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CONSeLhO eDitORiAL
CONSeLhO CONSuLtivO
2ª edição
com Pós-escrito
1ª edição – 2008
Produção editorial
Livraria e editora Lumen Juris Ltda.
imagem da capa:
Bartholomeus Spranger, hermes e athenas
impresso no Brasil
Printed in Brazil
canção mínima
no mistério do Sem-fim
equilibra-se um planeta.
e, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
cecíLia meireLeS,
vaga música, 1942
alheias e nossas
as palavras voam.
Bando de borboletas multicores,
as palavras voam.
Bando azul de andorinhas,
bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
voam as palavras
como águias imensas.
como escuros morcegos
como negros abutres,
as palavras voam.
e às vezes pousam.
cecíLia meireLeS,
abril de 1964
“e aqui está o paradoxo do direito: o fato de que sua legitimidade depende de sua
forma, de uma forma jurídica que, na modernidade, se construiu normativa e socio-
logicamente alicerçada nos princípios de igualdade e liberdade, num processo de
diferenciação funcional. embora tais princípios de liberdade e igualdade sejam prin-
cípios normativos, não se pode pretender fundá-los para além do próprio direito, isto
é, para além de sua forma jurídica moderna, razão pela qual, no que tange ao direito,
somente podemos, na modernidade, falar em tal forma, o que implica também dizer
que tais princípios sejam assumidos pela comunidade jurídica ainda que numa deci-
são simbólica de uma assembléia constituinte que, paradoxalmente, tem que deci-
dir por tal juridicidade (forma jurídica) quando (ou porque) não poderia de outra
forma decidir legitimamente.”1
“afinal, mais uma vez com haBermaS, podemos compartilhar que a noção de direi-
tos subjetivos são correspondentes ao conceito de liberdades subjetivas de ação que
fixam, estabelecem, os limites dentro dos quais um sujeito está legitimado (autoriza-
do) a afirmar sua vontade, independentemente dos objetivos e motivos que persegue
ou o impulsionam. a atenção a ser dispensada à categoria dos direitos subjetivos se
justifica porque central para a auto-compreensão da praxis jurídica que constitui o
direito vez que sistema – afinal, há determinados direitos subjetivos que devem ser
reciprocamente a todos reconhecidos para a construção do próprio direito moderno
legítimo. a aquisição moderna do conceito de lei (válida indistintamente a todos e
1 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade. rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 105.
por isso capaz de atribuir os mesmos direitos a todos), se por um lado cumpre um
aspecto funcional de ser especialmente adequada a uma sociedade que se tornou des-
centrada e na qual a economia cumpre um papel proeminente, por outro lado há que
satisfazer condições sempre precárias de integração social que repousam, na
modernidade, em uma intersubjetividade capaz de dar suporte à aceitabilidade de
pretensões de validade referentes à operação de acordos. afinal, algo que Luhmann
não percebeu, é que, na modernidade, o direito somente é capaz de cumprir sua fun-
ção de estabilização de expectativas de comportamento se também for capaz de man-
ter uma conexão interna com aquela força sócio-integradora, da qual é dotada a ação
comunicativa, porque gerada numa intersubjetividade. Somente quando reconhece-
mos iguais ‘esferas de liberdade de arbítrio’, enfim, iguais direitos subjetivos, é que
podemos pretender que todos que se encontram sob o império do direito possam
tomá-lo como aceitável: aqui reside, pois, o paradoxo de que a legitimidade do
direito seja capaz de ser produzida a partir de uma legalidade que reconheça iguais
direitos ao exercício da autonomia pública.”2
2 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno, cit., p. 78.
coincide exatamente com a da razão comunicativa, se é que não está em uma rela-
ção de tensão com ela, e que inclusive está na base do meio (a forma jurídica
moderna) com que a razão comunicativa moderna tem de operar? em um
momento de infidelidade a haBermaS, chamon (na primeira citação) parece suge-
rir isso. esse momento de infidelidade não pode ser casual, porque, como digo,
chamon é sempre claro e preciso.
esta questão não é nenhum jogo conceitual, não é uma questão de mais ou de
menos. É uma questão muito antiga. Foi proposta desde o princípio da
modernidade política, desde o momento em que a ordem estatal introduzida no
século Xvii se torna democrático-liberal com as revoluções de fins do século
Xviii. na declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, temos o arti-
go 6º, que diz: “a lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm direi-
to a concorrer, mediante seus representantes, para sua formação. deve ser a
mesma para todos, tanto ao proteger quanto ao castigar”.
este artigo 6º se faz eco de o contrato social de rouSSeau: “a lei é a expres-
são da vontade geral”. Para rouSSeau, a “vontade geral” é a soberania em exercí-
cio, o exercício da soberania. e para haBermaS a soberania popular pode ser
entendida como “procedimento”. o artigo agregado ao apêndice de Facticidad y
validez, “a soberania popular como procedimento”, é, a meu ver, uma importan-
te interpretação contemporânea do conceito de soberania. nesse artigo, em dis-
cussão com quase todo o pensamento político contemporâneo, fica particularmen-
te clara a idéia de haBermaS do entrelaçamento entre “princípio do discurso” e
“forma jurídica”, como instauração de uma legalidade (apoiada no procedimento
jurídico de geração legítima do direito) que não só gera sua própria legitimidade,
mas exclui a existência de outra legitimidade ou outra fonte de legitimidade além
dessa. de modo que, no que se refere aos princípios de liberdade e igualdade, seria
a própria forma da lei e os próprios procedimentos jurídicos de geração legítima
da lei que cuidariam exaustivamente deles. em todo caso, a normatividade desses
princípios teria de derivar também dessa fonte, que é a razão comunicativa.
entretanto, não parece ser essa a idéia de todos os autores da declaração de
1789. nela, há outro artigo que provavelmente foi redigido depois do artigo 6º e
que fica agressivamente anteposto ao artigo 6º. Trata-se do artigo 5º. e digo “agres-
sivamente” porque se inicia com uma formulação paradoxal que foi seguramente
intencionada. o artigo 5º diz assim: “a lei não tem direito (n’a le droit) de proibir
senão as ações nocivas à sociedade [...]” ora, “ações nocivas” à sociedade só podem
ser as que estorvam o fim da sociedade. e conforme o artigo 2º, “o fim da associa-
ção política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.
esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opres-
são”. Temos, portanto, que o direito de fazer comigo e com o meu o que me apraz,
sem outra limitação que a de reconhecer esse mesmo direito aos demais (pois, con-
forme o artigo 4º, “o exercício dos direitos naturais do homem não têm outros
limites senão os que asseguram aos demais membros da sociedade o exercício des-
ses mesmos direitos”), temos, digo, que o igual direito à maior medida possível de
iguais liberdades subjetivas de ação3 é, ou assim parece, uma fonte de legitimida-
de independente da que representa a razão pública comunicativa juridicamente
articulada, e à qual essa razão comunicativa tem de se submeter. Porque a lei,
inclusive aquela produzida de forma procedimentalmente correta, n’a pas le droit
de (não tem direito a) estabelecer uma medida de iguais liberdades básicas que seja
menor que a maior possível. e essa maior medida possível tem seu próprio crité-
rio interno: não tem outro limite senão o que assegura aos demais membros da
sociedade o exercício dos mesmos direitos de liberdade.
Portanto, dir-se-ia que a liberdade subjetiva é absoluta, segundo a viam os
pais (ou alguns pais) da declaração de 1789. não tem outra medida interna a não
ser ela mesma. não a mede a legitimidade comunicativa, mas é ela, antes, a medi-
da dessa legitimidade comunicativa.
3 essa expressão, seguramente inspirada por una teoria de la justicia de J. raWLS, é a que haBermaS empre-
ga na dedução do sistema dos direitos no cap. iii de Facticidad y validez. cf. haBermaS, Jürgen, Faktizität
und geltung, Frankfurt, 1992 (versão espanhola: Facticidad y validez, introdução e tradução de manuel
JimÉnez redondo sobre a quarta edição alemã revista, de 1994, Trotta, madrid, 1998), p. 155. raWLS, na for-
mulação do “primeiro princípio de justiça”, fala de “the most extensive basic liberty compatible with a simi-
lar liberty for others”. veja-se, por exemplo, raWLS, John, a Theory of Justice, oxford, 1972, p. 60.
ciência jurídica moderna. nisso consiste a “doutrina do direito” de a metafísica
dos costumes de KanT. com este texto, a meu ver, só se pode comparar a “Filosofia
do direito” de hegeL.
KanT começa introduzindo o que chama de “princípio geral do direito”
(princípio da liberdade): “É justa (ou é de direito) toda ação conforme a máxima
segundo a qual a liberdade de arbítrio de cada um pode ser compatível com a de
qualquer um, conforme uma lei geral.”4 e KanT enuncia em seguida a conseqüên-
cia disso: a ilegitimidade de tudo o que não seja a maior medida possível de iguais
liberdades básicas: “Se, portanto, uma ação minha, ou em geral um estado meu,
pode compatibilizar-se com a liberdade de qualquer um, conforme uma lei geral,
e alguém mos impede, então quem mos impede me está fazendo injustiça, pois
esse impedimento, essa resistência, não é compatível com a liberdade conforme
leis gerais.”
Sobre este princípio de legitimidade do sistema jurídico, sobre este “princí-
pio geral do direito”, KanT acrescenta duas coisas. a primeira é que a idéia de
“liberdade conforme leis gerais” é um postulado da razão prática, “que já não é sus-
ceptível de ulterior demonstração”.5 Tal postulado da razão não implica que se
exija de mim atuar por respeito a esse postulado, por respeito a esse dever. não.
esse postulado apenas diz que é esse o limite de minha liberdade, isto é, que esse
é o espaço legítimo de minha liberdade e que, portanto, uma legislação que redu-
za o exercício de minha liberdade subjetiva a esses limites não é ilegítima, mas
legítima, nada posso objetar contra ela, não tenho nenhuma razão (defensável) a
lhe opor, independentemente dos motivos que me possam mover. converter em
motivo de minha ação o respeito ao princípio geral do direito é algo que, talvez,
a moral me exija, mas não o direito. o direito não atinge isso, o direito não abar-
ca a moralidade, permanece na legalidade. ao que KanT chama “legalidade” é ao
que haBermaS chama “forma jurídica”.
a segunda coisa que diz KanT é que esse direito de liberdade é o único direi-
to inato que assiste ao homem, em virtude de sua humanidade, e, portanto, impli-
ca a igualdade de todos nesse direito de liberdade; a idéia de liberdade como único
direito inato do homem implica a noção do direito a iguais liberdades básicas:
4 KanT, immanuel. die metaphysik der Sitten. em: immanuel Kants Werke, ed. Wilhelm Weischedel, tomo
viii, Suhrkamp, Frankfurt, 1958, p. 337.
5 KanT, immanuel. die metaphysik der Sitten, cit., p. 338.
ser obrigado pelos outros a nada mais que aquilo a que mutuamente nos podemos
obrigar [...].”6
“Por direito subjetivo devemos compreender nada mais que o reconhecimento argu-
mentativo de uma esfera de liberdade; enquanto esfera de liberdade reconhecida na
praxis argumentativa, o direito subjetivo jamais está a pairar sobre nossas cabeças.
antes, tal noção depende da compreensão das situações de aplicação do direito como
situações jurídicas. diferentemente de JeLLineK, jamais podemos compreender direi-
tos subjetivos, quaisquer que sejam, como simples reconhecimento de uma ‘liberda-
de natural’. antes, o direito subjetivo representa um reconhecimento construído
argumentativamente numa praxis dependente da própria forma jurídica moderna
que não se fez independentemente de uma autonomia pública (e também outra pri-
vada) enquanto liberdades políticas reciprocamente referidas. Qualquer situação
jurídica, enquanto uma situação fática recortada na argumentação e interpretada à
luz do direito, não é algo, pois, que ‘está-aí’, mas antes, enquanto também algo argu-
mentativamente construído, dependente de problematizações e recortes sempre pas-
síveis de questionamentos no interior, ou não, de um determinado paradigma.”8
Sendo jurista, chamon tende, como digo, a ver o direito não tanto a partir
da perspectiva da geração de normas, mas sobretudo a partir da perspectiva de sua
aplicação. mas também por este lado, estou de acordo com ele, em que precisa-
mente a partir deste ponto de vista, “uma situação jurídica [...], enquanto também
algo argumentativamente construído, dependente de problematizações e recortes
sempre passíveis de questionamentos no interior, ou não, de um determinado
paradigma”. o que não quer dizer que, precisamente no que se refere ao discur-
so de aplciação, por exemplo no campo de aplicação do “sistema dos direitos”, isto
é, no da jurisprudência sobre direitos fundamentais, não necessitemos fazer um
ajuste, sistematicamente articulado, de como funciona essa prática. Parece-me que
exposições como a de h. FaLLon Jr.,9 claramente dependentes de dWorKin, se
8 chamon Junior. Lúcio antônio, Teoria geral do direito moderno, cit., p. 106 et seq.
9 FaLLon Jr., richard. constructivist coherence Theory of constitutional interpretation. in: harvard Law
review, vol. 100, n. 6, april 1987, p. 1189 et seq.
situam tão na linha de chamon sobre a idéia de situação jurídica, que chamon
poderia talvez aceitá-la. e assim fica completo nosso acordo.
mas esta não é exatamente a posição de haBermaS, como já disse. KanT (e
chamon o acompanha) parece dizer: a reivindicação básica de liberdade e igual-
dade implica a forma jurídica como único meio de gerar legitimidade, e inversa-
mente: a forma jurídica como único meio de gerar legitimidade só se mantém
sobre os princípios de liberdade e igualdade, que, por sua vez, só são soletráveis
mediante essa forma. e isso é uma fundamentação normativa da forma jurídica.
haBermaS, ao contrário, insiste em que a “forma jurídica” não pode ser objeto de
uma fundamentação normativa (não há nenhum postulado da razão do qual
brote), mas apenas objeto de uma justificação funcional. contudo, parece-me que
isso tem conseqüências muito importantes. haBermaS acredita poder introduzir a
perspectiva normativa da “maior medida possível de iguais liberdades básicas” a
partir de um conceito de razão comunicativa oposto ao de razão subjetiva. mas
creio que não o consegue. É o que vou passar a examinar.
10 marShaLL, T. h., “citizenship and social class”. em: class, citizenship and Social development, chicago
university Press, chicago, 1977.
“forma jurídica” e o “princípio do discurso”) com os quais haBermaS opera sua
Filosofia do direito.
“KanT, como dissemos, já havia caracterizado a legalidade ou forma jurídica das nor-
mas de ação mediante três abstrações que fazem referência ao destinatário do
direito, não a quem o estabelece. Primeiro, o direito se abstrai da capacidade dos
destinatários de ligar sua vontade por iniciativa própria e só conta com sua liberda-
de de arbítrio. Segundo, o direito se abstrai da complexidade que, no mundo da vida,
têm os planos de ação afetados pela regulamentação jurídica, e se restringe apenas à
relação externa das intervenções e operações interativas que atores definidos em ter-
mos sociais típicos podem exercer uns sobre outros. Terceiro, o direito se abstrai do
tipo de motivação e se contenta com que se produza o efeito de uma conformidade
com as normas, sejam quais forem as razões pelas quais se produz.”11
“as normas jurídicas regulam relações interpessoais e conflitos entre atores que se
reconhecem como membros de uma comunidade abstrata, isto é, de uma comunida-
de que começa sendo gerada por normas jurídicas. Também elas (do mesmo modo
que as normas morais) estão dirigidas a particulares, mas esses particulares a quem as
normas jurídicas se dirigem são sujeitos que (diferentemente do que ocorre no caso
das normas morais) já não se distinguem por sua identidade pessoal desenvolvida em
termos biográficos, mas ficam individualizados por sua capacidade de ocupar a posi-
ção de membros (definidos em termos sociais típicos) de uma comunidade juridica-
mente constituída. a partir da perspectiva dos destinatários, prescinde-se, portanto,
numa relação jurídica, da capacidade de uma pessoa de ligar sua vontade por convic-
ções normativas; apenas se lhe atribui a capacidade de tomar decisões racionais con-
forme os fins, isto é, só se lhe atribui liberdade de arbítrio. desta redução da vonta-
de livre (Wille) de uma pessoa capaz de responder moralmente (e eticamente) por
“o direito positivo com o qual nos encontramos na época moderna, como resultado
de uma aprendizagem social, oferta-se a si mesmo, em virtude de suas propriedades
formais, como meio adequado para a estabilização de expectativas de comportamen-
to; para isso não parece existir nas sociedades complexas nenhum equivalente fun-
cional. a Filosofia se propõe a uma tarefa desnecessária quando trata de demonstrar
que o direito não é somente iniludível por razões funcionais, mas também por razões
morais é obrigatório organizar nossa convivência em termos jurídicos, isto é, formar
comunidades jurídicas.”14
14 haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, segunda edição, Frankfurt, 1994, p. 677.
como livres, e atendendo à condição de a ação de um deles ser conciliável com a
liberdade do outro, conforme leis gerais”.
e precisamente com tal relação que a forma jurídica possibilita (e que não
poderia possibilitar-se de nenhum outro modo senão com normas de forma jurí-
dica) é que o “princípio geral do direito” tem a ver. esse princípio é para KanT,
como se viu, um “imperativo categórico da razão”. e se o “princípio do direito”
representa tal “imperativo categórico da razão” (referente à relação externa dos
arbítrios enquanto livres), resulta que a forma jurídica que essencialmente o vei-
cula forma também parte desse imperativo da razão. dito de outro modo: se o
princípio “é de direito toda ação conforme a máxima segundo a qual minha liber-
dade é compatível com a de qualquer outro, conforme uma lei geral” é um impe-
rativo da razão, e no direito só se trata disso, de compatibilizar arbítrios median-
te leis gerais, então a forma jurídica das leis mediante as quais se opera tal compa-
tibilização (e não haveria outra forma de fazê-lo) forma parte desse imperativo.
a forma jurídica é, portanto, para KanT (e para chamon) ingrediente de uma
justificação normativa e objeto direto de uma fundamentação normativa. em
outros termos: a forma jurídica é parte da justificação da legitimidade dos supos-
tos ético-políticos mais básicos da idade moderna, que não seriam concebíveis
senão no meio geral da forma jurídica. Pois uma norma cuja legitimidade se meça
apenas pela generalidade com que compatibiliza arbítrios, isto é, por assegurar a
todos por igual a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação, isto é,
mediante a qual o arbítrio enquanto livre seja tratado como um fim em si, só pode
ser (repitamos) uma norma de direito positivo, não uma norma ética (no sentido
de uma norma integrante de um ethos), nem uma norma moral.
através do exposto, parece-me que fica conceitualmente claro o que quer dizer
haBermaS quando afirma que a explicação da forma jurídica é só ingrediente de uma
explicação funcional. isso, digo agora com outras palavras do próprio haBermaS, sig-
nifica historicamente, ou sociologicamente, o seguinte: o desencadeamento moder-
no da liberdade subjetiva (o pensar cada um o que quer e o viver cada um como
quer), o desmoronar das eticidades tradicionais (isto é, as reduções do ethos tradi-
cional global a pura convenção), a correspondente sublimação da moral em uma
moral puramente abstrata e racional (que para haBermaS só dá provisão para juízos
corretos, mas não assegura a adequada motivação – haBermaS está pensando sobre-
tudo na moral formal kantiana),15 e as necessidades de organização de gigantescos
repito: tudo isso equivale a dizer que, na reconstrução normativa feita por
haBermaS do conceito de direito, desaparece por completo a liberdade subjetiva
como fonte de normatividade; a liberdade subjetiva fica exclusivamente converti-
da no elemento fático que é preciso regular. desaparece, portanto, a idéia de KanT
de que a liberdade, que é uma, segundo seu próprio conceito ou idéia, aparece
limitando-se a si própria.
e assim haBermaS pode dizer (comentando KanT no segundo capítulo de
Facticidad y validez) que, quando olhadas do ponto de vista de sua funcionalida-
de, as normas jurídicas são apenas normas coercitivas; mas que essas mesmas leis,
para serem consideradas legítimas, têm de poder ser consideradas também como
“leis da liberdade”, no sentido de que seus autores fiquem também efetivamente
sujeitos a elas; mas de tal maneira que esta segunda condição seria um problema
diverso do de sua coercitividade. Liberdade (ou seja, a liberdade dessas “leis da
liberdade”) já não pode significar aqui “liberdade subjetiva”, mas apenas “liberda-
de comunicativa”, isto é, autonomia cidadã. a liberdade subjetiva é o elemento a
“normar”, não o elemento “normante” (nem tão pouco é parte dele).
Para ver o que haBermaS entende por “liberdade comunicativa”, por liberda-
de dessas “leis da liberdade”, vou passar a considerar o segundo elemento da cons-
trução ou reconstrução que ele faz do conceito de direito moderno, isto é, o “prin-
cípio do discurso”, o elemento que é fonte de normatividade.
“ainda neutro frente à moral e ao direito; refere-se a normas de ação em geral [...] o
princípio de discurso só explica o ponto de vista, sob o qual as normas de ação em
geral podem imparcialmente fundamentar-se, e para dizer isto parto de que o pró-
prio princípio se funda nas relações simétricas de reconhecimento que caracterizam
a estruturação comunicativa das formas de vida.”16
uma das perplexidades que essa dedução suscita é que, no trânsito do abstra-
to ao concreto, no que diz respeito aos direitos da segunda categoria, ocorre que,
tal como está redigida esta passagem, tem-se de dar por certa a constituição da
comunidade política autônoma, antes de se introduzirem os direitos de pertenci-
mento que a circunscrevem. recorrendo à linguagem da declaração de 1789,
antes que o povo francês, através de seus representantes constituídos em
assembléia nacional, possa definir de forma politicamente autônoma direitos de
pertencimento à comunidade político-jurídica, esse povo é o que é e esses repre-
sentantes são o que são porque o poder do rei os reuniu. ao definir a relação entre
os direitos da segunda categoria e os direitos da quarta como uma passagem do
abstrato ao concreto, haBermaS está abstraindo da questão bem concreta da rela-
ção entre poder político e direito no próprio momento em que se funda, no pró-
prio momento da projeção de um “sistema de direitos”. haBermaS só consegue ver
o poder comunicativo gerado no exercício dos direitos da quarta categoria. não só
carL SchmiTT mas também KanT, em sua “Filosofia do direito”, viram outro gêne-
ro de poder relacionado com os direitos da segunda categoria. a contingência ori-
ginal da comunidade política, isto é, as relações de poder que estão na base da pri-
meira reunião dos membros que estão autoconstituindo-se em comunidade jurí-
dico-política, convertem-se, para a comunidade política, em um destino que tal-
vez não seja exatamente absorvível em termos de comunicação. na origem dos
estados, como bem sublinha KanT, não há poder comunicativo, mas poder talvez
não passível de resultar em comunicação. esta é uma questão que está na base do
árduo problema político dos nacionalismos. mas não posso entrar aqui nessa
importante questão.
ii.c.4. a maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação
“o meio que representa o direito, considerado como tal, pressupõe direitos que
definem status de sujeitos de direito como portadores de direitos. estes direitos
estão recortados na medida da liberdade de arbítrio de atores tipificados e conside-
rados cada um em separado, isto é, na medida de liberdades subjetivas de ação, que
se outorgam em termos condicionais. o primeiro aspecto, ou seja, o de que o arbí-
trio (regido por interesses) de sujeitos que atuam na atitude de orientar-se para
conseguir seu próprio êxito, o de que tal arbítrio, digo, fique desligado, solto, ou
desvinculado dos contextos da ação orientada pelo entendimento, que são os con-
textos criadores de obrigações, é só o reverso do segundo aspecto, a saber: o da
coordenação da ação através de normas coercitivas que limitam os espaços de
opção a partir de fora. isso explica a posição fundamental que ocupam os direitos
que asseguram (ao mesmo tempo que fazem compatíveis entre si) liberdades sub-
jetivas individualmente imputáveis. essas liberdades garantem uma autonomia pri-
vada que se pode também descrever como uma liberação relativa às obrigações da
liberdade comunicativa.”21
“as normas de ação que aparecem em forma de direito autorizam os atores a tornar
efetivas suas liberdades subjetivas de ação. a questão de quais dessas leis são legíti-
mas não pode ser respondida atendendo-se apenas à forma de direitos subjetivos. Só
com ajuda do princípio de discurso (levando-se em conta as condições de reciproci-
dade que implica), mostra-se que qualquer um tem direito à maior medida possível
de iguais liberdades subjetivas de ação. São legítimas apenas aquelas regulamentações
que satisfaçam a esta condição da compatibilidade dos direitos de cada um com iguais
direitos de todos. o princípio do direito de KanT coincide com este direito geral a
iguais liberdades, pois a única coisa que chega a dizer é que se deve estabelecer um
código jurídico em forma de direitos subjetivos legitimamente distribuídos, que
garantam a proteção da autonomia privada dos sujeitos jurídicos.”22
“É de direito toda ação conforme a máxima segundo a qual meu arbítrio seja compa-
tível com o de qualquer um, conforme uma lei geral [...] Portanto, faz-me injustiça
quem me impede de uma ação conforme a máxima segundo a qual meu arbítrio possa
conciliar-se com o de qualquer um, conforme uma lei geral.”
isso é uma exigência normativa genuína, que nem estritamente coincide com
a exigência de genuína generalidade, à qual tem de ficar submetida a produção da
lei geral que se postula, nem com exigências de funcionalidade.
mas, diferentemente do que ocorre em KanT, em haBermaS essa exigência
(a “da maior medida possível de liberdades subjetivas de ação”) não é, nem pode
ser, uma exigência de princípio. Portanto, quando haBermaS fala de “direitos fun-
damentais” que “resultam da configuração politicamente autônoma do direito ao
maior grau ou medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação”, não se sabe
bem de quê está falando. Pois em haBermaS esses direitos fundamentais se acom-
panham certamente da configuração politicamente autônoma do factum (não
ultrapassável para a consideração normativa) do desencadeamento moderno das
liberdades subjetivas, mas não da elaboração democrática de um “direito à maior
medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação.” Tal direito, que, sem
mais mediações nem explicações, haBermaS toma de KanT (através de raWLS), é
um corpo estranho em sua Teoria do direito. e como é claro que a dedução desse
direito (isto é, de um genuíno direito à maior medida possível de iguais liberdades
subjetivas de ação) representa um desideratum desta teoria, proposta em termos
de razão comunicativa, resulta que o conceito de direito subjetivo básico repre-
senta o limite do conceito de razão comunicativa de haBermaS. É esta a conclu-
são a que eu queria chegar nesta seção do meu estudo. e nisso chamon não acom-
panha haBermaS. Parece-me que, para chamon, a exigência da maior medida pos-
sível de iguais liberdades básicas é uma exigência normativa genuína.
ora, existe a tentação de se dar um passo mais, o que fiz em outra ocasião. esse
passo consistiria em acrescentar mais ou menos o seguinte (isso dizia eu mesmo em
uma exposição, há alguns anos): “não há dúvida de que, mediante seu conceito de
razão comunicativa, haBermaS consegue uma aceitável articulação do conceito
normativo de cidadania, mas não consegue dar razão de todo o princípio geral do
direito de KanT. Portanto, se assim é, o conceito de direito subjetivo representa
também o limite do próprio conceito de cidadania. e esse não é um limite qualquer;
é no conceito moderno de liberdade subjetiva que fracassam o conceito de razão
comunicativa e a exclusividade normativa que, em teoria política, haBermaS quer
dar ao conceito de cidadania (não é, pois, necessário apressar-se demais na hora de
transitar do paradigma da razão subjetiva para o paradigma da razão comunicativa,
como exige haBermaS). e hoje, certamente, não são escassas as propostas de um ou
outro tipo que queiram operar exclusivamente com esse conceito. a todas, talvez,
se poderia fazer basicamente a mesma crítica.” creio que chamon não estaria com-
pletamente de acordo com o que acabo de dizer. e a verdade é que eu tão pouco
estou completamente de acordo com essa minha posição de alguns anos atrás.
chamon, acompanhando KanT, vê por demais radicalmente articulados os direitos
subjetivos, em termos de razão comunicativa, em termos de situação argumentati-
va jurídica, para admitir essa contraposição entre razão subjetiva e razão comuni-
cativa. e hoje me parece que o que não se torna aceitável nessas propostas de
haBermaS não é que ele não dê (que não consiga dar conceitualmente) um genuí-
no sentido normativo à exigência da maior medida possível de iguais liberdades
subjetivas, em que pese ser isso um desideratum de sua teoria, mas o que não se
torna aceitável é a contraposição por ele estabelecida entre razão subjetiva e razão
comunicativa, ou melhor, entre liberdade subjetiva e liberdade comunicativa. vejo
que também chamon reluta em admitir tal contraposição. Seus trabalhos me con-
firmaram o que também eu há tempos pesquisava.
Parece-me que já hegeL, na última parte do capítulo vi da Fenomenología
del espíritu (que acabo de traduzir),23 dá uma forma conceitual precisa a essa
23 hegeL, georg Wilhelm Friedrich, Fenomenología del espíritu, Pré-textos, valencia, 2006, p. 734 ss.
questão. Tal como hegeL vê as coisas, a razão subjetiva moderna, precisamente,
quando descobre ser absoluta (como não tendo outro limite que não seja a igual
liberdade de todos os demais), só pode recorrer à mediação lingüística para fazer-
se viável. a razão comunicativa não é outra senão a razão subjetiva, ao se consi-
derar, a si própria, como absoluta. É o que vou passar a ver, não para discuti-lo em
termos de hegeL, mas recorrendo a posições de haBermaS.
no final do trabalho que venho citando, chamon aborda essa mesma questão
em um contexto diverso, o de uma discussão em torno de questões e conceitos de
direito Processual. diz o seguinte:
“o que vale ressaltar é que todas as interpretações e propostas aqui oferecidas somen-
te podem ser compreendidas e assumidas quando se compreende a praxis do direito
constitucional enquanto garantidora e instituidora das condições de produção de legi-
timidade na modernidade. afinal, somente mediante uma interpretação discursiva dos
direitos fundamentais, isto é, do próprio direito, é que podemos livrá-lo de dificulda-
des interpretativas que muitas vezes o rondam como fruto de uma confusão entre
direito e moral, bem como entre direito e o mundo objetivo e subjetivo. e todas estas
questões somente serão superadas quando encaradas diante do pano-de-fundo subja-
cente de maneira adequada e levando adiante o próprio projeto da modernidade. É
assim que podemos compartilhar com dWorKin e afirmar que o direito se auto-puri-
fica, que o direito, enquanto esforço interpretativo, tem uma ambição para si mesmo,
qual seja a busca incessante de um direito além do direito, enquanto praxis crítico-
hermenêutica do alcance da correta interpretação, partindo da melhor teoria política
acerca do direito moderno, em cada caso, e perante a força gravitacional que os prece-
dentes realizam. Tal é a nossa tarefa, sempre em crise, de interpretar o direito nesses
novos tempos de uma alta modernidade, de uma modernidade que se enxerga como
contingente e plural, humana e, por isto mesmo, precária.”24
24 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno, cit., p. 192.
em páginas anteriores, chamon indica que tipo de interpretação exclui, e o
faz a propósito de um ponto particularmente sensível: discutindo o conceito jurí-
dico de personalidade e separando-o por completo da personalidade moral:
após tomar nota desses avisos de chamon, que colocam mais ainda em relevo
o problema de haBermaS, volto a haBermaS. depois de Facticidad y validez,
haBermaS retornou aos problemas da “gênese lógica” do “sistema de direitos”, prin-
cipalmente em duas ocasiões. a primeira vez, em um artigo de 1994, intitulado
“Sobre a conexão interna de estado de direito e democracia”.27 Parece-me que esse
25 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno, cit., p. 187.
26 chamon Junior, Lúcio antônio, Teoria geral do direito moderno, cit., p. 190.
27 haBermaS, Jürgen. die einbesiehung des anderen, Frankfurt, 1996, p. 293 ss.
artigo nada acrescenta ao que ficou dito em Facticidad y validez, mas nele a exposi-
ção, por ser concisa, torna-se ainda mais problemática. a segunda vez, em um arti-
go intitulado “o estado democrático de direito: uma conexão paradoxal de princí-
pios contraditórios?”,28 de fins dos anos 90, a que me vou referir, em seguida.
haBermaS também se nega a subordinar o direito à moral29 e, no momento
de fazer frente aos problemas de uma Teoria discursiva do direito, renuncia a
recorrer “à enfraquecida objetividade de supostas intuições morais últimas”.30 o
que busca é o que chamon também postula, uma Teoria discursiva dos direitos
fundamentais. mas neste artigo a linguagem mudou, em relação a Facticidad y
validez. haBermaS começa falando de dois princípios co-originais:
diante disso, a primeira coisa que nos ocorre pensar é que talvez o cidadão
ateniense dos séculos v e iv cumprisse com bastante aproximação o que
haBermaS aqui indica. entretanto, esse cidadão sabia muito pouco de direitos fun-
damentais. isto é, a articulação normativa da existência ateniense cumpria o prin-
cípio da autonomia pública, mas não o da autonomia privada (“liberdade sem
direitos do homem”, FichTe assim definia atenas e roma). Portanto, necessitamos
de ulteriores precisões para definir a “autonomia dos modernos” frente à “autono-
mia dos antigos” (no início do artigo haBermaS faz referência ao título do famo-
so discurso de BenJamin conSTanT).
a existência moderna tem de caracterizar-se então por uma peculiar confi-
guração do princípio de autonomia cidadã, se é que ambos os princípios têm de vir
juntos. o princípio de autonomia pública tem de implicar (materialmente) uma
“os republicanos kantianos radicalizam um tema básico, a saber: a idéia de que os direi-
tos do homem são imanentes ao processo de uma formação racional da vontade políti-
ca: os direitos fundamentais são respostas a exigências de uma comunicação entre
estranhos, que fundamenta a presunção de que os resultados sejam racionalmente acei-
táveis. a constituição obtém assim, por meio disso [por meio das cinco categorias de
direitos fundamentais], o sentido procedimental de estabelecer formas de comunica-
ção que, quando há necessidade de introduzir regulamentações e necessidade de abor-
dar questões específicas, provêm um uso público da razão e um eqüitativo equilíbrio
de interesses. e porque este conjunto de condições de possibilitação tem de ser realiza-
do pelo meio do direito, essas condições de possibilitação se estendem por igual tanto
aos direitos liberais de liberdade como aos direitos de participação política.”32
com isso, voltamos a estar quase no mesmo lugar em que ficamos ao falar da
gênese lógica do sistema de direitos, em Facticidad y validez. Pois no ato de fun-
dação de uma constituição democrático-liberal (de uma constituição moderna),
“os participantes têm clareza de que, posto seu propósito de querer realizá-lo no
meio do direito, têm de gerar uma ordem de status jurídicos, que prevê para cada
membro da associação o posto de portador de direitos subjetivos. Tal ordem, indivi-
dualisticamente configurada, de direito positivo e coercitivo, só pode fazê-lo se se
introduzem simultaneamente três categorias de direitos. e levando em conta o requi-
sito de legitimidade que representa a susceptibilidade de um assentimento geral,
trata-se dos seguintes direitos”.
“estas três categorias de direitos são necessárias para a fundação de uma comunida-
de jurídica delimitada no espaço social, cujos membros mutuamente se reconheçam
como portadores de direitos subjetivos, os quais, caso necessário, possam fazer-se
valer judicialmente.”
Para explicar como vejo essa necessária Teoria discursiva dos direitos funda-
mentais, de cuja necessidade haBermaS convenceu tanto a chamon quanto a
mim, mas na qual nem chamon nem eu estamos de acordo com a resolução dada
por haBermaS à relação entre direitos fundamentais e princípio democrático, para
explicar, digo, como vejo essa teoria, darei vários passos, que se dirigem todos a
algo muito simples. dirigem-se a mostrar algo de que, acredito, também chamon
está convencido, a saber: de que a forma jurídica (o direito positivo), como prin-
cipal meio de integração normativa das sociedades modernas, pode ser objeto de
uma justificação normativa e muitas vezes terá de ser objeto de uma fundamenta-
ção normativa explícita (sempre que determinado ethos queira subrepor-se ao
direito positivo legitimamente gerado). como já citei, segundo chamon:
“e aqui está o paradoxo do direito: o fato de que sua legitimidade depende de sua
forma, de uma forma jurídica que, na modernidade, se construiu normativa e socio-
logicamente alicerçada nos princípios de igualdade e liberdade, num processo de
diferenciação funcional.”33
vou dizer, de acordo com chamon: a forma jurídica, à parte de ser funcio-
nalmente inevitável, faz-se também normativamente inevitável, ao alicerçar-se
em princípios que, já não podendo operar depois, mas pelo meio que é essa forma,
têm de se dar a forma de princípio democrático. definitivamente, o que quero
mostrar é a implicação material entre direitos fundamentais e princípio democrá-
tico, mas em sentido inverso ao de haBermaS. haBermaS diz: o princípio do dis-
curso, não podendo engendrar modernamente legitimidade senão por meio da
forma jurídica, implica materialmente direitos fundamentais (também os das três
primeiras categorias). eu direi: os direitos fundamentais, que fundamentam a ine-
vitabilidade normativa da forma jurídica, não podem concretizar-se a não ser
mediante o princípio do discurso, e precisamente como direitos, isto é, por meio
da forma jurídica. Para haBermaS, os direitos políticos implicam os direitos das
três primeiras categorias. no que vou dizer, esta implicação é vista em sentido
inverso, a saber: os direitos das três primeiras categorias que fundamentam a
forma jurídica implicam os direitos políticos (e naturalmente, os “direitos sociais
e ecológicos”).
33 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno, cit., p. 106.
34 hegeL, g. W. F., Sobre las maneras de tratar científicamente el derecho natural, Tradução dalmacio negro,
aguilar, madrid, 1979, p. 52 ss.
mas se ser livre é atuar como se poderia também não ter atuado, resulta que
ser livre é também relacionar-se com o não da possibilidade não escolhida. Pois
ao longo da série de escolhas livres, foram deixadas para trás muitas coisas pelas
quais se podia optar e não se optou. em nossa vida, somos também (às vezes por
sorte, às vezes por infelicidade) o não de tudo aquilo que, podendo ter escolhi-
do, decidimos afinal não escolher. esse não às vezes nos alegra, às vezes nos
angustia como uma pesada carga: nossa vida se converte e inclusive se reduz a uma
obsessão pelo não de tudo o que deixamos escapar; nossa vida se caracterizou tal-
vez por um mau aproveitamento das ocasiões que se ofereceram a nós. ou nossa
vida é talvez a bênção de ter escolhido quase sempre o que foi melhor escolher.
mas a conclusão de hegeL é a seguinte: se ser livre tem a ver tanto com o
não da possibilidade escolhida como com o não da possibilidade não escolhida,
resulta que ser livre tem a ver com o não de toda possibilidade. mas o não de
toda possibilidade é a morte. Portanto, livre só pode ser essa categoria de seres que
somos nós, que estamos essencialmente referidos a nossa própria finitude. Se aten-
tarmos bem, é convincente a idéia de hegeL de que livre só pode ser quem está
radicalmente referido, desde o princípio, à possibilidade de também-não-ser:
poder-também-não-ser, um não absoluto, do qual dependem os nãos relativos
em que a liberdade consiste ou que a liberdade implica.
35 cf. FaLLon Junior, richard. constructivist coherence Theory of constitutional interpretation, cit., p. 1189 ss.
se em “liberdade sob leis gerais”, quer dizer, para se dar uma articulação depen-
dente de uma formação racional da vontade ou das vontades coletivas, que a con-
verta em legítima.
um Primeiro enigma:
o Que a modernidade eXige do direiTo?
1 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito. Trad. João Baptista machado. São Paulo: martins Fontes, 1997, p. 259.
2 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 259.
mas gerais produzidas legislativa ou consuetudinariamente, enquanto uma norma
geral seria, em princípio, a fonte de uma decisão jurisdicional que a aplica na cria-
ção de normas individuais. e, desenvolvendo seu raciocínio, o autor ainda esclare-
ce que mesmo a decisão jurisdicional pode ser tomada, pois, como fonte dos deve-
res e direitos dos afetados por aquela decisão, ou ainda como fonte da competên-
cia de um determinado órgão ao qual é ordenada a execução de uma certa sanção.3
KeLSen, no aprofundamento funcional de sua teoria, radicaliza as conseqüên-
cias nefastas que uma compreensão positivista, apesar de mais sofisticada do que
as propostas clássicas do positivismo, traz para a interpretação e a prática do
direito. reduzindo a compreensão das fontes a uma mera questão formal de cons-
tatação da competência dada a uma autoridade para realizar um determinado ato
de vontade que, para tanto, passaria a ser interpretado como juridicamente válido
– exatamente em razão da “fonte” significada pela norma hierarquicamente supe-
rior a atribuir tal competência –, KeLSen não somente acaba por reduzir validade
à mera faticidade, como ainda, e como era de se esperar, falha em sua pretensão
teórica em distinguir “ser” e “dever-ser”.4 afinal, não compreende muito bem o
autor a tensão entre idealidade e realidade. mas a todas essas questões concernen-
tes aos posicionamentos de KeLSen voltaremos sempre nas páginas seguintes.
uma outra compreensão neo-positivista do direito menos radical que a de
KeLSen, nem por isso menos inconsistente, é aquela apresenta por norBerTo
BoBBio. reconhecendo que o direito seria um “sistema complexo” do ponto de
vista da multiplicidade de suas fontes – e não somente com referência a uma única
e exclusiva fonte –, o autor procura entender a questão das fontes como referidas
àqueles fatos ou atos
“Son las formas obligadas y predeterminadas que inevitablemente deben tomar los
preceptos de conducta exterior para imponerse socialmente con el aspecto del poder
coercitivo del derecho. dicho de otra manera, una regla de conducta cualquiera no
se eleva a la dignidad de regla de derecho, dotada de la plenitud de sus efectos, es
decir, de regla de derecho positivo, según la expressión consagrada, sino cuando
puede ostentar un origen que se identifica con tal o cual fuente jurídica formal.”11
(negritos nossos)
cionáveis e realizáveis. Sua teoria aparece como uma complementação ao convencionalismo exacerba-
do da escola da exegese, sobretudo quando tal complementação é encarada sob a pretensão pragma-
tista e instrumentalizadora que uma tal idéia de “fontes reais” introjeta na interpretação e aplicação do
direito.
10 BonnecaSe, Julien. introducción al estudio del derecho, cit., p. 81.
11 BonnecaSe, Julien. introducción al estudio del derecho, cit., p. 81.
12 BonnecaSe, Julien. introducción al estudio del derecho, cit., p. 82 et seq.
13 BonnecaSe, Julien. introducción al estudio del derecho, cit., p. 94 et seq.
14 BonnecaSe, Julien. introducción al estudio del derecho, cit., p. 127 et seq.
ca da legitimidade do direito? de que maneira podemos superar o convenciona-
lismo e o pragmatismo subjacentes à proposição e interpretação dos artigos 4º e 5º
da famosa Lei de introdução ao código civil, de 1942, e segundo os quais, respec-
tivamente: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a ana-
logia, os costumes e os princípios gerais do direito” e “na aplicação da lei, o juiz
atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências de bem comum”?
Podemos perceber, levando em conta a intuição de aLeSSandro
PizzoruSSo,15 que a assunção realmente compromissada de uma prática constitu-
cional, e de seus respectivos mecanismos de controle de constitucionalidade, nos
força a realizar um giro na compreensão do que possa ser interpretado como
“fonte de normatividade” no direito da modernidade.
mas de que maneira uma tal prática constitucional deve ser assumida? Quais
os impactos que uma tal assunção compromissada do constitucionalismo moder-
no gera sobre a compreensão das fontes de normatividade? de que maneira pode-
mos reconstruir o sentido normativo da legislação e da jurisdição de forma a supe-
rar falsos-problemas como o das lacunas no direito e o de sua correlata defesa de
uma discricionaridade jurisdicional?
afinal de contas, quais os pressupostos normativos que a modernidade força
o direito a cumprir na construção e reconhecimento de sua própria legitimidade?
veremos que somente uma adequada Teoria da argumentação Jurídica,
orientada à realização e à efetivação dos princípios do estado democrático de
direito, bem como dos direitos fundamentais, e justificada a uma melhor luz na
reconstrução de traços distintivos do discurso jurídico da modernidade, é capaz de
fornecer elementos sustentáveis na superação dos percalços que uma tradicional
Teoria das Fontes coloca à praxis jurídica.
o que com isto afirmamos, é que não se pode adequadamente considerar o
que seja “fonte de normatividade” do direito sem a pressuposição de uma Teoria
da argumentação Jurídica, e vice-versa. Somente assim é que, em sentido bem
diverso de KeLSen, poderemos demonstrar que somente o direito pode ser fonte
de sua própria legitimidade.
15 PizzoruSSo, alessandro. La problematica delle fonti del diritto all’inizio del XXi secolo. manuscritos, 2006.
caPíTuLo 1
acerca daS LacunaS no direiTo e de
uma Teoria Que devora a Si meSma
“La théorie des lacunes de la loi apparaît ainsi comme une théorie qui se
dévore elle-même.” com esta frase, charLeS huBerLanT termina seu capítulo em
contribuição à obra coletiva intitulada Le problème des lacunes en droit, organi-
zada por chaïm PereLman, capítulo esse referido aos supostos mecanismos insti-
tuídos – convencionalmente, diga-se de passagem – para que se possa colmatar as
“lacunas da lei”.1
ao estudioso do direito, e aos interessados em geral, essa frase de huBerLanT
não pode passar desapercebida, sobretudo a partir do momento em que se nota
que o que se encontra em jogo na solução dessas “lacunas” não podem ser simples
“métodos hermenêuticos” capazes de pretensamente superar as dificuldades que
uma leitura convencionalista do direito coloca à própria prática jurídica.
o que está em questão, e a maneira adequada de entender como uma preten-
dida Teoria das Lacunas no direito necessariamente devora a si mesma, pressupõe
uma melhor compreensão acerca do direito, enfim, daquilo que podemos assumir
como referido, na modernidade, à praxis do sistema jurídico-normativo.
Significa dizer que o que deve ser revolvido reflexivamente são os assenta-
dos pressupostos a serem assumidos criticamente na compreensão e operaciona-
lização do direito da modernidade, em prol de uma prática social normativa
capaz de levar a sério dimensões do agir determinantes de sua racionalidade e
legitimidade, pois. esforço este que, todavia, embora huBerLanT, e a grande tra-
dição do pensamento teórico e teorético do direito, nos chame a atenção, não
consegue lograr bem.
a tradição, desde há muito tempo, nos dá mostras de já ter percebido que o
que se encontra por detrás dos problemas das chamadas “lacunas do direito” é uma
1 humBerLanT, charles. Les mécanismes institués pour combler les lacunes de la loi. in: PereLman, chaïm
(org.). Le problème des lacunes en droit. Bruxelles: Émile Bruylant, 1968, p. 66.
adequada compreensão e prática do direito moderno e de seu constitucionalismo,
da função jurisdicional e, por conseguinte, da separação dos poderes, bem como
questões concernentes à democracia e à legitimidade, pois, do próprio direito.
na verdade, o que está em jogo é a superação de uma leitura convenciona-
lista do direito no reconhecimento de seu caráter principiológico e argumen-
tativamente aberto, bem como a assunção do sentido atrelado ao constituciona-
lismo moderno de igual reconhecimento de liberdades, na maior medida possí-
vel, a todos os concidadãos, enfim, a assunção normativa da construção de uma
Sociedade de homens livres e iguais. igualmente está em questão a superação
do reconhecimento expresso, ou velado, de uma discricionariedade jurisdicio-
nal mediante uma escorreita compreensão do que as funções legislativas e juris-
dicionais nos cobram em face da modernidade do estado democrático de
direito. Por fim, tudo isso acaba por desaguar no desafio que se nos faz presen-
te de compreender e realizar a praxis jurídica em busca de sua legitimidade, por
sua vez intrinsecamente agarrada à idéia de democracia. É disso, afinal, e par-
tindo de dificuldades que a Teoria do direito não vem conseguindo se livrar,
que este livro trata. Se, ao final destas páginas, tivermos por convencido que
uma Teoria das Lacunas, bem como uma tradicional e convencionalista Teoria
das Fontes, que àquela se faz de pressuposto, devoram a si mesmas, teremos
alcançado nosso objetivo.
nesse sentido é que um autor clássico e essencial no debate acerca das lacu-
nas, quem seja, ernST ziTeLmann, fora bastante lúcido ao afirmar que se colocam
juntamente com o problema das lacunas questões extremamente íntimas ao pró-
prio direito, como a relação deste e sua aplicação jurisdicional, a relação entre
legislação e direito, entre coação e liberdade, bem como, à época, a relação entre
direito positivo e direito natural.2
o interessante de se perceber é que mesmo autores ligados a uma leitura
extremamente funcionalizada e positivista da prática jurídica estão, quase sempre,
convencidos de que as questões tangentes a uma Teoria das Lacunas encontra-se
diretamente conectada ao cerne do que se pode adequadamente compreender por
direito, uma vez que sistema normativo. carLoS coSSio nos demonstra isto, afir-
mando que o que se coloca em xeque, na verdade, com a questão referente às lacu-
nas do direito, é uma determinada noção de “ordenamento jurídico”.3
ziTeLmann, em seu clássico texto sobre a matéria, Lücken im recht, chama
nossa atenção para o fato de que o tema das lacunas jurídicas nem sempre era
enfrentado adequadamente por seus contemporâneos, ficando no esquecimento
2 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho. Trad. carlos g. Posada. in: aavv. La ciencia del derecho.
Buenos aires: Losada, 1949, p. 290.
3 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico. 2. ed. Buenos aires: Losada, 1947, p. 18.
por quase todos ignorarem esta temática.4 arrisca ainda o autor a afirmar que tal-
vez o primeiro a colocar, e a superficialmente enfrentar, a questão das lacunas
teria sido Brinz, a quem não se seguiram grandes esforços de aprofundamento na
matéria.5
indispensável é reconhecermos que, após este texto de ziTeLmann, a questão
das lacunas no direito foram fortemente inflamadas no debate jurídico interna-
cional, mas, desde um autor como KeLSen, pouco se tem proposto na superação de
uma certa estagnação que esta matéria acabou vivenciando por ter se cristalizado
de uma maneira aproblematizada no seio da própria Teoria do direito.
a questão das lacunas no direito são colocadas por coSSio da seguinte forma:
haveria lacunas no direito positivo? e o próprio autor adianta-se na explicação de
que o que está em foco é se haveria “casos judiciais” que não seriam, nem estariam,
compreendidos em, ou mesmo “subsumidos” a, quaisquer “gêneros normativos de
um sistema legal”.6 ou seja, a questão é referida ao fato de o direito conter clarões
ou lacunas, enfim, espaços “neutros” ou “sem juridicidade”, como espaços situados
à margem ou mais além das possibilidades jurídicas do próprio direito.7
É o próprio coSSio quem, buscando enfrentar esse problema, nos vai expor
que, definitivamente, houve quem afirmasse a existência de lacunas no direito e
que, para tanto, na justificativa dessa assertiva, teria invocado como argumento “as
limitações naturais da natureza humana e a riqueza criadora da vida”8 que, dessa
forma, fugiriam da alçada do Legislativo por mais esforçado que fosse seu empe-
nho por sempre surgir na vida cotidiana casos antes jamais previstos. a essa cor-
rente, coSSio atribui a alcunha de realismo ingênuo. isso porque, para os defenso-
res de tal posição, a cada a) situação não prevista pelo Legislativo, bem como a
cada b) radicalmente nova situação da vida,9 teríamos a constatação de uma falha
no direito.
