso um elemento fundamental no limitações, é aos pais que compete decidir
necessidade de especialização pelo que processo de decisão sobre o melhor pelos seus filhos, em virtude de, supos-
hoje constatamos a existência de uma interesse da criança. Esta realidade, se tamente, ninguém melhor do que eles
nova classe de profissionais de saúde, por um lado pode diminuir o tempo de poder definir o seu melhor interesse. Se
constituída por psicólogos educacionais, contacto entre os pais e a criança, por é na rede familiar que a criança se integra,
educadores sociais, médicos pediatras, outro, pode promover a tomada de então será legítimo presumir o consenti-
entre outros, muito mais atentos e decisões mais ponderadas e informadas, mento através da opinião da família3.
conhecedores da área do desenvolvi- e tornar a família visível aos olhos da Este processo de decisão indirecto é
mento infantil, logo com maior sensibili- comunidade, dado que o recurso a conhecido por julgamento substitutivo, e
dade para identificar os problemas a infantários ou outras instituições de apoio torna-se necessário nas situações em
este nível. Este facto implica uma maior é fundamental, tornando público o que que a pessoa não tem capacidade para
responsabilidade por parte destas pes- antes era privado: o melhor interesse tomar decisões, como será o caso das
soas, não só na informação e educação das crianças. crianças. Neste caso, os pais, caso
de todos os outros elementos da comuni- existam, ou um representante legal,
dade, como na tomada das decisões 4. Como resultado prático de tudo deverão decidir em função do melhor
necessárias para garantir o melhor isto temos que outro paradigma resultou interesse da criança, dado que lhes
desenvolvimento possível das nossas alterado: a disciplina como o fulcro de compete velar pela sua saúde e repre-
crianças. uma educação adequada. Hoje, ter um sentá-los4. Ainda segundo J.V. Rodri-
filho é uma opção e não uma inevita- gues, os pais, no exercício destas
2. Como implicação directa temos bilidade. O objectivo central da paterni- funções, deverão procurar envolver os
que o poder dos pais sobre as crianças dade e da maternidade não é o de criar filhos nas decisões, reconhecendo-lhes
já não é ilimitado: os pais não são donos soluções para a viabilidade económica autonomia na organização da própria
das crianças. Serão, é claro, as pessoas, da família. Neste sentido, o amor assume vida, em função, é claro, do seu grau de
em condições normais e ideais, em o papel central na educação pelo que maturidade. Este último ponto coloca em
posição privilegiada para julgar aquilo esta mudança contribui e muito para a evidência o facto do poder paternal não
que será o melhor interesse da criança, sensibilização das pessoas no que diz ser absoluto, pelo que, em casos limite,
uma vez que sobre ela terão um mais respeito à importância de um desenvol- poderá o profissional de saúde recorrer
profundo conhecimento, a partir do amor vimento harmonioso de todas as ao tribunal no sentido de contestar a
que sentem. Infelizmente, nem sempre crianças. decisão dos paisa.
isso se verifica; seja por ignorância seja No caso da psicoterapia ou do apoio
por desequilíbrios emocionais, os pais Em resumo temos que se a respon- psicológico, contudo, não nos parece
nem sempre estão preparados para sabilidade pelas crianças é de todos, ela ser possível levá-los a cabo sem o con-
decidir pela criança, pelo que será nesses cabe em primeiro lugar aos profissionais sentimento dos pais. Não porque não
casos que os profissionais deverão que desempenham o seu trabalho ao sejam considerados tratamentos válidos,
exercer, com segurança, a sua autori- nível da infância; não como substitutos mas porque seria irrealista pensarmos
dade racional. da família, mas como garantes da sua ser possível a prossecução de uma
sensibilização e formação nos valores intervenção com estas características
3. Mais ainda, estas transformações primordiais da educação de um filho e, sem a colaboração dos pais. Em contra-
decorrem em simultâneo com a autono- em segunda instância, pela intervenção partida, e como facilmente será percep-
mização das mulheres que são também pronta nos casos em que se verifique tível, a retirada da criança à família
mães. Sabemos que, tradicionalmente, que o melhor interesse da criança possa constitui uma opção com substancial-
as mulheres eram subalternizadas em estar posto em causa. mente mais malefícios do que os benefí-
relação ao homem, pelo que dificilmente Desta forma, as dificuldades princi- cios que se poderiam esperar da psico-
assumiam outro papel na sociedade que pais que se colocam aos psicólogos, terapia. Mais, parece-nos difícil que
não fosse o de esposa e o de mãe. Desta bem como a outros profissionais que qualquer intervenção com uma criança
forma, muitas das coisas que se passa- trabalhem com crianças, centram-se tenha algum resultado se os pais não
vam no seio da família ficavam guardadas sobretudo nas problemáticas relaciona-
em segredo, estando o acesso às das com a confidencialidade da relação
crianças muito dificultado. Actualmente e com o processo de obtenção do consen- a
Nestes casos, o profissional de saúde deve
a mulher estuda e trabalha tal como o timento informado. proceder, através do tribunal, à retirada temporária
da custódia parental, a fim de levar a cabo a
homem, pelo que se constitui como um intervenção. Claro que os prós e os contras que esta
membro da família com um papel activo situação necessariamente implica devem ser sempre
ponderados antes de qualquer decisão ser tomada.
