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Teoria da argumenTação Jurídica

constitucionalismo e democracia em uma


reconstrução das Fontes no direito moderno
www.lumenjuris.com.br
eDitOReS
João de Almeida
João Luiz da Silva Almeida

CONSeLhO eDitORiAL

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Alexandre Freitas Câmara Frederico Price Grechi Marcos Chut
Alexandre Morais da Rosa Geraldo L. M. Prado Marcos Juruena villela Souto
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elpídio Donizetti Luigi Bonizzato Salo de Carvalho
emerson Garcia Luis Carlos Alcoforado Sérgio André Rocha
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CONSeLhO CONSuLtivO

Álvaro Mayrink da Costa Cesar Flores João theotonio Mendes de


Amilton Bueno de Carvalho Firly Nascimento Filho Almeida Jr.
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Lúcio anTônio chamon Junior

Teoria da argumenTação Jurídica


constitucionalismo e democracia em uma
reconstrução das Fontes no direito moderno

2ª edição
com Pós-escrito

ediTora Lumen JuriS


rio de Janeiro
2009
copyright © 2009 by Lúcio antônio chamon Junior

1ª edição – 2008

categoria: direito constitucional

Produção editorial
Livraria e editora Lumen Juris Ltda.

imagem da capa:
Bartholomeus Spranger, hermes e athenas

a Livraria e ediTora Lumen JuriS LTda.


não se responsabiliza pelas opiniões
manifestadas nesta obra.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer


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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e editora Lumen Juris Ltda.

impresso no Brasil
Printed in Brazil
canção mínima

no mistério do Sem-fim
equilibra-se um planeta.

e, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,

entre o planeta e o Sem-fim,


a asa de uma borboleta.

cecíLia meireLeS,
vaga música, 1942

ao rodrigo, uma vez mais.


vôo

alheias e nossas
as palavras voam.
Bando de borboletas multicores,
as palavras voam.
Bando azul de andorinhas,
bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
voam as palavras
como águias imensas.
como escuros morcegos
como negros abutres,
as palavras voam.

oh! alto e baixo


em círculos e retas
acima de nós, em redor de nós
as palavras voam.

e às vezes pousam.

cecíLia meireLeS,
abril de 1964

al Professor manueL JimÉnez redondo,


este vuelo.
noTa do auTor à Segunda edição

em aproximadamente um ano, para nossa satisfação, já se encontrava esgota-


da a Primeira edição deste nosso Teoria da argumentação Jurídica. construído em
torno do problema da legitimidade do direito da modernidade, no que se refere
não só à sua aplicação, mas igualmente a uma pressuposta Teoria da democracia,
este livro busca revisitar o conceito de “fontes no direito”. e isto de maneira a tra-
zer à tona questões implícitas e esquecidas pela Teoria do direito de hoje, e que
nem sempre encontrou um cuidadoso trato, seja pela doutrina tradicional, seja
pelo atual esforço bibliográfico que se desvela na tentativa de superar incon-
gruências de nossa forte herança funcional-positivista.
aos que tomam contato com este livro pela primeira vez, devo pontuar que
seu estudo Prévio conta com um cuidadoso e bem articulado texto do Professor
manueL JimÉnez redondo intitulado Princípio da liberdade e princípio do discur-
so no pensamento jurídico de Jürgen haBermaS, no qual, desenvolvendo uma
gentil contribuição ao debate em torno da Teoria do discurso, propõe uma refle-
xão mais aprofundada em torno da questão de uma justificação normativa à forma
jurídica moderna.
dialogando com esse texto de JimÉnez redondo, e com as sempre bem-vin-
das críticas recebidas após a publicação de nossa edição anterior, ofereço um
Pós-escrito à esta edição. Fruto de reflexões iniciadas e parcialmente desenvol-
vidas na Suíça, referido Pós-escrito intitula-se de que maneira os ideais de
“integridade” e “forma jurídica moderna” se entrelaçam? reflexões a partir do
que uma “Filosofia do direito Penal” pode ensinar à Filosofia do direito enquan-
to “Filosofia do direito constitucional”. este texto procura resgatar uma das
teses fulcrais defendidas nessa obra: a tese segundo a qual, no contexto de uma
Teoria do discurso, a forma jurídica moderna se justifica normativamente para
além de uma mera “explicação funcional”, como expressamente outrora assumi-
do por haBermaS. neste Pós-escrito também aponto, de maneira mais explícita,
em que sentido moral e direito, igualmente no contexto de uma Teoria discur-
siva do direito, estão em uma relação para além de uma simples “não neutrali-
dade moral” do sistema jurídico, como defendido, entretanto, em Faktizität und
geltung.
Por fim, na elaboração do Pós-escrito, e na revisão desta edição, não posso dei-
xar de mencionar as importantes sugestões que recebi por parte daqueles que leram,
ou escutaram, os manuscritos em sua fase de elaboração. agradeço, pela perspicácia
e disposição, aos meus sempre amigos, e interlocutores, Professores maria de
FÁTima Freire de SÁ, caroLine BaSToS danTaS e renaTo aLmeida de moraeS.

Lúcio anTônio chamon Junior


Belo horizonte, verão de 2009
eSTudo PrÉvio

PrincíPio da LiBerdade e PrincíPio do diScurSo


no PenSamenTo Jurídico de Jürgen haBermaS*

i. PrincíPio da LiBerdade, Forma Jurídica, PrincíPio do diScurSo

a exposição dos escritos de Teoria do direito de Jürgen haBermaS que o


Professor Lúcio anTônio chamon Junior vem fazendo em seus trabalhos é clara,
precisa, sucinta. Precisamente porque é sucinta, chamon radicaliza os conceitos
de haBermaS. chamon retira-os às vezes do contexto, mas para devolvê-los ao seu
contexto livres da névoa e da obscuridade que, por vezes, têm em haBermaS. as
raras ocasiões em que chamon se afasta da literalidade do significado principal
que um determinado conceito tem em haBermaS são sempre para indicar algum
aspecto que é tão importante quanto esse significado principal. Por mais familia-
rizado que alguém esteja com o pensamento de haBermaS, são sempre gratas as
visões claras, nítidas, frescas, como as que nos oferece chamon, nas quais estão
sempre presentes quase todos os registros desse pensamento, por mais que
chamon se restrinja ao pensamento jurídico.
Por outro lado, chamon pertence a uma geração de cientistas e jurisconsul-
tos em que o saber jurídico se articula com o saber de Teoria do direito e com o
saber filosófico. ele pertence a essa geração de juristas que se movem tão bem den-
tro do sistema jurídico, a que se dedicam, como no terreno da Teoria do direito,
como no terreno da Filosofia do direito e da Filosofia em geral, de modo que com
toda a liberdade e desenvoltura sabem passar de um aspecto a outro. chamon per-
tence a esse grupo de atuais juristas e teóricos do direito, ligados a nomes como
dWorKin ou haBermaS.
mas, precisamente porque sabe dar-nos todos os registros do pensamento de
haBermaS de forma concisa, clara, bem articulada e sempre radicalizada, chamon
não poderia deixar de abordar um tema que muito me havia interessado, desde a
minha primeira leitura de Facticidad y validez de haBermaS, e inclusive antes,
quando tive oportunidade de ler alguns trabalhos preparatórios desse livro.

* Tradução: iLKa vaLLe de carvaLho.


i.1. uma diferença em relação a habermas

em um de seus trabalhos, chamon expõe assim essa questão:

“e aqui está o paradoxo do direito: o fato de que sua legitimidade depende de sua
forma, de uma forma jurídica que, na modernidade, se construiu normativa e socio-
logicamente alicerçada nos princípios de igualdade e liberdade, num processo de
diferenciação funcional. embora tais princípios de liberdade e igualdade sejam prin-
cípios normativos, não se pode pretender fundá-los para além do próprio direito, isto
é, para além de sua forma jurídica moderna, razão pela qual, no que tange ao direito,
somente podemos, na modernidade, falar em tal forma, o que implica também dizer
que tais princípios sejam assumidos pela comunidade jurídica ainda que numa deci-
são simbólica de uma assembléia constituinte que, paradoxalmente, tem que deci-
dir por tal juridicidade (forma jurídica) quando (ou porque) não poderia de outra
forma decidir legitimamente.”1

Parece-me claro que em algum momento chamon compartilhou também de


minhas dúvidas, porque sugere a haBermaS “que na modernidade a forma jurídi-
ca se constrói normativa e sociologicamente”, quando creio que haBermaS só diz
“sociologicamente”. Para haBermaS, a “forma jurídica” só pode ser objeto de uma
fundamentação ou justificação funcional, não normativa. além disso, chamon
insiste em que os princípios de igualdade e liberdade, que vêm implicados na
forma jurídica, são assumidos ou revalidados (discursivamente) pela comunidade
jurídica, mas o são porque essa comunidade não pode decidir legitimamente, a não
ser dessa forma. de novo, isto soa a pressão normativa ligada à forma jurídica.
chamon se refere à relação entre “direitos de liberdade” e “forma jurídica”
em outra passagem do seu trabalho que acabo de citar, em que fala de haBermaS
e de Luhmann. diz chamon:

“afinal, mais uma vez com haBermaS, podemos compartilhar que a noção de direi-
tos subjetivos são correspondentes ao conceito de liberdades subjetivas de ação que
fixam, estabelecem, os limites dentro dos quais um sujeito está legitimado (autoriza-
do) a afirmar sua vontade, independentemente dos objetivos e motivos que persegue
ou o impulsionam. a atenção a ser dispensada à categoria dos direitos subjetivos se
justifica porque central para a auto-compreensão da praxis jurídica que constitui o
direito vez que sistema – afinal, há determinados direitos subjetivos que devem ser
reciprocamente a todos reconhecidos para a construção do próprio direito moderno
legítimo. a aquisição moderna do conceito de lei (válida indistintamente a todos e

1 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade. rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 105.
por isso capaz de atribuir os mesmos direitos a todos), se por um lado cumpre um
aspecto funcional de ser especialmente adequada a uma sociedade que se tornou des-
centrada e na qual a economia cumpre um papel proeminente, por outro lado há que
satisfazer condições sempre precárias de integração social que repousam, na
modernidade, em uma intersubjetividade capaz de dar suporte à aceitabilidade de
pretensões de validade referentes à operação de acordos. afinal, algo que Luhmann
não percebeu, é que, na modernidade, o direito somente é capaz de cumprir sua fun-
ção de estabilização de expectativas de comportamento se também for capaz de man-
ter uma conexão interna com aquela força sócio-integradora, da qual é dotada a ação
comunicativa, porque gerada numa intersubjetividade. Somente quando reconhece-
mos iguais ‘esferas de liberdade de arbítrio’, enfim, iguais direitos subjetivos, é que
podemos pretender que todos que se encontram sob o império do direito possam
tomá-lo como aceitável: aqui reside, pois, o paradoxo de que a legitimidade do
direito seja capaz de ser produzida a partir de uma legalidade que reconheça iguais
direitos ao exercício da autonomia pública.”2

aqui, diferentemente do que ocorre na passagem anterior, chamon reproduz


exatamente o pensamento de haBermaS. a justificação da forma jurídica é funcio-
nal. e a fonte de legitimidade não é a razão subjetiva, mas a razão comunicativa,
que em todo caso revalida normativamente as pretensões da razão subjetiva. e
partindo da forma jurídica e da razão comunicativa, isto é, partindo da forma jurí-
dica e do princípio do discurso, podemos reconstruir o “sistema dos direitos” que
articula os sistemas jurídicos democrático-liberais, podemos entendê-lo ou
reconstruí-lo em forma de uma “gênese lógica” do “sistema dos direitos” (dos
direitos de liberdade, dos direitos de pertencimento, dos direitos de acionabilida-
de processual dos direitos, dos direitos de participação política e dos direitos
sociais e ecológicos, que são as cinco categorias de direitos discernidas por
haBermaS em Facticidad y validez). essa “gênese lógica” coloca-nos à vista uma
legalidade capaz de gerar sua própria legitimidade, de tal modo que não haveria
outra legitimidade possível senão a gerada por aquela legalidade. a única fonte de
legitimidade é, portanto, a razão comunicativa que na modernidade não dispõe de
outro meio de assegurar a solidariedade social global, a não ser a forma jurídica,
isto é, não dispõe de outro meio além do direito positivo, do direito coercitivo, o
que encerra em si, portanto, a tensão entre a validade e a capacidade fática de
imposição, entre faticidade e validade.
Que se pode dizer, então, sobre a normatividade dos princípios de liberdade
ou igualdade? derivam simplesmente da fonte de normatividade que é a razão
comunicativa? não se tratará, talvez, de uma normatividade distinta, que não

2 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno, cit., p. 78.
coincide exatamente com a da razão comunicativa, se é que não está em uma rela-
ção de tensão com ela, e que inclusive está na base do meio (a forma jurídica
moderna) com que a razão comunicativa moderna tem de operar? em um
momento de infidelidade a haBermaS, chamon (na primeira citação) parece suge-
rir isso. esse momento de infidelidade não pode ser casual, porque, como digo,
chamon é sempre claro e preciso.

i.2. a declaração de 1789

esta questão não é nenhum jogo conceitual, não é uma questão de mais ou de
menos. É uma questão muito antiga. Foi proposta desde o princípio da
modernidade política, desde o momento em que a ordem estatal introduzida no
século Xvii se torna democrático-liberal com as revoluções de fins do século
Xviii. na declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, temos o arti-
go 6º, que diz: “a lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm direi-
to a concorrer, mediante seus representantes, para sua formação. deve ser a
mesma para todos, tanto ao proteger quanto ao castigar”.
este artigo 6º se faz eco de o contrato social de rouSSeau: “a lei é a expres-
são da vontade geral”. Para rouSSeau, a “vontade geral” é a soberania em exercí-
cio, o exercício da soberania. e para haBermaS a soberania popular pode ser
entendida como “procedimento”. o artigo agregado ao apêndice de Facticidad y
validez, “a soberania popular como procedimento”, é, a meu ver, uma importan-
te interpretação contemporânea do conceito de soberania. nesse artigo, em dis-
cussão com quase todo o pensamento político contemporâneo, fica particularmen-
te clara a idéia de haBermaS do entrelaçamento entre “princípio do discurso” e
“forma jurídica”, como instauração de uma legalidade (apoiada no procedimento
jurídico de geração legítima do direito) que não só gera sua própria legitimidade,
mas exclui a existência de outra legitimidade ou outra fonte de legitimidade além
dessa. de modo que, no que se refere aos princípios de liberdade e igualdade, seria
a própria forma da lei e os próprios procedimentos jurídicos de geração legítima
da lei que cuidariam exaustivamente deles. em todo caso, a normatividade desses
princípios teria de derivar também dessa fonte, que é a razão comunicativa.
entretanto, não parece ser essa a idéia de todos os autores da declaração de
1789. nela, há outro artigo que provavelmente foi redigido depois do artigo 6º e
que fica agressivamente anteposto ao artigo 6º. Trata-se do artigo 5º. e digo “agres-
sivamente” porque se inicia com uma formulação paradoxal que foi seguramente
intencionada. o artigo 5º diz assim: “a lei não tem direito (n’a le droit) de proibir
senão as ações nocivas à sociedade [...]” ora, “ações nocivas” à sociedade só podem
ser as que estorvam o fim da sociedade. e conforme o artigo 2º, “o fim da associa-
ção política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.
esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opres-
são”. Temos, portanto, que o direito de fazer comigo e com o meu o que me apraz,
sem outra limitação que a de reconhecer esse mesmo direito aos demais (pois, con-
forme o artigo 4º, “o exercício dos direitos naturais do homem não têm outros
limites senão os que asseguram aos demais membros da sociedade o exercício des-
ses mesmos direitos”), temos, digo, que o igual direito à maior medida possível de
iguais liberdades subjetivas de ação3 é, ou assim parece, uma fonte de legitimida-
de independente da que representa a razão pública comunicativa juridicamente
articulada, e à qual essa razão comunicativa tem de se submeter. Porque a lei,
inclusive aquela produzida de forma procedimentalmente correta, n’a pas le droit
de (não tem direito a) estabelecer uma medida de iguais liberdades básicas que seja
menor que a maior possível. e essa maior medida possível tem seu próprio crité-
rio interno: não tem outro limite senão o que assegura aos demais membros da
sociedade o exercício dos mesmos direitos de liberdade.
Portanto, dir-se-ia que a liberdade subjetiva é absoluta, segundo a viam os
pais (ou alguns pais) da declaração de 1789. não tem outra medida interna a não
ser ela mesma. não a mede a legitimidade comunicativa, mas é ela, antes, a medi-
da dessa legitimidade comunicativa.

i.3. a posição de Kant, compartilhada por chamon. Princípio da


liberdade e princípio democrático em Kant

algo semelhante ocorre em KanT, que é o grande intérprete da declaração


dos direitos do homem e do cidadão, de 1789. KanT sabe muito bem que o próprio
título da declaração reflete o desacordo entre os representantes inspirados por
LocKe (direitos do homem) e os inspirados por rouSSeau (direitos do cidadão), que
não conseguiram chegar a um entendimento de princípio. KanT faz uma interpre-
tação da declaração inteiramente destinada a mostrar sua unidade conceitual. e a
baseia em uma reinterpretação de conceitos do direito romano, tomados, sobre-
tudo, das instituições de Justiniano, à qual me referirei mais adiante. KanT obser-
va a antiguidade romana e busca entender a declaração como a reviravolta que
aqueles conceitos sofreram, reviravolta em que se refletem as estruturas da cons-

3 essa expressão, seguramente inspirada por una teoria de la justicia de J. raWLS, é a que haBermaS empre-
ga na dedução do sistema dos direitos no cap. iii de Facticidad y validez. cf. haBermaS, Jürgen, Faktizität
und geltung, Frankfurt, 1992 (versão espanhola: Facticidad y validez, introdução e tradução de manuel
JimÉnez redondo sobre a quarta edição alemã revista, de 1994, Trotta, madrid, 1998), p. 155. raWLS, na for-
mulação do “primeiro princípio de justiça”, fala de “the most extensive basic liberty compatible with a simi-
lar liberty for others”. veja-se, por exemplo, raWLS, John, a Theory of Justice, oxford, 1972, p. 60.
ciência jurídica moderna. nisso consiste a “doutrina do direito” de a metafísica
dos costumes de KanT. com este texto, a meu ver, só se pode comparar a “Filosofia
do direito” de hegeL.
KanT começa introduzindo o que chama de “princípio geral do direito”
(princípio da liberdade): “É justa (ou é de direito) toda ação conforme a máxima
segundo a qual a liberdade de arbítrio de cada um pode ser compatível com a de
qualquer um, conforme uma lei geral.”4 e KanT enuncia em seguida a conseqüên-
cia disso: a ilegitimidade de tudo o que não seja a maior medida possível de iguais
liberdades básicas: “Se, portanto, uma ação minha, ou em geral um estado meu,
pode compatibilizar-se com a liberdade de qualquer um, conforme uma lei geral,
e alguém mos impede, então quem mos impede me está fazendo injustiça, pois
esse impedimento, essa resistência, não é compatível com a liberdade conforme
leis gerais.”
Sobre este princípio de legitimidade do sistema jurídico, sobre este “princí-
pio geral do direito”, KanT acrescenta duas coisas. a primeira é que a idéia de
“liberdade conforme leis gerais” é um postulado da razão prática, “que já não é sus-
ceptível de ulterior demonstração”.5 Tal postulado da razão não implica que se
exija de mim atuar por respeito a esse postulado, por respeito a esse dever. não.
esse postulado apenas diz que é esse o limite de minha liberdade, isto é, que esse
é o espaço legítimo de minha liberdade e que, portanto, uma legislação que redu-
za o exercício de minha liberdade subjetiva a esses limites não é ilegítima, mas
legítima, nada posso objetar contra ela, não tenho nenhuma razão (defensável) a
lhe opor, independentemente dos motivos que me possam mover. converter em
motivo de minha ação o respeito ao princípio geral do direito é algo que, talvez,
a moral me exija, mas não o direito. o direito não atinge isso, o direito não abar-
ca a moralidade, permanece na legalidade. ao que KanT chama “legalidade” é ao
que haBermaS chama “forma jurídica”.
a segunda coisa que diz KanT é que esse direito de liberdade é o único direi-
to inato que assiste ao homem, em virtude de sua humanidade, e, portanto, impli-
ca a igualdade de todos nesse direito de liberdade; a idéia de liberdade como único
direito inato do homem implica a noção do direito a iguais liberdades básicas:

“a liberdade, isto é, a independência em relação à coerção do arbítrio de outro, na


medida em que essa liberdade possa ser compatível com a liberdade de qualquer
outro, conforme uma lei geral, é um direito original que assiste ao homem, em vir-
tude de sua humanidade. e do mesmo modo, a igualdade inata, ou seja, o não poder

4 KanT, immanuel. die metaphysik der Sitten. em: immanuel Kants Werke, ed. Wilhelm Weischedel, tomo
viii, Suhrkamp, Frankfurt, 1958, p. 337.
5 KanT, immanuel. die metaphysik der Sitten, cit., p. 338.
ser obrigado pelos outros a nada mais que aquilo a que mutuamente nos podemos
obrigar [...].”6

e depois de introduzir o “princípio geral do direito”, KanT introduz o “prin-


cípio do direito Público” (princípio democrático), que é um princípio de legitimi-
dade distinto do “princípio geral do direito” (ou, ao menos, não coincidente com
ele, por inteiro). o “princípio do direito Público” é, digamos, a expressão da
“razão comunicativa”, ou pelo menos da razão intersubjetiva no campo do direito.
Se o “princípio geral do direito” versava sobre a liberdade conforme leis gerais, o
princípio do direito Público versa sobre a produção legítima dessas leis gerais por
uma razão comunicativa que se atém ao meio da legalidade, ao meio da forma jurí-
dica introduzida pelo princípio geral do direito, embora KanT sublinhe com mais
força, inclusive, o momento da vontade que o deliberativo:

“o poder legislativo só pode ser de competência da vontade unida do povo. Pois


como desse poder provém todo direito, tem de poder não fazer injustiça absoluta-
mente a ninguém, mediante sua lei. ora, quando alguém assume alguma disposição
acerca de outro, sempre é possível que com ela lhe possa fazer injustiça, mas não com
o que alguém dispõe sobre si mesmo (pois volenti non fit iniuria, a quem consente
em algo, não se lhe está fazendo com isso injustiça). Portanto, só a vontade concor-
dante e unida de todos, quando todos sobre cada um e cada um sobre todos dispõem
exatamente o mesmo, isto é, só a vontade unida com tal caráter geral pode ser legis-
ladora.”7

Se interpretarmos em termos de uma procedimentalização jurídica do “prin-


cípio do discurso” este exercício da “vontade geral” a que se refere KanT (coisa à
qual o termo alemão Wille, vontade racional, se presta com exatidão), resulta que
chamon talvez seja muito mais kantiano do que ele próprio crê. Também para
chamon a idéia da maior medida possível de iguais liberdades básicas é a perspec-
tiva normativa da qual brota a forma jurídica. essa idéia é um postulado da razão
que não é susceptível de ulterior demonstração, sobre a qual chamon, nisso pro-
cedendo muito kantianamente, não procura dar também nenhuma demonstração
(coisa muito diversa dessa normatividade seria a explicação sociológica de como
se produz o desencadeamento da liberdade subjetiva que caracteriza a existência
moderna, o qual, considerando as coisas funcionalmente, não se pode regular de
outra maneira que não mediante normas de forma jurídica). Suposta a forma jurí-
dica, ou seja, suposta a legalidade, e a perspectiva normativa que representam as

6 KanT, immanuel. die metaphysik der Sitten, cit., p. 345.


7 KanT, immanuel. metaphysik der Sitten, cit., p. 432.
idéias de liberdade e igualdade, das quais a legalidade depende e que convertem a
legalidade no único meio pelo qual cabe obter legitimidade, é preciso dizer que
todo o direito (alles recht) provém dos processos discursivos juridicamente arti-
culados de criação e aplicação da lei.
e levando em conta que toda norma gera Berechtigungen, gera direitos sub-
jetivos, chamon expressa assim a idéia de KanT de que da vontade geral juridica-
mente procedimentalizada tem de provir todo direito (pois embora chamon se
refira aqui aos discursos de aplicação do direito, o que diz vale igualmente para os
discursos de geração do direito):

“Por direito subjetivo devemos compreender nada mais que o reconhecimento argu-
mentativo de uma esfera de liberdade; enquanto esfera de liberdade reconhecida na
praxis argumentativa, o direito subjetivo jamais está a pairar sobre nossas cabeças.
antes, tal noção depende da compreensão das situações de aplicação do direito como
situações jurídicas. diferentemente de JeLLineK, jamais podemos compreender direi-
tos subjetivos, quaisquer que sejam, como simples reconhecimento de uma ‘liberda-
de natural’. antes, o direito subjetivo representa um reconhecimento construído
argumentativamente numa praxis dependente da própria forma jurídica moderna
que não se fez independentemente de uma autonomia pública (e também outra pri-
vada) enquanto liberdades políticas reciprocamente referidas. Qualquer situação
jurídica, enquanto uma situação fática recortada na argumentação e interpretada à
luz do direito, não é algo, pois, que ‘está-aí’, mas antes, enquanto também algo argu-
mentativamente construído, dependente de problematizações e recortes sempre pas-
síveis de questionamentos no interior, ou não, de um determinado paradigma.”8

Sendo jurista, chamon tende, como digo, a ver o direito não tanto a partir
da perspectiva da geração de normas, mas sobretudo a partir da perspectiva de sua
aplicação. mas também por este lado, estou de acordo com ele, em que precisa-
mente a partir deste ponto de vista, “uma situação jurídica [...], enquanto também
algo argumentativamente construído, dependente de problematizações e recortes
sempre passíveis de questionamentos no interior, ou não, de um determinado
paradigma”. o que não quer dizer que, precisamente no que se refere ao discur-
so de aplciação, por exemplo no campo de aplicação do “sistema dos direitos”, isto
é, no da jurisprudência sobre direitos fundamentais, não necessitemos fazer um
ajuste, sistematicamente articulado, de como funciona essa prática. Parece-me que
exposições como a de h. FaLLon Jr.,9 claramente dependentes de dWorKin, se

8 chamon Junior. Lúcio antônio, Teoria geral do direito moderno, cit., p. 106 et seq.
9 FaLLon Jr., richard. constructivist coherence Theory of constitutional interpretation. in: harvard Law
review, vol. 100, n. 6, april 1987, p. 1189 et seq.
situam tão na linha de chamon sobre a idéia de situação jurídica, que chamon
poderia talvez aceitá-la. e assim fica completo nosso acordo.
mas esta não é exatamente a posição de haBermaS, como já disse. KanT (e
chamon o acompanha) parece dizer: a reivindicação básica de liberdade e igual-
dade implica a forma jurídica como único meio de gerar legitimidade, e inversa-
mente: a forma jurídica como único meio de gerar legitimidade só se mantém
sobre os princípios de liberdade e igualdade, que, por sua vez, só são soletráveis
mediante essa forma. e isso é uma fundamentação normativa da forma jurídica.
haBermaS, ao contrário, insiste em que a “forma jurídica” não pode ser objeto de
uma fundamentação normativa (não há nenhum postulado da razão do qual
brote), mas apenas objeto de uma justificação funcional. contudo, parece-me que
isso tem conseqüências muito importantes. haBermaS acredita poder introduzir a
perspectiva normativa da “maior medida possível de iguais liberdades básicas” a
partir de um conceito de razão comunicativa oposto ao de razão subjetiva. mas
creio que não o consegue. É o que vou passar a examinar.

ii. haBermaS: a Forma Jurídica Só É SuSceTíveL de uma


JuSTiFicação FuncionaL

Se chamamos “fonte de normatividade” àquele elemento do qual deriva dire-


tamente o sentido da legitimidade das normas, ou também àquele elemento mais
básico que intervém diretamente na definição de legitimidade de uma norma, no
“princípio geral do direito” de KanT intervêm dois elementos desse tipo, duas fon-
tes ou pólos de normatividade. Podemos formular assim o primeiro: eu vejo res-
tringido meu arbítrio pelo arbítrio dos demais, mas exatamente na medida em que
o arbítrio dos demais fica restringido pelo meu, após nos termos colocado argu-
mentativamente, tanto eu quanto os demais, na posição de todos e cada um, na
posição de qualquer um. ou seja: eu não fico submetido a outra regulamentação a
não ser àquela que todos em comum nos impusemos, como resultado de uma deli-
beração em que as razões que assistem a essa regulamentação foram compartilha-
das em comum por todos. esse é o elemento de lei ou norma geral, lei esta que tem
de proceder da “vontade unida de todos.” o segundo pólo de normatividade: o
objetivo da lei geral é o de assegurar a maior medida possível de iguais liberdades
subjetivas, pois a mim se faz injustiça quando me é impedida uma ação, conforme
a máxima segundo a qual meu arbítrio possa compatibilizar-se com o de qualquer
outro, conforme uma lei geral; a liberdade subjetiva reclama, portanto, maximiza-
ção; dito de outro modo: uma lei, por mais geral que seja, não é legítima se res-
tringe liberdades que em princípio pudessem compatibilizar-se, mediante outra
lei de diverso conteúdo. e isso tem de ser sempre considerado uma razão definiti-
va no processo argumentativo de geração de normas. e como disse, creio que
chamon compartilha essa idéia de KanT.
ora, diferentemente do que ocorre na “Filosofia do direito” de KanT, em
Facticidad y validez haBermaS introduz como única fonte ou pólo de normativi-
dade a idéia de “vontade geral” (rouSSeau) ou “vontade unida de todos” (KanT),
interpretada em termos de “princípio do discurso”. e já afirmei que essa interpre-
tação de haBermaS, que chamon também acompanha, é a melhor que atualmen-
te se pode fazer da idéia de rouSSeau de “vontade geral” ou da idéia de KanT de
“vontade unida de todos”.
Se existe algo que haBermaS deixa claro ao longo de Facticidad y validez é
que, em sua opinião, não é possível explicar o direito dos estados democráticos
de direito sem levar a sério a “estrutura intersubjetiva” dos direitos e a “estrutura
comunicativa da autolegislação”. e esta é uma idéia, repito, que chamon compar-
tilha por inteiro. Levar a sério a estrutura intersubjetiva dos direitos significa
introduzi-los em termos de uma “Teoria do discurso”, isto é, em termos de uma
teoria da razão prático-política, exposta em termos de Teoria da comunicação e
de Teoria da argumentação. É a partir de tal teoria que é preciso explicar o senti-
do normativo das três categorias de direitos (direitos de liberdade, direitos políti-
cos e direitos sociais), às quais se tornou habitual recorrer desde o ensaio de T. h.
marShaLL, “citizenship and social class”,10 ou das cinco categorias de direitos que,
como veremos em detalhe, compõem o “sistema dos direitos” de haBermaS.
de minha parte, estou de acordo com esta idéia de KanT, que chamon assu-
me, de que todo o direito (alles recht) provém do poder legislativo, que só com-
pete à vontade unida do povo. isto é, todo o direito tem de se fazer derivar do
exercício da autonomia cidadã. mas me parece que, precisamente quando
haBermaS formula essa dedução, seu conceito de razão comunicativa esbarra em
seus limites. haBermaS não consegue o que se propõe e fica claro o porquê disso:
o conceito de direito subjetivo não se deixa deduzir de um conceito de razão
comunicativa, oposto ao de razão subjetiva, tal como haBermaS formula ambos.
em vez disso, em seus trabalhos, acompanhando haBermaS, chamon decompõe o
conceito de “vontade geral” em termos de teoria da comunicação e da argumenta-
ção. mas se atém à idéia de KanT de que o que se trata no direito é de “liberdade
sob leis gerais provenientes da vontade unida de todos”, de maneira que é o sen-
tido normativo dessa liberdade subjetiva que subjaz à forma jurídica.
Para esclarecer as coisas, passarei a discutir a posição de haBermaS. Para isso
começarei introduzindo e discutindo separadamente os dois elementos básicos (a

10 marShaLL, T. h., “citizenship and social class”. em: class, citizenship and Social development, chicago
university Press, chicago, 1977.
“forma jurídica” e o “princípio do discurso”) com os quais haBermaS opera sua
Filosofia do direito.

ii.a.1. a noção de forma jurídica

do mesmo modo que KanT em sua “Filosofia do direito”, haBermaS introduz


o conceito de “forma jurídica” por meio de uma comparação entre o direito e a
moral.
Por “forma jurídica” ou por “normas de forma jurídica” haBermaS entende o
que KanT entende por “legalidade”, em contraposição à “moralidade”.
haBermaS descreve assim a forma jurídica:

“KanT, como dissemos, já havia caracterizado a legalidade ou forma jurídica das nor-
mas de ação mediante três abstrações que fazem referência ao destinatário do
direito, não a quem o estabelece. Primeiro, o direito se abstrai da capacidade dos
destinatários de ligar sua vontade por iniciativa própria e só conta com sua liberda-
de de arbítrio. Segundo, o direito se abstrai da complexidade que, no mundo da vida,
têm os planos de ação afetados pela regulamentação jurídica, e se restringe apenas à
relação externa das intervenções e operações interativas que atores definidos em ter-
mos sociais típicos podem exercer uns sobre outros. Terceiro, o direito se abstrai do
tipo de motivação e se contenta com que se produza o efeito de uma conformidade
com as normas, sejam quais forem as razões pelas quais se produz.”11

da primeira característica, que evidentemente é a mais importante,


haBermaS dá esta explicação mais detalhada:

“as normas jurídicas regulam relações interpessoais e conflitos entre atores que se
reconhecem como membros de uma comunidade abstrata, isto é, de uma comunida-
de que começa sendo gerada por normas jurídicas. Também elas (do mesmo modo
que as normas morais) estão dirigidas a particulares, mas esses particulares a quem as
normas jurídicas se dirigem são sujeitos que (diferentemente do que ocorre no caso
das normas morais) já não se distinguem por sua identidade pessoal desenvolvida em
termos biográficos, mas ficam individualizados por sua capacidade de ocupar a posi-
ção de membros (definidos em termos sociais típicos) de uma comunidade juridica-
mente constituída. a partir da perspectiva dos destinatários, prescinde-se, portanto,
numa relação jurídica, da capacidade de uma pessoa de ligar sua vontade por convic-
ções normativas; apenas se lhe atribui a capacidade de tomar decisões racionais con-
forme os fins, isto é, só se lhe atribui liberdade de arbítrio. desta redução da vonta-
de livre (Wille) de uma pessoa capaz de responder moralmente (e eticamente) por

11 haBermaS, Jürgen Faktizität und geltung, cit., p. 143.


seus atos ao arbítrio (Willkür) de um sujeito jurídico, determinado por suas próprias
preferências, resultam os demais aspectos da legalidade. Só matérias que se limitam
a ‘relações externas’ podem ser objeto de uma regulamentação jurídica. Pois, caso
necessário, o comportamento conforme a norma pode ser obrigatório mediante coer-
ção (e nada ‘interior’ pode ser obrigatório mediante coerção). isto explica, por sua
vez, o efeito individualizador que tem a norma jurídica (o efeito de encerrar o indi-
víduo em seu interior), efeito que certamente não desmente os fundamentos inter-
subjetivos que tem o direito como tal.”12

ii.a.2. diferenças em relação a Kant

essas afirmações de haBermaS encerram algumas importantes diferenças em


relação a KanT. vou comentar duas delas.
há uma primeira diferença que acredito ser muito básica. não se pode atri-
buir a KanT uma contraposição tão terminante e indiferenciada entre arbítrio
(Willkür) e vontade livre (freier Wille), contraposição que em haBermaS, como
depois veremos, acaba transformando-se em uma contraposição entre “liberdade
subjetiva” e “liberdade comunicativa”, o que não me parece admissível. Porque
para KanT a liberdade é só uma. Para ele, a vontade (Wille) é a mesma “faculdade
de apetição” que o “arbítrio” (Willkür), só que (diferentemente do que ocorre com
o arbítrio) não é considerada em relação à ação, mas ao motivo que determina a
ação. a vontade (Wille), para KanT, é arbítrio (Willkür) determinado pela razão,
e portanto arbítrio. o arbítrio determinado pela razão continua sendo arbítrio.
estamos falando, pois, de uma mesma “faculdade”, não de duas.
em segundo lugar, também me parece claro que, em oposição ao que acaba-
mos de ver em haBermaS, KanT não introduz o conceito de legalidade, isto é, o
conceito de forma jurídica, do ponto de vista de um destinatário de uma lei geral
de tipo coercitivo. KanT introduz esse conceito de legalidade do ponto de vista de
uma reivindicação de liberdades subjetivas ou de uma reivindicação de direitos
subjetivos de liberdade, ou seja, do ponto de vista de uma defesa do exercício da
liberdade de alguém, isto é, do ponto de vista da exigência de se tratar alguém
(enquanto livre, ou seja, enquanto dotado de “arbítrio”) como um fim em si. creio
não ser infiel às idéias de KanT que resumi no início, se parafraseio assim algumas
delas: “É de direito toda ação conforme a máxima segundo a qual o exercício do
meu arbítrio possa compatibilizar-se com o arbítrio de todos os demais, segundo
uma lei geral. Portanto, faz-me injustiça quem obstrui alguma ação minha que
represente um exercício do meu arbítrio, sujeito à condição restritiva que acabo
de enunciar, e isso tanto no caso de minha ação poder ser considerada moralmen-

12 haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, cit., p. 143 s.


te admissível, ou eticamente admissível, quanto no caso de responder a preferên-
cias cujo exercício represente uma manifesta vulneração de leis morais e leis éti-
cas. Porque no que diz respeito ao exercício do meu arbítrio, sujeito à restrição
desse princípio, não devo ser considerado apenas como um meio (tão pouco como
meio de uma excelência moral ou ética minha, caso fosse pensável realizar tal
coisa mediante o direito), mas sempre também como um fim em si”.
como terceiro ponto, quero sublinhar a referência de haBermaS ao
vereinzelungseffekt, isto é, ao efeito de individuação, ao efeito de isolamento, ao
efeito de remeter ao indivíduo sua própria subjetividade, ao efeito de deixar soli-
tário o indivíduo, que a forma jurídica possui; ou poderíamos também dizer: a
“forma jurídica” introduz um elemento de irreferenciabilidade ou de insociabili-
dade na própria sociabilidade juridicamente articulada; ou poderíamos também
dizer: na forma jurídica, tudo isso se expressa também e adquire existência social,
isto é, na forma jurídica adquire existência a forma específica de “sociável insocia-
bilidade” (KanT) do homem moderno. haBermaS acrescenta que “isso não des-
mente os fundamentos intersubjetivos que tem o direito como tal”, no sentido de
que a dignidade deste tem como única fonte a idéia de cidadania e o exercício da
cidadania. mas, como veremos, é essa precisamente a questão. em certos momen-
tos, observações mínimas de haBermaS encerram todo um continente de questões,
às vezes as questões mais decisivas, às quais ele não retorna. Pois bem poderia ser
que as coisas ocorressem ao contrário, isto é, que seja precisamente dessa
vereinzelung do sujeito moderno da qual dependem tanto a forma jurídica no
sentido moderno como a própria razão comunicativa moderna. Sobre isso ainda
retornarei.

ii.a.3. a não-fundamentabilidade normativa da forma jurídica

uma vez que haBermaS reformula o conceito de legalidade ou de forma jurí-


dica de KanT, e é isso o que mais me importa aqui, ele dá um passo decisivo no que
diz respeito à sua construção do conceito de direito. diz haBermaS:

“esta explicação da forma jurídica é ingrediente de uma explicação funcional, mas


não de uma fundamentação normativa do direito. Pois a forma jurídica não é
nenhum princípio que se possa fundamentar, seja em termos epistemológicos, seja
em termos normativos [...].”13

no texto de Facticidad y validez, haBermaS se contenta com essa breve


observação. Só no final da edição atual do livro, no epílogo de 1994, ele explica

13 haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, cit., p. 143.


algo mais detalhadamente sobre esta passagem decisiva. digo “decisiva” porque é
a que propriamente implica o negar diretamente normatividade à idéia de liber-
dade subjetiva moderna. Pois não esqueçamos que, como sublinha repetidamente
haBermaS, a forma jurídica “está recortada na medida da liberdade subjetiva”. isto
é, forma jurídica e liberdade subjetiva vão juntas.
no epílogo de 1994 haBermaS explica assim esta passagem:

“o direito positivo com o qual nos encontramos na época moderna, como resultado
de uma aprendizagem social, oferta-se a si mesmo, em virtude de suas propriedades
formais, como meio adequado para a estabilização de expectativas de comportamen-
to; para isso não parece existir nas sociedades complexas nenhum equivalente fun-
cional. a Filosofia se propõe a uma tarefa desnecessária quando trata de demonstrar
que o direito não é somente iniludível por razões funcionais, mas também por razões
morais é obrigatório organizar nossa convivência em termos jurídicos, isto é, formar
comunidades jurídicas.”14

ou seja, segundo haBermaS, o homem moderno encontra-se com o fato de


não poder regular sua convivência a não ser com normas de forma jurídica, isto é,
com normas jurídicas. e isso é um fato sobre o qual não há que fazer mais rodeios
(KanT, e chamon o acompanha, pensa que não se trata apenas de um fato, mas de
uma genuína exigência normativa, de um postulado da razão). uma vez que
damos por certo esse fato, a questão é como conseguir uma ordem de tais normas
que seja legítima. e a resposta de haBermaS é: convertendo em procedimento jurí-
dico de geração (e de aplicação de normas) o “princípio do discurso”, dando-lhe
forma jurídica.

ii.a.4. outra diferença muito básica em relação a Kant

como disse, parece-me que para KanT o “esclarecimento da forma jurídica”


é, sem dúvida alguma, ingrediente de uma fundamentação normativa do direito.
haBermaS, como se viu, afirma exatamente o contrário. e a diferença está longe
de ser apenas uma sutileza.
Para KanT, a forma jurídica, isto é, a forma que a legalidade representa (lega-
lidade se opõe aqui à “moralidade”), é a que torna possível uma relação recíproca
do arbítrio de cada um com o arbítrio do outro, ou com o arbítrio de todos os
demais, na qual o que entra em consideração não é a matéria, mas apenas “a forma
da relação entre ambos os arbítrios, enquanto se considera a estes simplesmente

14 haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, segunda edição, Frankfurt, 1994, p. 677.
como livres, e atendendo à condição de a ação de um deles ser conciliável com a
liberdade do outro, conforme leis gerais”.
e precisamente com tal relação que a forma jurídica possibilita (e que não
poderia possibilitar-se de nenhum outro modo senão com normas de forma jurí-
dica) é que o “princípio geral do direito” tem a ver. esse princípio é para KanT,
como se viu, um “imperativo categórico da razão”. e se o “princípio do direito”
representa tal “imperativo categórico da razão” (referente à relação externa dos
arbítrios enquanto livres), resulta que a forma jurídica que essencialmente o vei-
cula forma também parte desse imperativo da razão. dito de outro modo: se o
princípio “é de direito toda ação conforme a máxima segundo a qual minha liber-
dade é compatível com a de qualquer outro, conforme uma lei geral” é um impe-
rativo da razão, e no direito só se trata disso, de compatibilizar arbítrios median-
te leis gerais, então a forma jurídica das leis mediante as quais se opera tal compa-
tibilização (e não haveria outra forma de fazê-lo) forma parte desse imperativo.
a forma jurídica é, portanto, para KanT (e para chamon) ingrediente de uma
justificação normativa e objeto direto de uma fundamentação normativa. em
outros termos: a forma jurídica é parte da justificação da legitimidade dos supos-
tos ético-políticos mais básicos da idade moderna, que não seriam concebíveis
senão no meio geral da forma jurídica. Pois uma norma cuja legitimidade se meça
apenas pela generalidade com que compatibiliza arbítrios, isto é, por assegurar a
todos por igual a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação, isto é,
mediante a qual o arbítrio enquanto livre seja tratado como um fim em si, só pode
ser (repitamos) uma norma de direito positivo, não uma norma ética (no sentido
de uma norma integrante de um ethos), nem uma norma moral.

ii.a.5. o “desencadeamento moderno da liberdade subjetiva”

através do exposto, parece-me que fica conceitualmente claro o que quer dizer
haBermaS quando afirma que a explicação da forma jurídica é só ingrediente de uma
explicação funcional. isso, digo agora com outras palavras do próprio haBermaS, sig-
nifica historicamente, ou sociologicamente, o seguinte: o desencadeamento moder-
no da liberdade subjetiva (o pensar cada um o que quer e o viver cada um como
quer), o desmoronar das eticidades tradicionais (isto é, as reduções do ethos tradi-
cional global a pura convenção), a correspondente sublimação da moral em uma
moral puramente abstrata e racional (que para haBermaS só dá provisão para juízos
corretos, mas não assegura a adequada motivação – haBermaS está pensando sobre-
tudo na moral formal kantiana),15 e as necessidades de organização de gigantescos

15 cf. haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, Frankfurt, 1992, p. 145.