Para coSSio, um autor que poderia ser incluído nesse realismo ingênuo é
guSTav radBruch. Sem maiores aprofundamentos acerca de sua particular pers-
pectiva sobre o tema, faz-se a nós denunciante de seu posicionamento o seguinte
trecho ao final de seu rechtsphilosophie:
“com efeito, é evidente que existe, que há também um direito internacional positi-
vo. ¿Quem o negará? Serve-lhe de suporte, uma vontade comum, colocada acima dos
diversos estados. esta tanto pode achar expressão em muitos acôrdos expressamente
10 radBruch, gustav. Filosofia do direito. Trad. L. cabral de moncada. São Paulo: Saraiva, 1934, p. 289.
11 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 21.
12 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 22.
Por agora, cabe-nos concordar, com coSSio, que o grande equívoco desse rea-
lismo ingênuo foi ter caído em um casuísmo que o levou a vislumbrar lacunas no
direito em razão de enxergá-lo como um “catálogo de casos abstratamente assina-
lados nas leis”.13
isso levou o próprio coSSio a vislumbrar uma enorme contradição nesse rea-
lismo, em razão de que, se realmente existissem lacunas, e no caso de se ter que
decidir em face dessas lacunas, o julgador teria que decidir o caso sem uma norma
de direito positivo, criando uma norma individual “à margem da lógica do dever-
ser” e com efeitos retroativos.14 embora não seja uma questão de “lógica do dever-
ser”, como o autor outrora colocou, devemos já explicitar que o que é faltante no
enfrentamento dessa matéria é uma adequada compreensão do direito como sis-
tema de princípios a garantir e possibilitar juízos de coerência normativa em face
da mais variada sorte de casos concretos.
Toda essa discussão proposta por coSSio aparece nas primeiras páginas de seu
livro dedicado à questão da completude do direito, e intitulado La plenitud del
ordenamiento jurídico. Parece-nos claro que a questão das lacunas no direito
somente podem ser colocadas se, de maneira dependente, também se fizerem pre-
sentes problematizações e análises sobre a velha questão em torno da completude
do direito.
assim é que um autor clássico da Teoria do direito, quem seja, norBerTo
BoBBio, vai colocar que a consideração das lacunas no direito implica, pois, dizer
que o sistema é incompleto, ou seja, que o direito padeceria de uma incompletu-
de desde um ponto de vista normativo, o que o impossibilitaria de “ter uma norma
para regular qualquer caso”.15 isso, por via de conseqüência, significa dizer que a
defesa do ideal de completude do direito traz como conseqüência o combate à
idéia de lacunas no direito. o dogma da completude, como BoBBio o chama, pro-
pugna que o direito é capaz de fornecer ao intérprete-julgador, em cada caso, uma
solução sem que se faça recurso à “eqüidade”.16 veremos, ao longo da discussão,
que realmente podemos sustentar a completude do direito, mas muito diferente-
mente das bases das quais, e por exemplo, BoBBio parte.
PereLman propõe a questão no sentido de uma tensão entre lógica formal e
lógica jurídica, nos fazendo, por outro lado, crer que a existência das lacunas não
implicaria, no caso do direito, uma incompletude. isso porque, segundo o autor,
em um sistema meramente formal, a referência a lacunas corresponderia à noção
17 PereLman, chaïm. Ética e direito. Trad. maria emantina galvão. São Paulo: martins Fontes, 1996, p. 645.
este trecho que estamos a citar, de ethique et droit, fora publicado anteriormente em 1968 sob o título de
Le problème des lacunes en droit, essai de synthèse: PereLman, chaïm. Le problème des lacunes en droit,
essai de synthèse. in: PereLman, chaïm (org.). Le problème des lacunes en droit. Bruxelles: Émile Bruylant,
1968, p. 537 et seq.
18 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 645.
19 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 646.
20 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 653.
todo o contexto concreto de interpretação e aplicação normativa.21 esta é, inclu-
sive, uma das inúmeras razões pela qual somente uma Teoria da argumentação
Jurídica,22 orientada aos desafios que a complexidade e modernidade do direito
moderno coloca a si mesmo, é capaz de enfrentar adequadamente as questões que
aqui começam a se delinear.
mas voltando à questão tradicional de como se coloca em questão a relação
entre completude e coerência do direito, sobretudo quando o que se está em jogo,
para a tradição, ao se pretender coerência é a unidade do direito – o que, inclusi-
ve, podemos afirmar que levou KeLSen a construir sua Teoria Pura, em razão de
uma busca lógica por um ideal de unidade e coerência, todavia devedores de uma
teoria da legitimidade do direito em termos fortes23 –, vejamos como Savigny já
expunha a questão:
“(...) el conjunto de las fuentes jurídicas arriba indicadas constituye una totalidad,
destinada a resolver cualquier problema existente en el campo del derecho. Para
que sea idónea a este fin, tenemos que exigir dos cosas: unidad y perfección [com-
pletude]. en este aspecto no podemos limitarnos sólo a las leyes, sino que tenemos
que tener en consideración más bien todas las clases de fuentes jurídicas (...) Los
estados defectuosos de aquella totalidad, comparables con los defectos de las leyes
particulares, se refieren a las dos exigencias que estabelecimos arriba. Si falta la
unidad, hemos de eliminar una contradicción; si falta la perfección exhaustiva,
hemos de colmar una laguna. en el fondo podemos reducir ambos casos a un con-
cepto fundamental común. en efecto, en todas partes intentemos llegar a la uni-
dad: a la unidad negativa mediante la eliminación de contradicciones; a la unidad
positiva, llenando las lagunas.”24
o que desde já podemos reafirmar, uma vez mais, é que toda a problemática
em torno das supostas lacunas no direito refere-se a uma adequada Teoria das
Fontes no direito – que, por sua vez, acrescente-se, deve ser compreendida na
superação de um convencionalismo e de seu co-dependente pragmatismo por,
21 nesse sentido, que estamos a criticar, confira: BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 85.
22 Problematizando os desafios de uma Teoria da argumentação Jurídica, cf.: maia, antônio cavalcanti;
BuSTamanTe, Thomas rosa de. Teoria da argumentação Jurídica. in: BarreTo, vicente de Paulo (org.).
dicionário de Filosofia do direito. São Leopoldo e rio de Janeiro: unisinos e renovar, 2006, pp. 64-68.
23 chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen,
Luhmann e habermas, cit.; chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma
reconstrução crítico-discursiva na alta modernidade, cit.
24 Savigny, Friederich carl von. Los fundamentos de la ciencia Jurídica. Trad. Werner goldschmidt. in: aavv.
La ciencia del derecho. Buenos aires: Losada, 1949, p. 124.; Savigny, Friederich carl von. derecho romano
actual. Trad. Jacinto mesía e manuel Poley. madrid: góngora, 1847, t. i, pp. 215 e 216.
ambos, pressuporem o direito como um “sistema de regras”, na expressão de
ronaLd dWorKin.25
mas o que nos chama mais a atenção nas palavras de Savigny é a questão que
pode ser reconduzida, ao final, ao problema da coerência no direito. afinal de
contas, o autor identifica tanto a questão da superação das antinomias – que, aliás,
se trata de um outro falso-problema em razão dos pressupostos que a tradição
parte –, bem como a questão referente às lacunas, como uma questão da referên-
cia à unidade do direito. o assento negativo quanto à unidade no que tange à
superação das contradições, e a correspondente referência positiva no que se refe-
re ao preenchimento das lacunas, diz respeito, exatamente, a uma leitura natura-
lista da questão: aquelas devem ser eliminadas, excluídas e estas devem ser preen-
chidas, completadas, mas ambas na busca de uma unidade, isto é, da ausência de
incoerências ou falhas, na leitura de Savigny.
BoBBio também resgata essa discussão, desde sua compreensão do direito
como um sistema de normas convencionadas no sentido antes elucidado, vislum-
brando uma conexão entre o problema da coerência com o problema da comple-
tude do direito. Segundo o autor, teríamos uma incoerência quando o direito
tivesse tanto uma norma proibitiva, quanto uma norma permissiva, de determina-
do comportamento, e verificaríamos a incompletude, diferentemente do que
PereLman compreende, quando no sistema do direito não houvesse nenhuma
norma, seja proibitiva, seja permissiva, de determinado comportamento.26 mas,
conclui o autor, que enquanto a coerência, isto é, a questão da unidade do direito,
haveria que ser assumida como uma exigência, mas não como uma necessidade27
– uma vez que, segundo o autor, da exclusão de todas as antinomias não depende
a existência e a aplicação do direito –, por seu turno a completude seria uma
necessidade, pois se não assumíssemos o direito como completo, no sentido,
inclusive, de que o intérprete-aplicador devesse julgar cada caso de acordo com
“uma norma pertencente ao sistema”, não poderia esse sistema “funcionar”. a
completude surgiria como uma condição,28 uma exigência, pois, sem a qual o
direito não poderia ser aplicado pela autoridade jurisdicional. nisto, inclusive é
25 Sobre a Teoria do direito de ronaLd dWorKin, não deixe de também cf., dentre outros: chueiri, vera
Karam de. dworkin. in: Barreto, vicente de Paulo (org.). dicionário de Filosofia do direito. São Leopoldo
e rio de Janeiro: unisinos e renovar, 2006, pp. 259-263; chueiri, vera Karam de. Filosofia do direito e
modernidade. curitiba: Jm, 1995; chueiri, vera Karam de; Fachin, melina girardi. dworkin e a tentativa
de um constitucionalismo apaziguado. revista Brasileira de direito constitucional, São Paulo, n. 7, v. 2, pp.
325-341, 2006; SgarBi, adrian. clássicos de Teoria do direito. rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
26 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 116.
27 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 117.
28 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 118.
que se assentaria a força, segundo BoBBio, do próprio dogma da completude, no
fato de não ser uma mera exigência, mas uma necessidade.
Prontamente o autor vincula a questão da completude e o dogma da completude
à referência histórica que o artigo 4º do code napoléon representa e que dispõe que:
“art. 1º. no caso de não ser possível descobrir na lei qualquer norma, o juiz deve deci-
dir segundo o direito consuetudinário e, se também este faltar, segundo a regra que ele,
como legislador, estabeleceria, seguindo a doutrina e a jurisprudência consagradas.”
32 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista machado. Lisboa: calouste gulbenkian,
1996, p. 307.
33 cf., infra, capítulo 3.
34 cf., infra, capítulo 6.
35 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 308.
36 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 309.
não se faz, a seu ver, nem lógica, nem teorético-juridicamente necessária –, que
uma resposta que supere as lacunas no direito, na medida do possível através de
“idéias jurídicas”, é o que seria de nós exigido.37
as razões para compreendermos como BoBBio e engiSch pensam tão diferen-
te acerca da completude do direito estão deitadas em algo mais profundo, o que
seja, uma adequada compreensão do que venha a ser o desenvolvimento da ativi-
dade jurisdicional. enquanto engiSch torna claro que determinadas decisões, em
razão das constatadas “lacunas”, podem ser arbitrárias, embora, na medida do pos-
sível, não devessem, BoBBio acredita poder superar essa idéia de incompletude na
aplicação do direito se socorrendo de critérios de integração do direito.
embora engiSch assuma uma postura derrotista no que tange ao ideal de com-
pletude do direito, postura essa da qual discordamos em termos de uma Teoria da
argumentação Jurídica, o autor teve o mérito de trazer à tona algo implícito em
todas as propostas teóricas referentes a uma Teoria das Lacunas no direito: o pro-
blema da discricionariedade. na verdade, o problema de uma Teoria das Lacunas
no direito está também intrinsecamente conectado ao problema da discricionarie-
dade jurisdicional ao qual engiSch, de certa forma, se mostra resignado por reco-
nhecê-la em certos casos. BoBBio, por sua vez, acredita, todavia sem sucesso, poder
domar o reconhecimento de uma discricionariedade, e a defesa da completude do
direito, à luz de critérios de autointegração (analogia e, ironicamente, os “princí-
pios gerais do direito”) e heterointegração (recurso a ordenamentos diversos e a
fontes diversas daquela assumida como “dominante”) do direito.38
Porém, contra essa mesma escola do direito Livre, e à época de suas propos-
tas, surgiram reações do positivismo jurídico, sobretudo na defesa do caráter esta-
tal do direito, sob o argumento de que admitir uma livre investigação do direito
quando de sua aplicação, significaria, muitas vezes, romper a barreira do princípio
da legalidade.59 assim é que BoBBio nos esclarece que a tática utilizada para supe-
rar essa dificuldade não era pretender desqualificar a idéia de completude do
direito: o direito há que ser necessariamente assumido como completo; o que
haveria de ser modificado era a idéia que se tinha em torno das lacunas no
direito.60
a completude agora passou a ser encarada não sob um ponto de vista dogmá-
tico,61 como pretendido pelos defensores da escola da exegese, mas levando-se em
consideração uma dimensão mais ampliada do direito, que passou a ser encarado
desde uma óptica de sistema normativo, e não somente como uma justaposição de
textos legislativos. Se coSSio chamou aquela corrente que vislumbrava lacunas no
direito como um “realismo ingênuo”, que enxergava o direito como um catálogo
de normas abstratamente instituídas em lei, podemos, por outro, lado afirmar que
mais ingênuos ainda eram os defensores da escola da exegese, que acreditavam que
87 cf., assim, ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 302.
pretação do direito e na defesa de sua completude; aliás, o reconhecimento dos
princípios como normas jurídicas, e a busca de sua interpretação coerente, é o que
adequadamente permite a superação da idéia de que haja lacunas ou de que seja
necessário o socorro à analogia para a superação de dificuldades interpretativas.88
Todavia, o próprio ziTeLmann nos alerta sobre duas situações às quais, de
maneira geral, se atribui a existência de lacunas. uma dessas situações é o quadro
que até aqui se fez presente, qual seja, essa atividade de “correção” do direito
mediante o emprego de analogia. Por outro lado, afirma ainda o autor a existên-
cia de determinadas situações em que um real preenchimento de lacunas se faz
indispensável, em situações em que a lei veio a omitir uma determinada regula-
mentação,89 quando determina ao juiz decidir de uma maneira positiva sobre um
determinado ponto sem que o próprio direito indique uma direção acerca da
maneira como deva decidir.90 aqui, ziTeLmann é expresso, afirmando que nos
casos de “lacunas desta classe”, que seriam as por ele chamadas de lacunas reais e
positivas, o juiz deveria proceder completando a lacuna,91 e não simplesmente
realizando uma “correção”, porque a obrigação do juiz, nesses casos, seria a de
suprir essas mesmas lacunas, já que de outro modo, e funcionalmente, uma vez
mais, não se poderia dar uma decisão.92
Por esta razão, podemos dizer que ziTeLmann realiza uma defesa limitada da
completude do direito, por supor a existência de determinados casos que fugiriam
da referência a qualquer padrão normativo quando da construção da decisão, ou
ainda, poderíamos oferecer uma interpretação oposta e afirmar que realiza uma
defesa funcional, levada às últimas conseqüências, dessa mesma completude, se aí
quisermos também desenvolver o raciocínio e afirmar que, uma vez que o juiz
estivesse obrigado a suprir as lacunas, embora a legislação não apontasse o cami-
nho, deveria desenvolver o raciocínio em termos de uma “regra não escrita, embo-
ra evidente”, para fazermos referência a expressões do próprio ziTeLmann, que
exigisse decidir o caso exatamente em razão de se ter que decidir. mas, quanto a
isso, ziTeLmann não deixou expresso o seu raciocínio. veremos que a sofisticação
de suas propostas, bem como a radicalização dos aspectos funcionais presentes,
foram determinantes na construção da proposta de hanS KeLSen a essa matéria.
88 nesse sentido, já antes, cf.: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito Penal: contri-
buições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois, cit., p. 95 et seq.
89 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 315.
90 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 317. embora o leitor possa entender a questão que colo-
camos à Teoria do discurso de Jürgen haBermaS como uma retomada desse problema, como, aliás, a refe-
rência por parte deste a uma “zona cinzenta” a envolver argumentos de justificação e aplicação normativas,
aqui já adiantamos que uma leitura principiológica do direito, desde já, repele este outro falso-problema.
Sobretudo em face do que o mandado de injunção está a normativamente nos cobrar. cf., infra, capítulo 8.
91 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 315.
92 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 320.
as críticas à proposta de ziTeLmann são inúmeras,93 embora todas ainda se
mantenham presas a uma concepção convencionalista do direito e, portanto, ina-
dequada. Todavia, sem sentido é a crítica que BoBBio apresenta a ziTeLmann, ao
afirmar que de todo inadequado seria sustentar que em um ordenamento jurídico
existiriam tão-somente normas particulares inclusivas – isto é, normas que excep-
cionariam a regra geral negativa – e uma norma geral exclusiva – a regra geral
negativa, propriamente dita –, porque ainda deveria ser considerada uma, na
nomenclatura de BoBBio, norma geral inclusiva que viesse a determinar que o juiz
poderia se socorrer à analogia em casos em que as matérias fossem, pois, análogas,
ou em casos parecidos.94 mas parece-nos que BoBBio não procedeu a uma leitura
adequada do texto de ziTeLmann: é o próprio ziTeLmann quem reconhece a neces-
sidade de se reconhecer uma tal norma – embora não com o nome atribuído por
BoBBio –, ainda que de maneira implícita e não-expressa, embora de conteúdo evi-
dente, como acima já assinalado.
93 cf.: engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 281 et seq.; coSSio, carlos. La plenitud del
ordenamiento jurídico, cit., p. 34 et seq., PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 651 et seq.
94 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 135.
95 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 137.
jurídica para, assim, justificar aquela norma aplicada na superação, ou no preen-
chimento, de referida lacuna.96
atendo-se a um conceito mais tradicional de lacuna, engiSch é veemente em
defender a sua existência, mas não somente do que chama de “lacunas primárias”,
isto é, de lacunas que desde antes se podem fazer perceber como inerentes a uma
“regulamentação legal”, mas também no que diz respeito às “lacunas secundárias”
ou lacunas que somente se manifestam em momento posterior em razão da
“Temos que nos abster de focar aqui a questão de saber de onde procedem propria-
mente todos estes princípios relativos ao preenchimento das lacunas e em que rela-
o que engiSch nesse trecho coloca são questões que de maneira extrema-
mente complexa afetam a compreensão do direito. Para além de toda a problemá-
tica que a defesa das lacunas no direito impõe à interpretação da prática jurídica,
engiSch acrescenta questões que, de maneira decisiva, são enfrentadas nos próxi-
mos capítulos deste livro. Podemos, como insinua engiSch, sustentar uma “ordem
concreta” ou “hierárquica” de valores como algo determinante e constitutivo da
justificação e aplicação do direito? Será que, legitimamente, podemos admitir que
as “valorações pessoais” do juiz têm importância decisiva em um caso, ainda que
como ultimum refugium? Sustenta-se um questionamento acerca da relação “hie-
rárquica” entre princípios jurídicos e valores particulares – ainda que “historica-
mente” recortados – em sede de aplicação do direito? ao leitor mais interessado,
devo adiantar que a resposta a todas essas questões somente pode ser negativa, e
isto é o que as páginas daqui em diante pretendem demonstrar.
o interessante de se colocar é que vários autores, dentre eles Luhmann,
quando enfrentam a questão dos princípios jurídicos procedem a um raciocínio
completamente desautorizado a afirmar que referidos princípios poderiam ser
concebidos como indutivamente (re)construídos a partir das normas do sistema do
direito, em um exercício de generalização e busca de identidades entre o que se
encontra implícito ou embutido nas normas convencionalmente firmadas.110
não compreendem, pois, que os princípios são normas, e que não são consta-
tações indutivas daquilo que seriam “as” normas, isto é, os dispositivos normativos
convencionados legislativa ou consuetudinariamente.
É assim, inclusive, que engiSch sustenta uma “analogia do direito”, também
chamada de analogia iuris, isto é, quando não de uma norma isolada, que seria o caso
de “analogia da lei”, mas sim de uma “pluralidade de normas jurídicas”, é realizado
um raciocínio de indução para, a partir de tal expediente, desenvolver “princípios
mais gerais que aplica a casos que não cabem em nenhuma norma jurídica”.111
a referência de engiSch, e de quase a unanimidade dos que defendem a exis-
tência das lacunas no direito, ao uso da “analogia da lei”, se dá no sentido de que,
como um meio de integração do direito, isto é, de preenchimento das lacunas,
“como, porém, isso não é de fato possível, pois uma ordem jurídica é sempre aplicá-
vel e também é aplicada quando o juiz rejeita a ação com fundamento em que a
ordem jurídica não contém qualquer norma geral que imponha ao demandado o
dever afirmado pelo demandante [em razão da permissão negativa], o pressuposto de
que parte o preceito acima citado é uma ficção.”123
e esta ficção, volta KeLSen, estaria baseada em uma valoração do órgão apli-
cador, em um juízo de valor “ético-político subjetivo”. o que vem o autor a escla-
recer é que uma tal ficção somente seria “justificável” quando o próprio
Legislativo quisesse expressar a idéia, segundo a qual, tornar-se-ia aconselhável
conferir ao tribunal o poder para, em tais situações, e de acordo com seu juízo
político, fixar uma norma jurídica individual quando a aplicação de uma determi-
nada norma geral pelo Legislativo convencionada anteriormente viesse a levar a
um resultado insatisfatório ou indesejável em determinadas situações nem sequer
previstas ou previsíveis a ele.124 veja que a base de todo o raciocínio de KeLSen não
se centra na ausência de norma ou de solução jurídica para o caso, mas sim numa
valoração acerca da solução que o direito, desde antes, já ofereceria para o caso.
e, para KeLSen, e em face dos pressupostos dos quais parte, é exatamente isso
que ocorreria quando um juiz viesse a reconhecer a existência de lacunas no
direito... daí, conclui KeLSen que uma pretendida limitação do poder dos tribu-
nais, por parte do Legislativo, quando este viesse a reconhecer a possibilidade os
tribunais, de a seu juízo, estabelecer soluções para situações em que supostamen-
te houvesse “lacunas”, é algo que se auto-anularia:126 não teria como o Legislativo
limitar a atuação dos tribunais quando concedesse a esses mesmos tribunais a pos-
sibilidade de, na ausência de uma norma – que, para KeLSen, implicaria um juízo
acerca do acerto e interesse que a aplicação desta norma teria aos olhos do tribu-
nal, ou seja, quando houvesse a ausência não de uma norma, ou de uma solução
jurídica de um ponto de vista lógico, mas, sim, de um ponto de vista axiológico a
satisfazer os valores subjetivos “do” tribunal – construir a solução para o caso em
que se verificasse esta ausência.
Primeiro porque não tem como o Legislativo prever, desde antes, quais são os
casos que os tribunais considerariam como carentes de uma determinada e ade-
quada, de um ponto de vista axiológico, regulamentação – pois, se pudesse assim
se proceder, ele mesmo já regularia tais situações positivamente, isto é, criando
normas convencionadas que solucionassem ou impedissem este problema –;
segundo porque a suposição por parte do tribunal de que um determinado caso
não fora previsto pelo Legislativo e a também suposição de que o Legislativo teria
formulado o direito diferentemente se tivesse a possibilidade de prever o novo
caso, “funda-se, quase sempre numa presunção não demonstrável”.127
o raciocínio de KeLSen pressupõe o direito como um sistema de regras em
que normas positivas se confundem com atos subjetivos de vontade capazes de
serem interpretados como também dotados de um sentido objetivo, isto é, como
também capazes de serem considerados juridicamente válidos. e isso em razão de
uma norma hierarquicamente superior que supostamente teria conferido
poder/competência para realização de um determinado ato. os princípios jurídi-
cos não cobram qualquer papel relevante na proposta teórica do autor porque,
repita-se, os exclui como normas jurídicas exatamente por não poderem ser recon-
duzidos a um ato de vontade capaz de ser considerado, desde um esquema mera-
mente lógico-formal, como juridicamente válido.
128 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 277: “quando a lei determina, por hipótese, que um órgão
deve ser criado por eleição, mas não regula o processo da eleição. isso significa que qualquer espécie de
eleição – eleição de maioria relativa ou maioria absoluta, eleição pública ou secreta, etc. – é legal. o órgão
encarregado de realizar a eleição pode determinar o processo de eleição como bem entenda. a determina-
ção do processo eleitoral é deixada a uma norma de escalão inferior.”
caPíTuLo 2
enTre diScricionariedade e LegiTimidade:
eLemenToS Para uma ProBLemaTização do
diScurSo Jurídico moderno a ParTir da idÉia
de auToLegiSLação democrÁTica
“mas o fato de um órgão competente segundo a ordem jurídica ter verificado, num
processo determinado pela mesma ordem jurídica, que um indivíduo praticou um
homicídio.”18
16 referimo-nos a: häBerLe, Peter. hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da cons-
tituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Trad. gilmar
Ferreira mendes. Porto alegre, Safe, 1997.
17 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 266.
18 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 266.
poderia ser tomada como dotada de sentido jurídico, isto é, somente uma opinião
sobre a ilicitude, ou não, de determinado comportamento deveria ser tomada em
consideração, de quem seja, do tribunal competente para decidir o caso.
recapitulemos: o tribunal quando decidisse um caso, exprimiria um ato de
vontade, dotado de sentido subjetivo, isto é, expressar-se-ia uma vontade de con-
denar, ou absolver, um determinado sujeito. Por sua vez, através de um raciocínio
silogístico, KeLSen argumenta que esse ato de vontade, como qualquer outro ato
de vontade que criasse ou executasse normas jurídicas, somente seria passível de
ser considerado válido quando houvesse uma norma hierarquicamente superior
que atribuísse a esse mesmo órgão que expressasse esse ato de vontade, poder e
competência para tanto. Somente assim esse ato de vontade, dotado desde sempre
de sentido subjetivo, poderia passar a também ser considerado, desde uma pers-
pectiva piramidal escalonada, como dotado de um sentido objetivo, isto é, como
juridicamente válido.19
Pois bem. as interpretações realizadas pelos cidadãos, por exemplo, ou pelos
estudiosos do direito não poderiam ser assumidas como dotadas de sentido de
validade jurídica. Somente interessariam as averiguações e decisões levadas adian-
te, e no caso, por um tribunal a respeito da ocorrência, ou não de um ilícito.
Somente a opinião dos indivíduos que pudessem ser interpretados como órgãos
jurídicos, em razão da competência que lhes é atribuída, é que importariam.20 e
KeLSen é enfático nessa questão: “Se uma norma geral deve ser aplicada, só uma
opinião pode prevalecer”,21 porque, afinal, e de um ponto de vista meramente
funcional, somente a interpretação e opinião expressa pelo tribunal, a respeito de
um caso particular, seria juridicamente relevante.22 e isso podemos reler da
seguinte forma: somente a opinião expressa pelo tribunal seria dotada de sentido
jurídico, seria juridicamente relevante em razão de uma questão funcional, qual
seja, a competência que lhe é atribuída, por uma determinada norma hierarquica-
mente superior, para criar uma norma individual; a competência para decidir
sobre o sentido jurídico de casos individuais é do tribunal...
assim, um sujeito pode, seguindo o exemplo, ter cometido um homicídio e
ser absolvido, ou o inverso, e o único sentido jurídico relevante, em ambas as
situações, seria o atribuído pelo tribunal – inclusive de condenação no caso de ino-
cência. e tudo isso por uma questão meramente funcional referente ao fato de que
19 cf. assim: Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e habermas,
cit.; chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito Penal: contribuições a uma recons-
trução da dogmática penal 100 anos depois, cit.
20 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 266.
21 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 267. itálicos do próprio KeLSen.
22 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 267.
somente as decisões dos tribunais poderiam ser assumidas como relevantes aos
olhos de uma determinada comunidade jurídica. Por isso afirmamos que KeLSen
propõe uma “comunidade fechada de intérpretes da constituição”...
com isso, o autor não nega a possibilidade de as partes discordarem da deci-
são tomada e desta recorrerem no que diz respeito a uma consideração inadequa-
da por parte dos aplicadores do direito do “fato condicionante” da aplicação da
sanção. assim, essa decisão recorrida, embora pudesse ser assumida em seu senti-
do subjetivo, como um ato de vontade, todavia, não seria ainda capaz de ser inter-
pretada como dotada de sentido objetivo; isso só ocorreria quando uma decisão
jurisdicional que constituiria uma norma individual viesse a transitar em julgado,
ou nas palavras do próprio KeLSen, quando “ela já não pode ser anulada em qual-
quer novo processo”.23
Percebe-se como KeLSen enfoca as questões de um ponto de vista inadequa-
do ao direito da modernidade. a preocupação do autor é a tensão entre o sentido
subjetivo e o sentido objetivo, isto é, entre ato de vontade e a validade jurídica em
termos meramente formais, quando a nossa preocupação refere-se à tensão entre
faticidade e validade, entendida esta em termos fortes de uma legitimidade nor-
mativa em face do projeto constitucional moderno, ou seja, entre as pretensões de
coercibilidade e as pretensões de correção normativa.
com isso, KeLSen acaba por oferecer uma leitura “processual” da proposição
jurídica que viria a descrever as normas jurídicas:
dessa forma, considerando “a” como ilícito e “B” como sanção, a fórmula
geral da proposição jurídica, “Se é a, deve ser B”, deve ser interpretada no senti-
do de que “Se o tribunal, para o que tem competência, averiguar a, com força de
caso julgado, deve esse mesmo tribunal, com base em sua competência, ordenar
que seja aplicada B a um determinado indivíduo”.
mas essa sua leitura “processual” é uma leitura meramente formal e funcio-
nalizada, sem garantir a aplicabilidade normativa dos princípios jurídicos, sem
25 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 269. Sobre o problema da cisão entre forma e conteúdo na
Filosofia do direito, cf. nosso Posfácio à Segunda edição em: Filosofia do direito na alta modernidade:
incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e habermas, cit.
26 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 270.
27 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 270.
de absolver o acusado, mesmo que a sua conduta, contra a qual se dirige a acusação,
tenha aquele caráter.”28 (itálicos nossos)
“isto significa que o tribunal recebe poder ou competência para produzir, para o caso
que tem perante si, uma norma jurídica individual cujo conteúdo não é de nenhum
29 cf. o seguinte trecho, que confirma tudo o que estamos a afirmar: “Porém, como uma ordem jurídica não
pode proteger todos os interesses possíveis mas apenas pode proteger interesses bem determinados [conven-
cionalmente, portanto, conforme venho dizendo], enquanto proíbe a sua violação, e, por isso, os interesses
opostos, que sempre existem, têm de ficar desprotegidos, o conflito entre uma conduta lícita (permitida) de
um indivíduo e uma conduta lícita de outro indivíduo é inevitável e surge sempre que a demanda é rejei-
tada ou o acusado é absolvido simplesmente porque a sua conduta não é proibida e, portanto, o interesse
ofendido pela sua conduta não é protegido pela ordem jurídica através de uma norma geral que ligue à con-
duta contrária uma sanção.”
30 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 271: “costuma-se dizer que o tribunal tem competência para
exercer a função de legislador. isto não é completamente exato quando por legislação se entenda a criação
de normas jurídicas gerais. com efeito, o tribunal recebe competência para criar apenas uma norma indivi-
dual, válida unicamente para o caso que tem perante si.”
modo predeterminado por uma norma geral de direito material criada por via legis-
lativa ou consuetudinária.”31
não insistirei na crítica a KeLSen a partir deste trecho. acredito que isso já
fora suficientemente colocado nas páginas anteriores. apenas quero chamar a
atenção do leitor para aquilo que insistentemente venho pontuando: o convencio-
nalismo assume como normas somente aquilo construído legislativa e consuetudi-
nariamente. os princípios jurídicos não seriam normas, antes, seriam frutos de um
exercício, para a grande tradição, de indução a partir de normas gerais.
Toda essa leitura que aqui trazemos de KeLSen há que ser entendida comple-
mentarmente às questões colocadas também no último capítulo de sua reine
rechtslehre, acerca da interpretação do direito, quando afirma que não é possível
sustentar uma única decisão capaz de ser assumida como a correta para cada caso,
quando defende um decisionismo. isto significaria, ao ser autorizado o tribunal a
aplicar o direito, aplicar qualquer interpretação de uma norma jurídica, como
fruto das averiguações e decisões que haveria que decidir enquanto órgão compe-
tente, e cuja intepretação do caso não pode ser questionada quando transitada em
julgado, e que, inclusive, abriria margem para uma discricionariedade:
“a propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da
interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente
se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma
norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora
da moldura que a norma a aplicar representa. (...) através de uma interpretação
autêntica deste tipo pode criar-se direito, não só no caso em que a interpretação tem
caráter geral (...) mas também no caso em que é produzida uma norma jurídica indi-
vidual através de um órgão aplicador do direito, desde que o ato deste órgão já não
possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado. É fato bem conhecido
que, pela via de uma interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado direito
novo – especialmente pelos tribunais de última instância.”32 (itálicos nossos)
33 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875. Paris: recueil Sirey, 1931, p. 16.
34 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 16.
35 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 16.
36 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 17.
dessa forma, poderia ser reconduzida como fruto de uma vontade geral, o que
implicou a identificação entre a vontade expressada pela assembléia dos deputa-
dos com a vontade popular. dessa forma, interpretava-se a decisão da assembléia
de deputados eleitos como equivalente a uma decisão de todos os cidadãos.37
a volunté générale seria, pois, expressa pelo “corpo legislativo” que represen-
taria a totalidade dos cidadãos, em um sistema representativo que, da maneira
como construído, teria como objetivo efetivo substituir, nas palavras de carrÉ de
maLBerg, a vontade dos cidadãos pela sua própria. e, embora reconheça o autor
que o referido artigo 6º seria constituído de duas proposições,38 não deixa de
enxergar uma, ao menos em princípio, objeção que se poderia fazer quando de sua
interpretação. isso porque, enquanto a primeira proposição, referida ao fato de
que a lei há que ser assumida como expressão da vontade geral, deve ser interpre-
tada como diretamente inspirada pela proposta teórica contida em contrat Social,
de rouSSeau, por outro lado – e aí, já no que se refere à segunda proposição – é o
próprio rouSSeau quem rejeitaria uma proposta de legiferação por via representa-
tiva, uma vez que teria este demonstrado “que o povo não é suscetível de ser subs-
tituído, nem representado, para o exercício de sua soberania”.39
Todavia, carrÉ de maLBerg é consciente do fato de que toda a construção
levada a cabo pela assembléia nacional de 1789 se deu em nome de uma idéia de
representação nacional que estivesse repousada na idéia central, e essencial, de
que a lei devesse ser uma emanação dos cidadãos que formariam a nação: este,
inclusive, seria o “espírito” da própria constituição de 1791.40 e, assim, o rei fica
destituído de toda e qualquer carga representacional do corpo de cidadãos: o reco-
nhecimento de um “direito de veto” ao rei,41 e o papel por este cumprido em face
da assinatura de tratados e negociações internacionais, não o confeririam o status
de representante da nação, uma vez que tanto o veto – que teria como efeito de
seu exercício o reenvio da lei então vetada a uma nova apreciação do Legislativo
– quanto questões diplomáticas – sempre dependentes de ratificação por parte do
37 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 17.
38 “en résumé, le concept de loi enoncé par l’article 6 de la déclaration de 1789 se constituait de ces deux pro-
positions: 1º La loi a pour fondement la volonté générale, elle doit donc être l’expression de cette volonté;
2º elle l’est aussi, réellement, puisque la volonté générale est exprimée par le corps législatif, celui-ci repré-
sentant la totalité des citoyens.” carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale:
étude sur le concept de la loi dans la constitution de 1875, cit., pp. 17-18.
39 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 18.
40 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 18.
41 Sobre o conceito do instituto da sanção em carrÉ de maLBerg, sobretudo na Théorie générale de l’État, cf.:
carvaLho neTTo, menelick. a sanção no procedimento legislativo. Belo horizonte: del rey, 1992, p. 178
et seq.
Legislativo – ficariam submetidos à expressão decisiva e plenamente representati-
va da vontade geral representada de maneira exclusiva pelo corpo de deputados.42
mesmo porque o diferencial na determinação do caráter representativo do
corpo de deputados não tem unicamente a ver com sua origem eletiva. Sob a égide
da noção de representatividade fundada em 1789-91, carrÉ de maLBerg, nos expli-
ca que é a natureza do poder a ser exercido pelos indivíduos eleitos aquilo que viria
a marcar o sentido da representatividade; e não somente o ato eletivo em si, que
não teria o condão, por si, de garantir a qualidade representativa desses sujeitos. e
essa questão é tomada em conta em face da distinção, capaz de ser remontada nes-
ses traços, à constituição de 1791, entre os representantes e os administradores,
sendo que estes não teriam qualquer carga representacional. representante, pois,
somente seria aquele que, além de eleito pelo povo, exercesse um poder de nature-
za representativa, uma vez que isto consistiria, pois, em “querer pela nação”.43
enquanto o poder correspondente ao Legislativo referir-se-ia, à luz daquela
constituição, a) à feitura das leis, e b) à ratificação dos tratados internacionais fir-
mado com estrangeiros, o poder que possuiriam os administradores seria muito
diferente daquele referido ao Legislativo, inclusive porque ele mesmo seria domi-
nado e determinado, em completo, pelas leis vigentes: a “vontade” que se refere a
atos administrativos, destarte, não possuiria “le caractère de volonté libre et ini-
tiale”44 que a “vontade geral”, expressa pelo Legislativo, teria.
da mesma forma, explica-nos carrÉ de maLBerg, o Judiciário não teria outro
papel que a estrita aplicação das leis adotadas pelo Legislativo, sendo que estaria
negado todo o poder de criação jurisprudencial autônoma, razão pela qual os pró-
prios juízes jamais poderiam ser assumidos como dotados de qualquer caráter de
representação.45 ou seja, era vedado à autoridade jurisdicional emitir decisões que
não fossem referidas in concreto, isto é, decisões que tivessem efeitos gerais e
regulamentadores.46 mais adiante veremos como essa compreensão foi central
para uma compreensão radicalizada do convencionalismo no direito que a escola
da exegese outrora defendeu.
continua carrÉ de maLBerg, na reconstrução de conceitos determinantes na
tomada em consideração do sentido da legislação logo após a revolução Francesa,
42 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 19.
43 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 19.
44 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 20.
45 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 20.
46 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., 113.
que todas essas distinções entre poder representativo e os poderes dos administra-
dores e juízes, deveria ser remontada à distinção estabelecida pela revolução
entre as figuras do “representante” e do “funcionário” como, ao fundo, uma dis-
tinção concernente à titularidade de duas formas de poder público.
de um lado, o Legislativo que, como representante da nação, de todos os
cidadãos, pois, teria o poder de criação normativa como obra do próprio povo,
enfim, como obra do soberano, razão pela qual, por representar o soberano dete-
ria um poder supremo;47 de outro lado, o chefe do executivo (rei), os administra-
dores e os juízes que, embora exerçam “poderes nacionais”, não exerceriam, toda-
via, um poder qualificado como soberano exatamente porque não representam
este.48 assim, por não exercerem representação, exerceriam somente “funções”
que a eles seriam atribuídas pelo soberano e em conformidade com a, na medida
da, constituição. Seriam desprovidos, destarte, de caráter representativo, não
exprimiriam uma vontade geral; e quando tomassem uma decisão ou realizassem
um certo ato de suas respectivas competências, não estaria o povo “falando” ou
“agindo” por eles, seus supostos representantes, mas, muito pelo contrário, os fun-
cionários é que seriam “falados”, mandados e “agidos”, determinados, uma vez que
o artigo 2º da constituição de 1791 se refere a esses funcionários como agentes que
servem ao povo.
neste contexto, o Legislativo, investido de um poder cuja essência se diferen-
cia por seu caráter soberano, se diferencia dos funcionários, de autoridades pre-
postas, inclusive porque, ao final e em uma análise definitiva, o sistema represen-
tativo erguido pela revolução, embora parta do princípio da soberania nacional,
acaba se confundindo ou se reduzindo a um “sistema de soberania parlamentar”.49
assim, a lei seria a expressão da vontade geral e soberana, vontade esta repre-
sentada pelo Parlamento que deveria ser capaz de dominar, reger, em razão de sua
superioridade, não somente as atividades dos nacionais, mas inclusive de todas as
autoridades nacionais. É desta forma que carrÉ de maLBerg interpreta o artigo 1º,
da primeira seção, do capítulo ii, do Título iii, da constituição de 1791, segundo
o qual “il n’y a point en France d’autorité supérieure à celle de la loi”.50 e isso se
refere, com base no artigo 6º da déclaration, enfim, à herança revolucionária pre-
sente na constituição de 1791, de que o próprio rei – como toda e qualquer auto-
47 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 20.
48 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 21.
49 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 21.
50 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 22.
ridade não-parlamentar –, não pode realizar qualquer ato ou editar qualquer
norma endereçada aos cidadãos ou aos próprios funcionários, por não ter legitimi-
dade para tanto, ou seja, por não ser, nem representar, o soberano: “ce n’est qu’au
nom de la loi que le roi peut exiger l’obéissance”.51
Finalmente, investe carrÉ de maLBerg no sentido de que, pelo menos, uma
última dedução, a constituição de 1791 teria realizado com base no referido arti-
go 6º da déclaration, e seria aquela referente aos traços característicos para que se
reconhecesse uma lei. entende o autor que a partir do artigo 6º (tit. iii, ch. iii,
sect. 3) da constituição de 1791, a noção de lei não se fazia dependente de quais-
quer condições relativas ao conteúdo do ato legislativo, nem de distinção tangen-
te a matérias que supostamente seriam, ou não, matérias legislativas, mas, pelo
contrário, o conceito de lei seria derivado de um fator meramente formal, qual
seja, a origem da lei, enfim, o fato de ser adotada por um ato do Legislativo como
“lei” – segundo referido artigo, “Les décrets du corps législatif ont force de loi et
portent le nom et l’intitulé de lois”.52
Problematiza carrÉ de maLBerg questões interessantes, no sentido de que
a constituição de 1791 não exige nem um caráter de generalidade da disposi-
ção legislativa para que esta mereça, ou possa, ser qualificada como lei – em um
resgate crítico das idéias de rouSSeau –, nem também exige, a partir de uma
teoria da separação dos poderes, que a lei seja considerada como tal em face de
uma distinção de matérias capazes de supostamente serem referidas como
matérias reservadas ao Legislativo – em uma consideração à proposta de
monTeSQuieu.53
reconhece carrÉ de maLBerg que, embora a constituição de 1791 até reco-
nheça, ratione materiae, questões reservadas à competência do Legislativo (artigo
1º, tit. iii, ch. iii, sect. 1º), conclui que, sob a influência do contexto revolucioná-
rio, ao final das contas, “tout ce qui a été décidé par le corps législatif, en forme
législative, est loi et mérite le nom de la loi”.54 embora houvesse teorias, como a
de rouSSeau e a de monTeSQuieu, que fariam derivar a legalidade da generalida-
de/matéria da norma em questão, conclui carrÉ de maLBerg que em face da
constituição de 1791 em França se firma uma outra orientação para a identifica-
ção e caracterização da lei como tal, qual seja, o fato de ser fruto de uma decisão
51 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 22.
52 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 23.
53 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 23.
54 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 24.
de um corpo Legislativo, isto é, um conceito que decorre diretamente do princí-
pio da representação, um conceito “extra-matéria” e puramente formal.55
nesse sentido é que se pode considerar que, nesse contexto que inspirou
a constituinte de 1789-91, a lei era considerada como a fonte essencial e
exclusiva de todo o direito vigente no estado.56 e nessa esteira, carrÉ de
maLBerg, em sua outra obra intitulada, confrontation de la théorie de la for-
mation du droit par degrés avec les idées et les instituitons consacrées par le
droit positif français relativement à sa formation, de 1933, nos vai tornar viva
na memória a importância do artigo 5º da déclaration referente ao princípio
segundo o qual tudo o que não está proibido por lei, está permitido, isto é, nin-
guém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.
no mesmo sentido, a constituição de 1791 trazia um dispositivo (artigo 3º, tit.
iii, ch. ii, sect. 1º) segundo o qual somente em nome da lei pode-se de alguém
cobrar obediência.57
e tudo isso deve assim ser compreendido em face da centralidade e superio-
ridade que o princípio da representação, em sede do reconhecimento do poder
soberano, acabou adquirindo neste contexto, já que a lei, formalmente compreen-
dida, era a expressão da volunté générale. Somente a lei em razão de sua suprema-
cia, portanto, poderia ser assumida como a fonte criadora do direito, uma vez que
toda a origem do direito, e seu único fundamento, era a própria vontade geral
representada no Parlamento.58 isso, portanto, acabou contribuindo, sobremanei-
ra, para que se identificasse, sobretudo na França revolucionária, a crença de que
a idéia de direito se identificaria com a idéia de lei.59
“nel definire la legge mediante la voluntà generale e nel far dipendere dalla legisla-
zione l’intero diritto applicabile nello Stato, la rivoluzione assumeva, quindi, impli-
citamente ma fermamente, una posizione che consisteva nello stabilire una stretta
relazione fra la nozione di diritto e il potere dichiarato inerente alla volontà genera-
le. Questa relazione risultava dall’idea che la comunità nazionale, essendo sovrana
ed essendo tale in quanto insieme dei cittadini che la compongono, non può essere
55 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 24.
56 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese. Trad. anna chimenti. milano: giuffrè, 2003, p. 108.
57 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 108.
58 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 109.
59 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 109.
vincolata giuridicamente, sia in corpore, sia nella persone dei singoli membri, se non
in virtù delle norme regolatrici che emanano dalla sua volontà.”60
60 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 109.
61 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 111. veja ainda: “d’altronde le opinioni e le intenzioni dei primi costituenti
francesi riguardo alla questione della formazione e delle fonti del diritto nascono, indubbiamente, dalle pre-
cauzioni che essi hanno preso per garantire al corpo legislativo l’esclusività del potere di creazione
dell’ordinamento giuridico.” carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto
con le idee e le istituzioni del diritto positivo francese, cit., p. 133.
62 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 113.
cípio segundo o qual a lei seria por si suficiente, e de modo ilimitado, a fornecer
ao juiz todos os elementos para que resolvesse as mais diversas questões que se lhe
colocavam, fora posto em xeque.63 assume carrÉ de maLBerg a interpretação de
que, embora ainda vinculada a questões particulares e concretas, o reconhecimen-
to de um tal artigo em sede da aplicação jurisdicional significaria o reconhecimen-
to de um eventual poder de criação do direito – o que não deixaria de se apresen-
tar como um problema à tradição do pensamento jurídico, uma vez que a
revolução “nel definire la legge come espressione della volontà generale, aveva
considerato come la fonte del diritto nella sua totalità”.64
63 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 115.
64 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 116.
da escola da exegese não teria como alternativa senão o reconhecimento de uma
discricionariedade jurisdicional casada com uma flexibilização pragmatista da
aplicação do direito, ainda que melhores fossem as intenções normativas e de
legitimidade que se encontrassem por detrás das propostas desses autores.
na reconstrução dos traços essenciais da escola da exegese recorreremos à
obra clássica de JuLien BonnecaSe sobre o tema, intitulada L’École de l’exégèse en
droit civil, de 1924, em sua segunda edição.
mas, antes, cabe-nos fazer uma advertência: é o próprio BonnecaSe, profundo
pesquisador de Teoria do direito, mas sobretudo de direito civil, quem nos chama
a atenção para o fato de que as propostas que rondam a escola da exegese, e sua luta
com a escola científica, muito embora tenham se dado sobretudo no terreno de
questionamentos e reflexões da Teoria do direito civil e do processo de codifica-
ção – code napoléon – podem, todavia, se fazer perceber como refletidas de modo
geral, por toda a teoria jurídica. ou seja, as discussões e debates em torno da com-
preensão de direito que a escola da exegese, mas também a escola científica, pres-
supuseram e acabaram alcançando um “resultado de alcance geral”.65
inicialmente, devemos ainda alertar o leitor de que BonnecaSe compreende
a escola da exegese como capaz de ter sua história dividida em três grandes
momentos: a) a primeira fase, de 1804 a 1830, que se refere ao período de funda-
ção e “instauração” dos pressupostos interpretativos e das questões posteriormen-
te desenvolvidas por seus adeptos; b) a segunda fase, de 1830 a 1880, que pode ser
assumida como o apogeu da escola da exegese, em que predominaram as figuras
dos “grandes comentadores” do code napoléon; e c) a terceira fase, de 1880 a
1900, que marca a decadência da escola, embora ainda uma tentativa de sobrevi-
da a partir de uma “renovação” dos pressupostos dos quais partiam.66
mas o que aqui nos interessa diretamente é a própria doutrina defendida pela
escola da exegese, doutrina essa ironicamente colocada por BonnecaSe como o
exercício de uma verdadeira profissão de fé e que seria caracterizada por um dog-
matismo intransigente e crença de que a própria escola teria uma profunda virtu-
de de regeneração no estudo do direito civil francês.67
destarte, pontua o autor cinco traços essenciais e distintivos na caracteriza-
ção da escola da exegese, a saber:
65 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil. Trad. Jose m. cajica Jr. ciudad de méxico:
Porrua, 1944, p. 141.
66 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 36 et seq. no que se refere, ainda, ao
tema do abandono da doutrina da escola da exegese, confira outro livro, do mesmo autor, essencial a essa
temática: BonnecaSe, Julien. La pensée juridique française: de 1804 a l’heure présente, ses variations et ses
traits essentiels. Bordeaux: delmas, 1933, p. 27 et seq.
67 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 139.
1. o culto ao texto da lei;
2. o predomínio da intenção do legislador sobre o alcance literal dos textos
legais na elaboração do direito positivo;
3. uma compreensão altamente estatista do direito;
4. a contradição interna à escola entre a crença na onipotência do “legisla-
dor” e uma certa noção metafísica do direito;
5. e, finalmente, o respeito excessivo ao argumento de autoridade no que se
refere às autoridades e predecessores.68
“Las múltiples citas que acabamos de hacer demuestran que la intención del legisla-
dor atormentó a los representativos de la escuela de la exégesis, hasta el grado de ver
en ella un verdadero dogma que, a lo menos en su forma, convenía respetar de la
manera más absoluta. de aquí el caráter facticio de la doctrina de esta escuela.”79
no que se refere a essa temática tão cara a nós e que diz respeito à reconstru-
ção dos primeiros traços característicos do sentido normativo da prática legislati-
va e jurisdicional modernas, em suas primeiras experiências e em face da sofisti-
cação do próprio direito que acaba se desenvolvendo mais profundamente em
“existe um direito universal e imutável, fonte de todas as leis positivas: não é outro
senão a razão natural, visto esta governar todos os homens.”100
95 cf., assim, BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 67 et seq.
96 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 71.
97 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 71.
98 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 72.
99 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 73.