nas decisões. Para além disso a mãe,

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forem envolvidos no tratamento5. Então, que a vontade do maior de 14 anos, colaboração da família da criança ou
nos casos em que o psicólogo julgar desde que competente, deve ser respei- adolescente. Então, a solução última
necessária uma intervenção com a tada, na prática a questão afigura-se deverá passar pelo recurso às instituições
criança e daí, com os seus pais, se estes como bem mais complexa. Normalmente, de protecção de menores o que, como
não estiverem de acordo, mais não os pais gostam dos seus filhos e os filhos facilmente será perceptível, implica
restará senão tentar sensibilizá-los para dos seus pais – esperemos, aliás, nunca transtornos sérios para a própria criança
a importância da mesma. Considerar a vir a viver numa sociedade em que esta ou adolescente.
hipótese de ser o próprio técnico que não seja a regra. Nesse sentido, sabemos
poderá não estar a conseguir criar a que os interesses de ambos convergem A confidencialidade
empatia necessária para conquistar a muitas vezes, pelo que a solução ideal Do ponto de vista da ética, uma
confiança da família, será então uma será promover consensos que conduzam pessoa considerada competente para
possibilidade forte. Nesse caso, acon- a uma mais desejável harmonia familiar. decidir sobre determinado aspecto, é
selhar o recurso a outro terapeuta poderá Então, nessa altura, os nossos esforços autónoma, devendo por isso ser respei-
constituir-se como uma alternativa válida. deverão ser dirigidos aos pais, no sentido tada como tal, independentemente da
Quando enfim, nada parece resultar para de juntos encontrarmos a melhor solução sua idade. Então, à partida, qualquer
conseguir o consentimento e a colabo- para o problema surgido. Só depois, o criança, ainda que menor de 18 ou
ração necessária para a intervenção, que apenas deverá acontecer excep- mesmo de 14 anos, deve ver respeitado
não deveremos esquecer que os proble- cionalmente, poderemos ser forçados a o seu direito à privacidade. No entanto,
mas da criança deverão estar relaciona- tomar outra decisão, estando conscientes sabemos o quão difícil se torna, sobretudo
dos, precisamente, com a própria dinâ- que a nossa referência deverá ser o em situações menos claras, discernir
mica familiar. Então, o nosso objectivo melhor interesse da criança nas suas sobre a competência ou incompetência
primordial, à luz do respeito pelo princípio diferentes dimensões: biológica, psico- de uma pessoa. Este poderá ser o caso
da Não-maleficência, será evitar uma lógica, social e familiar. de muitos indivíduos com menos e, por
ruptura completa na relação, mantendo Sabemos que as emoções afectam vezes, até com mais de 18 anos. Não
a porta aberta para que as pessoas os juízos de valor, pelo que é frequente nos devemos nunca esquecer que aquilo
possam, no futuro, recorrer a ajuda chegarmos a conclusões diferentes em que perseguimos é o melhor para a
profissional. Ao avançarmos contra a circunstâncias semelhantes, consoante pessoa, e que esse melhor inclui, inva-
família corremos o risco de estigmatizar o nosso estado de espírito. Se tal facto é riavelmente, dada a grande diversidade
e criar uma recusa em relação à inter- normal, e até mesmo desejável, na nossa humana, a sua opinião. Então, o que
venção psicológica em geral, prestando vida pessoal já que lhe servirá de estamos aqui a discutir é o processo de
um mau serviço às pessoas e à psico- tempero, em termos profissionais deve- descortinar o que será melhor para
logia. remos tentar evitá-lo. Quando fazemos aquela pessoa, naquela circunstância,
Mais complexa parece ser a juízos sobre o melhor interesse do outro pelo que, mais uma vez, se torna comple-
situação em que a criança, ainda que temos que o fazer racionalmente, sob xa a elaboração de regras bem definidas.