âmbitos de ação racional segundo certas finalidades (como, por exemplo, os que
representam a economia moderna ou uma administração estatal moderna), tudo isso
representa para as sociedades modernas problemas de integração que só podem ser
resolvidos mediante a introdução em massa de normas de “forma jurídica”, isto é,
convertendo a “forma jurídica”, a legalidade, no meio básico da integração norma-
tiva das sociedades modernas. e isso quer dizer: tais problemas só podem ser resol-
vidos introduzindo-se, por assim dizer, um sistema de sinais de tráfego social, cujas
indicações, caso necessário, se possam fazer valer coercitivamente.
mas tanto a análise conceitual como este raciocício histórico significam (o
que importa em nosso contexto) que o “desencadeamento da liberdade subjetiva”
e as conseqüências desse desencadeamento são para haBermaS apenas um elemen-
to (ou o elemento básico) da explicação da funcionalidade e inevitabilidade da
introdução em massa de normas de forma jurídica. o que quer dizer: o fato de
que, como conseqüência do desencadeamento da liberdade subjetiva, as socieda-
des modernas em conjunto só se possam integrar recorrendo em massa e sistema-
ticamente a esse tipo de normas, a normas jurídicas, a normas de direito positivo,
é, para haBermaS, um fato não ultrapassável para a consideração normativa, mas
não algo que tenha de ser objeto de uma justificação normativa. É assim, e ponto.
dito de outro modo: levando-se em conta a “condição humana moderna”, a inte-
gração das sociedades modernas só se pode operar mediante normas de tipo jurí-
dico, isto é, mediante direito positivo, ou seja, por via de legalidade, não de ethos.
e isso é um fato do qual a consideração normativa tem de partir, e não algo que a
consideração normativa tenha de converter em objeto de uma justificação norma-
tiva. a “condição humana moderna” também é um ponto de partida para a
Filosofia moderna; não algo que a Filosofia política moderna tenha de principiar
justificando ou compreendendo normativamente, ou compreendendo na legitimi-
dade que lhe assiste. a liberdade subjetiva moderna é para haBermaS um factum,
não alguma instância normativa, diferentemente do que sucede em KanT.

ii.a.6. Leis coercitivas e leis da liberdade

repito: tudo isso equivale a dizer que, na reconstrução normativa feita por
haBermaS do conceito de direito, desaparece por completo a liberdade subjetiva
como fonte de normatividade; a liberdade subjetiva fica exclusivamente converti-
da no elemento fático que é preciso regular. desaparece, portanto, a idéia de KanT
de que a liberdade, que é uma, segundo seu próprio conceito ou idéia, aparece
limitando-se a si própria.
e assim haBermaS pode dizer (comentando KanT no segundo capítulo de
Facticidad y validez) que, quando olhadas do ponto de vista de sua funcionalida-
de, as normas jurídicas são apenas normas coercitivas; mas que essas mesmas leis,
para serem consideradas legítimas, têm de poder ser consideradas também como
“leis da liberdade”, no sentido de que seus autores fiquem também efetivamente
sujeitos a elas; mas de tal maneira que esta segunda condição seria um problema
diverso do de sua coercitividade. Liberdade (ou seja, a liberdade dessas “leis da
liberdade”) já não pode significar aqui “liberdade subjetiva”, mas apenas “liberda-
de comunicativa”, isto é, autonomia cidadã. a liberdade subjetiva é o elemento a
“normar”, não o elemento “normante” (nem tão pouco é parte dele).
Para ver o que haBermaS entende por “liberdade comunicativa”, por liberda-
de dessas “leis da liberdade”, vou passar a considerar o segundo elemento da cons-
trução ou reconstrução que ele faz do conceito de direito moderno, isto é, o “prin-
cípio do discurso”, o elemento que é fonte de normatividade.

ii.b.1. Princípio do discurso e princípio democrático

em nosso contexto, podemos entender exatamente o que haBermaS chama


“princípio do discurso” como um propósito de reformular tanto a idéia de “vontade
geral” de rouSSeau como a idéia de “vontade unida de todos” de KanT, assim como
também a idéia kantiana de “imperativo categórico”. mas, para haBermaS, trata-se de
uma interpretação por meio da qual ele arranca essas três idéias de seu enraizamento
na Filosofia moderna do sujeito ou na Filosofia moderna da consciência e as assenta
em uma teoria da comunicação. e é a interpretação em termos da Teoria da
comunicação o que leva essas três idéias a se solapar, e inclusive a se converter em
uma só, pelo menos no que diz respeito à fonte de legitimidade (ou “retidão” norma-
tiva) que representam. em suma, o que haBermaS chama “princípio do discurso” é um
princípio de legitimidade que, expressando-nos de modo algo impreciso e despreocu-
pado, vale tanto para a “ética do discurso” como para a “Teoria discursiva do direito”.
Pois afirma haBermaS que o “princípio do discurso” é

“ainda neutro frente à moral e ao direito; refere-se a normas de ação em geral [...] o
princípio de discurso só explica o ponto de vista, sob o qual as normas de ação em
geral podem imparcialmente fundamentar-se, e para dizer isto parto de que o pró-
prio princípio se funda nas relações simétricas de reconhecimento que caracterizam
a estruturação comunicativa das formas de vida.”16

aqui deixaremos de lado esta última questão, a árdua questão da fundamen-


tação do “princípio do discurso”; consideremo-la resolvida. em nosso contexto,
basta-nos então dizer que haBermaS, partindo do “princípio do discurso”, intro-

16 haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, cit., p. 138.


duz tanto o que ele chama “princípio democrático” como o que chama “princípio
moral”. o “princípio democrático” “resulta, pois, de uma especificação do ‘princí-
pio do discurso’ para aquelas normas de ação que aparecem em forma jurídica”.
cabe dizer o mesmo sobre o princípio moral; ou seja, o princípio moral resulta da
correspondente especificação do “princípio do discurso” para aquelas “normas de
ação que aparecem em forma moral”. e aqui nos contentaremos com a noção
intuitiva da diferença entre legalidade e moralidade, que obtivemos de KanT.
ora, o “princípio de discurso” reza assim: “Só são válidas aquelas normas de
ação às quais todos os possíveis afetados por elas tenham podido manifestar seu
assentimento como participantes em discursos racionais.” e por “discurso racio-
nal” ou por “discussão racional” haBermaS entende uma discussão organizada em
termos tais que seus resultados tenham a seu favor a presunção de contar com os
melhores argumentos, isto é,

“toda intenção de entender-se acerca de pretensões de validade problematizadas, na


medida em que se produz sob condições de comunicação que permitem o livre e
público processamento de temas e de contribuições a esses temas, de informações e
de argumentos. indiretamente essa expressão se refere também às negociações, na
medida em que estas venham reguladas mediante procedimentos que tenham sido
objeto de tal fundamentação ou justificação discursivas.”17

ii.b.2. Liberdade comunicativa

Pressuposto do “discurso” é, portanto, a “liberdade comunicativa”, que


haBermaS distingue estritamente da liberdade subjetiva ( à qual também chama às
vezes “liberdade negativa”). Por “liberdade comunicativa” haBermaS entende (e,
por certo, sempre em direta contraposição à “liberdade subjetiva”)

“a possibilidade reciprocamente pressuposta na ação orientada a se entender, de se


posicionar frente a uma elocução ou manifestação de um próximo e frente às preten-
sões de validade estabelecidas com essa manifestação, as quais se dirigem a um reco-
nhecimento intersubjetivo. isso comporta obrigações, das quais as liberdades subje-
tivas protegidas pelo direito desligam ou desatam. a liberdade comunicativa só se dá
entre atores que, em atitude performativa, querem entender-se entre si sobre algo e
esperam uns de outros tomadas de posição (posicionamentos) frente às pretensões de
validade que se estabelecem uns a outros [...] e, como os sujeitos que atuam comuni-
cativamente se comprometem de antemão a fazer depender a coordenação de seus
planos de ação de um acordo baseado nos mútuos posicionamentos, ante (e no reco-
nhecimento intersubjetivo de) pretensões de validade, só podem contar as razões que

17 haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, cit., p. 138 s.


possam ser aceitas em comum pelas partes implicadas. São sempre as mesmas razões,
isto é, razões compartilhadas como razões, as que têm para aqueles que atuam comu-
nicativamente uma força racionalmente motivadora. ao contrário, para um ator que
toma suas decisões em virtude de sua liberdade subjetiva, não tem em princípio
muita importância a questão de que as razões que se tornam decisórias para ele sejam
também aceitas pelos outros. daí que a autonomia privada do sujeito de direito possa
entender-se essencialmente como a liberdade negativa de abandonar a zona pública
de obrigações ilocucionárias recíprocas (isto é, de abandonar a zona da necessidade
de se posicionar em relação às pretensões de validade ligadas ao que diz o próximo,
buscando razões que possam ser aceitas em comum) e se retrair a uma posição de
observação mútua e de mútuo exercício de influências empíricas [...] as liberdades
subjetivas de ação autorizam o abandono da ação comunicativa [...] Fundam uma
privacidade que libera da carga anexa a uma liberdade comunicativa reciprocamen-
te reconhecida e mutuamente suposta e exigida [...].”18

ii.c.1. a idéia de “gênese lógica” do “sistema de direitos”

até aqui introduzi o elemento não normativo ou elemento funcional (forma


jurídica) e o elemento normativo ou elemento fonte de normatividade (princípio
de discurso), com os quais opera haBermaS em sua Teoria do direito. Passo agora
ao que é o centro dessa teoria, à dedução do “sistema de direitos”, a partir de ambos.
a existência coletiva moderna não se pode regular a não ser mediante nor-
mas de forma jurídica: é o que temos visto em haBermaS. mas uma norma não
pode desviar-se da questão de sua legitimidade. Podemos entender então o direito
dos estados democráticos de direito da seguinte maneira: a forma jurídica incor-
pora (juridicizando-as) suas próprias condições de legitimidade. Basicamente,
essas condições têm de se reduzir ao “princípio do discurso”, pois só “o princípio
do discurso faz explícito o ponto de vista a partir do qual uma norma pode funda-
mentar-se”. Por meio da juridicização, o princípio do discurso se converte em
princípio democrático. Tal princípio (os direitos políticos, a estruturação jurídica
da autolegislação) torna-se então o núcleo de um “sistema de direitos” que tem nos
demais direitos fundamentais a condição do seu exercício. Portanto, o capítulo de
direitos básicos que asseguram a legitimidade do direito dos estados
democráticos de direito terá de ser entendido como resultado lógico do processo
de juridicização de condições de legitimidade, do processo de entrelaçamento
entre a forma jurídica (que já supomos aí como “resultado de um processo histó-
rico de aprendizagem” e que supomos “necessária por razões funcionais”) e o prin-
cípio do discurso do qual deriva a legitimidade das normas.

18 haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, cit., p. 152 s.


ii.c.2 . o “sistema de direitos”

esse entrelaçamento começa (logicamente) com a aplicação do “princípio do


discurso” à juridicização das “liberdades subjetivas de ação” modernamente desli-
gadas. este primeiro conjunto de direitos é, para haBermaS, “constitutivo da
forma jurídica como tal” e é também constitutivo da idéia de “sujeito de direito”,
pois a forma jurídica “está recortada na medida de liberdades subjetivas de ação”.
uma vez introduzida a forma jurídica, e em termos tais que “sempre já” se tenha
presente o “princípio do discurso”, esse entrelaçamento implica a institucionaliza-
ção dos direitos diretamente relacionados com o exercício “discursivo” da autono-
mia política, isto é, com a juridicização formal do “princípio do discurso”, em ter-
mos de “princípio democrático”, ou seja, com a institucionalização dos “direitos
políticos”, isto é, com a institucionalização da idéia de “cidadania”, com a institu-
cionalização do “cidadão” no sentido de rouSSeau.
Por isso diz haBermaS: “daí que o princípio democrático só possa aparecer
como núcleo de um sistema de direitos. a gênese lógica desses direitos constitui
então um processo circular ou movimento circular, no qual o código, que é o
direito e o mecanismo para a geração de direito legítimo, isto é, o “princípio
democrático”, se constituem co-originalmente. a exposição procede do abstrato
ao concreto; a concreção se produz à medida que a perspectiva que inicialmente a
exposição apresenta de fora (a da legitimidade do direito) vai ficando internaliza-
da pelo próprio sistema de direitos que se expõe”.19
Para argumentar (brevemente) com a exposição de haBermaS, digamos ape-
nas que em tal processo circular se constituem (sempre no sentido da menciona-
da “gênese lógica”, ou seja, gradualmente) cinco categorias de direitos, começan-
do pelos direitos subjetivos de liberdade. São as seguintes:20

1) direitos fundamentais “que resultam do desenvolvimento e configuração politica-


mente autônomos do direito à maior medida ou grau possível de iguais liberdades
subjetivas de ação”.

esses direitos, diz haBermaS, exigem como correlatos necessários:

2) direitos fundamentais “que resultam do desenvolvimento e configuração politica-


mente autônomos do status de membro da associação voluntária que é a comuni-
dade jurídica”;

19 haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, cit., p. 155.


20 haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, cit., p. 155 ss.
3) direitos fundamentais “que resultam diretamente da acionabilidade dos direitos,
isto é, da possibilidade de reclamar judicialmente seu cumprimento, e do desen-
volvimento e configuração politicamente autônomos da proteção dos direitos
individuais”;
4) direitos fundamentais “de participar em igualdade de oportunidades em proces-
sos de formação da opinião e da vontade comuns, nos quais os cidadãos exercem
(exerçam) sua autonomia política e mediante os quais estabelecem (estabeleçam)
direito legítimo”;
5) direitos fundamentais “de que se garantam condições de vida que sejam social,
técnica e ecologicamente asseguradas, na medida em que isso for necessário em
cada caso, para gozo em termos de igualdade de oportunidades dos direitos civis
mencionados de 1 a 4”.

ii.c.3. direitos de pertencimento e a questão do poder

uma das perplexidades que essa dedução suscita é que, no trânsito do abstra-
to ao concreto, no que diz respeito aos direitos da segunda categoria, ocorre que,
tal como está redigida esta passagem, tem-se de dar por certa a constituição da
comunidade política autônoma, antes de se introduzirem os direitos de pertenci-
mento que a circunscrevem. recorrendo à linguagem da declaração de 1789,
antes que o povo francês, através de seus representantes constituídos em
assembléia nacional, possa definir de forma politicamente autônoma direitos de
pertencimento à comunidade político-jurídica, esse povo é o que é e esses repre-
sentantes são o que são porque o poder do rei os reuniu. ao definir a relação entre
os direitos da segunda categoria e os direitos da quarta como uma passagem do
abstrato ao concreto, haBermaS está abstraindo da questão bem concreta da rela-
ção entre poder político e direito no próprio momento em que se funda, no pró-
prio momento da projeção de um “sistema de direitos”. haBermaS só consegue ver
o poder comunicativo gerado no exercício dos direitos da quarta categoria. não só
carL SchmiTT mas também KanT, em sua “Filosofia do direito”, viram outro gêne-
ro de poder relacionado com os direitos da segunda categoria. a contingência ori-
ginal da comunidade política, isto é, as relações de poder que estão na base da pri-
meira reunião dos membros que estão autoconstituindo-se em comunidade jurí-
dico-política, convertem-se, para a comunidade política, em um destino que tal-
vez não seja exatamente absorvível em termos de comunicação. na origem dos
estados, como bem sublinha KanT, não há poder comunicativo, mas poder talvez
não passível de resultar em comunicação. esta é uma questão que está na base do
árduo problema político dos nacionalismos. mas não posso entrar aqui nessa
importante questão.
ii.c.4. a maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação

mais além de toda uma série de perplexidades suscitadas pela “dedução” de


haBermaS, nas quais, como disse, não posso entrar aqui, creio que essa dedução
levanta uma questão que afeta em cheio sua construção da gênese lógica do siste-
ma de direitos e, portanto, sua construção do conceito de direito legítimo.
nas explicações dadas por haBermaS das três primeiras categorias de direitos,
sobretudo da primeira, o texto se torna não só obscuro e desordenado, mas tam-
bém contraditório. e o que aqui me interessa é a contradição em que, a meu ver,
haBermaS incorre.
É a seguinte: ao introduzir a primeira categoria de direitos, haBermaS fala de
“direitos que resultam da configuração democrática do direito à maior medida
possível de iguais liberdades subjetivas de ação”. mas isso não se entende. dir-se-ia
que, se é possível falar assim, então existe um direito anterior à “gênese lógica do
sistema de direitos” e essa gênese o toma, de certo modo, como base. o que é um
contra-senso em relação às explicações do autor; pois também os direitos da pri-
meira categoria têm de ser entendidos como direitos que discursivamente come-
çarão outorgando-se reciprocamente (na assembléia constituinte) aqueles que, nas
condições modernas de existência, querem regular legitimamente, isto é, demo-
craticamente, sua convivência, mediante o direito positivo.
mas esse contra-senso ou essa contradição não é casual. Já vimos que é sem-
pre a mesma a resposta de haBermaS à questão de como se constituem intersub-
jetivamente direitos de liberdade que facultam o aparecimento de todo contexto
de comunicação; consiste em dar voltas e mais voltas em torno da funcionalidade
da forma jurídica, isto é, em torno da idéia de que a “insociabilidade” da liberda-
de subjetiva não é o “normatizante”, mas o “normatizado”:

“o meio que representa o direito, considerado como tal, pressupõe direitos que
definem status de sujeitos de direito como portadores de direitos. estes direitos
estão recortados na medida da liberdade de arbítrio de atores tipificados e conside-
rados cada um em separado, isto é, na medida de liberdades subjetivas de ação, que
se outorgam em termos condicionais. o primeiro aspecto, ou seja, o de que o arbí-
trio (regido por interesses) de sujeitos que atuam na atitude de orientar-se para
conseguir seu próprio êxito, o de que tal arbítrio, digo, fique desligado, solto, ou
desvinculado dos contextos da ação orientada pelo entendimento, que são os con-
textos criadores de obrigações, é só o reverso do segundo aspecto, a saber: o da
coordenação da ação através de normas coercitivas que limitam os espaços de
opção a partir de fora. isso explica a posição fundamental que ocupam os direitos
que asseguram (ao mesmo tempo que fazem compatíveis entre si) liberdades sub-
jetivas individualmente imputáveis. essas liberdades garantem uma autonomia pri-
vada que se pode também descrever como uma liberação relativa às obrigações da
liberdade comunicativa.”21

ora (e com isso voltamos à contradição ou contra-senso de que falo), se as leis


ditadas democraticamente só “limitam os espaços de opção a partir de fora” (isto
é, limitam a partir de fora a medida de liberdades subjetivas), ou seja, se não é a
própria liberdade subjetiva que no direito se dá existência social, limitando-se a
si própria, conforme sua própria idéia, como pensava KanT, então não se entende
por que a primeira categoria de direitos implica “o direito à maior medida possí-
vel de liberdades subjetivas de ação”.
isso será assim, ou terá de ser assim, ou deverá ser assim, se é funcionalmen-
te necessário, mas não se não o é, e ainda menos se em algum caso ou em deter-
minados âmbitos sociais se torna disfuncional, já que a forma jurídica (que funda-
mentalmente se constitui, segundo haBermaS, pela introdução desse gênero de
direitos de liberdade) só é objeto de uma justificação funcional e nada mais. Será
a liberdade subjetiva a que talvez, em caso de disfunções, terá de acomodar-se às
exigências funcionais do conjunto, em vez de exigir do conjunto o projetar-se ou
articular-se funcionalmente, conforme a exigência normativa da maior medida
possível de iguais liberdades subjetivas.
iluminemos outro lado da contradição. ao comentar a primeira categoria de
direitos, haBermaS se refere ao “princípio geral do direito” de KanT, e diz: “no
princípio geral do direito de KanT é o ingrediente que representa a lei geral aqui-
lo que sustenta a carga da legitimação [...].” isso já não pode surpreender-nos, se a
única fonte de legitimidade é o princípio do discurso. mas haBermaS acrescenta:

“as normas de ação que aparecem em forma de direito autorizam os atores a tornar
efetivas suas liberdades subjetivas de ação. a questão de quais dessas leis são legíti-
mas não pode ser respondida atendendo-se apenas à forma de direitos subjetivos. Só
com ajuda do princípio de discurso (levando-se em conta as condições de reciproci-
dade que implica), mostra-se que qualquer um tem direito à maior medida possível
de iguais liberdades subjetivas de ação. São legítimas apenas aquelas regulamentações
que satisfaçam a esta condição da compatibilidade dos direitos de cada um com iguais
direitos de todos. o princípio do direito de KanT coincide com este direito geral a
iguais liberdades, pois a única coisa que chega a dizer é que se deve estabelecer um
código jurídico em forma de direitos subjetivos legitimamente distribuídos, que
garantam a proteção da autonomia privada dos sujeitos jurídicos.”22

21 haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, cit., p. 151 s.


22 haBermaS, Jürgen. Faktizität und geltung, cit., p. 157.
neste parágrafo, haBermaS sublinha que é só mediante o “princípio do dis-
curso” (que inicialmente é aplicado pelo teórico a partir de fora) que se pode mos-
trar que qualquer um tem direito à maior medida possível de iguais liberdades
subjetivas de ação. haBermaS põe em itálico os termos “qualquer um” e “iguais”,
mas não a expressão “a maior medida possível”, e com razão, já que uma lei ver-
dadeiramente geral pode assegurar iguais liberdades subjetivas de ação a qualquer
um, sem necessidade de se propor que a medida delas seja a maior possível. isso é
óbvio, se a única coisa que diz o princípio geral do direito de KanT é que “tem-se
de estabelecer um código jurídico de direitos subjetivos legitimamente distribuí-
dos”, isto é, distribuídos conforme um princípio de reciprocidade. mas já vimos
anteriormente que não é isso o que diz KanT.
Portanto, a exigência da “maior medida possível de iguais liberdades subjetivas
de ação”, a que se refere a primeira categoria de direitos, nem se acompanha neces-
sariamente de razões de funcionalidade, pois de tais razões só se pode acompanhar
contingentemente, nem tão pouco se acompanha da idéia de lei geral incluída no
princípio do direito de KanT, que é aquela (isso acabamos de ver em haBermaS) que
sustenta a carga de uma legitimação operada em forma de razão comunicativa cida-
dã. então, de quê se acompanha? ou seja, de onde vem a haBermaS esse “direito à
maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação”, em cuja elaboração
democrática têm de consistir os direitos da primeira categoria? a resposta de KanT
é clara: do próprio princípio do direito, que é uma exigência da razão:

“É de direito toda ação conforme a máxima segundo a qual meu arbítrio seja compa-
tível com o de qualquer um, conforme uma lei geral [...] Portanto, faz-me injustiça
quem me impede de uma ação conforme a máxima segundo a qual meu arbítrio possa
conciliar-se com o de qualquer um, conforme uma lei geral.”

isso é uma exigência normativa genuína, que nem estritamente coincide com
a exigência de genuína generalidade, à qual tem de ficar submetida a produção da
lei geral que se postula, nem com exigências de funcionalidade.
mas, diferentemente do que ocorre em KanT, em haBermaS essa exigência
(a “da maior medida possível de liberdades subjetivas de ação”) não é, nem pode
ser, uma exigência de princípio. Portanto, quando haBermaS fala de “direitos fun-
damentais” que “resultam da configuração politicamente autônoma do direito ao
maior grau ou medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação”, não se sabe
bem de quê está falando. Pois em haBermaS esses direitos fundamentais se acom-
panham certamente da configuração politicamente autônoma do factum (não
ultrapassável para a consideração normativa) do desencadeamento moderno das
liberdades subjetivas, mas não da elaboração democrática de um “direito à maior
medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação.” Tal direito, que, sem
mais mediações nem explicações, haBermaS toma de KanT (através de raWLS), é
um corpo estranho em sua Teoria do direito. e como é claro que a dedução desse
direito (isto é, de um genuíno direito à maior medida possível de iguais liberdades
subjetivas de ação) representa um desideratum desta teoria, proposta em termos
de razão comunicativa, resulta que o conceito de direito subjetivo básico repre-
senta o limite do conceito de razão comunicativa de haBermaS. É esta a conclu-
são a que eu queria chegar nesta seção do meu estudo. e nisso chamon não acom-
panha haBermaS. Parece-me que, para chamon, a exigência da maior medida pos-
sível de iguais liberdades básicas é uma exigência normativa genuína.
ora, existe a tentação de se dar um passo mais, o que fiz em outra ocasião. esse
passo consistiria em acrescentar mais ou menos o seguinte (isso dizia eu mesmo em
uma exposição, há alguns anos): “não há dúvida de que, mediante seu conceito de
razão comunicativa, haBermaS consegue uma aceitável articulação do conceito
normativo de cidadania, mas não consegue dar razão de todo o princípio geral do
direito de KanT. Portanto, se assim é, o conceito de direito subjetivo representa
também o limite do próprio conceito de cidadania. e esse não é um limite qualquer;
é no conceito moderno de liberdade subjetiva que fracassam o conceito de razão
comunicativa e a exclusividade normativa que, em teoria política, haBermaS quer
dar ao conceito de cidadania (não é, pois, necessário apressar-se demais na hora de
transitar do paradigma da razão subjetiva para o paradigma da razão comunicativa,
como exige haBermaS). e hoje, certamente, não são escassas as propostas de um ou
outro tipo que queiram operar exclusivamente com esse conceito. a todas, talvez,
se poderia fazer basicamente a mesma crítica.” creio que chamon não estaria com-
pletamente de acordo com o que acabo de dizer. e a verdade é que eu tão pouco
estou completamente de acordo com essa minha posição de alguns anos atrás.
chamon, acompanhando KanT, vê por demais radicalmente articulados os direitos
subjetivos, em termos de razão comunicativa, em termos de situação argumentati-
va jurídica, para admitir essa contraposição entre razão subjetiva e razão comuni-
cativa. e hoje me parece que o que não se torna aceitável nessas propostas de
haBermaS não é que ele não dê (que não consiga dar conceitualmente) um genuí-
no sentido normativo à exigência da maior medida possível de iguais liberdades
subjetivas, em que pese ser isso um desideratum de sua teoria, mas o que não se
torna aceitável é a contraposição por ele estabelecida entre razão subjetiva e razão
comunicativa, ou melhor, entre liberdade subjetiva e liberdade comunicativa. vejo
que também chamon reluta em admitir tal contraposição. Seus trabalhos me con-
firmaram o que também eu há tempos pesquisava.
Parece-me que já hegeL, na última parte do capítulo vi da Fenomenología
del espíritu (que acabo de traduzir),23 dá uma forma conceitual precisa a essa

23 hegeL, georg Wilhelm Friedrich, Fenomenología del espíritu, Pré-textos, valencia, 2006, p. 734 ss.
questão. Tal como hegeL vê as coisas, a razão subjetiva moderna, precisamente,
quando descobre ser absoluta (como não tendo outro limite que não seja a igual
liberdade de todos os demais), só pode recorrer à mediação lingüística para fazer-
se viável. a razão comunicativa não é outra senão a razão subjetiva, ao se consi-
derar, a si própria, como absoluta. É o que vou passar a ver, não para discuti-lo em
termos de hegeL, mas recorrendo a posições de haBermaS.

iii. de como a LiBerdade SuBJeTiva e a LiBerdade comunicaTiva São


a meSma LiBerdade

no final do trabalho que venho citando, chamon aborda essa mesma questão
em um contexto diverso, o de uma discussão em torno de questões e conceitos de
direito Processual. diz o seguinte:

“o que vale ressaltar é que todas as interpretações e propostas aqui oferecidas somen-
te podem ser compreendidas e assumidas quando se compreende a praxis do direito
constitucional enquanto garantidora e instituidora das condições de produção de legi-
timidade na modernidade. afinal, somente mediante uma interpretação discursiva dos
direitos fundamentais, isto é, do próprio direito, é que podemos livrá-lo de dificulda-
des interpretativas que muitas vezes o rondam como fruto de uma confusão entre
direito e moral, bem como entre direito e o mundo objetivo e subjetivo. e todas estas
questões somente serão superadas quando encaradas diante do pano-de-fundo subja-
cente de maneira adequada e levando adiante o próprio projeto da modernidade. É
assim que podemos compartilhar com dWorKin e afirmar que o direito se auto-puri-
fica, que o direito, enquanto esforço interpretativo, tem uma ambição para si mesmo,
qual seja a busca incessante de um direito além do direito, enquanto praxis crítico-
hermenêutica do alcance da correta interpretação, partindo da melhor teoria política
acerca do direito moderno, em cada caso, e perante a força gravitacional que os prece-
dentes realizam. Tal é a nossa tarefa, sempre em crise, de interpretar o direito nesses
novos tempos de uma alta modernidade, de uma modernidade que se enxerga como
contingente e plural, humana e, por isto mesmo, precária.”24

Trata-se disso: de uma interpretação discursiva dos direitos fundamentais,


precisamente no contexto de uma compreensão do direito baseada no princípio
da liberdade, que sem dúvida compartilho com chamon. e esse é o desideratum
de haBermaS, mas acredito que haBermaS não o cumpre adequadamente.

24 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno, cit., p. 192.
em páginas anteriores, chamon indica que tipo de interpretação exclui, e o
faz a propósito de um ponto particularmente sensível: discutindo o conceito jurí-
dico de personalidade e separando-o por completo da personalidade moral:

“desde a sistematização proporcionada em Savigny, a interpretação do direito moder-


no se encontra demasiadamente carregada de elementos morais. a própria noção de
autonomia da vontade, enquanto uma liberdade moral dotada de um valor instrínseco
e que, por isso, mereceria ser juridicamente tutelada, é algo explicitamente assumido
em Savigny. o problema se apresenta quando esta capacidade de agir moralmente, e
todos os seus elementos, é tida como uma capacidade genérica da qual a capacidade
jurídica seria tão-somente um caso especial. obviamente que a única via que se abre
seria o reconhecimento da ‘personalidade’ das pessoas jurídicas como fictícia: afinal, a
própria capacidade moral é que teria se erigido enquanto pressuposto da personalida-
de. o sujeito somente teria direitos e deveres na medida em que sua liberdade moral
devesse, pelo seu valor ‘intrínseco’, ser tutelada. a personalidade, pois, acabou sendo
interpretada como conseqüência de uma autonomia moral re-interpretada em termos
funcionais em JeLLineK e em KeLSen, ou mesmo em Savigny, no que especificamente
se refere às pessoas jurídicas, ou à sua não atribuição aos escravos.”25

e postulando nesta passagem um conceito de “pessoa” interno ao direito,


entendido este em termos de entrelaçamento de “forma jurídica” e “princípio do
discurso”, chamon termina dizendo que: “a esta des-moralização da capacidade
jurídica também devem seguir a des-moralização da noção de imputabilidade jurí-
dica, bem como a des-ontologicização da noção de conduta”.26 isso significa que a
conduta não é algo que esteja aí de antemão, de forma alheia a todo processo de
interpretação. e no que se refere à relevância jurídica da conduta, tal relevância
não é senão construção dentro do processo mesmo de argumentação jurídica,
como já é também construção no próprio processo social que antecede a interven-
ção do direito.

iii.1. uma nova exposição de habermas

após tomar nota desses avisos de chamon, que colocam mais ainda em relevo
o problema de haBermaS, volto a haBermaS. depois de Facticidad y validez,
haBermaS retornou aos problemas da “gênese lógica” do “sistema de direitos”, prin-
cipalmente em duas ocasiões. a primeira vez, em um artigo de 1994, intitulado
“Sobre a conexão interna de estado de direito e democracia”.27 Parece-me que esse

25 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno, cit., p. 187.
26 chamon Junior, Lúcio antônio, Teoria geral do direito moderno, cit., p. 190.
27 haBermaS, Jürgen. die einbesiehung des anderen, Frankfurt, 1996, p. 293 ss.
artigo nada acrescenta ao que ficou dito em Facticidad y validez, mas nele a exposi-
ção, por ser concisa, torna-se ainda mais problemática. a segunda vez, em um arti-
go intitulado “o estado democrático de direito: uma conexão paradoxal de princí-
pios contraditórios?”,28 de fins dos anos 90, a que me vou referir, em seguida.
haBermaS também se nega a subordinar o direito à moral29 e, no momento
de fazer frente aos problemas de uma Teoria discursiva do direito, renuncia a
recorrer “à enfraquecida objetividade de supostas intuições morais últimas”.30 o
que busca é o que chamon também postula, uma Teoria discursiva dos direitos
fundamentais. mas neste artigo a linguagem mudou, em relação a Facticidad y
validez. haBermaS começa falando de dois princípios co-originais:

“a idéia de direitos humanos soletrados nos direitos fundamentais nem se pode


impor, por assim dizer, ao soberano, a partir de fora, como restrições, nem tão pouco
pode simplesmente instrumentalizar-se como requisito funcional para os fins do sobe-
rano. de certo modo, consideramos ambos os princípios como co-originais. um não é
possível sem o outro, sem que por isso um ponha limites ao outro. Poderíamos expres-
sar esta intuição de ‘co-originalidade’ também dizendo que a autonomia privada e a
autonomia pública se exigem reciprocamente. os cidadãos só podem fazer uso ade-
quado da autonomia pública, garantida pelos direitos políticos, se são suficientemen-
te independentes na configuração privada-autônoma da vida, que lhes venha assegu-
rada por igual. e os particulares só chegam a gozar por igual de sua igual autonomia
privada, isto é, as liberdades subjetivas de ação distribuídas por igual têm para isso
‘igual valor’, se como cidadãos fazem um uso adequado de sua autonomia política.”31

diante disso, a primeira coisa que nos ocorre pensar é que talvez o cidadão
ateniense dos séculos v e iv cumprisse com bastante aproximação o que
haBermaS aqui indica. entretanto, esse cidadão sabia muito pouco de direitos fun-
damentais. isto é, a articulação normativa da existência ateniense cumpria o prin-
cípio da autonomia pública, mas não o da autonomia privada (“liberdade sem
direitos do homem”, FichTe assim definia atenas e roma). Portanto, necessitamos
de ulteriores precisões para definir a “autonomia dos modernos” frente à “autono-
mia dos antigos” (no início do artigo haBermaS faz referência ao título do famo-
so discurso de BenJamin conSTanT).
a existência moderna tem de caracterizar-se então por uma peculiar confi-
guração do princípio de autonomia cidadã, se é que ambos os princípios têm de vir
juntos. o princípio de autonomia pública tem de implicar (materialmente) uma

28 haBermaS, Jürgen. zeit der uebergänge, Frankfurt, 2001, p. 133 ss.


29 haBermaS, Jürgen. zeit der uebergänge, cit., p.135 ss.
30 haBermaS, Jürgen. zeit der uebergänge, cit., p. 143.
31 haBermaS, Jürgen. zeit deruebergänge, cit., p. 134.
autonomia privada, articulada conforme a idéia de maior medida possível de
iguais liberdades básicas. haBermaS, que nesse artigo se define como um “republi-
cano kantiano”, declara que, frente às posições dos neo-aristotélicos,

“os republicanos kantianos radicalizam um tema básico, a saber: a idéia de que os direi-
tos do homem são imanentes ao processo de uma formação racional da vontade políti-
ca: os direitos fundamentais são respostas a exigências de uma comunicação entre
estranhos, que fundamenta a presunção de que os resultados sejam racionalmente acei-
táveis. a constituição obtém assim, por meio disso [por meio das cinco categorias de
direitos fundamentais], o sentido procedimental de estabelecer formas de comunica-
ção que, quando há necessidade de introduzir regulamentações e necessidade de abor-
dar questões específicas, provêm um uso público da razão e um eqüitativo equilíbrio
de interesses. e porque este conjunto de condições de possibilitação tem de ser realiza-
do pelo meio do direito, essas condições de possibilitação se estendem por igual tanto
aos direitos liberais de liberdade como aos direitos de participação política.”32

com isso, voltamos a estar quase no mesmo lugar em que ficamos ao falar da
gênese lógica do sistema de direitos, em Facticidad y validez. Pois no ato de fun-
dação de uma constituição democrático-liberal (de uma constituição moderna),

“os participantes têm clareza de que, posto seu propósito de querer realizá-lo no
meio do direito, têm de gerar uma ordem de status jurídicos, que prevê para cada
membro da associação o posto de portador de direitos subjetivos. Tal ordem, indivi-
dualisticamente configurada, de direito positivo e coercitivo, só pode fazê-lo se se
introduzem simultaneamente três categorias de direitos. e levando em conta o requi-
sito de legitimidade que representa a susceptibilidade de um assentimento geral,
trata-se dos seguintes direitos”.

e haBermaS se refere (exatamente com as mesmas palavras) às três primeiras


categorias de direitos que já introduziu em Facticidad y validez. isto é, fala nova-
mente, em referência à primeira, de “direitos fundamentais (qualquer que seja seu
conteúdo concreto) que resultam da configuração autônoma do direito à maior
medida possível de iguais liberdades básicas para qualquer um”. e depois de enun-
ciar as três categorias de direitos, conclui:

“estas três categorias de direitos são necessárias para a fundação de uma comunida-
de jurídica delimitada no espaço social, cujos membros mutuamente se reconheçam
como portadores de direitos subjetivos, os quais, caso necessário, possam fazer-se
valer judicialmente.”