100 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 55 c/c p. 72.
os projetos anteriores pretendiam, ao se socorrer dos ideais jusracionalistas,
um retorno à natureza como forma de superar o passado e iniciar algo inteiramen-
te novo, com independência daquilo que o direito romano, infiltrado na prática
jurídica francesa, vinha impondo, e com independência dos próprios usos tradi-
cionais. Todavia, esta não era a intenção presente na comissão do code napoléon;
não se pretendia fazer do código civil francês um início absolutamente novo a
negar o passado rumo a um futuro exclusivo; antes, a própria comissão não nega-
va o socorro à aplicação do direito precedente ao code napoléon, como “costu-
mes” e direito romano, “ao menos em casos para os quais a nova legislação não
estabelecesse alguma norma”.101
a questão, muito bem colocada por BoBBio, deve ser entendida no sentido de
que foram os primeiros intérpretes do código aqueles a vislumbrar em suas dispo-
sições um “início absoluto de uma nova tradição jurídica” que viria a sepultar, em
definitivo, a tradição jurídica precedente – mas jamais como a intenção presente
na redação do próprio code.102 destarte, não nos deixa de ser de interesse a pro-
blematização em torno da compreensão que intérpretes e redatores, sobretudo
quando da superação, por parte destes, de uma leitura jusnaturalista, assumiram
em face do artigo 4º do código de 1804.
enquanto os intérpretes do código civil francês, extremamente influencia-
dos pelos princípios que passariam a delinear o positivismo jurídico, pretendiam,
em caso de silêncio ou insuficiência da lei, fazer com que os juízes encontrassem
uma regra para integrar o direito, a busca por tal regra deveria ocorrer – ainda que
sempre se esbarrando no problema da discricionariedade – no “interior do próprio
sistema legislativo”, através do uso de analogia ou dos “princípios gerais do orde-
namento jurídico” – numa assunção da completude e do “dogma da onipotência
do legislador”103 –, os redatores do code napoléon, ao fazerem inserir o artigo 4º,
pretendiam exatamente o contrário, isto é, “deixar aberta a possibilidade da livre
criação do direito por parte do juiz”.104
esta surpreendente constatação BoBBio nos apresenta a partir do discurso
realizado por PorTaLiS perante o conselho de estado francês, e segundo o qual em
nenhum momento a intenção fora oferecer ou estabelecer uma legislação que
fosse capaz de prever todos os casos possíveis, mesmo porque, segundo as próprias
palavras de PorTaLiS: “Seja lá o que se faça, as leis positivas não poderão nunca
substituir inteiramente o uso da razão natural nos negócios da vida.”105 caberia,
101 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 73.
102 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 73.
103 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 74.
104 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 75.
105 apud BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 75.
pois, ao intérprete-aplicador do direito decidir questões às quais o código não
fizesse qualquer referência, mas desde que “penetrado pelo espírito geral das leis”.
em seu discurso, PorTaLiS acaba elevando os costumes, a jurisprudência e a dou-
trina como fontes de normatividade, porque afirma que
“na falta de um texto preciso sobre cada matéria, um uso antigo, constante e bem
estabelecido, uma série não interrompida de decisões similares, uma opinião ou uma
máxima adotada, funcionam como lei. Quando não há relação nenhuma com aquilo
que está estabelecido e é conhecido, quando se trata de um fato absolutamente novo,
remonta-se aos princípios do direito natural. Pois, se a previdência dos legisladores
é limitada, a natureza é infinita e se aplica a tudo que pode interessar aos homens.”106
106 apud BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 76.
quer questões que se fizessem presentes, pelo fato de a lei, supostamente, com-
preender a disciplina de todos os casos.107
assim é que BoBBio nos leva a concluir que:
“É neste modo de entender o art. 4º que se fundou a escola dos intérpretes do código
civil, conhecida como “escola da exegese” (école de l’exégèse); esta foi acusada de
fetichismo da lei, porque considerava o código de napoleão como se tivesse sepulta-
do todo o direito precedente e contivesse em si as normas para todos os possíveis
casos futuros, e pretendia fundar a resolução de quaisquer questões na intenção do
legislador.”108
Todas essas questões que aqui reconstruímos nos servem como um ponto de
partida para a reflexão em torno do adequado sentido normativo da praxis legisla-
tiva e jurisdicional, uma vez que a tensão entre legitimidade e discricionariedade
jurisdicional sempre se colocou, de maneira central, no debate em torno da com-
preensão do direito desde os primeiros passos do constitucionalismo moderno.
destarte, nos damos com uma série de questões que merecem ser melhor
compreendidas à luz de uma teoria da democracia que seja capaz de enfrentar, e
de maneira coerente ao projeto constitucional moderno, questões referentes à dis-
tinção entre legislação e jurisdição. afinal, em que sentido podemos nos referir a
fontes de normatividade? o que significa dizer que a legislação há que ser com-
preendida como fruto de uma volonté générale, sem com isto substituir a sobera-
nia popular pelas decisões expressas de um Legislativo? como superar dificulda-
des interpretativas em sede da aplicação do direito, sem se socorrer de velhas e
perigosas figuras como “intenção do legislador” ou “fim social” em face de um
determinado texto legislativo?
107 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 77.
108 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 77.
caPíTuLo 3
enTre FormaS e normaS:
em Torno de uma reconSTrução do SenTido
normaTivo da LegiSLação e da JuriSdição no
marco do conSTiTucionaLiSmo moderno
1 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso. Trad. manuel Jiménez redondo. madrid: Trotta, 1998, p. 148.
2 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 149.
3 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 103 et seq.
que, pelo fato de os direitos subjetivos garantirem “um espaço moralmente neutro
[isso] não elide a possibilidade de um agir tanto moral quanto ético no limite, e ao
mesmo tempo, do espaço de exercício auto-constituído das liberdades jurídicas”.4
veremos que a colocação, por parte de haBermaS, da existência de um tal
paradoxo tem diretamente a ver com algo que o autor não reconhece de maneira
bem articulada, o que seja, uma justificativa normativa à forma jurídica moderna.
antes, entendemos que, realmente, há um paradoxo no que diz respeito à
legitimidade do direito, mas esse paradoxo não decorre do fato de que esses direi-
tos, referidos ao exercício de uma autonomia pública, sejam “direitos subjetivos”
a outorgar aos cidadãos uma esfera de liberdade de arbítrio. referida questão tem
a ver, como já tivemos a oportunidade de pontuar anteriormente, com o fato de o
direito ter “uma forma jurídica da qual não se pode legitimamente dispor porque,
paradoxalmente, não podemos, em uma democracia, decidir por não mais deci-
dir”.5 e esta não é uma questão meramente “funcional”, como insinua haBermaS,
mas uma questão que possui dimensão normativa que realiza uma profunda pres-
são, e que merece ser melhor colocada.
concordamos com haBermaS quando este afirma que os direitos do homem
e o princípio da soberania popular são as únicas idéias a partir das quais se pode
proceder a uma justificação racional do desenrolar do direito da modernidade,
quando ainda acrescenta o autor que tal princípio e direitos assim hão que ser
assumidos não por casualidade.6 isso assim deve ser assumido quando se percebe,
e como ainda nos alerta haBermaS, que somente essas idéias nos servem como as
bases a justificar a criação de normas jurídicas, na passagem de uma substância
normativa de um ethos ancorado em tradições religiosas e metafísicas rumo a uma
justificação pós-tradicional.7
como já pontuado, compartilhamos com haBermaS acerca dessas questões.
Porém, acreditamos que essa afirmação parece um pouco problemática ao ser
tomada conjuntamente em consideração com outra assertiva deste autor quando
propõe que a explicação acerca da forma jurídica moderna seria relativa a uma
explicação meramente funcional, mas não relativa a uma justificação.8
4 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 03.
5 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p, 02.
6 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 164
7 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 164.
8 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 177.
Se nossa intuição estiver correta, poderemos perceber que se o direito da
modernidade é um sistema de ação, isto assim o é em face, inclusive, de sua fun-
ção, qual seja, a de estabilizar, de maneira generalizada, expectativas de compor-
tamento. Todavia, a referência a textos legislativos, à coercitividade, à sua estru-
tura individualística e ao caráter institucionalizado do direito – que, em face da
moral, representa uma superação de seus déficits funcionais –, embora esteja refe-
rida a questões funcionais, não são meramente passíveis de uma explicação fun-
cional como outrora haBermaS pontuou. aqui, e no que tange a uma crítica à
estratégia de argumentação de haBermaS, centra-se a concordância, entre mim e
o Professor manueL JimÉnez redondo.9
antes de mais nada, cabe-nos esclarecer uma questão. Somente em uma
democracia constitucional pode ser gerado um direito legítimo. e nisto estamos
de pleno acordo com haBermaS. Somente uma democracia pode, ao se justificar
em normas capazes de garantirem as condições de geração legítima do próprio
direito, isto é, ao se justificar constitucionalmente, permitir que normas jurídicas,
com a abertura à participação de todos, sejam construídas. isso implica reconhe-
cer que somente através de uma compreensão procedimental da democracia é pos-
sível articular de maneira construtiva a relação entre direitos fundamentais e
soberania popular. Somente através de procedimentos públicos e institucionali-
zados, a reconhecerem e garantirem iguais direitos a todos os concidadãos de par-
ticipação política, é possível gerar um direito que seja reconhecido como legíti-
mo. e por procedimentos públicos e institucionalizados referimo-nos não somen-
te ao processo legislativo, mas também ao processo jurisdicional capaz de, em sede
de aplicação normativa, reconhecer direitos vulnerados e deveres não cumpridos,
sem o qual não poderíamos pretender afirmar que a constituição garantiria efeti-
vamente, e com independência das mais variadas e múltiplas motivações indivi-
duais, as condições de produção legítima do próprio direito.
a tentativa de justificar o direito em um direito natural realiza, como nos
lembra haBermaS, uma duplicação do conceito de direito que não se sustenta
mais nem sociologicamente, nem normativamente.10 e isso tem a ver com o fato
de, em um nível pós-metafísico de fundamentação, termos que assumir como des-
lindadas de um ethos determinado, e supostamente determinante, tanto normas
jurídicas, como também normas morais que, assim, devem ser encaradas, de uma
só vez, como duas classes de normas distintas, ainda que capazes de se comple-
mentarem mutuamente. e o autor procede a esta explicitação para nos lembrar
11 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 170.
12 assim, a partir de haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de dere-
cho en términos de teoría del discurso, cit., p. 170.
13 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 171.
14 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 171.
15 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 172.
do de que os direitos humanos não podem ser assumidos como simples cópias de
direitos moralmente referidos.
isso porque, como sustenta o autor, com o que concordamos, as normas
gerais de ação se ramificam tanto em normas morais, como em normas jurídicas,
como classes de normas independentes, porém, complementares. e, como normas
gerais de ação, cobrariam um sentido de autonomia capaz de suficientemente jus-
tificá-las, não obstante as distinções que merecem ser pontuadas. assim é que
haBermaS propõe um princípio do discurso, “d”, neutro em face do direito e da
moral, isto é, como a referência a um conceito de autonomia suficientemente abs-
trato e capaz de satisfazer às exigências normativas de justificação das normas de
ação, independentemente da juridicidade ou moralidade das mesmas. este princí-
pio “d” enunciaria que “válidas são aquelas normas (e somente aquelas normas) às
quais todos que por ela possam ver-se afetados pudessem prestar seu assentimen-
to como participantes em discursos racionais”.16
nos torna claro que a referência à participação em discursos racionais se faz
indispensável porque o que está em jogo não é um assentimento em termos de
concordância com o conteúdo normativo de determinada regra, mas, sim, o assen-
timento tomado em consideração em face do reconhecimento de possibilidades
comunicativas compartilhadas intersubjetivamente e capazes de se fazerem valer
quando de um discurso de justificação normativa – trata-se de aceitabilidade e não
de mera aceitação. nitidamente que isso, no que se refere ao direito, significa que
não é qualquer decisão legislativa capaz de ser assumida como legítima; antes,
somente aquelas decisões que não tolhem essas mesmas possibilidades comunica-
tivas, de todos, o que obviamente inclui uma minoria concretamente pontuada,
podem ser assumidas como válidas.
Posto isso, haBermaS mesmo esclarece que, embora direito e moral possam
ser reconduzidos a um tal princípio do discurso, cabe marcar que direito e moral
se diferenciam, inicialmente, porque enquanto a moral se cristaliza em uma forma
de saber cultural, enquanto sistema simbólico, o direito, uma vez que sistema de
ação, é capaz de cobrar obrigatoriedade de suas normas em um plano institucio-
nal.17 ou seja, e como veremos melhor adiante, o direito supera os déficits fun-
cionais que o sistema da moral apresenta.
cabe salientar ainda, que uma vez neutro em face da moral e do direito, o
princípio do discurso se especializa no princípio moral e no princípio democrático:
16 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 172.
17 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 172.
“Pues el principio moral sólo resulta de una especificación del principio general del
discurso para aquellas normas de acción que sólo pueden justificarse desde el punto
de vista de si se tienen en cuenta por igual los interesses de todos. el principio demo-
crático resulta de una correspondiente especificación del principio ‘d’ o ‘princípio de
discurso’ para aquellas normas de acción que se presentan en forma de derecho y que
pueden justificarse con ayuda de razones pragmáticas, de razones ético-políticas y de
razones morales, y no sólo con ayuda de razones morales.”18
isso significa dizer que as normas morais somente se justificam enquanto tais,
na medida em que se refiram a uma tomada de decisão justa, isto é, de uma deci-
são capaz de levar em consideração, e em igual medida, os interesses dos afetados.
isso nos cobra o “princípio moral” enquanto especialização do princípio “d”. Por
sua vez, o “princípio democrático” permite a justificação de suas normas não
somente em razões ou argumentos morais, mas inclusive em razões éticas – refe-
ridas ao bom, ou interessante/preferível para um particular –, e razões pragmatis-
tas – referidas a meios para se alcançar uma determinada finalidade eleita. o que
de tudo isso se pode apreender, é que o direito, em razão de sua justificação em
termos do princípio democrático, somente permite uma articulação dessas mais
variadas razões morais, éticas e pragmatistas em sede de sua geração normativa
através da institucionalização do procedimento de sua própria criação. e assim se
dá através do reconhecimento de normas constitucionais capazes de garantir, em
uma prática jurídica, a geração legítima do próprio direito.
nas palavras de haBermaS, isso implica afirmar que o princípio democrático
– uma vez que dotado da finalidade de fixar um procedimento de produção legí-
tima das normas19 – vem a explicar o sentido realizativo do que significa preten-
der nos enxergarmos, uma vez que membros de uma determinada comunidade
jurídica, como simultaneamente os co-destinatários e co-autores das normas jurí-
dicas, em uma prática, portanto, de autodeterminação política e normativa.
Por essa razão é que haBermaS é explícito ao afirmar que o princípio demo-
crático se move em um nível distinto do princípio moral – exatamente porque o
princípio democrático se articula em um nível de abertura discursiva a uma sorte
variada de argumentos que não somente referidos moralmente; e é exatamente
isso o que viria a garantir a construção e reconhecimento de normas gerais, abs-
tratas, a todos vinculantes, além de capazes de garantir sua eficácia coercitivamen-
te. isso porque o princípio moral pode ser manejado como uma norma de argu-
mentação moral, isto é, como princípio da universalização capaz de cobrar, moral-
18 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 173.
19 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 175.
mente, que se tomem decisões no igual interesse de todos, isto é, do universo dos
afetados pela decisão. Por sua vez, o princípio democrático não pode ser maneja-
do, ao menos da maneira como ocorre com o princípio moral, como uma norma
de argumentação jurídica: enquanto na moral somente argumentos morais são
normativamente determinantes da justificação – o que permite, inclusive, tomar
também como justas todas as decisões concretas que possam ser referidas como
decisões morais –, por outro lado, no que tange ao direito, vimos que argumentos
morais, éticos e pragmatistas são concorrentes em sede de justificação da norma
jurídica, e a finalidade do princípio democrático não é servir como regra de argu-
mentação jurídica, mas fixar procedimentos capazes de garantir tomadas de deci-
sões legítimas em sede de justificação jurídico-normativa.
esta é a razão pela qual haBermaS articula o sentido de que enquanto o prin-
cípio moral vem a operar na estrutura interna de uma argumentação moral – isto
é, como algo capaz de simultaneamente assumir um sentido em sede de aplicação
moral-normativa, como princípio da universalização –, o princípio democrático
refere-se a um plano de institucionalização externa referente a ações de participa-
ção na formação discursiva da opinião e vontade política20 – participação essa, por
sua vez, capaz de ser juridicamente garantidas por ser o direito um sistema de ação.
a distinção, portanto, entre direito e moral não é capaz de se justificar em
uma diferenciação em termos de “conteúdos normativos” que supostamente
seriam exclusivos de um ou de outro, nem em supostas características “públicas”,
tocantes ao direito, e “privadas”, referentes à moral: mesmo porque aspectos
morais são capazes de assumirem-se, em uma concreta matéria carente de regula-
mentação, como determinantes na construção e formação da vontade de um
“legislador político”.21
assim é que haBermaS procede à explicação de que a complementaridade
entre direito e moral acaba sendo devedora de uma compreensão adequada em
torno da forma jurídica moderna. e assim procede haBermaS afirmando que a
explicação em torno da forma jurídica tratar-se-ia tão-somente de uma explicação
funcional, incapaz, todavia, de pretender uma justificação normativa.22
entendemos, todavia, que essa questão deve ser revisitada, e isso já afirmáva-
mos desde o nosso Teoria geral do direito moderno, quando defendíamos a posi-
20 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 176.
21 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 175.
22 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 177.
ção de que a forma jurídica moderna se construiu normativa e sociologicamente
alicerçada nos princípios de liberdade e igualdade.23
enquanto a moral, como sistema normativo, apresenta déficits cognitivos,
motivacionais, conseqüentemente um déficit de eficácia, além de outro operacio-
nal,24 o direito da modernidade, supera esses déficits, porém, não se fazendo
“moralmente neutro”.25
e a superação desses déficits do sistema da moral está diretamente conecta-
da à questão da forma jurídica que, segundo haBermaS, somente poderia ser pas-
sível de uma explicação funcional. destarte, o fato de o direito moderno ser “posi-
tivo”, coercitivo e estruturado individualisticamente,26 nas palavras do próprio
autor em questão, não teria nada a ver com uma justificação normativa, mas tão-
somente com uma questão contingente, porque meramente funcional. Todavia,
haBermaS mesmo não leva a sério uma outra afirmação colocada logo em seguida
àquelas características do direito moderno, qual seja, o fato de ele ter “como alvo
a garantia de liberdades subjetivas”.27
retomemos o tema da forma jurídica moderna. Partindo do pressuposto que
o direito moderno se refere, do ponto de vista de sua forma, à positividade, à coer-
citividade e a critérios individuais – e não mais familiares, grupais ou tribais – de
imputação normativa, isto se dá na exata medida em que se tomam em considera-
ção os déficits da moral. além dessas características do direito da modernidade,
poderíamos, sem sombra de dúvidas, acrescentar ainda a dimensão institucional
indissociável a esse direito. com isso, nossa explicação far-se-á mais completa e
coerente.
Se é verdade que as normas morais, dispersas como um saber cultural, repre-
sentam, aos sujeitos concretos que pretendem uma solução moral, uma difícil,
porém não instransponível, barreira a ser superada em termos reconstrutivos e
interpretativos, não só das circunstâncias do caso concreto, mas do próprio senti-
do normativo desses princípios morais, o direito vem a superar esse déficit cogni-
tivo em razão de sua forma “positiva”. a “positividade” do direito referir-se-ia,
sobretudo, ao fato de as normas jurídicas serem fruto de um processo legislativo,
23 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 105.
24 Sobre essas questões cf.: haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático
de derecho en términos de teoría del discurso, cit., p. 180 et seq.; chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia
do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e habermas, cit., p. 158 et seq.
25 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 651.
26 haBermaS, Jürgen. o estado democrático de direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditó-
rios? era das transições. Trad. Flávio Siebeneichler. rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 153.
27 haBermaS, Jürgen. o estado democrático de direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditó-
rios?, cit., p. 153.
e sancionadas pelo estado, tendo “como alvo a garantia de liberdades subjetivas”.
Sabemos, com o próprio haBermaS, que o direito não se esgota nessas produções
legislativas de normas, e também podemos interpretar tal “positividade”, a uma
melhor luz, como a referência interna que o direito da modernidade tem a textos
legislativos. embora o direito não se esgote em um conjunto ou universo de diplo-
mas normativos, textuais e frutos de uma decisão de um “legislador político”, por
outro lado é inegável o reconhecimento de que o direito da modernidade se cons-
truiu, e se reconstrói, atrelado à idéia de “positividade”, isto é, à referência inter-
pretativa a textos normativos. aliás, é, inclusive, mas não só, a referência a esses
textos normativos que permite ao direito, mediante sua forma jurídica, reduzir
aquela indeterminação cognitiva referida à moral.
Por outro lado, o fato de o direito moderno estar formalmente estruturado
individualisticamente significa, antes de mais nada, o reconhecimento de todos os
indivíduos como sujeitos de direito, isto é, como referenciais de imputação de
direitos e deveres.28 e o reconhecimento dos indivíduos em seus anonimatos, inde-
pendentemente de traços biográficos particulares – que, todavia, seriam indispen-
sáveis a uma decisão moral –, se refere ao fato de que esses mesmos indivíduos são
destinatários de normas jurídicas pelo “simples” fato de poderem ser interpretados
e assumidos como membros de uma determinada comunidade juridicamente cons-
tituída.29 É exatamente esse traço formal do direito que o permite superar, através
de sua forma moderna, o déficit motivacional da moral, uma vez que o direito, ao
permitir uma generalização de normas em vistas a uma individualização em termos
independentes das biografias de cada um, não faz depender a aplicação de suas nor-
mas aos motivos e intenções particulares de cada membro da referida comunidade.
Por sua vez, o fato de a forma jurídica moderna ter como característica o ca-
ráter cogente, antes de mais nada se deve ao fato de que o direito da modernidade,
com independência das vontades dos particulares afetados, faz valer suas normas.
isso significa dizer que a superação do déficit de eficácia, capaz de ser atribuído à
moral, juridicamente se supera em razão deste traço indispensável da forma jurí-
dica moderna, qual seja, seu caráter cogente. assim, o direito não faz depender o
cumprimento, ou a execução, de suas normas da convergência das vontades dos
afetados por estas.
e, finalmente, o caráter institucional da forma jurídica, co-dependente de
todos os demais, implica dizer que a superação daquele déficit operacional da moral
somente se pode dar em razão da organização institucional à qual o direito está for-
28 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 143 et seq.
29 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 178.
malmente atrelado na modernidade. isso implica dizer que é todo o aparato institu-
cional do direito que lhe permite, e lhe garante, um caráter “positivo”, cogente e de
estruturação individualística. Sejam instituições legislativas, jurisdicionais ou admi-
nistrativas, o direito somente se pode fazer valer e se auto-constituir na dependên-
cia de meios institucionais que criam, garantem e executam suas próprias normas.
Porém, para haBermaS, as questões referentes à forma jurídica moderna
somente poderiam ser explicadas funcionalmente, embora não justificadas norma-
tivamente. a forma jurídica moderna teria que se contentar com uma explicação
acerca de sua contingência, algo “que é” porque “foi assim”.
Queremos, todavia, pontuar uma questão que mais adiante será resgatada. na
medida em que a forma jurídica teria que ver somente com questões meramente
funcionais, cabe-nos ressaltar que isso estaria diretamente conectado ao problema
da função do direito da modernidade. Sem mais delongas, podemos explicitar que
a função do direito é a de estabilizar, de maneira generalizada, expectativas de
comportamento. ainda gostaríamos de insistir em algo que anteriormente tam-
bém tivemos a oportunidade de afirmar, o que seja, o fato de que o “direito
somente é capaz de cumprir sua função de estabilização de expectativas de com-
portamento se também for capaz de manter uma conexão interna com aquela
força sócio-integradora, da qual é dotada a ação comunicativa, porque gerada
numa intersubjetividade”.30
ou seja, o direito somente é capaz de cumprir sua função de estabilizar
expectativas de comportamento, generalizadamente, em uma democracia. não há
que se falar em uma tal estabilização generalizada de comportamentos fora da, ou
de maneira alheia à, idéia de constitucionalismo moderno. isso já insinua que a
questão da forma jurídica não pode ser uma mera questão funcional.
e isso tem diretamente a ver com a concepção de uma auto-legislação por
parte dos cidadãos de uma determinada comunidade jurídica, que, assim, somente
poderia, conforme haBermaS, ser compreendida a partir do princípio democrático,
como acima já explicitado, e resultante de uma especialização do princípio do dis-
curso. Tal especialização do princípio do discurso em face do direito, como princí-
pio democrático, seria decorrente do entrelaçamento entre o princípio “d” com a
idéia de forma jurídica que acima acabamos de expor – esse entrelaçamento, por-
tanto, teria que ver com a própria institucionalização jurídica do princípio do dis-
curso.31 isso significa dizer que o princípio de que “válidas são aquelas normas (e
somente aquelas normas) às quais todos que por ela possam ver-se afetados pudes-
30 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 78.
31 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 187.
sem prestar seu assentimento como participantes em discursos racionais”, ou seja,
o princípio do discurso, quando de seu “entrelaçamento” com a forma jurídica
moderna e com sua decorrente dimensão institucional, implica um princípio
democrático, isto é, implica dizer que somente em uma democracia pode o direito
da modernidade ser legitimamente produzido. assim, é que haBermaS propõe que:
32 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 188.
ficado, ou desenvolvido um direito capaz de ser interpretado como direito da
modernidade. exatamente porque partem de premissas e práticas violentas, anti-
modernas; e pretender atribuir ao pretenso sistema normativo uma “forma jurídi-
ca moderna” é um contra-senso perigosíssimo. e tudo isto porque, uma vez mais,
um “direito” assim, não é direito, isso é, não é direito moderno, não é o direito
que a modernidade exige para si própria. e essa exigência se refere também a
questões da forma jurídica – a modernidade exige do direito o cumprimento de
sua função de estabilização generalizada de expectativas de comportamento.
Somente uma leitura principiológica e normativa do direito, como proposta e
pretendida por haBermaS, é capaz de nos conduzir à afirmação de que pretender
um “direito” nazista é um absurdo. não podemos vislumbrar, em um prática que
se pretende normativa – mas não o é –, porém, violentada em níveis altíssimos por
diretrizes e determinação políticas ao gosto de um código de conveniência/incon-
veniência, o reconhecimento e a praxis que o direito exige. nem sequer há que se
falar em uma “forma jurídica”: uma prática política que se infiltra tão fortemente
em questões pretensamente normativas desnatura a própria forma do direito
moderno. não se pode falar em “estabilização generalizada de expectativas de com-
portamento” em um tal contexto; a estabilização de expectativas, da maneira leva-
da adiante pelo direito, pressupõe sua compreensão como um sistema idealmente
coerente de princípios, e jamais um desordenado conjunto de decisões políticas
violentamente impostas quando convenientes. Porque em face desse quadro, não
há “estabilização” do que quer que seja, muito menos o respeito à força normativa
que se desnatura em razão da violência da imposição de diretrizes políticas.
Somente uma prática democrática é capaz de sustentar a forma jurídica moder-
na. melhor dizendo, somente em uma democracia se pode dizer que há forma jurí-
dica moderna. e isso porque, uma vez mais como pressuposto pela Teoria discursiva
do direito, somente há direito da modernidade em uma democracia radical.
além disso, fica truncada, em face de sua própria proposta teórica, a afirma-
ção do autor no sentido de que a forma jurídica seria capaz de uma explicação tão-
somente funcional, porém, não de uma justificação normativa. Sobretudo quando
haBermaS, pretendendo explicar o “entrelaçamento” entre princípio do discurso
e forma jurídica, se refere à “gênese lógica dos direitos”, sem os quais não se pode-
ria pretender uma legítima auto-legislação cidadã.33
assim, haBermaS logo introduz qual seria a primeira dessas categorias de
direitos fundamentais, sem os quais não se poderia construir um direito moderno
válido, referindo-se a
33 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 187. cf. as indispensáveis conclusões do Professor manueL JimÉnez redondo,
supra, estudo Prévio.
“derechos fundamentales que resultan del desarrollo y configuración políticamen-
te autónomos del derecho al mayor grado posible de iguales libertades subjetivas de
acción.”34
“Sólo con ayuda del principio del discurso muéstrase que cualquiera tiene derecho a
la mayor medida posible de iguales libertades subjetivas de acción. Sólo son legítimas
aquellas regulaciones que satisfagan a esta condición de la compatibilidad de los
derechos de cada uno con iguales derechos de todos.”35
devemos ressaltar uma questão: dizer que são legítimas aquelas regulamen-
tações que satisfaçam a compatibilidade dos direitos de um com iguais direitos de
todos, não é o mesmo que afirmar que todos temos direito a iguais liberdades sub-
jetivas na maior medida possível. não, ao menos, necessariamente.
como vimos, o que, às vezes, haBermaS não consegue expressar bem é o sen-
tido subjacente à sua própria teoria de que a forma jurídica moderna somente se
pode vislumbrar como presa ao princípio do discurso. isto é, não há forma jurídi-
ca moderna sem democracia. a maneira como haBermaS coloca a “forma jurídi-
ca” em face do “princípio do discurso” não nos permite compreender muito bem
o que sua própria teoria nos exige, o que seja, um adequado enfoque da tensão
entre faticidade e validade. Quando diz que o conceito de “forma jurídica” permi-
te estabilizar expectativas de comportamento do “modo indicado”, este “modo in-
dicado” refere-se interna e intimamente ao princípio do discurso, embora outras
interpretações pudessem concluir no sentido de que poderíamos, a despeito de
pretensões de positividade, nos topar com a forma jurídica fora de contextos
democráticos, embora esta não seja uma melhor interpretação daquele trecho à
luz de todo o contexto da teoria.
o que aqui reforçamos é que somente podemos nos topar com a forma jurídi-
ca moderna, e suas co-implicações, em uma democracia. e isso porque não pode-
mos dissociar, sem maiores traumas, questões formais de questões normativas. Se
houve pretensões de coercibilidade em regimes como o nazista, que se valeram
parasitária e travestidamente de uma forma jurídica, não podemos, entretanto,
sequer sustentar a verificação ali da idéia de “positividade” atrelada ao direito da
34 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 188.
35 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 189.
modernidade. como desdobramentos, não podemos funcionalmente afirmar que
houvera a estabilização generalizada de expectativas de comportamento.
o fato de haver pretensões de juridicidade, pretensões de “positividade”, não
implica, por si, o reconhecimento da “positividade” que o direito da modernidade
está a exigir, enquanto referência normativa a textos legislativos legítimos. a
questão é que a forma jurídica moderna somente pode ser adequadamente com-
preendida quando se introjeta, em sua compreensão,e em sua justificação, a indis-
sociabilidade de questões normativas. Por essa razão é que outrora afirmamos que:
“aqui está o paradoxo do direito: o fato de que sua legitimidade depende de sua
forma, de uma forma jurídica que, na modernidade, se construiu normativa e socio-
logicamente alicerçada nos princípios de igualdade e liberdade, num processo de
diferenciação funcional. embora tais princípios de liberdade e igualdade sejam prin-
cípios normativos, não se pode pretender fundá-los para além do próprio direito, isto
é, para além de sua forma jurídica moderna, razão pela qual, no que tange ao direito,
somente podemos, na modernidade, falar em tal forma, o que implica também dizer
que tais princípios sejam assumidos pela comunidade jurídica ainda que numa deci-
são simbólica de uma assembléia constituinte que, paradoxalmente, tem que deci-
dir por tal juridicidade (forma jurídica) quando (ou porque) não poderia de outra
forma decidir legitimamente.”36
36 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 105.
37 haBermaS, Jürgen. o estado democrático de direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditó-
rios?, cit., p. 153.
não nos resulta coerente a afirmação de que o alvo do direito seria a garan-
tia de liberdades subjetivas, liberdades estas que devem ser garantidas – em face
de um direito a isso – na maior medida possível, e a conclusão de que a forma
jurídica moderna seria passível de uma explicação meramente funcional.
verdade é que o direito, em razão de sua forma, supera déficits funcionais de
uma moral pós-convencional; mas diferente é a questão em torno da qual se pre-
tende afirmar que essa forma jurídica mesma não seria justificada, ou justificá-
vel, normativamente.
como coloca JimÉnez redondo, o direito a um reconhecimento a todos na
maior medida, ou grau possível, de liberdades subjetivas se perfaz como uma exi-
gência normativa genuína, e que tem implicações normativas importantes na jus-
tificação do direito e em sua aplicação.
em face do processo de modernização da Sociedade, que co-implica a dessa-
cralização e a descentração dessa Sociedade, bem como um processo de diferen-
ciação funcional dos sistemas, de assunção de que as construções dessa Sociedade
se dão mediadas lingüisticamente, além de um processo de especialização dos juí-
zos de racionalidade,38 podemos dizer que a razão subjetiva moderna, em razão de
toda libertação modernamente conquistada, se vislumbra como “absoluta”, isso é,
como encontrando limite tão-somente na igual liberdade dos demais. isso impli-
ca dizer que somente através da mediação lingüística é possível a compatibiliza-
ção dessas liberdades. mas, vejamos que a própria mediação lingüística é assumi-
da como medium para a viabilização dessas mesmas liberdades. isso significa dizer
que a estabilização e a generalização de expectativas de comportamento, na
modernidade, e pelas questões funcionais já elucidadas em face da moral, somen-
te se podem dar através da forma jurídica. inclusive porque somente essa forma
jurídica é capaz de garantir, funcionalmente, não só tomadas de decisões coletiva-
mente vinculantes, como também a estabilização generalizada de expectativas de
comportamentos. e isso somente em uma democracia.
Somente através da forma jurídica é que podemos afirmar que se torna, na
Sociedade moderna, possível – e inclusive de um ponto de vista de eficácia – a
compatibilização recíproca do arbítrio de todos mediante leis gerais. disso pode-
mos tirar várias conseqüências. a primeira é que, modernamente, somos livres, e
que temos como limite à nossa liberdade a liberdade do outro e de todos. isso
implica, simultaneamente, a idéia de que a constituição de nossa liberdade se dá
na tomada em consideração da liberdade dos demais de uma maneira generaliza-
da. isso significa dizer que a compatibilização de nossas liberdades somente se
pode dar mediada lingüisticamente; e a forma jurídica moderna é que torna tal
38 chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen,
Luhmann e habermas, cit., p. 187.
relação de reciprocidade operacionalmente possível. a segunda conseqüência, e
devedora de uma compreensão kantiana, é que, à medida que somos livres,
somente se justificam as limitações à nossa liberdade que se refiram restritamen-
te ao imperativo de compatibilização das liberdades de todos. isso implica dizer
que seria ilegítimo o não-reconhecimento de todos os concidadãos como dotados
do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas. e isso parece
que haBermaS entende, embora não articule de maneira muito adequada.
com isso se poder dizer que a forma jurídica moderna é passível, sim, de uma
justificação normativa em termos de liberdade e igualdade. Significa dizer que a
forma jurídica é normativamente indispensável por ser o único meio, na mo-
dernidade, através do qual é possível a construção lingüisticamente mediada de
normas jurídicas capazes de garantir a compatibilização e o reconhecimento de
liberdades a todos, e, com isso, cumprir sua função de estabilizar expectativas de
comportamento. enfim, por ser o único meio capaz de garantir o reconhecimen-
to e o exercício da própria liberdade.
o fato de a complementaridade entre direito e moral ser uma questão passí-
vel de uma explicação funcional, não decorre, todavia, o fato de as diferenças
entre entre direito e moral serem meramente funcionais, muito menos que a
forma jurídica seja dotada de uma explicação, justificação, tão-somente funcional
e não normativa a exigir sua indisponibilidade.
isso é o que nos obriga a reconhecer que a assembléia constituinte,39 ainda
que em uma decisão simbólica, tenha que, em um duplo sentido, decidir pela
forma jurídica (através e sobre) quando, ou exatamente porque, de outra forma
não poderia decidir. a pressão normativa aqui presente se refere ao fato de que
somente a forma jurídica moderna é capaz de servir, legitimamente, à produção
de normas jurídicas, isto é, de permitir, em face da exigência normativa referente
ao direito ao reconhecimento na maior medida, ou grau, possível de iguais liber-
dades subjetivas a todos, que nos enxerguemos simultaneamente como destinatá-
rios e co-autores do direito, isto é, como auto-legisladores.
nessa ordem das coisas, é que outrora afirmamos que:
39 Por uma releitura de traços do Poder constituinte em face da complexidade do direito moderno, cf.: coSTa,
alexandre Bernardino. os desafios postos ao poder constituinte no estado democrático de direito. 2005.
Tese de doutorado. Programa de pós-graduação em direito da universidade Federal de minas gerais, 2005,
Belo horizonte.
normativa de se assumir os envolvidos em cada caso concreto como membros de uma
comunidade política que luta e os reconhece como livres e iguais.”40
40 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 219.
41 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 649.
procedimento de produção legítima das normas, permite uma melhor compreen-
são e assunção de uma prática, capazes de articular legitimamente a idéia de direi-
tos fundamentais e a idéia de soberania popular.
realmente, e em razão de questões acima pontuadas, somente um direito
fruto de uma auto-legislação pode ser assumido como legítimo na modernidade.
e isso se deve ao fato de que a própria idéia de liberdade moderna não há que ser
violentamente limitada desde fora, mas sim desenvolver sua auto-constituição na
compatibilização em face da liberdade dos demais através de uma mediação lin-
güística. e somente uma mediação lingüística capaz de garantir a todos os afeta-
dos iguais possibilidades de participação nesse processo de institucionalização de
normas jurídicas de ação, pode ser assumida como exigindo condições comunica-
tivas de produção de legitimidade.
isso força, portanto, a compreender que o processo de justificação, ou gera-
ção, de normas do direito da modernidade, exige uma compreensão mais sofisti-
cada da idéia de soberania popular que aquela apresentada e assumida na praxis
jurídico-política em face da constituição francesa de 1791, e como acima por nós
reconstruída a partir de carrÉ de maLBerg. a assunção da legitimidade de uma
determinada criação normativa não pode ser simplesmente explicada através da
referência ao Legislativo como representante da vontade geral. isto é, se a lei é
expressão da vontade geral, isso jamais pode significar uma redução da expressão
dessa vontade geral àquilo que outrora o Legislativo, uma vez que corpo de repre-
sentantes da comunidade política, decida. e isso porque não podemos reduzir a
compreensão de soberania popular a um procedimento, ou ao menos, a um mero
“procedimento formal” como pontuado por carrÉ de maLBerg. a questão que
está em jogo é que a soberania popular deve ser compreendida em termos de um
poder comunicativo, isto é, no sentido da criação de forças políticas capazes de
legitimamente garantirem, sob a óptica de um discurso jurídico de justificação –
e, portanto, institucionalizado –, uma decisão que leve em consideração a força
dos melhores argumentos. vejamos, agora, que essa decisão não é capaz de ser
reduzida à vontade do Legislativo somente, ou ao menos não deveria ser, porque
nas lutas políticas cobram enfrentamento discursivo-racional argumentos coloca-
dos pelos próprios cidadãos, capazes de se organizarem e de se associarem politi-
camente, no exercício de suas liberdades políticas.
com isso, o que já se desponta é que uma prática democrática implica, real-
mente, que a legislação seja expressão de uma vontade geral. mas somente a ins-
titucionalização de procedimentos de criação normativa capazes de garantir a
abertura desse mesmo processo a pressões políticas decorrentes da mobilização da
opinião pública levadas adiante pela sociedade civil, bem como a assunção séria,
por parte desse mesmo processo institucionalizado, desses argumentos publica-
mente debatidos, pode ser efetivamente enfrentada e compreendida como uma
prática democrática capaz de conferir, assim, legitimidade à própria criação de
normas jurídicas. isso porque os cidadãos têm garantidos direitos – e, portanto,
possibilidades – de participar no debate público de questões que se colocam, ou se
fazem por eles colocar, publicamente. aliás, é a garantia de uma tal “autonomia
pública”, como defendida por haBermaS, o que torna capaz e possível vislumbrar-
mos os concidadãos não como meros destinatários das normas jurídicas, mas como
seus co-autores, uma vez que o direito os garante, de maneira recíproca e igual,
direitos que os possibilitam participar e tomar posições argumentativamente em
face de questões politicamente relevantes. e, assim, o próprio direito, no reconhe-
cimento dessas liberdades comunicativas, acaba por garantir a todos iguais possi-
bilidades de participação no processo de construção do direito.
não devemos esquecer, todavia, que o sentido do exercício dessas liberdades
comunicativas, bem como o sentido do próprio processo institucionalizado de
criação normativa, somente se justifica à luz da exigência do reconhecimento, no
maior grau ou medida possível, de iguais liberdades subjetivas a todos.
isso significa dizer que o reconhecimento da própria auto-legislação pode ser
reconstruído em termos daquela compatibilização de liberdades subjetivas que
acima afirmamos. É a exigência do reconhecimento de iguais liberdades subjetivas
a todos na maior medida possível, o que justifica dizer que o direito moderno, em
face de seu próprio caráter moderno, “de uma forma jurídica da qual não se pode
legitimamente dispor”, implica, paradoxalmente, o fato de que em uma democra-
cia as decisões podem ser válida ou legitimamente tomadas na exata medida em
que “não se decida por não mais decidir”.42
e isso implica algo mais profundo, o que seja, a indisponibilidade política por
parte dos próprios afetados de suas liberdades comunicativas como corolário da
indisponibilidade de suas liberdades subjetivas reconhecidas na maior medida
possível. Somente assim se faz possível compreender que a criação de uma lei que
fira direitos fundamentais de uma minoria é capaz de ser entendida como ilegíti-
ma, embora capaz de ser discursivamente referida a um processo argumentativa-
mente aberto à participação de todos os concidadãos. Somente assim se articula,
adequadamente, a idéia de soberania popular à idéia de direitos fundamentais,
quando se reconhece a impossibilidade de geração de legitimidade apartada do
reconhecimento de liberdades comunicativas e liberdades subjetivas no maior
grau possível. isso implica, diretamente, no reconhecimento e na construção de
uma Sociedade de homens livres e iguais.
isto significa dizer que o direito seria o meio através do qual o poder comu-
nicativo se transforma, se traduz ou se converte em poder administrativo, na
42 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 02.
medida em que, mediante a geração legítima, garantida normativamente, de um
poder comunicativo, é que se autoriza, validamente, o exercício de um determi-
nado poder instrumentalizado. essa conexão entre o poder comunicativo – possí-
vel em razão do reconhecimento de uma autonomia pública e das liberdades
comunicativas que a garantem – e o poder administrativo está diretamente ligada
à questão funcional de superação, por parte do direito, do déficit de eficácia do
sistema da moral, uma vez que aquela conexão vem, portanto, conferir legitimi-
dade ao uso de um poder que, em realizando coerção, não se justifica em si mesmo
como violência, mas antes mantém-se “regenerado” em razão da fonte de legiti-
midade representada pelo poder comunicativo que o justifica.
o mesmo, por seu turno, se aplica no que tange à superação do déficit moti-
vacional. a aplicação do direito somente pode ser considerada legítima na medi-
da em que seja capaz de levar adiante esse projeto de construção de uma Sociedade
de homens livres e iguais. isso exige, por um lado, a abertura discursiva em pro-
cessos institucionalizados de aplicação normativa da participação argumentativa
de todos aqueles que por uma decisão jurisdicional possam ver-se afetados e, por
outro lado, um juízo de correção normativa orientado ao sentido do que significa,
em sede de aplicação normativa do direito à maior medida, ou grau, de iguais
liberdades subjetivas a todos.
43 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 651.
44 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 179.
45 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 184.
te autonomia, se articula em um tal nível de abstração capaz de garantir a sua neu-
tralidade moral – e jurídica –, isso não significa que a moral não pressione o
direito desde a óptica de sua justificação. o fato de a justificação do direito cons-
tantemente se fazer aberta a argumentos éticos e pragmatistas, por outro lado
implica sempre o risco de se assimilar a validade do direito a uma ordem concre-
ta de valores, a uma eticidade concreta, que pode levar à destruição da própria
forma jurídica46 – pensemos no nazismo, por exemplo.
a forma jurídica moderna somente se desenvolve e se mantém como tal quan-
do a própria geração do direito seja sempre alimentada por razões morais em seu
discurso de justificação normativa, não se perdendo, assim, em uma simples dispu-
ta e imposição de um ethos. o fato de conteúdos morais serem juridicamente irra-
diados pelo direito, não transforma a justificação deste em uma justificação moral.
vimos, muito bem, o que o princípio democrático representa, inclusive, em face da
dimensão institucionalizada do direito. mas, como a prática legislativa do direito
se desnatura quando a discussão acaba se transformando em uma disputa pela
imposição de um ethos sobre todos, em razão da própria destruição da forma jurí-
dica – e todas as questões normativas co-implicadas –, nos torna claro que a não-
neutralidade moral do direito em razão de sua abertura a razões morais quando do
discurso de justificação da norma, cobra do direito não o reconhecimento de direi-
tos subjetivos no igual interesse de todos, mas, antes, cobra, legislativamente, o
reconhecimento, na maior medida possível, de iguais liberdades a todos.
e se se trata de uma exigência à maior medida, ou ao maior grau, de iguais
liberdades a todos, isso assim se dá em razão de que argumentos éticos e pragma-
tistas são co-determinantes de decisões legislativas coletivamente vinculantes. e
isso em razão de todas as razões sociológicas, e normativas, capazes de serem
remontadas ao caráter moderno da modernidade. o que deve ser colocado em rele-
vo é que a efetiva compatibilização das liberdades, através de um exercício auto-
legislador, somente se pode dar na modernidade através da forma jurídica moder-
na, e isso já representa, pois, a impossibilidade de se buscar tal compatibilização em
termos morais, de somente se tomar decisões coletivamente vinculantes que sejam
justas, isto é, que satisfaçam, em igualdade, o interesse de todos os afetados.
Por outro lado, se tal pretensão moral se faz generalizadamente impossibilitada
pelos meios funcionais do direito, isso não nega, por seu turno, essa pressão moral
que ao direito é colocada desde uma óptica de sua justificação. válidas, assim, são
somente as normas jurídicas construídas em discursos racionais e que também
tomem em consideração argumentos éticos e pragmatistas, mas na medida em que:
a) se esforcem a reconhecer, no maior grau possível, iguais liberdades a todos; e b)
46 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 220.
simultaneamente não desnaturem a própria forma jurídica moderna. isso traz como
corolário duas conseqüências que devem ser assumidas dependentemente uma da
outra: a) uma questão normativa, referida à exigência que a modernidade coloca ao
direito de desenvolvimento legislativo do sistema de direitos, de maneira a adaptá-
lo da melhor maneira possível, no maior reconhecimento de liberdades possível a
todos, às circunstâncias atuais; e b) uma questão funcional, referida à operacionaliza-
ção e manutenção da forma jurídica moderna que, enquanto tal, traz consigo impli-
cações normativas, além de se justificar também normativamente; isso implica dizer
que caso a prática legislativa não se esforce rumo ao maior reconhecimento possível
de liberdades a todos, isto é, se não atualizar constantemente a pressão moral que o
direito sofre, corre-se o risco de se fazer desmoronar a democracia e a própria forma
jurídica moderna, uma vez que a questão passa a ser parasitariamente entendida em
termos da imposição de um ethos, de uma concepção de vida boa sobre os demais.
o que isso representa é que o direito somente pode se valer de sua moderni-
dade quando se mantém aberto, e constantemente aberto a conteúdos morais.
embora esses conteúdos morais não justifiquem o direito, que antes se justifica
em procedimentos institucionalizados de geração democrática de suas normas,
realizam, ao mesmo tempo, uma tremenda pressão na justificação de normas jurí-
dicas. à medida que as decisões legislativas se fazem impossibilitadas de sempre
tomarem em consideração o igual interesse de todos os afetados por essas mesmas
decisões, por outro lado, e de maneira global, se faz exigível à prática de justifica-
ção do direito que razões morais sejam sempre trazidas na construção de normas
jurídicas, sob pena de se perder a própria modernidade do direito.
Por isso é que a exigência do reconhecimento na maior medida possível de
iguais liberdades a todos se faz aqui determinante. uma vez que moralmente as liber-
dades já são reconhecidas de maneira a satisfazer de forma igual o interesse dos afe-
tados – o que implica reconhecer que meu âmbito de ação somente pode ser restrin-
gido pela igual consideração que devo ter sobre a liberdade do outro –, no direito o
reconhecimento das liberdades é também, mas não só, dependente de decisões legis-
lativas que, por sua vez, se valem, no processo de sua justificação, de argumentos não
só morais, mas inclusive éticos e pragmatistas. isso significa dizer que o reconheci-
mento e a construção legislativos de direitos não se dão exclusivamente com base em
razões morais, mas pode se dar com base em razões éticas. e isso implica dizer que
direitos e deveres podem ser reconduzidos, desde uma óptica interna à argumenta-
ção de justificação normativa, a fortes argumentos éticos apresentados e assumidos
em uma decisão política. isso não é um problema na justificação do direito. mas isso
pode se tornar um problema quando os discursos de justificação passarem sistemati-
camente a ser vislumbrados como a tentativa de imposição de um ethos. Sabemos a
que isso leva. Por isso o direito não se pode apartar da exigência normativa de reco-
nhecimento, no maior grau possível, de iguais liberdades a todos. e esse “maior grau”
refere-se ao fato de que possíveis razões éticas e pragmatistas assumidas no debate de
justificação podem ser perfeitamente entendidas como os melhores argumentos
naquele processo. assim, não se exige que razões morais sejam sempre determinan-
tes. essa “possibilidade” há que ser articulada de maneira construtiva, tanto em face
das circunstâncias políticas do contexto de geração da norma, como também dos
argumentos internamente apresentados ao debate legislativo. e isso, quando bem
compreendido, não se trata de “limitações” ao sistema de direitos, mas de elementos
constitutivos de seu próprio desenvolvimento e atualização.
com dWorKin, e retomando questões que se encontram subjacentes tanto
aos pressupostos interpretativos da constituição francesa de 1791, como à com-
preensão que a escola da exegese tem da prática jurídica, podemos distinguir dois
conceitos de democracia, dos quais somente um nos fará sentido.
um desses sentidos compreende a democracia desde uma simples óptica
majoritária: todas as questões jurídicas devem ser decididas pelo recurso ao voto
majoritário.47 compreendida assim, a idéia de democracia se atrela fortemente a
uma compreensão convencionalista do direito, a vislumbrar como normas jurídi-
cas somente aquelas decisões fruto de uma deliberação majoritária de um
Legislativo para tanto constituído.
Por outro lado, nos convida dWorKin a compreender a democracia como um
auto-governo por parte de todos os concidadãos que atuam como membros iguais de
uma determinada comunidade jurídica. e isso porque o equívoco da compreensão
anterior se daria porque as próprias decisões por maioria somente podem ser valida-
mente assumidas sob o cumprimento de certas condições. e, assim, dWorKin desen-
volve quais seriam essas condições48 de maneira, senão muito próxima, ao menos
complementar, às colocações oferecidas por haBermaS acerca dessa temática.
assim, cabe-nos fazer uma consideração acerca do sentido normativo de uma
tal exigência ao reconhecimento, na maior medida possível, de iguais direitos a
todos os concidadãos a partir de algumas questões colocadas por dWorKin. de
acordo com o princípio de integridade política, que cobraria um sentido legislati-
vo, e outro jurisdicional, dWorKin esclarece que isso implicaria, na verdade, dois
princípios de integridade política:
“um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de
leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto
quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido.”49
47 dWorKin, ronald. Justice in robes. cambridge: harvard university Press, 2006, p. 133.
