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de formação do humano em seu sentido não pode ficar somente limitado a uma
preparação funcional, por mais eficiente que seja, pois já desde as suas origens
tal formação tem como horizonte necessário as obras de pensamento e arte,
jamais redutíveis a conceitos crítico-classificatórios funcionais. Nelas se faz
presente o apelo de plena realização do sentido poético do humano. Por isso,
em todos as épocas, elas estão no centro de toda a sua formação através dos
sistemas educativos, pois elas têm sempre como horizonte o universal humano
em seu acontecer poético. Mas pode-se confundir o universal humano com o
universal técnico-funcional? Quando o essencial foi reduzido ao conhecimento
científico, este passou cada vez mais a depender do técnico-matemático e as
próprias obras de arte se tornaram ciência estética. A Poética foi substituída
pela Estética. Porém, pode a eficiência funcional libertar o ser humano para a
sua essência? É nesse horizonte que se debate cada vez mais o alcance da
imaginação científica como globalização tecno-funcional. E nisso está todo o
grande desafio para as obras de arte, isto é, dentro das possibilidades tecno-
digitais novas deixarem eclodir a essência do humano, projetando o
pensamento por vir, pois o tempo não para. Elas se defrontam com a questão
do universal que gesta a globalização atual.
O que é o universal? Essa é a questão que nos desafia desde os pensadores
originários e se faz presente em todas as culturas através de mitos e ritos, e
depois na filosofia, no pensamento e nas artes. E ela é mais atual do que nunca.
O que mudou foi a sua compreensão a cada nova globalização, pois cada uma
desenvolve novas dimensões. Há uma analogia entre universo e universal.
Quando, hoje, no domínio universal da técnica, falamos em globalização, no
fundo, estamos querendo nos referir a um universal de tal poder que abrange
todo o globo terrestre e todo o universo. Já pensou o poeta:
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia de Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
(CAEIRO, 1965, 238)
O poeta coloca com precisão toda a questão do universal em sua complexidade
e vigência, ao trazer para o pensamento a questão do lugar e da referência do
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Concreto nada tem a ver com o conceito vulgar e superficial de algo material,
seguro, parado, fixo, firme, pois “O fulgor das estrelas existe como se tivesse
peso”. Na dialética de dia e noite, comparece o tempo do ser com todo o seu
peso e vigência. E é ele que pesa concretamente, afeta nossos sentidos,
ofertando-se como palavra, música, brilho, cor, imagem. E é isso que significa
con-creto: o crescer (-creto, do verbo latino créscere, crescer) na unidade da
multiplicidade (con-, do prefixo latino cum-, junto, na companhia de) de
diferenças e versões. Estas são necessariamente temporais, pois não cessam de
acontecer como fenômenos. E este universal concreto é o universal poético que
funda toda globalização como universal. Perdendo o peso do tempo, a
realidade nos chega como representação e conceito. Teremos então o universal
abstrato (do verbo latino abstraho, arrancar, separar). Neste, arranca-se o
acontecer do tempo, sempre diferente, e só se considera o uniforme, o
repetitivo, o meramente conceitual, o científico enquanto conceito. Por isso, tal
universal é a base da função, que será sempre repetitiva, prevista, previsível,
sem mudança. Se o universal concreto diz respeito à verdade originária como
a-letheia, o que se desvela e vela fenomenalmente, o universal abstrato, diz a
verdade conceitual, funcional, que se fundamenta na possibilidade de uma
repetição infinda. Só o funcional pode ser repetido em diferentes momentos,
épocas e por diferentes pessoas, das mais diversas culturas e segmentos sociais.
Essa é a essência do instrumento técnico, como possibilidade da essência da
técnica, da techne, um modo de conhecer. Não há entre as duas compreensões
do universal uma oposição, mas são modos diferentes de a realidade dar-se e
acontecer. Não deixemos, porém, de notar que todo universal abstrato, gerando
a verdade conceitual e funcional, tem uma validade determinada inerente ao
paradigma que a utiliza. É que todo funcional se caracteriza pela utilidade,
inclusive na sua dimensão ideológica.
A cada globalização corresponde uma determinada língua com uma
estrutura de um poder universal de expansão, seja comunicativa, seja poética.