32 haBermaS, Jürgen. zeit der uebergänge, cit., p. 140.


mas minhas objeções continuam sendo as mesmas. não entendo o status
desse “direito à maior medida possível de iguais liberdades de ação”. e tão pouco
entendo que ao “requisito de legitimidade que representa a susceptibilidade de
assentimento geral” se siga um conjunto de direitos básicos (qualquer que seja seu
conteúdo) que soletrem a idéia de “a maior medida possível de iguais liberdades
de ação”, a não ser que se suponha precisamente esse direito cujo status não enten-
do, e para o qual acredito que haBermaS apela gratuitamente. Tal direito, insisto,
representa à primeira vista um corpo estranho na teoria de haBermaS. isso posto,
o que fica completamente claro em sua exposição é que esse direito tem essencial-
mente a ver com o fato de que, na modernidade, o meio da ordem social legítima
não pode ser outro senão a forma jurídica e que, portanto, esse direito tem a ver
com (e inclusive está essencialmente na base de) o necessário entrelaçamento de
forma jurídica e princípio do discurso. além disso, nessa exposição de fins dos
anos 90, haBermaS prescinde de estabelecer uma contraposição entre a liberdade
subjetiva e a liberdade comunicativa. aliás, se o princípio da maior medida possí-
vel de iguais liberdades básicas e o princípio da autonomia cidadã se implicam
materialmente um no outro, o resultado será que liberdade subjetiva e liberdade
comunicativa também têm de implicar-se mutuamente.
no que se segue, vou fazer uso dessa idéia de haBermaS. mas vou também
seguir literalmente dois conselhos dados por chamon, no final do trabalho que
citei. Primeiro, para desenvolver uma adequada Teoria discursiva dos direitos fun-
damentais, é preciso fazê-lo enfocando as coisas de maneira adequada sobre o
necessário pano de fundo. e segundo, para desenvolver essa mesma teoria, não só
há que distinguir entre direito e mundo objetivo e mundo subjetivo, mas também
ter presente que, na modernidade, o direito se separa tanto da moralidade quan-
to do ético-social. este último item é particularmente importante, se o direito tem
de ser capaz de servir de elemento integrador de uma modernidade “que se enxer-
ga como contingente e plural, humana e, por isto mesmo, precária”.

iii.2. minha tese

Para explicar como vejo essa necessária Teoria discursiva dos direitos funda-
mentais, de cuja necessidade haBermaS convenceu tanto a chamon quanto a
mim, mas na qual nem chamon nem eu estamos de acordo com a resolução dada
por haBermaS à relação entre direitos fundamentais e princípio democrático, para
explicar, digo, como vejo essa teoria, darei vários passos, que se dirigem todos a
algo muito simples. dirigem-se a mostrar algo de que, acredito, também chamon
está convencido, a saber: de que a forma jurídica (o direito positivo), como prin-
cipal meio de integração normativa das sociedades modernas, pode ser objeto de
uma justificação normativa e muitas vezes terá de ser objeto de uma fundamenta-
ção normativa explícita (sempre que determinado ethos queira subrepor-se ao
direito positivo legitimamente gerado). como já citei, segundo chamon:

“e aqui está o paradoxo do direito: o fato de que sua legitimidade depende de sua
forma, de uma forma jurídica que, na modernidade, se construiu normativa e socio-
logicamente alicerçada nos princípios de igualdade e liberdade, num processo de
diferenciação funcional.”33

vou dizer, de acordo com chamon: a forma jurídica, à parte de ser funcio-
nalmente inevitável, faz-se também normativamente inevitável, ao alicerçar-se
em princípios que, já não podendo operar depois, mas pelo meio que é essa forma,
têm de se dar a forma de princípio democrático. definitivamente, o que quero
mostrar é a implicação material entre direitos fundamentais e princípio democrá-
tico, mas em sentido inverso ao de haBermaS. haBermaS diz: o princípio do dis-
curso, não podendo engendrar modernamente legitimidade senão por meio da
forma jurídica, implica materialmente direitos fundamentais (também os das três
primeiras categorias). eu direi: os direitos fundamentais, que fundamentam a ine-
vitabilidade normativa da forma jurídica, não podem concretizar-se a não ser
mediante o princípio do discurso, e precisamente como direitos, isto é, por meio
da forma jurídica. Para haBermaS, os direitos políticos implicam os direitos das
três primeiras categorias. no que vou dizer, esta implicação é vista em sentido
inverso, a saber: os direitos das três primeiras categorias que fundamentam a
forma jurídica implicam os direitos políticos (e naturalmente, os “direitos sociais
e ecológicos”).

iii.3. considerações de hegel sobre a ação livre

meu primeiro passo consiste em recordar um conceito muito elementar de


atuação livre e as conseqüências que dele tira hegeL.34 alguém atuou livremente
quando o fez de modo como poderia também não ter atuado. mas isso não quer
dizer que atuar livremente tem a ver, primeiro, com o não da possibilidade esco-
lhida. alguém escolheu essa possibilidade, mas poderia também não tê-la escolhi-
do. e assim pode alegrar-se de tê-la escolhido quando esteve prestes a escolhê-la,
ou arrepender-se porque não devia escolher o que escolheu.

33 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno, cit., p. 106.
34 hegeL, g. W. F., Sobre las maneras de tratar científicamente el derecho natural, Tradução dalmacio negro,
aguilar, madrid, 1979, p. 52 ss.
mas se ser livre é atuar como se poderia também não ter atuado, resulta que
ser livre é também relacionar-se com o não da possibilidade não escolhida. Pois
ao longo da série de escolhas livres, foram deixadas para trás muitas coisas pelas
quais se podia optar e não se optou. em nossa vida, somos também (às vezes por
sorte, às vezes por infelicidade) o não de tudo aquilo que, podendo ter escolhi-
do, decidimos afinal não escolher. esse não às vezes nos alegra, às vezes nos
angustia como uma pesada carga: nossa vida se converte e inclusive se reduz a uma
obsessão pelo não de tudo o que deixamos escapar; nossa vida se caracterizou tal-
vez por um mau aproveitamento das ocasiões que se ofereceram a nós. ou nossa
vida é talvez a bênção de ter escolhido quase sempre o que foi melhor escolher.
mas a conclusão de hegeL é a seguinte: se ser livre tem a ver tanto com o
não da possibilidade escolhida como com o não da possibilidade não escolhida,
resulta que ser livre tem a ver com o não de toda possibilidade. mas o não de
toda possibilidade é a morte. Portanto, livre só pode ser essa categoria de seres que
somos nós, que estamos essencialmente referidos a nossa própria finitude. Se aten-
tarmos bem, é convincente a idéia de hegeL de que livre só pode ser quem está
radicalmente referido, desde o princípio, à possibilidade de também-não-ser:
poder-também-não-ser, um não absoluto, do qual dependem os nãos relativos
em que a liberdade consiste ou que a liberdade implica.

iii.4. conceitos de direito romano

meu segundo passo vai consistir em outra coisa, em estabelecer o adequado


pano de fundo de uma Teoria discursiva dos direitos fundamentais e deslindar o
direito, tanto da moral como do mundo subjetivo e do objetivo.
vou fazê-lo da seguinte forma: todos sabem que os conceitos mais básicos da
metafísica dos costumes de KanT consistem em uma deslumbrante interpretação
de conceitos do direito romano, principalmente dos títulos i, ii e iii do livro pri-
meiro e do título i do livro segundo das instituições de Justiniano.
no livro primeiro, título i, depois de definir a justiça e a jurisprudentia, as
instituições acolhem aquela fórmula de uLPiano, segundo a qual “os preceitos do
direito são estes: viver honestamente (honeste vivere), não prejudicar o outro e
dar a cada um o seu”.
a seguir, passa-se a tratar da divisão do direito. o direito divide-se em
público (o que se refere ad statum rei romanae) e privado (o que está à utilidade
dos particulares). e o direito privado é essencialmente tripartite. divide-se em
direito civil ou da cidade, direito das gentes e direito natural.
direito civil, ou seja, o direito da cidade, é aquele que cada povo (ipse, ele
próprio, ele em primeira pessoa) instituiu para si (quod quisque populus ipse sibi
constituit).
o direito próprio de cada cidade se distingue do direito das gentes, “que é
comum a todo o gênero humano”. Pois as nações estabeleceram entre si certas leis,
exigidas pelo uso e pelas necessidades humanas: apareceram as guerras e com elas
o cativeiro e a escravidão, que são contrários ao direito natural; pois, por este
direito, todos os homens nasciam livres desde o princípio (iure enim naturale ab
initio omnes homines liberi nascebantur). Podemos contentar-nos com esta carac-
terização do direito natural como diverso do direito da cidade e do direito das
gentes. acrescentemos também que as explicações, nesse título ii do livro primei-
ro das instituições, acabam excedendo em muito a distinção entre direito público
e privado. ocorre que o direito é efetivamente tripartite, compõe-se de direito
natural, das gentes e direito civil, e cada um destes (expressando-nos em lingua-
gem atual) tem uma parte privada que diz respeito aos projetos particulares de
vida, e uma parte pública, referente à estrutura normativa do âmbito de convivên-
cia em que esses projetos são possíveis. mas não posso deter-me mais nisso.
no título iii do livro primeiro das instituições, que é onde principia o direito
pessoal, passa-se a introduzir e definir o que é a divisão suprema (divisio summa)
no direito pessoal. essa divisão diz que os homens ou são livres ou são escravos
(aut liberi sunt aut servi). e passa-se a dar a definição de liberdade que caracteri-
za os homens livres. a liberdade, da qual os homens livres recebem seu nome, é a
faculdade de alguém fazer aquilo que lhe apraz, a não ser que o impeça a força ou
o direito (libertas quidem est, ex qua etiam liberi vocantur, naturalis facultas eius,
quod qcuique facere libet, nisi si quid aut iure prohibetur). e a servidão, ao con-
trário, é aquela instituição do direito das gentes pela qual alguém, contra natu-
ram, fica submetido ao domínio alheio (qua quis dominio alieno contra naturam
subiicitur). isto é, pela servidão, esse alguém se converte em uma coisa que per-
tence ao patrimônio do senhor.
no título i do livro segundo introduz-se a divisão mais geral do direito das
coisas. as coisas ou estão ou podem estar em nosso patrimônio, ou não estão nem
podem estar em nosso patrimônio. isto é, podem ser propriedade privada nossa ou
não o ser.
e as coisas que não podem ser propriedade privada nossa são de três catego-
rias. algumas são as coisas comuns a todos os homens, como o ar, a água corren-
te, o mar, etc. outras nem são nem podem ser propriedade privada nossa porque
pertencem ao coletivo da cidade (são coisas universitatis), são para uso coletivo
dentro da cidade, como os teatros, os estádios, et similia. mas existem coisas que
nem são propriedade privada nossa nem podem sê-lo, não porque sejam comuns
a todos os homens, nem tão pouco porque pertençam ao coletivo da cidade, mas
porque são essencialmente coisas de ninguém (res nullius).
coisas de ninguém (res nullius) são as coisas sagradas (as coisas consagradas
aos deuses, como os templos), as coisas religiosas (isto é, as que têm a ver com a
relação entre a existência humana e o mais além, como os funerais) e as coisas san-
tas (isto é, as que protegem a circunscrição do espaço atribuído à existência huma-
na, em que esta se torne viável; por exemplo, os muros da cidade).

iii.5. razão subjetiva e razão comunicativa

Quando se esclarecem estas divisões básicas do direito romano, entende-se


bem o que faz KanT com elas, em sua Teoria do direito. KanT diz (ou é como se
dissesse): a existência humana moderna caracteriza-se por algo muito básico, por
uma radical reivindicação de liberdade, através da qual o homem se repõe em seu
estado original, digamos, em seu estado racional (iure enim naturali ab initio
omnes homines liberi nascebantur). a libertas deixa assim de ser uma institutio,
ao lado da servitus, e se converte em princípio do direito. a servitus desaparece
como institutio. mas então a libertas (que é a faculdade natural de alguém fazer o
que queira, se não lhe está proibido pelo direito ou pela força) converte-se em
base do direito. e uma vez convertida em base ou princípio do direito, a liberda-
de não tem outro limite, no direito, senão a própria liberdade, isto é, a igual liber-
dade, a liberdade se torna absoluta. e por outro lado, essa libertas não admite outra
violência que a limite, a não ser aquela que precisamente serve para fazer valer
essa própria libertas.
outra idéia de KanT que é preciso ver a partir de hegeL e que nos ajuda a
entender como a liberdade se des-limita e não admite outro limite senão ela pró-
pria (isto é, senão a igual liberdade), é a seguinte: o contexto das relações norma-
tivas pré-modernas caracteriza-se por uma sistemática transferência do direito
pessoal (derecho de personas) ao das coisas. uma categoria de pessoas é conside-
rada coisas que estão no patrimônio de outra, “ficam submetidas contra naturam
ao domínio alheio”. ora, o conceito de relações normativas modernas caracteriza-
se por uma transferência inversa do direito das coisas ao de pessoas. Pois base da
condição humana moderna, isto é, base da conversão da libertas em absoluta, base
da conversão da libertas em princípio, foi a experiência do homem moderno de
que todo absoluto objetivo lhe ficava reduzido a esse ponto do seu também-
poder-não-ser, do qual brota sua própria liberdade. nesse ponto o homem fica
solitário ante o mais-além, a partir do qual ele tem de buscar encontrar, sob sua
irreferencial ou exclusiva ou excludente responsabilidade, um sentido para sua
existência. não há um absoluto objetivo que fundamente uma ordem ético-obje-
tiva, da qual os indivíduos possam considerar-se acidentes. Quando em 1521, na
dieta de Worms, LuTero responde ao imperador carLoS v que não pode retratar-
se porque só ele, na interioridade de sua consciência, tem de responder perante o
absoluto sobre o sentido último que dê à sua existência, estamos ante um equiva-
lente religioso da idéia política de LocKe, de que ser livre é fazer alguém consigo
e com o seu o que quiser, sem pedir autorização nem permissão a ninguém, com
a única limitação de reconhecer esse mesmo direito a todos os demais. destinado
a esse mais-além do qual brota sua liberdade, o homem moderno (esta é a condi-
ção humana moderna) dá consigo, não como algo que se pertença a si mesmo, nem
tampouco como algo que pertença a um ethos coletivo (posturas como a de
LuTero ou LocKe relativizam todo ethos, reduzem-no a convenção que também
podia ser outra, reduzem-no a simples matéria, da qual se libera a forma). o
homem moderno, nesse estar destinado ao absoluto de sua liberdade, dá consigo,
digo, não como algo que se pertença a si mesmo, pois ele não se determinou, nem
tampouco que pertença ao coletivo, mas dá consigo como coisa de ninguém, como
res nullius, como algo que, se considerando como um fim, é, portanto, um fim em
si. Para os romanos, res nullius eram as coisas sagradas, religiosas e santas.
Portanto, para o homem moderno, uma vez que se desmoronaram os absolutos
objetivos, não há outra coisa sagrada, religiosa e santa a não ser esse espaço em que
só ele tem de decidir o sentido e a configuração de sua existência, um espaço que
consiste nele próprio, que pende do ponto de onde surge sua liberdade. Tal espa-
ço, digo, é inerente à condição humana moderna, de encontrar-se o homem con-
sistindo em um fim em si. a norma moral é aquela que, em meu ser livre, me dou
a mim mesmo, a de não atuar por outro motivo que não seja o respeito à humani-
dade que há em mim e nos demais. a norma jurídica é a que se faz para respeitar
o igual espaço de liberdade como um fim em si, em que consisto, quaisquer que
sejam as motivações que se desenvolvam naquele espaço e quaisquer que sejam os
motivos dos demais para respeitá-lo (que poderiam limitar-se ao desejo de evitar
a sanção que se adere à vulneração desse espaço, quando este se faz efetivamente
valer). a forma jurídica que, portanto, como diz chamon, está ligada na
modernidade às idéias de igualdade e da maior medida possível de liberdades sub-
jetivas de ação, fica assim desligada tanto da moral como do ethos, como da idéia
de um absoluto objetivo que definitivamente sustentasse esse ethos. o absoluto
reside eventualmente no interior, inatingível ao direito. e é muito importante a
idéia que haBermaS sublinha em sua discussão com o republicanismo neo-aristo-
télico de F. micheLman, idéia que chamon também compartilha, de que a legiti-
midade do direito não deriva de seu enraizamento em um ethos. Por mais etica-
mente impregnado que possa estar o direito, isto é, por mais impregnado que
possa estar pelas convenções de determinada coletividade, o direito positivo (a
forma jurídica) representa, por sua própria estrutura, uma relativização de todo
ethos, de modo que em uma “modernidade que se enxerga plural e precária”, terá
de ser pelo meio do direito positivo que se resolverão os conflitos ocasionados
pelo choque de formas de vida, ou ao menos se poderá obter, para eles, uma pro-
posta racional.
o honeste vivere (viver honestamente) de uLPiano é interpretado por KanT
como honestas iuridica, como o meticuloso e atento exigir dos demais que me tra-
tem não simplesmente como um meio, mas sempre também como um fim em si.
Já vimos que tal exigência coincide com a exigência de ter eu a faculdade de dar à
minha vida o sentido e configuração que eu queira, sem mais limitação que supor
ao outro essa mesma faculdade. e é precisamente essa exigência, como já disse,
que na modernidade deixa solta a forma jurídica como único meio possível de
regulamentação legítima das expectativas de comportamento, como único meio
de regulamentação legítima da existência coletiva. isso supõe (parafraseando
haBermaS) que, no direito, o nível mais básico de todos é o dos direitos que resul-
tam da configuração politicamente autônoma da exigência da maior medida de
iguais liberdades individuais de ação, de todo o espaço que eu queira dar-me para
configurar minha vida. Por outro lado, digo, tais direitos têm de ser resultado de
uma configuração politicamente autônoma dessa exigência, pois, se na elaboração
desta, o homem tem de ser tratado como um fim em si, tal elaboração, por sua vez,
tem de ter por base a introdução de direitos básicos, a participarem, em igualdade
de oportunidades, da legislação política. e porque cada qual, desde que se atenha
às normas provenientes do legislativo, pode segui-las pelos motivos que quiser,
precisamente por isso as normas têm de poder ser seguidas por qualquer um, tam-
bém pelo motivo de puro respeito à norma (é este o ponto de contato do direito
e da moral em KanT). o que implica que uma norma só é legítima se todos os pos-
síveis afetados por ela puderam prestar-lhe seu assentimento, no papel de cida-
dãos, como participantes em discursos racionais, juridicamente articulados em
condições tais que seus resultados tenham a seu favor a presunção de contar com
os melhores argumentos.
mas também é preciso levar em consideração outro tipo de discurso. Por
exemplo, no caso da jurisprudência sobre direitos fundamentais, à tomada de deci-
são acerca da questão de um direito ter sido ou não vulnerado, necessariamente
subjaz (em medida tão maior quanto mais difícil seja o caso) uma precisão do
direito ou do não-direito que o demandante tem, junto a uma precisão do alcan-
ce desse direito. em sua concreção última, os direitos dependem aqui, portanto,
de um discurso racional de aplicação de normas, em que, na situação jurídica con-
creta, entram necessariamente em consideração 1) o texto da lei; 2) a reconstru-
ção do que eram as intenções de princípio do legislador; 3) os precedentes que
representam as decisões sobre casos análogos; 4) a melhor Teoria do direito que
seja também capaz de estabelecer uma relação com a situação jurídica concreta; e
5) finalmente, também as impregnações, primeiro morais, mas também éticas do
direito.35 e esses elementos têm de poder articular-se argumentativamente com
uma coerência tal que, na situação jurídica concreta, essa coerência seja a repre-
sentante da razão que o direito põe, na sem-razão do caso de vulneração ou do
caso de conflito, uma razão que, por sê-lo, tem de poder ser compartilhada por
todos, tanto no espaço público jurídico como no espaço público geral.
com isso, cheguei ao ponto a que pretendia chegar, como já anunciei.
haBermaS diz que a idéia de direitos fundamentais, isto é, a idéia da maior medi-
da possível de iguais liberdades básicas, é uma idéia imanente ao próprio proces-
so de uma formação da vontade coletiva que seja racional. o que, para haBermaS,
implica que o princípio da maior medida de iguais liberdades básicas e o princípio
da autolegislação cidadã “estão entre si em uma relação de implicação material”.
mas já vimos que, embora haBermaS postule tal coisa, não consegue argumentá-
la bem, porque opõe liberdade subjetiva e liberdade comunicativa. chamon, que
aprendeu em r. dWorKin a “levar os direitos a sério”, viu muito bem o fato de que
na modernidade a forma jurídica seja o único meio (ou em todo caso o meio não
subordinável a outros) no qual se pode gerar legitimidade, isto é, o meio do qual
depende a integração social racional, a “solidariedade” social nas sociedades
modernas, implica os princípios de igualdade e liberdade, ou seja, a forma jurídi-
ca vem normativamente fundamentada. e chamon aceita a implicação de ambos
os princípios, mas prefere enunciá-la a partir da outra extremidade. ao contrário
de haBermaS, chamon diz: à idéia de direitos fundamentais, à própria liberdade
moderna, é imanente a idéia de um processo de formação racional da vontade
coletiva. e o que fiz foi buscar entender, a partir de KanT e de hegeL, quer dizer,
sobre o adequado pano de fundo, o giro que chamon dá a essa idéia de implicação
material de haBermaS.
Por outro lado, esse movimento não é nenhuma sutileza conceitual (sobretu-
do se, com KanT, não nos esquecermos de que hoje, mais do que nunca, o direito
é tripartite: estatal, internacional público e internacional privado ou cosmopoli-
ta). creio que haBermaS vê a idéia de KanT de “liberdade sob leis gerais prove-
nientes da vontade unida de todos” a partir dos processos legislativos e dos espa-
ços públicos consolidados de democracias relativamente bem estabelecidas, de
onde resultam as leis que protegem essa liberdade. chamon vê essa sentença de
KanT através do caráter subversivo, rompedor, que tem a liberdade moderna. vê
que em uma modernidade contingente, plural e precária, onde inclusive os espa-
ços de articulação que eram os estados nacionais ficam relativizados em muitos
aspectos, à liberdade moderna resta sempre quase tudo por fazer para converter-

35 cf. FaLLon Junior, richard. constructivist coherence Theory of constitutional interpretation, cit., p. 1189 ss.
se em “liberdade sob leis gerais”, quer dizer, para se dar uma articulação depen-
dente de uma formação racional da vontade ou das vontades coletivas, que a con-
verta em legítima.

manueL JimÉnez redondo


universidade de valência
valência, espanha, abril de 2007
inTrodução

um Primeiro enigma:
o Que a modernidade eXige do direiTo?

uma questão com a qual as discussões de Teoria do direito contemporâneas


pouco se têm preocupado reflexivamente é a referida a um resgate crítico-recons-
trutivo da chamada “Teoria das Fontes do direito”, cujos desenvolvimentos mais
elaborados, desde a escola histórica, passando pelo pandectismo, pelo positivismo
clássico e pelo neo-positivismo, é muitas vezes assumida sem maiores e mais pro-
fundas problematizações – sobretudo em face do caráter moderno do direito.
e toda essa assunção se dá mesmo após as contundentes críticas de um neo-
positivista como hanS KeLSen que – apesar de não compartilharmos de seus argu-
mentos –, desde sua época já apresentava críticas, que aqui nos interessam à
reconstrução dessa matéria, a posicionamentos simplistas e ingênuos.
afinal, será mesmo que podemos nos referir a “fontes do direito” que não
sejam as normas do próprio sistema jurídico-normativo?
a essa questão KeLSen respondeu afirmando que “num sentido jurídico-posi-
tivo, fonte do direito só pode ser o direito”.1 Todavia, cabe-nos ressaltar o senti-
do de uma tal afirmação no contexto do pensamento do autor. KeLSen parte da
afirmação geralmente compartilhada de que legislação e costume são assumidos
como as duas fontes do direito para explicitar que a expressão “fontes de direito”
é uma expressão figurativa e que não serve para referir-se somente à legislação e
ao costume,

“mas a todos os métodos de criação jurídica em geral, ou a toda norma superior em


relação à norma inferior cuja produção ela regula.”2

a conseqüência dessa compreensão é que por “fonte de direito” acaba KeLSen


reconhecendo como qualquer norma jurídica capaz de ser vislumbrada como uma
norma hierarquicamente superior e capaz de regular a produção de outras normas,
pois, hierarquicamente inferiores, visto que o direito não seria uma ordem plani-
ficada, mas sim escalonada de normas a formar, figurativamente, uma imagem
piramidal. nesse sentido é que, para o autor, a constituição seria a fonte das nor-

1 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito. Trad. João Baptista machado. São Paulo: martins Fontes, 1997, p. 259.
2 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 259.
mas gerais produzidas legislativa ou consuetudinariamente, enquanto uma norma
geral seria, em princípio, a fonte de uma decisão jurisdicional que a aplica na cria-
ção de normas individuais. e, desenvolvendo seu raciocínio, o autor ainda esclare-
ce que mesmo a decisão jurisdicional pode ser tomada, pois, como fonte dos deve-
res e direitos dos afetados por aquela decisão, ou ainda como fonte da competên-
cia de um determinado órgão ao qual é ordenada a execução de uma certa sanção.3
KeLSen, no aprofundamento funcional de sua teoria, radicaliza as conseqüên-
cias nefastas que uma compreensão positivista, apesar de mais sofisticada do que
as propostas clássicas do positivismo, traz para a interpretação e a prática do
direito. reduzindo a compreensão das fontes a uma mera questão formal de cons-
tatação da competência dada a uma autoridade para realizar um determinado ato
de vontade que, para tanto, passaria a ser interpretado como juridicamente válido
– exatamente em razão da “fonte” significada pela norma hierarquicamente supe-
rior a atribuir tal competência –, KeLSen não somente acaba por reduzir validade
à mera faticidade, como ainda, e como era de se esperar, falha em sua pretensão
teórica em distinguir “ser” e “dever-ser”.4 afinal, não compreende muito bem o
autor a tensão entre idealidade e realidade. mas a todas essas questões concernen-
tes aos posicionamentos de KeLSen voltaremos sempre nas páginas seguintes.
uma outra compreensão neo-positivista do direito menos radical que a de
KeLSen, nem por isso menos inconsistente, é aquela apresenta por norBerTo
BoBBio. reconhecendo que o direito seria um “sistema complexo” do ponto de
vista da multiplicidade de suas fontes – e não somente com referência a uma única
e exclusiva fonte –, o autor procura entender a questão das fontes como referidas
àqueles fatos ou atos

“aos quais um determinado ordenamento jurídico atribui a competência ou a capa-


cidade de produzir normas.”5

como o próprio autor reconhece, o problema das fontes é, ao final, um pro-


blema que diretamente diz respeito à validade das normas jurídicas e isto na com-
preensão altamente convencionalista de que uma norma seria considerada válida

3 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 259.


4 chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen,
Luhmann e habermas. 2. ed. rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 13 et seq.; chamon Junior, Lúcio
antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursiva na alta modernidade.
2. ed. rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 44 et seq.; chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional
do direito Penal: contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois. rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006, p. 39 et seq.
5 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. márcio Pugliesi, edson Bini,
carlos e. rodrigues. São Paulo: ícone, 1999, p. 161.
quando fosse produzida por uma “fonte autorizada”, pelo direito, a produzir nor-
mas jurídicas. isso significa dizer que o direito estabeleceria quais seriam as fontes
do direito, isto é, estabeleceria quais os critérios de validade das próprias normas.6
e, em face desta auto-determinação, e como o próprio BoBBio vai reconhe-
cer, o positivismo assumiu – sobretudo a partir de toda a discussão subjacente à
modernidade e carente, todavia, de um melhor enfoque que o oferecido por esse
mesmo positivismo – como sendo a legislação a fonte prevalente sobre todas as
demais, o que, simultaneamente, implicaria reconhecer o direito em sua “comple-
xidade” e em sua “hierarquização”. afinal, haveria fontes que não seriam reduzi-
das à legislação, bem como estariam todas subordinadas a esta, uma vez que o jus-
positivismo sustenta que a lei tratar-se-ia da “fonte predominante” e que se encon-
traria em um plano hierárquico “mais alto” porque seria fruto da “manifestação
direta do poder soberano do estado” – sendo os outros fatos ou atos de produção
normativa tão-somente fontes à lei subordinadas.7
veremos, nas páginas deste livro, não somente os desdobramentos dessas
questões, como também os pressupostos normativos e teóricos que se encontram
por detrás de uma tal exacerbação do convencionalismo jurídico.
Por outro lado, JuLien BonnecaSe, e muito anteriormente a KeLSen e BoBBio,
propunha, sobretudo a partir da obra de FrançoiS gÉny,8 a distinção das fontes do
direito em “fontes formais” e “fontes reais”.9

6 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 161.


7 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 164.
8 Sobretudo: gÉny, François. Science et technique en droit privé positif: nouvelle contribution a la critique de
la methode juridique. Paris: recueil Sirey, 1914, vol. 1; gÉny, François. méthode d’interprétation et sources
en droit privé positif: essai critique. 2. ed. Paris: Librairie générale de droit & de Jurisprudence, 1932, tomo
i; gÉny, François. méthode d’interprétation et sources en droit privé positif: essai critique. 2. ed. Paris:
Librairie générale de droit & de Jurisprudence, 1934, tomo ii.
9 acerca dos desdobramentos de um conceito de “fonte real” e a referência argumentativa a uma “finalidade
social” que supostamente deveria ser tomada em conta na interpretação da lei, cf. BonnecaSe, Julien.
introducción al estudio del derecho. Trad. Jorge guerrero. Bogotá: Temis, 1982, p. 156 et seq. a tomada
em consideração desse fim, ou finalidade, social é assumida pelo autor quando afirma que: “Por lo tanto,
texto y fin social son los dos factores que se han de tomar en cuenta para la interpretación de ley. el prime-
ro es un elemento fijo, constituido por una fórmula cuyo sentido literal deve ser suministrado al intérpre-
te por el idiome del derecho, so pena de tener que declarar inoperante la obra del legislador. (...) Sin embar-
go, en realidad se reduce, por fortuna, a una fórmula abstracta, que envuelve un fin social, el cual, como
elemento móvil, conduce infaliblemente al jurista a explicaciones diferentes y sucesivas de las cuales es sus-
ceptible esta fórmula. de este modo la ley adquire su máximo de flexibilidad, y el intérprete, de su parte,
está seguro de no desnaturalizar, de no traspasar los justos límites cuidándose de cerciorarse de que cada
una de sus soluciones corresponda en forma rigurosa al fin social oculto bajo la fórmula legal, cosa que es
relativamente fácil.” BonnecaSe, Julien. introducción al estudio del derecho, cit., p. 158. e o autor desen-
volve sua teoria como maneira de supostamente oferecer respostas adequadas ao engessamento que a escola
da exegese realizou da interpretação jurídica “al esclavizar el derecho positivo a la ley y a la intención del
legislador” (p. 156). contudo, BonnecaSe não se dá conta de que a “descoberta” de uma tal “finalidade
social” jamais poderia se orientar, como sugere, à realização de determinados fins pragmatisticamente sele-
no que se refere às fontes formais, BonnecaSe esclarece que, para que as nor-
mas jurídicas e as instituições jurídicas sejam consideradas como tais, ficam, pois,
na dependência de se revestirem de uma forma determinada, levando consigo
uma marca que implicaria, assim, os caracteres específicos de toda regra jurídica,
mais particularmente sua força executória.10 assim, as fontes formais poderiam
ser definidas como referentes à forma jurídica das normas, isto é,

“Son las formas obligadas y predeterminadas que inevitablemente deben tomar los
preceptos de conducta exterior para imponerse socialmente con el aspecto del poder
coercitivo del derecho. dicho de otra manera, una regla de conducta cualquiera no
se eleva a la dignidad de regla de derecho, dotada de la plenitud de sus efectos, es
decir, de regla de derecho positivo, según la expressión consagrada, sino cuando
puede ostentar un origen que se identifica con tal o cual fuente jurídica formal.”11
(negritos nossos)

e no desenvolvimento de sua concepção, entede BonnecaSe que fontes for-


mais do direito seriam os costumes12 e as leis,13 mas não a doutrina, nem a juris-
prudência.14
Percebemos que a questão da forma colocada por BonnecaSe, embora de
grande importância, não alcançou uma boa resposta por parte de seu autor, uma
vez que o convencionalismo do qual parte na compreensão do direito, bem como
a não-elaboração em termos adequados da tensão entre forma e conteúdo, acabou
inevitavelmente por reduzir a questão da forma jurídica a uma questão meramen-
te formal e não bem articulada em termos de uma compreensão mais complexa a
exigir que a própria forma sirva, em um sentido normativo, e não meramente fáti-
co, à consecução de uma legitimidade das normas jurídicas. e estas serão questões
centrais que buscamos enfrentar, sobretudo, em face das discussões presentes no
capítulo 3.
afinal de contas, então, de que maneira é possível sustentar a existência de
fontes no direito sem cair nos riscos de um convencionalismo ou pragmatismo,
sempre devedores, ao final, de uma compreensão sociológico-positivista incapaz
de fornecer uma compreensão normativamente adequada do problema sob a ópti-

cionáveis e realizáveis. Sua teoria aparece como uma complementação ao convencionalismo exacerba-
do da escola da exegese, sobretudo quando tal complementação é encarada sob a pretensão pragma-
tista e instrumentalizadora que uma tal idéia de “fontes reais” introjeta na interpretação e aplicação do
direito.
10 BonnecaSe, Julien. introducción al estudio del derecho, cit., p. 81.
11 BonnecaSe, Julien. introducción al estudio del derecho, cit., p. 81.
12 BonnecaSe, Julien. introducción al estudio del derecho, cit., p. 82 et seq.
13 BonnecaSe, Julien. introducción al estudio del derecho, cit., p. 94 et seq.
14 BonnecaSe, Julien. introducción al estudio del derecho, cit., p. 127 et seq.
ca da legitimidade do direito? de que maneira podemos superar o convenciona-
lismo e o pragmatismo subjacentes à proposição e interpretação dos artigos 4º e 5º
da famosa Lei de introdução ao código civil, de 1942, e segundo os quais, respec-
tivamente: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a ana-
logia, os costumes e os princípios gerais do direito” e “na aplicação da lei, o juiz
atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências de bem comum”?
Podemos perceber, levando em conta a intuição de aLeSSandro
PizzoruSSo,15 que a assunção realmente compromissada de uma prática constitu-
cional, e de seus respectivos mecanismos de controle de constitucionalidade, nos
força a realizar um giro na compreensão do que possa ser interpretado como
“fonte de normatividade” no direito da modernidade.
mas de que maneira uma tal prática constitucional deve ser assumida? Quais
os impactos que uma tal assunção compromissada do constitucionalismo moder-
no gera sobre a compreensão das fontes de normatividade? de que maneira pode-
mos reconstruir o sentido normativo da legislação e da jurisdição de forma a supe-
rar falsos-problemas como o das lacunas no direito e o de sua correlata defesa de
uma discricionaridade jurisdicional?
afinal de contas, quais os pressupostos normativos que a modernidade força
o direito a cumprir na construção e reconhecimento de sua própria legitimidade?
veremos que somente uma adequada Teoria da argumentação Jurídica,
orientada à realização e à efetivação dos princípios do estado democrático de
direito, bem como dos direitos fundamentais, e justificada a uma melhor luz na
reconstrução de traços distintivos do discurso jurídico da modernidade, é capaz de
fornecer elementos sustentáveis na superação dos percalços que uma tradicional
Teoria das Fontes coloca à praxis jurídica.
o que com isto afirmamos, é que não se pode adequadamente considerar o
que seja “fonte de normatividade” do direito sem a pressuposição de uma Teoria
da argumentação Jurídica, e vice-versa. Somente assim é que, em sentido bem
diverso de KeLSen, poderemos demonstrar que somente o direito pode ser fonte
de sua própria legitimidade.

15 PizzoruSSo, alessandro. La problematica delle fonti del diritto all’inizio del XXi secolo. manuscritos, 2006.
caPíTuLo 1
acerca daS LacunaS no direiTo e de
uma Teoria Que devora a Si meSma

i. enTre LacunaS e non LiQueT: em Torno da diScricionariedade


JuriSdicionaL

“La théorie des lacunes de la loi apparaît ainsi comme une théorie qui se
dévore elle-même.” com esta frase, charLeS huBerLanT termina seu capítulo em
contribuição à obra coletiva intitulada Le problème des lacunes en droit, organi-
zada por chaïm PereLman, capítulo esse referido aos supostos mecanismos insti-
tuídos – convencionalmente, diga-se de passagem – para que se possa colmatar as
“lacunas da lei”.1
ao estudioso do direito, e aos interessados em geral, essa frase de huBerLanT
não pode passar desapercebida, sobretudo a partir do momento em que se nota
que o que se encontra em jogo na solução dessas “lacunas” não podem ser simples
“métodos hermenêuticos” capazes de pretensamente superar as dificuldades que
uma leitura convencionalista do direito coloca à própria prática jurídica.
o que está em questão, e a maneira adequada de entender como uma preten-
dida Teoria das Lacunas no direito necessariamente devora a si mesma, pressupõe
uma melhor compreensão acerca do direito, enfim, daquilo que podemos assumir
como referido, na modernidade, à praxis do sistema jurídico-normativo.
Significa dizer que o que deve ser revolvido reflexivamente são os assenta-
dos pressupostos a serem assumidos criticamente na compreensão e operaciona-
lização do direito da modernidade, em prol de uma prática social normativa
capaz de levar a sério dimensões do agir determinantes de sua racionalidade e
legitimidade, pois. esforço este que, todavia, embora huBerLanT, e a grande tra-
dição do pensamento teórico e teorético do direito, nos chame a atenção, não
consegue lograr bem.
a tradição, desde há muito tempo, nos dá mostras de já ter percebido que o
que se encontra por detrás dos problemas das chamadas “lacunas do direito” é uma

1 humBerLanT, charles. Les mécanismes institués pour combler les lacunes de la loi. in: PereLman, chaïm
(org.). Le problème des lacunes en droit. Bruxelles: Émile Bruylant, 1968, p. 66.
adequada compreensão e prática do direito moderno e de seu constitucionalismo,
da função jurisdicional e, por conseguinte, da separação dos poderes, bem como
questões concernentes à democracia e à legitimidade, pois, do próprio direito.
na verdade, o que está em jogo é a superação de uma leitura convenciona-
lista do direito no reconhecimento de seu caráter principiológico e argumen-
tativamente aberto, bem como a assunção do sentido atrelado ao constituciona-
lismo moderno de igual reconhecimento de liberdades, na maior medida possí-
vel, a todos os concidadãos, enfim, a assunção normativa da construção de uma
Sociedade de homens livres e iguais. igualmente está em questão a superação
do reconhecimento expresso, ou velado, de uma discricionariedade jurisdicio-
nal mediante uma escorreita compreensão do que as funções legislativas e juris-
dicionais nos cobram em face da modernidade do estado democrático de
direito. Por fim, tudo isso acaba por desaguar no desafio que se nos faz presen-
te de compreender e realizar a praxis jurídica em busca de sua legitimidade, por
sua vez intrinsecamente agarrada à idéia de democracia. É disso, afinal, e par-
tindo de dificuldades que a Teoria do direito não vem conseguindo se livrar,
que este livro trata. Se, ao final destas páginas, tivermos por convencido que
uma Teoria das Lacunas, bem como uma tradicional e convencionalista Teoria
das Fontes, que àquela se faz de pressuposto, devoram a si mesmas, teremos
alcançado nosso objetivo.
nesse sentido é que um autor clássico e essencial no debate acerca das lacu-
nas, quem seja, ernST ziTeLmann, fora bastante lúcido ao afirmar que se colocam
juntamente com o problema das lacunas questões extremamente íntimas ao pró-
prio direito, como a relação deste e sua aplicação jurisdicional, a relação entre
legislação e direito, entre coação e liberdade, bem como, à época, a relação entre
direito positivo e direito natural.2
o interessante de se perceber é que mesmo autores ligados a uma leitura
extremamente funcionalizada e positivista da prática jurídica estão, quase sempre,
convencidos de que as questões tangentes a uma Teoria das Lacunas encontra-se
diretamente conectada ao cerne do que se pode adequadamente compreender por
direito, uma vez que sistema normativo. carLoS coSSio nos demonstra isto, afir-
mando que o que se coloca em xeque, na verdade, com a questão referente às lacu-
nas do direito, é uma determinada noção de “ordenamento jurídico”.3
ziTeLmann, em seu clássico texto sobre a matéria, Lücken im recht, chama
nossa atenção para o fato de que o tema das lacunas jurídicas nem sempre era
enfrentado adequadamente por seus contemporâneos, ficando no esquecimento

2 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho. Trad. carlos g. Posada. in: aavv. La ciencia del derecho.
Buenos aires: Losada, 1949, p. 290.
3 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico. 2. ed. Buenos aires: Losada, 1947, p. 18.
por quase todos ignorarem esta temática.4 arrisca ainda o autor a afirmar que tal-
vez o primeiro a colocar, e a superficialmente enfrentar, a questão das lacunas
teria sido Brinz, a quem não se seguiram grandes esforços de aprofundamento na
matéria.5
indispensável é reconhecermos que, após este texto de ziTeLmann, a questão
das lacunas no direito foram fortemente inflamadas no debate jurídico interna-
cional, mas, desde um autor como KeLSen, pouco se tem proposto na superação de
uma certa estagnação que esta matéria acabou vivenciando por ter se cristalizado
de uma maneira aproblematizada no seio da própria Teoria do direito.
a questão das lacunas no direito são colocadas por coSSio da seguinte forma:
haveria lacunas no direito positivo? e o próprio autor adianta-se na explicação de
que o que está em foco é se haveria “casos judiciais” que não seriam, nem estariam,
compreendidos em, ou mesmo “subsumidos” a, quaisquer “gêneros normativos de
um sistema legal”.6 ou seja, a questão é referida ao fato de o direito conter clarões
ou lacunas, enfim, espaços “neutros” ou “sem juridicidade”, como espaços situados
à margem ou mais além das possibilidades jurídicas do próprio direito.7
É o próprio coSSio quem, buscando enfrentar esse problema, nos vai expor
que, definitivamente, houve quem afirmasse a existência de lacunas no direito e
que, para tanto, na justificativa dessa assertiva, teria invocado como argumento “as
limitações naturais da natureza humana e a riqueza criadora da vida”8 que, dessa
forma, fugiriam da alçada do Legislativo por mais esforçado que fosse seu empe-
nho por sempre surgir na vida cotidiana casos antes jamais previstos. a essa cor-
rente, coSSio atribui a alcunha de realismo ingênuo. isso porque, para os defenso-
res de tal posição, a cada a) situação não prevista pelo Legislativo, bem como a
cada b) radicalmente nova situação da vida,9 teríamos a constatação de uma falha
no direito.
Para coSSio, um autor que poderia ser incluído nesse realismo ingênuo é
guSTav radBruch. Sem maiores aprofundamentos acerca de sua particular pers-
pectiva sobre o tema, faz-se a nós denunciante de seu posicionamento o seguinte
trecho ao final de seu rechtsphilosophie:

“com efeito, é evidente que existe, que há também um direito internacional positi-
vo. ¿Quem o negará? Serve-lhe de suporte, uma vontade comum, colocada acima dos
diversos estados. esta tanto pode achar expressão em muitos acôrdos expressamente

4 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 290.