48 dWorKin, ronald. Justice in robes, cit., p. 133 et seq.
49 dWorKin, ronald. o império do direito. Trad. Jefferson Luiz camargo. São Paulo: martins Fontes, 1999, p.
213.
Legislativamente, isso não implica o reconhecimento de que nossas leis sejam
perfeitamente coerentes, mas antes significa uma exigência em se empenhar para
que sejam “remediadas” quaisquer incoerências com as quais possamos nos topar.
e isso porque a integridade na legislação, ainda segundo dWorKin, ”restringe
aquilo que nossos legisladores e outros partícipes de criação do direito podem
fazer corretamente ao expandir ou alterar nossas normas públicas”.50 e isso signi-
fica impor ao Legislativo uma restrição, no que tange a uma prática democrática
do processo legislativo, de se orientar pela mera faticidade de acordos, convenções
e negociações conciliatórias sempre capazes de permitir que direitos fundamentais
sejam violados. Significa fazer-nos compreender o processo legislativo sob a ótica
não de uma convencionalista e conciliatória concepção majoritária de democra-
cia, mas nos força a compreender que o direito trata-se de um sistema de princí-
pios que, por sua vez, exige de nós a assunção de pressupostos normativos sem os
quais não podemos nos enxergar como nos auto-governando livremente.
aliás, é a isso mesmo que se refere o direito à maior medida de reconheci-
mento de iguais direitos fundamentais a todos desde a óptica legislativa, ao fato de
que a força de legitimidade da legislação, isto é, de que seu sentido normativo não
se esgota na referência a meros acordos e negociações conciliatórias capazes, de
maneira sistêmica, de fazerem com que a forma jurídica e, conseqüentemente, a
legitimidade do direito sejam destruídas. uma legislação que tenha conciliatória
e convencionalmente privilegiado uma determinada concepção ética e que não
seja capaz de se compatibilizar com uma interpretação coerente do sistema de
direitos fundamentais deve ser assumida, desde a óptica de aplicação jurídico-nor-
mativa, como inconstitucional.
Por seu turno, referido “direito à maior medida possível de iguais liberdades
a todos”, sob o viés da aplicação jurídico-normativa, inicialmente cobra o sentido
normativo – e não meramente lógico-estrutural ou funcional como em KeLSen ou
mesmo em coSSio –, de que tudo aquilo o que não é juridicamente proibido é,
pois, permitido. É claro que o sentido de proibição e permissão jurídicas somente
se pode dar em uma reconstrução principiológica na busca de um juízo de coerên-
cia normativa. e isso somente se pode dar com base em uma reinterpretação jurí-
dica dos princípios jurídicos, sem que se sobreponha, em sede de aplicação norma-
tiva, uma determinada compreensão privada de vida boa como justificativa da
limitação e não reconhecimento jurisdicional de certos direitos. esse, inclusive, é
o sentido que se pode cobrar do juízo de imparcialidade em sede de aplicação
jurisdicional, o que seja, o sentido de que o projeto de vida de outrem não pode
a) o sentido, já referido, de que tudo o que não está proibido está permitido.
essa é uma conseqüência da pressão normativa que o princípio do “direito
à maior medida possível de iguais liberdades” cobra na prática interpreta-
tiva e aplicativa do direito. uma resposta meramente funcional a essa
questão se faz insuficiente e inadequada;
b) juízos de imparcialidade, nos quais argumentos éticos, morais e pragmatis-
tas não podem ser assumidos como determinantes da interpretação em
face do caso;
c) a assunção da especificidade de cada caso, o que nos cobra a compreensão
de que cada caso é único em circunstâncias que lhe dizem respeito, sendo
as normas jurídicas tão-somente em princípio aplicáveis, sobretudo quan-
do se toma em consideração determinadas situações-padrão a partir das
quais as próprias normas foram legislativamente construídas;
d) uma compreensão do princípio da igualdade não de maneira meramente
“formal”, mas sim no reconhecimento, a partir das especificidades de cada
caso, de que as diferenças pontuadas pelos afetados por uma decisão juris-
dicional, ou do debate, reconstruídas pelo juiz, devem ser interpretadas
normativamente como diferenças, ou igualdades, juridicamente relevan-
tes. embora o paradigma liberal tenha dado curso à exigência normativa
do reconhecimento de iguais direitos a todos sob a óptica de uma com-
preensão meramente formal do princípio da igualdade, é em face da exi-
gência normativa de reconhecimento, na maior medida possível, de iguais
liberdades a todos, que o próprio paradigma liberal, bem como o de bem-
estar social – e desde outros problemas – se mostraram incapazes de ofere-
cer respostas coerentes;
e) a compreensão de que as circunstâncias fáticas e os elementos referentes a
essas circunstâncias não podem ser interpretadas como limites à realização
dos direitos – em uma inapropriada cisão entre ideal e real51 –, mas como
elementos constitutivos da interpretação e realização do sistema de direi-
tos em face do caso, refletindo, assim, a tensão entre ideal e real de manei-
51 cf. o Posfácio em: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstru-
ção crítico-discursiva na alta modernidade, cit.
ra reconstrutiva e na luta por um juízo de coerência normativa em face do
caso concreto. não se confunde, portanto, e de maneira alguma, com uma
proposta aos moldes de roBerT aLeXy em defesa de uma “otimização dos
princípios” quando da aplicação normativa: o código do direito, como já
bem elucidado por haBermaS, é binário, e não gradual;
f) uma decisão jurisdicional que se refira a direitos e deveres, e não uma deci-
são que pretenda ser coletivamente vinculante, como as decisões legislati-
vas que, todavia, se abrem à força de argumentos éticos, morais e pragma-
tistas como forma de construir um melhor argumento a possibilitar referi-
da vinculação coletiva;
g) por fim, co-implica a exigência de uma auto-purificação do direito, em
que este, aprendendo com seus equívocos do passado, parte constantemen-
te rumo a uma superação desses equívocos à luz de uma sempre constante
atualização e de um constante desdobramento do sentido inesgotável do
sistema de direitos, no sentido de um reconhecimento normativamente
coerente de iguais liberdades a todos. Significa dizer que há uma pressão
interna ao sistema dos direitos que o cobra uma sempre mais aperfeiçoada
expansão a todos os concidadãos. a referência a uma auto-purificação do
direito significa exatamente que o direito pode sempre expandir-se –
gerando distinções normativas internas e tornando-se, assim, mais com-
plexo – a um sempre maior reconhecimento de iguais direitos fundamen-
tais a todos no constante desdobramento das igualdades e das diferenças.
e tudo isto está diretamente conectado a uma questão que outrora pontua-
mos, a saber, ao sentido de que a luta por reconhecimento de direitos em sede
jurisdicional não deixa de ser uma luta política, porque
“uma ‘luta política’ pelo reconhecimento também se pode dar na esfera jurisdicional,
mas não da mesma maneira que na esfera legislativa. afinal, na esfera jurisdicional
tal reconhecimento depende não da força política do argumento, mas do fato de per-
mitir uma coerente re-interpretação do direito enquanto um sistema idealmente
coerente de princípios – enfim, capaz de permitir a própria auto-purificação do
direito. afinal, em uma compreensão procedimental, de uma postura privatística
característica do paradigma liberal, ou de uma postura clientelista do paradigma de
bem-estar, o cidadão passa a assumir seu papel em discursos políticos para fazer valer
seus interesses vulnerados. isto é, se engajam em uma disputa política no reconheci-
mento, ou na busca de reconhecimento, daquilo que de seus pontos de vista políti-
cos seriam seus direitos. assim é que uma participação política, ativa e legítima, é
capaz, mesmo em face da jurisdição, problematizar determinadas questões interpre-
tativas do direito de forma a integrar, pois, o processo de auto-correção do direito;
ou como diria dWorKin, de uma auto-purificação. com isto não estamos defenden-
do ou afirmando que as decisões no reconhecimento de tais pretensões seriam deci-
sões institucionais a serem tomadas do ponto de vista político; mas antes no sentido
de que tais lutas políticas pelo reconhecimento problematizam questões levantando
indagações, inclusive, acerca de qual, realmente, seria, então, a melhor interpretação
do direito – no sentido todo aqui desenvolvido – em face desta nova situação pinça-
da e problematizada. Somente a partir do processo de auto-correção é que a luta pelo
reconhecimento poderia surtir, no direito, uma re-interpretação legítima da questão
então em debate.”52
52 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., pp. 70 e 71.
caPíTuLo 4
doS coSTumeS:
ou da TenSão argumenTaTiva inTerna à
Teoria do direiTo enTre o convencionaLiSmo
e uma Teoria da argumenTação Jurídica
i. a TíTuLo de inTrodução
1 PuchTa, georg. corso delle istituzioni. Trad. a Turchiarulo. napoli: Tipografia all’insegna del diogene,
1854, v. i, p. 7.
2 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 7.
3 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 7.
4 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 7.
mas prossegue PuchTa afirmando que para a “existência real” do direito não
bastaria a simples consciência: somente poderíamos atribuir realidade a esse qua-
dro que se perfaz “naturalmente”, porque divinamente conduzido, quando perce-
bêssemos que os vínculos da vida seriam realmente ordenados segundo os princí-
pios de tal consciência jurídica.5 na medida em que o direito seria conformado por
preceitos que ordenariam que algo ora fosse feito, outrora que não o fosse, não seria
suficiente que a mera vontade dos indivíduos existisse para que o quadro da “reali-
dade” do direito estivesse conformado. afinal, vai o autor entender que a vontade
de mais indivíduos, quando orientada a “um mesmo direito”, tende a se fazer valer
e a impedir a injustiça.6 mas também avança no sentido de que não satisfaria a mera
vontade, pois seria necessário um órgão ao qual se reconheceria uma atuação, visto
que imbuído de autoridade. afinal, sem a existência do estado, o direito, para
PuchTa, apresentaria uma existência tão-somente precária e imperfeita.7
na medida em que vai assumir que a origem imediata do direito seria invisí-
vel, desenvolve a idéia de que alguns vieram a pensar que o povo viria a apreender
suas opiniões jurídicas, no sentido de convicções de especialistas, dos jurisconsul-
tos. outros, por sua vez, acreditaram que seria uma questão de mera observação:
bastaria observar que, quando alguém empreende algo, outros podem facilmente
fazer o mesmo e, quando alcançado um número maior, uma maioria, o povo, por
força do hábito persuade a si mesmo de que realmente se deva agir como já se age.8
PuchTa, discordando de tais posicionamentos, acreditou que o direito, em
sua origem, poder-se-ia manifestar externamente por três formas, a saber; a) como
uma “convicção imediata dos membros da nação”, isto é, o direito consuetudiná-
rio, vez que “imediata consciência nacional”; b) como lei; e c) como produto da
dedução científica.9 neste momento nos interessa somente o que se refere ao cha-
mado “direito consuetudinário”.
desenvolvendo sua proposta teórica, o autor aprofunda afirmando que o direito
consuetudinário, como fonte do direito, seria estreitamente conexo com a origem
fundamental de cada e específico “direito humano”. e tal fonte seria, pois, a consciên-
cia nacional dos membros de um povo.10 a manifestação perfeita, na expressão de
PuchTa, desta consciência nacional seria o fato de os indivíduos agirem em conformi-
dade às suas “convicções jurídicas”, conformando-as com a prática. na medida em que
a própria prática teria em seu fundamento um núcleo comum, a própria consciência
nacional de um povo, tais práticas repetiriam uniformemente a partir de si mesmas,
27 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette. Trad. carlo Fadda e Paolo Bensa. Torino: uninone
Tipografico-editrice Torinese, 1902, v. 1, p. 50.
28 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 50.
29 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 50.
30 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 51.
31 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., pp. 51-52.
32 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 52.
33 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 53.
FazzaLari torna-se neste momento interessante por nos oportunizar a compreen-
são de que todos esses desenvolvimentos desde Savigny, passando por tantas tra-
dições do direito e da ciência do direito, se mantêm, em linhas gerais, vivos até
os dias de hoje. afinal, FazzaLari é quem vai afirmar que a “juridicidade” de uma
norma consistiria no fato de esta mesma norma ser interpretada como vinculante
e exclusiva. vinculante no sentido de que a conduta dos indivíduos deve confor-
mar-se à regra “na qual a norma consiste”; exclusiva porque esta mesma norma há
que ser interpretada como prevalente em face de eventuais outras regras como,
por exemplo, segundo o autor, aquelas regras de costumes.34
continua FazzaLari dissertando no sentido de que a consideração da vincu-
latoriedade e exclusividade da norma há que ser concretamente analisada: afinal,
e aqui é o que mais nos interessa, assume o autor a posição de que os membros de
uma Sociedade nutrem, no que se refere à regra jurídica, a opinio juris vel neces-
sitatis, isto é, o compartilhamento entre os indivíduos de que a norma seria vin-
culante e exclusiva e, portanto, jurídica.35 complementa ainda FazzaLari no sen-
tido de que o que poderia mais seguramente provar a convicção desses cidadãos
seria a prevalência, entre esses mesmos sujeitos, da observância da referida norma
e sua marginal não-observância.36
a importância da referência à proposição de FazzaLari se faz na exata medi-
da em que o autor, ao se referir à questão da opinio juris vel necessitatis, acaba por
estabelecer uma conexão a toda a discussão aqui desenvolvida por, em nota de pé
de página, diretamente fazer menção aos escritos de PuchTa. não é sem sentido,
afinal, a expressão opinio juris vel necessitatis... na própria compreensão de
WindScheid, mas também nas colocações de Savigny e PuchTa, a expressão vem
tão-somente densificar o que é exigido como pressuposto da constatação de um
direito consuetudinário para além da simples prática reiterada de atos.
É nesse sentido que WindScheid, no que se refere aos “requisitos para o nas-
cimento do direito consuetudinário”, vai afirmar a existência de basicamente cinco
pressupostos (“requisitos”). o primeiro haveria que ser o fato de o uso não derivar
de outros motivos que não aquele apontado pela convicção de sua necessidade jurí-
dica.37 isto é, a própria idéia de opinio juris vel necessitatis referida por FazzaLari.
além disso, entende WindScheid que tal convicção não pode, para efeitos de
reconhecimento de direito consuetudinário, ser algo casual, um fato isolado, mas,
antes, há que se repetir, com uma certa duração.38
34 FazzaLari, elio. istituzioni di diritto processuale. 4. ed. Padova: cedam, 1994, p. 22.
35 FazzaLari, elio. istituzioni di diritto processuale, cit., pp. 22-23.
36 FazzaLari, elio. istituzioni di diritto processuale, cit., p. 23.
37 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 54.
38 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 54.
mas não basta a opinio juris vel necessitatis e uma repetição prolongada no
tempo, porque também haveria que se verificar uma uniformidade dos atos refe-
ridos ao uso,39 pois, afinal, não se podem “perder” em seu sentido caindo na rea-
lização de atos exatamente opostos.
acerca da convicção daqueles que lançam mão do uso, afirma WindScheid
que haveria que existir uma “verdadeira convicção” por parte dos “usuários”, não
devendo a opinio juris vel necessitatis ser guiada por compreensões errôneas.40
Por fim, outro pressuposto na verificação da existência de um direito con-
suetudinário seria o fato de que o conteúdo do uso não poderia ser irracional, não
no sentido da prática ser inoportuna, mas contraditória ao fundamento da ordem
política e moral.41
o problema de toda esta concepção se encontra no fato de uma profunda jus-
tificação em termos ético-políticos do direito e do estado de direito que merece-
rá, mais adiante, ser problematizada. inclusive porque todos esses autores partem
de uma compreensão materializada, eticizada, daquilo que haveria que ser assu-
mido como convicção da nação/do povo para, a partir de então, proceder a uma
densificação de um projeto político pré-moldado pelas convicções supostamente
assumidas como comuns a todos os membros da comunidade jurídica.
mas, resgatando a idéia de usus fori apresentada por PuchTa, WindScheid
mesmo é quem também explicita no sentido de que a existência de referido
direito consuetudinário poderia se dar tanto pelo uso do próprio povo que sub-
mete as relações de suas vidas a certa norma – o que nos leva a crer na neces-
sidade de se explicitar a distinção entre aceitação e aceitabilidade normativa –,
ou ainda fruto do uso dos juristas que aplicariam certas normas nas sentenças,
enfim, na prática jurisdicional, o que WindScheid vem a chamar de “uso dos
tribunais”.42
interessante questão enfrentada mais diretamente por WindScheid, mas não
tão bem elaborada por PuchTa em seu cursus der institutionen, é a que diz res-
peito aos “costumes contra legem”. assume WindScheid que o direito consuetu-
dinário teria força normativa tal qual a lei; o direito consuetudinário não teria
papel de tão-somente completar, mas também de “abolir o direito vigente”.43 e tal
fato se daria não somente entre normas de direito consuetudinário, mas inclusi-
ve entre estas e a legislação. Todavia, alerta-nos o autor de que o direito consue-
46 chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen,
Luhmann e habermas, cit., p. 13 et seq; chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito
Penal: contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois, cit., p. 39 et seq.
47 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 237.
48 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 238.
empreendida, toma partido contra a postura defendida finalmente por
WindScheid. mas, de que maneira poderiam os costumes, em face da Teoria Pura,
ser considerados como fatos criadores do direito?
dentro da perspectiva escalonada que o autor empreende em sua interpretação
no tocante ao direito, entende KeLSen que o escalão normativo imediatamente
seguinte ao da constituição seria aquele referido a normas gerais criadas ou pela
legislação, ou pelos costumes. isso porque de uma maneira geral, vai afirmar KeLSen,
as constituições modernas instituem um “órgão legiferante especial” competente,
pois, para a produção de normas gerais a serem aplicadas pelo seguinte escalão judi-
cial/administrativo. mas nada poderia impedir uma organização que suprimisse este
órgão legiferante e que fosse concebido aos tribunais e às autoridades administrati-
vas competência para que eles mesmos procedessem à criação das normas por eles
entendidas como “adequadas ou justas para aplicar nos casos concretos”.49
mas, deixando de lado esta hipótese, acerca da qual nos referimos já nos capí-
tulos anteriores, parte KeLSen para considerar, de maneira generalizada, a situação
de uma ordem jurídica que instituiria um tal órgão legislativo especial.
Partindo de uma proposta convencionalista, assume que as normas criadas
pela via legislativa seriam frutos de atos de vontade expressos, isto é, seriam nor-
mas conscientemente postas, e cujo sentido de validade adviria da norma hierar-
quicamente superior a atribuir competência a tal órgão para, exatamente, produ-
zir, criar, tais normas.50
Por outro lado, a constituição, nesta perspectiva, poderia também vir a ins-
tituir como fato produtor de direito práticas consuetudinárias.51 e um tal fato
consuetudinário teria como traços centrais as características de que: a) os mem-
bros de uma determinada comunidade jurídica agissem de forma sempre idêntica
em certas e determinadas circunstâncias; b) esta forma de agir se devesse por um
tempo “suficientemente longo”; c) por essas razões anteriores, surgisse nos indiví-
duos, mediante seus atos, a vontade coletiva do dever de assim se conduzirem.52
enfim, seria a própria assunção, também por KeLSen, ainda que do ponto de vista
da fundamentação apresente suas diferenças em face da escola histórica e da
Pandectística, da tese da opinio juris vel necessitatis.
Tal proposta se coadunaria com o projeto presente na Teoria Pura, na medi-
da em que o costume somente seria passível de ser considerado como um fato cria-
dor de norma juridicamente válida se o próprio fato consuetudinário fosse inseri-
do na constituição como um fato produtor de normas jurídicas...53
61 chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen,
Luhmann e habermas, cit., p. 185 et seq. cf. o capítulo primeiro, em que haBermaS procede a toda uma
reconstrução revisitada da problemática desde seus escritos anteriores: haBermaS, Jürgen. Facticidad y vali-
dez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.; cf. ainda:
haBermaS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: crítica de la razón funcionalista. Trad. manuel
Jimenez redondo. madrid: Taurus, 1987, t.i, p. 43 et seq.; haBermaS, Jürgen. verdad y justificación. Trad.
manuel Jiménez redondo. madrid: Trotta, 2003; haBermaS, Jürgen. agir comunicativo e razão destrans-
cendentalizada. Trad. Lucia aragão. rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.
dicional, para aquele, seja porque, para este, o fundamento último do direito e da
própria normatividade do sistema jurídico moderno encontrar-se-ia na voluntas
dei, a ser “acessada”, contínua e universalmente, pelos indivíduos que se reconhe-
ceriam, pois, e imediatamente, como criadores de seu próprio direito positivo.
Sabemos que a justificativa de Savigny, no sentido de entender a legitimida-
de do direito atrelada a um valor intrínseco, naturalizado, portanto, da própria
autonomia moral acaba, ao fim, por ser devedora de uma teoria aos moldes de uma
justificativa naturalista, de uma proposta bem ao gosto da teoria do direito natural.
Pretender, pois, o espírito do povo, como aquilo que nos viria a indicar o sentido,
o fim do próprio sistema jurídico, na medida em que seria, por conseguinte, refle-
tido nas construções normativas de uma dada e concreta Sociedade, ao mesmo
tempo em que pretende uma leitura “oficial” a este “espírito” – à medida que leitu-
ras diferenciadas são passíveis de serem vislumbradas na modernidade, por já não
estarmos mergulhados em um mundo-da-vida compartilhado em termos de ima-
gens sacralizadas, mas, antes, profanas –, é incapaz de lidar legitimamente com a
questão que, linhas acima, entendemos como central à própria modernidade: afi-
nal, como enfrentar a pluralidade sociologicamente marcante em tempos moder-
nos sem perder a dimensão da validade, da racionalidade normativa?
Savigny, ao pressupor um telos ao espírito do povo, sentido este pretendido
como divinamente revelado por PuchTa, acaba retirando da própria Sociedade a
construção reflexiva dos rumos a serem por ela mesma assumidos. afinal, se não
nos é mais possível falar em um “espírito do povo” metafisicamente pretendido,
por outro lado nos parece mais que plausível pretender que construções sociais
venham a determinar a própria Sociedade, o que, inclusive, abarca a construção
do direito dessa Sociedade.
não mais temos a ingenuidade de crer na explicação da justificação de ques-
tões sociais como algo exorcizado para fora dela mesma. Sabemos que a Sociedade
constrói a si mesma através de media da comunicação. não mais podemos preten-
der uma fundamentação sacralizada dessa Sociedade. o que a Sociedade medieval
certamente não foi capaz de perceber é que a fundamentação divina que se encon-
trava subjacente ao pano-de-fundo constituído por seu mundo-da-vida, nada mais
fora que uma construção da referida Sociedade. ora, a explicação sacra de, e para,
uma Sociedade estamental, como a Sociedade medieval, não nos pode mais ser
sentida como um “dado”, mas sim como algo construído, e constantemente toma-
do, por esta mesma Sociedade.
assim, nos surge, na modernidade, como algo incoerente e inconsistente, a
fundamentação sacralizada tão fortemente pretendida outrora por PuchTa; pela
dessacralização que a Sociedade moderna representa em face da Sociedade medie-
val, por ser a Sociedade moderna uma Sociedade descentrada, e pelo fato de ter-
mos aprendido que a Sociedade é fruto de processos comunicativos de sua própria
construção, além de termos apreendido a especialização de esferas de racionalida-
de, não nos parece, já de longe, plausível nem uma justificação em termos de um
“espírito do povo” a ser desvelado e desdobrado na busca de um fundamento
“firme” para o direito, muito menos uma pretensão como a de PuchTa: afinal, a
própria concepção de deus com a modernidade passou a ser problematizável, por-
que compreendida enquanto fruto de processos comunicativos. não mais temos
pretensões de racionalidade legitimamente sustentáveis porque convencionadas e
blindadas sacramente – as questões que outrora foram, desde sempre, retiradas,
porque colocadas para fora, do redemoinho argumentativo,62 pela referência reli-
giosa ao inquestionável e ao intocável, passaram, na modernidade, inclusive pela
própria pluralidade religiosa, a ser passíveis de questionamentos e problematiza-
ções argumentativas. não há que se pretender, pois, hoje – em uma alta
modernidade, por termos consciência do nosso tempo, das nossas limitações e das
contextualizações, sempre necessárias, para bem se compreender as construções
da própria Sociedade –, juízos e conclusões absolutas e eternas.
KeLSen, desde sua postura epistemológica assumida na construção de suas
propostas teóricas de interpretação e compreensão do direito, ao menos enfren-
tou, ao seu modo, a questão da pluralidade ética sem, todavia, alcançar uma saída
capaz de ser assumida como legítima. afinal, quando do capítulo em que discute
a distinção entre direito e moral, em sua reine rechtslehre, KeLSen veio a expli-
citar que a necessária distinção entre direito e moral justificar-se-ia em termos de
uma referência global tangente àquele, enquanto a moral apresentar-se-ia sempre
como particular e referida a posicionamentos subjetivos. ainda que não assuma-
mos a distinção entre direito e moral nestes termos, KeLSen vai, ao final, ao
mesmo tempo em que afirmar a distinção entre direito e moral, sobretudo em ter-
mos e para efeitos de uma ciência e de sua “coerência” epistemológica, não excluir
que na própria construção do direito questões por ele então consideradas “morais”
re-entrem: afinal, uma norma positiva nada mais significaria que um ato de von-
tade da autoridade competente de “escolha” de uma das interpretações possíveis
de uma norma, dotado, pois, de um sentido subjetivo e também de outro objetivo;
e isso porque interpretado tal ato em face de uma norma hierarquicamente supe-
rior que à autoridade atribuiria poder/competência, exatamente, para validamen-
te perante o direito realizar tal escolha.
empregado tal raciocínio silogístico à própria matéria dos costumes como atos
coletivos capazes de criar normas juridicamente válidas, além de nos permitirem
vislumbrar a figura da desuetudo – em razão do não-cumprimento do mínimo de
eficácia, vez que condição de validade da norma –, KeLSen veio a concluir que o
62 cf. o capítulo primeiro como um todo em: haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el
estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.
direito é que seria “fonte” do próprio direito. ora, ao final, seria o próprio direito
que determinaria quando e como determinados atos de vontade, individuais ou
coletivos, haveriam que ser reconhecidos como dotados de um sentido jurídico.
retomaremos, mais à frente, quando podemos afirmar o direito como
“fonte” do direito... Por aqui nos basta, por enquanto, afirmar que a presença de
um argumento de autoridade, aos moldes de KeLSen, não nos permite, em face da
modernidade da modernidade, sustentar sua proposta interpretativa. afinal, o
autor entendia que o direito sempre seria uma ordem jurídica coercitiva que
poderia ser interpretada como de uma determinada comunidade jurídica. a ques-
tão se torna mais delicada quando a própria ordem jurídica passa a ser assumida
como referida ao monopólio do uso da força: somente assim, afinal, a ordem jurí-
dica poderia ser interpretada como uma ordem coercitiva e globalmente eficaz.
avançando nos argumentos do autor, as normas tocantes à ordem jurídica garan-
tida e imposta pelo estado, vez que detentor do monopólio do uso da força, pode-
riam tanto ser aceitas pelos cidadãos, que se comportariam em conformidade ao
dever jurídico que essas normas viessem a estabelecer, como também poderiam
não ser aceitas, podendo, pois, ser ainda aplicadas pelos órgãos competentes, que
deveriam se orientar rumo à conduta devida (aplicação da sanção) estabelecida
por cada, e toda, norma jurídica, não obstante a discordância dos cidadãos em face
de uma norma sob questão.
Podemos já vislumbrar que a proposta teórica de KeLSen, percebendo a com-
plexidade ética da Sociedade moderna, não vem a fundamentar o direito em um
suposto “espírito do povo” compartilhado em termos substancialistas, nem pressu-
põe, necessariamente, a aceitação coletiva das normas referentes à ordem jurídi-
ca: bastaria um aparato institucional e militar suficientemente forte, capaz de
fazer valer, em face da Sociedade civil, as “normas jurídicas” impostas por um
determinado regime.
esse argumento de autoridade, tão fortemente marcante nas proposições
neo-positivistas do autor, não consegue se sustentar em face da seguinte indaga-
ção: a partir do momento em que um dos desafios que a modernidade colocou a si
mesma, qual seja, lidar racionalmente com a pluralidade ética, pressupõe uma jus-
tificação não mais sacralizada, porque esta sim é que estaria embebida em argu-
mentos de autoridade que vedariam questionamentos-chave de auto-indagação
social, como sustentar a “força” das normas jurídicas sem cair, mais uma vez, em
um argumento de autoridade, vez que a própria Sociedade moderna se enxerga
como autora de si mesma? afinal, com base em que argumento, senão o de uma
“autoridade intocável”, cuja força adviria da ameaça constante do uso da violên-
cia, posso pretender interpretar o direito como uma ordem normativa coercitiva
e globalmente eficaz a ser garantida por quem detém o monopólio do uso da força?
a proposta de KeLSen não leva a sério as conquistas subjacentes e muitas vezes
não explicitadas da própria modernidade. não leva adiante o que significa, em um
nível mais profundo, a superação de uma justificação sacra da Sociedade; é, pois,
incapaz de compreender que a superação de uma justificação em termos de argu-
mentos de autoridade, capazes de retirar da discussão pública determinadas ques-
tões, porque haveriam que ser sentidas como sempre constantes e inquestionáveis,
também não permite espaços para uma justificação em termos meramente socioló-
gicos de observação do fazer-valer o uso da força, aqui melhor interpretado, no
sentido mesmo de arendT,63 como violência. isso tudo porque a Sociedade moder-
na, ao perceber que constrói a si própria, não mais consegue sustentar a exclusão
de qualquer dos indivíduos dessa mesma Sociedade, porque não há nada que não
possa mais ser assumido como questionável por essa Sociedade; não mais há a cren-
ça de uma fundamentação última dessa Sociedade para além dela mesma. não mais
se sustentam interpretações que deixam implícitas exclusões naturalizadas ou natu-
ralizáveis: afinal, percebendo em que sentido a Sociedade constrói a si mesma e,
inclusive a imagem de si própria – enfim, a Sociedade da Sociedade –, concluímos
que a força capaz de superar tais naturalizações, inclusive dos argumentos de auto-
ridade, é a própria força do poder comunicativo.
numa alta modernidade, percebemos e temos a consciência de que as ques-
tões sociais são construídas comunicativa e argumentativamente no seio da pró-
pria Sociedade, além de constatarmos que normativa e sociologicamente os prin-
cípios de igualdade e liberdade foram assumidos pela própria modernidade no seio
de seu mundo social, equivale dizer, que as questões de Justiça e de Licitude pas-
saram a ser interpretadas não mais com base em argumentos naturalizados e de
autoridade como “posição de nascimento” – pois somente assim é que se pode
interpretar coerentemente a idéia de justiça e de debitum em São TomÁS de
aQuino, por exemplo –, mas antes assumidos e compartilhados em um mundo-da-
vida genuinamente moderno. afinal, no que tange a questões do mundo social, a
modernidade se construiu, e continuamente se constrói, sob a pretensão de um
igual reconhecimento de liberdades.
isso exatamente nos permite melhor refletir sobre a democracia como sendo,
na modernidade, o processo que nos permite co-construir o direito de maneira
legítima. Se, na alta modernidade, apreendemos que a Sociedade constrói a si
mesma através de processos comunicativos, e que a única força que se faz preva-
lecer é a própria força dos argumentos assumidos reflexivamente em debates
publicamente sustentáveis, não há mais que se pretender validade, na
modernidade, a argumentos de autoridade que, contrariamente, retiram sua força
63 arendT, hannah. crises da república. Trad. José Wolkmann. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 123 et. seq.
não de processos comunicativos sustentáveis em face do mundo-da-vida, mas de
uma naturalização que, no caso da teoria de hanS KeLSen, corre o tremendo risco
de se dar mediante o uso de violência, e não de poder comunicativo.
esta nota há que ser acentuada na teoria de KeLSen, mas que perfeitamente
também cabe às propostas tanto de Savigny, como também de PuchTa e
WindScheid – este, aliás, grande responsável pela virada positivista na interpreta-
ção do direito pela Pandectística –, porque, em reine rechtslehre, KeLSen, ainda
que prescindindo da aceitação por parte dos cidadãos, afirmava a validade de uma
ordem jurídica que se fizesse valer por simples imposição de órgãos orquestrados
em face daquele, ou daquilo, que deteria o monopólio do uso da violência – vio-
lência, e não poder, porque não justificado o seu uso em termos de discursos racio-
nais capazes de lhe conferir legitimidade.
Tudo isso, na teoria de KeLSen, é nítido quando, na verdade, a norma funda-
mental somente cumpriria seu papel quando todos se submetessem aos ditames de
uma constituição que fosse eficaz, eficácia esta capaz de ser alcançada a qualquer
preço, inclusive ao custo de uma imposição conseguida em termos de violência –
que refletiria numa aplicação das normas por parte dos órgãos competentes, e cuja
competência seria garantida pelo monopólio da força – ou, ainda, em razão de
uma larga aceitação da ordem jurídica – refletida no cumprimento por parte de
uma maioria dos cidadãos dos deveres jurídicos que lhes fossem impostos; o que,
definitivamente, não descarta hipóteses de “rebeldia” a serem superadas em ter-
mos de uso da violência.
isso porque a noção com a qual interpretamos a idéia de aceitação de normas
não está necessária e diretamente atrelada ao assentimento generalizado por parte
dos afetados dessas mesmas normas: uma postura passiva de não se mobilizar rumo
a algo diferente, seja por medo, seja pela própria força simbólica da imposição, por
opressão ou por conveniência e comodismo, acaba tendo que ser interpretada,
normativa e politicamente, como aceitação de “normas”, porque não em termos
reflexivos e críticos capazes de garantirem a racionalidade, em termos comunica-
tivos, de uma aceitabilidade normativa.
embora a concepção que perpassa a proposta teórica acima reconstruída
acerca dos costumes como “fonte” do direito esteja atrelada à idéia de opinio juris
vel necessitatis – e não obstante tal postura, afinal, poder ser genericamente assu-
mida como aceitação por parte dos membros de uma determinada comunidade
jurídica de uma prática interpretada, nos termos da própria aceitação, como “juri-
dicamente devida”, já que a “necessidade jurídica” há que, aqui, ser assim inter-
pretada –, entendemos que, exatamente nesse ponto, é que reside todo o proble-
ma de tal acepção dos “costumes” como pretensamente dotados de uma força jurí-
gena capaz de permitir a “criação” de normas supostamente válidas.
É nítido que tanto na vertente que defende um “espírito do povo”, seja em
termos tendentes a um teologismo, como em PuchTa, seja orientado a uma recep-
ção positvista, como em WindScheid ao pretender tal recepção como uma consta-
tação sociológica de uma homogeneidade ético-política da e na comunidade jurí-
dica, como também na proposta de KeLSen que, ao incorporar a questão da plura-
lidade ética, superando uma leitura ontologizante da escola histórica, não conse-
guiu, todavia, oferecer respostas para além da mera observação sociológica, típica,
pois, do próprio paradigma positivista de compreensão e interpretação do direito,
se encontra subjacente a pretensão de que as práticas reiteradas e uniformes dos
cidadãos estejam envoltas na capa de uma opinio juris, isto é, apresentem o pedi-
gree de serem práticas aceitas, ainda que não unanimemente, mas em face de um
contingente que represente a maioria (KeLSen).
e essa aceitação decorreria muito antes em termos de uma convicção nacio-
nal compartilhada (PuchTa), porque refletora de um pretensioso “espírito do
povo” (Savigny, WindScheid), ou de uma possível coincidência e repetição de atos
que haveriam que ser considerados como dotados de um sentido objetivo para
além do próprio significado coletivo da praxis: afinal, é assim que KeLSen, neste
caso, consegue remeter à norma fundamental, pressuposta, a própria pressuposi-
ção da validade jurídica dos “costumes”.
isso, tangente tanto à proposta de matriz da escola histórica, como também à
referida à Teoria Pura, coloca a seguinte questão central na superação desse impasse:
afinal, será que as questões atinentes ao direito da modernidade hão que ser racio-
nalmente conformadas em termos de uma mera constatação sociológica de uma acei-
tação, possível de se alcançar, inclusive, mediante ações instrumentais de emprego de
violência, ou tratar-se-ia de algo somente apreensível adequadamente não em face de
uma simples aceitação, mas de uma aceitabilidade construída argumentativamente?
a partir do conceito de aceitabilidade racional aprofundado pela Teoria do
discurso, de Jürgen haBermaS,64 podemos resgatar o que aqui já havíamos apre-
sentado, avançando no sentido de que não se tem mais a ilusão de uma fundamen-
tação da Sociedade para além dela mesma, nem que haja, pois, uma naturalização
do discurso em termos de argumentos de autoridade. isso porque, se libertando
dos grilhões de uma Sociedade sólida, como a Sociedade medieval, para usarmos a
expressão de zygmunT Bauman,65 a modernidade se liquefez em razão de uma
64 cf., como um todo, as conclusões alcançadas em: haBermaS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: crí-
tica de la razón funcionalista, cit.; haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado
democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.; haBermaS, Jürgen. verdad y justificación,
cit. cf. ainda, as importantes considerações de manueL JimÉnez redondo na introdução à versão castelha-
na de Faktizität und geltung. JimÉnez redondo, manuel. introducción. in: haBermaS, Jürgen. Facticidad y
validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.
65 Bauman, zygmunt. modernidade Líquida. Trad. Plínio dentzien. rio de Janeiro: Jorge zahar, 2001.
descentração, uma dessacralização, um processo de diferenciação funcional dos
sistemas, um processo de especialização das esferas de racionalidade, todos co-
implicados e somente possíveis porque construídos em termos de uma praxis
comunicativa a exigir de todos, e de cada indivíduo envolvido nesse projeto que
se abre continuamente ao futuro (mas também ao passado, paradoxalmente), a
assunção de uma postura realizativa,66 isto é, de uma postura que, em termos
comunicativos, signifique a defesa de pontos de vista e de opiniões não com base
no uso da violência ou “garantidos” por um argumento de autoridade sacado quan-
do conveniente, mas mediante as próprias regras da linguagem e que deságuam,
ao final, na força de um sempre melhor argumento.
Somente compreendendo a força do poder comunicativo gerado, pois, nos
processos de comunicação, equivale dizer, tão-somente a partir da apreensão de
que aquilo a garantir, a todos os co-implicados, a aceitabilidade de determinadas
construções da Sociedade, é a força do melhor argumento, podemos, reflexiva-
mente, pretender não só, mas também, um direito modernamente legítimo.
como KeLSen muito bem nos alertou, a referência, por parte da escola
histórica, a um “espírito do povo” apresentava embutido um argumento de auto-
ridade no sentido de que tal “espírito”, enquanto dotado de um telos não dominá-
vel pelo indivíduo, acabou por se apresentar como uma vertente devedora da tese
do “direito natural” a ser refletido no “direito positivo” – e pelos “costumes”,
inclusive. vimos também a proporção que a força da violência acaba tomando em
sede da Teoria Pura. e, exatamente por essas razões, é que podemos refutar ambas
propostas porque incapazes de lidar com os pressupostos subjacentes à própria
praxis social moderna.
a tese da opinio juris vel necessitatis parte da pressuposição de que os indi-
víduos compartilham ou de uma identidade ética comum, a guiar e a ser refletida
em suas condutas constantes e rotineiras, ou de uma vontade assumida como von-
tade coletiva de se orientar de determinada forma. o problema dessas teses é, exa-
tamente, não problematizar a legitimidade dessas práticas em face da pluralidade
e complexidade da modernidade; é não levar a sério que nada referente ao mundo
social nos é “dado”, mas, antes, construído em processos que, por sua vez, pressu-
põem uma dimensão normativa da comunicação, isto é, que pressupõem que algo
não pode ser validamente assumido como racional senão em face de um processo
comunicativo garantidor de um espaço capaz de permitir a construção de um
melhor argumento acerca de determinada questão.
na medida em que argumentos naturalizados de autoridade, como também
visto ao final do capítulo 2, não podem mais garantir a sustentabilidade racional de
66 günTher, Klaus. communicative Freedom, communicative power, and jurisgenesis. in: roSenFeLd, michel,
araTo, andrew. habermas on Law and democracy. Berkeley: california, pp. 234-254, 1998.
qualquer pretensão na modernidade, essa mesma modernidade se construiu, desde
sempre, com pretensões de reconhecimento, a todos, e no maior grau possível, de
iguais liberdades subjetivas – do que depende, inclusive, e sobretudo, o reconheci-
mento e garantia de liberdades comunicativas. aquilo capaz de ser considerado e
pretendido como racionalmente válido, pois, passou a depender de uma sustentabi-
lidade pública a ser confirmada, ou refutada, em discursos em que todos, pois, têm
reconhecidas e garantidas institucionalmente iguais possibilidades de participação.
esta é a peça-chave daquilo que podemos entender como aceitabilidade
racional: esta não implica uma concordância ou uma anuência com o conteúdo de
uma, por exemplo, lei aprovada no congresso nacional. não significa que através
de um “melhor argumento” se possa convencer o outro acerca de suas preferên-
cias pessoais…67 mas se abre a possibilidade para a compreensão de que por um
“melhor argumento”, sempre assim interpretado em face de um pano-de-fundo
intersubjetivamente compartilhado, podemos assumir determinadas pretensões
de verdade, ou de correção normativa, ou de veracidade como racionais.
a idéia de aceitabilidade, pois, nos permite vislumbrar a Sociedade como
uma Sociedade aberta, em constante processo de construção e de convencimento
argumentativo sustentável em face das pré-compreensões compartilhadas no
mundo-da-vida. É inevitável, pois, interpretar aceitabilidade como atrelada a uma
concepção procedimental, já que a aceitabilidade, como fruto de um jogo argu-
mentativo em que os participantes têm iguais possibilidades de participação,
somente é capaz de florescer na medida exata em que tal processo garanta as
regras da própria liberdade de igual argumentar...68
assim, não significa que a aceitabilidade – isto é, o fato de algo ser aceitável
a todos, porque construído em um discurso, vez que processo, em que todos os
interessados poderiam, ou podem, levantar pretensões argumentativas a serem
tomadas em conta, sendo admitidas, ou rechaçadas, já que todos têm reconhecidas
iguais liberdades comunicativas de participar da construção pública das próprias
questões pela Sociedade colocadas –, não abra espaços para a aceitação.
nitidamente um debate público, e aqui mais especificamente o de aprovação de
um projeto de lei, envolve pontos de vista passíveis de serem justificados, mas não
somente, em preferências ou valores pessoais. o fato de uma tal proposta ser apro-
vada não significa que todos passaram a compartilhar dos valores daqueles que
67 aliás, mesmo porque a praxis comunicativa da modernidade não apresenta qualquer pretensão de conven-
cimento do outro acerca de gostos ou preferências pessoais. muito antes pelo contrário, tal praxis se cons-
truiu em espaços de pluralidade ética sem qualquer ambicioso projeto de construção de uma homogeneida-
de ética, ou valorativa, dos concidadãos. embora não possamos convencer o outro sobre concepções de vida-
boa, podemos, todavia, em face de uma pretensão levantada por um mesmo indivíduo, problematizar em
torno de um juízo de veracidade.
68 günTher, Klaus. communicative Freedom, communicative power, and jurisgenesis, cit.
defendiam referido projeto de lei, nem que os “vencidos” na disputa argumentati-
va possam deixar de discordar da forma como uma determinada matéria fora regu-
lamentada. a questão há que ser analisada em termos do processo comunicativo
de construção da decisão que, no caso em tela, há que ser assumido como o pró-
prio processo legislativo.
o fato de em um processo legislativo argumentos éticos, mas também morais
e pragmatistas, serem trazidos na defesa ou na repulsa de um determinado proje-
to em discussão, jamais significa que para a aprovação deste mesmo projeto tenha-
mos que unanimemente convencer a todos, e a cada participante, deste processo
público de discussão, sobre os “argumentos centrais”. mas, ao mesmo tempo, tem-
se que garantir a possibilidade de participação, legislativa ou jurisdicional, consi-
derada a especificidade do caso, de qualquer afetado por essa decisão em sua cons-
trução: do contrário, não estaríamos levando a sério a dimensão argumentativa
subjacente à construção da modernidade; estaríamos vedando a participação a um
co-implicado com base em um argumento de autoridade incapaz de se sustentar,
mais uma vez, argumentativamente em face do mundo-da-vida moderno.
a aceitabilidade, pois, é dependente de um processo social de construção dis-
cursiva. algo, no mundo moderno, há que ser tido como aceitável na medida em
que seja fruto de um processo pública e argumentativamente sustentável em face
daquilo que nós mesmos compartilhamos. e isto é algo do qual não podemos dis-
por: as regras do jogo argumentativo não estão disponíveis para os seus participan-
tes. as regras do jogo argumentativo são atreladas à modernidade, e a própria
Sociedade não tem como dispor dessas regras sem deixar de ser, pois, moderna. e
isso tem a ver diretamente com o alicerce normativo da forma jurídica moderna
nos princípios de igualdade e liberdade explicitados no capítulo 3.
isso haBermaS entende como atinente à uma dimensão pragmática-universal
que se construiu com a, e pela, própria modernidade;69 isso, afinal, é que nos per-
mitiria continuar projetando o caráter moderno de nossa Sociedade que, ao com-
preender isso, aprende e se torna mais complexa, altamente moderna, pois.
conclusões alcançadas em respeito tão-somente à força do melhor argumen-
to, geradas, enfim, pelo poder comunicativo, sendo, assim, aceitáveis a todos que
desse processo tiveram e têm a possibilidade de participar, não excluem espaços
de aceitação, como já insinuado anteriormente. uma lei, por exemplo, legitima-
mente produzida, isto é, racionalmente aceitável, pode ser, por vários concida-
dãos, também aceita no sentido de se concordar com a forma com que trata deter-
minado assunto. mas ainda que do ponto de vista particular, de minha compreen-
69 construções devedoras aos desenvolvimentos presentes no capítulo primeiro em: haBermaS, Jürgen.
Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discur-
so, cit.
são de vida-boa, eu discorde de uma determinada regulamentação legal, essa
mesma regulamentação é para mim aceitável se eu tive possibilidade de participar
em sua construção – seja, exemplificadamente, participando do processo de elei-
ção dos representantes no Poder Legislativo e no Poder executivo, seja participan-
do dessa discussão na esfera pública, através de manifestações públicas, liberdade
de imprensa ou, ainda, fazendo valer minhas pretensões em vias institucionaliza-
das abertas, inclusive, à Sociedade civil. o fato de algo ser para todos aceitável não
significa, ou não depende, da aceitação de todos. não temos todos que comparti-
lhar de convicções aclamadas em termos de uma unidade nacional ou de um “espí-
rito do povo” para sermos membros de uma mesma comunidade jurídica. o poder
comunicativo gerado em discursos racionais é aquilo a garantir a legitimidade,
inclusive, da produção do direito. não temos que pretender vislumbrar, portan-
to, uma unidade ético-política para que seja possível uma vida sob o império de
um direito legítimo – não temos que compartilhar dos mesmos valores, mas temos
que assumir, por sua vez, a dimensão procedimental subjacente à praxis argumen-
tativa referida à modernidade.
Somente em respeito a esta dimensão, de respeito às iguais liberdades comu-
nicativas e de participação reconhecidas nesse processo público de discussão, é
que o direito é capaz de retirar sua força de legitimação. isto implica afirmar que
somente a democracia é capaz de justificar o direito,70 em face dessa idéia de acei-
tabilidade, na modernidade que se construiu como plural e como complexa; como
uma Sociedade incapaz de ingenuamente pretender explicações ético-materiali-
zantes para questões que envolvem uma infinitude de pontos de vista e preferên-
cias. disso se pode concluir que o papel da constituição, na modernidade, há que
ser assumido como o de garantidor das próprias condições comunicativas de pro-
dução de legitimidade e geração de poder comunicativo.71
disto se infere que essa dimensão, que aqui especificamente está recortada em
termos do direito, é constitutiva da própria forma jurídica moderna da qual o
direito, por sua vez, não pode dispor: do contrário, repita-se, o direito não poderia
ser considerado “moderno” – e, como debatido no capítulo 3, não se trata de uma
questão meramente funcional como haBermaS outrora insinuou. essa é a razão pela
qual sustentamos o entendimento de que o “direito” nazista não pode ser interpre-
tado como direito moderno, ou como paradigma do direito moderno; antes o
“direito” nazista há que ser interpretado como anti-moderno por, justamente, se
70 haBermaS, Jürgen. o estado democrático de direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditó-
rios?, cit., p. 152 et. seq.; haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático
de derecho en términos de teoría del discurso, cit., p. 61.
71 haBermaS, Jürgen. il nesso interno tra stato di diritto e democrazia. L’inclusione dell’altro: studi di teoria
política. Trad. Leonardo ceppa. milano: giangiacomo Feltrinelli, 1998, p. 249 et seq.
colocar na contra-mão do projeto moderno de igual reconhecimento de liberdades,
na maior medida possível, aos e pelos concidadãos. afinal, o “direito” nazista não
pode ser pretendido como racionalmente justificado em face do caráter moderno da
modernidade: antes, justifica-se não em um poder comunicativo, mas em termos de
um argumento de autoridade, bem ao gosto da teoria kelseniana.
É claro que as problematizações referentes a um discurso de justificação72
sempre nos conduzem a questionamentos acerca do processo legislativo, porque
processo democrático de produção do direito. Por outro lado, também é relevan-
te o processo de aplicação do direito, processo esse que envolve pretensões de cor-
reção normativa em face de um caso concreto. acima já tivemos a oportunidade
de rapidamente apontar no sentido de que a racionalidade na modernidade sofreu
um processo de especialização, e uma das pretensões de racionalidade que podem
ser assumidas pelos falantes é, pois, a pretensão de correção normativa que, obvia-
mente, envolve um juízo de adequabilidade normativa em face de uma situação
concreta recortada e problematizada em termos comunicativos.
o mérito dos escritos de KLauS günTher73 reside, dentre outros, em proble-
matizar as diferenças entre um discurso jurídico de justificação da norma, atinen-
te, a uma melhor luz, a um processo democrático, e um discurso de aplicação da
norma jurídica, referido a um processo jurisdicional – mas não só. haBermaS, assu-
mindo a proposta de günTher, mas a redimensionando em face da dimensão prag-
mática-universal à qual já nos referimos, vai aprofundar essa discussão sobretudo
em face dos processos comunicativos e da diferenciação funcional dos sistemas.74
o processo de modernização há que ser assumido, dentre outras questões,
como um também processo de diferenciação funcional dos sistemas. isso significa
que, diferentemente da Sociedade medieval centrada na religião, os sistemas
sociais, ao longo da modernização da Sociedade, passaram a se diferenciar, sendo
cada um dotado de uma função que lhe é própria e sustentável argumentativa-
mente em face do mundo-da-vida. não nos cabe aqui retomar qual seria a função
do direito. Por ora basta esclarecer que argumentos religiosos, políticos, morais,
econômicos, dentre outros, não podem encontrar, no processo de aplicação do
direito, aquela força do melhor argumento. isso porque se a Sociedade moderna
é uma Sociedade descentrada, o é exatamente na medida em que cada sistema pas-
72 nesse sentido, cf. os desenvolvimentos em: günTher, Klaus. The sense of appropriateness: application dis-
courses in morality and Law. Trad. John Farrell. albany: State university of new york, 1993.