menor de 18 anos, tenha já um nível de pena de confundirmos aquilo que de O que nos parece então razoável
desenvolvimento cognitivo que lhe facto possa ser o melhor para aquela será, em primeira instância, definir os
permita decidir em sentido contrário ao pessoa com aquilo que gostaríamos que pressupostos da relação com a criança e
dos pais. A norma contida no número 3 fosse. Deste modo, as emoções não com os pais, informando-os e discutindo
do artigo 38º do Código Penal6 português constituem um bom auxiliar na avaliação com eles, se possível em separado, sobre
estatui que “o consentimento só é eficaz do bem do outro. Contudo, sabemos ser os limites da confidencialidade. Desta
se for prestado por quem tiver mais de 14 impossível alheá-las totalmente do nosso forma, teremos, desde logo, a oportuni-
anos e possuir o discernimento neces- funcionamento. O objectivo é então dade de avisar os pais sobre a importân-
sário para avaliar o seu sentido e alcance identificá-las para poder controlá-las, cia da privacidade da relação para o
no momento em que o presta”. Temos procurando na criança e na sua família a sucesso da mesma; raras serão as vezes,
que desta forma é reconhecido aos sua própria noção de bem-estar, o que pelo menos na nossa experiência, em
menores com capacidade de discerni- apenas será possível a partir de uma que os pais, quando informados, não
mento o direito a consentirem ou não em avaliação o mais racional possível. compreendem e não aceitam esta
determinada intervenção, bem como, Não poderemos nunca ambicionar situaçãob. Definidas as regras, e aceites
podemos inferir, o direito à privacidade a criação de regras de funcionamento
inerente à relação estabelecida. Então, objectivas, pelo que, mais do que nunca, b
Torna-se fundamental a aceitação destas regras
o que fazer nos casos onde os interesses cada caso deverá ser avaliado como um por parte dos pais, sob pena de não ser possível
conseguir a confiança da criança ou do jovem,
da criança e dos pais aparentemente caso diferente. Mais, uma intervenção tornando-se a relação terapêutica praticamente inútil.
divergem? no âmbito da psicologia é levada a cabo, Desta forma, o respeito pela privacidade da relação
nestas idades, para além do seu valor intrínseco,
Se por um lado o ordenamento por norma, ao longo do tempo, pelo que possui ainda um valor instrumental que não deve
jurídico português é taxativo indicando se torna ainda mais difícil sem a nem pode ser negligenciado.

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por parte dos intervenientes, as compli- Caso não seja possível evitar a de vida. Logo, o seu exercício terá
cações poderão surgir se forem reveladas quebra de confidencialidade, e depois características particulares, derivadas da
situações que, pela sua gravidade, no de todos os esforços considerados conjugação profunda entre o racional e o
que respeita às possíveis implicações, necessários para obter o acordo da emocional que poderá levar o indivíduo
exijam um maior acompanhamento da criança ou do adolescente, o psicólogo a realizar, muitas vezes, escolhas centra-
criança ou adolescente. Problemáticas deverá avisá-lo de que o vai fazer. das em desejos imediatos, toldando a
tais como o consumo regular de drogas, sua capacidade em prever as implicações
a existência de auto-mutilações ou o No caso específico do suicídio, a futuras por si indesejadas.