5 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 291.
6 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 17.
7 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 17.
8 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 19.
9 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 20.
celebrados entre êles, como num direito consuetudinário reconhecido tàcitamente
por todos. certamente, só uma pequena parte das relações jurídicas internacionais é
que vem a achar-se disciplinada por um ou outra destas formas. mas é preciso não
esquecer que, para a integração das suas lacunas, aí estão também os preceitos fun-
damentais contidos no clássico art. 1 do código civil suísso.”10 (negritos nossos)

Torna-nos bastante nítido, sobretudo ao interpretamos o trecho acima, que o


problema das lacunas no direito está, como já insinuado, diretamente conectado
à questão de uma Teoria das Fontes – que, por sua vez, somente pode ser adequa-
damente problematizada à luz de uma Teoria discursiva da argumentação
Jurídica.
mas é o próprio coSSio quem apresenta uma consistente crítica a esse realis-
mo ingênuo, por os partidários dessa posição pressuporem que o direito, em uma
redução realista da questão, seria tão-somente o catálogo abstrato daquelas situa-
ções contempladas em lei de maneira justaposta, sendo que o fato de serem assu-
midas pelo Legislativo seria o suficiente para a aquisição dos atributos necessários
de juridicidade. Por sua vez, aquilo não chancelado pelo Legislador, que não se
encontra em sua esfera de contemplação, implicaria uma lacuna porque, como
conclui coSSio, toda esta questão gira em torno da identidade que se apregoa entre
a lei e a “intenção do legislador”.11
embora coSSio passe a criticar tal proposta a partir daquilo que entende
como sendo estruturas e funções ontologicamente necessárias de certas figuras
que devem ser tomadas como subjacentes ao direito mesmo – figuras estas às quais
o realismo ingênuo seria cego e que implicariam o fato de a legislação jamais se
“limitar à enunciação dos casos, mas de enunciá-los em função de algo ontologi-
camente necessário”,12 como o referente a tudo que não está proibido, está juridi-
camente permitido – pretendemos enfrentar ao longo destas páginas uma questão
que, embora esteja mais explícita na proposta desse realismo ingênuo, não deixa
de também se fazer latente nas concepções de autores mais sofisticados como
KeLSen, ou mesmo de seus discípulos, como coSSio.
esta questão que pretendemos colocar em evidência, como parte de uma dis-
cussão mais ampla, é o convencionalismo na interpretação e prática do direito
que, de maneira reiterada em sede de Teoria do direito, não vem permitindo a
superação de dificuldades e, na verdade, de muitos falsos problemas que se colo-
cam à Teoria e prática jurídicas como, e inclusive, a própria Teoria das Lacunas no
direito.

10 radBruch, gustav. Filosofia do direito. Trad. L. cabral de moncada. São Paulo: Saraiva, 1934, p. 289.
11 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 21.
12 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 22.
Por agora, cabe-nos concordar, com coSSio, que o grande equívoco desse rea-
lismo ingênuo foi ter caído em um casuísmo que o levou a vislumbrar lacunas no
direito em razão de enxergá-lo como um “catálogo de casos abstratamente assina-
lados nas leis”.13
isso levou o próprio coSSio a vislumbrar uma enorme contradição nesse rea-
lismo, em razão de que, se realmente existissem lacunas, e no caso de se ter que
decidir em face dessas lacunas, o julgador teria que decidir o caso sem uma norma
de direito positivo, criando uma norma individual “à margem da lógica do dever-
ser” e com efeitos retroativos.14 embora não seja uma questão de “lógica do dever-
ser”, como o autor outrora colocou, devemos já explicitar que o que é faltante no
enfrentamento dessa matéria é uma adequada compreensão do direito como sis-
tema de princípios a garantir e possibilitar juízos de coerência normativa em face
da mais variada sorte de casos concretos.
Toda essa discussão proposta por coSSio aparece nas primeiras páginas de seu
livro dedicado à questão da completude do direito, e intitulado La plenitud del
ordenamiento jurídico. Parece-nos claro que a questão das lacunas no direito
somente podem ser colocadas se, de maneira dependente, também se fizerem pre-
sentes problematizações e análises sobre a velha questão em torno da completude
do direito.
assim é que um autor clássico da Teoria do direito, quem seja, norBerTo
BoBBio, vai colocar que a consideração das lacunas no direito implica, pois, dizer
que o sistema é incompleto, ou seja, que o direito padeceria de uma incompletu-
de desde um ponto de vista normativo, o que o impossibilitaria de “ter uma norma
para regular qualquer caso”.15 isso, por via de conseqüência, significa dizer que a
defesa do ideal de completude do direito traz como conseqüência o combate à
idéia de lacunas no direito. o dogma da completude, como BoBBio o chama, pro-
pugna que o direito é capaz de fornecer ao intérprete-julgador, em cada caso, uma
solução sem que se faça recurso à “eqüidade”.16 veremos, ao longo da discussão,
que realmente podemos sustentar a completude do direito, mas muito diferente-
mente das bases das quais, e por exemplo, BoBBio parte.
PereLman propõe a questão no sentido de uma tensão entre lógica formal e
lógica jurídica, nos fazendo, por outro lado, crer que a existência das lacunas não
implicaria, no caso do direito, uma incompletude. isso porque, segundo o autor,
em um sistema meramente formal, a referência a lacunas corresponderia à noção

13 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 24.


14 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 26.
15 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. maria celeste cordeiro Leite dos Santos. Brasília:
unB, 1997, p. 115.
16 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 119.
de incompletude.17 esta incompletude, em face de um “sistema formal”, estaria jus-
tificada quando “a partir dos axiomas e regras de inferência do sistema” estivésse-
mos impossibilitados de demonstrar a formulação de uma proposição a partir dos
elementos internos a esse mesmo sistema.18 Porém, o próprio autor nos alerta para
o fato de que, no caso do direito, o problema seria radicalmente diferente, uma vez
que a “lógica jurídica” seria capaz de fornecer ao intérprete-aplicador um instru-
mental intelectual capaz de auxiliá-lo quando a “lógica formal” assim não se apre-
sentasse capaz.19 disso decorreria o fato de que o direito não seria incompleto,
embora pudessem ser constatadas lacunas a serem superadas pelo aplicador. e
assim o é porque, segundo o autor, a construção jurídica permite ao aplicador e
intérprete do direito, a um só tempo, não só perceber a lacuna como também
preenchê-la.20 e aqui surge-nos uma questão: como podemos falar em lacuna se o
próprio direito supostamente permitiria a solução dessa mesma lacuna?
o raciocínio de PereLman somente pode ser explicado, mas não adequada-
mente justificado, quando recorremos a uma compreensão convencionalista e
não-principiológica do direito, isto é, quando concebemos o direito como um
universo ou “conjunto” de pactos expressos ou tácitos capazes de nos fornecer ele-
mentos normativos para decidir um caso que antes fora, repita-se, expressa ou
tacitamente negociado, acordado ou assumido em um determinado sentido. a
questão contraditória que surge nessa concepção é que o direito não seria incom-
pleto, embora pudesse ter verificadas suas lacunas, exatamente porque, no caso de
não se ter uma norma – convencionalmente firmada –, o direito mesmo oferece-
ria uma norma, também convencionalmente firmada, capaz de permitir a constru-
ção de um raciocínio rumo a uma solução, quando, ou exatamente porque, nenhu-
ma solução é, desde antes, já decorrente das demais normas convencionalmente
pactuadas, isto é, em razão da suposta “lacuna” verificada.
Por seu lado, o problema da completude do direito, e por sua vez, das lacu-
nas no direito, é conectado, por interpretações mais cautelosas sobre o problema,
à questão da coerência do direito.
mas devemos já alertar o leitor que coerência, da maneira como a tradição da
Teoria do direito vem propondo, trata-se de uma suposta coerência a ser alcança-
da em termos de não-contradição e não-contrariedade abstrata e independente de

17 PereLman, chaïm. Ética e direito. Trad. maria emantina galvão. São Paulo: martins Fontes, 1996, p. 645.
este trecho que estamos a citar, de ethique et droit, fora publicado anteriormente em 1968 sob o título de
Le problème des lacunes en droit, essai de synthèse: PereLman, chaïm. Le problème des lacunes en droit,
essai de synthèse. in: PereLman, chaïm (org.). Le problème des lacunes en droit. Bruxelles: Émile Bruylant,
1968, p. 537 et seq.
18 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 645.
19 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 646.
20 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 653.
todo o contexto concreto de interpretação e aplicação normativa.21 esta é, inclu-
sive, uma das inúmeras razões pela qual somente uma Teoria da argumentação
Jurídica,22 orientada aos desafios que a complexidade e modernidade do direito
moderno coloca a si mesmo, é capaz de enfrentar adequadamente as questões que
aqui começam a se delinear.
mas voltando à questão tradicional de como se coloca em questão a relação
entre completude e coerência do direito, sobretudo quando o que se está em jogo,
para a tradição, ao se pretender coerência é a unidade do direito – o que, inclusi-
ve, podemos afirmar que levou KeLSen a construir sua Teoria Pura, em razão de
uma busca lógica por um ideal de unidade e coerência, todavia devedores de uma
teoria da legitimidade do direito em termos fortes23 –, vejamos como Savigny já
expunha a questão:

“(...) el conjunto de las fuentes jurídicas arriba indicadas constituye una totalidad,
destinada a resolver cualquier problema existente en el campo del derecho. Para
que sea idónea a este fin, tenemos que exigir dos cosas: unidad y perfección [com-
pletude]. en este aspecto no podemos limitarnos sólo a las leyes, sino que tenemos
que tener en consideración más bien todas las clases de fuentes jurídicas (...) Los
estados defectuosos de aquella totalidad, comparables con los defectos de las leyes
particulares, se refieren a las dos exigencias que estabelecimos arriba. Si falta la
unidad, hemos de eliminar una contradicción; si falta la perfección exhaustiva,
hemos de colmar una laguna. en el fondo podemos reducir ambos casos a un con-
cepto fundamental común. en efecto, en todas partes intentemos llegar a la uni-
dad: a la unidad negativa mediante la eliminación de contradicciones; a la unidad
positiva, llenando las lagunas.”24

o que desde já podemos reafirmar, uma vez mais, é que toda a problemática
em torno das supostas lacunas no direito refere-se a uma adequada Teoria das
Fontes no direito – que, por sua vez, acrescente-se, deve ser compreendida na
superação de um convencionalismo e de seu co-dependente pragmatismo por,

21 nesse sentido, que estamos a criticar, confira: BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 85.
22 Problematizando os desafios de uma Teoria da argumentação Jurídica, cf.: maia, antônio cavalcanti;
BuSTamanTe, Thomas rosa de. Teoria da argumentação Jurídica. in: BarreTo, vicente de Paulo (org.).
dicionário de Filosofia do direito. São Leopoldo e rio de Janeiro: unisinos e renovar, 2006, pp. 64-68.
23 chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen,
Luhmann e habermas, cit.; chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma
reconstrução crítico-discursiva na alta modernidade, cit.
24 Savigny, Friederich carl von. Los fundamentos de la ciencia Jurídica. Trad. Werner goldschmidt. in: aavv.
La ciencia del derecho. Buenos aires: Losada, 1949, p. 124.; Savigny, Friederich carl von. derecho romano
actual. Trad. Jacinto mesía e manuel Poley. madrid: góngora, 1847, t. i, pp. 215 e 216.
ambos, pressuporem o direito como um “sistema de regras”, na expressão de
ronaLd dWorKin.25
mas o que nos chama mais a atenção nas palavras de Savigny é a questão que
pode ser reconduzida, ao final, ao problema da coerência no direito. afinal de
contas, o autor identifica tanto a questão da superação das antinomias – que, aliás,
se trata de um outro falso-problema em razão dos pressupostos que a tradição
parte –, bem como a questão referente às lacunas, como uma questão da referên-
cia à unidade do direito. o assento negativo quanto à unidade no que tange à
superação das contradições, e a correspondente referência positiva no que se refe-
re ao preenchimento das lacunas, diz respeito, exatamente, a uma leitura natura-
lista da questão: aquelas devem ser eliminadas, excluídas e estas devem ser preen-
chidas, completadas, mas ambas na busca de uma unidade, isto é, da ausência de
incoerências ou falhas, na leitura de Savigny.
BoBBio também resgata essa discussão, desde sua compreensão do direito
como um sistema de normas convencionadas no sentido antes elucidado, vislum-
brando uma conexão entre o problema da coerência com o problema da comple-
tude do direito. Segundo o autor, teríamos uma incoerência quando o direito
tivesse tanto uma norma proibitiva, quanto uma norma permissiva, de determina-
do comportamento, e verificaríamos a incompletude, diferentemente do que
PereLman compreende, quando no sistema do direito não houvesse nenhuma
norma, seja proibitiva, seja permissiva, de determinado comportamento.26 mas,
conclui o autor, que enquanto a coerência, isto é, a questão da unidade do direito,
haveria que ser assumida como uma exigência, mas não como uma necessidade27
– uma vez que, segundo o autor, da exclusão de todas as antinomias não depende
a existência e a aplicação do direito –, por seu turno a completude seria uma
necessidade, pois se não assumíssemos o direito como completo, no sentido,
inclusive, de que o intérprete-aplicador devesse julgar cada caso de acordo com
“uma norma pertencente ao sistema”, não poderia esse sistema “funcionar”. a
completude surgiria como uma condição,28 uma exigência, pois, sem a qual o
direito não poderia ser aplicado pela autoridade jurisdicional. nisto, inclusive é

25 Sobre a Teoria do direito de ronaLd dWorKin, não deixe de também cf., dentre outros: chueiri, vera
Karam de. dworkin. in: Barreto, vicente de Paulo (org.). dicionário de Filosofia do direito. São Leopoldo
e rio de Janeiro: unisinos e renovar, 2006, pp. 259-263; chueiri, vera Karam de. Filosofia do direito e
modernidade. curitiba: Jm, 1995; chueiri, vera Karam de; Fachin, melina girardi. dworkin e a tentativa
de um constitucionalismo apaziguado. revista Brasileira de direito constitucional, São Paulo, n. 7, v. 2, pp.
325-341, 2006; SgarBi, adrian. clássicos de Teoria do direito. rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
26 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 116.
27 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 117.
28 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 118.
que se assentaria a força, segundo BoBBio, do próprio dogma da completude, no
fato de não ser uma mera exigência, mas uma necessidade.
Prontamente o autor vincula a questão da completude e o dogma da completude
à referência histórica que o artigo 4º do code napoléon representa e que dispõe que:

“art. 4º o juiz que recusar julgar, a pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insu-


ficiência da lei, poderá ser processado como culpado de denegação de justiça.”

a partir dessa questão, BoBBio passa a analisar a impossibilidade de se decre-


tar o non liquet por parte da autoridade jurisdicional como um exercício de lógi-
ca jurídica, uma vez que haveria implícitas a essa questão duas regras, quais sejam:
a) aquela segundo a qual o juiz é sempre obrigado a julgar todos os casos que se lhe
colocam; e b) aquela segundo a qual deve julgá-los de acordo com, ou com base
em, uma norma pertencente ao sistema.29 exatamente por essas razões é que não
poderia o julgador simplesmente, em situações de dificuldades interpretativas,
repelir o caso a se decidir, ficando, pois, excluído o juízo de non liquet.
Podemos aqui já adiantar uma questão. antes de mais nada, podemos escla-
recer que a construção legítima do direito da modernidade exige que sejam indis-
tintamente a todos reconhecidos direitos de acionabilidade jurisdicional em defe-
sa e garantia dos direitos subjetivos e para o cumprimento dos deveres. Somente
quando temos reconhecidos, na maior medida possível, iguais direitos desenvol-
vidos em uma prática argumentativa democrática, e somente quando, exatamen-
te em razão desse reconhecimento, temos também a possibilidade de fazê-los valer
em face de pretensões de suas violações, ou de desrespeito dos deveres, é que
podemos verificar uma das condições indispensáveis para a construção legítima do
próprio direito. esta é uma questão que se liga, indissociavelmente, à forma jurí-
dica moderna. É uma questão, pois, que atrelada também se encontra à dimensão
principiológica do direito. não é porque se convencionou, em um processo legis-
lativo, que a autoridade jurisdicional tem que decidir os casos que se lhe apresen-
tam, sob pena de se lhe imputar uma sanção qualquer, que a questão da comple-
tude do direito passa a ser uma necessidade.
antes, e por mais que não tivéssemos qualquer dispositivo legal que determi-
nasse a impossibilidade de se decretar o non liquet, ainda assim poderíamos con-
cluir pela exigência normativa de que todo e qualquer caso deve apresentar sem-
pre uma resposta capaz de ser assumida como a única resposta adequada àquele
caso. Trata-se de uma questão interna ao sentido principiológico do direito da
modernidade, e não de uma simples “convenção” expressada em um processo
legislativo – embora essas mesmas convenções apresentem-se como referenciais

29 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 118.


interpretativos na reconstrução do sentido normativo do direito moderno. aliás,
é somente assim que podemos superar a questão entre “coerência” e “completu-
de”, não com referências a um sistema convencionado de normas, das quais
BoBBio, inclusive, mas não só, parte, mas sim tomando por base a compreensão do
direito como um sistema principiológico.
não compreendendo que essa exigência decorre da própria construção e forma
do direito moderno, PereLman também parece atribuir ao referido artigo do code
napoléon a obrigação do juiz de julgar. assim, desenvolve o autor no sentido de que
quando o juiz verificasse a existência de uma lacuna, ele seria automaticamente obri-
gado a preenchê-la; inclusive é nesse sentido, diferente do que aqui propomos, que
vai afirmar, junto com huBerLanT, que a Teoria das Lacunas devora a si mesma.30
o que aqui propomos é que o aprofundamento daquelas questões que acima
já pontuamos, e que até mesmo a tradição reconhece como necessárias, destrói a
própria Teoria das Lacunas em razão dos pressupostos dos quais parte; mas jamais
assumimos o sentido de que ela devora a si mesma porque o juiz, ao supostamen-
te encontrá-la, devesse superá-la... não há lacunas quando se assume o direito, e
o compreende à melhor luz, como um sistema idealmente coerente de princípios.
o que está em jogo aqui não é qual teoria sobre as lacunas no direito deve ser
assumida como melhor; o que está em questão é que a Teoria das Lacunas no
direito é completamente suplantada quando se assume uma Teoria da
argumentação Jurídica capaz de responder às inúmeras indagações que uma
Teoria das Lacunas levanta, mas não consegue responder. assim é que a Teoria das
Lacunas devora a si mesma, a partir dos próprios questionamentos que suscita.
mas a questão do non liquet é uma preocupação generalizada na doutrina tra-
dicional. ziTeLmann afirma que, como se deve sempre encontrar uma solução para
cada caso, deve-se superar a lacuna “com o auxílio da ciência do direito”.31
KarL engiSch, por sua vez, refere-se ao não menos debatido artigo 1º do
código civil suíço, segundo o qual:

“art. 1º. no caso de não ser possível descobrir na lei qualquer norma, o juiz deve deci-
dir segundo o direito consuetudinário e, se também este faltar, segundo a regra que ele,
como legislador, estabeleceria, seguindo a doutrina e a jurisprudência consagradas.”

interessante é que engiSch, embora coloque muito propriamente um proble-


ma referido a esta disposição legislativa, não consegue superá-la em razão dos
pressupostos dos quais parte sua compreensão do direito. engiSch questiona: em
que medida o julgador, em caso de lacuna, e tomando em conta o referido artigo

30 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 646.


31 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 289.
do código civil suíço, deve apoiar-se em seu juízo, em sua concepção eminente-
mente pessoal acerca de uma legislação acertada, e em que medida ele deve reali-
zar um esforço para manter uma ligação com o legislador histórico?32
as questões colocadas pelo autor, embora este não encontre em seus escritos
uma resposta satisfatória, nos parece por demais preciosas, porque colocam em
relevo dois problemas centrais na interpretação e aplicação do direito, e que esta-
rão desenvolvidos nas páginas seguintes deste livro.
o primeiro se refere a uma certa tendência em se interpretar o direito como
mergulhado em um ethos compartilhado e comum a todos, enfim, à tendência de
sobrepor-se ao sentido deontológico dos princípios jurídicos uma carga axiológica
a privilegiar, na justificação e na aplicação do direito, uma determinada concep-
ção de “vida boa” em detrimento do reconhecimento de todos como cidadãos que
reconhecem a si próprios como iguais em face do exercício de suas liberdades sub-
jetivas – e também comunicativas.33
a segunda questão refere-se ao sentido de desenvolvimento da prática do
direito que deve ser reconhecida como ancorada no passado, embora igualmente
aberta ao futuro. Trata-se da busca, em sentido forte, de uma coerência ou inte-
gridade no direito.34
mas aqui não vamos adiantar o desenrolar dessas questões. Preferimos voltar
aos posicionamentos de engiSch, que vem a denunciar importantes conflitos capa-
zes de reconduzirem-se aos pressupostos dos quais a tradição do pensamento jurí-
dico parte na discussão dessa matéria.
no reconhecimento explícito de uma discricionariedade, o que muitos out-
ros autores fazem implicitamente, engiSch afirma que o fato de não se poder
declarar o non liquet, por o juiz estar obrigado a decidir toda e qualquer questão
jurídica, não significa, a seu ver, que essa decisão “possa ser suficientemente fun-
damentada a partir de princípios jurídicos, que ela seja, portanto, uma decisão de
direito e não uma simples decisão arbitrária”.35 e a explicação de enSgiSch é pro-
posta em termos de uma mera e implícita observação sociológica no sentido de
que embora “em geral” os tribunais não têm competência para decidir arbitraria-
mente, assim o fazem às vezes;36 e isto, como já dito por ele, significa que nem
todas as decisões possam ser adequadamente fundamentadas no direito.
e assim acaba por concluir engiSch – em um sentido radicalmente oposto ao
de BoBBio, por acreditar que a idéia de uma plenitude, ou completude, do direito

32 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico. Trad. J. Baptista machado. Lisboa: calouste gulbenkian,
1996, p. 307.
33 cf., infra, capítulo 3.
34 cf., infra, capítulo 6.
35 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 308.
36 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 309.
não se faz, a seu ver, nem lógica, nem teorético-juridicamente necessária –, que
uma resposta que supere as lacunas no direito, na medida do possível através de
“idéias jurídicas”, é o que seria de nós exigido.37
as razões para compreendermos como BoBBio e engiSch pensam tão diferen-
te acerca da completude do direito estão deitadas em algo mais profundo, o que
seja, uma adequada compreensão do que venha a ser o desenvolvimento da ativi-
dade jurisdicional. enquanto engiSch torna claro que determinadas decisões, em
razão das constatadas “lacunas”, podem ser arbitrárias, embora, na medida do pos-
sível, não devessem, BoBBio acredita poder superar essa idéia de incompletude na
aplicação do direito se socorrendo de critérios de integração do direito.
embora engiSch assuma uma postura derrotista no que tange ao ideal de com-
pletude do direito, postura essa da qual discordamos em termos de uma Teoria da
argumentação Jurídica, o autor teve o mérito de trazer à tona algo implícito em
todas as propostas teóricas referentes a uma Teoria das Lacunas no direito: o pro-
blema da discricionariedade. na verdade, o problema de uma Teoria das Lacunas
no direito está também intrinsecamente conectado ao problema da discricionarie-
dade jurisdicional ao qual engiSch, de certa forma, se mostra resignado por reco-
nhecê-la em certos casos. BoBBio, por sua vez, acredita, todavia sem sucesso, poder
domar o reconhecimento de uma discricionariedade, e a defesa da completude do
direito, à luz de critérios de autointegração (analogia e, ironicamente, os “princí-
pios gerais do direito”) e heterointegração (recurso a ordenamentos diversos e a
fontes diversas daquela assumida como “dominante”) do direito.38

ii. a comPLeTude PoSTa em XeQue: oS deSdoBramenToS de uma


SocioLogia Jurídica

o dogma da completude do direito inicialmente estava atrelado à identifica-


ção do direito como um “direito estatal”, como emanação mediata ou imediata do
soberano, e o reconhecimento de lacunas, aos olhos dessa compreensão, implica-
ria um certo enfraquecimento da autoridade do soberano e a própria quebra do
“monopólio da produção jurídica estatal”.39 Bastaram movimentos de codificação,
como o francês, de 1804, e o alemão, de 1900, para que surgisse a defesa de um
“fetichismo da lei”, nas palavras de BoBBio,40 e a decorrente crença de uma com-
pletude perfeitamente apreendida pelo Legislativo nos textos e disposições legais.

37 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 309.


38 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 146 et seq.
39 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 121.
40 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 121.
recursos à “vontade do legislador” eram empregados, à luz deste contexto,
para supostamente explicitar algo que, embora não referido ao texto legal, desde
sempre implícito já encontrar-se-ia na “mente do legislador”.41
Todavia, o envelhecimento da própria codificação na França e as profundas
transformações pelas quais o mundo passou, sobretudo após 1850, trouxeram à tona
inúmeros problemas em sede de aplicação do direito e falar, então, em completude do
direito, à época, seria um despropósito42 – sobretudo quando o que se estava, desde
uma óptica convencionalista, pretendendo com isso dizer é que a “obra do legislador”
permitiria encontrar soluções para todos os casos que se colocassem em questão.
assim é que BoBBio mesmo nos alerta para o fato de que através das investi-
gações sociológicas o “mito do estado” e o “dogma da completude” foram postos
em xeque. contra os pressupostos defendidos pela escola da exegese,43 surge a
proposta de uma escola do direito Livre e que pretendia, antes de mais nada,
superar a compreensão de que o “direito estatal” seria completo: acreditavam,
para tanto, ser indispensável, diferentemente dos defensores da escola da exegese,
reconhecer que o direito era completamente cortado por lacunas e que o desafio
seria reconhecê-lo como um “fenômeno social”, recorrendo-se a outras fontes que
não o “direito legislado” para que se pudesse adequadamente retirar regras jurídi-
cas que agora fossem, supostamente, adequadas às novas necessidades.44
eugen ehrLich, por exemplo, é um autor que se insere nessa corrente na defe-
sa de um direito vivo, que seria contraposto ao “apenas vigente” perante tribunais
e órgãos estatais.45 esse “direito vivo” dominaria a vida, estaria infiltrado nos mais
variados campos da vida cotidiana, muito embora não pudesse ser assumido como
formalmente “vigente”, nem formalmente fixado em textos legais. não nega
ehrLich, claro, a relevância da legislação e das decisões jurisdicionais para se
conhecer o “direito vivo”, mas afirma que a também observação “direta do dia-a-
dia do comércio, dos costumes e usos e também das associações, tanto as legalmen-
te reconhecidas, quanto as ignoradas e até ilegais”,46 seriam indispensáveis para que
se tivesse uma compreensão adequada do que o direito realmente seria.
ehrLich ainda afirma que o direito comercial seria a “única área do direito”
que partiria não somente de maneira ocasional, mas regularmente, daquilo que
“realmente se pratica” no cotidiano.47

41 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 123.


42 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 124.
43 cf., infra, capítulo 2.
44 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 122 et seq.
45 ehrLich, eugen. Fundamentos da Sociologia do direito. Trad. rené ernani gertz. Brasília: unB, 1986, p. 378.
46 ehrLich, eugen. Fundamentos da Sociologia do direito, cit., p. 378.
47 ehrLich, eugen. Fundamentos da Sociologia do direito, cit., p. 377.
“a organização do latifúndio e da fábrica, até do banco, continua sendo um livro
fechado a sete chaves para o jurista, mas a casa comercial ele conhece, ao menos em
suas linhas básicas, até do código comercial. (...) e o direito contratual do moderno
direito comercial não foi extraído do corpus iuris nem é uma obra de meditação pro-
funda de seus autores.”48

hermann KanToroWicz, por sua vez, também, veio a defender um “direito


livre”, que viveria com independência do direito estatal, muito embora afirmasse
o autor que o contrário não poderia ter lugar. isso porque o “direito livre” cons-
tituiria o solo do qual o “direito estatal” brotaria, uma vez que em sua maioria, os
“pensamentos legislativos” já existiriam anteriormente como princípios de
“direito livre”.49 e é assim que o autor propõe que as lacunas na aplicação do
direito sejam superadas através do recurso, ou por meio, do “direito livre”.
KanToroWicz vai veementemente afirmar que não há “algumas” lacunas na lei,
mas sim muitas e que somente podem ser preenchidas com o “direito livre”, com
a “espontaneidad de sus decisiones y la plasticidad emotiva de su contenido fren-
te al caso dado”.50
Segundo o próprio autor, esse “direito livre” se apresentaria em duas formas
principais: um direito individual e um direito da comunidade. o “direito livre”
em sua forma de “direito individual” surgiria quando um indivíduo reconhecesse
um princípio jurídico por conta de sua própria convicção individual, enquanto
estaríamos perante o “direito da comunidade” quando esse princípio jurídico fosse
reconhecido pela própria comunidade, o que não impediria que um mesmo prin-
cípio jurídico aparecesse tanto sob a forma de “direito individual” como também
de “direito da comunidade”, bem como, ainda, “direito estatal”.51 KanToroWicz
tem ainda a preocupação de esclarecer que haveria uma estreita relação entre
“direito da comunidade” e “direito consuetudinário”.52
um problema que a proposta de KanToroWicz levanta, e ele mesmo reco-
nhece e nem se esforça para resolver, é de como poderíamos tomar em conta a
relação entre as esferas do chamado “direito individual” e o “direito da comuni-
dade”. mais a frente, após colocar esse problema, o autor simplesmente pontua
que o fato de nos reconhecermos como indivíduos diferentes traria consigo a
necessidade de que essas diferenças, sobretudo no que dizem respeito à tomada em
consideração dos valores da vida – ou, diríamos, de concepções de “vida boa” –,

48 ehrLich, eugen. Fundamentos da Sociologia do direito, cit., p. 378.


49 KanToroWicz, hermann. La lucha por la ciencia del derecho. Trad. Werner goldschmidt. in: aavv. La
ciencia del derecho. Buenos aires: Losada, 1949, p. 336.
50 KanToroWicz, hermann. La lucha por la ciencia del derecho, cit., p. 337.
51 KanToroWicz, hermann. La lucha por la ciencia del derecho, cit., p. 334.
52 KanToroWicz, hermann. La lucha por la ciencia del derecho, cit., p. 335.
teriam que traduzir-se em soluções diferentes pelo menos em face de uma parte
dos casos.53
a questão da sustentabilidade de um “direito consuetudinário”, em face da
assunção do direito como um sistema idealmente coerente de normas, será mais
a frente enfrentada.54 aqui podemos tão-somente adiantar que afirmar que os cos-
tumes seriam fontes de normatividade faz com que a idéia de aceitabilidade racio-
nal, no que tange a processos de reconhecimento normativo, seja confundida com,
ou reduzida a, mera aceitação. uma vez mais, é o problema do convencionalismo
que desta questão emerge.
mas isso será algo mais adiante aprofundado, e que aqui vale como alerta para
nossa discordância em face das propostas de um “direito livre”, como proposto por
KanToroWicz, ou de um “direito vivo”, como proposto por ehrLich.
discordamos, sobretudo, quando KanToroWicz: a) pretende concluir pelo com-
partilhamento de um ethos comum a todos os concidadãos, compartilhamento
este a supostamente justificar um pretendido “direito da comunidade”, ainda que
só em determinados casos, valores individuais devessem ser tomados em conside-
ração, bem como ainda b) no que tange ao problema de se pretender assumir a
existência de um “direito individual” que fosse baseado em convicções acerca do
valor jurídico de determinado preceito.
coSSio rotula esta maneira de enfrentar o problema das lacunas, inclusive da
maneira defendida por KanToroWicz, como uma proposta “eclética”. e eclética a
chama porque os defensores desse posicionamento vão afirmar que embora hou-
vesse lacunas na lei, não haveria lacunas no direito,55 exatamente porque o
direito seria muito mais que a referência a meros textos legais, porque ultrapas-
sando as leis encontraríamos os costumes, que também seriam direito e seriam
declarados como fontes de produção normativa.56 e coSSio enfrenta essa posição
que chama de ecletismo, sobretudo a partir das propostas de FrançoiS gÉny e dos
desenvolvimentos daquelas decorrentes. não perde ainda coSSio a oportunidade
de frisar que essa “posição eclética” era, à sua época, assumida quase como um ele-
mento de fé, sem que fossem aprofundadas as questões sobre o problema.57 claro
que coSSio vai estabelecer as críticas a essa concepção eclética a partir de uma pre-
tensa leitura gnoseológica, como, por exemplo, entendendo absurda afirmação de
que o direito não teria lacunas e as leis sim, porque se assumissem os defensores
desse ecletismo que a lei seria uma “espécie” do “gênero” direito, então a lei não

53 KanToroWicz, hermann. La lucha por la ciencia del derecho, cit., p. 338.


54 cf., infra, capítulo 4.
55 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 38.
56 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 40.
57 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 38.
poderia conter lacunas exatamente porque a relação entre gênero/espécie impedi-
ria, logicamente, conclusão contrária.58
o que vamos pontuar é que se realmente, e até os dias de hoje, se afirma que
o direito não tem lacunas, enquanto a legislação supostamente teria, isso se dá de
maneira inadequada não pelas razões e jogos conceituais dos quais coSSio faz uso,
mas em razão da concepção de direito da qual se está partindo, da compreensão
de um direito como ordem ou sistema de pactos e acordos expressos na legislação,
ou tácitos no costume, porque convencionados e meramente aceitos em ambos.
Porém, não se pode deixar de ressaltar que o grande mérito da escola do
direito Livre foi trazer à tona, uma vez mais, a discussão das lacunas no direito
como diretamente vinculadas ao problema do que se pode considerar como fon-
tes de normatividade no direito moderno.

iii. o conTra-aTaQue: o reSgaTe da comPLeTude aTravÉS daS


TeoriaS do “eSPaço Jurídico vazio” e da “norma geraL
negaTiva”

Porém, contra essa mesma escola do direito Livre, e à época de suas propos-
tas, surgiram reações do positivismo jurídico, sobretudo na defesa do caráter esta-
tal do direito, sob o argumento de que admitir uma livre investigação do direito
quando de sua aplicação, significaria, muitas vezes, romper a barreira do princípio
da legalidade.59 assim é que BoBBio nos esclarece que a tática utilizada para supe-
rar essa dificuldade não era pretender desqualificar a idéia de completude do
direito: o direito há que ser necessariamente assumido como completo; o que
haveria de ser modificado era a idéia que se tinha em torno das lacunas no
direito.60
a completude agora passou a ser encarada não sob um ponto de vista dogmá-
tico,61 como pretendido pelos defensores da escola da exegese, mas levando-se em
consideração uma dimensão mais ampliada do direito, que passou a ser encarado
desde uma óptica de sistema normativo, e não somente como uma justaposição de
textos legislativos. Se coSSio chamou aquela corrente que vislumbrava lacunas no
direito como um “realismo ingênuo”, que enxergava o direito como um catálogo
de normas abstratamente instituídas em lei, podemos, por outro, lado afirmar que
mais ingênuos ainda eram os defensores da escola da exegese, que acreditavam que

58 coSSio, carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico, cit., p. 42.


59 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 128
60 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 128.
61 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 128.
a completude do direito poderia ser romanticamente reconduzida a essas mesmas
disposições legais sem, com isso, vislumbrar qualquer falha ou lacuna no direito.
a primeira dessas reações fora a proposta teórica desenvolvida por KarL
BergBohm e referida à existência de um espaço jurídico vazio. Segundo essa con-
cepção, as normas jurídicas estendem-se sobre um determinado domínio, sobre um
determinado universo. além desses domínios sob o império do direito, haveria
outros espaços que pelo direito mesmo não seriam afetados, “como, por exemplo,
os domínios do pensamento puro, da crença ou das relações de sociabilidade”.62
esses domínios, que se encontrariam “fora” do império do direito, consistiriam em
um espaço “ajurídico” ou em um espaço jurídico vazio: não seriam lacunas no
direito, mas algo do qual o direito não trata. e assim, ou um caso encontraria sua
solução no direito, e não haveria que se falar em lacuna, ou então não encontraria
solução no direito e cairia, destarte, no “espaço jurídico vazio”.63 noutros termos:
ou o caso estaria juridicamente regulado pelo direito, e então tratar-se-ia de algo
juridicamente relevante, ou pertenceria “àquela esfera de livre desenvolvimento da
atividade humana, que é a esfera do juridicamente irrelevante”.64
as críticas aqui são prontamente acessíveis a quem compreende o direito
como um sistema de princípios: não existem, desde sempre, questões que estão, ou
já estejam, “excluídas” de uma problematização jurídico-normativa.65 Por outro
lado, também não podemos concordar com o fato de que “juridicamente relevan-
te” seja somente aquilo a que, expressa e convencionalmente, se pode fazer refe-
rência como uma regulamentação cristalizada em figuras normativas: assumir a
dimensão normativa dos princípios jurídicos, em sua abertura argumentativa às
constantes ressignificações em face da mais variada sorte de casos, tem a plena
possibilidade de oferecer respostas a todos e quaisquer casos que se colocam ao
intérprete-aplicador do direito, como se verá nos capítulos seguintes.
o jogo conceitual de BergBohm era afirmar a completude mediante o artifício
de “jogar para fora do direito” o problema das lacunas: não existiriam lacunas, mas
sim espaços que não se encontrariam sob o império do direito. Todo o problema
retorna quando esses “espaços” são problematizados internamente ao próprio direito
em face de um determinado caso, que, por exemplo, coloque em questão o exercício
da liberdade de crença de alguém, ou mesmo determinadas “regras de sociabilidade”.
outro movimento em reação às propostas de um “direito livre” e em defesa da
completude do direito em face de uma reconsideração das questões referentes às

62 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 278.