73 cf., nesse sentido: günTher, Klaus. communicative Freedom, communicative power, and jurisgenesis, cit.;
günTher, Klaus. The sense of appropriateness: application discourses in morality and Law, cit.; günTher,
Klaus. un concepto normativo de coherencia para una teoría de la argumentación jurídica. Trad. Juan
carlos velasco arroyo. doxa, v. 17-18, pp. 271-302, 1995.
74 reflexões sobretudo desenvolvidas no capítulo quinto em: haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el
derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.
sou a ser seu próprio centro, assim também refletido em termos de uma diferen-
ciação de argumentos capazes de serem assumidos como determinantes em pro-
cessos argumentativos de problematização de pretensões de racionalidade.
Por isso é que nem argumentos éticos – referentes a concepções de vida-boa,
a valores, enfim –, nem argumentos morais – tocantes ao justo, isto é, àquilo capaz
de ser interpretado como decidido no igual interesse de todos –, nem argumentos
pragmatistas – que digam respeito aos meios de se alcançar uma finalidade, sem-
pre parcialmente eleita –, podem ser assumidos como argumentos determinantes
em uma aplicação jurídico-normativa.75 o juízo de correção normativa, em razão
da especialização dos juízos de racionalidade co-implicada no processo de diferen-
ciação funcional dos sistemas, no que diz respeito ao direito, somente se sustenta
em face de argumentos que tomem por centro, pois, o próprio direito. com isto
afirmamos que a modernidade exige que argumentos jurídicos, e tão-somente
argumentos jurídicos, sejam assumidos como determinantes do juízo de correção
em um processo argumentativo de aplicação normativa. Somente assim é capaz de
se garantir uma aplicação do direito que respeite a condição moderna de nosso
tempo, que respeite o processo social que se constituiu, e se constitui, na própria
modernidade, que respeite, portanto, a racionalidade e a aceitabilidade, argumen-
tativamente sustentáveis, na construção da praxis.
as conseqüências da assunção desses pressupostos subjacentes à praxis comu-
nicativa se refletem mais concretamente em algo que tanto o paradigma liberal,
quanto o paradigma social, foram incapazes de perceber. a aplicação do direito
não pode se prender a uma determinada concepção ética, axiológica, a introjetar,
no seio da argumentação jurídica de aplicação, uma ordem e uma hierarquia de
valores, a serem assumidas como determinantes do próprio juízo de correção nor-
mativa. antes, cabe-nos esclarecer que, se questões éticas – como também as
morais e pragmatistas –, surgem na argumentação das partes na reconstrução do
caso concreto e nas suas interpretações parciais do direito, o desafio da imparcia-
lidade do julgar exige, justamente, o afastamento dessas questões de modo a per-
mitir que a argumentação que venha a fundamentar o juízo de adequabilidade
normativa seja, sempre, um argumento jurídico, o melhor argumento jurídico,
assim sustentável em face do pano-de-fundo que o sistema jurídico moderno, e
seus princípios, representam.
do fato de que essas questões éticas, morais e pragmatistas sejam assumidas
como determinantes em um processo legislativo em que todos têm iguais possibi-
lidades de fazer valer seu ponto de vista no debate público, não decorre que pos-
75 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit.; haBermaS, Jürgen. on Law and disagreement. Some comments on
“interpretative Pluralism”. ratio Juris, v. 16, pp. 187-194, 2003.
sam ser determinantes da aplicação do direito. afinal, à medida que o direito é
um sistema funcionalmente diferenciado, temos que respeitar esse traço se pre-
tendemos levar a sério uma aplicação racional do próprio direito – e isso signifi-
ca tomar em consideração, de maneira determinante na aplicação do direito,
somente argumentos jurídicos... do contrário, a própria legitimidade da aplicação
normativa estaria posta em xeque: afinal, o lugar de se pretender fazer valer uma
convicção pessoal, ou grupal, na construção de uma norma, há que ser num pro-
cesso democrático, em que todos tenham iguais chances reconhecidas de partici-
par em um discurso público e coletivamente vinculante, e não em uma decisão
jurisdicional que ilegitimamente firmaria um determinado conteúdo ético não
com base em um “melhor argumento” – já que nenhum argumento é capaz de
legitimamente pretender afirmar uma concepção ética como superior à outra, na
medida em que a modernidade se construiu aberta à pluralidade axiológica –, mas
sob o peso de um mero argumento de autoridade a blindar argumentativamente
tal decisão.
Podemos, então, brevemente concluir que a problemática da legitimidade de
normas jurídicas não se trata de uma questão relacionada nem a uma determina-
da e concreta concepção ético-política materializada no espírito do povo, nem a
argumentos de autoridade a retirar da democracia a possibilidade de construção
aceitável do direito. como se pode apreender, trata-se de algo que vem a trans-
cender contextos e paradigmas específicos da modernidade, vez que atrelado a
uma pragmática-universal, a uma forma jurídica que não é daquela comunidade
concreta e circunstanciada, mas que a transcende, porque é referente à
modernidade – somente assim podemos compreender, afinal, a ilegitimidade do
nazismo...
76 cf. sobretudo a partir do capítulo segundo em: dWorKin, ronald. Los derechos en serio. Trad. marta
guastavino. Barcelona: ariel, 1999.
força que geram em uma argumentação jurídica. isso porque, diante de argumen-
tos de princípios, argumentos orientados a uma determinada concepção política
materializada não podem se manter de pé: ora, a aplicação do direito é uma tare-
fa que tem que ser levada adiante sem que nós modifiquemos, a nosso gosto sem-
pre devedor a um posicionamento parcial, o próprio direito ao pretensamente
“dotá-lo” de uma finalidade a ser alcançada...77 o desafio que dWorKin lançou foi
o de, em certos limites, resgatar a própria racionalidade em aplicação do direito.
Para tanto, para que alcancemos uma aplicação racional, válida, legítima do
direito da modernidade é necessário que apreendamos a condição comunicativa
moderna a que este mesmo direito se encontra preso. afinal, somente a partir da
explicitação de uma dimensão hermenêutica é que nos é possível interpretar qual-
quer fato, qualquer texto: somente quando compreendemos que nosso mundo-da-
vida é construído por pré-compreensões intersubjetivamente partilhadas é que
entendemos como é possível, a partir dessas mesmas pré-compreensões, nos
comunicar, problematizando ora alguns aspectos desse mundo-da-vida, ora outros
traços, mas nunca problematizando todo este mundo-da-vida de uma só vez... o
mundo-da-vida é esse universo de questões silenciadas, de questões que um dia
tomamos contato e que, por ser impossível sempre trazê-las, a todo momento, à
tona, refogem, quando não problematizadas argumentativamente, para este pró-
prio mundo-da-vida silencioso, mas sempre presente, pois, sem ele, não seria pos-
sível nos comunicarmos.78
a construção do direito e a interpretação do direito também têm que levar
em consideração esse aspecto da construção comunicativa. não é possível, quan-
do da produção normativa, problematizar todas e quaisquer hipóteses imagináveis
e futuras que o direito terá que enfrentar. não mais acreditamos que seja possível,
mediante um processo de codificação, esgotar o conteúdo normativo de determi-
nada matéria: os duzentos anos que já se passaram desde a entrada em vigência do
code napoléon, bem como as lutas e os embates teóricos deste fato advindos, já
nos serviram como um grande aprendizado nesse sentido. Quando da produção
normativa em um processo legislativo, sempre são pensados casos-padrão, mas
nunca se pretende, ou se pode pretender, vislumbrar essa atividade como capaz de
esgotar os casos que virão.
e é este desafio, o de interpretar o direito em face de um caso concreto antes
não ocorrido, ou não sequer imaginado quando da própria construção legislativa,
77 dWorKin, ronald. de que maneira o direito se assemelha à literatura? uma questão de princípio. Trad. Luís
carlos Borges. São Paulo: martins Fontes, 2001.
78 noção devedora dos desenvolvimentos de gadamer, hans-georg. Philosophical hermeneutics. Trad. david
Linge. university of california: Berkeley, 1976. assumido criticamente por haBermaS a partir da pragmá-
tica-universal, dentre outros textos, no capítulo primeiro em: haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre
el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.
que a teoria constitucional vem se debatendo ao longo dos últimos anos. e para
enfrentar esse desafio é necessário mergulharmos nas dimensões hermenêutica e
pragmática-universal da linguagem, no processo de modernização da Sociedade,
de forma que alcancemos uma adequada compreensão do direito moderno, como
aqui se tem feito, e da própria Sociedade.
e levando isso adiante, somente podemos concluir que o direito não mais
pode ser pretendido desde uma postura convencionalista; não podemos pretender
mais encarar o direito como um “conjunto de normas convencionalmente acor-
dadas por seus afetados ou por seus representantes”... essa compreensão é incapaz
de levar a sério todo o processo de modernização do direito... É incapaz de com-
preender que o direito pode ser assumido como esgotado em regras convenciona-
das, porque sempre surgirá o problema daquelas questões sobre as quais antes
sequer houve qualquer “acordo travado”, o que acaba abrindo espaços para o jul-
gador, em face dessa “nova” situação, decidir com base não no direito, já que não
haveria uma regra para o caso, mas com base naquilo em que pretensamente pode-
ria ser apreendido como o “espírito do direito”, ou o “espírito do povo”, ou a “fina-
lidade da lei”, enfim, com base em diretrizes ético-políticas, ou morais, incapazes
de garantir a imparcialidade do julgar.
exatamente por esses problemas é que, retomando dWorKin, este afirma que
somente podemos interpretar o direito adequadamente na medida em que o assu-
mamos como uma construção que vem se desenvolvendo desde o passado. o
direito há que ser interpretado como fruto de um único autor, qual seja, a comu-
nidade jurídica, que vem desenvolvendo esta sua “obra” desde o passado... assim,
o desafio nosso hoje é continuar, da melhor maneira possível, aquilo que desde o
passado vem se desenvolvendo; seria alcançar o sentido dessa prática de forma a
melhor desenvolvê-lo aqui, mas este sentido não pode ser dado pela convicção
particular de um juiz que se julga como legitimado a oferecer o rumo do direito.
afinal, o direito tem uma ambição para si mesmo,79 qual seja, a busca da sempre
correta interpretação para um caso concreto, e este desafio há que ser alcançado
mediante um esforço hermenêutico do intérprete de se afastar de argumentos que
não sejam referidos ao direito e, em face dos argumentos jurídicos possíveis em
face do caso, decidir por aquele melhor, isto é, por aquele que permite, diante do
caso, levar a sério esse sentido do direito que vem se desenvolvendo.80 mais
adiante veremos que tal sentido somente pode ser melhor compreendido quando
se percebe que há uma exigência normativa subjacente à própria forma jurídica
79 cf. texto central para a compreensão do pensamento de dWorKin em: dWorKin, ronald.Law’s ambitions
for itself. virgina Law review, v. 71, n. 2, pp. 173-187, 1985.
80 dWorKin, ronald. de que maneira o direito se assemelha à literatura? uma questão de princípio, cit.;
dWorKin, ronald. Law’s ambitions for itself, cit.
moderna que transcende contextos específicos, isto é, que se encontra por detrás
dos específicos paradigmas liberal, social e procedimental, e que inclui o próprio
desafio e projeto atinente ao direito moderno, qual seja, o reconhecimento, no
maior grau possível, de iguais liberdades indistintamente a todos; somente assim
podemos, de uma melhor maneira, resgatar o que se pode propor como “ambição
do direito para si mesmo”.
ou seja, diante de um caso há sempre que se buscar uma resposta que é a
melhor resposta, ou a resposta correta, e o que nos vai dizer qual resposta há que
ser assim assumida é o próprio caráter moderno do direito e tudo o mais que nisso
se encontra co-implicado: a forma jurídica moderna, o projeto moderno do
direito, o fato de o direito ser um sistema diferenciado funcionalmente, a cons-
ciência de que o direito é fruto de processos comunicativos sempre precários e
nunca absolutos capazes de tudo prever. isso tem um impacto tremendo em nossa
concepção de direito: afinal, em face de todas essas questões co-implicadas,
somente podemos interpretar o sistema jurídico como um sistema de princípios
compartilhados intersubjetivamente. Significa afirmar que o direito não se pode
pretender reduzido a normas convencionadas, porque isso seria desconsiderar a
dimensão hermenêutica que perpassa nossas práticas comunicativas.
ora, em razão da própria complexidade do mundo moderno, e diante da
consciência que temos hoje da condição de construção do mundo moderno, o
direito há que ser assumido como um sistema de princípios compartilhados pelos
membros de uma concreta comunidade jurídica, mas que dessa mesma concreta
comunidade transcende, não no sentido de um direito natural, mas no sentido de
conexão ao caráter moderno do direito: tal nota há que se perceber atrelada não
a contextos específicos, mas, embora dependentes destes para se verificar, é refe-
rida à modernidade.
e neste sentido é que os direitos fundamentais cobram um papel central
nesse mesmo sistema de princípios que compreendemos como direito. Porque
também são direitos garantidores das condições de geração de legitimidade.
assumido como um sistema de princípios atrelado a uma forma jurídica
moderna, que constrói a si mesmo legitimamente mediante processos públicos de
discussão em que todos temos a possibilidade de participação reconhecida, e ao
mesmo tempo interpretado como incapaz de ser encarado como fruto exclusivo de
convenções explícitas, como é possível ao direito decidir sobre um caso difícil,
para usarmos a expressão de dWorKin, sem abrir mão do seu caráter moderno e,
por conseguinte, em respeito aos direitos fundamentais dos envolvidos?
o desafio da interpretação constitucional reside exatamente em permitir
uma reflexão crítica acerca dessa situação, de uma tensão argumentativa em sede
de aplicação entre a faticidade das pretensões levantadas pelos envolvidos e a vali-
dade dessas mesmas pretensões. nesse sentido é que a Teoria do discurso é bas-
tante devedora da compreensão que günTher,81 a partir do aprofundamento das
questões levantadas por dWorKin, vai oferecer no sentido de que todo o direito,
vez que sistema principiológico, é sempre, em face de um caso a ser problemati-
zado argumentativamente, em princípio aplicável. isto é, todas as normas do
direito, que em abstrato hão que ser assumidas como princípios, são, sempre, em
princípio aplicáveis diante de um caso. São as problematizações do caso, as espe-
cificidades do caso apresentadas pelas argumentações das partes que participam
em igualdade no processo de aplicação do direito, bem como as interpretações do
direito que as partes constroem, é que permitirão, ao próprio processo de aplica-
ção normativa, afastar aquelas normas que antes eram tão-somente em princípio
aplicáveis, rumo à norma capaz de ser agora interpretada como a norma adequa-
da, enfim, a regra para o caso concreto. Tal juízo de adequabilidade normativa
somente é possível de ser alcançado quando se leva em consideração que o direito,
vez que sistema principiológico, há que ser interpretado como um sistema de
princípios idealmente coerente, para utilizarmos a expressão de günTher, ou
ainda de maneira a garantir a integridade do direito, na perspectiva de dWorKin.
conectando essas questões àquela justificação normativa da própria forma
jurídica moderna, podemos entender que tal coerência normativa, ou integridade,
há que ser interpretada em face do próprio projeto moderno de reconhecimento
de iguais liberdades, na maior medida possível, a todos. isso retoma a temática no
sentido de que o problema de interpretações normativas concorrentes acerca de
um determinado caso haverá que ser superado a partir da assunção da forma jurí-
dica moderna e de suas implicações. o direito não pode ser interpretado a partir
de uma determinada concepção ética pretensamente materializada no “espírito do
povo”; nem uma decisão jurisdicional, ainda que irrecorrível, pode ser assumida
como válida, racional ou legítima. não podemos pretender qualquer interpretação
do direito como sendo interpretação igualmente válida: não é qualquer uma das
pretensões interpretativas que concorrem na decisão de um caso, que podem ser
assumidas como indistintamente adequadas. afinal, somente uma resposta há que
ser considerada a adequada, aquela que impõe sua força pela do melhor argumen-
to que então se sustenta em face das regras da comunicação, do poder comunica-
tivo, do respeito aos direitos fundamentais, da forma jurídica moderna, enfim, do
caráter moderno do direito moderno. e essa resposta, assumindo toda essa dimen-
são complexa, poderá, ao final, ser sentida, exatamente por tudo isso, como coe-
rente ao direito... afinal, o desafio do intérprete é resgatar, do pano-de-fundo
constitutivo da própria praxis comunicativa referida ao direito, os princípios que,
81 noções devedoras a: günTher, Klaus. The sense of appropriateness: application discourses in morality and
Law, cit.; günTher, Klaus. un concepto normativo de coherencia para una teoría de la argumentación jurí-
dica. Trad. Juan carlos velasco arroyo. doxa, v. 17-18, pp. 271-302, 1995.
enquanto tais, hão que ser assumidos como jurídicos; também aqui, quando não
problematizados, os princípios refogem neste pano-de-fundo, devendo, sobretudo
em face de novos casos difíceis, ser resgatados de maneira reconstrutiva, de forma
a permitir, ao final, a reconstrução do direito diante do caso.
Somente assim é que podemos vislumbrar, agora, a atividade de aplicação do
direito como aceitável, como capaz de ser racionalmente justificada em termos
comunicativos de respeito recíproco e igual às liberdades dos envolvidos. esse é exa-
tamente o motivo pelo qual não se pode pretender validamente introjetar na inter-
pretação do direito uma ordem, ou uma hierarquia axiológica, bem ao gosto de uma
jurisprudência dos valores82 que tão alto ainda fala na teoria de roBerT aLeXy.83 não
é aceitável submeter o outro aos meus valores, sempre parciais; mas é a todos acei-
tável decidir um caso tomando por base aquilo pública e comunicativamente cons-
truído em respeito às liberdades de participação de todos os possíveis afetados.
nesse sentido é que nos interessa agora retomar, em outro nível, a discussão a
respeito dos costumes como supostamente “fonte” do direito. como pudemos per-
ceber, a doutrina tradicional, seja aos moldes da escola histórica, seja aos moldes
de um neo-positivismo como o de KeLSen, vem propondo que uma prática unifor-
me, contínua, à qual os cidadãos, ou a maioria dos cidadãos, interpreta como “juri-
dicamente necessária”, equivale dizer, como “vinculante” e “exclusiva”, no sentido
de FazzaLari, seria capaz de ou fazer refletir uma norma jurídica a partir do “espí-
rito do povo”, do qual o costume seria uma manifestação, ou criar uma norma jurí-
dica, porque tal ato de produção estaria pressuposto na norma fundamental.
o traço interessante de aqui se expor é que todas essas propostas acabam assu-
mindo a aceitação do costume por parte de membros da comunidade como o núcleo
gravitacional da própria idéia de opinio juris vel necessitatis. com isso afirmamos
que para essas interpretações somente quando os indivíduos assumem uma prática
constante, ao longo de um determinado período, com traços gerais uniformes e
82 Por uma crítica à “jurisprudência dos valores” e seus pressupostos, cf.: gaLuPPo, marcelo. igualdade e difer-
ença: estado democrático de direito a partir do pensamento de habermas. Belo horizonte: mandamentos,
2002; gaLuPPo, marcelo. os princípios jurídicos no estado democrático de direito: ensaio sobre o modo de
sua aplicação. revista de informação Legislativa, Brasília, v. 36, no 143, pp. 191-209, 1999; rocha, heloísa
helena nascimento. elementos para uma compreensão constitucionalmente adequada dos direitos funda-
mentais. in: caTToni de oLiveira, marcelo (coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo
horizonte: mandamentos, 2004; Souza cruz, Álvaro ricardo de. hermenêutica Jurídica e(m) debate: o
constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial. Belo horizonte: editora
Forum, 2007.
83 cf. escritos centrais do autor, que nos permite concluir pela perda do caráter normativo do direito quando
assumida sua proposta: aLeXy, robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. ernesto garzón valdés.
madrid: centro de estudios constitucionales, 1993; aLeXy, robert. Sistema jurídico, princípios jurídicos y
razón práctica. in: derecho y razón práctica. mexico: Fontamara, 1993; aLeXy, robert. Justification and
application of norms. ratio Juris, vol. 6, pp. 157-170, 1993; aLeXy, robert. a theory of constitucional rights.
oxford: oxford university Press, 2002; aLeXy, robert. constitutional rights, Balancing and rationality.
ratio Juris, vol. 16, pp. 131-140, 2003.
envolvida numa capa de aceitação do seu “significado jurídico”, é que se estaria
diante de um “costume”. do contrário, se a prática fosse uniforme, constante e rei-
terada, sem essa suposta aceitação do seu sentido, tão-somente sociologicamente
constatável, não se poderia falar de um “costume” a refletir/criar normas jurídicas.
Tudo isso acaba por inserir o pressuposto da opinio juris vel necessitatis numa
discussão que é, por final, referente à própria modernidade. Será que o simples fato
de os indivíduos, membros de uma determinada comunidade, passarem a aceitar
que uma certa compreensão normativa há que reger suas vidas, é capaz de estabe-
lecer novos parâmetros normativos, refletidos em uma “nova norma” a ser, a par-
tir de então, assumida como uma “norma jurídica”? ou será que esta questão tam-
bém há que ser problematizada em face do caráter moderno do direito a tomar em
consideração toda a dimensão lingüístico-pragmática subjacente?
aqui já podemos com firmeza perceber a insustentabilidade da justificação
do direito apresentada tanto pela escola histórica de Savigny e PuchTa, bem
como pela proposta positivista de KeLSen. resta-nos, em face da distinção entre
discursos de aplicação e justificação normativas, enfrentar a questão dos costumes
como pretensamente capaz de nos permitir vislumbrar uma nova norma jurídica.
a referência e crítica que KeLSen faz a compreensões que vão assumir que os
costumes somente se transformariam em normas jurídicas quando assumidos
pelos Tribunais tem uma razão: afinal, à medida que o direito da modernidade,
em face da moral, possui um diferenciado aparato institucional central para sua
própria operacionalização, o reconhecimento do direito de uma Sociedade é co-
dependente, pois, de seu próprio “processamento” em foros institucionalizados.
com isso queremos dizer que as intuições normativas dos cidadãos acerca do
direito dependem, em uma certa medida, de reconhecimento institucionalizado –
por sua vez dependente de um reconhecimento capaz de gerar legitimidade em
termos comunicativos – a estabilizar, muitas vezes, o sentido jurídico dessas mes-
mas intuições. com isso, não estamos afirmando que os “costumes” sejam capazes
de ser transformados e reconhecidos como dotados de “força jurígena” quando um
tribunal decide acerca de um caso que os envolva.
muito antes pelo contrário, afirmamos que os “costumes” não são capazes de
serem assumidos como “fonte” do direito, quando se tem problematizada a con-
dição moderna do direito moderno. defendemos aqui a posição de que não é uma
mera constatação sociológica de repetição reiterada, contínua e uniforme de uma
prática, prática esta aceita pelos seus realizadores como dotada de um “sentido
jurídico”, aquilo a garantir a legitimidade, a racionalidade, enfim, da interpreta-
ção desse mesmo ato como sendo dotado de um sentido jurídico determinante.
afinal, como vimos, o direito somente pode ser assumido como construído
legitimamente quando todos temos iguais possibilidades de participar em sua pro-
dução; com isso não afirmamos, jamais, que o direito possa ser compreendido
como esgotado nas normas surgidas desse jogo público de discussão em um pro-
cesso legislativo. antes, tomamos o cuidado de esclarecer que o sistema jurídico
há que ser apreendido como um sistema principiológico, sistema este capaz de
sempre se reinterpretar em face de novos casos rumo àquela capaz de ser conside-
rada uma resposta correta para cada caso. o fato de criarmos normas em proces-
sos legislativos de discussões e acordos, não decorre que o direito há que ser
entendido como esgotado nesses acordos: o respeito à dimensão hermenêutica e
pragmática-universal referida ao direito nos permite, argumentativamente, ir
“desenrolando”, “desenvolvendo”, “des-cobrindo” o direito em face de novos
casos, vez que assumido como sistema principiológico. Tudo isso em respeito à
forma jurídica moderna, e ao próprio projeto moderno do direito, qual seja, a
busca pelo igual reconhecimento de liberdades a todos os concidadãos, na maior
medida possível – igualdade esta a ser sempre interpretada diante das especifici-
dades dos casos, e não em “bloco”.
dessa forma é que quando percebemos que a referência aos costumes de nada
mais se trata do que de uma constatação sociológica de uma repetição aceita dessa
mesma atividade, podemos concluir o quão problemática é tal interpretação.
afinal, como visto, não podemos assumir como legítimo aquilo tão-somente acei-
to pelos membros de uma comunidade jurídica; há vários sentidos para a interpre-
tação da aceitação que não aquele atrelado à aceitabilidade. a legitimidade de uma
interpretação principiológica em face de um caso concreto há que, sempre, levar
em consideração a necessidade do respeito às condições de racionalidade, de acei-
tabilidade do próprio juízo de correção normativa que se pretende – assim é que
é, pois, possível superar validamente a tensão entre a faticidade das pretensões
levantadas e a legitimidade da solução que se pretende.
não é a simples referência a uma prática realizada uniforme, constante e rei-
teradamente com a “convicção” aceita por aqueles que a realizam de que assim se
deve portar aquilo capaz de criar uma norma a ser assumida por toda a comunida-
de jurídica. Se é verdade que determinadas práticas, determinados atos, podem
ser, aproblematizadamente, sentidos pelos indivíduos como que dotados de um
sentido jurídico, não podemos, assim, ainda que esses indivíduos aceitem que
aquilo é algo a regular suas vidas comuns, encarar esse quadro como determinan-
te do sentido jurídico-normativo da referida atividade.
isso porque somente uma interpretação capaz de assumir o direito como um
sistema de princípios coerente, somente quando a integridade do direito é assu-
mida reflexivamente na interpretação de novos casos difíceis, é que podemos pre-
tender alcançar, discursivamente, o sentido legítimo de tais casos. os costumes,
dessa forma, não são capazes de criar normas jurídicas; não é a mera constatação
sociológica da opinio juris vel necessitatis aquilo a garantir um escudo interpreta-
tivo a “blindar” a própria interpretação da praxis. o que vem a garantir o sentido
jurídico de uma determinada atividade é a reinterpretação, em face dessa mesma
atividade, que se é possível fazer do direito, assumindo sua forma jurídica e seu
projeto modernos, como aquilo a ser encarado como essencial nesse processo de
interpretação.
destarte, a opinio juris vel necessitatis referida aos tradicionais “costumes” é
definitivamente capaz de servir como forte intuição acerca do direito, e de sua
interpretação, diante de um caso concreto. mas tal intuição não pode ser, de
maneira não problematizada, assumida como determinante do direito pelo sim-
ples fato de os indivíduos compartilharem dessa convicção, porque entre eles acei-
ta... antes, a pretensão de validade subjacente a essa intuição normativa há que ser
problematizada em face do direito como sistema de princípios a serem reinterpre-
tados diante daquela mesma intuição. Pode-se concluir pela validade da pretensão
normativa levantada pelos participantes do discurso, como também se pode veri-
ficar sua ilegitimidade. mas esse juízo há que ser alcançado argumentativamente
em face do direito, há que vencer somente, e tão-somente, a força do melhor
argumento: e esta se atrela não à concepção de aceitação, mas antes à idéia de acei-
tabilidade racional...
uma prática reiterada somente poderá ser assumida como capaz de ser inter-
pretada como coerente ao sistema jurídico quando os argumentos que sustentam
esse seu sentido se mantêm de pé diante de uma interpretação assumida reflexiva
e criticamente pelos participantes do discurso. destarte, a conclusão é de que
somente o direito é que pode ser assumido como “fonte” do próprio direito. mas
não no sentido de KeLSen, a tomar como central, no que tange aos costumes, a efe-
tividade e a aceitação de determinados atos reiterados pelos concidadãos. muito
antes pelo contrário, há que se compreender no sentido de que somente a partir
dos princípios jurídicos é que podemos reinterpretar o próprio direito em face de
novos casos, sempre desafiadores à sua integridade e à sua coerência, pois.
os “costumes” podem ser interpretados como consoantes, ou como contrários,
ao sistema jurídico. mas não é o fato de um contingente de indivíduos passarem a
se portar de tal forma, ou deixarem de se portar de outra forma, aquilo a justificar,
de maneira sustentável, a criação de uma norma jurídica ou a não mais existência
de outras... estas são questões que se referem à comunicação, que terá que assumir
e desenvolver o projeto moderno do direito, enfim, o respeito à liberdade e à igual-
dade de maneira reflexiva por parte de um sistema normativo institucionalizado.
os costumes, quando muito, na interpretação da aplicação do direito, hão que ser
assumidos como intuições normativas, como pré-compreensões compartilhadas, a
serem sempre problematizadas argumentativamente em face do caso concreto e do
direito como um sistema normativo idealmente coerente.
nada disso nos impede, muito antes pelo contrário, porque nos convida, a
entender que os chamados “costumes contra legem” tenham um papel de alta rele-
vância na interpretação do direito. diante de um caso os argumentos referidos aos
“costumes contrários à lei” haverão que ser analisados reflexivamente de maneira
a permitir a constatação ou a refutação da pretensão normativa subjacente a estes
argumentos. com isto dizemos que a referência aos “costumes contra legem”, vez
que melhor assumidos como intuições normativas criticáveis, podem pôr em real-
ce determinados traços do direito que deverão ser sempre analisados diante de
cada caso apreendido em sua especificidade e perante o direito principiologica-
mente interpretado. afinal, o fato de algo ser interpretado como, em princípio,
“contrário à Lei” não significa que não esteja em conformidade com o direito...
caPíTuLo 5
da JuriSdição:
ou de uma diScuSSão acerca do conSTiTucionaLiSmo
e do PLuraLiSmo inTerPreTaTivo
i. a TíTuLo de inTrodução
“miniSTro humBerTo gomeS de BarroS: Sr. Presidente, li, com extremo agrado, o
belíssimo texto em que o Sr. ministro FranciSco Peçanha marTinS expõe as suas
razões, mas tenho velha convicção de que o art. 557 veio em boa hora, data venia de
S. exa.
não me importa o que pensam os doutrinadores. enquanto for ministro do Superior
Tribunal de Justiça, assumo a autoridade de minha jurisdição. o pensamento daque-
les que não são ministros deste tribunal importa como orientação. a eles, porém, não
me submeto. interessa conhecer a doutrina de BarBoSa moreira ou aThoS
carneiro. decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer
nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso conso-
lidar o entendimento que os Srs. ministros FranciSco Peçanha marTinS e humBerTo
gomeS de BarroS decidem assim, porque pensam assim. e o STJ decide assim, por-
que a maioria de seus integrantes pensa como esses ministros. esse é o pensamento
do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental
expressarmos o que somos. ninguém nos dá lições. não somos aprendizes de nin-
guém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de
que temos notável saber jurídico – uma imposição da constituição Federal. Pode não
ser verdade. em relação a mim, certamente, não é, mas para efeitos constitucionais,
minha investidura obriga-me a pensar que assim seja.
Peço vênia ao Sr. ministro FranciSco Peçanha marTinS, porque ainda não
me convenci dos argumentos de S. exa.
muito obrigado.”
Tal postura do Senhor ministro nos faz questionar, exatamente, qual o limi-
te e, afinal, qual o papel da atividade e do ato do julgar. dessa forma, nos faz neces-
sário questionar, pois, em que sentido podemos constitucionalmente assumir a ati-
vidade jurisdicional? enfim, de que maneira podemos compreender o “proceder
adequado” da atividade do julgador?
as infelizes palavras do ministro nos fazem lembrar as primeiras linhas de
um antigo livro, qual seja, o discurso do método, em que renÉ deScarTeS, partin-
do, todavia, de pressupostos, os quais hoje não poderiam ser mais assumidos críti-
ca e reflexivamente como aceitáveis, faz a seguinte afirmação, hoje irônica, mas
aqui nesse contexto bastante plausível:
“o bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão
bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer
outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.”1
1 deScarTeS, rené. discurso do método: para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências.
in: descartes. Trad. J. guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: nova cultural, 1996, p. 65.
pe-imparcial” do direito para melhor desenvolver os argumentos centrais nessa
discussão.
assumindo uma postura meramente descritiva e externa ao direito, o “obser-
vador-neutro” certamente partiria para responder à questão afirmando que, defi-
nitivamente, o juiz, para decidir um caso concreto, deve, sim, levar em considera-
ção o direito. e por direito compreende o observador como o conjunto de nor-
mas que, firmadas em acordos expressos, ou até mesmo tácitos – mas capazes de
serem reportados à conduta dos cidadãos –, são aceitas por todos como normas de
cunho jurídico. assim, o processo legislativo se tornaria uma peça central na con-
sideração do observador-neutro que, de sua observação, conseguiria vislumbrar
referido processo como um genuíno momento de criação normativa.
Por suas observações, também sabe o observador-neutro que jamais seria
possível pretender únicas soluções para casos familiares, quanto mais para casos
difíceis. isso porque observando várias decisões para casos afins, não acredita ser
possível decidir de maneira definitiva e correta um caso: em razão de vários juí-
zes sempre decidirem casos semelhantes de maneira completamente diferente,
acredita não ser plausível a pretensão de que para cada caso haja sempre uma
única resposta a ser assumida como adequada, correta, pois, ao mesmo. assim,
acaba por vislumbrar como às vezes não relevante a assunção séria de todos os
argumentos trazidos pelas partes na construção do processo e que dizem respeito
à reconstrução do caso e do direito.
o observador-neutro, muitas vezes espantado com o desenvolvimento da ati-
vidade jurisdicional por muitos, acaba entendendo que não poucas vezes o próprio
julgador se volta contra os argumentos construídos, ainda que com sua participa-
ção, no curso do processo, devorando-os, ignorando-os em sua própria decisão.
isso leva o observador-neutro a entender o juiz como uma figura mítica, um deus
a encarnar o papel do “senhor” da decisão, escolhendo, dentre possibilidades,
aquela leitura que ele entende mais adequada a partir do “seu livre-convencimen-
to”. e esse juiz cronoS vai buscar fundamentar seu ato em uma variada sorte de
razões que podem se fazer patentes ao observador-neutro, o que, inclusive, o leva
a acreditar que decidir um caso concreto à luz do direito seria algo extremamen-
te fácil, já que os mais variados argumentos podem ser chamados a justificar um
posicionamento jurisprudencial.
cronoS muitas vezes acredita que não há que fundamentar sua decisão, ou se
até mesmo acredite que tenha que fazê-lo, assim o faz por mera “formalidade”, já
que muitas vezes encarna seu mítico e poderoso papel a estabelecer que, pelo fato
de ser juiz, sua decisão seria per se válida. e essa validade, segundo pôde consta-
tar o observador-neutro, várias vezes é justificada em termos de um princípio da
autoridade do julgador. em outras situações cronoS pode não exaltar toda sua
fúria e buscar fundamentar suas decisões em critérios “medianos” de “bom senso”
ou “senso comum”, decisões que fazem nosso observador se sentir satisfeito, já que
uma certa justificação da decisão seria apresentada.
uma situação mais complicada que se coloca a cronoS, e que nos reporta
nosso observador-neutro, é a referente ao surgimento de casos anteriormente não
decididos. muitas vezes percebeu nosso observador que cronoS é colocado diante
de determinadas situações jurídicas que jamais foram decididas e que, também, não
haveria qualquer norma expressa para resolvê-las, seja porque tal situação jamais
fora objeto de consideração de qualquer norma convencionalmente firmada, seja
expressamente num processo legislativo, seja tacitamente na praxis cotidiana
representada pelos “costumes” daquela Sociedade. e nosso observador é capaz de
nos relatar que mesmo diante desses casos, em que não se teria qualquer norma
anterior para decidi-los, já que entende o direito como um conjunto de normas
acordadas, seja tácita ou expressamente, enfim, um conjunto de regras convencio-
nadas, cronoS é levado a decidir, mas não a partir de uma norma que o conferisse
embasamento argumentativo no que tange ao cerne da questão em foco. antes, é
possível observar que cronoS decide criando soluções, devorando as pretensões de
direito e de deveres presentes nas argumentações dos afetados pela decisão e dis-
cricionariamente oferecendo aquilo que ele entende como a sua solução adequada
para o caso. muitas vezes é possível perceber que tal juiz se vale de construções
perigosas, capazes de serem remontadas à escola da exegese, e sem qualquer sus-
tentabilidade mais profunda, como a referência à “intenção da lei” ou à “intenção
do Legislativo”2 para decidir esses casos difíceis. Também não é raro de ser levado
por argumentos fáceis e manipuláveis, sempre referentes a noções como as de “bem
comum” e “interesse público”, sempre interpretados à luz de seu ponto de vista.
Tudo isso porque as conclusões a que o observador-neutro pode chegar dizem
respeito ao fato de que, no conjunto de suas anotações, o direito haveria que ser
compreendido como um sistema de regras, um conjunto de normas acordadas, con-
vencionadas, e que na falta de uma convenção abriria a possibilidade ao julgador
de inventar, criar, discricionariamente, a solução para esses novos casos. nesse sen-
tido, não vai entender que o direito se reduziria a textos legislativos, muito antes,
acaba também por assumir os costumes como fatos capazes de gerar novas normas
jurídicas: afinal, os costumes são encarados como acordos tácitos, a gerar em todos
o sentimento de necessidade de seu cumprimento em razão de aceitarem, implici-
tamente, que se trataria de uma determinada conduta juridicamente devida. na
verdade, o que o observador acaba por concluir é que, no que tange a essas práti-
cas, o que importa é o sentimento que todos, ou a maioria dos indivíduos, nutrem
em relação a um dado comportamento. acaba por entender que a eficácia de um
3 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 263 et seq.
preensão da “intenção da Lei” ou dos “legisladores”, para, ao final, e de maneira
subvertida, corromper a interpretação naquilo que ele gostaria que o direito fosse,
hÉracLeS assume que o direito não é invenção exclusivamente sua e que não é ele
quem poderia, arrogantemente, pretender decidir como deveria ser o direito.
antes, se volta hÉracLeS ao passado do direito, para compreender a sua intenção,
o seu sentido, enfim, qual o rumo que o direito, desde o passado, vem apontando
como sendo a direção interpretativa a ser assumida na praxis jurídica.
e a partir da compreensão do ideal subjacente à praxis jurídico-moderna de
reconhecimento de iguais liberdades a todos na maior medida possível é que
hÉracLeS pode, finalmente, construir, diante dos argumentos apresentados no curso
do processo, sua decisão em face do que esses princípios jurídicos nos informam
perante as especificidades de cada caso. e isso pode significar que uma decisão impar-
cial se dê, em determinadas situações, ao assumir in totum, ou em parte, a argumen-
tação de um dos participantes no processo jurisdicional, como também pode impli-
car o não-reconhecimento das pretensões normativas de quaisquer das partes.
assim é que nosso partícipe-imparcial conclui que os “costumes” não podem
ser assumidos como fatos geradores de normas jurídicas. antes, tal como hÉracLeS
se esforçou por construir uma solução que fosse não meramente aceita pelas par-
tes daquele processo, mas sim argumentativamente sustentável a qualquer cidadão
daquela comunidade jurídica, enfim, aceitável, compreende agora o participante
que os costumes jamais criam normas, pelo fato de que não há que ser considera-
do como evento criador de norma jurídica o simples fato de uma determinada
conduta ser reiteradamente praticada com o sentimento compartilhado acerca da
“necessidade jurídica” de sua observação. antes, conclui que as pretensões norma-
tivas referentes aos costumes podem servir como fortes intuições normativas acer-
ca de seu sentido jurídico que, por fim, somente poderá ser constatado em face
desse sistema de princípios que o direito a interpretar representa. não é a respos-
ta simples daquele observador-neutro a constatar uma “convenção tácita” o que
justifica a criação de uma norma jurídica. mas, pelo contrário, tal prática somen-
te poderá ser considerada como juridicamente legítima se permitir uma interpre-
tação sustentável, porque coerente, em face dos princípios jurídicos que desde o
passado vêm se desenrolando.
Podemos perceber, de maneira bastante nítida, o quão estas questões concer-
nentes à melhor compreensão do direito como prática social se mostram refugia-
das no pano-de-fundo de nossa praxis.
em razão disso é que aqui pretendemos estabelecer um enfoque, a partir da
Teoria geral do direito tradicional – e pensada nos moldes neo-positivistas por
hanS KeLSen, daquilo que poderia ser considerado uma busca pela validade/legiti-
midade do direito em termos meramente “formais”, e também a partir de uma
Teoria da Sociedade aos moldes de niKLaS Luhmann, que vai interpretar tais ques-
tões como devedoras de uma leitura tão-somente funcional-objetivante (iii) –,
rumo a uma compreensão democrática e entendida em termos comunicativos do
que seja uma construção e uma reconstrução legítimas, em termos fortes, do
direito (iv). Para tanto, não devemos pretender interpretar as instituições de apli-
cação do direito como fechadas ou cerradas no saber de especialistas, ou naqueles
que nas mesmas se encontram em uma posição privilegiada, porque interna ao
próprio aparato institucional: antes devemos nos atentar para o fato de que a vali-
dade, em termos fortes, de qualquer decisão jurisdicional há que antes estar vin-
culada a uma dada compreensão de democracia que admita, e permanentemente
se mantenha aberta, à participação de todos os afetados a fim de que a própria
decisão se construa como publicamente sustentável (v).
Toda essa reconstrução se faz inevitável quando pretendemos enfocar a ques-
tão da interpretação jurídica a fim de que interpretemos, inclusive, o que possa ser
assumido como um desenvolver constitucionalmente adequado da atividade juris-
dicional.
a pretensão de KeLSen, naquela que pode ser considerada sua principal e cen-
tral obra, era, antes de mais nada, realizar uma ciência do direito que, do ponto
de partida teorético eleito, qual seja, o neo-positivismo, implicava uma descrição
neutra de um objeto delimitado. destarte é que a idéia da Teoria Pura se delineou:
KeLSen pretendia realizar um estudo puro do direito e isso implicava, de início, a
superação de influências filosóficas (metafísicas), religiosas, políticas, morais,
sociológicas, na interpretação e conseqüente descrição do que poderíamos consta-
tar como sendo direito. É claro que o autor não dirigia esse ideal de “pureza” ao
próprio processo de conformação do direito: reconhecia que o direito, quando da
criação de normas (legislativas, jurisdicionais ou administrativas), seria suscetível
a questões políticas, tanto que, por exemplo, em matéria de interpretação, KeLSen
vai afirmar que não poderíamos pretender uma única resposta adequada para um
caso porque haveria uma margem de escolha por parte daquele que deveria apli-
car a norma e que, assim, submetido estaria esse seu ato não a uma ciência do
direito, mas antes à Política do direito.4 afinal, podemos aqui ser levados a com-
8 Luhmann, niklas. das recht der gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1993, p. 44 et seq.
9 Luhmann, niklas. das recht der gesellschaft, cit., p. 136 et seq.
medida em que suas comunicações são orientadas por um código próprio e deter-
minadas pelo próprio sistema, vez que operacionalmente fechado. Se indicarmos
o direito o distinguimos, como sistema, de tudo aquilo que não é direito, razão
pela qual a forma de observação do sistema do direito é “direito/não-direito”. ou
seja, a distinção entre o sistema do direito, observado a partir de suas operações,
e seu ambiente.
a partir dessa distinção entre os códigos dos sistemas é que Luhmann avança
em face das discussões propostas por KeLSen, afirmando que um sistema pode ser
corrompido por outro sistema quando aquele deixar de operar-se com base em seu
código, para passar a orientar suas comunicações por um código de outro sistema.
assim, essa figura da corrupção dos sistemas marca a situação quando, por exem-
plo, o sistema do direito, em suas decisões, deixasse de assumir o seu código lici-
tude/ilicitude, para assumir o código de outro sistema, como o código do sistema
da Política ou da economia. as decisões corrompidas do sistema do direito deixa-
riam, pois, de ser orientadas pelo código do direito, e passariam a ser orientadas
pelo código de outro sistema, o que significaria, pois, em um primeiro momento,
a desconsideração da dimensão programacional (normativa) do sistema jurídico,
como será visto adiante.
mas, do fato de o direito ser operacionalmente fechado, vez que autopoiéti-
co, não decorre que o direito, segundo Luhmann, seja isolado de seu ambiente.
antes, podemos perceber que o direito é cognitivamente aberto ao seu ambien-
te, o que o permite oferecer respostas, ou não, às irritações oriundas de seu am-
biente. assim, a Política e a economia, por exemplo, são sistemas sociais de fun-
ção e em face da forma direito/não-direito, se encontram no lado negativo, isto
é, estão referidos ao ambiente do direito, uma vez que não são construídos com
referência ao código do direito, mas aos seus respectivos códigos e funções.
e como Luhmann encara a norma? a teoria em questão vai afirmar que toda
e qualquer norma jurídica pode ser observada por uma determinada forma, qual
seja, se/então. isso significa que a Teoria dos Sistemas assume a norma como um
programa condicional.10 assim, o fato de as normas serem programas, isto é, de
estabelecerem sob quais condições há que ser atribuído o sentido de licitude, ou
de ilicitude, a um determinado comportamento, faz com que a teoria as encare
como condicionais, como capazes de estabelecer, sempre, as condições a partir das
quais são tomadas em consideração em face dos casos concretos.
nesse sentido, vai sustentar o autor que o direito seria um sistema codifica-
do e programado. o sistema do direito teria um código próprio, referência para
suas operações, além de ser programado, no sentido de que construiria estruturas
11 nesse sentido, cf.: Luhmann, niklas. a posição dos tribunais no sistema jurídico. ajuris, Porto alegre, v. 48,
pp. 149-168, 1990.
e nesse ponto a Teoria dos Sistemas entra em colapso justamente por não
conseguir sustentar seus pressupostos. a partir do momento em que se abre a pos-
sibilidade para os Tribunais criarem os princípios jurídicos, não só fica inexplicá-
vel o princípio constitucional da separação dos poderes, como sem explicação fica
também o sentido condicional das normas e das decisões jurídicas no seio da pró-
pria Teoria dos Sistemas. Luhmann acaba reconhecendo que em determinadas
situações-limite, como essa com a qual estamos trabalhando, pelo fato de não
haver um programa, a operacionalização do direito deixaria de cumprir uma lógi-
ca condicional, rendendo-se a uma operacionalização teleológica, orientada a fins,
sempre ponderáveis e mensurados a partir da óptica daquele que decide, daquele
que inventa a solução para o caso. assim, o Tribunal nesses casos-limite é que
assumiria um papel central do sistema jurídico, literalmente inventando, desde
uma leitura pragmatista, aquilo que é a solução para o caso, mas não a partir do
que as normas jurídicas disciplinam, porque da maneira que assumiriam o concei-
to de norma, não haveria que se falar em uma norma sequer para esse “novo caso”,
porque antes não fora previsto...
ou seja, Luhmann acaba se contradizendo, justificando uma corrupção do sis-
tema do direito por outros sistemas porque incapaz de, a partir da sua postura de
observador, compreender a complexidade do direito e a limitação de sua visão e de
seus pressupostos. acaba assumindo que o direito, nessas situações, realizaria uma
abertura operacional, isto é, passaria a ser operacionalizado por referência a códi-
gos de seu ambiente, e não a partir de seu “interior”. isso leva Luhmann a reconhe-
cer tacitamente, com KeLSen, que as autoridades jurisdicionais seriam dotadas de
um poder para criar normas, de um poder de invenção, quando se encontrassem
perante um caso não “previsto” convencionalmente por qualquer outra norma
anterior, ou cuja solução do direito fosse desinteressante sob um viés axiológico –
sobretudo em KeLSen. ou seja, a autoridade, nessas situações, acabaria sendo inter-
pretada como não limitada pelo direito para construir a solução do caso, já que não
haveria qualquer norma jurídica capaz de ser referida a essa nova situação exata-
mente porque sua “novidade” não fora capaz de ser convencionalmente vislumbra-
da pelo Legislativo ou pelos súditos em suas “práticas reiteradas”...
cronoS pensa exatamente assim, ainda que de uma forma não tão bem siste-
matizada, mas esses são os pressupostos de sua maneira de enxergar o direito e de
o interpretar. no exercício de sua atividade, muitas vezes cronoS acredita, real-
mente, ser dono de “sua” jurisdição, lançando sua fúria mitológica contra aqueles
que se atrevem a oferecer-lhe um caso antes não imaginado por ninguém. nessas
situações, cronoS acredita se encontrar acima das partes e do direito, acima de
todos, e de seu posto seria legitimado a decidir da maneira que ele acredita que
deva ser a solução do caso, criando, ao gosto de Luhmann, soluções, princípios,
que acredita não ter qualquer respaldo em outra norma, senão em seu “bom
senso”. não interessa a cronoS o que dizem os estudiosos do direito, não interes-
sa a cronoS uma compreensão mais sofisticada do direito a assumir a força nor-
mativa dos princípios. antes, pressupõe nosso juiz-devorador que a solução para
os casos há que partir de sua convicção pessoal, ainda que os outros não compar-
tilhem de tal convicção... acredita que agir “eticamente”, enfim, cumprir de
maneira adequada o seu papel é lançar decisões que, ainda que travestidas de uma
certa argumentação jurídica, não passam de expressões daquilo que ele gostaria
que fosse o direito... afinal, em sua visão, o direito não teria resposta para essas
situações...
12 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 172.