risco sério de suicídio, para citar apenas tradição judaico-cristã, prevalecente em
alguns dos exemplos mais frequentes, Portugal, atribui um valor à vida humana No entanto, e se a autonomia no
podem exigir um controlo por parte dos que pode ser considerado superior ao da adolescente é “uma aquisição a con-
pais ou de outra pessoa da esfera autonomia8. Desta forma, qualquer que quistar, dizendo respeito à apropriação
relacional da criança. Quando tal acon- seja a motivação do adolescente, esteja do corpo e à conquista de um espaço
tece, o problema deve ser seriamente este competente ou não, o psicólogo mental para pensar e para se relacionar
discutido com o indivíduo e, se for o não deverá aceitar a sua decisão em fora da família”9, ela não lhe pode ser
caso, deveremos avisá-lo da necessi- suicidar-se, devendo envidar os esforços negada sob pena de sermos colocados
dade de envolvimento de uma terceira necessários para o evitar. Mais uma vez, fora do seu mundo, tornando-se inútil
pessoa que nos possa auxiliar no controlo a questão crítica coloca-se no facto das qualquer tentativa de ajuda. Será este
desses comportamentos gravemente limitações à confidencialidade deverem difícil meio termo que se exige ao psicó-
danosos. ser discutidas na altura da obtenção do logo na sua relação com pessoas nestas
consentimento informado, limitando as faixas etárias.
O pressuposto de base nesta consequências ainda agora referidas.
questão não difere muito do procedi-
mento utilizado para o adulto quando Em conclusão, temos então que a Nota final
existe um sério risco de suicídio. Então, primeira preocupação do psicólogo, a Este artigo não ambiciona definir o
deveremos estar conscientes que fim de evitar problemas maiores no futuro, certo e o errado na actuação do psicólogo
quando o adolescente dá a entender ou deve ser discutir, no início da relação, os com a criança ou com o adolescente. Em
informa mesmo o psicólogo de que limites da confidencialidade na mesma. primeiro lugar porque não teria legitimi-
pretende fazer algo contra si próprio ou Quando confrontado com qualquer uma dade para o fazer, dado que, segura-
até contra terceiros, tal poderá significar, destas questões – perigo de dano a mente, desconheço, de uma forma
na maioria das vezes, um pedido de terceiros ou a si mesmo, de uma forma integral, todas as facetas da intervenção
ajuda, no sentido do evitamento do séria – deve avaliar a situação caso a em psicologia, pelo que algumas dimen-
comportamento. Então, o profissional caso, discuti-la com colegas e tomar sões me terão escapado. Em segundo
deverá ser capaz de avaliar quais as uma decisão consciente que tenha em lugar, apenas o profissional que está
reais intenções do sujeito, incluindo a linha de conta o melhor interesse do seu perante o seu cliente terá a capacidade
sinceridade das mesmas, tentando dar- cliente, mas também o interesse de e a sensibilidade para, caso a caso,
lhes uma resposta e evitando, deste pessoas que possam ser directa e perceber o melhor ou o pior para aquela
modo, a quebra da confidencialidadeC e gravemente afectadas pela situação em criança ou para a sua família, pelo que
as suas consequências inerentes: a causa. tudo o que aqui se disse deverá ser
quebra da confiança com o previsível fim interpretado como princípios orientado-
do processo psicoterapêutico e potencial Claro que, na criança ou adoles- res sujeitos à interpretação de cada um.
prejuízo para o adolescente, bem como, cente, a competência para decidir, ou Depois, e em terceiro lugar, se é certo
o comprometimento da confiança nos seja, a capacidade para tomar decisões que a racionalidade deve imperar na
psicólogos em geral7d. tendo em consideração uma racional nossa actuação, possibilitando a previsão
observação da realidade envolvente, do que poderá acontecer, também é
bem como das possíveis consequências verdade que em tudo o que acontece na
C
De facto, na sequência do famoso caso Tarasoff, das suas decisões, comporta outro tipo vida, existem factores contingentes que
foi defendido que se a confidencialidade tivesse sido de questões. A autonomia, nestas idades, poderão alterar as nossas previsões,
mantida, o cliente poderia ter sido mantido em
psicoterapia e o crime de homicídio que foi cometido centra-se também na esfera do desejo, e pelo que cada psicólogo deverá ser capaz
poderia ter sido evitado. Nesta perspectiva, a confi- não surge como um mero colorário do de o reconhecer e de ter a confiança, a
dencialidade deveria ser mantida sobretudo com
uma finalidade instrumental.