63 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 279. embora conste o termo “espaço ajurídico”.
64 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., 129.
65 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 105 et seq.
lacunas; trata-se da famosa proposta de ziTeLmann, segundo a qual, e a título intro-
dutório, todos aqueles comportamentos que não estivessem compreendidos em uma
norma particular seriam referidos a, e regulados por, uma norma geral negativa.
Provisoriamente ziTeLmann oferece um conceito de lacuna afirmando que se
trataria de uma situação de aplicação do direito em face da qual não se apresen-
taria qualquer decisão, nem se poderia inferir qualquer solução, do próprio
direito.66 diferentemente da proposta do “espaço jurídico vazio”, ziTeLmann,
muito antes, pelo contrário, não nega a existência das lacunas: afirma que estas
existiriam ainda que não fosse muito agradável a sua constatação, sendo que
somente de forma aparente existiriam, à sua época, opiniões divergentes.67
e retomando uma discussão que é muito devedora aos adeptos da escola do
direito Livre, vem ziTeLmann afirmar que a questão sobre se o direito, ou a lei, é
que teria lacunas, seria uma questão de discrepância de expressão. defendendo seu
ponto de vista, sustenta que, exatamente porque nunca conseguiríamos compreen-
der, nos limitados artigos de um código, a abundância e riqueza das variadas ques-
tões jurídicas que do cotidiano surgiriam, poderíamos ser levados a crer que, em
um primeiro momento anterior àquele de preenchimento das lacunas, a existência
destas no direito se faria inegável. Todavia, se colocássemos a atenção no momen-
to posterior ao de haver suprido as lacunas, pensaríamos que, em face do resultado
obtido, as lacunas haveriam que ser negadas.68 e a saída encontrada por ziTeLmann
é vislumbrar que, em face da multiplicidade de casos que podem decorrer da vida
cotidiana, a atividade jurisdicional tem que se socorrer, pois, no uso da analogia.69
Tudo isso porque ziTeLmann parte de uma leitura extremamente convenciona-
lista e positivista do direito. assumindo a centralidade da noção de sanção – dever
de indenização, sobretudo referido ao direito civil, e um direito de punição do
estado, em casos referidos especialmente ao direito Penal –, afirma que enquanto o
próprio direito não ligasse ou imputasse qualquer conseqüência jurídica a um deter-
minado fato, não poderiam quaisquer dessas conseqüências ser admitidas como atre-
ladas a esses fatos.70 o que o autor pretende elucidar é que, na ausência de normas
jurídicas a atribuir uma determinada conseqüência jurídica, deveria estar claro que,
para que existissem “efeitos jurídicos”, seria necessária uma regra jurídica que os
estabelecessem, enquanto para impedir tais efeitos não faria falta qualquer regra.71
assim é que ziTeLmann, desde seu viés convencionalista, vai afirmar, em um
avanço na consideração da questão sobre as lacunas no direito, que, subjacente a

66 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 289.


67 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 292.
68 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 292.
69 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 294.
70 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 302.
71 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 303.
todas as “regras de direitos especiais que sancionariam um ato com a pena, ou com
um dever de indenização, ou com qualquer outra conseqüência jurídica”, encontra-
ríamos o sentido de que seriam lícitas todas as ações enquanto não se tivesse dispos-
to o contrário. isto é, como um pano de fundo, esta regra geral negativa, que não teria
qualquer necessidade de se fazer expressa, viria a determinar que, com a “exceção”
dos “casos especiais” que viriam referidos às normas que estabeleceriam qualquer
conseqüência jurídica a um determinado fato, todos os demais atos estariam livres de
castigo e indenização. e o raciocínio de ziTeLmann continua no sentido de que a
enunciada regra geral negativa, como o próprio nome proposto, é geral no sentido de
que, “em regra”, os comportamentos seriam todos permitidos, a não ser que se crias-
se uma exceção a essa “regra geral”, exceção essa que seria a atribuição de uma deter-
minada sanção a um certo comportamento que o retiraria, assim, do âmbito da regra
geral negativa, porque passaria, então, a ser regido por uma “norma especial”.72
e aqui vem ziTeLmann afirmar, levando em consideração que o juiz poderia
sempre se socorrer na aplicação desta regra geral negativa em casos de não previ-
são específica de “conseqüências jurídicas” para o fato que se lhe apresenta, que se
poderia sustentar, no que tange à aplicação do direito, a inexistência de lacunas.
Por outro lado, e levando em conta a ausência de uma determinada exceção
– como a ausência de uma determinada norma que viesse a atribuir indenização
ou pena a um determinado comportamento, isto é, como ausência de imputação
de uma “conseqüência jurídica” –, poderia uma pessoa ser levada, desde uma lei-
tura crítica e segundo ziTeLmann, a desejar uma determinada exceção positiva em
face da regra geral negativa, o que poderia, assim, ser compreendido como o dese-
jo da existência de uma lacuna.73
e em uma leitura altamente devedora de um pragmatismo jurídico, que,
como já dissemos, depende de uma compreensão convencionalista do direito a
sempre se socorrer na atividade discricionária da autoridade jurisdicional, afir-
ma ziTeLmann que, se por razões de justiça, um juiz quisesse aplicar uma norma
a um caso de indenização que não estivesse na exceção positiva prevista, ele
não estaria, nesse caso, suprindo uma lacuna, porque o fato de não se encontrar
o caso previsto em uma exceção positiva não criaria uma lacuna, mas simples-
mente o remeteria à norma geral negativa. o que, segundo o autor, ocorreria
nesse caso, não seria o preenchimento de uma lacuna, mas uma suposta modi-
ficação daquela regra geral negativa, uma vez que o juiz, criando74 uma “nova
exceção” estaria a subtrair daquela regra geral negativa um “pedaço” daquilo
que se encontrava sob seu império.

72 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 303.


73 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 304.
74 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 304.
e continua o autor afirmando que tal expediente seria mais fácil de ser alcan-
çado quando já estivesse, por exemplo, estabelecida legalmente uma obrigação de
indenizar que, por analogia, poderia ser estendida para casos assemelhados.75 a
analogia surge, assim, como um meio de correção do direito, como forma de limi-
tar a regra geral negativa que, em face de determinados casos, não poderia ser
assumida como de aplicação adequada ou desejada. assim, é que, segundo
ziTeLmann, muitas vezes se falaria de lacunas, em situações em que não estives-
sem previstas uma exceção determinada, fazendo com que esta “lacuna” fosse
assim considerada não em face de uma inexistência de solução jurídica, mas,
muito antes, pelo contrário, pelo repúdio à solução que a lei ofereceria ao caso.76
com isso, afirmar a existência das lacunas, de acordo com ziTeLmann, tratar-
se-ia, em sua grande parte, da constatação de que faltariam dispositivos legais para
determinados fatos, enfim, da inexistência de soluções axiologicamente diversas
daquelas que poderiam se fazer conectadas à regra geral negativa. “Suprir as lacu-
nas”, nesta sede de considerações, significaria, pois, uma revolta, por parte da
autoridade jurisdicional, perante essa mesma regra geral negativa através da cria-
ção de um preceito jurídico novo, “na maioria das vazes desenvolvendo outras
regras especiais já existentes”.77 e isto geralmente sob o argumento de finalidade
em face de uma atividade interpretativa assumida em termos quase universais,78
como forma, inclusive, de pretensamente limitar a arbitrariedade do juiz.79
mas, em que sentido ziTeLmann vem a afirmar que o juiz criaria uma norma,
alterando o direito vigente? esta é uma questão colocada pelo próprio autor,80 que
buscou enfrentá-la de modo a não romper a tão defendida posição de completude
do direito. afirmando que o que o juiz buscaria em face de um caso concreto seria
tão-somente uma decisão àquele caso, e não, em definitivo, a “criação de um novo
direito”,81 propõe ziTeLmann que deveríamos compreender, mesmo e ainda quan-

75 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 304.


76 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 307.
77 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 308.
78 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 306. “no doy una explicación más detallada de este difí-
cil concepto, sino que me limito a decir lo siguiente para aclaración de los no juristas: se figura uno a un
individuo normal como legislador; se admite que este legislador, bien apoyándose en una inducción natu-
ralmente incompleta, bien, previendo de antemano lo característico de los casos en su concepto general,
no en sus manifestaciones aisladas, ha dictado la regla general; pero si el mismo legislador hubiera tenido
que regularlos, habría establecido para ellos una excepción a la regla” (itálico nosso). mais a frente, quan-
do discutirmos uma melhor compreensão da atividade interpretativa referida à legislação, enfrentaremos
criticamente esse posicionamento de ziTeLmann que, aliás, está conectado diretamente com a concepção
do artigo 1º do código civil suíço.
79 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 306.
80 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 309.
81 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 310.
do o juiz lançasse mão da analogia, que aquela regra que o juiz aplica já seria
direito.82
o desenvolvimento da questão, dado por ziTeLmann, o força, de maneira
definitiva, em face dos pressupostos convencionalistas dos quais parte, a reconhe-
cer não somente a possibilidade de realização pragmatista da atividade jurisdicio-
nal, em face do forçoso reconhecimento de uma discricionariedade por parte da
autoridade jurisdicional, como também, e agora isso se apresenta, uma justificação
funcional a todo esse raciocínio que vem se desenvolvendo.
em sua justificação positivista-funcional, ziTeLmann defende a idéia de que
deveria existir uma “regra jurídica universal” que viesse a declarar como direito,
enfim, como juridicamente válido, o conjunto de “preceitos jurídicos” que fossem
obtidos pelas operações mentais levadas adiante pelo próprio juiz,83 inclusive a
analogia. assim é que, no auge de sua leitura funcionalista dispensada à matéria,
ziTeLmann propugna que esta regra devesse ser uma regra jurídica cujo conteúdo
seria “é de direito o que a lei estabelece, com certas alterações (ampliações ou
limitações) que surgem por analogia, etc., etc.; [pois] do contrário, a nova norma
não seria direito e toda a dedução por analogia seria falsa”.84
e assim é que ziTeLmann vai se socorrer à idéia de que, embora não houves-
se qualquer explicitação de uma regra assim em sede do BgB, embora no projeto
deste código tivessem sido feitas propostas para a inclusão de uma tal regra,85 não
se faz indispensável a existência de uma tal “regra jurídica escrita”, porque muitas
normas regem e valem como normas jurídicas ainda que não estejam escritas, nem
formuladas expressamente, embora sejam evidentes: este seria o caso da regra, no
direito positivo alemão, que permitiria ao juiz aplicar a analogia.86
a necessidade de ziTeLmann afirmar que existiriam determinadas normas
que, embora não formuladas expressamente, valeriam como normas jurídicas, se
faz patente não só para justificar a completude do direito, mas sobretudo para jus-
tificar a sua própria teoria de uma regra geral negativa. Se é certo que uma regra
que permitisse ao juiz aplicar a analogia devesse ser pressuposta na prática jurídi-
ca alemã, como forma de manter, funcionalmente, uma certa “coerência” em sede
de aplicação do direito e superação de suas dificuldades interpretativas, por outro
lado a referida regra geral negativa também haveria de ser igualmente pressupos-
ta na prática do direito de maneira a espancar, à sua maneira, os problemas das
lacunas e da incompletude do direito.

82 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 311.


83 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 311.
84 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 311.
85 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 312.
86 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 312.
o que ziTeLmann sorrateiramente propõe, diferentemente de BergBohm, é
trazer para dentro do direito o problema das lacunas, mas não no reconhecimen-
to de uma incompletude, repita-se, do direito, mas no reconhecimento funcional,
em justificativa ao seu convencionalismo – sobretudo no que diz respeito às “con-
seqüências jurídicas” como sempre atreladas a normas excepcionais, convenciona-
das, pois –, do princípio “de que tudo o que não está proibido, está permitido”.
o problema do desenvolvimento da questão por parte de ziTeLmann centra-
se no fato de que o mesmo encaixa este princípio não como uma peça argumenta-
tivo-principiológica, mas como um joguete funcional, que ora poderia ser empre-
gado pelo juiz, mas ora poderia pelo mesmo ser rejeitado quando fosse verificada
a necessidade de se fazer “justiça” mediante o emprego da analogia em face de um
caso concreto. vê-se, pois, que a interpretação jurídico-normativa, como propos-
ta pelo autor, se instrumentaliza, a todo momento, na realização utilitarista daqui-
lo que se poderia considerar como uma correção do direito; correção esta que se
faria necessária em razão de sua leitura convencionalista, enfim, em face de sua
compreensão do direito como composto por normas esporadicamente firmadas
em pactos e acordos, e que precisaria ser corrigido quando um novo caso não fosse
previsto ou incluído, em abstrato, naqueles mesmos pactos e acordos, sejam táci-
tos, sejam expressos. uma compreensão principiológica do direito, como a que se
fará proposta nos próximos capítulos, permitirá, ao intérprete do direito, se livrar
das dificuldades das quais ziTeLmann, mas não só, acaba por se fazer prisioneiro.
além disso, quando o autor afirma que “conseqüências jurídicas” seriam
decorrentes somente de normas a excepcionar a regra geral negativa, podemos per-
ceber aqui um duplo problema: primeiramente, a carga convencionalista em sua
leitura, uma vez que somente aquelas normas convencionadas é que seriam capa-
zes de estabelecer “conseqüências jurídicas”, isto é, impor algum tipo de sanção;
segundo, e como decorrência do primeiro, a inexistência de força normativa de tal
regra geral negativa que serviria como uma peça útil e funcionalmente indispensá-
vel ao direito no reconhecimento de sua completude, mas incapaz, todavia, de
gerar conseqüências jurídicas, uma vez que o próprio autor parece reduzir “conse-
qüências jurídicas” à imposição de sanções e à aquisição da propriedade.87
como adiante veremos, os princípios jurídicos, na mais variada sorte de casos
– e desde que assumido o direito não como um convencional “sistema de regras”,
como inclusive propugnado por ziTeLmann, mas como um verdadeiro “sistema de
princípios” –, permitem soluções e conseqüências jurídicas – que, obviamente, não
se confundem com o sentido pretendido por ziTeLmann – exatamente por serem
dotados de força normativa e não subjugados a um mero papel funcional na inter-

87 cf., assim, ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 302.
pretação do direito e na defesa de sua completude; aliás, o reconhecimento dos
princípios como normas jurídicas, e a busca de sua interpretação coerente, é o que
adequadamente permite a superação da idéia de que haja lacunas ou de que seja
necessário o socorro à analogia para a superação de dificuldades interpretativas.88
Todavia, o próprio ziTeLmann nos alerta sobre duas situações às quais, de
maneira geral, se atribui a existência de lacunas. uma dessas situações é o quadro
que até aqui se fez presente, qual seja, essa atividade de “correção” do direito
mediante o emprego de analogia. Por outro lado, afirma ainda o autor a existên-
cia de determinadas situações em que um real preenchimento de lacunas se faz
indispensável, em situações em que a lei veio a omitir uma determinada regula-
mentação,89 quando determina ao juiz decidir de uma maneira positiva sobre um
determinado ponto sem que o próprio direito indique uma direção acerca da
maneira como deva decidir.90 aqui, ziTeLmann é expresso, afirmando que nos
casos de “lacunas desta classe”, que seriam as por ele chamadas de lacunas reais e
positivas, o juiz deveria proceder completando a lacuna,91 e não simplesmente
realizando uma “correção”, porque a obrigação do juiz, nesses casos, seria a de
suprir essas mesmas lacunas, já que de outro modo, e funcionalmente, uma vez
mais, não se poderia dar uma decisão.92
Por esta razão, podemos dizer que ziTeLmann realiza uma defesa limitada da
completude do direito, por supor a existência de determinados casos que fugiriam
da referência a qualquer padrão normativo quando da construção da decisão, ou
ainda, poderíamos oferecer uma interpretação oposta e afirmar que realiza uma
defesa funcional, levada às últimas conseqüências, dessa mesma completude, se aí
quisermos também desenvolver o raciocínio e afirmar que, uma vez que o juiz
estivesse obrigado a suprir as lacunas, embora a legislação não apontasse o cami-
nho, deveria desenvolver o raciocínio em termos de uma “regra não escrita, embo-
ra evidente”, para fazermos referência a expressões do próprio ziTeLmann, que
exigisse decidir o caso exatamente em razão de se ter que decidir. mas, quanto a
isso, ziTeLmann não deixou expresso o seu raciocínio. veremos que a sofisticação
de suas propostas, bem como a radicalização dos aspectos funcionais presentes,
foram determinantes na construção da proposta de hanS KeLSen a essa matéria.

88 nesse sentido, já antes, cf.: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito Penal: contri-
buições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois, cit., p. 95 et seq.
89 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 315.
90 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 317. embora o leitor possa entender a questão que colo-
camos à Teoria do discurso de Jürgen haBermaS como uma retomada desse problema, como, aliás, a refe-
rência por parte deste a uma “zona cinzenta” a envolver argumentos de justificação e aplicação normativas,
aqui já adiantamos que uma leitura principiológica do direito, desde já, repele este outro falso-problema.
Sobretudo em face do que o mandado de injunção está a normativamente nos cobrar. cf., infra, capítulo 8.
91 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 315.
92 ziTeLmann, ernst. Las lagunas del derecho, cit., p. 320.
as críticas à proposta de ziTeLmann são inúmeras,93 embora todas ainda se
mantenham presas a uma concepção convencionalista do direito e, portanto, ina-
dequada. Todavia, sem sentido é a crítica que BoBBio apresenta a ziTeLmann, ao
afirmar que de todo inadequado seria sustentar que em um ordenamento jurídico
existiriam tão-somente normas particulares inclusivas – isto é, normas que excep-
cionariam a regra geral negativa – e uma norma geral exclusiva – a regra geral
negativa, propriamente dita –, porque ainda deveria ser considerada uma, na
nomenclatura de BoBBio, norma geral inclusiva que viesse a determinar que o juiz
poderia se socorrer à analogia em casos em que as matérias fossem, pois, análogas,
ou em casos parecidos.94 mas parece-nos que BoBBio não procedeu a uma leitura
adequada do texto de ziTeLmann: é o próprio ziTeLmann quem reconhece a neces-
sidade de se reconhecer uma tal norma – embora não com o nome atribuído por
BoBBio –, ainda que de maneira implícita e não-expressa, embora de conteúdo evi-
dente, como acima já assinalado.

iv. enTre anaLogia e PrincíPioS: ou de como oS PrincíPioS não


Seriam normaS JurídicaS

mas não tomando conhecimento desta colocação de ziTeLmann, BoBBio vai


oferecer seu conceito de lacuna no sentido de que esta seria verificável não pela
inexistência de uma norma expressa a regular um determinado caso, mas pela falta
de um critério para a escolha de qual das duas regras gerais – a inclusiva e a exclu-
siva – deveria ser aplicada.95 noutros termos: o que estaria em questão como uma
lacuna no direito, para BoBBio, seria, pois, a falta de critérios para se decidir – em
face de um caso em que faltante fosse uma norma particular inclusiva – entre o
uso da analogia e a aplicação do princípio segundo o qual “tudo o que não está
proibido, está permitido”. a lacuna seria, assim e para o autor, reencontrada quan-
do tivéssemos que enfrentar a questão que diz respeito aos critérios com base nos
quais um caso devesse ser resolvido quando da ausência de uma particular norma
a reger, expressa e convencionalmente, portanto, um caso em específico.
PereLman, por seu turno, coloca a questão das lacunas em termos expressa-
mente convencionalistas: o problema da lacuna surge quando se deve solucionar
um caso para o qual, todavia, a norma aplicada não fora explicitamente formula-
da pelo Legislativo, ou seja, refere-se à ausência de parâmetros legais para se deci-
dir um caso, razão pela qual deveria o intérprete-aplicador se socorrer à lógica

93 cf.: engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 281 et seq.; coSSio, carlos. La plenitud del
ordenamiento jurídico, cit., p. 34 et seq., PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 651 et seq.
94 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 135.
95 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 137.
jurídica para, assim, justificar aquela norma aplicada na superação, ou no preen-
chimento, de referida lacuna.96
atendo-se a um conceito mais tradicional de lacuna, engiSch é veemente em
defender a sua existência, mas não somente do que chama de “lacunas primárias”,
isto é, de lacunas que desde antes se podem fazer perceber como inerentes a uma
“regulamentação legal”, mas também no que diz respeito às “lacunas secundárias”
ou lacunas que somente se manifestam em momento posterior em razão da

“alteração das circunstâncias de facto relativas ao objeto da regulamentação: as regu-


lamentações jurídicas não raro se tornam posteriormente lacunosas pelo facto de, em
razão de fenómenos económicos inteiramente novos (pense-se na inflação) ou de
progressos técnicos (avião, filmes, discos, rádio, televisão, cirurgia do cérebro, inse-
minação artificial), surgirem questões jurídicas às quais a regulamentação anterior
não dá qualquer resposta satisfatória.”97

há ainda quem explicite a questão das lacunas como um problema direta-


mente afeto a uma leitura altamente axiológica, como o caso de cLauS-WiLheLm
canariS.98
mas, resgatando a argumentação de engiSch, interessante é perceber como o
autor coloca a questão das lacunas como afeto ao problema de conexão com a
“vontade” de um legislador histórico, ou mesmo a sua intenção. na crítica à tese
do espaço jurídico vazio, engiSch vai nos chamar a atenção para o fato de que
quando a lei não traz explicitamente uma determinada conseqüência jurídica,
como uma obrigação de indenizar outrem, isso não significaria, de pronto, a exis-
tência de algo além dos limites ou das margens do direito, enfim, não implicaria
o reconhecimento de um espaço jurídico vazio; antes, reconhece o autor rompen-
do, em definitivo, com a leitura de BergBohm, que se poderia, sim, tratar de uma
verdadeira lacuna a ser preenchida pelo juiz, exatamente por “não estar na ‘von-
tade’ do legislador ou da lei a intenção de excluir a conseqüência jurídica em ques-
tão”.99 interessante é notar como engiSch põe em conexão, dentro de uma sofis-
ticação que o convencionalismo sofreu desde as intempéries sofridas pela escola
da exegese, o preenchimento das lacunas com uma suposta “vontade” do “legisla-
dor” ou da lei.
afinal de contas, o autor sustenta que as lacunas seriam falhas tangentes a um
determinado conteúdo de regulamentação jurídica, enfim, se apresentariam como

96 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 648.


97 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 287.
98 canariS, claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Trad. a.
menezes cordeiro. Lisboa: calouste gulbenkian, 2002, p. 211 et seq.; p. 239 et seq.
99 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 283.
deficiências do direito positivo, seja legislado ou consuetudinário – donde se per-
cebe a força do convencionalismo –, referida a determinadas situações, mas cuja
falta poderia ser superada por aquilo que engiSch chamou de uma decisão judicial
jurídico-integradora.100
assim é que engiSch vai firmar o grande papel integrador que a analogia
teria quando da suposta constatação de uma lacuna: a analogia não viria a excluir
as lacunas, mas teria o condão de fechá-las, preenchê-las, bem como também essa
seria a função daquilo que vai chamar de princípios gerais do direito.101
interessante é anotar, desde já, que em razão dos pressupostos convenciona-
listas dos quais parte, engiSch, como boa parte da tradição, o que inclui o próprio
BoBBio quando se refere aos meios de autointegração do direito,102 mas também
um autor mais contemporâneo como niKLaS Luhmann,103 os princípios do direito
não seriam normas jurídicas, uma vez que serviriam para preencher as lacunas.
antes, os princípios do direito, para toda essa tradição, viriam a cumprir uma fun-
ção, isto é, serviriam para a aplicação do direito tão-somente como maneira de
superar as dificuldades em sede de aplicação quando, por suposto, encontrasse a
autoridade jurisdicional em face de uma lacuna no direito...
ora, daqui se pode extrair uma conclusão que se faz patente: se os princípios
jurídicos fossem seriamente assumidos em sua força normativa, qual a razão de se
dizer que haveria lacunas, se eles mesmos poderiam superar esse falso-problema,
mediante sua aplicação correta em cada caso? ou de outra maneira: exatamente
porque os princípios não explicitam quaisquer “condições de sua aplicação” é que

100 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 279.


101 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 280
102 BoBBio, norberto. Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 156 et seq.
103 Sobre a Teoria dos Sistemas de niklas Luhmann, seus conceitos, desenvolvimentos e implicações, cf., sobretu-
do, em nosso País: rocha, Leonel Severo. niklas Luhmann. in: BarreTo, vicente de Paulo (org.). dicionário
de Filosofia do direito. São Leopoldo e rio de Janeiro: unisinos e renovar, 2006, pp. 550-553;
neuenSchWander magaLhãeS, Juliana. o uso criativo dos paradoxos do direito: a aplicação dos Princípios
gerais do direito pela corte de Justiça européia. in: rocha, Leonel Severo (org.). Paradoxos da auto-obser-
vação: percursos da teoria jurídica contemporânea. curitiba: Jm, 1997; neuenSchWander magaLhãeS, Juliana.
Sobre a interpretação jurídica. revista de direito comparado, Belo horizonte, v. 03, pp. 429-450, 1998;
neuenSchWander magaLhãeS, Juliana. Women and human rights. human rights, minority rights, women’s
rights: proceedings of the 19th World congress of the international association of Philosophy of Law and
Social Philosophy (ivr). new york: Franz Steiner, 2001; neuenSchWander magaLhãeS, Juliana.
interpretando o direito como um paradoxo: observações sobre o giro hermenêutico da ciência jurídica. in:
BoucauLT, carlos eduardo de abreu; rodriguez, José rodrigo. hermenêutica plural: possibilidades jusfilosó-
ficas em contextos imperfeitos. São Paulo: martins Fontes, 2002; PinTo, cristiano otávio Paixão araújo. a
reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro e seu impacto no constitucionalismo contemporâ-
neo: um estudo a partir da teoria da diferenciação do direito. 2004. Tese de doutorado. Programa de pós-grad-
uação em direito da universidade Federal de minas gerais, 2004, Belo horizonte; maia, alexandre da.
autopoiese versus prática procedimental: o falso dilema do Poder Judiciário. revista de informação Le-
gislativa, Brasília, v. 147, pp. 51-63, 2000. cf. nossas conclusões em: chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia
do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e habermas, cit., p. 97 et seq.
não foram assumidos como normas jurídicas dotadas, pois, de força normativa,
visto que, referidos princípios, não poderiam, jamais, ser frutos de um processo
convencional de tomada de decisão ou de mera aceitação.
não tão diferente é o raciocínio de PereLman quando o autor discorre sobre
situações em que se poderiam verificar um “conflito entre a letra e o espírito da
lei”,104 problema este referido pelo autor como um problema de lacuna no direito.
Partindo da suposição de que quando o texto legal não oferecesse qualquer solu-
ção para um determinado caso concreto, enfim, quando estivéssemos em face de
uma lacuna, poderia o juiz completar a lei, “concedendo primazia aos valores que
o próprio legislador considera mais importantes”.105 com isso, supõe PereLman
que não seria o “espírito” de uma lei particular que estaria em jogo, mas sim o
“espírito” de todo o “sistema legal” e que, portanto, poderia se fazer prevalente
sobre o texto da lei, raciocínio este que permitiria ao julgador extrair “regras gerais
de legislações particulares”,106 em uma completa assunção de um raciocínio indu-
tivo a não reconhecer normatividade aos princípios jurídicos.
assim, é que, no que diz respeito à assunção de princípios do direito como
funcionalmente orientados ao preenchimento das lacunas,107 engiSch vai pontuar
questões que merecem ser aqui retratadas.
uma dúvida apresentada pelo autor é a referente a de quais princípios deve-
ria o aplicador do direito se socorrer quando do preenchimento de uma determi-
nada lacuna. indaga o autor se dever-se-ia se socorrer em: a) “princípios jurídicos
gerais” ou universais, como princípios jurídicos “absolutos, de validade absoluta-
mente geral”, ou a solução deveria estar referida a b) “princípios histórico-concre-
tos” conectado a um suposto “espírito da ordem jurídica” ou ainda, de outra forma,
àquilo que poderia ser remetido como as “valorações da camada dirigente”.108
vejamos bem como engiSch coloca a questão em outra passagem que prepa-
ra o terreno para as considerações que acima acabamos de expor. Segundo o autor:

“Temos que nos abster de focar aqui a questão de saber de onde procedem propria-
mente todos estes princípios relativos ao preenchimento das lacunas e em que rela-

104 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 658.


105 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 658.
106 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 658.
107 assim, também, soa a proposta de PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 654: “o princípio da igualdade
perante a lei (...) por ir além das relações de direito Público entre o estado e os cidadãos e por aplicar-se
igualmente às relações de direito Privado entre indivíduos particulares, vem preencher uma lacuna do art.
544 (...); a comunicação do professor WoLF nos mostrou quão extenso foi o uso, feito pelos tribunais suíços,
do princípio geral da igualdade perante a lei para preencher as lacunas da lei.” Sobre o texto de WoLF, cf.:
WoLF, e. Les lacunes du droit et leur solution en droit suisse. in: PereLman, chaïm (org.). Le problème des
lacunes en droit. Bruxelles: Émile Bruylant, 1968, p. 105 et seq.
108 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 304.
ção hierárquica se encontram entre si (se, v. gr., na falta do direito consuetudinário
e da analogia, se deve recorrer primeiro às valorações da camada dirigente e só depois
aos princípios gerais do direito, ou inversamente, e ainda se a valoração pessoal do
juiz tem uma importância primária, ou apenas deve constituir um ultimum refu-
gium).”109 (negritos nossos)

o que engiSch nesse trecho coloca são questões que de maneira extrema-
mente complexa afetam a compreensão do direito. Para além de toda a problemá-
tica que a defesa das lacunas no direito impõe à interpretação da prática jurídica,
engiSch acrescenta questões que, de maneira decisiva, são enfrentadas nos próxi-
mos capítulos deste livro. Podemos, como insinua engiSch, sustentar uma “ordem
concreta” ou “hierárquica” de valores como algo determinante e constitutivo da
justificação e aplicação do direito? Será que, legitimamente, podemos admitir que
as “valorações pessoais” do juiz têm importância decisiva em um caso, ainda que
como ultimum refugium? Sustenta-se um questionamento acerca da relação “hie-
rárquica” entre princípios jurídicos e valores particulares – ainda que “historica-
mente” recortados – em sede de aplicação do direito? ao leitor mais interessado,
devo adiantar que a resposta a todas essas questões somente pode ser negativa, e
isto é o que as páginas daqui em diante pretendem demonstrar.
o interessante de se colocar é que vários autores, dentre eles Luhmann,
quando enfrentam a questão dos princípios jurídicos procedem a um raciocínio
completamente desautorizado a afirmar que referidos princípios poderiam ser
concebidos como indutivamente (re)construídos a partir das normas do sistema do
direito, em um exercício de generalização e busca de identidades entre o que se
encontra implícito ou embutido nas normas convencionalmente firmadas.110
não compreendem, pois, que os princípios são normas, e que não são consta-
tações indutivas daquilo que seriam “as” normas, isto é, os dispositivos normativos
convencionados legislativa ou consuetudinariamente.
É assim, inclusive, que engiSch sustenta uma “analogia do direito”, também
chamada de analogia iuris, isto é, quando não de uma norma isolada, que seria o caso
de “analogia da lei”, mas sim de uma “pluralidade de normas jurídicas”, é realizado
um raciocínio de indução para, a partir de tal expediente, desenvolver “princípios
mais gerais que aplica a casos que não cabem em nenhuma norma jurídica”.111
a referência de engiSch, e de quase a unanimidade dos que defendem a exis-
tência das lacunas no direito, ao uso da “analogia da lei”, se dá no sentido de que,
como um meio de integração do direito, isto é, de preenchimento das lacunas,

109 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 303.


110 chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen,
Luhmann e habermas, cit., p. 97 et seq.
111 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 295.
aquela viria a se justificar quando o que se tomasse como semelhante entre casos
e situações diferentes, na busca de uma solução também semelhante, fosse capaz
de se sustentar em face da justiça da solução. em uma situação em que não hou-
vesse regulamentação legal para o exercício do consentimento do ofendido em
casos de privação de liberdade, embora houvesse para casos de lesão corporal, afir-
ma engiSch que o raciocínio analógico estaria justificado porque “a ofensa corpo-
ral e a privação de liberdade são semelhantes entre si em tal medida em que aqui-
lo que é justo para a primeira, também o é para a segunda”.112 e segundo engiSch,
esse raciocínio se justificaria ainda no fato de que a defendida semelhança entre
ambas hipóteses, e o que guiaria qualquer espécie de raciocínio analógico, seria
ainda o fato de terem sido lesados “bens jurídicos pessoais” que, “dentro de certos
limites, são confiados ao poder de disposição do prejudicado”,113 de onde se pode
perceber que não se trataria do exercício de uma autonomia privada capaz de ser
principiologicamente reconhecida, mas da construção de uma disposição que não
contrariasse os “bons costumes”,114 para a qual a integridade física e a liberdade de
ir e vir teriam sido confiadas...
o problema de todo o raciocínio analógico reside no fato daquilo que outro-
ra nos referimos, como a não-tomada em consideração, em muitas das vezes, de
diferenças que fazem diferença.115 Somente mediante uma reconstrução do fato e
do direito, caso a caso, é que podemos concluir, ou não, pela adequabilidade de
determinada solução jurídica em relação àquilo que se perfaz perante o intérpre-
te. com isso, o que queremos trazer à tona, é que por mais que sejam, os malaba-
rismos e esforços, lógicos na tentativa de se justificar ou tentar criar critérios de
aplicação do raciocínio analógico, não nos é possibilitado pretender aleatoriamen-
te, ou ainda que se diga que não, escolher quais são os elementos semelhantes a
partir dos quais, em analogia a uma lei, procederemos, em um raciocínio abstrato,
porque supostamente “lógico”, a uma solução também semelhante...
o que a prática da analogia deixa transparecer é uma concepção a assumir o
direito como um “sistema de regras”, ou seja, um sistema de normas convencio-
nadas, mas que se mostra incapaz de perceber uma dimensão principiológica
determinante e central, sem a qual toda e qualquer legitimidade da prática jurídi-
ca estaria ameaçada – como, aliás, se deixa transparecer pela tradição que aqui
apresentamos. Quando assumimos a prática jurídica como o exercício de desen-
volvimento de um sistema principiológico, isso, de início, significa excluir de con-

112 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 289.


113 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., p. 290.
114 engiSch, Karl. introdução ao pensamento jurídico, cit., Pp. 288 e 290.
115 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito Penal: contribuições a uma reconstrução
da dogmática penal 100 anos depois, cit., pp. 95 e 96.
sideração a necessidade de se socorrer a um raciocínio analógico, como forma de
integração do direito. Primeiramente porque os princípios jurídicos passam a ser
assumidos em sua força normativa inegável, segundo porque isso implica, portan-
to, superar a compreensão do direito como um sistema de normas convenciona-
das, legislativa ou consuetudinariamente, o que, pois, espanca de vez a considera-
ção de lacunas e, portanto, de “métodos” ou “técnicas” de preenchimento ou de
integração do próprio direito.
É claro que em uma prática jurídica, que se assume como um sistema ideal-
mente coerente de princípios, se fazem necessariamente presentes comparações,
entre os casos de hoje, e os casos decididos no passado, entre casos semelhantes e
entre casos divergentes, na constante busca de atualização da coerência na aplica-
ção do direito. e essas comparações somente podem ser adequadamente assumidas
quando, com elas, é indissociavelmente reconhecido o compromisso de levar os
direitos fundamentais a sério, isto é, o compromisso, uma vez mais, pela coerência
normativa em sede de aplicação do direito. mas disso não decorre a necessidade de
se socorrer ao emprego da analogia, como o faz a tradição da Teoria do direito;
antes, são questões que não têm a menor possibilidade de se harmonizarem.

v. a radicaLização FuncionaL da QueSTão em KeLSen

ao defendermos a inexistência das lacunas no direito, poderíamos ser ques-


tionados como adeptos de uma concepção acerca do assunto, como a que nos ofe-
rece KeLSen. Para este, também não haveria lacunas no direito. mas isso o autor
afirma a partir de uma extremada leitura funcionalista e positivista da prática jurí-
dica, da qual, pelas razões que veremos, não podemos compartilhar.
afirma KeLSen, inicialmente, em sua reine rechtslehre, que uma ordem
jurídica poderia ser sempre aplicada a qualquer caso concreto, ainda quando o
próprio tribunal que devesse resolver o caso viesse a interpretar que não haveria
uma norma para tal caso.116 e isso porque mesmo quando não houvesse qualquer
norma que prescrevesse um determinado comportamento, nem o permitisse posi-
tivamente, nem o autorizasse, significaria, portanto, dizer que encontrar-se-ia
negativamente permitido,117 isto é, na ausência de uma norma positiva – conven-
cionada legislativa ou consuetudinariamente – que se referisse a um determina-
do comportamento, não se sustentaria a afirmação de que faltaria, por parte do
direito, uma solução para este caso; esclarece-nos KeLSen, em uma releitura do
princípio segundo o qual “tudo aquilo que não é proibido é permitido”, que o

116 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 273.


117 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 273.
ordenamento jurídico regula tal conduta negativamente, isto é, permitindo-a não
de maneira expressa através de uma norma positiva, mas como um sentido implí-
cito do próprio direito.
KeLSen vai, portanto, criticar a Teoria das Lacunas no direito, afirmando
que dizer que o direito não seria aplicável a um caso concreto quando nenhu-
ma norma se referisse a este mesmo caso, desconheceria ou ignoraria o fato de
que “quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de
realizar determinada conduta, permite [negativamente] essa conduta”.118 assim
é que, segundo o autor, a afirmação de que existiriam lacunas no direito se faz
logicamente impossível: do fato de não haver uma norma expressa e referida ao
caso não decorreria, logicamente, a impossibilidade de aplicação do direito;
antes, a conduta em questão estaria negativamente permitida em face de uma
reconsideração lógica e funcional do princípio segundo o qual o que não é proi-
bido está permitido.
embora não fosse possível, segundo o autor, a aplicação de uma norma jurí-
dica singular, possível seria a aplicação da “ordem jurídica”.119
Patente se faz aqui, uma vez mais, a perspectiva convencionalista assumida
por KeLSen, embora sofisticada em termos lógico-funcionais pela figura da permis-
são negativa. o que, desde já, podemos ressaltar é que o autor desconsidera, desde
sempre, a força normativa, que forçoso se faz reconhecer, dos princípios jurídicos.
É por isto, inclusive, que vem a afirmar que, embora uma norma não pudesse ser
aplicada, o direito, numa exigência lógica e funcional, poderia.
assim, na medida em que não existiriam lacunas para KeLSen, compreende o
autor que quando tradicionalmente se afirma a existência de uma lacuna, signifi-
caria sustentar que a falta, ou a ausência, de uma determinada norma jurídica seria
considerada pelo órgão aplicador do direito como algo indesejável desde uma
óptica que levasse em consideração uma política jurídica.120 embora a aplicação
do direito fosse logicamente possível, em razão da função que a permissão nega-
tiva cobra nesta argumentação de KeLSen – em uma releitura da norma geral nega-
tiva de ziTeLmann –, o tribunal, por exemplo, decidiria não aplicar o direito
vigente, enfim, afastaria a permissão negativa, por considerar tal solução como
“não eqüitativa ou desacertada”.121 mas tal juízo de “desacerto” ou de “iniqüida-
de” poderia mesmo se fazer presente ainda que se tivesse uma norma expressa e
referida ao caso em tela e que se encontrasse perante um tribunal: “lacuna no sen-

118 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 273.


119 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 273.
120 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 274.
121 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 274.
tido da inaplicabilidade lógica do direito vigente tampouco existe num caso como
no outro”.122
e o que da argumentação de KeLSen podemos perceber é que em ambas as
situações o intérprete-aplicador, ao reconhecer uma suposta “lacuna” no direito –
quando, a seu ver, estaria em face de um juízo axiológico e atrelado à “política do
direito” – afastaria a aplicação do próprio direito para construir, discricionaria-
mente, uma solução para um determinado caso concreto.
Todavia, reconhece KeLSen que a suposição de que as lacunas existiriam,
supostamente teve, e ainda teria, um importante papel na “técnica da moderna
legislação”. e, para tanto, o autor se refere ao primeiro artigo do código civil suíço
que, como vimos, viria a possibilitar ao aplicador do direito, “em caso de lacuna”
e inexistência de um costume, decidir de acordo com a norma “que ele, como
legislador, teria elaborado”.
KeLSen inicialmente critica tal artigo em razão de o mesmo pressupor que o
direito suíço estaria impossibilitado, logicamente, de se aplicar em referência a
todo e qualquer caso.

“como, porém, isso não é de fato possível, pois uma ordem jurídica é sempre aplicá-
vel e também é aplicada quando o juiz rejeita a ação com fundamento em que a
ordem jurídica não contém qualquer norma geral que imponha ao demandado o
dever afirmado pelo demandante [em razão da permissão negativa], o pressuposto de
que parte o preceito acima citado é uma ficção.”123

e esta ficção, volta KeLSen, estaria baseada em uma valoração do órgão apli-
cador, em um juízo de valor “ético-político subjetivo”. o que vem o autor a escla-
recer é que uma tal ficção somente seria “justificável” quando o próprio
Legislativo quisesse expressar a idéia, segundo a qual, tornar-se-ia aconselhável
conferir ao tribunal o poder para, em tais situações, e de acordo com seu juízo
político, fixar uma norma jurídica individual quando a aplicação de uma determi-
nada norma geral pelo Legislativo convencionada anteriormente viesse a levar a
um resultado insatisfatório ou indesejável em determinadas situações nem sequer
previstas ou previsíveis a ele.124 veja que a base de todo o raciocínio de KeLSen não
se centra na ausência de norma ou de solução jurídica para o caso, mas sim numa
valoração acerca da solução que o direito, desde antes, já ofereceria para o caso.

“Se ele [o Legislativo] formulasse essa atribuição de competência [ao tribunal] de


uma maneira teoreticamente acertada, isto é, sem qualquer ficção, deveria precei-

122 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 274.