13 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 63 et seq.; haBermaS, Jürgen. verdad y justificación, cit., p. 65 et seq.
nosso participante um nível mais profundo da experiência jurídica, uma dimensão
mais fundamental e que, por sua fundamentabilidade, nos permite compreender
o direito, e não somente descrevê-lo.
a isso KeLSen e Luhmann sequer voltaram seus olhos, porque em suas visões-
de-mundo não cabia a referência a essa dimensão hermenêutica. antes, acredita-
vam que a ciência do direito teria, sim, um papel de observação/descrição do
direito, com a pretensão de que a descrição pudesse satisfazer a complexidade da
tarefa cognoscitiva referida ao direito. Por outro lado, defendiam que tal postura
de observador também fosse assumida pelo aplicador do direito, a observar como
normas jurídicas somente aquelas convenções condicionais a preverem suas pró-
prias situações de aplicação.
nosso participante-imparcial tem a intuição de que aqui reside um dos pro-
blemas centrais de uma compreensão neo-positivista do direito e dessa atividade
interpretativa. afinal, se o participante consegue vislumbrar a possibilidade de
uma decisão imparcial, por exatamente levar em conta, e a sério, todos os argu-
mentos das partes interpretados num determinado contexto paradigmático, por
outro lado denuncia que aquela pretensão de neutralidade muitas vezes tão-níti-
da nas propostas interpretativas de Luhmann, mas sobretudo de KeLSen, há que ser
deixada de lado. Se neutralidade significa o afastamento dos pressupostos e pré-
conceitos subjacentes à própria prática jurídica, como nos demonstraram tanto
KeLSen, quanto Luhmann, tal postura há que ceder lugar a uma compreensão de
que o direito é construído pela Sociedade e há que ser compreendido como tal à
luz de sua dimensão hermenêutica, e também pragmática-universal, a comparti-
lhar pressupostos comunicativos sem os quais não nos é possível compreender o
próprio direito.
a essa conclusão nosso participante chega após fazer uma interessante con-
sideração. Quando alguém observa a conversa entre duas pessoas, ele pode até nos
reportar, de maneira descritiva, quais foram as palavras, as expressões e até a ento-
nação de referido diálogo. como observador, esse sujeito pode nos apresentar con-
clusões a respeito daquilo faticamente por ele presenciado. mas isso, conclui nosso
participante, não significa que o observador tenha, realmente, entendido o senti-
do daquele diálogo, seja porque não conhece as pessoas envolvidas pelo mesmo,
seja porque, e aqui se encontra o cerne da questão, não compartilha dos pressu-
postos subjacentes àquele diálogo e que lhe permitiriam compreender o sentido da
própria discussão. assim é que nosso participante, em sua percepção arguta, con-
clui que o sentido das práticas comunicativas somente pode ser compreendido na
medida em que são levados a sério os pressupostos a partir dos quais essa mesma
prática avança. conclui, pois, que não se pode simplesmente pretender conhecer
o diálogo, ou compreendê-lo, por mera observação e descrição daquela prática
comunicativa, mas que compreendê-la e conhecê-la implica mergulhar nos seus
pressupostos que permitirão, ao serem reconstruídos, juntamente com a própria
praxis comunicativa, alcançar uma leitura coerente da discussão.
e pelo fato de o direito ser fruto de uma construção social, pois, comunica-
tiva, é que podemos pretender o sentido dessa praxis somente quando nos enxer-
gamos como participantes desse processo de construção e reconhecimento do pró-
prio direito. afinal, na modernidade somente são capazes de serem consideradas
válidas normas jurídicas capazes de serem referidas a todos os concidadãos como
seus co-autores ou co-participantes em processos comunicativos, processos esses a
assumir a igualdade entre todos esses cidadãos em face de outra dimensão também
subjacente a essa prática comunicativa orientada ao entendimento, qual seja, a
pragmática-universal.
isso porque, como membro dessa comunidade jurídico-política, nosso partí-
cipe-imparcial alerta-nos para o fato de que esse sistema de normas jurídicas,
construído comunicativamente, somente poderá ser considerado legítimo se todos
os afetados pelo mesmo possuírem oportunidades igual e reciprocamente reco-
nhecidas de participar dessa construção.
assim é que se pensamos tanto em uma “comunidade fraternal verdadeira”,14
ou em termos de uma ação comunicativa, o que se encontra subjacente é uma
dimensão pragmática-universal que nos cobra igualdade no que tange às liberda-
des juridicamente reconhecidas a nós mesmo e por nós mesmos. o que deve ser
ressaltado é que, modernamente, a racionalidade comunicativa referida a proces-
sos comunicativos de construção de consensos, entendimentos, cobra-nos uma
dimensão normativa da comunicação (pragmática-universal) em que, por exem-
plo, a vedação à participação de certa pessoa, ou de certo grupo de pessoas nesse
processo, bem como o império de argumentos de autoridade em um discurso leva-
do adiante, são rechaçados como incapazes de possibilitar a construção de um
acordo racional, porque livre, e baseado na força da própria argumentação.
ora, se o direito é construído em termos comunicativos, isto é, em discursos
públicos que dizem respeito a todos nós, membros da comunidade jurídica, temos
como pressuposto de sua validade a possibilidade de participação de todos enquan-
to afetados e interessados, ou, ainda que não, nesses mesmos debates públicos.
assim, pois, é que se pode pretender o nexo interno entre democracia e estado de
direito, entre direitos fundamentais e soberania popular: afinal, são os direitos polí-
ticos que garantem as condições comunicativas em nível institucional para a cons-
trução racional, pois orientada à construção de acordos/consensos, do direito.15
16 no sentido da crítica de dWorKin em: dWorKin, ronald. Levando os direitos a sério. Trad. nelson Boeira.
São Paulo: martins Fontes, 2002, p. 27 et seq.
to sempre nos apresenta quando levamos em conta todos os argumentos apresen-
tados no caso. Somente assim assumiríamos seriamente os participantes do proces-
so como iguais, bem como a possibilidade de uma construção imparcial.
Somente ao assumir essa dimensão hermenêutica na compreensão do direito,
e desde uma óptica crítica a buscar, inclusive, por um sentido do próprio direito
que venha a transcender de contexto, é que dWorKin nos oferece subsídios para
espancar a discricionariedade e todos os problemas nela co-implicados. afinal, se
reconhecemos com o nosso hÉracLeS, nossa versão grega e mais pura do hÉrcuLeS
de dWorKin, que o direito é um sistema de princípios – pois, afinal, somente
levando seriamente em consideração os pressupostos normativos de compreensão
do próprio sentido do direito, que são os princípios jurídicos – é que podemos con-
cluir que, para cada caso, ainda para os mais difíceis, temos sempre uma resposta
anterior capaz de ser desvelada. isso porque por essa compreensão o juiz jamais é
encarado como o “senhor” de “sua” jurisdição, mas é entendido como uma autori-
dade que, não obstante participar da construção do processo, há que ser interpre-
tado como autorizado a cumprir um papel que não pode ser desconsiderado.
do fato de vislumbrarmos a postura argumentativa das partes no processo
jurisdicional, não segue também um esvaziamento do papel do juiz, ou de sua auto-
ridade. realmente não podemos mais compreender tal autoridade como dotada de
uma atividade autoritária a possibilitar, do alto de seu “notável saber jurídico”, a
ditadura de um pensamento ou convicções subjetivas, “convencidas livremente”,
sem qualquer respaldo ou sustentabilidade argumentativa em face dos pressupos-
tos comunicativos referidos ao direito e compartilhados pela comunidade jurídico-
política. nessa esteira, muito diferentemente do que cronoS certamente pensaria,
e do que parece pensar o Senhor ministro humBerTo gomeS de BarroS, o papel dos
estudiosos do direito não podem ser ignorados quando isso implicar, exatamente,
ignorância do direito, do seu sentido e de seus pressupostos interpretativos.
a autoridade do julgador, e isso compreende bem nosso participante-impar-
cial ao atentar-se à atividade de hÉracLeS, e a partir das conclusões de dWorKin,17
há que ser assumida, em uma melhor interpretação, como uma atividade de res-
gate, em face de cada caso, do sentido do direito, das ambições que o direito tem
para si mesmo e que hão de ser assumidas como a busca, no maior grau possível,
da igual realização de liberdades a todos. a autoridade do juiz se assenta no fato
de ser autorizado a decidir imparcialmente, implicando isso a consideração de
todos os argumentos apresentados pelas partes que, em pé de igualdade, participa-
ram do processo jurisdicional, além da assunção do direito como um sistema de
princípios a nos informar, em um nível mais profundo, qual seja o sentido do
18 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 477 et seq. Todavia, tal força gravitacional dos preceden-
tes, bem como a história institucional, jamais podem ser interpretados como limites à realização da integri-
dade como dWorKin, todavia, parece admitir. cf., infra, capítulo 8.
a metáfora do “romance em cadeia”, uma estória que tem um sentido mais além
de cada específico capítulo. o desafio é, pois, exatamente assumir esse sentido em
cada decisão: e isso somente é possível se compreendermos que tal integridade, tal
ideal de coerência normativa, é capaz de ser realizado a cada caso e simultanea-
mente conectado a algo que transcende a concretude de cada caso...
embora dWorKin não tenha explicitado com contornos tão sofisticados,
como faz Jürgen haBermaS, as exigências que a dimensão pragmática-universal
cobra na compreensão e interpretação do direito, podemos perceber que tais pres-
supostos encontram-se subjacentes à forma dworkiana de compreender o direito,
seja por assumir, ainda que inadequadamente, a idéia de uma “integridade pura”,
seja pela referência a uma “comunidade fraternal” a cumprir determinados requi-
sitos para a consideração da legitimidade de seu direito, seja ao pretender ambi-
ções do direito para si mesmo.
haBermaS, pelo aprofundamento das questões relativas à ação comunicativa,
apresenta uma leitura mais sofisticada e explícita de determinadas questões. Sem
dúvida alguma a dimensão pragmática-universal, ao cobrar dos participantes de um
processo discursivo orientado à construção de consensos uma consciência normati-
va, isto é, a necessidade de se pautar por determinados princípios subjacentes à
comunicação sem os quais uma decisão poderia ser imposta, mas não construída, nos
permite compreender em que sentido podemos pretender a construção de decisões,
mediadas lingüisticamente, que sejam racionais, válidas, legítimas, enfim. Somente,
segundo haBermaS, quando os afetados pelas normas acordadas, aqui em questão as
normas jurídicas, enfim, por se encontrarem sob o império dessas normas, tiverem
iguais possibilidades de participar do processo discursivo de sua construção é que se
poderia, validamente, pretender legitimidade, ou racionalidade, nesse processo de
reconhecimento normativo. a pragmática-universal, vez que uma dimensão nor-
mativa referida ao processo de construção discursiva de consensos, cobra desse
mesmo processo o cumprimento a exigências de igualdade de seus participantes,
livres para argumentar, a partir de seus particulares pontos de vista, aquilo que con-
sideram relevante ao discurso. no que tange ao direito, podemos, pois, perceber que
a dimensão pragmática-universal cobra um nexo interno entre democracia e
direito: somente se pode compartilhar de um direito racionalmente ou legitima-
mente constituído na medida em que todos os cidadãos desse império do direito
tiverem garantidas condições de igual participação livre nesse processo.19
assim, democracia e direitos fundamentais, por serem co-dependentes – na
medida em que a idéia dos direitos fundamentais cobra um desenrolar legítimo
19 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 63 et seq.; p. 147 et seq.
num processo publicamente sustentável, e a democracia, por sua vez, depende das
condições pragmático-universais garantidas pelos direitos fundamentais, pelos
direitos políticos –, nos esclarece o processo discursivo-racional de construção do
direito: a legitimidade ou a racionalidade da construção do direito por um pro-
cesso legislativo é dependente, pois, da garantia dos pressupostos comunicativos
referidos à pragmática-universal a cobrar, de todos, igualdade de possibilidades de
manifestação livre em uma discussão, livre de pressões psicológicas ou físicas,
inclusive, bem como livre do “poder” quase “sobrenatural”, porque não sobrevi-
vente a um discurso aberto a críticas, de uma autoridade a supostamente justificar
“por si”, por sua simbologia naturalizada, a “força” de sua decisão... antes, nos per-
mite concluir haBermaS, decisões em sede de processos comunicativos orientados
ao entendimento somente se sustentam publicamente quando ancoradas na força
do melhor argumento, e não na violência ou abuso de poder/autoridade.
na medida que podemos avançar, e constatar que o processo de aplicação do
direito é também um processo comunicativo orientado à construção de um con-
senso, orientado ao entendimento, podemos perceber que também os pressupos-
tos atinentes à pragmática-universal hão de ser respeitados, caso se pretenda
alcançar uma decisão jurisdicional que seja racional. isso implica afirmar que
aqueles afetados pela decisão têm que ter reconhecidos, em sede do processo juris-
dicional, iguais direitos de participação na construção desse processo, o que se
refere, pois, à apresentação livre de argumentos referentes ao caso e ao direito. o
reconhecimento do contraditório, vez que reconhecimento de iguais possibilida-
des de participação no processo, e da ampla argumentação, vez que reconheci-
mento de liberdade argumentativa referente ao objeto de discussão no processo,
tornam-se indispensáveis para uma praxis jurisdicional legítima.
atrelada a essas questões temos a própria exigência da fundamentação das
decisões: afinal, a pretensão de racionalidade/legitimidade do processo jurisdicio-
nal está entrelaçada à assunção, de todos os envolvidos nesse processo, com as
questões nele levantadas e debatidas argumentativamente. com isso a autoridade
jurisdicional se torna, desde uma racionalidade comunicativa, obrigada a funda-
mentar, detidamente, sua decisão, se valendo dos argumentos e provas apresenta-
dos pelas partes, levando a sério aquilo reconstruído no bojo do processo a partir
do qual tem o dever de aplicar o direito ao caso.
afirmamos, com isso, que uma adequada atividade jurisdicional envolve a
assunção, por parte da autoridade jurisdicional, desses pressupostos comunicativos
de interpretação e compreensão do direito. concluímos, portanto, que não se pode
pretender interpretar o direito moderno sem ter em mente o respeito à pragmáti-
ca-universal que se conecta à própria realização e operacionalização do sentido do
direito, qual seja, o de igual reconhecimento de liberdades fundamentais a todos,
na maior medida possível. nesse ponto em específico podemos já esclarecer a tam-
bém co-dependência entre as dimensões hermenêutica e pragmática-universal: afi-
nal, os pressupostos de interpretação e compreensão do direito antes que se afastar
dos pressupostos da pragmática-universal, deles compartilham, nos fazendo, pois,
esclarecer que o sentido do direito moderno está atrelado ao aprofundamento na
compreensão dos pressupostos de reconhecimento e legitimidade do direito que,
por sua vez, não se deslindam da própria pragmática-universal. Se os direitos fun-
damentais também atrelados estão à idéia de garantias institucionais das condições
de produção e aplicação legítimas/racionais do direito, isso pressupõe, para além do
reconhecimento dos próprios pressupostos pragmático-universais, a idéia de liber-
dades subjetivas e a garantia de uma esfera privada de auto-realização pessoal: pois
só dessa forma é que se pode, inclusive, livremente participar de um processo argu-
mentativo, sustentando opiniões e argumentos próprios, e não alheios... disso
podemos concluir que o reconhecimento institucional dos pressupostos pragmáti-
co-universais pressupõe, por seu turno, outros pressupostos sem os quais não há
como exercer, livremente, a própria liberdade comunicativa.
Tudo isso é compreendido por hÉracLeS, mas ignorado por cronoS. Talvez
seja esse o cerne da razão pela qual o observador-neutro interpretou de maneira
tão simplificada o ato de decisão de cronoS, mas não o participante-imparcial que
viu nas mãos de hÉracLeS o desafio de realizar um trabalho que exigia respeito e
consideração das partes envolvidas.
Por tudo discutido até aqui cabe esclarecer que, não obstante a racionalidade
dos processos legislativos e jurisdicionais entrelaçarem-se com pressupostos prag-
mático-universais, há uma diferença central, entre ambos, que não pode ser olvi-
dada. Se no processo legislativo, argumentos referidos a valores (axiológicos), argu-
mentos morais (referidos à justiça) e argumentos pragmatistas (referidos a uma
concepção a tomar em conta meios adequados para realização de determinados
fins) podem assumir de maneira determinante a força de argumentos capazes de
determinar a decisão legislativa, por outro lado, em um processo jurisdicional tão-
somente argumentos jurídicos podem cobrar força em uma decisão, uma vez que
estamos nos referindo a um discurso de aplicação normativa, e não a um discurso
de criação, ou justificação, de normas.20 afirmamos, com isso, que a racionalidade,
ou a legitimidade, ou a validade, aqui, todas, assumidas como sinônimas, em um
20 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 288 et seq.
processo de aplicação normativa está dependente da compreensão e assunção por
parte da autoridade jurisdicional, inclusive, da diferença argumentativa entre legis-
lação e jurisdição em face, mais uma vez, dos pressupostos comunicativos referidos
à praxis jurídica moderna. argumentos relativos a concepções valorativas, a ques-
tões morais ou a finalidades a serem supostamente alcançadas não conseguem, em
um processo jurisdicional, satisfazer as exigências de um juízo racional de correção
normativa que há que assumir a pluralidade e a complexidade axiológica de nossa
Sociedade, a diferenciação funcional entre o direito e a moral, bem como ainda a
racionalidade comunicativa, e não instrumental ou estratégica, referida ao direito.
Por essas questões, uma decisão jurisdicional somente pode ser assumida como
legítima na medida em que se abre de maneira igual à participação dos afetados,
além de assumir o direito como um sistema de princípios a serem re-interpretados,
no caso concreto, na busca daquela interpretação capaz de permitir, nesse mesmo
caso, uma leitura coerente do próprio sistema jurídico.
com isso afirmamos que o que confere racionalidade ao processo de aplica-
ção do direito não há que ser, em última instância, como pensam KeLSen e
Luhmann, o “saber de especialistas”. o juiz, ou o Tribunal, jamais está legitima-
mente autorizado a “criar” princípios, ou a “inventar” normas para os casos difí-
ceis, não inseridos dentre as “leituras possíveis” ou não anteriormente tomados em
consideração pelos “programas condicionais” que as normas representariam. da
incompreensão neo-positivista tanto de KeLSen, como de Luhmann, devemos
esclarecer que, embora tais pensadores, em desconsideração total à distinção entre
legislação e jurisdição, bem como aos pressupostos hermenêutico-pragmáticos de
construção e compreensão do direito, tenham colocado nas mãos dos especialis-
tas do direito qual deveria ser a solução para um caso antes não convencionado.
isso abriu, e ainda continua a abrir, aos próprios juízes, em face de seu posto pri-
vilegiado na estrutura jurídico-institucional moderna, a possibilidade de “criar”
soluções, “inventar” princípios para superar essa dificuldade, “criando”, pois, nor-
mas, razão pela qual durante longas décadas foi a “jurisprudência” assumida como
“fonte criativa” do direito. afinal, os juízes e os Tribunais, por seu “especial
saber”, seriam dotados de um poder místico de informar, como grandes oráculos
institucionalizados, a bênção que suas decisões pretendiam semear.
o que essa concepção é incapaz de assumir, exatamente porque parte de uma
pretensa neutralidade a tão-somente observar o direito, é que a atividade de apli-
cação jurídico-normativa jamais se pode confundir com a atividade legislativa,
com o processo democrático. do contrário, estaríamos abrindo esferas institucio-
nais de criação normativa que não estariam vulneráveis à participação e pressão
comunicativa de todos os concidadãos. estaríamos conferindo aos especialistas do
direito, que são os juízes e também os ministros dos Tribunais Superiores, o títu-
lo de “legisladores de plantão”, a ocupar o locus do discurso democrático, da pró-
pria Sociedade civil, decidindo, a partir de seus valores, a partir do que acreditam
ser justo e a partir do que gostariam que fosse o direito, “normas jurídicas” que
não passariam de uma interpretação axiológica, moral ou pragmatista daquilo que
eles desejassem que fosse a solução para o caso.
a partir das lições de dWorKin e haBermaS podemos esclarecer que em face
de hard cases a autoridade jurisdicional há de assumir, sim, sua autoridade que, em
uma democracia e em um exercício legítimo, é autorizada. autorizada a assumir
o direito como um sistema de princípios, como um sistema capaz de ser, a cada
novo caso difícil surgido, re-interpretado em face de novos argumentos ou novas
questões trazidas à esfera institucional que a jurisdição representa. afinal, tal
autoridade está autorizada a aplicar o direito ao caso, e não a “inventá-lo” ao seu
gosto ou agrado, e não a “criar” uma solução que entenda mais justa ou capaz de
atingir uma “finalidade” que supostamente embute, em sua interpretação, como
sendo uma “finalidade da norma”... como insistentemente marcado nessas pági-
nas, a autoridade jurisdicional está autorizada a interpretar o direito, perante os
casos, a partir do sentido que a própria prática jurídica, desde o passado, nos infor-
ma qual é, senão o sentido de igual realização dos direitos fundamentais a todos e
em cada caso e na maior medida possível.
nesse sentido, se por um lado podemos afirmar que o juiz, ou os Senhores
ministros, não estão autorizados a inventar normas, a “criar” princípios jurídicos
– mesmo porque princípios jurídicos somente são jurídicos se assumidos como
referidos à praxis discursiva que o direito representa, e não se “inventados” por
um especialista –, o que certamente levaria Luhmann a vislumbrar a geração de
uma “variação” no sistema, por outro lado o que nos parece adequado reconhecer
é que os julgadores têm reconhecida uma autoridade que assim é assumida por
autorizá-los, e deles cobrar, uma constante re-interpretação do direito, uma con-
tínua re-leitura do sistema do direito, assumindo seus pressupostos e sua comple-
xidade no próprio ato de julgar. a lição que hÉracLeS nos deixa é exatamente a de
que somente quando se assume o direito como esse complexo sistema de princí-
pios jurídicos é que se pode pretender, validamente, a cada caso, construir uma
resposta com respaldo normativo, e não sair em busca de uma solução “soterioló-
gica” a encontrar no saber de especialistas um nicho criativo.
o que devemos colocar em relevo é que muito embora os especialistas do
direito possam ter um posto privilegiado na compreensão do direito, isso jamais
significa que o direito somente possa ser compreendido pelos mesmos e, mais que
isso, que o direito seja aquilo que esses especialistas pretendam que ele seja...
antes, o direito, vez que praxis comunicativa, repousa em pressupostos compar-
tilhados socialmente, compartilháveis, pois, por todos os concidadãos. mesmo
aqueles que corajosamente assumem ser dotados de um “notável saber jurídico”
não estão legitimados a fazer do direito aquilo que eles pensam como tal.
discordando, pois, do Senhor ministro humBerTo gomeS de BarroS: a doutrina
pode, sim, ser extremamente relevante na explicitação desses pressupostos norma-
tivos que o próprio direito carrega consigo, discursivamente problematizando
questões que a prática jurídica possa estar, continuamente, negando nessa busca
incansável por igual realização e reconhecimento, no maior grau possível, de
liberdades subjetivas a todos.
a não ser que se assumam os Tribunais como oráculos, e os juízes como
deuses cronoS a devorar as pretensões normativas das partes, a racionalidade
normativa exige, pois, o dever de interpretar o direito a partir de seus próprios
pressupostos normativos, distinguindo legislação e jurisdição, assumindo que o
direito somente é sustentável porque é obra de uma comunidade jurídica e não de
poucos especialistas, enfim, exigindo imparcialidade do julgador, o que significa,
como constatado por nosso participante-imparcial, jamais uma pretensão de neu-
tralidade, mas o mergulho nos argumentos das partes como forma de distinguir
argumentos jurídicos de argumentos axiológicos, morais e pragmatistas. a impar-
cialidade está em decidir o caso, levando os argumentos das partes a sério, desde
uma perspectiva jurídica, e não se deixando envolver por argumentos outros rela-
tivos a tais ou quais valores, a normas morais, ou às conseqüências, para além dos
direitos e deveres dos afetados, que tal decisão possa ter, ou deixar de ter... enfim,
a decisão há que ser publicamente sustentável, isto é, que se ancorar nos pressu-
postos socialmente compartilhados e referidos à praxis jurídica.
nem a Sociedade, nem a doutrina, hão que se moldar, contrariamente aos
argumentos do Senhor ministro humBerTo gomeS de BarroS, ao pensamento do
Superior Tribunal de Justiça. Talvez falte, não só ao arrogante cronoS, nosso juiz
imaginário e abstrato, mas também a alguns especialistas do direito, mesmo àque-
les de suposto “notável saber jurídico”, a compreensão democrática de que o
direito não é aquilo que eles decidam que seja.
afinal, como outrora nos lembrou meneLicK de carvaLho neTTo, “questio-
nável, por seu turno, é precisamente a atuação privatizante que alguns persona-
gens conseguem realizar no exercício dos mais relevantes cargos públicos da
república. descalçar a legitimidade que empresta dignidade ao exercício dos mais
altos cargos públicos do país é atuar como cronoS, que ao devorar seus próprios
filhos acreditava se eternizar no trono do olimpo.”21
21 carvaLho neTTo, menelick. a revisão ilegítima: entrevista a Paulo Sávio Peixoto maia e denise gama.
Tribuna do Brasil: constituição e democracia, Brasília, unB, 05 de março de 2006, pp. 12.13.
caPíTuLo 6
da LegiSLação:
ou de uma reFLeXão acerca do Seu SenTido normaTivo
em Face da democracia e da coerência no direiTo
2 Trata-se do hc 84025, oriundo do rio de Janeiro, julgado em 04 de março de 2004 e cujo relator fora o
ministro JoaQuim BarBoSa.
saúde e à vida da gestante”, sobretudo em razão de índices altos de morte intra-ute-
rinos dos fetos anencéfalos. Por estas razões, inclusive, é que se pleiteou o reconhe-
cimento da interrupção da gravidez como antecipação terapêutica do parto.
como ainda o ministro marco aurÉLio nos permite observar, fora em prin-
cípio, pois, solicitado que se reconhecesse o direito subjetivo da gestante de rea-
lizar a antecipação terapêutica do parto sem a necessidade de apresentação prévia
de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do estado,
desde que feito o diagnóstico por médico habilitado.
em liminar, do dia 1º de julho de 2004, e como já ressaltado, o ministro
marco aurÉLio, no reconhecimento da “dignidade da pessoa humana”, e assumin-
do que a ciência médica, em casos de anencefalia, “atua com margem de certeza
igual a 100%”, desenvolve sua argumentação, na concessão do pedido, afirmando
que se trata “de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita
com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade”.
o advogado da entidade no caso, LuíS roBerTo BarroSo, compreende, em
entrevista à Folha online, em 2 de julho de 2004,3 e à luz do que se esteve a deba-
ter, que obviamente a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia deve,
como referido, ser compreendida como antecipação terapêutica do parto, e não
como aborto, uma vez que faltante estaria o pressuposto central para a caracteri-
zação desse crime, qual seja, a viabilidade da vida em gestação – o que não existe
em casos de anencefalia. além disso, afirma o advogado que obrigar a mulher a
manter-se grávida nesses casos seria uma situação de violação de sua integridade
física, visto que seu corpo passará “inutilmente”, em suas palavras, por inúmeras
transformações, uma vez que o feto não terá viabilidade de vida fora do útero,
acrescentando ainda que “os sentimentos por que passa uma gestante obrigada a
levar a termo uma gravidez desse tipo se equiparam à tortura psicológica”. ainda
teve o advogado o cuidado de ressaltar que a submissão à antecipação terapêutica
há que ser interpretada como um direito da mulher que, de acordo com suas con-
vicções, pode, por outro lado, decidir também levar a gravidez adiante.
não obstante somente em 2004 tal questionamento ter sido levado ao STF,
órgãos das Justiças estaduais vêm, desde há muito, reconhecendo a interrupção de
gravidez de fetos sem cérebro. Segundo se pôde apurar, a primeira decisão juris-
dicional no Brasil autorizadora da interrupção de gravidez em razão do diagnósti-
co médico de anencefalia se deu em 1989 no estado de rondônia. várias outras
foram proferidas e uma, inclusive, às “vésperas” da liminar concedida pelo STF,
pelo Tribunal de Justiça do rio grande do Sul.4
“nesse contexto, certo é que a gestação infrutífera ora impugnada trará riscos à pró-
pria saúde da gestante, que poderá sofrer por toda sua vida dos danos, senão físicos,
dos prejuízos psicológicos advindos do fato de carregar nove meses uma criança em
seu ventre fadada ao fracasso.”
Por outro lado, e paralelamente às discussões jurisdicionais, a comissão de
Seguridade Social e Família da câmara dos deputados votaria em novembro de
2005 o projeto de lei que traria a proposta de descriminalização de aborto no País.
Segundo esse projeto, a mulher poderia optar pelo aborto até a 12a semana de ges-
tação, sem apresentar qualquer motivo que justificasse tal prática, e até a 20a
semana se a gravidez tivesse resultado de estupro. Por outro lado, em casos de
anencefalia, ou de risco para a gestante, a interrupção da gravidez poderia ser rea-
lizada a qualquer momento. Todavia, a pedido de deputada participante da
comissão, a votação foi adiada para data posterior na qual, todavia, não fora rea-
lizada por falta de quórum.
em face dos vários argumentos e posicionamentos que estão a disputar um
melhor juízo sobre a questão da anencefalia, podemos pontuar alguns questiona-
mentos que merecem ser melhor aprofundados.
o fato de marceLa, recém-nascida anencéfala no estado de São Paulo, resistir
bravamente em vida por mais de quinze dias, deve ser considerado como um argu-
mento determinante contra a interrupção da gravidez em casos de anencefalia?
Podemos afirmar que a gestante, em razão do diagnóstico médico a constatar
a má-formação fetal concernente à ausência de crânio, ou de estruturas cerebrais
indispensáveis à manutenção da vida, tem o direito de decidir sobre o adianta-
mento terapêutico do parto? isso se justificaria à luz da garantia de sua integrida-
de física e autonomia privada?
Por outro lado, o nascituro, sobretudo em face da proposta de participação de
um “curador” peticionada em face da adPF/54, em 29 de setembro de 2004, não
teria direitos a serem jurisdicionalmente resguardados, tais como o direito à vida,
à integridade física e à dignidade da pessoa?
diante dos argumentos levantados pelo então Procurador-geral da
república, tratar-se-ia essa matéria de uma questão a ser debatida e decidida em
sede do Poder Legislativo, e não do Poder Judiciário, por ser uma questão extre-
mamente controversa e que mereceria maior “reflexão social” sobre o tema?
o que se pretende discutir, pois, é a velha questão em torno do sentido de se
interpretar a legislação em conformidade com, e não contra, o direito...
Buscaremos responder a esses questionamentos partindo, sobretudo, dos
votos vencidos da ministra eLLen gracie e do então ministro carLoS veLLoSo à
questão de ordem levantada pelo então Procurador-geral cLÁudio FonTeLeS.
assim, na reconstrução dos argumentos dos ministros, já procuraremos apontar
algumas críticas a pressupostos que sempre rondam a interpretação do direito,
sobretudo quando o que se está em jogo é uma interpretação construtiva do
direito (ii). em seguida, ofereceremos críticas a concepções interpretativas que
pretendem superar as dificuldades hermenêuticas referindo-se a uma “intenção
legislativa” ou “intenção da lei”, com o auxílio da proposta teórica de dWorKin (iii
e iv). Por fim, apresentaremos em que sentido podemos interpretar, juridicamen-
te, a questão da interrupção da gravidez em casos de anencefalia em uma socieda-
de que luta pelo reconhecimento, no maior grau possível, de iguais direitos fun-
damentais a todos os concidadãos12 (v).
“o que vem a crivo do Tribunal nesta ação? uma norma velha de 65 anos que, ao
momento da promulgação da constituição Federal de 1988, foi recepcionada como
todo o código Penal.”
12 complementar ao que aqui vamos discutir, devem ser assumidas leituras que buscam compreender a figu-
ra da desobediência civil no marco do constitucionalismo moderno. cf., sobretudo, em nosso País: SaLcedo
rePoLêS, maria Fernanda. habermas e a desobediência civil. Belo horizonte: mandamentos, 2003; riBeiro,
Fernando José armando. conflitos no estado constitucional democrático: por uma compreensão jurídica da
desobediência civil. Belo horizonte: mandamentos, 2004.
é diferente de texto legislativo, muito embora possamos, indubitavelmente, ter
normas que assumam, que tenham, por referência, um determinado diploma nor-
mativo. esta é, inclusive, uma característica atrelada ao direito da modernidade,
à sua forma jurídica moderna, como temos visto nos capítulos anteriores.
assim, vários questionamentos em torno do controle de constitucionalidade
de normas, bem como da recepção constitucional, merecem ser melhor revisita-
dos, noutro local, à luz da compreensão de que norma somente pode ser assumi-
da como interpretação...13 afirmar que determinada norma fora, ou não, recep-
cionada, bem como pretender se determinada norma é, ou não, constitucional,
tem diretamente a ver com uma questão interpretativa. e como atividade herme-
nêutica, a interpretação normativa é um processo constante, contínuo, a sempre
exigir dos intérpretes uma postura de abertura e crítica interpretativas capazes de
levar adiante o processo e projeto de modernização do direito.
a postura a ser assumida pelos intérpretes jamais pode confundir-se com a
daqueles que se cegam às circunstâncias do caso e às re-interpretações, do direito,
capazes de, na busca de uma coerência interpretativa, assumir o direito como um
sistema de princípios prima facie aplicáveis.14
a era de aSTrÉia,15 não só em razão de uma suposta fundamentação ou jus-
tificação moral do direito, mas também em razão das vendas que traz sobre seus
olhos, deve ser superada. a ruptura que representa o ato de arrancar as vendas de
aSTrÉia não se pode dar senão de maneira radical. e se de maneira radical isso
ocorre, é porque não se dá sem crises, sem uma profunda reflexão acerca de ques-
tões constantemente assentadas e assumidas de maneira não-problematizada na
prática argumentativa do direito. metaforicamente, essa juíza aSTrÉia, cegamen-
te incapaz de perceber questões que hoje não se fazem mais intransparentes, con-
tinua a pensar o direito desde o seu particular arcabouço compreensivo, porque
não se manteve, e não se mantém, aberta a questões outras que cotidianamente ao
direito se colocam.
13 cf., nesse sentido, o Posfácio em: chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade:
incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e habermas, cit.
14 günTher, Klaus. The sense of appropriateness: application discourses in morality and Law, cit.; günTher,
Klaus. un concepto normativo de coherencia para una teoría de la argumentación jurídica, cit.
15 aSTrÉia é uma personagem mitológica grega sobre a qual pairam inúmeras controvérsias. Filha de TêmiS e
zeuS, aSTrÉia seria a personificação da justiça a carregar uma espada e uma balança como forma de semear
entre os homens os sentimentos de justiça e virtude. isso, durante a idade de ouro, porque aSTrÉia, ao se
dar conta da “degeneração moral” dos homens a se espalhar pelo mundo, voltou-se aos céus cristalizando-
se na constelação de virgem. Segundo os estudiosos, a releitura romana de aSTrÉia seria referida à imagem
da deusa JuSTiça, ora também confundida com diKÉ, mas não com TêmiS, igualmente mãe de diKÉ na
mitologia grega. cf., nesse sentido: grimaL, Pierre. dicionário da mitologia grega e romana. 2.ed. rio de
Janeiro: Bertrand, 1993, p. 51; p. 262; p. 435. há quem afirme que somente em roma é que a deusa adqui-
re as vendas sobre os olhos. aqui, assumiremos a figura de aSTrÉia de maneira a levar em consideração
inclusive, pois, as releituras que dela foram, com o passar dos tempos, realizadas.
aSTrÉia é cega, mas não para tudo. Também não podemos pretender que a
ela tudo se faça claro... Sabemos que num mundo mediado lingüisticamente, per-
passado por dimensões hermenêutica e pragmática-universal, somente capaz,
pois, de ser compreendido paradigmaticamente, determinadas questões a nós se
fazem, constantemente, e de maneira contingente, transparentes, e também
intransparentes. mas o que tomamos como central é o fato de aSTrÉia ser aqui
cega para questões centrais e extremamente caras ao direito moderno, quais
sejam, o projeto jurídico-moderno, a função do direito da modernidade e a com-
preensão do direito como sistema principiológico de normas prima facie aplicá-
veis em seu ideal de coerência.
a juíza aSTrÉia certamente compartilha de questões basilares e referentes a
todo o direito. Provavelmente enxerga seu juízo como um foro que há de ser assu-
mido responsavelmente. entende que sua tarefa há de ser uma tarefa de tratar
situações similares, iguais, de maneira igual, e os casos diversos de maneira tam-
bém distinta. Todavia, a cegueira de aSTrÉia a deixa em dúvida acerca de quais
critérios devem ser seriamente assumidos na construção em seu juízo da distinção
entre igualdades e diferenças.
o que se faz mais palpável à figura dessa juíza, aqui metaforicamente toma-
da em conta, é o texto das leis. acredita ser o texto legislativo a fonte da qual as
controvérsias jurídicas devem partir e encontrar seu porto. certamente porque de
sua constelação, aSTrÉia se apavora ao supor que estaria sendo injusta ao propor
uma “leitura inovadora” e que não tivesse referência expressa ao diploma legisla-
tivo. Poderiam acusá-la, exatamente por ter seus olhos vendados, de se valer dessa
situação para inventivamente impor soluções controversas e sem sustentabilidade
jurídico-interpretativa.
assim é que, partindo dessa metáfora, pretendemos analisar argumentos ven-
cidos e, uma vez mais, referidos à questão de ordem levantada no curso do proces-
so relativo à adPF/54.
na continuidade da construção de seu voto, a ministra eLLen gracie, desen-
volve seu raciocínio afirmando que o próprio código Penal, supostamente todo
recepcionado em face da constituição da república de 1988, nos permitiria vis-
lumbrar, no que tange ao aborto, que “criadas foram duas exceções em que tal prá-
tica não será penalizada”, e que o que se estaria a pretender com referida argüição
de descumprimento de Preceito Fundamental seria a “inserção”, no direito bra-
sileiro, de uma terceira causa exculpante, qual seja, a relativa à antecipação tera-
pêutica do parto em situações de anencefalia do feto gerado. em suas palavras:
“Sempre numa atividade de excisão, não de inclusão de regras. entre nós, mesmo na
avaliação de inconstitucionalidade por omissão, este Tribunal tem-se limitado a assi-
nalar ao legislador a falha diagnosticada, não se adiantando a preenchê-la.” (itálicos
nossos)
16 cf., nesse sentido: caTToni de oliveira, marcelo andrade. Tutela jurisdicional e estado democrático de
direito: por uma compreensão constitucionalmente adequada do mandado de injunção. Belo horizonte:
del rey, 1998.
ram em uma tradicional e corrente noção de que a lei seria a fonte “primordial”,
“principal” ou “superior” do direito moderno.
Também essa questão é refletida no voto da ministra eLLen gracie, quando
concorda, citando trechos de palestra proferida por gomeS canoTiLho, no sentido
de que, nas palavras deste,
uma pergunta inicial se deve fazer: fora requerida ao STF a criação de uma
norma, em usurpação de competência do processo legislativo, ou fora solicitado o
reconhecimento de um direito subjetivo a ser assim interpretado em face do que
o sistema jurídico, interpretado à luz dos direitos fundamentais e do ideal de coe-
rência no desdobramento do sistema de direitos, nos informa à especificidade do
caso, qual seja, uma gravidez que à gestante se tornou indesejável em face do qua-
dro irreversível de anencefalia do feto que se encontra em seu ventre?
não seria esta uma questão de direitos fundamentais a merecer uma interpre-
tação mais sofisticada por parte dos membros do Supremo Tribunal Federal, que a
leitura oferecida pela ministra eLLen gracie? definitiva e respeitosamente discor-
damos, in totum, da argumentação aqui colacionada, para retomarmos ao que nes-
tas páginas estamos a afirmar.
o que está em foco no debate desta adPF/54 é uma determinada compreen-
são de direito a nos exigir uma constante abertura e revisão de pontos de vista
normativos cristalizados em face de casos familiares e reiterados. à especificidade
do caso em tela não nos podemos tornar cegos. devemos assumir o que uma apli-
cação do direito, em uma democracia, está a nos exigir, isto é, uma interpretação,
a partir de seus pressupostos, capaz de realizar, em cada caso – e desde seu senti-
do jurisdicional –, o projeto moderno de reconhecimento de iguais direitos a todos
no maior grau possível. isso sim é a tarefa de um Tribunal constitucional, e não a
renúncia a este desafio sob a desculpa de que o congresso nacional “ainda não se
dispôs a enfrentar tema tão controverso”.
a interpretação do direito exige, como já afirmado, uma postura realizativa,
uma postura capaz de assumir seriamente o papel de membro de uma comunida-
de jurídica a compartilhar, intersubjetivamente, princípios jurídicos comuns e
interpretáveis à melhor luz de sua realização indistinta a qualquer indivíduo.
inúmeras questões controversas estão sempre a tramitar nas casas Legislativas ou
são sempre assunto de inúmeros projetos de lei. o convencionalismo extremista
da ministra eLLen gracie está a nos sugerir que sequer casos em discussão pela
opinião pública, ou pelo Poder Público, podem ser julgados e decididos pelo
Tribunal, sob pena de se tomar uma decisão “antidemocrática”...
a incompreensão desse entendimento se centra no fato de que o direito está
mais além daquilo que os textos legislativos podem nos informar. aliás, o sentido
adequado desses mesmos textos legislativos somente pode ser alcançado na medi-
da em que suas interpretações se abrem a uma compreensão do direito como um
sistema de princípios. aqui se centra, portanto, a ruptura em face daquela tradi-
cional e pretensa “superioridade” das leis em face de “outras normas”. mesmo por-
que o que afirmamos é que o texto legislativo não é norma, mas somente o senti-
do atribuído a esse texto é que se pode compreender como dotado de força nor-
mativa.
e para alcançarmos esses múltiplos sentidos atribuíveis a dispositivos legisla-
tivos devemos, simultaneamente, pressupor uma hipótese interpretativa em face
da qual buscamos uma interpretação desses textos que seja coerente com todo o
sistema do direito. com isso, o sentido normativo de convenções legislativas
somente ganha densidade na medida em que abertas se fazem a uma dimensão
principiológica do direito.
equivale, pois, dizer, que não podemos pretender fazer das leis “fontes supre-
mas” ou “superiores” de normas jurídicas; antes, devemos reconhecer que a cons-
trução legislativa, fruto de um devido processo democrático, somente adquire sen-
tido interpretável quando a assumimos como inserida em uma atividade de inter-
pretação principiológica. Somente quando problematizamos e assumimos em
nossa prática jurídica esses pressupostos interpretativos que os princípios histori-
camente construídos e reconstruídos representam, bem como as interpretações e
re-interpretações de normas legislativamente referidas, é que podemos realizar
uma atividade de aplicação do direito capaz de se atentar ao seu ideal de coerên-
cia e de reconhecimento de uma Sociedade de homens livres e iguais.
e isso muitas vezes significa cobrar dos Tribunais a firmação de um sentido
normativo que, embora não tenha ainda sido expresso, pode ser assumido como
“desde sempre” atrelado ao núcleo de direitos fundamentais. o que se exige, pois,
não é uma invenção normativa em detrimento da atividade legislativa, mas o
reconhecimento de uma liberdade cujo sentido já se encontra mergulhado no
emaranhado principiológico que o direito é. o desafio que o direito nos impõe é
buscar desvelar, tornar descoberto, o sentido que a própria prática jurídica já está
a nos dizer para aquele caso.
contrário ao que estamos a defender, e em consonância à intepretação da
ministra eLLen gracie, o então ministro carLoS veLLoSo, também seduzido pelos
pressupostos nos quais aSTrÉia se encontra mergulhada, acredita que o que se
estaria pretendendo com a adPF/54 seria uma “inovação no mundo jurídico”, a
criação de “mais uma forma de exclusão do crime de aborto, o que não seria pos-
sível em sede de interpretação conforme a constituição”.
não vamos retomar aqui toda a argumentação precedente. o que mais nos
chamou a atenção do voto na questão de ordem em discussão, é um trecho em que
carLoS veLLoSo, citando moreira aLveS, discute os pressupostos de quando se
poderia sustentar uma “interpretação conforme a constituição”:
“... o ministro moreira aLveS anotou que a interpretação conforme ‘só se admite
quando não altera a mens legis, certo como é que o Poder Judiciário, no exercício
do controle da constitucionalidade da lei, só atua como legislador negativo, e não
como legislador positivo, o que ocorreria se sua interpretação alterasse o sentido da
lei’.” (riscos nossos; itálicos e negritos no original)
aSTrÉia, em face das críticas que aqui se apresentam, se assustou e não con-
segue imaginar como poderia exercer sua atividade aplicativa do direito sem
incorrer em uma invenção normativo-jurisdicional. Por outro lado, pensa que
argumentos, como o apresentado por carLoS veLLoSo, acerca de um “espírito”,
“vontade” ou “intenção” da lei possa ser-lhe útil na construção de suas decisões, já
que se lhe tornaram nítidos vários problemas de se entender o direito convencio-
nalmente preso a disposições legislativas. assim é que aSTrÉia pretende valer-se
de hermeS, o intérprete da vontade divina,17 para tomar ciência daquilo que no
passado, sobretudo em razão de seu fetichismo com a lei, os legisladores “pensa-
ram” e “assumiram” como “intenção” ao aprová-la.
a metáfora do juiz hermeS é devedora das propostas teóricas de ronaLd
dWorKin. em face da corrente prática interpretativa nos Tribunais a indagar sobre
as declarações feitas por membros do Legislativo, quando do processo da construção
e aprovação de um determinado diploma normativo, a pretensamente nos permitir
vislumbrar uma “finalidade” da lei,18 dWorKin problematiza no sentido de que essas
declarações porventura realizadas não são, a bem da verdade, eventos que merecem
ser tomados como centrais ou determinantes na interpretação normativa mas que,
muito antes pelo contrário, vem a evidenciar um estado mental de determinados
sujeitos particulares e concretos e que, supostamente, seria representativo de um
“estado de espírito” de uma maioria cujos votos teriam sido indispensáveis à aprova-
ção daquela lei. e geralmente os juízes se voltam a esse passado da lei quando o texto
legislativo não se faz claro, na tentativa de se descobrir qual era o “estado de espíri-
to” que o Legislativo teria vindo a imprimir com a aprovação do diploma.19
assim é que nos pontua dWorKin no sentido de que indagar sobre a “inten-
ção da lei” é assumir na atividade interpretativa a relevância da intenção de um
locutor que nos diz algo. e isso, no que se refere a diplomas legislativos, nos leva
50 cf. o Posfácio em: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstru-
ção crítico-discursiva na alta modernidade, cit.
capaz de ser coerentemente interpretada a partir dos princípios cujas reconstru-
ções se prendem às tradições jurídico-políticas modernas de realização de iguais
liberdades subjetivas a todos na maior medida possível.51
Se outrora aSTrÉia não compreendera isso, é porque não lhe fazia claro que
este projeto modernamente referido à igual realização de liberdades a todos, é co-
dependente de uma compreensão principiológica do direito a permitir-lhe, inclu-
sive, levar à frente sua função na Sociedade, qual seja, de estabilização generaliza-
da de expectativas de comportamento. Somente quando construímos o direito
democraticamente, isto é, aberto a uma concepção a garantir, a um só tempo, a
pluralidade de formas de vida e a assunção deste projeto como algo que diga res-
peito a todos os cidadãos, como autolegisladores e co-autores desse mesmo
direito, é que podemos interpretá-lo como uma prática social argumentativa
ancorada em princípios a garantirem que expectativas comportamentais sejam
estabilizadas na Sociedade, isto é, no fluxo comunicativo.
o que isso implica é o reconhecimento de que uma interpretação axiológica
ou política do direito, muitas vezes pretendida pelo Judiciário, afronta, de manei-
ra central, a função do direito. Quando passamos de uma discussão normativa a
outra valorativa as pretensões de estabilização de expectativas já se encontram
ameaçadas em face, uma vez mais, da falta de generalização dos valores em uma
Sociedade que realmente se vislumbre e se pretenda como democrática. Quando,
ao gosto de uma “jurisprudência dos valores”, se pressupõe uma ordem axiológica
concreta e hierarquizada, a partir da qual se toma o direito a interpretar, fracas-
sada já se encontra a pretensão de se alcançar, a cada caso, a adequabilidade nor-
mativa. a decisão passaria a se mover no campo dos gostos e convicções particu-
lares se distanciando daquilo que, de maneira generalizada, se poderia sustentar
naquele contexto em face do que o projeto jurídico-moderno a nós impõe.
Levando em consideração tudo até aqui problematizado, podemos já, adequa-
damente, retomar a questão subjacente às questões que vêm sendo apresentadas:
afinal de contas, o que está em jogo na adPF/54?
de maneira mais imediata podemos afirmar que o que se encontra em ques-
tão é o reconhecimento, ou não, institucional do pretendido direito, às mulheres,
de interromperem a gravidez, como antecipação terapêutica do parto, em casos de
gestação de feto anencéfalo. Porém, se olharmos mais de perto perceberemos que
existem outras questões que se encontram, de maneira subjacente, presas a essa
discussão, isto é, ao reconhecimento, ou não, do direito subjetivo em debate. o
que se encontra em jogo, afinal, é qual compreensão do direito, e dos direitos fun-
51 nesse sentido: haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de dere-
cho en términos de teoría del discurso, cit., p. 469 et seq.
damentais, pois, deve ser assumida por uma prática jurisdicional que seja digna de
sua atividade em face do direito da modernidade.
o que se encontra em discussão é também uma determinada compreensão da
constituição da república de 1988 e do constitucionalismo moderno, da função
do direito e de pretensões acerca de uma melhor e coerente proposta interpreta-
tiva do sistema jurídico-normativo. Por isso, a resposta à adPF/54 envolve ques-
tões mais profundas de Teoria e Filosofia do direito.
o que com isso afirmamos, é que o direito, desde agora, tem, sim, uma resposta
ao caso. e essa resposta, diante da exigência de imparcialidade normativa, não nos
pode ser fornecida em face das convicções individuais, supostas intenções legislativas,
expectativas ou esperanças particulares. essa resposta há que ser reconstruída assu-
mindo o direito como um sistema de princípios capaz de ser coerentemente interpre-
tado na reconstrução da única resposta adequada a esta situação em específico.
do contrário, estaríamos abrindo o direito a uma interpretação valorativo-axio-
lógica em que um determinado intérprete-aplicador imporia, em face das questões pelo
caso suscitadas, seus valores particulares, sua concepção materializada de compreensão
do exercício de uma determinada liberdade, sem se manter aberto ao que significa um
reconhecimento plural e diversificado do exercício de liberdades subjetivas.
o que está em jogo, portanto, é uma interpretação deontológica do direito,
capaz de satisfazer o ideal de coerência normativa, sempre precário em face dos
riscos de uma interpretação política e axiológica a continuamente rondar a práti-
ca jurisdicional. não se pode pretender vislumbrar nesse caso, como igualmente
em outros, o Supremo Tribunal Federal como “guardião” de “valores comunitá-
rios” supostamente compartilhados de maneira homogênea e aproblematizada. o
que se está a discutir são normas, e não valores, é o que deve ser interpretado
como devido em face do argüido, e não o preferível...
destarte, já podemos afirmar que a resposta, em face dos argumentos apresen-
tados, é de que, independentemente do código Penal prever, ou não, a hipótese a
impedir a formação do juízo de ilicitude em casos de interrupção da gravidez de
fetos anencéfalos, o direito reconhece, em sua melhor luz, esse direito às gestantes.
Primeiramente cabe-nos considerar que, uma vez mais, a legislação deve ser
interpretada no sentido de realização do projeto jurídico moderno. o fato de uma
determinada situação não ter sido explicitada legislativamente jamais pode nos
permitir concluir pela ausência ou lacuna de tratamento jurídico. muito antes
pelo contrário, isso vem a nos ser útil para que compreendamos o caráter contin-
gente e histórico do direito: o nosso desafio é saber atualizar o direito em face de
situações imprevistas, porque imprevisíveis, sem, com isto, perder seu ideal de
coerência normativa. como exigir do “legislador” de 1940 a previsão expressa de
situações que o avanço tecnológico a cada dia nos impõe? Por outro lado, isso
jamais pode significar que o direito, uma vez que sistema principiológico, não
tenha uma resposta adequada a essas questões.52 não se poderia, também, preten-
der afirmar, ao gosto de premissas neo-positivistas, que o direito apresentaria tão-
somente “respostas possíveis” a esse caso: antes, devemos levar a sério a pretensão
de racionalidade na operacionalização do sistema jurídico que nos cobra, portan-
to, a realização de um adequado juízo de correção normativa, isto é, a busca por
um juízo sustentável de adequabilidade normativa.
mas devemos já advertir que a interpretação no sentido de que o direito
garante, em um esforço interpretativo à sua melhor luz, às mulheres gestantes de
fetos anencéfalos a liberdade subjetiva de interromper a gravidez, não se trata de
uma leitura sustentável com base em meus particulares valores, mas em face de uma
interpretação adequada dos princípios jurídicos sob o manto de seu ideal de coe-
rência normativa e de seu projeto de iguais realizações de liberdades fundamen-
tais a todos na maior medida possível.
a assunção dessa interpretação pelo Supremo Tribunal Federal não deveria
levar os ministros ao pensamento de que se estaria “inventando” uma solução jurí-
dica para um caso que, supostamente, ainda “não teria” solução, porque ainda em
espera deveríamos ficar, na expectativa de uma decisão das casas Legislativas. essa
interpretação assume pressupostos interpretativos acerca da prática jurídica das
quais não podemos compartilhar. o primeiro desses supostos diz respeito a uma
pretensa existência de “lacunas” no direito. essas lacunas, ou falhas, como referi-
do acima, seriam caracterizadas por uma insustentável “ausência de normas” a
permitir uma solução adequada àquele caso. essa é, inclusive, a razão pela qual tão
fortemente a ministra eLLen gracie e também o ex-ministro carLoS veLLoSo
apresentaram a argumentação páginas acima reconstruídas. o fato de não haver
previsão legislativa de uma determinada situação a tocar o direito não pode signi-
ficar, jamais, que não exista uma solução jurídica adequada ao mesmo.