desenvolvimento pessoal9. Aliás, a aqui- experiência e a versatilidade necessárias
d
Para um maior desenvolvimento sobre as conse- sição da autonomia assume-se como para conseguir reagir ao inesperado.
quências possíveis da quebra da confidencialidade
uma tarefa desenvolvimental, mais do Finalmente, e devido às limitações de
consultar: Ricou, M. (2004). Ética e Psicologia: Uma
Prática Integrada. Coimbra: Gráfica de Coimbra, que como uma característica intrínseca espaço, não é possível um aprofunda-
Lda. de uma pessoa na sua segunda década mento dos temas tão grande como seria
desejável.

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Por tudo isto, o objectivo será tão- professional must be well aware of the 5 - Beauchamp, T., & Childress, J. (2002).
somente contribuir para a reflexão de priorities in the therapeutic relationship Principios de ética biomédica. Barcelona:
cada um dos leitores, promovendo a and those in obtaining envolved informed Masson, S.A. Do original: Principles of
discussão sobre questões tão impor- consent, where respecting confidentiality. Biomedical Ethics, 1994 (4th Edition).
tantes como a própria competência na Key-words: Professional ethics; 6 - Código Penal. (2002). Organização
prática da psicologia. Uma actuação psychology; childhood; adolescence; in- de Carlota Pizarro de Almeida e José
eticamente adequada é uma condição formed consent; confidentiality. Manuel Vilalonga. (5ª edição). Coimbra:
central para a criação de uma relação Livraria Almedina.
Nascer e Crescer 2004; 13 (3): 234-238
terapêutica de confiança, ferramenta 7 - Ricou, M. (2004). Ética e Psicologia:
indispensável para uma boa actuação Uma Prática Integrada. Coimbra: Gráfica
ao nível da psicologia. BIBLIOGRAFIA de Coimbra, Lda.
8 - Serrão, D. (1998). Ética das atitudes
1 - Reeves, H. (2000). Aves, maravilhosas médicas em relação com o processo de
CHILD AND ADOLESCENT PSYCHO- aves. Os diálogos do céu e da vida. morrer. In Daniel Serrão e Rui Nunes
LOGY: A PROFESSIONAL ETHICS Lisboa: Gradiva - Publicações, Lda. Do (Eds.), Ética em Cuidados de Saúde (pp.
APPROACH original: Oiseaux, merveilleux oiseaux - 83-92). Porto: Porto Editora.
Les dialogues du ciel et de la vie, 1998 9 - Fleming, M. (1997). Adolescência e
ABSTRACT 2 - Jonas, H. (1990). Le principe respon- autonomia. O desenvolvimento psicoló-
Working with children and adoles- sabilité. Paris: Cerf Do original: Das Prin- gico e a relação com os pais (pp.251),(2ª
cents often raises considerable difficulties zip Verantwortung, 1979. edição). Porto: Edições Afrontamento.
as these groups do not possess the 3 - Nunes, R., & Rodrigues, M.R. (1998).
necessary ability to accept and act upon Reabilitação auditiva na infância. Pode-
decisions made in their best interest. res e limites da intervenção médica. In Correspondência:
Consequently, the professional, in con- Rui Nunes (Ed.), Controvérsias na Rea- Serviço de Bioética e Ética Médica da
junction with the family, defines the re- bilitação da Criança Surda. Porto: Fun- Faculdade de Medicina do Porto.
quired actions for the people in these age dação Eng.º António de Almeida. Unidade de Ética e Psicologia.
groups, and involves them in subsequent 4 - Rodrigues, J.V. (2001). O Consenti- Alam. Prof. Hernâni Monteiro
decisions. Nevertheless, it is the rela- mento informado para o acto médico no 4200-319 Porto
tionship between the best interest of the ordenamento jurídico português (ele- Tel. +351 22 557 3460
child or adolescent and the wishes of the mentos para o estudo da manifestação Email: mricou@med.up.pt
family that generates the most complex da vontade do paciente). Coimbra: Coim-
ethical dilemmas. In this instance the bra Editora.

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