123 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 275.
124 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 275.
tuar: quando a aplicação da ordem jurídica vigente é, segundo a concepção ético-
política do tribunal, insatisfatória no caso sub judice, o tribunal pode decidir o caso
segundo a sua livre apreciação.”125

e, para KeLSen, e em face dos pressupostos dos quais parte, é exatamente isso
que ocorreria quando um juiz viesse a reconhecer a existência de lacunas no
direito... daí, conclui KeLSen que uma pretendida limitação do poder dos tribu-
nais, por parte do Legislativo, quando este viesse a reconhecer a possibilidade os
tribunais, de a seu juízo, estabelecer soluções para situações em que supostamen-
te houvesse “lacunas”, é algo que se auto-anularia:126 não teria como o Legislativo
limitar a atuação dos tribunais quando concedesse a esses mesmos tribunais a pos-
sibilidade de, na ausência de uma norma – que, para KeLSen, implicaria um juízo
acerca do acerto e interesse que a aplicação desta norma teria aos olhos do tribu-
nal, ou seja, quando houvesse a ausência não de uma norma, ou de uma solução
jurídica de um ponto de vista lógico, mas, sim, de um ponto de vista axiológico a
satisfazer os valores subjetivos “do” tribunal – construir a solução para o caso em
que se verificasse esta ausência.
Primeiro porque não tem como o Legislativo prever, desde antes, quais são os
casos que os tribunais considerariam como carentes de uma determinada e ade-
quada, de um ponto de vista axiológico, regulamentação – pois, se pudesse assim
se proceder, ele mesmo já regularia tais situações positivamente, isto é, criando
normas convencionadas que solucionassem ou impedissem este problema –;
segundo porque a suposição por parte do tribunal de que um determinado caso
não fora previsto pelo Legislativo e a também suposição de que o Legislativo teria
formulado o direito diferentemente se tivesse a possibilidade de prever o novo
caso, “funda-se, quase sempre numa presunção não demonstrável”.127
o raciocínio de KeLSen pressupõe o direito como um sistema de regras em
que normas positivas se confundem com atos subjetivos de vontade capazes de
serem interpretados como também dotados de um sentido objetivo, isto é, como
também capazes de serem considerados juridicamente válidos. e isso em razão de
uma norma hierarquicamente superior que supostamente teria conferido
poder/competência para realização de um determinado ato. os princípios jurídi-
cos não cobram qualquer papel relevante na proposta teórica do autor porque,
repita-se, os exclui como normas jurídicas exatamente por não poderem ser recon-
duzidos a um ato de vontade capaz de ser considerado, desde um esquema mera-
mente lógico-formal, como juridicamente válido.

125 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 275.


126 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 276.
127 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 276.
Por seu turno, KeLSen revolve questões colocadas por ziTeLmann, justifican-
do algumas conclusões deste em termos jurídicos, embora sob o amparo de uma
argumentação, uma vez mais, lógico-formal. assim, rejeita a existência das lacu-
nas, mesmo nos casos das “lacunas técnicas” – aquelas chamadas por ziTeLmann de
lacunas reais ou autênticas –, porque reinterpreta a permissão negativa no senti-
do de que qualquer modo de resolver o impasse que a lei coloca deve ser assumi-
do como uma solução juridicamente válida,128 desde que não proibida expressa-
mente.
a questão que nos coloca como central é a argumentação do autor segundo a
qual é possível aplicar o direito, desde um viés lógico, sem, contudo, aplicar uma
norma jurídica. Quando assumimos uma interpretação do direito como um siste-
ma idealmente coerente de princípios podemos criticar a leitura de KeLSen no sen-
tido de que a inexistência de lacunas não é decorrente de uma questão lógico-fun-
cional, mas de uma questão normativa em termos fortes, isto é, em termos de uma
coerência e consistência de aplicação de normas jurídicas, e não de conclusões
“lógicas” decorrentes de uma suposta estrutura gnoseológica do próprio direito.
embora KeLSen, como veremos mais à frente, acabe reconhecendo a possibi-
lidade de os tribunais fazerem uso da “ficção” trazida à tona pela legislação suíça
– e, exatamente por isso, afirma que tal suposição e ficção teria um papel impor-
tante na técnica legislativa –, como forma de criar normas individuais que seriam,
inadequadamente, consideradas como “juridicamente válidas” – em uma comple-
ta redução da validade das decisões à mera faticidade de suas respectivas imposi-
ções –, rejeitamos por completo sua forma de encarar o problema das lacunas no
direito: o fato de não existirem lacunas não se refere a uma possibilidade de apli-
cação ou de normas convencionadas, ou de um princípio reconhecido por neces-
sidade lógica, mas sim ao fato de o direito não poder ser reduzido a um conjunto
de comandos normativos capazes de serem sempre reconduzidos a um ato subje-
tivo de vontade, ainda que coletivamente interpretado por KeLSen, como no caso
dos costumes.

128 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 277: “quando a lei determina, por hipótese, que um órgão
deve ser criado por eleição, mas não regula o processo da eleição. isso significa que qualquer espécie de
eleição – eleição de maioria relativa ou maioria absoluta, eleição pública ou secreta, etc. – é legal. o órgão
encarregado de realizar a eleição pode determinar o processo de eleição como bem entenda. a determina-
ção do processo eleitoral é deixada a uma norma de escalão inferior.”
caPíTuLo 2
enTre diScricionariedade e LegiTimidade:
eLemenToS Para uma ProBLemaTização do
diScurSo Jurídico moderno a ParTir da idÉia
de auToLegiSLação democrÁTica

i. da “SoBerania LegiSLaTiva” ao rÉFÉrÉ LÉgiSLaTiF

Toda a problemática referente às lacunas e fontes no direito, como inclusive


já explicitado nas páginas antecedentes, refere-se aos supostos interpretativos
assumidos em face da própria compreensão e prática do direito moderno.
equivale, pois, dizer que toda a questão que aqui apresentamos deita suas raízes
mais profundas no sentido de uma prática jurisdicional e legislativa adequada-
mente orientadas à construção e desenvolvimento dos princípios referidos à idéia
de estado democrático de direito. enfim, refere-se a um exercício democrático
da legislação e da jurisdição amarrados ao reconhecimento, na maior medida pos-
sível, de iguais direitos fundamentais a todos os concidadãos.
assim, indispensável se faz, nesse terreno referido às lacunas e fontes no
direito, voltar nossos olhos a pressupostos nem sempre bem explicitados e que a
praxis jurídica contemporânea em muito se mostra ainda presa, quais sejam, ques-
tões referentes à discricionariedade jurisdicional e ao culto pelo texto legislativo.
Para tanto, voltemos ao direito francês anterior à revolução Francesa.
antes de 1789, esclarece-nos PereLman que, em face da ausência de uma teo-
ria e prática da separação dos três poderes, eram oferecidas diretrizes ao julgador
para que esse pudesse cumprir com seu papel decisório. isso implicava, assim,
poder se socorrer, na constatação da ausência de uma “regra aplicável”, a questio-
namentos da ordem divina, aos “peritos locais”, como uma pesquisa em torno dos
costumes locais, bem como ainda decidir com base em seu foro íntimo.1 Somente
mais tarde é que passaram a ter a possibilidade de se socorrer ao direito romano
ou de “evocar o processo diante do rei, fonte de todo direito”: afinal, no juiz
supremo, no rei, estavam reunidos todos os poderes de maneira ilimitada.2

1 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 648.


2 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 649.
assim, é interessante e imprescindível o chamamento que PereLman nos faz
para a compreensão do problema das lacunas, da maneira hoje conhecida, como
fruto historicamente referido à “limitação” do Poder Judiciário em face da assun-
ção de uma teoria da separação dos poderes3 – que, desde uma leitura liberal do
estado democrático de direito, viria mesmo a justificar um limite do poder abso-
lutista e monárquico que perpetrou os abusos do antigo regime. como decorrên-
cia, em um primeiro momento, dos ideais revolucionários e da específica leitura
que esses ideais receberam no próprio contexto revolucionário, é firmada a pre-
ponderância da lei do Poder Legislativo, reduzindo-se, assim, a função do juiz à de
um simples “instrumento de aplicação da lei”.4
um dado muito importante, na reconstrução dessa ordem de coisas, nos ofe-
rece PereLman no que tange à Lei de 16-24 de agosto de 1790 e que se referia à
organização judiciária. citada Lei veio, em França, instituir o référé législatif que
viria a convidar “os juízes a se dirigirem ao corpo legislativo todas as vezes que
tiverem dúvidas quanto à interpretação da lei”.5 e essa colocação de PereLman
devemos interpretar adequadamente no sentido de que “dúvidas quanto à inter-
pretação da lei”, única e suprema fonte do direito revolucionário, implicava,
inclusive, dúvidas na interpretação da lei quando se fizesse transparecer um deter-
minado caso que não encontrasse qualquer solução prévia e convencionalmente
prevista na própria lei, enfim, quando se estivesse em face de uma “lacuna”...
Tanto é assim que PorTaLiS, ferrenho crítico do instrumento do référé légis-
latif, e um dos grandes responsáveis pelo movimento de codificação em França,
defendia a consulta ao uso e à eqüidade quando do silêncio, da contradição ou da
obscuridade das “leis positivas”.6
É o próprio PereLman quem ainda nos demonstra que rapidamente o recur-
so ao référé législatif acabou se mostrando como um grande inconveniente, não só
pelo fato de o Legislativo acabar ditando uma norma com efeitos retroativos, como
também em razão de que acabava por realizar “uma nova confusão dos poderes,
em proveito, desta vez, do Poder Legislativo”.7
essas afirmações de PereLman devem ser mais cuidadosamente pontuadas. e
desde já podemos nos posicionar: embora concordemos com as colocações do
autor, não podemos concordar com a maneira e recursos dos quais ele mesmo, ou
a grande tradição do pensamento jurídico, vem se valendo para, supostamente,
não criar uma norma com efeitos retroativos, bem como também evitar uma con-

3 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 649.


4 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 649.
5 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 649.
6 cf., assim, PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 649.
7 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 649.
fusão dos poderes em proveito de qualquer que seja, o que, definitivamente, impli-
caria um prejuízo à própria democracia e ao constitucionalismo. o que com isso
queremos dizer, é que somente uma interpretação que assume o direito como um
sistema de normas referido a uma comunidade de princípios, para utilizarmos a
expressão consagrada por dWorKin, permite-nos espancar, de vez, uma decisão
jurisdicional que se pretenda discricionária, enfim, uma decisão jurisdicional que,
simultaneamente, inventaria uma norma e a aplicaria retroativamente, como tam-
bém confundiria o papel da atividade jurisdicional com outro que não o seu pró-
prio. e é na superação dessas dificuldades que as páginas seguintes se colocam.
não é no recurso à analogia (legis ou iuris), aos costumes, à eqüidade, ou a
qualquer outro expediente que obscureça e enfraqueça a própria força normativa
do direito que repousa a legitimidade da prática jurídica em casos que podemos
considerar como difíceis, como casos anteriormente não problematizados e cuja
solução exige um esforço interpretativo de maior sofisticação por parte dos cida-
dãos e do intérprete-aplicador. não é com recursos presos a uma compreensão do
direito como sistema de convenções que se pode superar os desafios assinalados
por PereLman, senão somente com um giro compreensivo capaz de assumir o
direito como um sistema de princípios.
mas voltando aos desenvolvimentos realizados por PereLman, em sede de tão
empolgante questão, percebemos que, em face dos inúmeros inconvenientes pro-
porcionados pelo référé législatif – o que incluía a possibilidade de sobrecarga do
próprio Poder Legislativo em face de mais e mais proposições de recursos –, os
autores do code napoléon foram, inclusive, levados a encontrar uma solução para
a questão das lacunas instituindo o artigo 4º.8
Lembremos referido artigo do code napoléon:

“art. 4º o juiz que recusar julgar, a pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insu-


ficiência da lei, poderá ser processado como culpado de denegação de justiça.”

ii. a JuriSdição como inSTância criadora de normaS: a TeSe


de KeLSen

certamente um autor, ao qual já nos referimos, e que repudia a questão das


lacunas no direito, quem seja, KeLSen, embora não tão orientado pelos princípios,
ideais e tradições revolucionários franceses, pode ser tomado como um exemplo
do que a interpretação altamente funcionalizada – e não-compromissada com a
democracia e com o sentido do constitucionalismo moderno – da exigência nor-

8 PereLman, chaïm. Ética e direito, cit., p. 650.


mativa acima trazida implica quando assumida na prática jurídica. e aqui já adian-
tamos: implica a negação não só do sentido normativo do direito moderno, mas a
negação da modernidade subjacente à própria modernidade, isto é, a negação de
que somos, e da maior maneira possível, livres e iguais. vejamos como KeLSen
compreende a atividade jurisdicional em seu papel de aplicação do direito, ques-
tão esta intimamente ligada ao modo como KeLSen repudia a existência das lacu-
nas no direito.
devemos inicialmente esclarecer um pressuposto na teoria kelseniana.
Segundo o autor, seria inadequado e desacertado distinguir “atos de criação de
normas” de “atos de aplicação do direito”. com a exceção da pressuposição da
norma fundamental – que não seria fruto de um ato de aplicação, embora pudes-
se ser assumido como ato de criação jurídica9 – e da atividade que executa um ato
coercitivo – que embora fosse um ato de aplicação do direito, não criaria qualquer
norma –, todo ato jurídico, que se desenvolveria “entre” a norma fundamental e
os atos de execução, quando vislumbrados figurativamente através da forma pira-
midal que a teoria em questão nos propõe, seria, simultanemente, aplicação de
uma norma superior e também produção de outra norma inferior.10 não entrare-
mos aqui na contradição interna à sua teoria que a afirmação de KeLSen coloca
quando afirma que a criação da constituição viria a ser realizada como aplicação
da própria norma fundamental.11
mas, para que haja esse ato de criação normativa, entende KeLSen que basta-
ria, ao mínimo, a determinação de um órgão jurídico, do elemento pessoal, ao qual
caberia exercer essa função criadora do direito. e, obviamente, quando assim diz,
KeLSen está sublinhando que bastaria que uma norma hierarquicamente superior
viesse a determinar qual órgão jurídico, capaz de ser reconduzido como um órgão
da comunidade jurídica, seria competente para tanto, isto é, está fazendo uma
referência implícita a uma norma hierarquicamente superior que tivesse por fun-

9 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 262.


10 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 261. esclarece ainda o autor no sentido de que a criação e a
aplicação do direito não devem ser confundidas com a observância do direito. “observância do direito é a
conduta a que corresponde, como conduta oposta, aquela a que é ligado o ato coercitivo da sanção. É antes
a conduta que evita a sanção, o cumprimento do dever jurídico constituído através da sanção.” KeLSen,
hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 263.
11 isso porque a norma fundamental vem a obscurecer, na teoria kelseniana, o fato de que todo o direito esta-
ria “justificado” em razão da eficácia de uma determinada constituição posta. essa não é outra a conclusão
à qual podemos chegar quando KeLSen delineia que o conteúdo da norma fundamental poderia ser pensado
como “devemos nos conduzir conforme a constituição posta prescreve”. com isso o autor não somente con-
funde faticidade e validade, reduzindo esta naquela, como também frustra um de seus principais pressupos-
tos teoréticos: a distinção entre ser e dever-ser. Para maiores aprofundamentos, chamon Junior, Lúcio
antônio. Teoria constitucional do direito Penal: contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100
anos depois, cit.; Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e
habermas, cit.
ção a atribuição de poder/competência a esse mesmo órgão. Temos, então, o ter-
reno preparado para o reconhecimento da discricionariedade por parte de KeLSen
e de sua reine rechtslehre.
destarte, chega KeLSen à questão da aplicação das normas jurídicas gerais por
parte dos tribunais que, assim, e dentro do raciocínio apresentado, criariam nor-
mas jurídicas individuais. É o próprio KeLSen quem afirma que esse movimento –
que, figurativamente, em outro momento se refere como o movimento de um
escalão superior a outro inferior no seio da pirâmide normativa – seria sempre um
movimento do geral, ou abstrato, para o individual, ou concreto, em um processo
crescente de particularização, desde a criação da constituição até a execução do
ato coercitivo.12
dessa maneira, a individualização da norma geral a ser aplicada pelo tribunal
cobraria deste órgão tanto a) a averiguação de se, em face do caso concreto que se
lhe apresenta, existiriam os pressupostos da conseqüência do ilícito, isto é, da san-
ção, determinados e previstos em abstrato pela norma geral a aplicar; quanto b) a
averiguação de se tratar de uma norma que se encontra vigente. Seriam essas suas
averiguações (a e b) mais a ordem in concreto daquilo que estivesse determinado
in abstracto – quando de uma resposta positiva a ambas averiguações – aquilo que
seria marcado como “funções essenciais da decisão judicial”.13
KeLSen elucida, dessa maneira, que a controvérsia em torno da “natureza” da
decisão jurisdicional, se declaratória ou constitutiva, deveria ser resolvida em favor
de seu caráter constitutivo: quando o órgão jurisdicional “descobre” o direito, isto
é, chega a determinar qual seria a norma geral aplicável ao caso concreto, não esta-
ria a simplesmente declarar uma decisão, mas, pelo contrário, constituiria, criaria,
uma norma individual que anteriormente não existia e não tinha vigência, porque
é a própria decisão jurisdicional que lhe atribui existência e vigência.14
e se a função essencial da decisão jurisdicional, para KeLSen, consiste em tam-
bém realizar averiguações concernentes à vigência – o que implicaria igualmente
uma decisão sobre a constitucionalidade da norma a ser aplicada, isto é, se tal
norma geral fora “produzida segundo o processo prescrito pela constituição ou
por via de costume que a mesma constituição delegue”15 –, como igualmente veri-
ficar os pressupostos da aplicação da sanção no caso concreto a ser decidido,
entende, então, que a própria averiguação da vigência e da constitucionalidade,
pois, de uma norma, haveriam que ser igualmente consideradas como pressupos-
tos da sanção por ele a ser aplicada no caso; a edição de uma lei incriminadora,

12 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 263.


13 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 264.
14 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 265.
15 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 264.
conforme àquilo que as normas constitucionais estabelecessem, haveria que ser
interpretada como um pressuposto da aplicação dessa norma geral criada pelo
Parlamento ao caso individual decidido pelo tribunal.
assim, KeLSen, para utilizarmos ao revés a expressão consagrada por
häBerLe,16 pressupõe e propõe uma “comunidade fechada de intérpretes da
constituição”. e vejamos o porquê.
de acordo com o que vimos até aqui, todo movimento de um escalão supe-
rior, a um escalão inferior, é um movimento de aplicação e criação normativas,
excluído dessa consideração o movimento que inclui a tomada em consideração os
atos de execução, que embora fossem atos de aplicação do direito, não criariam
qualquer norma. além disso, afirma KeLSen que para a aplicação do direito, ou
seja, para a criação de normas, poderíamos ter instituídas normas gerais e abstra-
tas que regulamentariam determinadas questões, estabelecendo pressupostos da
aplicação de um ato coercitivo, mas que, somente indispensável se faria a institui-
ção de uma norma que viesse a estabelecer qual órgão jurídico seria competente
para criar/aplicar normas em determinados casos. avança o autor no sentido de
que a decisão de um tribunal jamais poderia ser considerada como meramente
declaratória, porque a aplicação de uma norma geral – que envolve averiguações
e uma ordenação – a um caso concreto implicaria sempre a criação de uma norma
particular e individual antes não prevista nem dotada de vigência – desde uma lei-
tura convencionalista, diga-se de passagem.
Pois bem. com isso a teoria se desenvolve no sentido de afirmar que a “veri-
ficação do fato condicionante pelo tribunal é, portanto, em todo sentido, consti-
tutiva”.17 e esta não é uma questão de menor importância, porque KeLSen vai ser
explícito ao afirmar que não é, por exemplo, o fato de alguém ter cometido um
homicídio que viria a constituir o pressuposto estatuído pelo direito de aplicar a
esse sujeito uma determinada sanção,

“mas o fato de um órgão competente segundo a ordem jurídica ter verificado, num
processo determinado pela mesma ordem jurídica, que um indivíduo praticou um
homicídio.”18

Segundo esta proposta, o fato de se ter praticado um determinado ilícito por


si só não seria suficiente para que se considerasse este mesmo ilícito pressuposto
da sanção a ser aplicada. ou seja, somente uma opinião a respeito dessa questão

16 referimo-nos a: häBerLe, Peter. hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da cons-
tituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Trad. gilmar
Ferreira mendes. Porto alegre, Safe, 1997.
17 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 266.
18 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 266.
poderia ser tomada como dotada de sentido jurídico, isto é, somente uma opinião
sobre a ilicitude, ou não, de determinado comportamento deveria ser tomada em
consideração, de quem seja, do tribunal competente para decidir o caso.
recapitulemos: o tribunal quando decidisse um caso, exprimiria um ato de
vontade, dotado de sentido subjetivo, isto é, expressar-se-ia uma vontade de con-
denar, ou absolver, um determinado sujeito. Por sua vez, através de um raciocínio
silogístico, KeLSen argumenta que esse ato de vontade, como qualquer outro ato
de vontade que criasse ou executasse normas jurídicas, somente seria passível de
ser considerado válido quando houvesse uma norma hierarquicamente superior
que atribuísse a esse mesmo órgão que expressasse esse ato de vontade, poder e
competência para tanto. Somente assim esse ato de vontade, dotado desde sempre
de sentido subjetivo, poderia passar a também ser considerado, desde uma pers-
pectiva piramidal escalonada, como dotado de um sentido objetivo, isto é, como
juridicamente válido.19
Pois bem. as interpretações realizadas pelos cidadãos, por exemplo, ou pelos
estudiosos do direito não poderiam ser assumidas como dotadas de sentido de
validade jurídica. Somente interessariam as averiguações e decisões levadas adian-
te, e no caso, por um tribunal a respeito da ocorrência, ou não de um ilícito.
Somente a opinião dos indivíduos que pudessem ser interpretados como órgãos
jurídicos, em razão da competência que lhes é atribuída, é que importariam.20 e
KeLSen é enfático nessa questão: “Se uma norma geral deve ser aplicada, só uma
opinião pode prevalecer”,21 porque, afinal, e de um ponto de vista meramente
funcional, somente a interpretação e opinião expressa pelo tribunal, a respeito de
um caso particular, seria juridicamente relevante.22 e isso podemos reler da
seguinte forma: somente a opinião expressa pelo tribunal seria dotada de sentido
jurídico, seria juridicamente relevante em razão de uma questão funcional, qual
seja, a competência que lhe é atribuída, por uma determinada norma hierarquica-
mente superior, para criar uma norma individual; a competência para decidir
sobre o sentido jurídico de casos individuais é do tribunal...
assim, um sujeito pode, seguindo o exemplo, ter cometido um homicídio e
ser absolvido, ou o inverso, e o único sentido jurídico relevante, em ambas as
situações, seria o atribuído pelo tribunal – inclusive de condenação no caso de ino-
cência. e tudo isso por uma questão meramente funcional referente ao fato de que

19 cf. assim: Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e habermas,
cit.; chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito Penal: contribuições a uma recons-
trução da dogmática penal 100 anos depois, cit.
20 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 266.
21 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 267. itálicos do próprio KeLSen.
22 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 267.
somente as decisões dos tribunais poderiam ser assumidas como relevantes aos
olhos de uma determinada comunidade jurídica. Por isso afirmamos que KeLSen
propõe uma “comunidade fechada de intérpretes da constituição”...
com isso, o autor não nega a possibilidade de as partes discordarem da deci-
são tomada e desta recorrerem no que diz respeito a uma consideração inadequa-
da por parte dos aplicadores do direito do “fato condicionante” da aplicação da
sanção. assim, essa decisão recorrida, embora pudesse ser assumida em seu senti-
do subjetivo, como um ato de vontade, todavia, não seria ainda capaz de ser inter-
pretada como dotada de sentido objetivo; isso só ocorreria quando uma decisão
jurisdicional que constituiria uma norma individual viesse a transitar em julgado,
ou nas palavras do próprio KeLSen, quando “ela já não pode ser anulada em qual-
quer novo processo”.23
Percebe-se como KeLSen enfoca as questões de um ponto de vista inadequa-
do ao direito da modernidade. a preocupação do autor é a tensão entre o sentido
subjetivo e o sentido objetivo, isto é, entre ato de vontade e a validade jurídica em
termos meramente formais, quando a nossa preocupação refere-se à tensão entre
faticidade e validade, entendida esta em termos fortes de uma legitimidade nor-
mativa em face do projeto constitucional moderno, ou seja, entre as pretensões de
coercibilidade e as pretensões de correção normativa.
com isso, KeLSen acaba por oferecer uma leitura “processual” da proposição
jurídica que viria a descrever as normas jurídicas:

“com efeito, a proposição jurídica não diz: Se um indivíduo determinado cometeu


um homicídio, deve ser-lhe aplicada uma determinada pena, mas: Se o tribunal com-
petente, num processo determinado pela ordem jurídica, verificou, com força de caso
julgado, que determinado indivíduo praticou um homicídio, o tribunal deve mandar
aplicar a este indivíduo uma determinada pena. no pensamento jurídico, o fato pro-
cessualmente verificado vem ocupar o lugar do fato em si, no pensamento não jurí-
dico, condiciona o ato de coerção.”24 (itálicos nossos)

dessa forma, considerando “a” como ilícito e “B” como sanção, a fórmula
geral da proposição jurídica, “Se é a, deve ser B”, deve ser interpretada no senti-
do de que “Se o tribunal, para o que tem competência, averiguar a, com força de
caso julgado, deve esse mesmo tribunal, com base em sua competência, ordenar
que seja aplicada B a um determinado indivíduo”.
mas essa sua leitura “processual” é uma leitura meramente formal e funcio-
nalizada, sem garantir a aplicabilidade normativa dos princípios jurídicos, sem

23 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 267.


24 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 267.
assumir a pretensão de correção normativa – a cobrar, quando levado a sério ade-
quadamente, uma única resposta para cada caso concreto –, sem reconhecer,
enfim, a legitimidade normativa como algo do qual depende o reconhecimento do
direito como direito da modernidade.
avança KeLSen, cada vez mais próximo do que realmente nos interessa nesse
campo de questões, afirmando que a decisão jurisdicional, uma vez que ato de
vontade, seria quase sempre predeterminada por “normas gerais tanto do direito
formal como do direito material”.25 mas de qualquer modo, interpreta KeLSen que
tanto em casos de absolvição, quanto em casos de condenação, a decisão operar-
se-ia em termos de aplicação do direito vigente.26
nessa ordem de coisas, KeLSen relembra, uma vez mais, que o direito viria a
regular a conduta humana não só positivamente – através de normas que prescre-
vessem, permitessem expressamente, ou autorizassem –, mas também negativa-
mente, “enquanto permite uma determinada conduta pelo fato de não a proibir”.27
assim, e completamente mergulhada esta compreensão está na assunção do
direito como um sistema de normas convencionadas – isto é, normas jurídicas
seriam tão-somente aquelas às quais houvesse referida uma convenção expressa ou
tácita atrelada à sua criação, como nos casos das leis e dos costumes –, a permissão
negativa não seria garantida por nenhuma norma; mas sua “negatividade”, digo, o
fato de ser considerada negativa reside exatamente no fato de não ser prevista por
qualquer norma, mas garantida “globalmente” pelo direito por uma assunção fun-
cional de que tudo aquilo que não estivesse proibido por normas – entendidas
essas como padrões de comportamento convencionados – estaria permitido.
Qual a conseqüência de tudo isso? veja com as próprias palavras de KeLSen:

“mas é inteiramente possível que à conduta de um indivíduo não proibida e, neste


sentido, permitida, se oponha uma conduta de outro indivíduo que, não consistindo
no emprego da força física, também não seja proibida e, nestes termos, seja permiti-
da. então existe, como já notamos, um conflito de interesses que a ordem jurídica
não previne. É que nenhuma ordem jurídica pode prevenir todos os possíveis confli-
tos de interesses. nesse caso, o tribunal tem de rejeitar a ação quando ela se dirija
contra uma conduta permitida (quer dizer, não proibida) do demandado através da
qual uma conduta permitida (quer dizer: igualmente não proibida) do demandante
foi – sem emprego da força física – impedida ou por alguma forma dificultada, e tem

25 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 269. Sobre o problema da cisão entre forma e conteúdo na
Filosofia do direito, cf. nosso Posfácio à Segunda edição em: Filosofia do direito na alta modernidade:
incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e habermas, cit.
26 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 270.
27 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 270.
de absolver o acusado, mesmo que a sua conduta, contra a qual se dirige a acusação,
tenha aquele caráter.”28 (itálicos nossos)

ou seja: lavam-se as mãos! claro que a KeLSen faz-se extremamente cômoda


a posição que defende segundo a qual não há lacunas no direito. e isso KeLSen
resolve da maneira mais funcional possível: fazendo com que o tribunal não tenha
como condenar qualquer um dos envolvidos quando, supostamente, ambas as
condutas em “conflito” apresentam-se como negativamente permitidas, ou seja,
como tão-somente não proibidas. Queremos desde já adiantar que o fato de não
haver qualquer convenção acerca da proibição de determinado comportamento,
isto não significa que, à luz do direito como um sistema idealmente coerente de
princípios, esse mesmo comportamento não seja, e não esteja, proibido. KeLSen
simplesmente saca o princípio segundo o qual “tudo aquilo que não é proibido
pelo direito, pelo direito está permitido” e o interpreta convencionalmente no
sentido de que as proibições que o direito faz somente podem ser consideradas
quando forem convencionadas expressa ou implicitamente, isto é, por via legisla-
tiva ou consuetudinária.
assim, em casos não convencionados, e que se referem a duas condutas em
“conflito”, em um resgate surpreendente de ziTeLmann, e que levantam preten-
sões de coercibilidade, KeLSen simplesmente se renuncia à questão de qualquer
juízo de correção normativa, ou melhor, KeLSen simplesmente propugna a rejei-
ção da demanda, por não haver norma – já que entende norma somente de uma
perspectiva convencionalista. e isto pelo fato de o direito, funcionalmente, per-
mitir negativamente o que não é proibido. digo funcionalmente pelo simples fato
de KeLSen resgatar a idéia de ziTeLmann no afã de negar a existência de lacunas.
em outras palavras: a assunção do princípio segundo o qual o que não é proi-
bido é permitido serve, na Teoria Pura, para negar a existência de lacunas.
Todavia, KeLSen simplesmente deixa à margem a solução de casos como o proble-
matizado acima, afirmando que a solução é não oferecer qualquer solução, ou
melhor, a solução é rejeitar a demanda, pois não teria como o tribunal fazer nada
quando duas condutas “conflituosas” fossem igualmente não “proibidas”! e igual-
mente não proibidas pelo simples fato de não ser qualquer delas componente do
pressuposto ao qual uma norma geral – legislativa ou consuetudinária – atribua
uma sanção.
afirmo, por outro lado: somente uma das pretensões normativas levantadas
neste caso poderia ser considerada, em face do caso, como válidas. afinal, ambas
são capazes de levantar pretensões de coercibilidade e de correção normativa que

28 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 270.


devem ser assumidas seriamente à luz de um sistema de princípios, e não como sis-
tema de convenções. não podemos, quando assumimos a racionalidade em termos
discursivos da aplicação do direito, rejeitar referidas pretensões; devemos, toda-
via, tratá-las em termos adequados ao projeto constitucional moderno de igual
reconhecimento, na maior medida possível, de iguais liberdades fundamentais a
todos os concidadãos. e isto está conectado, inclusive, ao sentido normativo do
princípio segundo o qual tudo o que não está proibido está juridicamente permi-
tido. esse princípio há que ser assumido desde uma óptica normativa e não fun-
cional como boa parte da tradição, e KeLSen, em sua radicalização, realiza. agora,
o que está, ou não proibido, cobra-nos uma leitura principiológica das normas
jurídicas, e isso é o que KeLSen nega na exacerbação de seu convencionalismo.29
a questão da ausência de lacunas no direito, em face desses casos, não é
resolvida por KeLSen somente desde esta estratégia negativa de rejeitar o pedido
proposto pelo demandante, mas por uma outra saída igualmente funcional, embo-
ra possamos, sem maiores preocupações, chamar de positiva.
e aqui KeLSen resgata a discussão, sobretudo em torno do artigo 1º do código
civil suíço. alega o autor que pode ser possível que o direito atribua ao tribunal
a competência para criar uma norma individual, que seria válida tão-somente para
o caso concreto que se lhe apresenta, quando esse mesmo tribunal, e conforme
aquilo que já dissemos ao final do capítulo anterior, acredite que rejeitar a deman-
da, com base nas conclusões de que ambas as condutas fossem negativamente per-
mitidas, fosse considerado como algo “injusto”, “não eqüitativo”, enfim “não satis-
fatório”. no desenvolvimento do autor, e à luz do referido artigo do código civil
suíço, isto viria a significar que o tribunal receberia competência para decidir um
caso individual não aplicando uma norma geral de “direito material”, mas crian-
do – e retroativamente, é bom frisar – direitos e deveres completamente novos.30

“isto significa que o tribunal recebe poder ou competência para produzir, para o caso
que tem perante si, uma norma jurídica individual cujo conteúdo não é de nenhum

29 cf. o seguinte trecho, que confirma tudo o que estamos a afirmar: “Porém, como uma ordem jurídica não
pode proteger todos os interesses possíveis mas apenas pode proteger interesses bem determinados [conven-
cionalmente, portanto, conforme venho dizendo], enquanto proíbe a sua violação, e, por isso, os interesses
opostos, que sempre existem, têm de ficar desprotegidos, o conflito entre uma conduta lícita (permitida) de
um indivíduo e uma conduta lícita de outro indivíduo é inevitável e surge sempre que a demanda é rejei-
tada ou o acusado é absolvido simplesmente porque a sua conduta não é proibida e, portanto, o interesse
ofendido pela sua conduta não é protegido pela ordem jurídica através de uma norma geral que ligue à con-
duta contrária uma sanção.”
30 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 271: “costuma-se dizer que o tribunal tem competência para
exercer a função de legislador. isto não é completamente exato quando por legislação se entenda a criação
de normas jurídicas gerais. com efeito, o tribunal recebe competência para criar apenas uma norma indivi-
dual, válida unicamente para o caso que tem perante si.”
modo predeterminado por uma norma geral de direito material criada por via legis-
lativa ou consuetudinária.”31

não insistirei na crítica a KeLSen a partir deste trecho. acredito que isso já
fora suficientemente colocado nas páginas anteriores. apenas quero chamar a
atenção do leitor para aquilo que insistentemente venho pontuando: o convencio-
nalismo assume como normas somente aquilo construído legislativa e consuetudi-
nariamente. os princípios jurídicos não seriam normas, antes, seriam frutos de um
exercício, para a grande tradição, de indução a partir de normas gerais.
Toda essa leitura que aqui trazemos de KeLSen há que ser entendida comple-
mentarmente às questões colocadas também no último capítulo de sua reine
rechtslehre, acerca da interpretação do direito, quando afirma que não é possível
sustentar uma única decisão capaz de ser assumida como a correta para cada caso,
quando defende um decisionismo. isto significaria, ao ser autorizado o tribunal a
aplicar o direito, aplicar qualquer interpretação de uma norma jurídica, como
fruto das averiguações e decisões que haveria que decidir enquanto órgão compe-
tente, e cuja intepretação do caso não pode ser questionada quando transitada em
julgado, e que, inclusive, abriria margem para uma discricionariedade:

“a propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da
interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente
se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma
norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora
da moldura que a norma a aplicar representa. (...) através de uma interpretação
autêntica deste tipo pode criar-se direito, não só no caso em que a interpretação tem
caráter geral (...) mas também no caso em que é produzida uma norma jurídica indi-
vidual através de um órgão aplicador do direito, desde que o ato deste órgão já não
possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado. É fato bem conhecido
que, pela via de uma interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado direito
novo – especialmente pelos tribunais de última instância.”32 (itálicos nossos)

veja que KeLSen radicaliza, ainda mais, sua posição discricionário-funciona-


lista no último capítulo de reine rechtslehre, porque não faz depender a valida-
de da criação de uma norma individual “inteiramente nova”, isto é, não decorren-
te de aplicação de uma norma geral de “direito material”, daquilo que mais acima
explicamos como a atribuição de competência para, aos moldes do código civil
suíço, afastar o direito em caso de “não satisfação”, sob a óptica do tribunal, isto

31 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 271.