Somente uma concepção convencionalista como a debatida aqui é capaz de
propor esse falso problema à praxis jurídica da modernidade. o que está em jogo
não é uma “invenção” jurisdicional no exercício arbitrário de uma discricionarie-
dade. o que está em questão é uma interpretação adequada e coerente do direito,
e de seu projeto moderno, capaz de nos permitir desvelar, des-cobrir, qual respos-
ta pode ser assumida como adequada às especifidades do caso que se contorna.
Pretender argumentos como o de “superioridade da lei”, uma vez como pre-
tensa “fonte superior” do nosso direito, é se manter preso a uma certa tradição
sociológico-interpretativista da prática jurídico-normativa incapaz de compreen-
der que o direito somente se justifica à luz de seu caráter principiológico. essa,
afinal, é outra falsa questão levantada pela argumentação que aqui criticamos.
52 cf. nosso: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito Penal: contribuições a uma
reconstrução da dogmática penal 100 anos depois, cit., p. 73 et seq.
o direito moderno, em razão de sua forma, se caracteriza, como visto no
capítulo 3, também, mas não só, pela referência à sua “positividade”.
a positividade do direito tornou-se, na modernidade, um aspecto central da
própria argumentação jurídica. anteriormente compreendida a partir da tensão
entre direito positivo e direito natural, tal compreensão hoje deve ser devidamen-
te re-interpretada em face daquilo capaz de ser, publicamente, sustentado como o
direito vigente. com isso, não estamos a afirmar que o direito positivo se reduza a
textos normativos, a diplomas frutos de um processo legislativo. compartilhamos
da concepção segundo a qual o direito positivo se confunde com a própria praxis
argumentativa que, enquanto tal, implica o reconhecimento recíproco – porque
intersubjetivamente levado adiante em respeito a uma dimensão pragmático-uni-
versal – de um sistema de direitos e deveres fruto de um exercício autolegislador.
direito positivo e direito vigente hão que ser assumidos como sinônimos, como
praxis jurídica comunicativamente construída, reconhecida e compartilhada.
Por outro lado, muitas vezes a referência ao fato de algo não estar “positivado
na lei”, como nos parece ser o caso em tela, representa um equívoco em sede desta
discussão se com isso é pretendido esquivar-se de uma solução adequada ao caso. a
partir do momento em que somente podemos interpretar a positividade do direito
como enlaçada à idéia de sua vigência, isto é, à concepção de reconhecimento com-
partilhado de padrões normativos a mutuamente reger nossas vidas, não podemos
continuar a cair em falácias como a idéia de que o direito se reduza a textos nor-
mativos. Se é verdade que a legislação democraticamente construída estabelece, de
maneira abstrata e geral, interpretáveis padrões normativos capazes de serem assu-
midos como coletivamente vinculantes – no cumprimento, pois, da função do
direito de estabilizar expectativas de comportamento de maneira generalizada –,
desde outro lugar sabemos que o sentido normativo da própria legislação está a
depender de uma sempre renovadora interpretação principiológica do direito a
revolver, trazendo à tona igualdades e diferenças muitas vezes incapazes de se faze-
rem sentidas a partir de uma “simples” interpretação do texto legal porque se
podem fazer, inclusive, e desde antes, intransparentes à própria prática legislativa.
o direito da modernidade nitidamente se construiu, e se constrói, uma vez
que praxis interpretativa, com referência, igualmente traçada desde uma óptica
argumentativa, a textos normativos. o que não nos pode imobilizar é a pretensão
de que supostamente o sentido do texto normativo se prende a si próprio. afinal,
as especificidades dos casos, e suas peculiaridades, sempre nos devem chamar a
atenção para, na busca do equilíbrio reflexivo,53 alcançar e compreender qual o
sentido das normas em princípio aplicáveis ao caso. com isso, podemos concluir,
53 Sobre isto, cf.: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução
crítico-discursiva na alta modernidade, cit., p. 107.
circularmente, que embora a legislação represente, na argumentação, um referen-
cial, por outro lado jamais teria o condão de reduzir, mágica e definitivamente, a
complexidade do sistema jurídico em face de seu caráter principiológico e do que
está a implicar, em um nível mais profundo, seu ideal de coerência normativa. a
contingência do direito não está atrelada somente ao processo legislativo, mas
também envolvida se encontra no reconhecimento principiológico das igualdades
e diferenças... e, para tanto, não podemos confundir, como os argumentos ofere-
cidos pelo STF insinuam, direito positivo ou vigente com “direito legislado”.
assim, fugir do que a atividade jurisdicional seriamente está a cobrar das
autoridades jurisdicionais sob a alegação de que há “falhas” no “ordenamento”, de
que a lei é “fonte superior” ou de que a questão não pode ser resolvida por um
suposto “atalho fácil”, é, pois, e ao final, sustentar argumentos capazes de justifi-
car a negação do acesso à Justiça, em termos fortes, como ocorre, por exemplo, e
aqui vale relembrar, com o mandado de injunção e a predominante interpretação
que lhe é dispensada pelo Supremo Tribunal Federal.
o direito, na busca por sua autopurificação, permite a reconstrução dos prin-
cípios da liberdade e da igualdade como respostas que não poderiam ser pretendi-
das como “invenções”, isto é, como não-fundamentadas propostas interpretativas,
mas, pelo contrário, como a tomada em consideração, de maneira firme e clara,
das diferenças que, nos casos, fazem diferença.
o direito garante, legitimamente, a liberdade à gestante de interromper a gravi-
dez em casos de anencefalia, por um complexo de razões que aqui passamos a analisar.
Primeiramente, cabe-nos, desde já, colocar de lado, porque acreditamos já estar
suficientemente explicitada nossa posição, a argumentação de cLÁudio FonTeLeS no
sentido de que a questão em foco deveria ser deixada para o debate legislativo e que
tanto seduziu, por exemplo, a ministra eLLen, gracie como pudemos ver.
um argumento que deve ser definitivamente enfrentado é aquele que se refere
ao nascituro como sujeito dotado de direitos juridicamente garantidos. certamente
acreditamos que o nascituro possa ser interpretado como dotado de personalidade
jurídica, e isso nos informa a possibilidade de, na argumentação jurídica, ser assumi-
do um referencial de imputação de direitos e/ou deveres. a partir do momento, mas
não só, em que a prática jurídico-argumentativa atribui ao nascituro determinados
direitos, como direitos patrimoniais – e, porque não, os decorrentes deveres desses
direitos e que, embora devam ser cumprido pelos pais, referem-se ao patrimônio do
nascituro –, o que se está a reconhecer é que o nascituro, definitivamente, e em face
dos mais variados casos, pode ser assumido como um sujeito de direitos (e deveres).54
54 Para mais detalhes, cf.: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma recons-
trução crítico-discursiva na alta modernidade, p. 143 et seq.
isso não significa que o nascituro seja, em toda e qualquer situação possível e imagi-
nável, dotado de personalidade jurídica.
Pensemos o seguinte esquema interpretativo: Se perguntássemos a aSTrÉia se
o homicídio é proibido, ela nos diria, antes de compreender a complexidade da
praxis jurídica, que o homicídio é proibido. mas se a indagássemos sobre a exis-
tência de determinadas situações, como legítima defesa, continuaria aSTrÉia a
afirmar que o homicídio é proibido e que a legítima defesa seria uma exceção à
regra de que não devemos matar outrem. essa concepção se ajusta de maneira per-
feita a uma compreensão do direito aos moldes de uma visão convencionalista:
existem regras que estabelecem, desde sempre e desde antes, seus contornos e sen-
tidos normativos. Todavia, determinadas situações poderiam tão-somente excep-
cionar esse conteúdo.
Se, agora, perguntássemos a hÉracLeS se o homicídio é proibido, ele nos diria
que sim, que o homicídio é, em princípio, proibido. o que está em jogo aqui é uma
compreensão do direito aberta às interpretações que as especificidades de cada
caso estão a requerer. com isso, o que se pode afirmar é que o sentido normativo
de proibição do homicídio não é excepcionado por nenhuma norma; antes, já se
assume, na postura interpretativa, a compreensão de que não nos é dado prever
todas e quaisquer situações possíveis e imagináveis de aplicação da norma, isto é,
nos é impossibilitado prever todos os seus sentidos normativos possíveis, porque
isso está a depender das peculiaridades a serem levadas a sério em cada situação.
o fato de que o homicídio seja, em princípio, proibido, não significa que o
seja em qualquer situação – nem que seja excepcionado por outra “regra”. o que
não se percebe é que o raciocínio regra/exceção está a pressupor uma compreen-
são convencionalista do direito a, exatamente, prever expressamente e de manei-
ra taxativa quais são as “exceções admitidas a uma determinada norma”. Partimos
de pressupostos bastante diferentes.
do fato de o nascituro, em princípio, poder ser assumido como titular de
determinados direitos, não significa que em todo e qualquer caso deva ser interpre-
tado como dotado dos mesmos direitos. o que com isso afirmarmos é que essa ques-
tão, como qualquer outra questão referida ao direito, é dependente das circunstân-
cias do caso e daquilo capaz de, à luz do direito, ser assumido como relevante em
sua interpretação no reconhecimento contínuo de diferenças que fazem diferença
em face de outros casos. o direito não pode ser interpretado da maneira que os
convencionalistas pretendem, isto é, atribuindo sentidos fixos e imutáveis às nor-
mas; antes, o que aqui se está a explicitar é que o sentido normativo é dependente
do contexto de interpretação e dos contornos do que se encontram em tela.
assim, se indagarmos as razões jurídicas pelas quais o direito garante ao nas-
cituro determinados direitos subjetivos – o que, pois, nos permitiria vislumbrá-lo
como, em princípio, dotado de personalidade jurídica –, encontraremos a resposta
na esfera da autonomia jurídica. o sentido de se reconhecer ao nascituro determi-
nadas liberdades jurídicas como, por exemplo, direitos patrimoniais, mas também
outros como direito à alimentação e à sua integridade – interpretáveis caso a caso –,
se refere à garantia de condições que àquele sujeito é reconhecida em razão de ser
um sujeito futuramente capaz de exercer sua autonomia jurídica. É, pois, a realiza-
ção e um exercício futuro de uma autonomia jurídica o que está a justificar o reco-
nhecimento do nascituro como possível referencial de imputação de direitos e
deveres. o seu reconhecimento como futuro ator de suas liberdades subjetivas.
e o que estamos a referir por exercício de autonomia jurídica não se confun-
de com as clássicas noções de “capacidade jurídica”.55 Por sua vez, diz respeito à
garantia de determinadas esferas de liberdade de escolha, inclusive, que não só
sujeitos adultos e “mentalmente sadios” são capazes de exercer, mas também
crianças e indivíduos portadores de sofrimento mental. uma criança de seis anos
ou um homem de trinta anos e portador da síndrome de down não devem ser vis-
lumbrados como alheios a essas questões; em face de determinadas situações, e
diante da especificidade que cada caso requer, o direito há que ser re-interpreta-
do na busca do que significa a garantia, em cada caso, de autonomia jurídica,
pública e privada. Será que crianças e portadores de sofrimento mental não reali-
zam escolhas, ao longo de suas vidas capazes de serem interpretadas como referi-
das às suas respectivas “auto-realizações”? ainda que não trabalhadas de maneira
tão explícita ou consciente, todos nós temos gostos e preferências que, em princí-
pio, nos são garantidos pelo direito. e diferentemente não poderia ser no que diz
respeito às crianças ou àqueles que possuem algum sofrimento mental.
Todavia, no caso do feto anencéfalo a interpretação jurídica não pode igno-
rar a peculiaridade do diagnóstico hoje capaz de ser realizado em gestação. em
face da irreversibilidade do quadro, como sustentar, pois, a garantia futura do
exercício de uma autonomia jurídica àquele que, em razão de sua má-formação
congênita, já nasce sem condições biológicas de manutenção de sua vida?
Seja de pessoas, seja de atividades personificadas, o direito garante direitos e
imputa deveres em face de uma autonomia privada a ser exercida atual ou futura-
mente. no caso de fetos anencéfalos, essa interpretação se abre à especificidade do
caso: se é certo que “nascituros” em princípio têm determinados direitos capazes
de serem reconhecidos, isso jamais significa “que tenham” esses mesmos direitos
em toda e qualquer situação. ou seja, isso nos cobra assumir seriamente as dife-
renças e as igualdades entre os casos em face da exigência normativa genuína que
a busca de iguais liberdades subjetivas a todos os membros de uma comunidade
jurídica, e na maior medida possível, está a nos cobrar.
55 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 183 et seq.
Podemos já concluir no sentido de que a interrupção de gravidez é, em prin-
cípio, uma prática proibida, mas que, em face da especificidade e do reconheci-
mento de diferenças que uma gravidez de anencéfalo requer, neste caso é permi-
tida. e, vejamos bem, tal abertura somente é capaz de ser interpretada como direi-
to e jamais como um dever.
afinal de contas, não se está a reconhecer traços de uma autonomia jurídica
da gestante desse feto?
nitidamente, a interrupção da gravidez, vez que incapaz de ser interpretada
como prática de crime de aborto em razão do argumento jurídico – e não mera-
mente “biológico” – de impossibilidade de construção de uma subjetividade capaz
de exercer autonomia jurídica, deve ser interpretada de maneira co-dependente
ao direito que se deve reconhecer à mãe dessa criança. a decisão sobre a realiza-
ção, ou não, do adiantamento terapêutico do parto – em situações nas quais a ges-
tante se encontra consciente e em condições de tomar essa decisão – somente cabe
à própria gestante.
e isso se deve não no mesmo sentido do argumento empregado por muitos,
inclusive por dWorKin, e do qual discordamos, de que a mulher teria direito sobre
seu próprio corpo, o que tornaria o “crime de aborto” em si, e em determinados con-
tornos, inconstitucional.56 não defendemos a postura de que a proibição de inter-
rupção de gravidez seja, necessariamente, inconstitucional. mas assumimos que não
reconhecer à mulher o direito de interromper a gravidez em casos de anencefalia é,
por outro lado, uma violação profunda ao sentido do direito da modernidade, isto
é, ao sentido dos direitos fundamentais e de sua interpretação coerente.
como garantir à gestante do feto anencéfalo igual liberdade à sua saúde, e
neste caso concreto, senão mediante o reconhecimento do direito à interrupção da
gravidez? Somente uma compreensão adequada do que seja “saúde”, inclusive a
abarcar a integridade psíquica, nos permite reconhecer, nesse caso, as diferenças
que merecem ser marcadas. a busca pelo igual reconhecimento de direitos funda-
mentais a todos nos exige construir as diferenças entre uma gravidez indesejada,
por exemplo, mas fruto da não-utilização de meios contraceptivos – ou, ainda, de
uma falha desses meios, mas que à mulher seria previsível – e uma gravidez de um
feto anencéfalo. Se, no que tange à primeira situação, a mulher, no uso de sua
autonomia, decidiu manter a relação sexual, assumindo a gravidez ou resignando-
se quanto a esta, na segunda, por que deveríamos obrigar à mulher seguir com
uma gravidez indesejada que assim é tida por fatores (anencefalia do feto) que não
dizem respeito ao exercício de sua autonomia, mas, muito antes pelo contrário,
56 dWorKin, ronald. o direito da liberdade: a leitura moral da constituição norte-americana. Trad. marcelo
Brandão cipolla. São Paulo: martins Fontes, 2006, p. 150 et seq.
por questões que não dizem respeito à sua vontade? como reconhecer, pois, as
igualdades e as diferenças nessas situações?
Para respondermos, pensemos no seguinte quadro: uma gestante que desco-
bre que seu futuro filho é portador da síndrome de down poderia se valer do argu-
mento aqui apresentado para realizar a interrupção da gravidez que acabou por se
tornar indesejada, uma vez que seu filho tem uma síndrome que não dependeu do
exercício de sua autonomia?
Temos, na verdade, três situações diferentes.
a) na primeira delas, é claro que não se pode pretender interpretar a prática
abortiva como juridicamente permitida, em razão de que o reconhecimento jurídi-
co – e aqui não estamos a discutir traços político-pragmatistas dessa questão – da
proibição do aborto não viola, em princípio, qualquer direito fundamental das
mulheres. antes, estas têm garantidos direitos capazes de permitir-lhes tomar a
decisão acerca de como e de quando manter relações sexuais. isso significa dizer que
a proibição do aborto, como aqui colocado em face dessas circunstâncias, é compa-
tível com aquilo que, contextualizadamente, podemos interpretar como autonomia
privada dessas mulheres. um suposto direito constitucional das mulheres e genera-
lizado à prática abortiva geralmente é atribuído como referente à autodeterminação
física de seus corpos, ou como um direito à própria sexualidade. desde já afastamos
estas interpretações normativas à matéria: o primeiro argumento se faz por demais
naturalizado; afinal, o feto não é uma parte do corpo da mulher. Quanto ao segun-
do, o aborto não é o único meio através do qual as mulheres poderiam impedir ou
evitar o nascimento de filhos. há outros meios que, no uso de sua autonomia, podem
ser empregados como maneira de livremente viver sua sexualidade. Se o aborto fosse
o único meio disponível ou possível para se impedir a gestação e o nascimento inde-
sejados de um filho, nossa resposta deveria ser outra.
b) Por outro lado, o último dos exemplos também não abriria à mulher o
direito de interromper a gravidez sob o simples argumento de que seu filho é por-
tador da síndrome de down. como acima já esclarecido, distinguem-se, sobrema-
neira, o fato de uma criança ser portadora de sofrimento mental e outra ser anen-
céfala. isso porque aos portadores de sofrimento mental é possível construir sua
particular subjetividade e exercer direitos, inclusive, na construção dessa subjeti-
vidade, o que, desde o início, aos anencéfalos já lhes é impossível.
c) mesmo o precioso caso da marceLa, que acima apresentamos, não é capaz
de servir como argumento contra o reconhecimento às gestantes de se decidir
sobre a interrupção da gravidez em casos de anencefalia. Se é verdade que
marceLa sobrevive, por outro lado não se pode pretender interpretar que ao
direito isso sirva como argumento para não reconhecer a liberdade de se fazer a
antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia.
marceLa, como qualquer pessoa, tem direito ao tratamento médico adequa-
do, uma vez que, com seu nascimento com vida não pode, em princípio, ser dei-
xada sem os cuidados que seu caso exige. mas esta, por outro lado, é uma questão
que também diz respeito a uma decisão dos pais de marceLa, em face da irrever-
sibilidade de seu quadro. afinal, não é essa uma argumentação capaz de apresen-
tar razões jurídicas à prática de eutanásia,57 senão aquelas referentes à impossibi-
lidade de se vislumbrar em uma determinada pessoa a reversibilidade de seu qua-
dro clínico e conseqüente desenvolvimento de uma subjetividade juridicamente
capaz de exercício de autonomia jurídica?
o que, com tudo isso, estamos a dizer? Que o reconhecimento de iguais direi-
tos fundamentais às gestantes de fetos anencéfalos nos exige interpretar o direito
principiologicamente à luz da concretude dos casos e na busca do reconhecimento
dos direitos, e deveres, que o caso está, juntamente com o direito, a nos informar.
em face das conseqüências físicas e, sobretudo, de ordem psicológica que a manu-
tenção de uma gravidez, por nove meses, de um feto que já se sabe nascer com
nenhuma expectativa de sobrevida pode gerar à gestante, como reconhecer-lhe
autonomia jurídica, isto é, como reconhecer-lhe o princípio da igualdade na dife-
rença de seu caso, senão reconhecendo que a garantia de sua saúde está a depender
da antecipação terapêutica do parto e conseqüente interrupção da gravidez?
novamente, que a interrupção de gravidez seja, em princípio, proibida, não
significa que assim seja sempre e em qualquer caso. uma interpretação coerente
do direito nos cobra reconhecer à grávida de anencéfalo o direito, cujo exercício
depende de suas particulares razões – e não das convicções de um juiz que concre-
tiza os limites e formas de exercício dos direitos desde sua particular e materiali-
zada concepção valorativa –, de interromper, ou não, a gravidez. essa, inclusive, e
em face do caso, é a única resposta capaz de reconhecê-las como iguais na assun-
ção das liberdades fundamentais, na maior medida possível.
aliás, levando adiante, à melhor luz, uma interpretação do direito como um
sistema coerente de princípios, não seria esse o sentido que, inclusive, uma inter-
pretação principiológica do direito está a nos cobrar no reconhecimento de uma
Sociedade de homens, em suas autonomias jurídicas, livres e iguais?
os argumentos aqui apresentados somente podem ser assumidos de maneira
co-implicada e complementar. nenhum desses argumentos, tanto no que se refe-
rem ao feto, quanto à gestante, fazem sentido se tomados isoladamente.
em face da irreversibilidade do quadro do anencéfalo, não seria, em determi-
nados casos, inclusive, uma forma de principiologicamente re-interpretar certas
57 nesse sentido: SÁ, maria de Fátima Freire de. direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2. ed. Belo
horizonte: del rey, 2005; chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito Penal: por uma
reconstrução crítico-discursiva na alta modernidade, cit., p. 169 et seq.
interrupções de gravidez de fetos anencéfalos como a única forma de salvar a vida
da gestante? afinal de contas, em face do que estamos a argumentar, devemos
interpretar “vida” só no sentido de sua “integridade física”, mas não também de
sua “integridade psíquica”, à luz do que o direito nos diz a esse caso? Se nos pren-
dermos a uma compreensão convencionalista da prática jurídica, absurda seria
essa leitura...
Tudo isso porque a pretensa busca por uma “segurança jurídica” jamais pode
ingenuamente ser confundida, outra vez, como um apego a textos legislativos,
mas, pelo contrário, referida à certeza de que a postura assumida na interpretação
do direito será aquela realizativa, a respeitar a pluralidade da Sociedade, enfim, o
sentido principiológico do direito da modernidade.
caPíTuLo 7
o Que o direiTo não É
3 dWorKin, ronald. Law’s ambitions for itself. virgina Law review, cit.
como KeLSen outrora pretendeu, que não haja um sentido na aplicação do direito.
o direito moderno, desde seu passado, desde as lutas históricas, e cotidianas, em
torno de seu desdobramento e aplicação, ambiciona, tem seus olhos voltados ao
igual reconhecimento de liberdades fundamentais a todos na maior medida possível
então o desafio do direito, da praxis jurídica, enfim, é a busca pela interpre-
tação das normas jurídicas no sentido da realização, em cada caso concreto, desse
projeto moderno. o direito se constrói, obviamente, por continuidades e descon-
tinuidades. Todos nós, cidadãos-membros de uma comunidade política, devemos
nos enxergar e atuar como co-autores do direito. a construção legítima do direito
da modernidade, enquanto reconhecimento válido dessa prática, depende do
pressuposto reconhecimento de iguais liberdades políticas de participação em seu
processo de desenvolvimento.
com isso, o direito da modernidade só será válido, somente poderá ser assu-
mido como legítimo, ao passo em que for construído, porque reconhecido, em
uma democracia. e para que haja democracia é pressuposto, por sua vez, o igual
reconhecimento pela, e na, praxis jurídica de liberdades subjetivas a todos e no
maior grau possível. Somente quando se reconhece, ou somente quando nós reco-
nhecemos a nós mesmos e de maneira indistinta, iguais direitos fundamentais,
bem como sua pressão de serem reconhecidos no maior grau possível, é que pode-
mos caminhar na luta pela construção e desenrolar válidos do direito.
a aplicação desse sistema jurídico, por seu turno, para ser válida há que respei-
tar, portanto, os pressupostos democráticos que à dita atividade se referem. isso sig-
nifica, então, afirmar que, para cada caso concreto, esse projeto moderno do direito
há que ser levado a sério. conclui-se, pois, que determinado juiz, a cada caso con-
creto julgado, não pode desconsiderar toda essa fundamentação, construção e luta
jurídico-modernas que, em sendo transcendente de contexto, transcende a própria
experiência de vida do julgador porque, e inclusive, assume por referência séculos
de prática jurídica moderna, não se fazendo ao aplicador disponível sua forma.
a decisão adequada, correta, no sentido de um juízo racional de correção
normativa, não pode estar, ou ser, aberta àquilo que caprichosamente, ainda que
sob argumentos éticos, morais ou pragmatistas, acredita o juiz ser a decisão do
caso... do contrário, se assim não assumíssemos nossa prática jurídico-interpreta-
tiva, cairíamos não só no problema do decisionismo mas, mais além, na própria
discricionariedade e arbítrio do/no ato de julgar – tanto KeLSen quanto Luhmann
acabaram incorrendo. o desafio, portanto, é compreender e assumir na interpre-
tação do direito que a cada caso é possível vislumbrar uma leitura capaz de ser
reconhecida como a melhor leitura do direito àquele caso, exatamente porque
capaz de ser interpretada como garantidora no maior grau possível, e naquela
situação em específico, de iguais direitos fundamentais aos afetados pela decisão.
Só podemos, portanto, considerar, pois, o cheque pré-datado como juridica-
mente válido se assumirmos essa empreitada e a complexidade do ato de interpre-
tação do direito. Se por um lado a legislação de títulos de crédito determina que
“cheque é ordem de pagamento à vista”, e o código Penal determina somente duas
situações autorizadoras para realização do aborto – quais sejam, em razão de gra-
videz resultante de estupro ou que coloque em risco a saúde da gestante –, por
outro lado não podemos interpretar o direito acreditando que a legislação traga,
por si só, e de uma suposta forma “clara”, “óbvia”, todas as respostas possíveis para
todos os casos – nem se apoiar na idéia de uma válvula de escape que KeLSen pre-
tendeu ao se referir a uma suposta “permissão negativa” globalmente interpretá-
vel à luz do ordenamento jurídico.
um esforço interpretativo muito maior é exigido do intérprete-aplicador do
direito. e exatamente por isso não podemos compreender o direito como um “sis-
tema de regras”, como um sistema normativo capaz de prever, ou pré-estabelecer,
convencionalmente – legislativa ou consuetudinariamente – todas as suas hipóte-
ses de aplicação. isso porque, de forma transparente já nos faz percebido, haverá
sempre situações novas – seja porque antes alheias ao direito ou ainda em razão
de um novo enfoque interpretativo – que jamais poderiam ser assumidas como
desde sempre convencionalmente firmadas ou previstas pelo sistema do direito. e
a assunção de uma discricionariedade (KeLSen/Luhmann) para a solução desses
impasses não pode, por seu turno, também ser assumida como uma “aplicação”
racional ou válida do direito porque supostamente justificada no saber de especia-
lista do juiz ou no aspecto organizacional que pretensamente viria a colocar os tri-
bunais no “centro” do sistema jurídico.
disso a nós se faz marcado qual o desafio que espera o direito, vez que pra-
xis interpretativa. nenhuma legislação estabelece, por exemplo, que o cheque pré-
datado seja “juridicamente válido”. nenhum diploma legislativo também estabe-
lece que a mulher teria, ou não, o direito a uma prática abortiva em face de uma
gravidez fruto de inseminação artificial realizada de maneira equivocada em razão
de um erro médico. isso exige, pois, do intérprete-aplicador do direito, um esfor-
ço interpretativo mais profundo, já que não poderá se socorrer de uma compreen-
são do direito atrelada a um sistema, ou “modelo”, convencional de regras.
em um reducionismo sociológico, a Teoria do direito moderna vem preten-
dendo explicar a “geração” de determinadas normas como atrelada a uma prática
costumeira, consuetudinária, a supostamente justificar, à luz do direito, certas
condutas como que dotadas de um caráter devido ou juridicamente exigível em
razão de seus atributos geralmente referidos à sua homogeneidade, estabilidade e
continuidade sociais, bem como no que também se refere a uma opinio juris sobre
sua “necessidade” ou “exigibilidade” jurídicas. Poderíamos até ser seduzidos a
compreender o esquema interpretativo apresentado logo no início deste capítulo,
e tangente à figura do cheque pré-datado, como referido a um costume que, pois,
poderia cobrar exigibilidade jurídica em face do desrespeito desse “costume” tão
recorrente em nossa praxis social.
Todavia, já vimos que não podemos assumir essa mesma prática consuetudi-
nária como dotada de força “normogenética”. do contrário, estaríamos reduzindo
a validade das normas jurídicas porventura assumidas dessas práticas à mera fati-
cidade de sua verificação e aceitação sociais. vimos que somente uma interpreta-
ção principiológica – a assumir as dimensões hermenêutica e pragmático-univer-
sal da comunicação – é capaz de garantir, a um só tempo, que práticas sociais gene-
ralizadas possam também cobrar não só eficácia, mas também legitimidade em
face do sistema do direito. Supera-se, assim, não só pressupostos de uma interpre-
tação convencionalista de normas jurídicas – ainda que costumeiras –, bem como
também abre espaço a uma compreensão da tensão entre aceitabilidade e aceita-
ção sem reduzir validade à faticidade.
o intérprete do caso – aqui em específico a autoridade jurisdicional, mas
também qualquer cidadão no exercício de uma atividade interpretativa do direito
– tem que se colocar como membro dessa comunidade jurídica, assumindo, para
tanto, uma postura realizativa. há que entender que uma decisão jurisdicional é
mais uma página firmada de uma história que vem se desenvolvendo há séculos...
e o desafio se perfaz aqui na busca pela coerência, inclusive, neste capítulo que se
está escrevendo. a questão como um todo envolve, uma vez mais, a busca pela
realização do ideal de coerência jurídico-normativa subjacente à toda prática
argumentativa referente ao direito.
como essa decisão pode ser coerente em face da história do direito que vem
se construindo?
essa história é uma história constante e intensa de luta pelo reconhecimen-
to, na maior medida possível, de iguais direitos fundamentais a todos. o paradig-
ma liberal de estado e direito, através de muitos embates, conseguiu firmar, em
um determinado contexto hermenêutico-interpretativo, o reconhecimento de um
núcleo de direitos comuns, em princípio, a todos os cidadãos.
ao longo dos anos, as conquistas das gerações anteriores sempre foram obje-
to de novas e outras interpretações paradigmaticamente referidas. isso tanto se
confirma que se passou a assumir, no discurso jurídico-moderno, que para se
garantir igualdade e liberdade seria indispensável pressupor o reconhecimento,
por exemplo – e no que aqui também marca uma ruptura paradigmática em face
do modelo liberal por uma compreensão social –, de condições mínimas de traba-
lho, como a fixação de um salário-mínimo e a exigência de condições de higiene
no estabelecimento laboral, bem como a referência a direitos à saúde e à educação
como forma, exatamente, de continuar levando adiante esse projeto moderna-
mente referido ao direito de igual reconhecimento e realização de direitos funda-
mentais a todos na maior medida possível.
Portanto, para os dois esquemas intepretativos inicialmente oferecidos,
podemos também assumir a existência de leituras que sejam capazes de ser reco-
nhecidas como “corretas” ou “adequadas” aos casos. mas devemos chamar a aten-
ção para o fato de que a resposta adequada não é aquela que o juiz supõe a partir
de seus valores, ou aquilo que ele entenda ser o “justo” àquele caso, nem também
pode abrir-se para as finalidades que o juiz pretenda alcançar ou evitar desde uma
compreensão político-materializante. a decisão somente pode ser construída
mediante uma interpretação coerente dos princípios jurídicos. Toda e qualquer
liberdade individual, uma vez que sempre referida às normas jurídicas em princí-
pio aplicáveis, pode ser remetida ou referida a desdobramentos e re-leituras de
liberdade e igualdade...
afinal, todas as situações concretas, sobretudo os hard cases, mas não só, aca-
bam recorrendo, porque central, a uma discussão em torno do que seria, diante de
uma situação, o reconhecimento, na maior medida possível, de iguais liberdades
aos afetados pela decisão daquele caso. Podemos, então, concluir, pela legitimida-
de/validade do cheque pré-datado não porque supostamente houvesse uma lei, ou
um “costume”, a prevê-lo, mas porque nós temos que reconhecer aos envolvidos
na emissão desse cheque, e à luz desse projeto, iguais liberdades.
Se duas pessoas, no exercício de sua liberdade de negociação, no exercício de
suas respectivas autonomias privadas, estabelecem um acordo livre e espontâneo
a fixar determinado dia para que aquele cheque seja depositado, a essas mesmas
pessoas não estaríamos reconhecendo iguais direitos se determinássemos que o
credor pudesse virar as costas ao seu oponente e, imediatamente, ir a uma agência
bancária4 para realizar tal depósito. Porque nesse caso estaríamos tratando os
envolvidos de maneira desigual, reconhecendo a um dos sujeitos “liberdades” não
reconhecidas ao outro, pois estaríamos firmando que aquele poderia estabelecer
um acordo livre com outrem e, unilateralmente, também romper, quebrar, esse
acordo. estaríamos, se entendêssemos pela ilegitimidade que a prática do cheque
pré-datado representaria, reconhecendo não iguais liberdades, mas um privilégio
àquele que não somente “poderia” realizar um acordo como também decidir, uni-
lateralmente, pelo não respeito ao mesmo...
então o desafio aqui assume uma outra face de, portanto, não permitir que a
legislação seja interpretada contra o próprio direito. É não se ater a um, diríamos,
“sociologismo-interpretativo”, enfim, a um convencionalismo, tal como KeLSen e
4 o argumento segundo o qual o acordo entre duas pessoas não vincula uma terceira também se aplica a esse
caso que aqui propomos: a instituição Bancária realiza a compensação do cheque não porque seu depósito
antes da data acertada seja uma prática lícita, mas porque o pacto firmado pelos sujeitos não a afeta.
Luhmann, e grande parte da tradição, outrora incorreram. Se por um lado o con-
vencionalismo pode se fazer mais “confortável” ao intérprete por tornar sua ativi-
dade interpretativa mais “aliviada” – por sempre andar lado a lado com um prag-
matismo arbitrário –, por outro lado esse mesmo convencionalismo depende de
uma compreensão de que, na falta de “previsão jurídico-normativa” para um
determinado caso, seria aberta ao juiz a via da discricionariedade.
exatamente por isso devemos tomar extremo cuidado com as leituras influen-
ciadas por um neo-positivismo no que se refere, mas não só, à aplicação jurisdicio-
nal do direito. essas leituras se mostram mais “envolventes”, porque abrem cami-
nhos mais “fáceis” para se decidir um caso, ao mesmo tempo em que se mostram des-
compromissadas com o projeto do direito da modernidade, porque a ele são cegas.
o que pretendemos aqui demonstrar, uma vez mais, é que o fato de uma lei
não prever determinada situação em “todos” os seus contornos não significa que o
direito não tenha uma resposta àquela mesma situação. o fato de o direito não
prever a hipótese de realização de aborto quando a mulher fosse, por erro médico,
submetida a uma inseminação artificial tem, inclusive e obviamente, uma razão
histórica de ser: o procedimento artificial de inseminação, como hoje o conhece-
mos, sequer existia quando da proposta e aprovação do código Penal de 1940.
o reconhecimento da discricionariedade jurisdicional na Teoria Pura do
direito de KeLSen ou na Teoria dos Sistemas de Luhmann poderia ser equivocada-
mente confundido com uma pretensa abertura do direito a uma constante “atua-
lização” e “acompanhamento” dos desenvolvimentos, inclusive “tecnológicos”, de
uma Sociedade. mas, muito antes pelo contrário, a sedução que esse argumento
possa apresentar obscurece uma prática autoritária – porque aberta às razões polí-
ticas do julgador – de aplicação normativa.
isso implica afirmar que a compreensão do direito não como um sistema de
regras, mas como um sistema de princípios é que, por sua vez, permite interpre-
tar legitimamente o direito de maneira a “acompanhar” as sempre novas situações
tematizadas institucionalmente, ou não. isso porque essa compreensão, como aqui
proposta, assume, desde o início, a impossibilidade “das normas” jurídicas preten-
derem “clareza” interpretativa e previsibilidade de suas situações aplicativas, mas
por outro lado, é sempre possível que, em face de um caso não-familiar, em razão
de um hard case, nós re-interpretemos esse sistema de princípios na busca da solu-
ção adequada no igual reconhecimento de direitos no caso.
1 nesse sentido, cf.: caTToni, marcelo. notas programáticas para uma justificação pós-metafísica da Filosofia
do direito enquanto Filosofia do direito constitucional. direito constitucional. Belo horizonte: manda-
mentos, 2002.
tiam”, já nos é claro que, ao futuro, o reconhecimento de outras novas questões
está aberto. muitos desses direitos fundamentais podem simbólica, normativa e
textualmente serem referidos a um diploma normativo-constitucional – sobretu-
do em face das razões que permitem ao direito superar o déficit cognitivo do sis-
tema de saber que a moral representa. Por outro lado, não podemos ser ingênuos
e supor, uma vez mais, que o que diz a carta constitucional é “aquilo” reduzido
às folhas de papel... do contrário, cairíamos num fraco reducionismo convencio-
nalista outra vez, ainda que sofisticássemos essa proposta e acreditássemos que
“várias interpretações a esses textos” fossem possíveis.
Se por um lado a constituição, vez que diploma normativo, tem uma carga
simbólica por ser a referência da constituição do sentido de uma prática jurídica
de uma determinada comunidade política moderna, e que possa ser qualificada
como tal, por outro lado tal “carga simbólica” assim só se cumpre se compreende-
mos a constituição como prática comunicativa (hermenêutico-reflexiva) desen-
volvida por essa mesma comunidade e orientada ao projeto do direito da
modernidade. assumindo, assim, a constituição como uma prática, afirmamos
que seu mero simbolismo acaba se esvaindo porque se confunde com sua força
normativa inesgotável. inesgotável porque a todo e qualquer novo caso a assunção
do projeto constitucional moderno nos permite, destarte, concluir por qual leitu-
ra, das possíveis apresentadas, é a leitura correta.
assim, dizemos que somente o direito pode ser fonte do próprio direito. mas
em um sentido radicalmente diferente daquele outrora proposto por KeLSen. o
preço que uma tal afirmação tem à luz do convencionalismo do qual parte a pro-
posta teórica kelseniana, em seus momentos de maior exacerbação funcionalista,
nos impede assumir o sentido proposto pelo autor. Se somente o direito pode ser
fonte do próprio direito, isto assim o é por razões que, a partir, inclusive, das pro-
blematizações levadas adiante pela Teoria Pura, podem ser reconstruídas à luz do
projeto normativo do direito da modernidade no sentido de assumir sua com-
preensão como um sistema idealmente coerente de princípios.
Se assumirmos “fonte de normatividade” como a referência a elementos aos
quais podemos reconstruir o sentido e o juízo de legitimidade das normas, a única
conclusão que se faz possível é que somente existem fontes de normatividade no
direito. Parece ser essa a compreensão subjacente à afirmação de dWorKin quan-
do defende, no tocante ao direito,
2 dWorKin, ronald. o direito da liberdade: a leitura moral da constituição norte-americana, cit., p. 117.
problematizadas, revolvem pressupostos basilares da compreensão da praxis jurí-
dica moderna que, por fim, permitem-nos demonstrar que uma tal Teoria das
Lacunas acaba, dos problemas que parte, por devorar a si mesma... não há lacunas
no direito, como também não há um “espaço jurídico vazio” no sentido explicita-
do no primeiro capítulo. o direito como sistema de princípios cobra, inevitavel-
mente, um sentido de completude. mas um sentido de completude radicalmente
distinto das propostas convencionalistas e pragmatistas que se socorrerem ora na
“vontade do legislador”3 ora em recursos como “analogia legis” ou “iuris” para rea-
lizar a integração do direito.
Se é verdade que pontos do falso-problema que é a questão das lacunas é
devedora, em parte, de uma convencionalista compreensão do exercício da legis-
lação como supostamente capaz de esgotar o sentido de normatividade do direito,
por outro lado também pudemos perceber como a “abertura” das “fontes do
direito” como referindo-se a costumes e à jurisprudência em nada permitiu colo-
car a questão em melhor leito. e isso exatamente porque o subjacente a todas essas
interpretações é o apego a um convencionalismo maléfico, a fazer crer que,
mesmo no caso dos costumes, o que estaria em jogo seria um acordo tácito e com-
partilhado aproblematizadamente por todos os indivíduos de uma determinada
comunidade política. Quando assumimos o direito como um sistema em seu ideal
de coerência normativa – e como desenrolar do direito à maior medida de iguais
liberdades a todos – essas questões adquirem uma significação não mais sustentá-
vel como antes. no caso dos costumes, não é admissível fazer surgir da mera fati-
cidade normas jurídicas. Se engiSch ou mesmo KanToroWicz vislumbraram o
direito comercial como eminentemente “costumeiro”, assim procederam desde
uma óptica sociológica, porém não normativa, muito menos em uma empreita
reconstrutiva, do sentido subjacente a esses “costumes”. o fato de os costumes não
criarem normas jamais pode significar que a interpretação dos ideais de liberdade
e igualdade não possa ser levada adiante por todos os concidadãos como uma
maneira de atualização do sentido normativo do direito. o que isso significa é que
a fonte de normatividade continua a ser os princípios de liberdade e de igualdade,
porém interpretados intuitivamente, e interpretáveis, pelos próprios concidadãos
em questões de seu cotidiano. a força normativa de uma tal prática social não se
refere a elementos fáticos repetidos uniformemente, muito menos em uma supos-
ta convicção compartilhada de maneira generalizada sobre a necessidade de juri-
dicamente se cumprir um determinado costume. antes, a força normativa é capaz
3 em uma crítica a essas questões, e na reconsideração de uma completude do direito, cf.: dWorKin, ronald.
La complétude du droit. in: amSeLeK, Paul; grzegorczyK, christophe. controverses autour de l’ontologie
du droit. Paris: Presses universitaires de France, 1989, p. 131 et seq.
de ser perfeitamente reconduzida aos princípios jurídicos capazes de também
serem reinterpretados pelos concidadãos em uma comunidade que realmente
mereça o nome de uma comunidade aberta de intérpretes da constituição. as pre-
tensões normativas referentes a essas práticas consuetudinárias não podem ser
reduzidas à mera faticidade de sua verificação. do contrário, seria reduzir aceita-
bilidade à simples aceitação, e isto já vimos antes.
Por outro lado, também não podemos assumir a jurisprudência como “fonte”,
não ao menos da maneira que a tradição coloca a questão, porque essa assertiva é
necessariamente dependente do reconhecimento de uma discricionariedade juris-
dicional – tão cara à Teoria das Lacunas porque também o é a uma Teoria das
Fontes no direito. evidentemente, como explicitado no capítulo 3, a jurisdição
desempenha o importante papel de garantir o reconhecimento de direitos e a
imputação de deveres desde uma óptica argumentativa referida exclusivamente a
argumentos jurídicos. Podemos entender o desafio da jurisdição em face daquilo
que podemos sintetizar como fonte de normatividade, o que seja, o direito, lin-
güisticamente mediado e institucionalmente perseguido, à maior medida possível
de iguais liberdades subjetivas a todos: o desafio da jurisdição é, no desdobramen-
to do sistema de direitos, a partir da tomada em consideração das especificidades
do caso e de um juízo de coerência normativa, reconhecer direitos e deveres como
“já embutidos”, como uma decorrência interpretativa do próprio direito que seria
chamado a somente atualizar-se em face da especificidade daquele caso. Por isso,
e ainda com dWorKin, não se faz relevante à prática do direito, muito menos à
sua Teoria, uma pretendida distinção entre “direitos enumerados” e “direitos não-
enumerados”.4 o que explica a legitimidade da decisão jurisdicional, então, não é
a faticidade de uma decisão de uma autoridade para um tal ato competente, mas o
fato de a jurisdição ser o locus institucionalizado de garantia do reconhecimento
de direitos e imputação de deveres na atualização da tarefa cobrada ao, e pelo,
direito de reconhecer, na maior medida possível, iguais liberdades a todos. e isto,
obviamente, se faz dependente da garantia de direitos de participação dos afeta-
dos pela decisão jurisdicional no processo de aplicação do direito.
4 dWorKin, ronald. o direito da liberdade: a leitura moral da constituição norte-americana, cit., p. 122. nos
torna claro o efeito nefasto que uma tal distinção entre “direitos enumerados” e “direitos não-enumerados”
é capaz de produzir no exercício de uma jurisdição que se pretenda democrática. ao introduzir outro falso-
problema, essa distinção cria complicações no sentido de supostamente fazer crer que os “direitos enume-
rados” constitucionalmente seriam dotados de um status argumentativo diferente daqueles “não-enumera-
dos”. a herança convencionalista dessa concepção obscurece o fato de que a legitimidade das decisões juris-
dicionais está em se assumir o direito como um sistema de princípios com todas as co-implicações aqui
explicitadas. e para um tal desenvolvimento da prática constitucional e jurisdicional nenhuma relevância
pode cobrar a referência semântica à enumeração, ou não, de um tal direito no corpo do texto normativo,
ainda que da constituição.
Também a legislação não pode ser, ao menos de maneira aproblematizada,
assumida como “fonte”. isso porque a própria legislação é submetida a juízos de
legitimidade que não dependem exclusivamente de sua forma, como outrora se
pensou e nos lembra carrÉ de maLBerg. Já oferecemos, no capítulo 3 o que o pro-
jeto normativo do direito da modernidade exige da prática legislativa. aqui, cabe-
nos somente ressaltar, uma vez mais, que a própria normatividade da legislação é
direta e internamente ligada a questões principiológicas que, ao final, recondu-
zem-se a reinterpretações de liberdade e igualdade de maneira a satisfazer a
cobrança de se reconhecer liberdades a todos no maior grau possível.
o que com isso relembramos é que a idéia das fontes no direito moderno não
é algo passível de deliberação. a fonte de normatividade somente é fonte de legi-
timidade no sentido de que não se pode decidir acerca dela, embora possamos
tomar decisões – jurisdicionais e legislativas – a partir dela. o projeto do direito
moderno, uma vez que sua fonte de normatividade, impõe e justifica uma forma
jurídica moderna e as conseqüentes garantias normativas que uma deliberação legí-
tima exigem, democraticamente operacionalizada por meio do reconhecimento de
direitos políticos, no que tange à legislação, e mediante o reconhecimento de direi-
tos de participação em discursos de aplicação normativa, no que tange à jurisdição.
destarte, o sentido de auto-purificação do direito, ou de sua abertura ou
inesgotabilidade normativa, há que ser assumido como normativamente determi-
nado pela idéia de fonte de normatividade. Significa dizer que somente uma com-
preensão do direito como um sistema de princípios em seu ideal de coerência nor-
mativa e orientado à realização do direito à maior medida possível de iguais liber-
dades a todos, permite-nos compreender o sentido de se afirmar um direito além
do direito.
Segundo dWorKin, o direito tem a possibilidade de ir se aprimorando, gera-
ção a geração, a partir dos deslizes e equívocos do passado, orientando-se, para
tanto, em uma idéia de auto-purificação. Porém, sob a óptica das decisões jurisdi-
cionais, isso não poderia implicar a crença em um direito “mais puro” do que
aquele que o juiz, em seu esforço interpretativo, deva se esmerar em sua aplica-
ção. assim, se a questão deve ser enxergar o direito atual “como um todo coeren-
te e estruturado”, isso significa, então, tornar o direito atual mais coerente do que
ele já se apresenta. e esse sistema mais coerente – numa auto-referenciação – há
que ser assumido como o próprio direito atual.5 isto porque interpreta dWorKin
o conceito de direito como referido àquilo defensável perante os tribunais –
espantando qualquer confusão com teses jusnaturalistas –, e esse aspecto tornaria
“o conteúdo do direito sensível a diversos tipos de limitações institucionais”.6
“não quero dizer com isso que, em tais casos, hÉrcuLeS sempre aceitaria a incoerên-
cia substantiva para manter a fidelidade aos princípios mais processuais, mas apenas
que o caráter complexo da prestação jurisdicional torna inevitável que ele, às vezes,
assim o faça.”8
e isso assim se faz presente nas conclusões de dWorKin porque neste ponto
não logra articular bem a tensão entre ideal e real, fazendo crer que a idealidade
– representada pela suposta “coerência substantiva” – poderia ser algo alheio à rea-
lidade – princípios “mais processuais” e supostamente limitadores da busca de uma
tal “coerência substantiva”.
mais adiante o autor vai apresentar uma distinção entre “integridade inclusi-
va” e “integridade pura”, o que vem a confirmar essa não-adequada reconstrução
da tensão entre ideal e real. enquanto o direito contemporâneo, aquele “direito do
“en la medida que las leyes han menester de una concretización por la que quedan
desarrolladas, y ello en un grado tal que la Justicia pese a todas las cautelas ha de tomar
decisiones en esa zona gris entre la producción legislativa y la aplicación del derecho,
los discursos jurídicos de aplicación han de complementarse de forma clara y recono-
cible con elementos tomados de los discursos de fundamentación.”12 (itálicos nossos)
aqui está uma questão que venho problematizando a algum tempo: qual o
sentido de se afirmar que uma tal decisão jurisdicional se daria em uma “zona cin-
zenta” entre o que seria “produção legislativa” e “aplicação do direito”? a meu
ver, nenhum. e isso afirmo a partir do momento em que assumimos o direito
como um sistema de princípios em seu ideal de coerência normativa.
como já explicitado no capítulo 3, e em outro lugar,13 as lutas argumentati-
vas pelo reconhecimento de direitos em sede de discussões jurisdicionais, isto é,
12 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 525.