Pode a atual globalização realizar as obras de arte e pensamento numa língua
meramente comunicativa? É o a-ser-pensado, pois a obra de arte por operar na
vigência da linguagem, inclui, mas não se limita a ser comunicação. O código-
língua opera como uma sintaxe ou rede, constituída de linhas e nós,
expandindo a noção tradicional de oração constituída de sujeito e predicado
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curiosidade. Tal perda é muito sutil, pois continuam sendo estudadas e até
divulgadas. É mais uma característica da globalização técnica ou funcional,
simplesmente porque, hoje, a globalização atingiu seu ponto máximo e
influencia todas as culturas, sem exceção. E até para estudá-las e caracterizá-
las já são usados conceitos e terminologia ocidentais. Surge, nessa globalização
ocidental, um grande paradoxo: até para opor Ocidente e Oriente, e mostrar a
diferença é usada a terminologia científica ocidental, ditada pelas conquistas
técnico-científicas. Sem dúvida nenhuma, as conquistas técnicas e a sua
terminologia são unicamente ocidentais. Na verdade, a técnica nesse sentido
global é sem atributos culturais. É usada por todas as culturas e as influencia e
transforma, pois passam a predominar os valores técnico-globalizados. Na
globalização atual predomina, sem dúvida nenhuma, a tecnicização do humano,
por um lado, mas, por outro, abre possibilidades nunca antes vistas. Trata-se de
apreender os limites e alcance dessa tecnicização, seja nos aspectos materiais,
seja nos aspectos espirituais e imaginário-simbólicos. O grande desafio é
apreender a essência da técnica e nela as possibilidades de realização
libertadora do humano, naquele horizonte já pensado no projeto de Aristóteles.
Tentemos caracterizar a atual globalização funcional: As
transformações desencadeadas são tão profundas que até o próprio tempo se vê
transfigurado em sua essência. De um lado, é pura e contínua mudança,
novidade, evanescência, obsolescência. Há uma absoluta fome de consumo dos
produtos de última geração, do último modelo. Tudo envelhece rapidamente
como se o tempo estivesse acelerado, nada resistindo a essa aceleração, nem as
relações afetivas que passaram a ter a velocidade da internet. Esta epidérmica
afetividade foi tematizada em dois filmes, como um sintoma e reflexão do
medo de os novos seres humanos confiarem uns nos outros e assumirem algo
duradouro: Todas as cores do amor, dirigido por Elizabeth Gill, 2003; O azul é
a cor mais quente, dirigido por Abdelatif Kechiche, 2013. A ideia ancestral de
família e comunidade, tomados hoje como paradigmas apenas, entra em
colapso. De outro, tem-se a nítida sensação de que em tanta mudança nada
muda e há uma repetição sem fim das mesmas coisas, que verdadeiramente não
passam, repetem-se e geram uma angústia solitária profunda. Na era global da
comunicação instantânea (Whatsapp, Twitter) nunca houve tanto isolamento e
imersão numa realidade que nos foge dos pés. Todos conectados e todos
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isolados. Tanto nas artes quanto nas ciências reina a mais absoluta
perplexidade. Os sistemas faliram e nunca se tornou tão urgente pensar o ético
do humano e o humano do ético enquanto vigorar do princípio originário
(arche). O ético é a verdade libertadora do universal concreto. Eis algumas
denominações tentando dizer a atual globalização: pós-modernidade, baixa-
modernidade, contemporâneo (como se toda época não fosse contemporânea de
quem a experiencia!!!!), sociedade da informação, sociedade do espetáculo,
sociedade da comunicação, sociedade de consumo, sociedade do
conhecimento, pós-tudo, o tempo das redes, o fim das certezas, a realidade
virtual. A pura negação ou a total aceitação deslumbrante é uma nescidade.
Globalização é dobra, pois toda dicotomia se tornou um chavão dinossáurico:
pensar em termos de materialismo ou espiritualismo, de função ou essência, de
identidade ou alienação, de raça ou gênero, de teoria ou prática, de erudito ou
popular, de marginal ou não-marginal etc. não passa de uma brincadeira risível
sem consequências. Resta-nos o verdadeiro desafio: “... toda experiência
radical de pensamento se embrenha pelas raízes da própria possibilidade de
pensar as realizações do real no e pelo mistério da realidade” (LEÃO, 2012, p.
145). Opondo-se ao pensamento temos a globalização funcional que é a
uniformidade com aparência do novo em tudo e em todos. É a publicização, a
banalização, a predominância do instante e do simultâneo, a fugacidade e
imaterialidade digital de tudo, o domínio absoluto da imagem. Tudo isto está
ocasionando uma transformação de todos os valores e modos de viver jamais
acontecida antes e com tal amplitude: a global. É o tempo da cibercultura, da
engenharia genética, da eliminação da linguagem simbólica, da inteligência
artificial, das próteses microeletrônicas, do ciborgue, do culto do corpo, do
domínio global do profano, do conteúdo reduzido às formas e formatos, da
estetização generalizada da arte, da celebração do instante, da língua e
linguagem reduzidas à comunicação, da perda da memória, da redução do
afetivo e do erótico às sensações, da sociedade em rede. É que nosso tempo é o
tempo das redes. Hoje há rede para tudo, locais e globais: redes de serviços, de
produtos, de ensino, de conhecimentos, de relacionamentos, de suportes, de
aplicativos etc. etc. A sociedade em rede não é uma máquina, nem um conjunto
de máquinas ou procedimentos fundamentados em meios instrumentais, tendo
sempre como finalidade algo útil. A técnica deixou de ser um fator entre
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muitos outros que vieram integrar-se, a posteriori, numa sociedade não técnica,
numa civilização autônoma e natural. Na sociedade em rede, a técnica se
tornou dominante. A sociedade em rede substitui progressivamente com grande
vantagem o conjunto de todas as coisas ou real. Trata-se de um ambiente
completo e total em que o homem, a sociedade, a cultura, a civilização, tudo se
vê compelido a viver e a determinar-se pelo técnico e suas funções. Não é
apenas mais uma totalidade das muitas já propostas pelos diferentes
humanismos, mas a totalidade sem utopia que tudo absorve e decide.