32 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., pp. 394 e 395.
é, afastar a decisão que o próprio direito daria para o caso em termos de “Política
do direito” – ainda que negativamente. antes, simplesmente “explica” a validade
de uma atuação discricionária de um tribunal, referindo-se ao trânsito em julgado
que esta decisão viesse a sofrer, isto é, com referência à inquestionabilidade da
decisão internamente ao próprio direito, reduzindo, assim, e uma vez mais, vali-
dade à mera faticidade da imposição da decisão. nada mais coerente para quem
defende uma “comunidade especializada”, ou “fechada”, ou “autorizada” de intér-
pretes da constituição...
como já tivemos a oportunidade de, linhas acima, mencionar, a proposta teó-
rica e compreensiva apresentada em reine rechtslehre foi incapaz de adequada-
mente assumir a pressão normativa que a modernidade impõe à própria praxis
social e comunicativa que é o direito. KeLSen, muito antes, pelo contrário, embo-
ra pretendesse oferecer um arcabouço teórico que pudesse ser assumido como a
construção de uma ciência normativa, em razão dos supostos teoréticos eleitos e
dos quais partiu, falhou, em definitivo, no que tange à consecução de uma Teoria
do direito que fosse capaz de explicar, em termos fortes, a própria legitimidade do
direito da modernidade. antes, KeLSen se deixou levar por uma intensa leitura
sociológico-funcionalista, que implica os inconvenientes acima, e noutros
momentos, já apontados.
resta-nos, assim, resgatar o sentido normativo do direito da modernidade. e
acreditamos que a reconstrução de traços referidos à compreensão do direito e da
legislação, referidos ao momento pós-revolucionário francês, seja capaz de nos
fornecer elementos indispensáveis a tal empreita. Para tanto, faremos referência à
obra de um pensador clássico do direito constitucional francês, sem a qual nosso
intento não poderia ser adequadamente cumprido, quem seja, raymond carrÉ de
maLBerg.

iii. conSideraçõeS em Torno da LegiSLação como eXPreSSão da


vonTade geraL na reconSTrução Teórico-conSTiTucionaL de
carrÉ de maLBerg

em sua obra, La loi, expression de la volunté générale, a preocupação central


de carrÉ de maLBerg é reconstruir, à luz da constituição francesa de 1875, o sen-
tido e o conceito de legislação. inegavelmente, o autor, em uma brilhante lição de
Teoria do direito e Teoria da constituição, remonta a discussão ao contexto pós-
revolucionário que aqui, como já pontuado, far-se-á como nossa preocupação cen-
tral. e assim esclarece-nos o autor que é a declaração dos direitos de 1789 e a
constituição de 1791 que vieram a formular, em sede de seus respectivos textos
normativos, os princípios que devem ser assumidos como referidos à nova noção
de lei,33 isto é, ao conceito moderno de legislação.
começa carrÉ de maLBerg a construir sua argumentação afirmando que a
declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, traz em suas palavras
todas as idéias que servem de base à noção moderna de legislação e que, assim,
também veio a co-determinar o sentido principiológico em sede de tal matéria na
constituição de 1791. assim é que o artigo 6º da déclaration, de 1789, veio a
exaltar a lei e seu poder ao dispor que: “a lei é a expressão da vontade geral”. e
essa mesma lei, suprema e em todo o seu poder, deve ser compreendida nesse
contexto em razão da própria referência que o artigo 6º fazia ao fato dessa von-
tade geral se fazer construída pelos representantes, isto é, pela assembléia eleita
dos deputados que, assim, permitiria a todos os cidadãos exercer, ou serem igual-
mente considerados como idealmente exercendo, o direito de concorrer à própria
formação do direito.34
Sem mais rodeios, carrÉ de maLBerg é claro ao nos esclarecer que o artigo 6º
da déclaration faz uma referência direta à doutrina política de rouSSeau de que o
povo, como totalidade dos cidadãos, há que cooperar no ato de criação da legisla-
ção, uma vez que referido ato legiferante seria, por excelência, uma manifestação
da soberania. enfim, o que definiria a legislação seria a referência à vontade geral.35
assim é que carrÉ de maLBerg coloca uma questão que, em definitivo, não
é de menor importância: indaga o autor sobre a forma como a constituição de
1791 permite-nos vislumbrar a legislação como obra da vontade geral, uma vez
que a própria constituição teria reduzido a possibilidade de participação dos cida-
dãos na criação das leis como referida tão-somente à eleição dos deputados que,
por sua vez, exerceriam efetivamente o poder legislativo.36
e o autor nos explica que a identidade entre lei e vontade geral foi possível
de se sustentar em razão daquele segundo princípio introduzido no artigo 6º da
déclaration e que, ainda que não referido à proposta de rouSSeau, se referia ao
fato de se admitir que a assembléia representativa e eleita pelos cidadãos, e que
responsável seria pela própria atividade legislativa, fosse assumida como uma
representação de todos os cidadãos: assim, todos os cidadãos concorreriam, media-
tamente e através de seus representantes nacionais, à aprovação de uma lei que,

33 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875. Paris: recueil Sirey, 1931, p. 16.
34 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 16.
35 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 16.
36 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 17.
dessa forma, poderia ser reconduzida como fruto de uma vontade geral, o que
implicou a identificação entre a vontade expressada pela assembléia dos deputa-
dos com a vontade popular. dessa forma, interpretava-se a decisão da assembléia
de deputados eleitos como equivalente a uma decisão de todos os cidadãos.37
a volunté générale seria, pois, expressa pelo “corpo legislativo” que represen-
taria a totalidade dos cidadãos, em um sistema representativo que, da maneira
como construído, teria como objetivo efetivo substituir, nas palavras de carrÉ de
maLBerg, a vontade dos cidadãos pela sua própria. e, embora reconheça o autor
que o referido artigo 6º seria constituído de duas proposições,38 não deixa de
enxergar uma, ao menos em princípio, objeção que se poderia fazer quando de sua
interpretação. isso porque, enquanto a primeira proposição, referida ao fato de
que a lei há que ser assumida como expressão da vontade geral, deve ser interpre-
tada como diretamente inspirada pela proposta teórica contida em contrat Social,
de rouSSeau, por outro lado – e aí, já no que se refere à segunda proposição – é o
próprio rouSSeau quem rejeitaria uma proposta de legiferação por via representa-
tiva, uma vez que teria este demonstrado “que o povo não é suscetível de ser subs-
tituído, nem representado, para o exercício de sua soberania”.39
Todavia, carrÉ de maLBerg é consciente do fato de que toda a construção
levada a cabo pela assembléia nacional de 1789 se deu em nome de uma idéia de
representação nacional que estivesse repousada na idéia central, e essencial, de
que a lei devesse ser uma emanação dos cidadãos que formariam a nação: este,
inclusive, seria o “espírito” da própria constituição de 1791.40 e, assim, o rei fica
destituído de toda e qualquer carga representacional do corpo de cidadãos: o reco-
nhecimento de um “direito de veto” ao rei,41 e o papel por este cumprido em face
da assinatura de tratados e negociações internacionais, não o confeririam o status
de representante da nação, uma vez que tanto o veto – que teria como efeito de
seu exercício o reenvio da lei então vetada a uma nova apreciação do Legislativo
– quanto questões diplomáticas – sempre dependentes de ratificação por parte do

37 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 17.
38 “en résumé, le concept de loi enoncé par l’article 6 de la déclaration de 1789 se constituait de ces deux pro-
positions: 1º La loi a pour fondement la volonté générale, elle doit donc être l’expression de cette volonté;
2º elle l’est aussi, réellement, puisque la volonté générale est exprimée par le corps législatif, celui-ci repré-
sentant la totalité des citoyens.” carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale:
étude sur le concept de la loi dans la constitution de 1875, cit., pp. 17-18.
39 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 18.
40 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 18.
41 Sobre o conceito do instituto da sanção em carrÉ de maLBerg, sobretudo na Théorie générale de l’État, cf.:
carvaLho neTTo, menelick. a sanção no procedimento legislativo. Belo horizonte: del rey, 1992, p. 178
et seq.
Legislativo – ficariam submetidos à expressão decisiva e plenamente representati-
va da vontade geral representada de maneira exclusiva pelo corpo de deputados.42
mesmo porque o diferencial na determinação do caráter representativo do
corpo de deputados não tem unicamente a ver com sua origem eletiva. Sob a égide
da noção de representatividade fundada em 1789-91, carrÉ de maLBerg, nos expli-
ca que é a natureza do poder a ser exercido pelos indivíduos eleitos aquilo que viria
a marcar o sentido da representatividade; e não somente o ato eletivo em si, que
não teria o condão, por si, de garantir a qualidade representativa desses sujeitos. e
essa questão é tomada em conta em face da distinção, capaz de ser remontada nes-
ses traços, à constituição de 1791, entre os representantes e os administradores,
sendo que estes não teriam qualquer carga representacional. representante, pois,
somente seria aquele que, além de eleito pelo povo, exercesse um poder de nature-
za representativa, uma vez que isto consistiria, pois, em “querer pela nação”.43
enquanto o poder correspondente ao Legislativo referir-se-ia, à luz daquela
constituição, a) à feitura das leis, e b) à ratificação dos tratados internacionais fir-
mado com estrangeiros, o poder que possuiriam os administradores seria muito
diferente daquele referido ao Legislativo, inclusive porque ele mesmo seria domi-
nado e determinado, em completo, pelas leis vigentes: a “vontade” que se refere a
atos administrativos, destarte, não possuiria “le caractère de volonté libre et ini-
tiale”44 que a “vontade geral”, expressa pelo Legislativo, teria.
da mesma forma, explica-nos carrÉ de maLBerg, o Judiciário não teria outro
papel que a estrita aplicação das leis adotadas pelo Legislativo, sendo que estaria
negado todo o poder de criação jurisprudencial autônoma, razão pela qual os pró-
prios juízes jamais poderiam ser assumidos como dotados de qualquer caráter de
representação.45 ou seja, era vedado à autoridade jurisdicional emitir decisões que
não fossem referidas in concreto, isto é, decisões que tivessem efeitos gerais e
regulamentadores.46 mais adiante veremos como essa compreensão foi central
para uma compreensão radicalizada do convencionalismo no direito que a escola
da exegese outrora defendeu.
continua carrÉ de maLBerg, na reconstrução de conceitos determinantes na
tomada em consideração do sentido da legislação logo após a revolução Francesa,

42 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 19.
43 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 19.
44 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 20.
45 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 20.
46 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., 113.
que todas essas distinções entre poder representativo e os poderes dos administra-
dores e juízes, deveria ser remontada à distinção estabelecida pela revolução
entre as figuras do “representante” e do “funcionário” como, ao fundo, uma dis-
tinção concernente à titularidade de duas formas de poder público.
de um lado, o Legislativo que, como representante da nação, de todos os
cidadãos, pois, teria o poder de criação normativa como obra do próprio povo,
enfim, como obra do soberano, razão pela qual, por representar o soberano dete-
ria um poder supremo;47 de outro lado, o chefe do executivo (rei), os administra-
dores e os juízes que, embora exerçam “poderes nacionais”, não exerceriam, toda-
via, um poder qualificado como soberano exatamente porque não representam
este.48 assim, por não exercerem representação, exerceriam somente “funções”
que a eles seriam atribuídas pelo soberano e em conformidade com a, na medida
da, constituição. Seriam desprovidos, destarte, de caráter representativo, não
exprimiriam uma vontade geral; e quando tomassem uma decisão ou realizassem
um certo ato de suas respectivas competências, não estaria o povo “falando” ou
“agindo” por eles, seus supostos representantes, mas, muito pelo contrário, os fun-
cionários é que seriam “falados”, mandados e “agidos”, determinados, uma vez que
o artigo 2º da constituição de 1791 se refere a esses funcionários como agentes que
servem ao povo.
neste contexto, o Legislativo, investido de um poder cuja essência se diferen-
cia por seu caráter soberano, se diferencia dos funcionários, de autoridades pre-
postas, inclusive porque, ao final e em uma análise definitiva, o sistema represen-
tativo erguido pela revolução, embora parta do princípio da soberania nacional,
acaba se confundindo ou se reduzindo a um “sistema de soberania parlamentar”.49
assim, a lei seria a expressão da vontade geral e soberana, vontade esta repre-
sentada pelo Parlamento que deveria ser capaz de dominar, reger, em razão de sua
superioridade, não somente as atividades dos nacionais, mas inclusive de todas as
autoridades nacionais. É desta forma que carrÉ de maLBerg interpreta o artigo 1º,
da primeira seção, do capítulo ii, do Título iii, da constituição de 1791, segundo
o qual “il n’y a point en France d’autorité supérieure à celle de la loi”.50 e isso se
refere, com base no artigo 6º da déclaration, enfim, à herança revolucionária pre-
sente na constituição de 1791, de que o próprio rei – como toda e qualquer auto-

47 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 20.
48 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 21.
49 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 21.
50 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 22.
ridade não-parlamentar –, não pode realizar qualquer ato ou editar qualquer
norma endereçada aos cidadãos ou aos próprios funcionários, por não ter legitimi-
dade para tanto, ou seja, por não ser, nem representar, o soberano: “ce n’est qu’au
nom de la loi que le roi peut exiger l’obéissance”.51
Finalmente, investe carrÉ de maLBerg no sentido de que, pelo menos, uma
última dedução, a constituição de 1791 teria realizado com base no referido arti-
go 6º da déclaration, e seria aquela referente aos traços característicos para que se
reconhecesse uma lei. entende o autor que a partir do artigo 6º (tit. iii, ch. iii,
sect. 3) da constituição de 1791, a noção de lei não se fazia dependente de quais-
quer condições relativas ao conteúdo do ato legislativo, nem de distinção tangen-
te a matérias que supostamente seriam, ou não, matérias legislativas, mas, pelo
contrário, o conceito de lei seria derivado de um fator meramente formal, qual
seja, a origem da lei, enfim, o fato de ser adotada por um ato do Legislativo como
“lei” – segundo referido artigo, “Les décrets du corps législatif ont force de loi et
portent le nom et l’intitulé de lois”.52
Problematiza carrÉ de maLBerg questões interessantes, no sentido de que
a constituição de 1791 não exige nem um caráter de generalidade da disposi-
ção legislativa para que esta mereça, ou possa, ser qualificada como lei – em um
resgate crítico das idéias de rouSSeau –, nem também exige, a partir de uma
teoria da separação dos poderes, que a lei seja considerada como tal em face de
uma distinção de matérias capazes de supostamente serem referidas como
matérias reservadas ao Legislativo – em uma consideração à proposta de
monTeSQuieu.53
reconhece carrÉ de maLBerg que, embora a constituição de 1791 até reco-
nheça, ratione materiae, questões reservadas à competência do Legislativo (artigo
1º, tit. iii, ch. iii, sect. 1º), conclui que, sob a influência do contexto revolucioná-
rio, ao final das contas, “tout ce qui a été décidé par le corps législatif, en forme
législative, est loi et mérite le nom de la loi”.54 embora houvesse teorias, como a
de rouSSeau e a de monTeSQuieu, que fariam derivar a legalidade da generalida-
de/matéria da norma em questão, conclui carrÉ de maLBerg que em face da
constituição de 1791 em França se firma uma outra orientação para a identifica-
ção e caracterização da lei como tal, qual seja, o fato de ser fruto de uma decisão

51 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 22.
52 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 23.
53 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 23.
54 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 24.
de um corpo Legislativo, isto é, um conceito que decorre diretamente do princí-
pio da representação, um conceito “extra-matéria” e puramente formal.55
nesse sentido é que se pode considerar que, nesse contexto que inspirou
a constituinte de 1789-91, a lei era considerada como a fonte essencial e
exclusiva de todo o direito vigente no estado.56 e nessa esteira, carrÉ de
maLBerg, em sua outra obra intitulada, confrontation de la théorie de la for-
mation du droit par degrés avec les idées et les instituitons consacrées par le
droit positif français relativement à sa formation, de 1933, nos vai tornar viva
na memória a importância do artigo 5º da déclaration referente ao princípio
segundo o qual tudo o que não está proibido por lei, está permitido, isto é, nin-
guém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.
no mesmo sentido, a constituição de 1791 trazia um dispositivo (artigo 3º, tit.
iii, ch. ii, sect. 1º) segundo o qual somente em nome da lei pode-se de alguém
cobrar obediência.57
e tudo isso deve assim ser compreendido em face da centralidade e superio-
ridade que o princípio da representação, em sede do reconhecimento do poder
soberano, acabou adquirindo neste contexto, já que a lei, formalmente compreen-
dida, era a expressão da volunté générale. Somente a lei em razão de sua suprema-
cia, portanto, poderia ser assumida como a fonte criadora do direito, uma vez que
toda a origem do direito, e seu único fundamento, era a própria vontade geral
representada no Parlamento.58 isso, portanto, acabou contribuindo, sobremanei-
ra, para que se identificasse, sobretudo na França revolucionária, a crença de que
a idéia de direito se identificaria com a idéia de lei.59

“nel definire la legge mediante la voluntà generale e nel far dipendere dalla legisla-
zione l’intero diritto applicabile nello Stato, la rivoluzione assumeva, quindi, impli-
citamente ma fermamente, una posizione che consisteva nello stabilire una stretta
relazione fra la nozione di diritto e il potere dichiarato inerente alla volontà genera-
le. Questa relazione risultava dall’idea che la comunità nazionale, essendo sovrana
ed essendo tale in quanto insieme dei cittadini che la compongono, non può essere

55 carrÉ de maLBerg, raymond. La loi, expression de la volonté générale: étude sur le concept de la loi dans
la constitution de 1875, cit., p. 24.
56 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese. Trad. anna chimenti. milano: giuffrè, 2003, p. 108.
57 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 108.
58 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 109.
59 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 109.
vincolata giuridicamente, sia in corpore, sia nella persone dei singoli membri, se non
in virtù delle norme regolatrici che emanano dalla sua volontà.”60

e essa conclusão de carrÉ de maLBerg se coaduna, por inteiro, com a distin-


ção entre as funções executivas e jurisdicionais, em um nível altamente conven-
cionalista que, mais tarde, iria cobrar, e cobra, um alto preço em sede de reconhe-
cimento jurisdicional, mas não só, de direitos individuais. a confusão entre lei e
direito talvez tenha sido uma das mais nefastas heranças que os desenvolvimen-
tos revolucionários tenha nos deixado, uma vez que o reconhecimento subliminar
do convencionalismo inerente a essa concepção foi capaz de abrir margem para a
discricionariedade e sua conseqüente proposta pragmatista-axiológica de interpre-
tação do direito da modernidade.
Somente uma compreensão do direito como um sistema de princípios, e uma
interpretação da comunidade política como uma comunidade de princípios, será
capaz, como trataremos adiante com o auxílio da metáfora do juiz hermeS, e a par-
tir de dWorKin, de que maneira podemos reconstruir o sentido de “vontade da
comunidade”, ou o sentido do direito da modernidade, sem nos socorrermos de
testes psicológicos de uma “vontade do legislador”, nem de meras constatações
sociológicas de acordos firmados em sede de um processo legislativo.
mas, ao contrário do que veremos, esclarece-nos carrÉ de maLBerg que, sob
o império da constituição de 1791, considerava-se o direito como reduzido ao
corpo de legislações. “La norma di diritto unica era quella contenuta nella
legge”,61 o que nos remete àquela confusão nefasta, uma vez mais, entre legislação
e juridicidade. e se aos juízes estavam vedadas decisões de caráter “geral e regula-
mentador”, como acima já fizemos referência, isso assim era interpretado como
forma de se opor, energicamente, à criação de uma jurisprudência que permitisse
ao intérprete-aplicador do direito se socorrer a fontes diversas da legislação para
tomar sua decisão quando de um caso concreto.62
Todavia, em face do artigo 4º do code napoléon, tal matéria passou a ser
encarada de maneira um pouco diferente. em face desse quadro, em 1804, o prin-

60 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 109.
61 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 111. veja ainda: “d’altronde le opinioni e le intenzioni dei primi costituenti
francesi riguardo alla questione della formazione e delle fonti del diritto nascono, indubbiamente, dalle pre-
cauzioni che essi hanno preso per garantire al corpo legislativo l’esclusività del potere di creazione
dell’ordinamento giuridico.” carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto
con le idee e le istituzioni del diritto positivo francese, cit., p. 133.
62 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 113.
cípio segundo o qual a lei seria por si suficiente, e de modo ilimitado, a fornecer
ao juiz todos os elementos para que resolvesse as mais diversas questões que se lhe
colocavam, fora posto em xeque.63 assume carrÉ de maLBerg a interpretação de
que, embora ainda vinculada a questões particulares e concretas, o reconhecimen-
to de um tal artigo em sede da aplicação jurisdicional significaria o reconhecimen-
to de um eventual poder de criação do direito – o que não deixaria de se apresen-
tar como um problema à tradição do pensamento jurídico, uma vez que a
revolução “nel definire la legge come espressione della volontà generale, aveva
considerato come la fonte del diritto nella sua totalità”.64

iv. enTre “SoBerania LegiSLaTiva” e “cuLTo à Lei”:


oS deSdoBramenToS da eScoLa da eXegeSe

não deixa de ser extremamente relevante nesse contexto de discussão trazer


à tona questões que se referem à compreensão que uma determinada corrente do
pensamento jurídico moderno desenvolveu de maneira a justificar e desenvolver
as conseqüentes implicações que uma assunção da lei como fonte exclusiva e
suprema do direito traz. a nós se faz nítido que as propostas referentes à escola
da exegese, e que aqui se colocam de maneira crítico-reconstrutiva, antes que pre-
tender justificar uma interpretação político-pragmatista do direito, tinha como
intuito central afirmar, em sede da Teoria do direito, e de sua prática jurisdicio-
nal, o sentido normativo subjacente ao constitucionalismo e à própria revolução
francesa de que todo o direito decorreria da vontade geral de todos os concida-
dãos expressa em termos legais por meio dos representantes do povo.
evidente nos faz que a base convencionalista da qual os simpatizantes de tal
corrente do pensamento jurídico partem acaba por cobrar-lhes uma flexibilização
na interpretação do direito em termos da “vontade do legislador” em casos não
previstos ou sequer previsíveis por esse mesmo “legislador”. a referência a essa
“vontade do legislador” se faz, ainda, na busca de um sentido normativo, todavia,
fadado ao fracasso, de se fazer reconduzir à volunté générale novas interpretações
em face dos sempre imprevisíveis casos que se apresentam, como um jogo psico-
lógico de se fazer imaginar qual seria a “vontade do legislador” nessas situações.
não queremos adiantar aqui questões que merecem um tratamento mais detido e
apurado e que pretendemos apresentar nas linhas abaixo. antes, gostaríamos de
chamar a atenção para o fato de que um convencionalismo exacerbado em termos

63 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 115.
64 carrÉ de maLBerg, raymond. La teoria gradualistica del diritto: confronto con le idee e le istituzioni del
diritto positivo francese, cit., p. 116.
da escola da exegese não teria como alternativa senão o reconhecimento de uma
discricionariedade jurisdicional casada com uma flexibilização pragmatista da
aplicação do direito, ainda que melhores fossem as intenções normativas e de
legitimidade que se encontrassem por detrás das propostas desses autores.
na reconstrução dos traços essenciais da escola da exegese recorreremos à
obra clássica de JuLien BonnecaSe sobre o tema, intitulada L’École de l’exégèse en
droit civil, de 1924, em sua segunda edição.
mas, antes, cabe-nos fazer uma advertência: é o próprio BonnecaSe, profundo
pesquisador de Teoria do direito, mas sobretudo de direito civil, quem nos chama
a atenção para o fato de que as propostas que rondam a escola da exegese, e sua luta
com a escola científica, muito embora tenham se dado sobretudo no terreno de
questionamentos e reflexões da Teoria do direito civil e do processo de codifica-
ção – code napoléon – podem, todavia, se fazer perceber como refletidas de modo
geral, por toda a teoria jurídica. ou seja, as discussões e debates em torno da com-
preensão de direito que a escola da exegese, mas também a escola científica, pres-
supuseram e acabaram alcançando um “resultado de alcance geral”.65
inicialmente, devemos ainda alertar o leitor de que BonnecaSe compreende
a escola da exegese como capaz de ter sua história dividida em três grandes
momentos: a) a primeira fase, de 1804 a 1830, que se refere ao período de funda-
ção e “instauração” dos pressupostos interpretativos e das questões posteriormen-
te desenvolvidas por seus adeptos; b) a segunda fase, de 1830 a 1880, que pode ser
assumida como o apogeu da escola da exegese, em que predominaram as figuras
dos “grandes comentadores” do code napoléon; e c) a terceira fase, de 1880 a
1900, que marca a decadência da escola, embora ainda uma tentativa de sobrevi-
da a partir de uma “renovação” dos pressupostos dos quais partiam.66
mas o que aqui nos interessa diretamente é a própria doutrina defendida pela
escola da exegese, doutrina essa ironicamente colocada por BonnecaSe como o
exercício de uma verdadeira profissão de fé e que seria caracterizada por um dog-
matismo intransigente e crença de que a própria escola teria uma profunda virtu-
de de regeneração no estudo do direito civil francês.67
destarte, pontua o autor cinco traços essenciais e distintivos na caracteriza-
ção da escola da exegese, a saber:

65 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil. Trad. Jose m. cajica Jr. ciudad de méxico:
Porrua, 1944, p. 141.
66 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 36 et seq. no que se refere, ainda, ao
tema do abandono da doutrina da escola da exegese, confira outro livro, do mesmo autor, essencial a essa
temática: BonnecaSe, Julien. La pensée juridique française: de 1804 a l’heure présente, ses variations et ses
traits essentiels. Bordeaux: delmas, 1933, p. 27 et seq.
67 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 139.
1. o culto ao texto da lei;
2. o predomínio da intenção do legislador sobre o alcance literal dos textos
legais na elaboração do direito positivo;
3. uma compreensão altamente estatista do direito;
4. a contradição interna à escola entre a crença na onipotência do “legisla-
dor” e uma certa noção metafísica do direito;
5. e, finalmente, o respeito excessivo ao argumento de autoridade no que se
refere às autoridades e predecessores.68

1. no que se refere ao primeiro traço característico, o culto ao texto da lei,


BonnecaSe não dá maiores voltas ao expor a questão de maneira firme e direta: para
os adeptos da escola da exegese o direito positivo se identificaria, por completo,
com a lei. clássica é a frase de BugneT e que nos permite compreender bem o que
era pela escola compartilhado, a crença de que o texto legal deveria ser interpreta-
do como “o” direito positivo, um direito que se faz sem incertezas em face do pró-
prio texto da lei: afinal, disse BugneT, “não conheço o direito civil, só ensino o
code napoléon”.69 destarte, aos jurisconsultos, estudiosos do direito civil, não
lhes caberia qualquer pretensão legislativa porque o papel daqueles seria o de ensi-
nar o direito civil, e não se alçar à condição de legisladores do direito. e isso fica
bastante nítido nas palavras de LaurenT, trazidas por BonnecaSe: tanto aos estudio-
sos, quanto aos magistrados, caberia tão-somente uma atividade interpretativa do
direito, mas jamais uma atividade criativa, porque isso implicaria uma usurpação
do poder que a nação soberana teria investido ao próprio Legislativo.70
Percebe-se, nitidamente, que todo o peso retratado por carrÉ de maLBerg, e
linhas acima reconstruído, no sentido de que somente a lei, como expressão da
vontade soberana do povo, poderia criar normas jurídicas por meio de seus repre-
sentantes, acaba reentrando na base compreensiva da escola da exegese: partem
os autores rumo a um aprofundamento cego do ideal revolucionário francês de
que todo o direito somente poderia ser fruto da volunté générale expressada pelos
representantes de toda a nação. e digo que se trata de um aprofundamento “cego”
porque a escola da exegese o faz de maneira extremamente convencionalista e
alheia a questões mais complexas que, mais adiante, fizeram com que seus adep-
tos se socorressem à figura de uma “vontade do legislador”. afinal de contas, o
direito positivo estaria contido unicamente nos artigos dos códigos.71

68 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 140 et seq.


69 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 141.
70 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 141.
71 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 143.
2. mas, uma vez que o direito estivesse contido exclusiva e unicamente nos
artigos dos códigos, os adeptos da escola da exegese foram suficientemente aten-
tos a uma questão – embora não conseguissem articulá-la muito bem: poderia
acontecer que, embora o direito se reduzisse às disposições normativas dos códi-
gos, uma vez consideradas em si mesmas, essas disposições normativas poderiam
ser interpretadas de muitas diferentes maneiras.72
o que podemos extrair dessas colocações que BonnecaSe faz, é o sentido de
que a escola da exegese, de uma maneira geral, apresentou uma preocupação níti-
da com a questão da coerência normativa em face da multiplicidade de sentidos
que os próprios artigos dos códigos poderiam apresentar. esse juízo de coerência,
muito embora interessantíssima seja sua constatação em sede de uma teoria, como
a proposta, de maneira geral, pela escola da exegese, não fora sequer bem coloca-
da por seus adeptos, sobretudo em razão dos pressupostos convencionalistas dos
quais partem para compreender a prática jurídica moderna.
à questão acerca de como deveriam os dispositivos legais ser interpretados e
aplicados em face das transformações e “necessidades do estado social”, a escola da
exegese respondeu no sentido de que os aplicadores do direito jamais poderiam
realizar uma interpretação e aplicação do direito à sua particular maneira: isso
porque defendiam, em linhas gerais, que um texto, por si só, não valia nada, senão
quando interpretado por meio da “intenção do legislador” que deveria ser consi-
derada como “traduzida” no texto da lei. e unicamente o que se deveria buscar
para além do texto legal, e inclusive para alcançar o seu sentido correto – em face
da multiplicidade das interpretações que o mesmo suscita – é essa “intenção do
legislador”.73
mais à frente, e como já adiantado páginas atrás, quando introduzirmos a
metáfora do juiz hermeS assumiremos criticamente essa proposta de se fazer valer
da interpretação do direito em termos de uma “intenção do legislador”, ao menos
da maneira convencionalista, como proposta pela escola da exegese.
Por hora vale ressaltar, uma vez mais, que a busca de um juízo de correção
normativa e, pois, de uma coerência normativa em face da aplicação do direito é
uma questão que se colocou no centro dos debates por parte dos adeptos da escola
da exegese. e é extremamente interessante perceber que buscaram, desde sua par-
ticular óptica, enfrentar essa questão, ainda que tenham se socorrido, soteriologi-
camente, de uma suposta “intenção do legislador” como aquilo a oferecer o senti-
do de correção e coerência na interpretação jurídica. embora, como veremos, a
resposta oferecida não responda às exigências que o direito da modernidade nos
coloca, por outro lado levanta uma questão que se faz central nesse livro e que a

72 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 144.


73 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 144.
partir dos tropeços e equívocos do passado buscamos reconstruir, qual seja, o sen-
tido da racionalidade, isto é, de correção normativa em face de uma melhor com-
preensão da prática jurídica da modernidade.
como também já pontuando, esse apelo quase “religioso” à “intenção do legis-
lador” deita suas razões mais íntimas na tradição revolucionária que vislumbra no
próprio corpo Legislativo a representação suprema da volunté générale. assim, e
como ensinado por carrÉ de maLBerg, é que podemos entender a afirmação
segundo a qual a escola considerou essa “intenção do legislador” como fonte supre-
ma do direito positivo, porque, afinal, a própria “substância” direito positivo se
confundiria com as manifestações de vontade do “legislador”.74 assim é que, den-
tro de uma leitura extremamente convencionalista, auBry, em Palestra de abertu-
ra das Faculdades de Strasbourg, em 1857, afirmou que os professores encarregados
de ensinar o direito, em nome do estado, teriam como missão protestar contra
quaisquer tentativas de inovação que defendessem ou viessem propor a substitui-
ção da vontade do legislador por outra vontade que a esta fosse estranha.75
desde uma óptica extremamente convencionalista, a fala de auBry pode ser
lida como uma defesa da democracia e da “soberania popular”. o que está em jogo,
nessas páginas, é exatamente qual o sentido de democracia e de soberania que
pode ser adequadamente assumido em face do caráter principiológico, e não-con-
vencional, do direito moderno...
dessa forma é que os adeptos da escola acabam embarcando em uma ativida-
de missionária de descobrir qual seria a vontade real do legislador: isto implicaria,
desde seu particular arcabouço teorético, o respeito à democracia e à volunté
générale substituída pela própria vontade do Legislativo. nos capítulos seguintes,
veremos como a manipulação, em sede de aplicação do direito, da idéia dessa
“vontade do legislador” se faz extremamente perigosa à legitimidade da própria
aplicação do direito.
os próprios autores perceberam que nem sempre se faz possível a referência
a uma “vontade real”, razão pela qual logo propuseram a busca por uma “vontade
suposta” ou “presumida”.76
no que tange a essa temática, demoLomBe, autor importante da escola, reali-
za considerações que, embora não possam ser a todos generalizadas, faz-se rele-
vante. conforme nos explica BonnecaSe, para demoLomBe a melhor maneira de se
vislumbrar essa “vontade presumida do legislador” seria vê-la refletida em uma
jurisprudência bem definida, ou seja, assumir que quando se tivesse uma jurispru-

74 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 145.


75 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 146.
76 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 149.
dência bem definida estar-se-ia diante de uma “tradução” do “espírito” da própria
legislação.77
essa colocação, embora mergulhada em pré-compreensões acerca do direito,
que não se sustentam mais, não deixa de ser interessante quando, com a ajuda de
dWorKin, interpretamos metaforicamente o direito como um romance em cadeia,
isto é, como uma obra de toda a comunidade jurídica, não em um sentido conven-
cionalista, mas sob o viés de uma compreensão principiológica a fazer com que não
só as decisões jurisprudenciais, mas também as legislativas, sejam interpretadas
como frutos de um processo construtivo de seu único autor, a própria comunidade
de princípios; assim, faria sentido dizer que a jurisprudência não só desenvolve,
mas deve desenvolver o sentido de coerência no direito, isto é, deve pautar-se pela
integridade. e a busca dessa coerência, inclusive da, e com a, legislação, embora
possa lembrar as palavras de demoLomBe, jamais pode ser interpretada em termos
de uma “vontade do legislador”, ainda que presumida, embora certamente conven-
cional. essa questão estará melhor desenvolvida páginas adiante.78
Para fechar esse traço característico da escola da exegese, vale transcrever-
mos as palavras de BonnecaSe:

“Las múltiples citas que acabamos de hacer demuestran que la intención del legisla-
dor atormentó a los representativos de la escuela de la exégesis, hasta el grado de ver
en ella un verdadero dogma que, a lo menos en su forma, convenía respetar de la
manera más absoluta. de aquí el caráter facticio de la doctrina de esta escuela.”79

e embora BonnecaSe não coloque esta questão, aqui devemos reforçá-la: se a


escola da exegese reforçou a busca pela “vontade” ou “intenção do legislador”
como um dogma, isso se deu na busca de uma praxis jurídica que estivesse mergu-
lhada nos ideais revolucionários franceses, e não a partir de uma negação daque-
les, ou de uma contradição. o que nos falta é reconstruir em que sentido esse
aprofundamento, e não negação – como KeLSen, sim, acabou realizando –, é capaz
de levar a sério o próprio projeto moderno de reconhecimento de iguais liberda-
des a todos os concidadãos na maior medida, ou grau, possível.
3. como conseqüência tanto do culto ao texto da lei, como também à adoração
da vontade do legislador – e pelas razões normativas que acabamos de pontuar –,
BonnecaSe nos traz o terceiro traço marcante da escola em questão, qual seja, o
seu caráter extremamente estatista.

77 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 151.


78 cf., infra, capítulo 6.
79 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 158.
e isso porque a escola da exegese vem, exatamente, a proclamar a onipotên-
cia jurídica do Legislativo, compreendida como onipotência do estado, em razão
dos dois traços característicos acima já elucidados.80
isso traz como conseqüência pontos interessantes: o primeiro, e inevitável,
foi a consideração da lei como a única fonte de todas as decisões jurídicas. esse
posicionamento levou autores mais radicais – dentre eles BLondeau – a defende-
rem que, em face de “dúvida” ou “insuficiência da lei”, como algo que outrora
fugira do “pensamento do legislador”, jamais poderia ser aberta a autorização para
se decidir com base em “princípios de eqüidade natural”, exatamente porque isto
seria uma inconseqüência em face da consideração de que somente as leis podem
se fazer obrigatórias em virtude de sua própria promulgação. assim, levanta-se a
defesa de que a demanda, nesses casos, deveria ser rechaçada81 – em uma leitura
similar à de KeLSen quanto às conseqüências, mas não quanto à justificação que,
enquanto em BLondeau far-se-ia central uma determinada leitura normativa, em
KeLSen se sobrepõem argumentos funcionais.
mais impressionantes são as palavras de mourLon, e que merecem ser repro-
duzidas:

“Solamente al legislador pertenece el derecho de determinar, entre las numerosas y


algunas veces tan controvertidas reglas del derecho natural, las que son igualmente
obligatorias... dura lex, sed lex; un buen magistrado humilla su razón ante la de la
ley, pues está instituído para juzgar conforme a ella y no de ella. nada está sobre la
ley, y es prevaricación el eludir sus disposiciones so pretexto de que no se encuen-
tran de acuerdo con la equidad natural. en jurisprudencia no hay ni puede haber
mayor razón ni mejor equidad, que la razón o equidad de la ley.”82

a força dessas palavras somente pode ser compreendida em face de uma


interpretação extremada e duramente aprofundada de um convencionalismo
incapaz de perceber que, como já trazido acima, no ponto 1, o direito não pode
ser confundido ou reduzido às disposições legislativas aprovadas por um legislador
histórico, mas antes há que ser compreendido como um processo social de desen-
volvimento de um sistema de princípios na consecução de um projeto de realiza-
ção de iguais liberdades a todos, na maior medida possível.
4. BonnecaSe vislumbra ainda como um quarto traço característico da escola
da exegese um certo elemento, em suas palavras, “ilógico” ao mesmo tempo em
que “paradoxal”, pelo fato de essa doutrina defender que, não obstante todo o

80 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 158.


81 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 159.
82 apud BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 160.
direito decorrer da “onipotência do legislador” a explicar sua postura estatista na
interpretação do direito, haveria ou um direito divino83 – como no caso de teó-
ricos católicos como o marQuêS de vareiLLeS-SommièreS – ou a existência de “cer-
tos princípios absolutos e imutáveis, anteriores e superiores a toda legislação posi-
tiva”84 – como no caso de auBry e rau.
e o que BonnecaSe está a chamar de paradoxal e ilógico é o fato de que ao
mesmo tempo em que os teóricos da escola defendiam e pregavam a onipotência
do legislador em face do que se poderia tomar em consideração como direito posi-
tivo, reduzindo este à legislação e à sua intenção, por outro lado não deixavam de
reconhecer a existência de determinados princípios absolutos e não presos às con-
tingências sociais.85
Todavia, a explicação, e não a justificação, para esse fato só encontra uma saída:
a legitimidade do direito, para a escola da exegese, não decorreria de princípios abso-
lutos e imutáveis que, embora “existentes” – desde seu particular ponto de vista –,
não se sobreporiam à vontade geral expressa pelo Legislativo. É claro que a escola
da exegese realiza uma redução da validade do direito à faticidade das decisões con-
vencionalmente firmadas em sede do Legislativo. Todavia, essa redução levanta pre-
tensões normativas que, ao contrário de KeLSen, não são abandonadas, e que, exata-
mente por essa razão, devem ser adequadamente resgatadas e reconstruídas na supe-
ração das dificuldades que essa compreensão convencional do direito nos coloca.
5. o último traço característico da escola da exegese, e levantado por
BonnecaSe, refere-se ao generalizado culto à opinião das autoridades acadêmicas
mais antigas – mas desde que inseridas, obviamente, no movimento da escola da
exegese. um interessante episódio ilustra esse ponto.
du caurroy, um jovem estudioso do direito civil francês, certa vez escre-
veu um texto atacando, à luz do code napoléon, uma certa interpretação dada por
TouLLier, um já experiente e respeitado professor, a um determinado instituto.
TouLLier pessoalmente respondeu a du caurroy, dizendo que este não se tratava
nada mais do que de um “jovem professor” que, embora desse esperanças ao estu-
do do direito, não teria ainda, em razão de sua idade, conhecimentos maduros que
somente a “meditação profunda e a larga experiência” permitiriam construir e for-
mar um “verdadeiro jurisconsulto”.86 como bem acrescenta BonnecaSe, de
maneira crítica, para TouLLier a idade equivalia a um argumento cientificamente
determinante... isso ainda porque o próprio TouLLier não perdeu a oportunidade
de dizer as infelizes palavras, segundo as quais antes mesmo de du caurroy nas-

83 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 167.


84 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 169.
85 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 169.
86 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 180.
cer, já se dedicava ao ensino do direito, razão pela qual, obviamente, não admitia
ser contradito por alguém tão “jovem”, isto é, “inexperiente” e, por essa razão, sem
conhecimentos suficientes a fazer-lhe frente...
marcadÉ também apresentou críticas à obra do Professor TouLLier. Porém, em
defesa deste saiu duvergier, que veio a repreender marcadÉ por, ao criticar passa-
gens de TouLLier, ter se referido a este professor, e ao seu equívoco, através da
expressão “errare humanum est”. duvergier, na assunção do peso que o argumen-
to de autoridade tinha perante os defensores da escola da exegese, ainda reprovou
marcadÉ por não ter realizado elogios a todas as partes da obra de TouLLier. como
nos informa BonnecaSe, marcadÉ ironicamente questiona se atacar a obra do “prín-
cipe da ciência” (TouLLier) seria um ato profano em face de tanta santidade...87
BoBBio acrescenta que o recurso a esse princípio de autoridade se deveu não
somente pelo respeito excessivo à legislação, mas sobretudo, e inclusive como
decorrência disso, do prestígio e autoridade que os primeiros comentadores do
code napoléon passaram a ter, e cujas interpretações em torno do code foram
adotadas, pelos juristas e intérpretes posteriores, como dogmas...88
nesses tempos atuais, quando ainda muitas vezes se fazem mais altas vozes
que pretendem, seja por critérios de idade ou titulação, fazer impor a todos, ou
ainda a um universo particular, e de maneira descontextualizada, ou não-contex-
tualizada adequadamente, suas conclusões científicas ou filosóficas, vale lembrar
as singelas palavras de norBerTo BoBBio:

“no pensamento científico e filosófico moderno, o princípio de autoridade foi com-


pletamente abandonado – não faria sentido hoje apelar para a palavra de um mestre
(por maiores que sejam os seus méritos) para demonstrar a validade de uma proposi-
ção. o recurso ao princípio da autoridade é, entretanto, ainda comumente praticado
no campo do direito, e, pelo contrário, tal princípio é de máxima importância para
compreender a mentalidade e o comportamento jurídicos.”89 (itálicos nossos)

É claro que essa questão se faz perfeitamente pertinente a uma discussão em


torno do debate científico e filosófico travado em uma comunidade verdadeira-
mente acadêmica e que mereça, assim, este nome. mas também não devemos dei-
xar de pontuar uma questão na qual BoBBio toca e que nos permite conectar toda
essa discussão àquilo que se refere à teoria kelseniana.
É exatamente essa radicalização do argumento de autoridade, que se faria
para KeLSen enquanto tal em razão de uma norma hierarquicamente superior que

87 BonnecaSe, Julien. La escuela de la exegesis en derecho civil, cit., p. 183.


88 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 89.
89 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 88.
a conferisse poder/competência para realizar seus atos como dotados de validade
jurídica, que permite a este autor realizar aquele giro funcionalista e explicar de
maneira tão-somente formal e desprovida de qualquer preocupação normativa,
em termos fortes, a validade do direito, o que inclui a validade das decisões juris-
dicionais, seja quando aplica uma norma geral de “direito material”, seja quando
discricionariamente inventa essa mesma norma. afinal, o mínimo que se exigiria,
segundo KeLSen, seria o “elemento pessoal”, isto é, a instituição de uma autorida-
de competente para realizar um determinado ato, ainda que esse ato não seja
determinado em todos os seus traços, ou ainda que esse ato não seja determinado
de maneira alguma. e isso porque a decisão da autoridade passaria a ser válida
quando de seu trânsito em julgado, em se tratando de autoridade jurisdicional, isto
é, quando não mais fosse questionável no seio do próprio direito.
mas, voltando a questões referentes à escola da exegese, BoBBio, de maneira
simples e direta, nos permite vislumbrar algumas causas históricas que seriam
determinantes do advento daquele movimento de interpretação e compreensão
jurídicos.

a) a primeira dessas causas estaria radicada no próprio fato da codificação, o


que levou, segundo BoBBio, a se assumir o code napoléon como uma “via
mais simples e mais curta” para se alcançar as soluções jurídicas referidas,
pois, ao próprio direito civil. isso teria levado ao desprezo de outras fon-
tes, no entender do autor, uma vez que a decisão em face dos múltiplos
casos concretos dever-se-ia fazer em face da exclusiva fonte legal, em des-
consideração ao costume, jurisprudência e doutrina.90 Sabemos, todavia e
conforme já acima pontuado, que existem razões normativas mais fortes a
explicar essa opção dos adeptos da escola da exegese;
b) outra razão seria a mentalidade dos juristas a assumir de maneira veemen-
te o peso e a força normativa de um princípio da autoridade, no que tange
não somente aos próprios estudiosos clássicos do code napoléon – como
acima explicitado –, mas, sobretudo, no que tange à própria figura do
Legislativo, uma vez que partem da compreensão de que sua vontade é
sempre, em princípio, “expressa de modo seguro e completo”;91
c) uma terceira razão refere-se ao impacto que a assunção de uma doutrina
da separação dos três poderes92 trouxe à prática interpretativa do direito
da modernidade. uma vez que propugnava uma distinção entre as esferas

90 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 78.