13 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 70.
do reconhecimento de diferenças em face das igualdades já reconhecidas, têm
uma dimensão que não pode ser negada, qual seja, o fato de poderem ser vislum-
bradas como lutas políticas em defesa de interesses vulnerados. acontece que do
ponto de vista de uma aplicação normativa, o papel dos cidadãos, articulados em
associações civis ou organizações não-governamentais, ou ainda individualmente,
deve ser vislumbrado como referido ao reconhecimento institucional de preten-
sões normativas todavia carentes de garantia em algumas situações determinadas.
e o papel desses cidadãos é, pois, de exatamente se valerem de argumentos capa-
zes de demonstrar diferenças e igualdades que sejam suficientemente fortes para
garantir o reconhecimento de uma tal diferença. a luta política desses cidadãos –
sem dúvida alguma, extremamente frutífera para a construção de critérios de
igualdade e diferença de casos e questões que se colocam ao direito – não signi-
fica a abertura jurisdicional a argumentos éticos, morais ou pragmatistas; a preten-
são normativa subjacente a essa luta política é que deve ser analisada juridicamen-
te pelo órgão jurisdicional competente.
não se trata, portanto, de uma “zona cinzenta” entre produção legislativa e
aplicação do direito. antes, trata-se de uma claríssima zona de esforço interpre-
tativo-constitucional capaz, é verdade, de trazer à tona argumentos também
empregados pelos cidadãos em sua luta em face do sistema da Política, mas que
aqui somente podem ser encarados normativamente. Por mais que uma decisão
jurisdicional se refira a “elementos tomados de discursos de justificação normati-
va”, isto não significa que a atividade da jurisdição se dê em campo distinto se o
caso em debate fosse outro. mesmo porque esses elementos tomados de discursos
de justificação normativa devem ser vislumbrados como trazendo consigo preten-
sões normativas que, estas sim, e aqui está o cerne da questão, serão normativa-
mente enfrentadas pelo órgão jurisdicional. e isso mesmo em face de casos em que
faltariam normas legislativas e que serviriam à regulamentação de uma determi-
nada matéria que, “por sua própria natureza”, e na expressão de haBermaS, exigi-
ria leis: qual, afinal, o sentido normativo de se assumir o direito como um siste-
ma idealmente coerente de princípios, bem como, em face da nossa constituição,
o sentido normativo adequado ao constitucionalismo da figura do mandado de
injunção,14 senão permitir que decisões jurisdicionais sejam legitimamente toma-
das mesmo em casos em que ausentes estejam essas normas gerais e regulamenta-
doras de uma determinada matéria? em definitivo, e uma vez mais, não se trata
também aqui de qualquer zona cinzenta, mas sim de um exercício da jurisdição
14 caTToni de oliveira, marcelo andrade. Tutela jurisdicional e estado democrático de direito: por uma com-
preensão constitucionalmente adequada do mandado de injunção, cit.
que seja adequado ao sentido de fonte de normatividade referente ao próprio
direito.
e, referindo-se àqueles “elementos tomados dos discursos de justificação”,
complementa haBermaS no sentido de que
15 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 526.
dizer que o próprio direito, relendo a si mesmo, pode vislumbrar determinadas
decisões – legislativas e administrativas e aqui, em específico, jurisdicionais –
como equívocos porque incoerentes com esse projeto do direito. esse novo capí-
tulo que se fará “escrito” pode superar a falta de coerência no tratamento de deter-
minadas questões jurídicas porque capaz de ser adequadamente focado ao que está
a exigir o constitucionalismo moderno.
PóS-eScriTo à Segunda edição
i.
desde já devo adiantar que enfrentarei essas críticas sem, contudo, acreditar
que quaisquer delas faça algum sentido para além de uma defesa fundamentalista –
porque pretensamente privilegiada – e não-fundamentada, ou mesmo não-reflexi-
va, do que outrora haBermaS escrevera em Faktizität und geltung, e mais além.
Para tanto, me valerei de mais de duzentos anos não só de traços da história
constitucional, mas também do desenvolvimento do direito Penal da moder-
nidade. e, assim, pretendo mostrar como a Filosofia do direito, “enquanto
Filosofia do direito constitucional”, pode aprender com uma “Filosofia do direito
Penal”. nesse sentido, buscaremos enfocar, sobretudo, a ebulição social e intelec-
tual do século Xviii, como maneira de melhor expor nossos argumentos.
ii.
havia alguns delitos religiosos, havia algumas penas espirituais para aqueles que os
cometessem, porém também havia outras de caráter temporal; e havia um Tribunal
especializado no qual os teólogos e canonistas julgavam, condenavam ou absolviam,
ainda quando o “braço secular” executasse materialmente as penas temporais.1
TomÁS esclarece que autores clássicos desse período espanhol, como aLFonSo
de caSTro, difundiam a doutrina – que, aliás, era assumida como geral – de que
havia uma obrigatoriedade de consciência da lei penal justa. os teólogos, assim,
sabiam como servir ao poder real, e este igualmente soube tirar todo o proveito
dessa doutrina que, sob a opinião de outros pensadores, como Pedro de aragón,
fora extremada no sentido de, inclusive, defender que a toda lei penal justa esta-
ria imbuído o dever de sua consciência, inclusive no que tange às leis “meramen-
te penais” (leges mere poenales) – ainda que por “via indireta”.2 aliás, essa distin-
ção entre leis “propriamente penais” e “meramente penais” sobrevive até os dias
1 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii. 2. ed.
madrid: Tecnos, 1992, p. 86.
2 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 87.
de hoje, obviamente que com outros fundamentos, no direito Penal do common
Law, em que a sempre nebulosa diferença entre mala in se e mala prohibita é
constantemente chamada para se imputar, ou não, elementos da mens rea.3
e essa obrigatoriedade da consciência dessas leis penais justas encontrava-se
no fato de que, para o teologismo que sustentou essa prática social, a razão huma-
na seria uma participação do entendimento divino, fazendo com que se concluís-
se no sentido de que todo conhecimento válido assentava-se no conhecimento de
deus, no terreno – e sob domínio, portanto – da teologia, o que se projetou per-
feita e intensamente no direito a partir da tripartição clássica da escolástica entre
“lei eterna”, “lei natural” e “lei positiva”.4 e a relevância de todas essas questões
centra-se, especialmente, no fato de que durante os séculos Xvi, Xvii e parcialmen-
te no século Xviii o conceito e a prática na imputação de delitos estavam por
demais imbuídos da ideia de pecado; além de igualmente os juristas da época não
terem feito qualquer frente – porque eram indiferentes – à doutrina dos teólogos
moralistas.5 a temática em torno de uma “Filosofia do direito Penal” nesse perío-
do da história europeia, e aqui em especial do contexto espanhol, ou seja, a discus-
são sobre a legitimidade, limites e fundamentos de um direito Penal das
monarquias absolutas, não era um assunto enfrentado ou problematizado com
maior profundidade pelos juristas. muito antes, estes deixavam a cargo dos teólo-
gos e filósofos embebidos no conhecimento escolástico o enfrentamento dessas
questões, como as que dizem respeito à obrigatoriedade de consciência da lei
penal, bem como uma “teoria geral da lei penal ou da pena, porém sem incidir
(salvo referências isoladas) na análise do direito positivo”.6
e esta questão levantada por TomÁS é relevante na medida em que, frequen-
temente, atribui-se a aLFonSo de caSTro o título de “fundador do direito Penal
moderno”, ou da ciência do direito Penal, em “desonra” a ceSare Beccaria, con-
siderado por alguns autores espanhóis como um “mito” que precisava ser desmis-
tificado – pretensamente em favor de aLFonSo de caSTro. a questão é que TomÁS
3 Para uma ponte entre institutos penais do common Law e de nossa tradição penal de fundo germânico, e
embora não problematizando a distinção entre mala in se e mala prohibita, cf.: Piña rocheForT, Juan ignacio.
La estrutura de la teoría del delito en el ámbito jurídico del “common Law”. granada: colmares, 2002.
4 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 86.
5 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., pp.
89-90.
6 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p.
90. e referindo-se a aLFonSo de caSTro, que inclusive foi conselheiro pessoal de carLoS i e FeLiPe ii, escla-
rece que o objetivo das suas obras que enfrentavam temáticas penais era, eminentemente, “persuadir bien
a los Príncipes cristianos de que debían emplear sin contemplación alguna contra los herejes pertinaces y
obstinados, todas las penas consignadas en las leyes, a fin de poner coto a la propaganda de sus errores y
obligarles a abjurar de ellos. Se trata de un libro escrito en plena vigencia de la inquisición en su defensa y
de la política religiosa de la monarquía; pero sin preocupación científico-penal.”
vislumbra nesta disputa algo extremamente infrutífero, seja porque aLFonSo de
caSTro jamais se preocupou com um estudo normativo-sistematizado do direito
Penal positivo, seja porque, igualmente, Beccaria
não criou a ciência do direito Penal, entre outras razões, porque a isto não se pro-
pôs e porque tal ciência, ao seu modo, vinha sendo trabalhosa, lenta e cuidadosa-
mente elaborada desde alguns séculos (desde o Xiv, nada menos).7
aquela submissão da razão humana à divina, como participação desta, fica esqueci-
da: agora se utilizará a razão humana de modo “natural”, deixando às margens as con-
siderações da relação existente com a divina. a razão é glória do homem, o que cons-
titui sua verdadeira natureza, seu máximo poder.9
7 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 91.
8 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 92.
9 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 94.
10 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 94.
11 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 94.
monTeSQuieu, com seu de l´esprit des lois de 1748, e com sua particular forma
de escrita inclinada “à suavidade e à doçura”, plantou reflexões sobre algumas das
questões sobre o direito Penal que contextualmente lhe incomodavam, oferecendo
tanto críticas ao então direito Penal vigente, como também oferecendo bases para
uma profunda reforma e implementação de um outro direito Penal, agora preten-
samente melhor, e tudo isso expondo “máximas” e “regras gerais”,12 de maneira
clara, inteligível e facilmente aceitável por qualquer filósofo racionalista.13
e essa conquista monTeSQuieu empreendeu partindo da justificativa articula-
da em termos de liberdade e de sua proteção. a liberdade, para tanto, foi tomada
em consideração como um dos direitos básicos do cidadão e, nas palavras de
TomÁS y vaLienTe, consistia
realmente na segurança que cada indivíduo tenha [tivesse] de não ser vítima do des-
potismo, nem das falsas acusações públicas ou privadas que contra ele podem [pudes-
sem] dirigir seus concidadãos.14
12 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p.
95. e conclui: “en cierto modo podría decirse simplificando que su famoso libro es un conjunto no entera-
mente riguroso ni sistemático, pero clarividente y coherente de sabias y ‘progressitas’ generalidades.”
13 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p.
96. “y sin provocar las encendidas contradicciones que el libro de Beccaria o los dispersos escritos penales
de voLTaire, sus ideas penales fueron quizá las más eficaces en la tarea de promover una profunda reforma
de las leyes penales.”
14 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 97.
15 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 98.
único autor a quem faz duas referências16 expressas é o próprio monTeSQuieu –
não obstante isso, seu trabalho teve um impacto em toda a europa, seja no pensa-
mento teórico-político, seja na prática jurídico-constitucional.
Segundo TomÁS y vaLienTe, dois fatos ocorridos em 1762 favoreceram, enor-
memente, a acolhida do texto de Beccaria, que data de 1764. Segundo o autor, o
primeiro desses fatos foi o surgimento do du contrat Social, de rouSSeau – que
fora decisivo para a sofisticação dos argumentos de Beccaria em torno do funda-
mento das penas –, e o outro se trata do julgamento, condenação e execução de
um pai que fora, equivocadamente, responsabilizado pela morte de seu filho na
França. o personagem, a partir deste episódio, que chamou para si a responsabili-
dade de instigar a opinião pública contra as atrozes, e não raras vezes equivocadas,
práticas penais e processuais-penais de seu tempo foi voLTaire, cuja discussão
provocada alcançou não só a anulação da sentença como proporcionou uma
atmosfera propícia, tanto para a recepção das ideias de Beccaria, quanto para a
realização das reformas necessárias.17 e em uma específica passagem de sua obra
TomÁS traz à tona algo que aqui nos soa de extrema importância para compreen-
der o projeto pretendido pelos iluministas:
16 São estas as duas referências: “o imortal Presidente monTeSQuieu discorreu rapidamente sobre essa maté-
ria”; “Toda pena que não derive da necessidade absoluta, diz o grande monTeSQuieu, é tirânica (...)”
(Beccaria, cesare. dos delitos e das penas. Trad. Lucia guidicini e alessandro Berti contessa. São Paulo:
martins Fontes, 1998, pp. 41-42).
17 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., pp.
99-100.
18 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 105.
19 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 104.
Beccaria assimilou toda essa efervescência quando escreveu o texto que o
imortalizou. ao propor uma profunda transformação das práticas penais de sua
época, acreditava ser indispensável desvinculá-las de suas ligações históricas, razão
pela qual não apresenta qualquer admiração, seja pelo direito romano, seja pelo
direito canônico. e as bases para essa transformação estariam simultaneamente vin-
culadas a uma maior fiscalização dos magistrados,20 ao fim dos privilégios da nobre-
za,21 e uma revolução através da educação,22 da ciência e da clareza das leis; e tudo
isso porque, na concepção de Beccaria, estas seriam, inclusive, razões capazes de
eficazmente prevenir a prática de delitos em uma sociedade23 – em contraposição à
crença de que um endurecimento das penas e do processo é que alcançaria esse fim.
o tema em torno da “segurança” dos cidadãos é algo central para se com-
preender a proposta do autor. na medida em que a origem das penas se deu após o
contrato social – cuja causa era o constante estado de guerra em que viviam os
homens –, pelo fato de os homens terem celebrado um contrato em que sacrifica-
vam, cediam, parte de sua liberdade natural para a consecução do bem comum, a
justificação para a existência da sanção penal se repousava como exigência para a
preservação da própria sociedade e contra aqueles que ansiassem retirar do “depó-
sito comum” sua parte cedida de liberdade; porque, neste caso, não somente “reti-
raria” a sua liberdade, como também apoderar-se-ia das liberdades dos demais. essa
é a razão pela qual o jus puniendi é agora justificado não mais na defesa, ou a par-
tir, de princípios teológicos, mas porque se trata de uma exigência racional, qual
seja, da necessidade de proteger esse depósito comum das liberdades individuais
cedidas; e aqui, resgatando monTeSQuieu, é que afirma que as penas somente se jus-
tificariam nessa necessidade, pois, do contrário, seriam tirânicas.24
de tudo isso, e no contexto de resguardo das liberdades dos indivíduos, resul-
ta que só as leis poderiam decretar as penas dos delitos, pois seria a figura metafó-
rica do legislador que representaria toda a sociedade unida por um pacto; assim, o
magistrado não estaria autorizado a ser inventivo no que tange à matéria penal
porque não representa a sociedade, mas é igualmente parte dela.
na rússia já em 1767 caTharina ii, nas suas notáveis “instruções à comissão incum-
bida de elaborar o projeto de um novo código”, tentou introduzir na linguagem do
legislador l´esprit des lois de monTeSQuieu; o espírito de Beccaria resumbrava no
cod. penal da Toscana de 1786 decretado por LeoPoLdo ii; na Áustria, SonnenFeLS
triunfou depois de longas lutas; na Prússia, Frederico ii encetou o caminho das refor-
mas, desde que assumiu o governo.27
28 cf.: roXin, claus. derecho Penal: parte general. Trad diego manuel Luzón Peña et al. madrid: civitas,
1997, t. i, p. 142.
29 mezger, edmund. Tratado de derecho Penal. Trad, José arturuo rodriguez muñoz. madrid: revista de
derecho Privado, 1955, t. i, p. 34.
30 roXin, claus. derecho penal: parte general, cit., p. 142.
31 LiSzT, Franz von. Tratado de direito Penal allemão, cit., p. 59.
32 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 110.
1805, já no século XiX, carLoS iv promulgou a novíssima recompilação em maté-
ria penal, que não continha, essencialmente, nada mais que as “mesmas leis penais
vigentes de maneira acumulada durante os séculos anteriores”.33 Todavia, os reda-
tores do código Penal espanhol de 1822 tomaram em consideração as ideias
penais de monTeSQuieu e Beccaria, dentre outros como, BehTham e FiLangieri,
sendo que, com exceção deste, aqueles foram os pensadores mais citados nas dis-
cussões dos membros da comissão de redação do novo código.34
reinharT maurach pontua que, a partir desse novo ciclo filosófico e legisla-
tivo na cena europeia, a não mais fundamentação teológica do direito Penal, em
razão de sua secularização devedora à filosofia iluminista, partira, obviamente, de
uma compreensão de que se tratava de um complexo normativo sustentado pelo
estado e pela Sociedade, sendo que o debate em torno da questão penal, a partir
de então, se intensifica no que diz respeito à sua finalidade e à sua justificação.35
além da própria legalidade defendida – como combate à compreensão das penas
arbitrárias e rumo a uma limitação do poder dos estados absolutistas –, deve-se
igualmente reconhecer aos teóricos do século Xviii que
...as pretensões baseadas no contrato social, dirigidas contra o poder estatal, recla-
mam, em todo caso, a proporcionalidade entre culpabilidade e a pena, a fim de que
o delinquente não sofra uma intromissão de uma quantidade maior de direitos que
aqueles que usurpou ao violar o contrato social, o que constitui uma atenuação bási-
ca do sistema de penas existente até então e o começo do movimento abolicionista.
(...) na medida em que o iluminismo reclama uma proporção fato-culpabilidade,
pode-se dizer que estes esforços estão determinados pela humanidade, pela adequa-
ção; dito sucintamente, por considerações racionais: se a proporção não foi adequa-
da ao fim, ela não seria adequada ao direito Penal.36
33 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 111.
34 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 103.
35 maurach, reinhart. derecho Penal: parte general. Teoría general del derecho penal y estrutuctura del
hecho punible. Trad. de la 7ª edición alemana por Jorge Bofill genzch y enrique aimone gibson. Buenos
aires: astrea, 1994, p. 65.
36 maurach, reinhart. derecho Penal: parte general. Teoría general del derecho penal y estrutuctura del
hecho punible, cit., p. 92. esclarecendo ainda que: “La proporción es racional, pero no necesariamente
requerida: proporción no es aún retribuición justa. en estos puntos de vista encuentra eco con una fuerza
elemental el razonamiento de KanT. También él reclama proporción, y no sólo proporción, sino literalmen-
te retribuición, talión.”
nitivo, de maneira profundamente revolucionária, nos escritos dos pensadores do
século Xviii.
devemos chamar a atenção ao fato de que a discussão em torno da justifica-
ção do direito Penal, desde a infância da modernidade, esteve marcada, e de
maneira muito forte, por três ideias: as noções de indivíduo, legalidade e coerção
– sempre tomadas em consideração numa constante articulação em torno da
garantia das liberdades naturais.
iii.
assim, ainda quando a filosofia moderna se concebe como a mais aguçada contradi-
ção possível à sua pré-história, no que se considera ser a “superação”, essa mesma
filosofia é devedora ao quadro de referências ao qual ela própria renuncia.38
37 BLumenBerg, hans. The Legitimacy of the modern age. Trad. robert m. Wallace. cambridge: The miT
Press, 1991, p. 65.
38 BLumenBerg, hans. The Legitimacy of the modern age, cit., p. 69.
39 BLumenBerg, hans. The Legitimacy of the modern age, cit., pp. 74-75.
40 BLumenBerg, hans. The Legitimacy of the modern age, cit., p. 69.
Quando BLumenBerg se refere “à estrutura espiritual dessa época”, o está fa-
zendo no que diz respeito à época moderna. isto porque, segundo o autor, podem-
se verificar, amplamente, estruturas análogas nos processos históricos que envol-
vem tanto a recepção da antiguidade pelo cristianismo quanto a assunção das fun-
ções explanatórias do sistema teológico-cristão pela filosofia moderna.41
Tomando em consideração essas palavras de BLumenBerg, devemos com-
preender que, inclusive pelo que foi antes retratado, não se pode reduzir o proces-
so de modernização da Sociedade tão-somente à consideração de sua seculariza-
ção. Junto a isto, deve-se considerar, e sobretudo da maneira como o faz haBer-
maS, processos co-implicados, como os de diferenciação funcional dos sistemas, da
assunção de que esse “novo mundo” é mediado linguisticamente, além da tomada
em conta da especialização dos juízos de racionalidade.
aqui, voltemos à secularização. no que diz respeito a uma “Filosofia do
direito Penal”, percebemos que a justificação do direito Penal, antes explicada a
partir de bases teologicamente articuladas de princípios cristãos, fora esvaziado
nesse processo de modernização da sociedade, sendo posteriormente preenchido,
no contexto de uma separação entre as noções de pecado e crime, que veio somen-
te se fortalecer com as obras dos ilustrados que, no afã de projetar um novo
mundo, sem muitas explicações e reconstruções historiográficas, enxergaram no
esquema racionalizado do contrato social um ato fundacional de toda uma nova
era; como se essa nova era não fosse mais devedora ao seu passado que, enquanto
tal, deveria ser esquecido, quando não repugnado. em Beccaria, por exemplo,
essa questão é transparente. ao que não se atenta muitas vezes é que a própria tese
iluminista do contratualismo deita suas raízes mais profundas em noções devedo-
ras ao direito romano e ao direito canônico, reinterpretados, por sua vez, pela
teologia e pela jurisprudência medievais.
a partir do último quarto do século passado, todavia, os estudos de Teoria
Política perceberam que era necessário explorar mais detidamente essa “fundação
da modernidade”, resgatando, para tanto, elementos historiográficos a serem con-
juntamente interpretados com matrizes teóricas de modo a explicar melhor esse
processo.
QuenTin SKinner, por exemplo, e no contexto de discussão dos séculos Xv e
Xvi, vai esclarecer como o direito romano – por muitos iluministas apontado
como algo a ser esquecido –, paradoxalmente serviu para justificar o poder de reis
absolutistas, quando se interpretava que “todo príncipe deve ser considerado legi-
bus solutus, ‘livre da ação das leis’”,42 e também serviu como uma das “principais
o que, por sua vez, afirma occam, é justificado pelo fato de que a “lei da natureza,
como determina o primeiro livro do digesto, torna legítimo repelir a força com a
força” (vim vi repellere licet).”45
“é um erro afirmar que os reis estão livres de toda obrigação para com os súditos”,
pois “lhes devem justiça e proteção, pela lei divina e pelas leis da natureza”.
Prossegue então alertando que, “se falharem nisso, se agirem injustamente para com
os súditos e persistirem em seu comportamento perverso, então será hora de aplicar
a lei da natureza, que estabelece que podemos repelir a força pela força” (vim vi
repellere).47
possível que uma lei proposta por um príncipe “seja ab-rogada em nome da justiça”
pelo povo soberano, se mais tarde este constatar que ela não “conduz à estabilidade
e ao bem comum.”52
nesta constituição, o rei não estava limitado só no que tange às leis dinásticas e de
alienação dos bens da coroa. o limite mais relevante era outro, e era o que obrigava
o rei a tratar da utilitas publicae, o bem comum e geral do reino, na presença do con-
selho público, dos estados gerais do reino. esse conselho não estava formado só pelos
Porém, em toda esta matéria de direitos, em uma análise ligada ao capítulo dos limi-
tes e das garantias, a partir de agora se deverá tomar em consideração a extraordiná-
ria novidade do poder soberano nascido da crise definitiva da constituição medieval
mista, e por isso mesmo pouco disposto a aceitar controles e contrapesos por parte de
outros poderes e, por outro lado, titular de maneira exclusiva de um poder de fazer
a lei à qual será bastante difícil opor limites apreciáveis.63
lei certa através da qual fosse possível estabilizar a vida e as posses desses mesmos
indivíduos e, então, criar as condições para que pudessem começar a tomar forma os
direitos individuais.64 (itálicos nossos)
Sobre isso, sobre a existência dos direitos dos indivíduos, monTeSQuieu, mais
tarde, afirmara que somente em um regime político moderado seria possível o seu
desenvolvimento, e para tanto, seria indispensável uma lei positivamente delibe-
rada para que esses mesmos indivíduos viessem, no contexto da associação políti-
ca, a gozar desses direitos.65
Já, agora, no contexto revolucionário, a assunção de uma interpretação indi-
vidualista e contratualista no seio da cultura das liberdades da revolução Francesa
trouxe um fator que FioravanTi chama de legicentrista, pois
para os revolucionários franceses, e para a mesma declaração dos direitos, a lei é algo
mais – e distinto – que um instrumento técnico para garantir melhor os direitos e
liberdades que já são possuídos. a lei é, na verdade, um valor em si e não um mero
instrumento, porque só graças à sua autoridade se fazem possíveis os direitos e as
liberdades de todos: com sua ausência, faltando um legislador firme e autorizado, se
cairia no detestado passado da sociedade de privilégios do antigo regime.66
com isso, e a partir dessa nova interpretação, à imagem de que existiam direi-
tos pré-estatais, que imporiam deveres exclusivos ao estado de tutela e de conser-
vação, se soma e se sobrepõe a imagem
dos direitos de todos que existem só no momento em que a própria lei os torna pos-
síveis em concreto, afirmando-os como direitos dos indivíduos enquanto tais, contra
as velhas lógicas estamentais. as duas imagens convivem na revolução Francesa e,
juntas, expressam o grande mito do legislador que encarna a vontade geral, que fala
na nova língua da generalidade e da abstração. à sua autoridade máxima correspon-
67 FioravanTi, maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones, cit., p. 62.
interessante é também a análise que o autor faz no que diz respeito às liberdades políticas. no caso “das
liberdades políticas, as ‘positivas’, a revolução parte – paralelamente – da afirmação da supremacia e da
prioridade do corpo soberano constituinte, denominado povo ou nação porém acaba por temer essa mani-
festação direta de soberania sem medida e por construir, então, em oposição ao radicalismo e ao voluntaris-
mo jacobino, uma doutrina da representação política que engloba o poder constituinte dos cidadãos no
poder constituído dos representantes eleitos, fundando a soberania dos segundos antes que a dos primeiros”
(FioravanTi, maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones, cit., p. 71).
68 FioravanTi, maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones, cit., p. 64.
69 Para uma inovadora reconstrução da história, e conquistas, do constitucionalismo na grã-Bretanha e nos
estados unidos da américa, sob o viés da Teoria dos Sistemas de niKLaS Luhmann, faz-se essencial: PaiXão,
assumido como hábil de se projetar, em um sentido prescritivo, sobre o futuro,
bem como ainda o “legislador” fora assumido na França como forte e com autori-
dade no que diz respeito à instituição de direitos e liberdades.70
não obstante a carga individualista, não se pode menosprezar a relevância
histórica que o elemento estatalista da revolução ocupou no seio das comunida-
des políticas pós-revolucionárias da europa continental. e tudo isso porque essas
comunidades passaram a estar obrigadas a desenvolver-se no campo de algumas
coordenadas rígidas que a revolução criara.
em concreto, nossa cultura dos direitos e liberdades estará obrigada a mover-se (...)
dentro de um contexto político-constitucional que já não poderá prescindir total-
mente do modelo estatalista, o que, melhor dizendo, quase o empurrará a ser domi-
nante. isto se realiza frente às imagens revolucionárias – individualistas e contratua-
listas – do caráter pré-estatal dos direitos individuais e do poder constituinte dos
cidadãos, porém em continuidade com a revolução mesma, enquanto olha a funda-
ção de um poder público forte, entendido como condição necessária para a existên-
cia dos mesmos direitos individuais e da unidade política da nação ou povo, em sin-
tonia com as doutrinas revolucionárias do legicentrismo e da representação político-
estatal que já anteriormente vimos.71
não sem motivos que John greviLLe agard PococK vai afirmar que a histó-
ria clássica do que passamos a chamar de liberalismo é, pois,
o direito positivo, com o qual, por assim dizer, nos deparamos na modernidade
como resultado de um processo de aprendizagem social, oferece-se em virtude de
suas propriedades formais, como meio adequado para a estabilização de expectativas
de comportamento; e parece que as sociedades complexas não contam com nenhum
equivalente funcional com o poder de substituí-lo. a filosofia se mete em uma tare-
fa desnecessária quando trata de demonstrar que não só resulta óbvio por razões fun-
cionais, senão também que é uma obrigação moral organizar a convivência sob a
forma de direito, isto é, o formar comunidades jurídicas. aos filósofos deveria ser
suficiente o fato de que nas sociedades complexas só no meio do direito é possível
estabelecer de maneira confiável essas relações de respeito mútuo – também entre
estranhos – moralmente obrigatórias.74 (itálicos e negrito nossos)
o que aqui pretendo voltar a enfrentar são duas questões que se fazem trans-
parentes a mim a partir do fato de que haBermaS, mais uma vez não se levando a
73 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 177.
74 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 659. Posteriormente, em 1998, haBermaS volta a tomar como não carecedora
de maiores explicações o que se pode compreender por “forma jurídica moderna”. em seu die postnationa-
le Konstellation: Politische essays, afirma, de maneira bastante sintomática, que “in the model i propose,
the starting question assumes that we can take the medium of enacted, coercible law more or less at face
value as effective and unproblematic. unlike classical contract theory, the proposed model does not treat
the creation of an association of legal persons, defined as bearers of individual rights, as a decision in need
of normative justification. a functional account suffices as justification, because complex societies, whether
asian or european, seem to have no functional equivalent for the integrative achievements of law”
(haBermaS, Jürgen. The postnational constellation: political essays. Trad. max Pensky. cambridge: The
miT Press, 2001, p. 122). existe, a meu ver, uma diferença fundamental entre comunidades políticas moder-
nas e comunidades políticas anti- (ou pré-) modernas não tomada em conta pelo autor neste trecho.
sério,75 acaba por não desenvolver conclusões que seu próprio arcabouço teórico
exigiria, quais sejam, a) o reconhecimento de uma justificação normativa à forma
jurídica moderna e b) uma dependência do direito em face da moral, para além
de uma mera afirmação de que o direito não seria “moralmente neutro”; e isto seja
por questões normativas (“direito ao maior grau possível de iguais liberdades sub-
jetivas de ação”), seja por questões funcionais (estabilização de expectativas de
comportamento). e, exatamente, a partir desses dois pontos, quais sejam, o reco-
nhecimento por parte do autor, e de sua teoria, de que temos um direito ao maior
grau possível de iguais liberdades subjetivas de ação76 e de que a função do direito
da modernidade é a de estabilizar expectativas de comportamento, vou retomar
algumas questões às quais anteriormente já havia feito menção.
de onde haBermaS tira esse “direito ao maior grau possível de iguais liberda-
des subjetivas de ação”? esta é uma dúvida não respondida, à qual eu, e o Professor
manueL JimÉnez redondo, não cansamos de chamar a atenção. Talvez eu possa
colaborar nessa discussão pontuando uma passagem de Faktizität und geltung, em
que o autor afirma que
ainda quando o conceito kantiano de legalidade se revela como um fio condutor útil
para a análise das características ou determinações formais do direito, os aspectos da
75 outro momento em que isso aconteceu, mais diretamente no que diz respeito a questões jurídico-normati-
vas, foi no bojo da grande Theorie des kommunicativen handelns, uma vez que a distinção entre “direito
como meio” e “direito como instituição” parecia um corpo estranho no contexto de sua obra, seja por se
socorrer em explicações meramente positivistas, seja por se valer de uma leitura moral na fundamentação
de certas normas jurídicas. Para aqueles que somente se satisfazem com o peso de argumentos de autorida-
de, aqui vão as palavras do próprio haBermaS: “Porém seria apressado descrever essa mesma estrutura como
dilemática. [Puxando nota de rodapé a partir deste ponto, afirma:] como se faz, por exemplo, em haBermaS
(Teoría de la acción comunicativa ii, pp. 508 ss); não é sustentável a distinção proposta no que diz respeito
a isso entre o direito como instituição e o direito como meio, a qual se opõem as normas jurídicas de cará-
ter sociointegrativo às formas jurídicas das quais se revestem as operações de regulação política” (haBermaS,
Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del
discurso, cit., p. 500; cf. ainda, para maior aprofundamento da questão, chamon Junior, Lúcio antônio.
Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e habermas. 3. ed. rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2009).
76 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 188.
77 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 184.
legalidade não devem ser entendidos como restrições da moral; antes tratarei de
fazê-los inteligíveis desde a relação de complementaridade entre moral e direito,
que nos vem sugerida pela Sociologia: a constituição da forma jurídica se torna
necessária para compensar os déficits que surgem com o desmoronamento da etici-
dade tradicional. Pois a moral autônoma, baseada só em fundamentos racionais, não
pode responder já por outra coisa que não seja sobre correção de juízos morais.78 (itá-
licos nossos)
Qual a relação entre essa necessidade e a forma jurídica moderna? o que está
por detrás da complementaridade e co-originalidade entre direito e moral? o que
essa necessidade teria que ver com aquele “direito ao maior grau possível de iguais
liberdades subjetivas de ação”? haveria algum desenvolvimento frutífero da rela-
ção entre essa “necessidade” do sistema moral pós-convencional e a função de
estabilização de expectativas do sistema jurídico da modernidade?
demonstrarei, a partir de questões ora negadas, ora explicitadas por haBer-
maS, como a ideia de forma jurídica moderna não só pressupõe o princípio da
integridade – aqui assumido como o princípio moderno da dignidade da pessoa –,
como também se justifica normativamente a partir dele.
Todavia, devo explicitar que não caio, como dWorKin, na tentação de dupli-
car esse conceito de integridade, fazendo crer que uma ideia de “integridade pura”
seja limitada, do ponto de vista do intérprete jurisdicional, pela dimensão institu-
cionalizada da forma jurídica moderna. não digo que haja uma “integridade pos-
sível” que se perfaz a partir das “limitações institucionais” impostas, pela forma do
direito, a uma “integridade pura”. Também não estou, com isso, justificando as
normas jurídicas a partir do princípio moral da universalização. mas, definitiva-
mente, o que estou é pretendendo explicitar que o direito da modernidade é
dependente dessa moral pós-convencional. Porém, enfrentemos primeiramente a
questão em torno da justificação normativa da forma jurídica moderna.
existe um ponto em Faktizität und geltung que aparece sem maiores expli-
cações por parte de seu autor, mas que, todavia, denuncia algo a ser tomado em
conta: haBermaS não nos dá qualquer explicação sobre por que há uma exigência
dirigida ao direito moderno de desenvolver o “direito ao maior grau possível de
iguais liberdades subjetivas de ação”. e isso já fora pontuado por mim – e por
JimÉnez redondo – anteriormente. esta é uma questão que os defensores mais
radicais de haBermaS sequer enfrentam, ou não a enfrentam adequadamente.
a partir das reconstruções teórico-políticas realizadas em (iii), e a partir do
resgate do que estava por detrás da justificação da forma do direito Penal da
78 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 178.
modernidade, em (ii), podemos perceber que a consolidação da forma jurídica
moderna esteve, sempre e desde o início, atrelada a uma questão central, qual seja,
e sobretudo, a defesa de liberdades individuais contra o poder absoluto de um
soberano. Quando monTeSQuieu e Beccaria defendiam a estrita legalidade no que
diz respeito à matéria de instituição de delitos e de suas correspondentes penas, o
faziam não de maneira injustificada, mas com base em suas particulares com-
preensões e interpretações do ideário político de então. e, como esclarecido, não
muito diferentes foram as razões de recepção legislativa dessas mesmas ideias e
princípios defendidos pelos autores; mesmo ainda no caso do “despotismo esclare-
cido” por detrás do código austríaco de 1787, como nos esclarece roXin.
outra preocupação frequente, no que diz respeito à justificação do direito
Penal desse contexto, era que a pena fosse “proporcional à gravidade do crime pra-
ticado”: sabemos que essa exigência estava teoricamente orientada ao corpo legis-
lativo, mas que no caminhar do direito Penal da modernidade não tardou a se
infiltrar, igualmente, no campo da jurisdição.
Percebo, destarte, que a defesa irrestrita da legalidade e, então, uma já certa
individualização da pena foram determinantes no debate político-penal do
iluminismo e nas construções jurídico-legislativas do estado Liberal. a coerção só
se justificaria na medida de sua legalidade e de sua proporcionalidade ao fato pra-
ticado. É nítido como o debate em torno das características formais do direito da
modernidade – sua positividade, seu caráter coercitivo e sua estruturação indivi-
dualística, além, obviamente, de sua dimensão institucional – é elemento comum
ao tenro debate moderno em torno da questão penal.
vejamos, assim, que essas questões formais não foram entendidas como “já
dadas”, como simples “fatos”, no debate teórico-político dos séculos Xviii e XiX.
muito antes pelo contrário, no campo do direito Penal, há uma defesa arraigada
dessa forma através de uma justificação normativa de que somente assim os indi-
víduos poderiam ter a segurança para gozar, e o respectivo resguardo, de suas
liberdades subjetivas, seja contra uma sempre e constante ameaça do estado, seja
pela expectativa generalizada de que os particulares respeitariam essas leis. ou
seja, podemos concluir que, em certa medida, e a partir de uma interpretação
paradigmática atrelada ao estado Liberal, von LiSzT tinha razão quando de sua
análise e, a partir da já interpretação do direito Penal alemão, afirmou que o
código Penal era como uma “magna carta do delinquente” – por lhe resguardar,
muito em razão dessa forma jurídica, do uso arbitrário do poder por parte do
estado, que, em outro momento, teve sua prática absolutista justificada por uma
filosofia de orientação teológico-cristã.
da compreensão, a partir de SKinner, das fundações de um constitucionalis-
mo moderno – enquanto buscas teóricas a justificar uma limitação do poder do
estado –, à prática revolucionária aguçadamente apresentada por FioravanTi, a
referência a textos legais, seja como elemento a buscar no passado uma justifica-
ção para o respeito a certos privilégios e compromissos firmados entre vassalos e
suseranos, seja como forma de projetar ao futuro um projeto constitucional
moderno de reconhecimento, na maior medida possível, de iguais liberdades de
ação, não se dá por acaso. aliás, quando a própria escola da exegese se atém, no
século XiX, de maneira tão veemente ao texto legal, a razão para essa atitude inter-
pretativa decorre não de um mero respeito à “forma” do direito, mas, inclusive, a
questões normativas de fundo, a questões em torno da compreensão do que impli-
cava uma aplicação e interpretação jurisdicionais legítimas do direito.
o que está por detrás da defesa desta forma é a defesa da liberdade e da igual-
dade. Se na modernidade há uma defesa da legalidade, ou do caráter positivo do
direito, esta defesa – e de maneira mais aguçada e explícita no direito Penal – se
dá em nome do resguardo, a todos, dos direitos já instituídos como tais e também
do seu desenvolvimento e contínuo processo de reconhecimento de um mutante
núcleo de liberdades subjetivas, como a nós soam os ecos da revolução Francesa.
e se essa defesa foi necessária, significa que não fora um mero fato ao qual uma
“simples explicação funcional” seria o suficiente.
e qual a relevância de toda essa questão? a importância deste ponto centra-
se em face da exigência normativa que a modernidade impõe ao direito de desen-
volver um sistema de direitos em que a tônica é reconhecer, na maior medida ou
grau possível, iguais liberdades subjetivas a todos. vejamos que não se trata de
uma exigência normativa à moral, mas ao direito; diz respeito a expectativas de
comportamento a serem generalizadas por meio de instâncias institucionalizadas.
como já explicitado no capítulo 3 (supra), ao longo do processo de modernização
da Sociedade, podemos assumir a ideia de que a razão dos sujeitos modernos, agora
livre de amarras sacrotradicionais, se enxerga e se autoconstitui como “absoluta”,
isto é, como sendo capaz de encontrar limite tão-somente na igual liberdade dos
seus pares.
isso implica dizer que somente através da mediação lingüistica é possível a compati-
bilização dessas liberdades. mas vejamos que a própria mediação lingüística é assu-
mida como medium para a viabilização dessas mesmas liberdades. isso significa dizer
que a estabilização e a generalização de expectativas de comportamento, na
modernidade, e pelas questões funcionais já elucidadas em face da moral, somente
se podem dar através da forma jurídica. inclusive porque somente essa forma jurídi-
ca é capaz de garantir, funcionalmente, não só tomadas de decisões coletivamente
vinculantes, como também a estabilização generalizada de expectativas de compor-
tamentos. e isso somente em uma democracia.79
aqui está o paradoxo do direito: o fato de que sua legitimidade depende de sua forma,
de uma forma jurídica que, na modernidade, se construiu normativa e sociologica-
mente alicerçada nos princípios de igualdade e liberdade, num processo de diferen-
ciação funcional. (...) somente podemos, na modernidade, falar em tal forma, o que
implica também dizer que tais princípios sejam assumidos pela comunidade jurídica
ainda que numa decisão simbólica de uma assembléia constituinte que, paradoxal-
mente, tem que decidir por tal juridicidade (forma jurídica) quando (ou porque) não
poderia de outra forma decidir legitimamente.80
v.
a exposição [dessa gênese lógica dos direitos] procede do abstrato ao concreto; a con-
creção se produz à medida que a perspectiva que a exposição inicialmente traz de
fora vai ficando internalizada pelo próprio sistema de direitos que se expõe.82 (itáli-
cos nossos)
80 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 105.
81 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 187.
82 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 188.
neutro em face do direito e da moral; na medida em que a forma jurídica é assu-
mida como tendo uma explicação meramente funcional, incapaz de ser “funda-
mentada” ou normativamente, ou em termos epistemológicos; e na medida em
que essa “gênese lógica” – o que quer que isso signifique, seja reconstrução, seja
dedução lógica – parte de algo que inicialmente traz de fora, mais interessante
ainda fica nossa indagação em torno de onde haBermaS retirou esse direito de
reconhecimento, no maior grau ou medida possível, de iguais liberdades a todos.
Posso e acredito, todavia, superar essa questão propondo e discutindo o
seguinte: o que inicialmente essa “gênese lógica” dos direitos “traz de fora” e que
acaba internalizado pelo próprio direito senão a responsabilidade, e exigência,
que a modernidade lhe impõe de garantir esse espaço de respeito recíproco às
liberdades de todos?
a questão central aqui – muito inadequadamente explicitada por haBermaS,
e isso quando o faz – é que essa justificação normativa da forma jurídica é que vai
“ficando internalizada” a partir do momento em que a operacionalização dessa
forma somente se pode dar sob a égide de um princípio do discurso. ou seja, é a
exigência de reconhecimento de iguais liberdades subjetivas a todos, na maior
medida possível – e esse “maior grau possível” está diretamente vinculado à sua
tão-somente possível exequibilidade através da forma do direito moderno –, que
vai sendo internalizada pelo direito, a partir do momento em que essa internali-
zação, através da forma jurídica e das exigências de um tal princípio do discurso,
somente se pode dar na dependência do reconhecimento de um núcleo de direi-
tos fundamentais.
Se assumirmos, no que diz respeito ao processo de criação normativa, o prin-
cípio da integridade como essa exigência de reconhecimento, na maior medida, ou
no maior grau possível, de iguais liberdades a todos, isto é, se assumirmos que essa
integridade há que ser interpretada como o princípio da dignidade da pessoa,
pode-se concluir que há um sentido normativo subjacente ao entrelaçamento
entre forma jurídica e princípio do discurso. repito:
83 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 219.
e aqui devemos entender esse “sentido normativo subjacente” como o próprio direi-
to à maior medida possível de iguais liberdades a todos. e quando nos referimos ao
“entrelaçamento entre a forma jurídica moderna e o princípio do discurso”, o faze-
mos em um sentido muito específico; no sentido de que somente discursivamente é
que se pode “operar” a forma jurídica, isto é, no sentido de que são normativamente
indissociáveis forma jurídica e princípio do discurso, em face da exigência de reco-
nhecimento de iguais liberdades subjetivas a todos na maior medida possível. isso
justifica não somente a forma jurídica desde um viés normativo, como coloca tam-
bém, aos participantes dos discursos jurídicos, no exercício de suas liberdades comu-
nicativas, uma exigência normativa.84
vi.
85 cf., supra.
haBermaS defendeu –, isto é, somente quando damos um passo mais além e assu-
mimos em nossa compreensão do direito, e em sua praxis, a dependência deste em
face do sistema da moral.
o que pontuo e trago melhor elaborado aqui, é que, embora o direito não se
justifique na moral – mas em um princípio neutro, capaz de reconstruir, em um
nível de abstração suficientemente adequado, as exigências linguístico-modernas
para a legitimidade da justificação moral ou jurídico-normativa –, isso não só não
o isenta de irradiar conteúdos morais, inclusive no campo de sistemas autonomi-
zados, como a economia, como também o faz dependente da moral. dizer que o
direito não é “moralmente neutro”, ou que a moral “necessita”, de um ponto de
vista funcional, do direito, é muito pouco para o que aqui explicitamos.
na medida em que a forma jurídica moderna e a função que lhe é incumbi-
da, qual seja, a de estabilizar expectativas de comportamento, são dependentes de
uma prática democrática sem a qual não se poderia generalizar de maneira válida
qualquer expectativa contrafatual, sou levado a igualmente reconhecer que
somente quando os processos de justificação do direito se valem, constante e
recorrentemente, de razões morais no processo de decisão e criação de normas
abstratas e gerais é que se lhe é permitido manter sua função. embora o direito
não se justifique na moral, a moral é algo indispensável, e do qual o direito
depende, para manter sua função e não se desnaturar em um simples uso arbitrá-
rio e parasitário de sua “forma jurídica”, então, e todavia, não mais moderna.
Pois, se não houvesse essa dependência do direito em face da moral, se as
razões morais – que nos levam a tomar decisões no igual interesse de todos os afe-
tados por essas mesmas decisões, ainda que em prejuízo de interesses particulares
– não fossem enxergadas sob esse ângulo, correríamos o perigo ainda mais prová-
vel de o direito e sua forma serem usados para fins tão-somente particulares,
como um instrumento de imposição de um ethos em detrimento de todos.
aqui se completa o raciocínio: a exigência do princípio moderno da dignida-
de da pessoa, ou da integridade, no contexto de justificação do direito nos cobra
o reconhecimento de iguais liberdades subjetivas a todos. Porém, essa exigência
não será satisfeita somente quando, ou só se, decisões morais forem as únicas
determinantes da justificação normativa do direito. não se trata de um princípio
moral introduzido na justificação do direito. o que se exige, inclusive por tomar
em consideração essa forma jurídica moderna, é que esse ideal de reconhecimen-
to se dê no maior grau ou medida possível: o fato de o direito depender da moral
não significa dizer que somente razões morais possam ser assumidas como deter-
minantes em um processo de justificação normativa; igualmente os são razões éti-
cas e pragmatistas, além de jurídicas, fazendo com que esse processo de “reconhe-
cimento de iguais liberdades subjetivas a todos” fique também vulnerável a ques-
tões que não sejam somente morais no que tange à instituição e construção legis-
lativa do direito – este é o sentido da não justificação do direito na moral.
com isso, não afirmo que a dependência do direito em face da moral seja
uma dependência normativa – no sentido de um núcleo normativo da moral que
supostamente o direito “teria que assumir” –, mas que, sim, trata-se definitiva-
mente de uma dependência, no campo da manutenção de sua função, se se pre-
tende sustentar sua operacionalização enquanto uma prática social merecedora de
ser reconhecida como direito da modernidade. Por isso, não duplico o conceito
de integridade, como outrora o fez dWorKin, ao pensar uma “integridade pura”
capaz de ser limitada por questões institucionais; sobretudo porque dWorKin foca,
nesse momento de seu trabalho, como seu hÉrcuLeS deveria, em determinados
casos, abrir mão de uma “perfeita coerência interpretativa” em nome do respeito
aos “princípios mais processuais”. não estou justificando o direito na moral, nem
estabelecendo qualquer dependência específica de cunho material-normativo na
justificação dos processos fáticos de criação jurídico-normativos.
um direito que, radical e hipoteticamente, se nutrisse, em seus processos
legislativos, tão-somente de argumentos morais como forma de buscar a compati-
bilização das esferas de liberdades de todos, não teria qualquer problema do ponto
de vista do alcance e cumprimento de sua função. mas, se pensarmos essa hipóte-
se a partir de modelos radicais a assumirem de maneira avassaladora argumentos
éticos (referentes ao bom) ou pragmatistas (em torno do conveniente e do incon-
veniente), não poderíamos mais falar de “direito moderno” porque sua função, de
estabilizar expectativas de comportamento, teria passado a ser parasitariamente
colonizada pela imposição de uma maioria sobre uma minoria desprotegida e sem
voz, pela imposição de um ethos, que, por sua violência, não permite estabilizar o
que quer que seja – muito menos expectativas de comportamentos, uma vez que
estes não mais se orientam pelo código do direito, mas passam a ser dependentes
da lógica conveniência/inconveniência sempre instável, incerta e exacerbada-
mente imprevisível.
a expressão “na maior medida possível”, e no que tange ao reconhecimento
indistinto de iguais liberdades subjetivas a todos, é bem diferente do que seja “em
qualquer medida possível”. a exigência de uma maior medida não duplica o con-
ceito de direito – como as teses jusnaturalistas o faziam ou como certas funda-
mentações morais ainda o fazem –, muito menos se adere a uma perspectiva em
que um ideal aproximativo bastaria – como o faz a Teoria da argumentação
Jurídica proposta por roBerT aLeXy, porém não tanto na sua explicação sobre a
justificação do direito, mas, sobretudo, no que diz respeito à sua aplicação.
a manutenção da função do direito – e igualmente a manutenção “da
modernidade” em seu amálgama “estado de direito, constituição, direitos funda-
mentais e democracia” –, do qual a moral necessita, inclusive, para conseguir se
fazer irradiar, está vinculada a uma dependência (“maior medida possível” – inclu-
sive funcionalmente possível) daquele em relação a esta e não a uma mera e even-
tual irritação86 possível do sistema do direito pelo sistema da moral (“qualquer
medida possível”).
aqui, e da maneira a que me propus, está o contributo de que uma “Filosofia
do direito Penal” e uma reconstrução de traços do ideário político da moderni-
dade, aliadas a um resgate de traços historiográficos, permitem, a partir da reto-
mada de algumas questões pontuadas por Jürgen haBermaS, demonstrar que a
Teoria do discurso é maior que seu próprio autor, podendo nos dizer muito mais
coisas que certas passagens, por vezes contraditórias ou incoerentes, porém outro-
ra defendidas e explicitadas por ele mesmo.
vii.
86 o termo irritação, da forma aqui empregada, é bastante devedor à sua origem em niKLaS Luhmann, embo-
ra não apropriadamente coincidente, seja pela temática em discussão, seja porque não se pode adequada-
mente sustentar um “sistema moral” em sua Teoria dos Sistemas.
d) não compreendo, definitivamente, que a “gênese lógica dos direitos” possa
ser assumida como uma “dedução lógica” dos conteúdos por haBermaS
explicitados. Todavia, é haBermaS quem deixa sem solução articulada e
adequada, nessa tal “gênese lógica” – que, para os críticos, seria um resga-
te reconstrutivo –, o papel, a justificação e a explicação em torno do que
ele mesmo assume como “direito a iguais liberdades subjetivas na maior
medida possível”;
e) como pontuei, não acredito ser correto afirmar que a teoria de haBermaS
não pressuponha uma justificação normativa da forma jurídica moderna;
os críticos deveriam tomar em consideração a diferença entre o que diz e
assume o autor explicitamente e o que sua teoria, em muitos traços, pres-
supõe implicitamente;
f) de que haBermaS se socorre, em sua diferenciação entre direito e moral,
a aspectos e elementos funcionais, não há qualquer dúvida. afinal, as dife-
renças funcionais entre o sistema jurídico e a moral pós-convencional são
peças-chave para entender sua teoria e para compreender, efetivamente, o
processo de modernização desses sistemas normativos. Todavia, afirmar
que eu não compreendi – quando do capítulo iii de Faktizität und
geltung,87 sob o argumento de que se trata da “estratégia argumentativa do
autor” – que, ao se referir a “questões funcionais”, estaria fazendo menção
às diferenças entre direito e moral, e não à satisfação da explicação de uma
forma jurídica, trata-se de um duplo equívoco: primeiro, não assumir o que
haBermaS, em definitivo, explicitou em seu texto – “Pois a forma jurídica
não é um princípio que possa ‘fundamentar-se’, seja tanto em termos epis-
têmicos, quanto em termos normativos” – e, segundo, não perceber que
não foi só nesse momento, como visto, que o autor faz referência a essa
infeliz, e contraditória, colocação no seio de seus escritos.
87 uma vez mais: “as determinações formais ou características formais do direito, isto é, as características do
direito no tocante à forma explicarei no que se segue, recorrendo à relação de complementaridade entre
moral e direito. esta explicação forma parte de uma explicação funcional, não de uma fundamentação nor-
mativa do direito. Pois a forma jurídica não é um princípio que possa “fundamentar-se”, seja tanto em ter-
mos epistêmicos, quanto em termos normativos” (haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho
y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit., p. 184).
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