Este domínio omnipresente da técnica nos mostra que a sociedade em
rede constitui a realidade, o ar em que o homem global se descobre inserido e
respira. Exige da parte dos homens uma reformulação estrutural completa de
todos os modos de ser e comportar-se até então vigentes, de seus valores
morais, de suas tradições, dos padrões intelectuais e fisiológicos, de tudo que
tinha sido o homem até então. Pela técnica absorvente e dissolvente, a
sociedade em rede monta um sistema, em que tudo é captado e absorvido de
maneira radical. Nela, cada integrante vai transformando-se em elemento do
sistema, pois só tem sentido, i.é, valor, graças à função que lhe confere o todo
do sistema. A sociedade em rede está toda presente em cada uma de suas
partes, em cada uma de suas funções, em cada um de seus desempenhos. As
características da sociedade em rede são as características de seu próprio
funcionamento, a saber: automação, auto-crescimento, funcionalidade,
eficiência e ausência. É difícil distinguir o que é sonho, imaginação, fantasia,
real, ficção. Não se trata nem mesmo de exclusão, é ausência de finalidade ou
valor que venha de fora do sistema. Não há lugar jamais para o inesperado,
pois os programas já pressupõem tudo. Será?
Esse operar da técnica em rede omnipresente é que está plasmando a
nova sociedade do conhecimento complexo. A rede das infovias constitui hoje
todas as relações em que se estrutura a cidade e o campo. As noções de Estados
e Nações inexistem para a realidade digital, pois esta é sem limites e fronteiras.
O paradigma digital a tudo penetra e a tudo determina. Todos os “ismos”
tradicionais que configuravam os “humanismos” caíram, dando lugar a um
profundo esvaziamento ideológico. Isso é muito bom, porque nos lança no
questionamento da construção de um real futuro sem “receitas” prévias. O real
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não cabe nas teorias e muito menos nas ideologias. Hoje a grande ideologia é o
conhecimento sem ética e sem libertação real.
É necessário retomar o ético de todo conhecimento, na medida em que
este tem, necessariamente como medida ontológica e princípio de realização, o
humano. O que está faltando é se pensar com radicalidade a essência do agir
em tudo, sobretudo no educar do ser humano, uma vez que fazer ainda não é
ser. E só na vigência deste se age essencialmente. Não basta fazer é necessário
ser o que se faz. Se globalização é rede, há necessidade para o humano de uma
rede poética. Será mais uma rede na feira das redes ou ela se propõe ser mais
do que uma entre outras tantas redes? O que nessa rede está em rede? Quando
dizemos rede poética não estamos já pensando a essência da rede, se ela por
ser poética for ontológica? É o grande desafio: pensar o que nos dá o sentido de
existir. O que nos leva a constituir uma rede poética não são os humanismos,
nem mais um humanismo, mas o que em todo ser humano o constitui como
próprio: é o humano de todo ser humano. Eis o motivo que move a rede
poética. Para ela cada ser humano não se reduz a um número na multidão dos
consumidores, não é um qualquer, pois todo ser humano já traz algo próprio e
único, embora poético-universal: o humano de todo próprio. Fundando-se no
humano ela procurará estabelecer um diálogo com todo próprio e, no horizonte
deste, com a sociedade em rede, concebida como sinousia, a vigência da
cidadania. No filme Todas as cores do amor, centralizado no comportamento
dos jovens de hoje, aparece uma imagem-questão extremamente preocupante,
mas que diz muito: Cada relacionamento afetivo – e afeto não diz mera
sensação estética, mas ético-humana ou erótica - tinha aproximadamente a
duração da memória de um peixe, em torno de um minuto. Para o peixe, a
realidade a cada minuto aparece como uma realidade sempre nova, como se a
visse pela primeira vez. Com um pouco de exagero é isso o que está
acontecendo com a memória das relações na época da globalização da internet:
não há permanência, tudo muda muito rapidamente e se esquece. Podemos
experimentar isso com as informações. Elas se sucedem tão rapidamente que
nada perdura, vivem a frescura da novidade e a sorte da sua rápida substituição
pelas mais recentes. E a sensação é de que nada fica, tudo se esvai com o correr
e fluir do tempo. É o tempo da globalização e das redes, das fáceis relações e
rápidas mudanças e substituições. E não são apenas as relações afetivas
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Bibliografia
CAEIRO, Alberto. In: PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro:
Companhia Aguilar, 1965.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Deus e o homem louco”. In: Revista Tempo
Brasileiro, 188, Imagem de Ciência, jan.-mar., 2012.