91 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 79.
92 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 79.
jurisdicional, legislativa e executiva – sobretudo à luz daquilo que carrÉ
de maLBerg nos explica como a distinção, em um primeiro momento,
entre “representantes” e “funcionários” –, o juiz não poderia criar direito
porque estaria invadindo uma esfera de competência dos representantes da
volonté générale, e, como mero funcionário que seria, não estaria autori-
zado a tanto;
d) um quarto fator é uma certa busca, por parte dos representantes da escola
da exegese, da construção de uma base que supostamente viesse a oferecer
à praxis jurídica um critério de segurança no que diz respeito às conse-
qüências exatas e antecipadas da própria interpretação jurídica. em outras
palavras, buscava-se dar forma e operacionalidade a um certo princípio da
certeza do direito.93 de maneira radicalmente contrária, somente pode-
mos afirmar a segurança jurídica não na tentativa que se já faz nitidamen-
te fracassada de oferecimento exaustivo de possibilidades e elucubrações
em sede de abstrata interpretação normativa e de seu suposto esgotamen-
to cognitivo, como proposto pela escola da exegese. Pelo contrário, acre-
ditamos que em face das incertezas que cada novo hard case nos coloca, a
reconstrução da segurança somente é possível ao se assumir que cada caso
é único e dotado de singularidades que nos fazem reinterpretar todo o
direito como um sistema idealmente coerente de princípios na busca não
de qualquer interpretação ao caso, mas tão-somente da interpretação cor-
reta, única, e capaz de dar vazão ao sentido normativo subjacente ao
direito da modernidade, qual seja, o igual reconhecimento de liberdades
fundamentais a todos os concidadãos na maior medida possível;
e) finalmente, BoBBio ainda nos remete, como uma última razão histórica
determinante do advento da escola da exegese, às enormes pressões exer-
cidas pelo regime napoleônico no sentido de se abandonar as antigas con-
cepções jusnaturalistas (ameaçadoras do regime napoleônico) rumo a um
ensino e prática do direito que enxergassem no code napoléon aquilo a
ser ensinado nas Faculdades de direito94 e aplicado jurisdicionalmente.

no que se refere a essa temática tão cara a nós e que diz respeito à reconstru-
ção dos primeiros traços característicos do sentido normativo da prática legislati-
va e jurisdicional modernas, em suas primeiras experiências e em face da sofisti-
cação do próprio direito que acaba se desenvolvendo mais profundamente em

93 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 81.


94 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 82. Sobre as modificações
ocorridas nas Faculdades de direito em França, confira ainda o excelente livro sobre o assunto, de
BonnecaSe: BonnecaSe, Julien. Qu’est-ce qu’une Faculté de droi? Paris: recueil Sirey, 1929.
torno da idéia de sua forma jurídica moderna, não poderíamos deixar de nos dar
perante uma questão de maior importância e à qual BoBBio chama, uma vez mais,
nossa atenção.
apesar dos três projetos anteriores de camBecÉrèS ao código civil francês
terem sido rejeitados – o projeto de 1793, com 719 artigos, fortemente influencia-
do por uma leitura individualista e que pretendia firmar a igualdade de todos os
concidadãos perante a lei e a liberdade pessoal, sobretudo liberdade contratual; o
projeto de 1794, com 287 artigos, mais simples que o anterior, e que pretendia ofe-
recer somente “princípios essenciais” que servissem como inspiração tanto para
legisladores posteriores, como para os juízes na determinação de uma norma indi-
vidual para o caso concreto; e o projeto de 1796, com 1.004 artigos, dotado de
“maior elaboração técnica” e de menor “carga filosófica” que o seu antecedente,
por se orientar pelo abandono de princípios do jusracionalismo95 –, foi o seu últi-
mo projeto aquele que, de certa forma, exerceu uma influência na elaboração do
projeto final e definitivo do code napoléon – ainda que, como pontua BoBBio, os
elaboradores deste tentassem evitar qualquer vinculação do projeto final a qual-
quer projeto anterior.96
destarte, o code napoléon é fruto de uma comissão instalada pelo próprio
naPoLeão, em 1800, e composta por quatro juristas, a saber, TroncheT, maLeviLLe,
BigoT-PrÉameneau e PorTaLiS.97 importante salientar que referido código, publi-
cado primeiramente em 1804, sob o nome de code civil des Français, somente veio
a assumir o nome code napoléon em 1807, quando de sua segunda edição.98
inspirado no Traité de PoThier, que, segundo BoBBio, teria sido o maior juris-
ta francês do século Xviii, o code napoléon faz, por essa razão, muitas vezes coin-
cidir suas soluções com aquelas dadas por PoThier a questões jurídicas controver-
tidas.99
mas o mais relevante, e que merece maior destaque, é o fato de o code
napoléon ter abandonado, por completo, após uma forte discussão no conselho de
estado à época, o último resíduo jusnaturalista infiltrado em seu projeto e que
estava representado pelo artigo 1º do Título i, segundo o qual:

“existe um direito universal e imutável, fonte de todas as leis positivas: não é outro
senão a razão natural, visto esta governar todos os homens.”100

95 cf., assim, BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 67 et seq.
96 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 71.
97 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 71.
98 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 72.
99 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 73.
100 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 55 c/c p. 72.
os projetos anteriores pretendiam, ao se socorrer dos ideais jusracionalistas,
um retorno à natureza como forma de superar o passado e iniciar algo inteiramen-
te novo, com independência daquilo que o direito romano, infiltrado na prática
jurídica francesa, vinha impondo, e com independência dos próprios usos tradi-
cionais. Todavia, esta não era a intenção presente na comissão do code napoléon;
não se pretendia fazer do código civil francês um início absolutamente novo a
negar o passado rumo a um futuro exclusivo; antes, a própria comissão não nega-
va o socorro à aplicação do direito precedente ao code napoléon, como “costu-
mes” e direito romano, “ao menos em casos para os quais a nova legislação não
estabelecesse alguma norma”.101
a questão, muito bem colocada por BoBBio, deve ser entendida no sentido de
que foram os primeiros intérpretes do código aqueles a vislumbrar em suas dispo-
sições um “início absoluto de uma nova tradição jurídica” que viria a sepultar, em
definitivo, a tradição jurídica precedente – mas jamais como a intenção presente
na redação do próprio code.102 destarte, não nos deixa de ser de interesse a pro-
blematização em torno da compreensão que intérpretes e redatores, sobretudo
quando da superação, por parte destes, de uma leitura jusnaturalista, assumiram
em face do artigo 4º do código de 1804.
enquanto os intérpretes do código civil francês, extremamente influencia-
dos pelos princípios que passariam a delinear o positivismo jurídico, pretendiam,
em caso de silêncio ou insuficiência da lei, fazer com que os juízes encontrassem
uma regra para integrar o direito, a busca por tal regra deveria ocorrer – ainda que
sempre se esbarrando no problema da discricionariedade – no “interior do próprio
sistema legislativo”, através do uso de analogia ou dos “princípios gerais do orde-
namento jurídico” – numa assunção da completude e do “dogma da onipotência
do legislador”103 –, os redatores do code napoléon, ao fazerem inserir o artigo 4º,
pretendiam exatamente o contrário, isto é, “deixar aberta a possibilidade da livre
criação do direito por parte do juiz”.104
esta surpreendente constatação BoBBio nos apresenta a partir do discurso
realizado por PorTaLiS perante o conselho de estado francês, e segundo o qual em
nenhum momento a intenção fora oferecer ou estabelecer uma legislação que
fosse capaz de prever todos os casos possíveis, mesmo porque, segundo as próprias
palavras de PorTaLiS: “Seja lá o que se faça, as leis positivas não poderão nunca
substituir inteiramente o uso da razão natural nos negócios da vida.”105 caberia,

101 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 73.
102 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 73.
103 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 74.
104 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 75.
105 apud BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 75.
pois, ao intérprete-aplicador do direito decidir questões às quais o código não
fizesse qualquer referência, mas desde que “penetrado pelo espírito geral das leis”.
em seu discurso, PorTaLiS acaba elevando os costumes, a jurisprudência e a dou-
trina como fontes de normatividade, porque afirma que

“na falta de um texto preciso sobre cada matéria, um uso antigo, constante e bem
estabelecido, uma série não interrompida de decisões similares, uma opinião ou uma
máxima adotada, funcionam como lei. Quando não há relação nenhuma com aquilo
que está estabelecido e é conhecido, quando se trata de um fato absolutamente novo,
remonta-se aos princípios do direito natural. Pois, se a previdência dos legisladores
é limitada, a natureza é infinita e se aplica a tudo que pode interessar aos homens.”106

Percebe-se, nitidamente, que nesse discurso de PorTaLiS o projeto que o


code napoléon representava não viria impor uma ruptura com as experiências
jurídicas anteriores, mas tornar-se-ia aberto a essa praxis antecedente ainda que
de maneira subsidiária ou suplementar às questões não resolvidas em sede legisla-
tiva em razão de sua própria limitação cognitiva e interpretativa, reconhecida em
contraposição à pretendida “onipotência” por parte dos intérpretes.
a prática desastrosa do référé législatif, quando do período revolucionário,
como explicado nos primeiros parágrafos deste capítulo, fora determinante para a
inserção do artigo 4º e também do pretendido artigo 9º, todavia não aprovado no
texto final do código e que dispunha que:

“nas matérias civis, o juiz, na falta de leis precisas, é um ministro de eqüidade. a


eqüidade é o retorno à lei natural e aos usos adotados no silêncio da lei positiva.”

como já pontuado, quando do abandono, por parte do projeto do code


napoléon, da assunção do jusracionalismo, fez-se imperiosa a remoção deste pre-
tendido artigo 9º. Quando interpretamos o famoso artigo 4º com este artigo remo-
vido do projeto final, torna-nos nítida a intenção presente entre os redatores do
code e revelada pelas palavras de PorTaLiS, qual seja, a intenção de garantir ao
juiz, quando da obscuridade, silêncio ou insuficiência da lei, uma abertura a uma
atividade criativa, capaz de evitar os inconvenientes do référé législatif, ao mesmo
tempo em que realizaria um resgate da prática jurídica anterior ao próprio movi-
mento de codificação.
Todavia, uma vez removido o então artigo 9º, e permanecendo o artigo 4º,
não tardaram os intérpretes a compreender a questão de maneira completamente
diferente, isto é, vislumbrando na legislação uma fonte capaz de resolver quais-

106 apud BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 76.
quer questões que se fizessem presentes, pelo fato de a lei, supostamente, com-
preender a disciplina de todos os casos.107
assim é que BoBBio nos leva a concluir que:

“É neste modo de entender o art. 4º que se fundou a escola dos intérpretes do código
civil, conhecida como “escola da exegese” (école de l’exégèse); esta foi acusada de
fetichismo da lei, porque considerava o código de napoleão como se tivesse sepulta-
do todo o direito precedente e contivesse em si as normas para todos os possíveis
casos futuros, e pretendia fundar a resolução de quaisquer questões na intenção do
legislador.”108

Todas essas questões que aqui reconstruímos nos servem como um ponto de
partida para a reflexão em torno do adequado sentido normativo da praxis legisla-
tiva e jurisdicional, uma vez que a tensão entre legitimidade e discricionariedade
jurisdicional sempre se colocou, de maneira central, no debate em torno da com-
preensão do direito desde os primeiros passos do constitucionalismo moderno.
destarte, nos damos com uma série de questões que merecem ser melhor
compreendidas à luz de uma teoria da democracia que seja capaz de enfrentar, e
de maneira coerente ao projeto constitucional moderno, questões referentes à dis-
tinção entre legislação e jurisdição. afinal, em que sentido podemos nos referir a
fontes de normatividade? o que significa dizer que a legislação há que ser com-
preendida como fruto de uma volonté générale, sem com isto substituir a sobera-
nia popular pelas decisões expressas de um Legislativo? como superar dificulda-
des interpretativas em sede da aplicação do direito, sem se socorrer de velhas e
perigosas figuras como “intenção do legislador” ou “fim social” em face de um
determinado texto legislativo?

107 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 77.
108 BoBBio, norberto. o positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 77.
caPíTuLo 3
enTre FormaS e normaS:
em Torno de uma reconSTrução do SenTido
normaTivo da LegiSLação e da JuriSdição no
marco do conSTiTucionaLiSmo moderno

i. Juridicidade e LegiTimidade: acerca daS PreSSõeS normaTivaS


da modernidade

Sabemos, antes de mais nada, que o fetichismo da lei e a idéia de completu-


de do direito vêm, pela tradição, sendo enfocados desde uma óptica a compreen-
der o direito como um sistema de normas convencionadas, isto é, de normas que
seriam capazes de reconduzirem-se a um processo expresso ou implícito de uma
construção negociada ou pactuada. Seja o processo legislativo, geralmente atrela-
do à questão da legitimidade expressa em termos da vontade geral do povo, sejam
os costumes, em que o próprio povo, diretamente, embora de maneira tácita, cria-
ria padrões normativos pela repetição uniforme e constante de uma determinada
prática a gerar, entre os cidadãos um sentimento sobre a necessidade de se seguir
um tal comportamento juridicamente. a base de todas as teorias das fontes no
direito esbarra, mais cedo, ou mais tarde, em problemas da ordem de uma inter-
pretação convencionalista da prática jurídica. isso implica dizer, pois, que surge,
assim, um enorme problema em sede de justificação, interpretação e aplicação do
direito, pois acreditamos que uma tal compreensão do direito, como um sistema
de convenções, não é capaz de ser assumida como uma compreensão a responder
à demanda que uma praxis jurídica da modernidade, legítima e democrática, está
a normativamente nos exigir. e refiro-me a exigências normativas da
modernidade ao, e pelo, direito em vários sentidos que não podem ser assumidos
de maneira independente, senão de forma complementar e co-dependente. a
saber, exigências normativas de que:

1. sejam reconhecidas iguais liberdades fundamentais a todos os concidadãos,


na maior medida ou grau possível;
2. as normas jurídicas sejam vislumbradas, desde o ponto de vista de sua jus-
tificação, como, simultaneamente, destinadas aos, e construídas pelos,
concidadãos de uma determinada comunidade política;
3. a aplicação do direito se dê racionalmente orientada a um juízo de corre-
ção normativa a exigir do intérprete-aplicador, e de um público crítico
ampliado, a compreensão do que um juízo de adequabilidade normativa
está, inclusive, a exigir como imparcialidade e coerência normativa.

Sem dúvida alguma, haBermaS apresenta uma compreensão acerca da cons-


trução democrática do direito de maneira a aprofundar os ideais revolucionários
de que somente um direito reconduzido à volonté générale há que ser assumido
como válido, isto é, legítimo. assim, é que haBermaS parte para a tarefa de inter-
pretar e explicar o “paradoxo surgimento da legitimidade a partir da legalidade”,
com o auxílio dos direitos que asseguram a nós, cidadãos, o exercício de uma auto-
nomia política.1 e o interessante é que o autor justifica este suposto caráter para-
doxal da justificação do direito em procedimentos institucionalizados, pelo fato
de que esses direitos garantidores de um exercício da autonomia pública teriam,
enquanto direitos subjetivos, uma mesma estrutura que quaisquer outros direitos
que viriam a outorgar, ao indivíduo, esferas de “liberdade de arbítrio”.2
Todavia, a partir do momento em que, superando uma teoria da relação jurí-
dica, tão frutífera ao mesmo tempo em que tão prejudicial à Teoria do direito,3
somente nos resta interpretar, qualquer direito subjetivo, como o reconhecimen-
to de uma esfera de liberdade argumentativamente problematizável e capaz de
cobrar reconhecimento à luz dos traços distintos de cada caso. assim, o fato de
também os direitos garantidores do exercício de uma autonomia política serem
interpretáveis e reconhecidos, em face de um caso concreto, senão como direitos
subjetivos, isto é, como esferas de liberdade, não se trata de um “paradoxo”; quan-
do muito, e isso é verdade, o que há é uma abertura a um exercício irracional des-
sas liberdades políticas que, todavia, há que ser assumido reflexivamente, uma vez
que se poderia, inclusive, tratar de um, em princípio, exercício de autonomia polí-
tica quando, in concreto, trata-se de uma interpretação privada, estratégica, de seu
exercício. com isso não opomos liberdades comunicativas às liberdades subjetivas,
antes tão-somente alertamos que o exercício dos direitos subjetivos pode se dar
tanto orientado ao entendimento, quanto também à busca de finalidades, uma vez

1 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso. Trad. manuel Jiménez redondo. madrid: Trotta, 1998, p. 148.
2 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 149.
3 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 103 et seq.
que, pelo fato de os direitos subjetivos garantirem “um espaço moralmente neutro
[isso] não elide a possibilidade de um agir tanto moral quanto ético no limite, e ao
mesmo tempo, do espaço de exercício auto-constituído das liberdades jurídicas”.4
veremos que a colocação, por parte de haBermaS, da existência de um tal
paradoxo tem diretamente a ver com algo que o autor não reconhece de maneira
bem articulada, o que seja, uma justificativa normativa à forma jurídica moderna.
antes, entendemos que, realmente, há um paradoxo no que diz respeito à
legitimidade do direito, mas esse paradoxo não decorre do fato de que esses direi-
tos, referidos ao exercício de uma autonomia pública, sejam “direitos subjetivos”
a outorgar aos cidadãos uma esfera de liberdade de arbítrio. referida questão tem
a ver, como já tivemos a oportunidade de pontuar anteriormente, com o fato de o
direito ter “uma forma jurídica da qual não se pode legitimamente dispor porque,
paradoxalmente, não podemos, em uma democracia, decidir por não mais deci-
dir”.5 e esta não é uma questão meramente “funcional”, como insinua haBermaS,
mas uma questão que possui dimensão normativa que realiza uma profunda pres-
são, e que merece ser melhor colocada.
concordamos com haBermaS quando este afirma que os direitos do homem
e o princípio da soberania popular são as únicas idéias a partir das quais se pode
proceder a uma justificação racional do desenrolar do direito da modernidade,
quando ainda acrescenta o autor que tal princípio e direitos assim hão que ser
assumidos não por casualidade.6 isso assim deve ser assumido quando se percebe,
e como ainda nos alerta haBermaS, que somente essas idéias nos servem como as
bases a justificar a criação de normas jurídicas, na passagem de uma substância
normativa de um ethos ancorado em tradições religiosas e metafísicas rumo a uma
justificação pós-tradicional.7
como já pontuado, compartilhamos com haBermaS acerca dessas questões.
Porém, acreditamos que essa afirmação parece um pouco problemática ao ser
tomada conjuntamente em consideração com outra assertiva deste autor quando
propõe que a explicação acerca da forma jurídica moderna seria relativa a uma
explicação meramente funcional, mas não relativa a uma justificação.8

4 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 03.
5 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p, 02.
6 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 164
7 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 164.
8 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 177.
Se nossa intuição estiver correta, poderemos perceber que se o direito da
modernidade é um sistema de ação, isto assim o é em face, inclusive, de sua fun-
ção, qual seja, a de estabilizar, de maneira generalizada, expectativas de compor-
tamento. Todavia, a referência a textos legislativos, à coercitividade, à sua estru-
tura individualística e ao caráter institucionalizado do direito – que, em face da
moral, representa uma superação de seus déficits funcionais –, embora esteja refe-
rida a questões funcionais, não são meramente passíveis de uma explicação fun-
cional como outrora haBermaS pontuou. aqui, e no que tange a uma crítica à
estratégia de argumentação de haBermaS, centra-se a concordância, entre mim e
o Professor manueL JimÉnez redondo.9
antes de mais nada, cabe-nos esclarecer uma questão. Somente em uma
democracia constitucional pode ser gerado um direito legítimo. e nisto estamos
de pleno acordo com haBermaS. Somente uma democracia pode, ao se justificar
em normas capazes de garantirem as condições de geração legítima do próprio
direito, isto é, ao se justificar constitucionalmente, permitir que normas jurídicas,
com a abertura à participação de todos, sejam construídas. isso implica reconhe-
cer que somente através de uma compreensão procedimental da democracia é pos-
sível articular de maneira construtiva a relação entre direitos fundamentais e
soberania popular. Somente através de procedimentos públicos e institucionali-
zados, a reconhecerem e garantirem iguais direitos a todos os concidadãos de par-
ticipação política, é possível gerar um direito que seja reconhecido como legíti-
mo. e por procedimentos públicos e institucionalizados referimo-nos não somen-
te ao processo legislativo, mas também ao processo jurisdicional capaz de, em sede
de aplicação normativa, reconhecer direitos vulnerados e deveres não cumpridos,
sem o qual não poderíamos pretender afirmar que a constituição garantiria efeti-
vamente, e com independência das mais variadas e múltiplas motivações indivi-
duais, as condições de produção legítima do próprio direito.
a tentativa de justificar o direito em um direito natural realiza, como nos
lembra haBermaS, uma duplicação do conceito de direito que não se sustenta
mais nem sociologicamente, nem normativamente.10 e isso tem a ver com o fato
de, em um nível pós-metafísico de fundamentação, termos que assumir como des-
lindadas de um ethos determinado, e supostamente determinante, tanto normas
jurídicas, como também normas morais que, assim, devem ser encaradas, de uma
só vez, como duas classes de normas distintas, ainda que capazes de se comple-
mentarem mutuamente. e o autor procede a esta explicitação para nos lembrar

9 cf., supra, estudo Prévio.


10 e esta crítica, em certa medida, mas não no que se refere a um direito natural, cabe a dWorKin quando
duplica o conceito de integridade em “integridade inclusiva” e “integridade pura”. Trata-se, na verdade, de
uma incompreensão da tensão entre ideal e real, bem como da distinção adequada entre direito e moral.
cf., infra, capítulo 8.
que, assim, os direitos humanos devem ser interpretados como direitos em senti-
do jurídico, isto é, com independência de seu conteúdo moral,11 ainda que possam
ser interpretados como dotados de tal.
mas do fato de normas jurídicas e normas morais, enfim, de normas de ação,
serem diferenciadas, embora complementares, não significa que não possam se
referir a um conceito de autonomia suficientemente sofisticado e abstrato, capaz
de oferecer respostas tanto para a legitimidade de normas morais, como também
de normas jurídicas. ou seja, somente um conceito de autonomia, referido em ter-
mos de uma razão prática, capaz de se especializar em um princípio moral e em
um princípio democrático, seria apto a explicar a validade do reconhecimento de
normas na modernidade.12
Tudo isso porque, como haBermaS bem esclarece, com a quebra dos fundamen-
tos sacros do amálgama formado pelo direito, pela moral e por uma concreta eticida-
de, isto é, por uma particular concepção de “vida boa” assumida como oficial, se inicia
um processo de diferenciação em que questões jurídicas, morais e éticas passam a não
mais serem vislumbradas como coincidentes: “en el nivel institucional el derecho
positivo se separa de los usos y costumbres, reducidos ahora a puras convenciones”.13
embora questões jurídicas e questões morais referem-se, segundo haBermaS,
aos mesmos problemas – quais sejam, a ordenação e coordenação legítima de rela-
ções interpessoais pelo meio de normas válidas, isto é, a solução legítima sobre os
conflitos de ação sob o pano de fundo de princípios normativos e regras, reconhe-
cidos intersubjetivamente –, a forma como o direito e a moral enfrentam esses
problemas se dá de maneira muito distinta.14
a partir do momento em que a moral e o direito não se confundem mais, sob
o pano de fundo de um concreto ethos, isso não significa que não possam ser vis-
lumbrados como sistemas complementares e capazes de serem reconduzidos,
segundo haBermaS, a uma idéia de autonomia suficientemente abstrata capaz de
servir, simultaneamente, à justificação de ambos. com isso, não se pretende fir-
mar nem uma superioridade da moral em face do direito, nem ainda uma dupli-
cação do conteúdo daquela neste, em termos de uma reconsideração da oposição
entre ideal e real;15 isto, inclusive, nos leva a concordar com haBermaS no senti-

11 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 170.
12 assim, a partir de haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de dere-
cho en términos de teoría del discurso, cit., p. 170.
13 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 171.
14 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 171.
15 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 172.
do de que os direitos humanos não podem ser assumidos como simples cópias de
direitos moralmente referidos.
isso porque, como sustenta o autor, com o que concordamos, as normas
gerais de ação se ramificam tanto em normas morais, como em normas jurídicas,
como classes de normas independentes, porém, complementares. e, como normas
gerais de ação, cobrariam um sentido de autonomia capaz de suficientemente jus-
tificá-las, não obstante as distinções que merecem ser pontuadas. assim é que
haBermaS propõe um princípio do discurso, “d”, neutro em face do direito e da
moral, isto é, como a referência a um conceito de autonomia suficientemente abs-
trato e capaz de satisfazer às exigências normativas de justificação das normas de
ação, independentemente da juridicidade ou moralidade das mesmas. este princí-
pio “d” enunciaria que “válidas são aquelas normas (e somente aquelas normas) às
quais todos que por ela possam ver-se afetados pudessem prestar seu assentimen-
to como participantes em discursos racionais”.16
nos torna claro que a referência à participação em discursos racionais se faz
indispensável porque o que está em jogo não é um assentimento em termos de
concordância com o conteúdo normativo de determinada regra, mas, sim, o assen-
timento tomado em consideração em face do reconhecimento de possibilidades
comunicativas compartilhadas intersubjetivamente e capazes de se fazerem valer
quando de um discurso de justificação normativa – trata-se de aceitabilidade e não
de mera aceitação. nitidamente que isso, no que se refere ao direito, significa que
não é qualquer decisão legislativa capaz de ser assumida como legítima; antes,
somente aquelas decisões que não tolhem essas mesmas possibilidades comunica-
tivas, de todos, o que obviamente inclui uma minoria concretamente pontuada,
podem ser assumidas como válidas.
Posto isso, haBermaS mesmo esclarece que, embora direito e moral possam
ser reconduzidos a um tal princípio do discurso, cabe marcar que direito e moral
se diferenciam, inicialmente, porque enquanto a moral se cristaliza em uma forma
de saber cultural, enquanto sistema simbólico, o direito, uma vez que sistema de
ação, é capaz de cobrar obrigatoriedade de suas normas em um plano institucio-
nal.17 ou seja, e como veremos melhor adiante, o direito supera os déficits fun-
cionais que o sistema da moral apresenta.
cabe salientar ainda, que uma vez neutro em face da moral e do direito, o
princípio do discurso se especializa no princípio moral e no princípio democrático:

16 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 172.
17 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 172.
“Pues el principio moral sólo resulta de una especificación del principio general del
discurso para aquellas normas de acción que sólo pueden justificarse desde el punto
de vista de si se tienen en cuenta por igual los interesses de todos. el principio demo-
crático resulta de una correspondiente especificación del principio ‘d’ o ‘princípio de
discurso’ para aquellas normas de acción que se presentan en forma de derecho y que
pueden justificarse con ayuda de razones pragmáticas, de razones ético-políticas y de
razones morales, y no sólo con ayuda de razones morales.”18

isso significa dizer que as normas morais somente se justificam enquanto tais,
na medida em que se refiram a uma tomada de decisão justa, isto é, de uma deci-
são capaz de levar em consideração, e em igual medida, os interesses dos afetados.
isso nos cobra o “princípio moral” enquanto especialização do princípio “d”. Por
sua vez, o “princípio democrático” permite a justificação de suas normas não
somente em razões ou argumentos morais, mas inclusive em razões éticas – refe-
ridas ao bom, ou interessante/preferível para um particular –, e razões pragmatis-
tas – referidas a meios para se alcançar uma determinada finalidade eleita. o que
de tudo isso se pode apreender, é que o direito, em razão de sua justificação em
termos do princípio democrático, somente permite uma articulação dessas mais
variadas razões morais, éticas e pragmatistas em sede de sua geração normativa
através da institucionalização do procedimento de sua própria criação. e assim se
dá através do reconhecimento de normas constitucionais capazes de garantir, em
uma prática jurídica, a geração legítima do próprio direito.
nas palavras de haBermaS, isso implica afirmar que o princípio democrático
– uma vez que dotado da finalidade de fixar um procedimento de produção legí-
tima das normas19 – vem a explicar o sentido realizativo do que significa preten-
der nos enxergarmos, uma vez que membros de uma determinada comunidade
jurídica, como simultaneamente os co-destinatários e co-autores das normas jurí-
dicas, em uma prática, portanto, de autodeterminação política e normativa.
Por essa razão é que haBermaS é explícito ao afirmar que o princípio demo-
crático se move em um nível distinto do princípio moral – exatamente porque o
princípio democrático se articula em um nível de abertura discursiva a uma sorte
variada de argumentos que não somente referidos moralmente; e é exatamente
isso o que viria a garantir a construção e reconhecimento de normas gerais, abs-
tratas, a todos vinculantes, além de capazes de garantir sua eficácia coercitivamen-
te. isso porque o princípio moral pode ser manejado como uma norma de argu-
mentação moral, isto é, como princípio da universalização capaz de cobrar, moral-

18 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 173.
19 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 175.
mente, que se tomem decisões no igual interesse de todos, isto é, do universo dos
afetados pela decisão. Por sua vez, o princípio democrático não pode ser maneja-
do, ao menos da maneira como ocorre com o princípio moral, como uma norma
de argumentação jurídica: enquanto na moral somente argumentos morais são
normativamente determinantes da justificação – o que permite, inclusive, tomar
também como justas todas as decisões concretas que possam ser referidas como
decisões morais –, por outro lado, no que tange ao direito, vimos que argumentos
morais, éticos e pragmatistas são concorrentes em sede de justificação da norma
jurídica, e a finalidade do princípio democrático não é servir como regra de argu-
mentação jurídica, mas fixar procedimentos capazes de garantir tomadas de deci-
sões legítimas em sede de justificação jurídico-normativa.
esta é a razão pela qual haBermaS articula o sentido de que enquanto o prin-
cípio moral vem a operar na estrutura interna de uma argumentação moral – isto
é, como algo capaz de simultaneamente assumir um sentido em sede de aplicação
moral-normativa, como princípio da universalização –, o princípio democrático
refere-se a um plano de institucionalização externa referente a ações de participa-
ção na formação discursiva da opinião e vontade política20 – participação essa, por
sua vez, capaz de ser juridicamente garantidas por ser o direito um sistema de ação.
a distinção, portanto, entre direito e moral não é capaz de se justificar em
uma diferenciação em termos de “conteúdos normativos” que supostamente
seriam exclusivos de um ou de outro, nem em supostas características “públicas”,
tocantes ao direito, e “privadas”, referentes à moral: mesmo porque aspectos
morais são capazes de assumirem-se, em uma concreta matéria carente de regula-
mentação, como determinantes na construção e formação da vontade de um
“legislador político”.21
assim é que haBermaS procede à explicação de que a complementaridade
entre direito e moral acaba sendo devedora de uma compreensão adequada em
torno da forma jurídica moderna. e assim procede haBermaS afirmando que a
explicação em torno da forma jurídica tratar-se-ia tão-somente de uma explicação
funcional, incapaz, todavia, de pretender uma justificação normativa.22
entendemos, todavia, que essa questão deve ser revisitada, e isso já afirmáva-
mos desde o nosso Teoria geral do direito moderno, quando defendíamos a posi-

20 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 176.
21 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 175.
22 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 177.
ção de que a forma jurídica moderna se construiu normativa e sociologicamente
alicerçada nos princípios de liberdade e igualdade.23
enquanto a moral, como sistema normativo, apresenta déficits cognitivos,
motivacionais, conseqüentemente um déficit de eficácia, além de outro operacio-
nal,24 o direito da modernidade, supera esses déficits, porém, não se fazendo
“moralmente neutro”.25
e a superação desses déficits do sistema da moral está diretamente conecta-
da à questão da forma jurídica que, segundo haBermaS, somente poderia ser pas-
sível de uma explicação funcional. destarte, o fato de o direito moderno ser “posi-
tivo”, coercitivo e estruturado individualisticamente,26 nas palavras do próprio
autor em questão, não teria nada a ver com uma justificação normativa, mas tão-
somente com uma questão contingente, porque meramente funcional. Todavia,
haBermaS mesmo não leva a sério uma outra afirmação colocada logo em seguida
àquelas características do direito moderno, qual seja, o fato de ele ter “como alvo
a garantia de liberdades subjetivas”.27
retomemos o tema da forma jurídica moderna. Partindo do pressuposto que
o direito moderno se refere, do ponto de vista de sua forma, à positividade, à coer-
citividade e a critérios individuais – e não mais familiares, grupais ou tribais – de
imputação normativa, isto se dá na exata medida em que se tomam em considera-
ção os déficits da moral. além dessas características do direito da modernidade,
poderíamos, sem sombra de dúvidas, acrescentar ainda a dimensão institucional
indissociável a esse direito. com isso, nossa explicação far-se-á mais completa e
coerente.
Se é verdade que as normas morais, dispersas como um saber cultural, repre-
sentam, aos sujeitos concretos que pretendem uma solução moral, uma difícil,
porém não instransponível, barreira a ser superada em termos reconstrutivos e
interpretativos, não só das circunstâncias do caso concreto, mas do próprio senti-
do normativo desses princípios morais, o direito vem a superar esse déficit cogni-
tivo em razão de sua forma “positiva”. a “positividade” do direito referir-se-ia,
sobretudo, ao fato de as normas jurídicas serem fruto de um processo legislativo,

23 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 105.
24 Sobre essas questões cf.: haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático
de derecho en términos de teoría del discurso, cit., p. 180 et seq.; chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia
do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e habermas, cit., p. 158 et seq.
25 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 651.
26 haBermaS, Jürgen. o estado democrático de direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditó-
rios? era das transições. Trad. Flávio Siebeneichler. rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 153.
27 haBermaS, Jürgen. o estado democrático de direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditó-
rios?, cit., p. 153.
e sancionadas pelo estado, tendo “como alvo a garantia de liberdades subjetivas”.
Sabemos, com o próprio haBermaS, que o direito não se esgota nessas produções
legislativas de normas, e também podemos interpretar tal “positividade”, a uma
melhor luz, como a referência interna que o direito da modernidade tem a textos
legislativos. embora o direito não se esgote em um conjunto ou universo de diplo-
mas normativos, textuais e frutos de uma decisão de um “legislador político”, por
outro lado é inegável o reconhecimento de que o direito da modernidade se cons-
truiu, e se reconstrói, atrelado à idéia de “positividade”, isto é, à referência inter-
pretativa a textos normativos. aliás, é, inclusive, mas não só, a referência a esses
textos normativos que permite ao direito, mediante sua forma jurídica, reduzir
aquela indeterminação cognitiva referida à moral.
Por outro lado, o fato de o direito moderno estar formalmente estruturado
individualisticamente significa, antes de mais nada, o reconhecimento de todos os
indivíduos como sujeitos de direito, isto é, como referenciais de imputação de
direitos e deveres.28 e o reconhecimento dos indivíduos em seus anonimatos, inde-
pendentemente de traços biográficos particulares – que, todavia, seriam indispen-
sáveis a uma decisão moral –, se refere ao fato de que esses mesmos indivíduos são
destinatários de normas jurídicas pelo “simples” fato de poderem ser interpretados
e assumidos como membros de uma determinada comunidade juridicamente cons-
tituída.29 É exatamente esse traço formal do direito que o permite superar, através
de sua forma moderna, o déficit motivacional da moral, uma vez que o direito, ao
permitir uma generalização de normas em vistas a uma individualização em termos
independentes das biografias de cada um, não faz depender a aplicação de suas nor-
mas aos motivos e intenções particulares de cada membro da referida comunidade.
Por sua vez, o fato de a forma jurídica moderna ter como característica o ca-
ráter cogente, antes de mais nada se deve ao fato de que o direito da modernidade,
com independência das vontades dos particulares afetados, faz valer suas normas.
isso significa dizer que a superação do déficit de eficácia, capaz de ser atribuído à
moral, juridicamente se supera em razão deste traço indispensável da forma jurí-
dica moderna, qual seja, seu caráter cogente. assim, o direito não faz depender o
cumprimento, ou a execução, de suas normas da convergência das vontades dos
afetados por estas.
e, finalmente, o caráter institucional da forma jurídica, co-dependente de
todos os demais, implica dizer que a superação daquele déficit operacional da moral
somente se pode dar em razão da organização institucional à qual o direito está for-

28 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 143 et seq.
29 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 178.
malmente atrelado na modernidade. isso implica dizer que é todo o aparato institu-
cional do direito que lhe permite, e lhe garante, um caráter “positivo”, cogente e de
estruturação individualística. Sejam instituições legislativas, jurisdicionais ou admi-
nistrativas, o direito somente se pode fazer valer e se auto-constituir na dependên-
cia de meios institucionais que criam, garantem e executam suas próprias normas.
Porém, para haBermaS, as questões referentes à forma jurídica moderna
somente poderiam ser explicadas funcionalmente, embora não justificadas norma-
tivamente. a forma jurídica moderna teria que se contentar com uma explicação
acerca de sua contingência, algo “que é” porque “foi assim”.
Queremos, todavia, pontuar uma questão que mais adiante será resgatada. na
medida em que a forma jurídica teria que ver somente com questões meramente
funcionais, cabe-nos ressaltar que isso estaria diretamente conectado ao problema
da função do direito da modernidade. Sem mais delongas, podemos explicitar que
a função do direito é a de estabilizar, de maneira generalizada, expectativas de
comportamento. ainda gostaríamos de insistir em algo que anteriormente tam-
bém tivemos a oportunidade de afirmar, o que seja, o fato de que o “direito
somente é capaz de cumprir sua função de estabilização de expectativas de com-
portamento se também for capaz de manter uma conexão interna com aquela
força sócio-integradora, da qual é dotada a ação comunicativa, porque gerada
numa intersubjetividade”.30
ou seja, o direito somente é capaz de cumprir sua função de estabilizar
expectativas de comportamento, generalizadamente, em uma democracia. não há
que se falar em uma tal estabilização generalizada de comportamentos fora da, ou
de maneira alheia à, idéia de constitucionalismo moderno. isso já insinua que a
questão da forma jurídica não pode ser uma mera questão funcional.
e isso tem diretamente a ver com a concepção de uma auto-legislação por
parte dos cidadãos de uma determinada comunidade jurídica, que, assim, somente
poderia, conforme haBermaS, ser compreendida a partir do princípio democrático,
como acima já explicitado, e resultante de uma especialização do princípio do dis-
curso. Tal especialização do princípio do discurso em face do direito, como princí-
pio democrático, seria decorrente do entrelaçamento entre o princípio “d” com a
idéia de forma jurídica que acima acabamos de expor – esse entrelaçamento, por-
tanto, teria que ver com a própria institucionalização jurídica do princípio do dis-
curso.31 isso significa dizer que o princípio de que “válidas são aquelas normas (e
somente aquelas normas) às quais todos que por ela possam ver-se afetados pudes-

30 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 78.
31 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 187.
sem prestar seu assentimento como participantes em discursos racionais”, ou seja,
o princípio do discurso, quando de seu “entrelaçamento” com a forma jurídica
moderna e com sua decorrente dimensão institucional, implica um princípio
democrático, isto é, implica dizer que somente em uma democracia pode o direito
da modernidade ser legitimamente produzido. assim, é que haBermaS propõe que:

“con el concepto de forma jurídica, la cual estabiliza expectativas sociales de com-


portamiento del modo indicado, y el principio del discurso, a cuya luz puede exami-
narse la legitimidad de normas de acción, disponemos de los medios que bastan para
introducir in abstracto tres categorías de derechos que engendran el código que es el
derecho al fijar el status de personas jurídicas.”32

insdispensável nos faz uma adequada interpretação do trecho acima quando


o autor, por sua estratégia argumentativa, abre margem para interpretações no
sentido de que o princípio do discurso não estaria, “desde sempre”, introjetado no
conceito de forma jurídica moderna. Poderíamos experimentar a interpretação na
linha de que a distinção entre “forma jurídica” e “princípio do discurso”, que, ao
final, entrelaçam-se, seria uma questão meramente “lógica”; mas assim não nos
parece suficiente, porque é o próprio haBermaS, ao longo de Faktizität und
geltung, quem atrela a função de estabilização generalizada de expectativas de
comportamento como algo dependente de questões normativas que se fazem
intensas à luz do princípio do discurso... o que afirmamos, e isso, todavia, é o que
a própria Teoria do discurso proposta por haBermaS pressupõe, é que o direito
somente cumpre sua função em uma democracia; e isso implica reconhecer que a
função do direito, e sua forma moderna, não é algo capaz de ser explicado sim-
plesmente desde uma óptica funcional. isso significa dizer que a “positividade” do
direito, seu caráter cogente, institucionalizado e de estruturação individualística,
tem razões normativas que justificam e se introjetam nessa forma.
do contrário, poderíamos afirmar a existência de “forma jurídica” – e o cum-
primento de sua função – mesmo quando não houvesse “direito”. e isso acredita-
mos ser incoerente com a própria Teoria discursiva de haBermaS. redefinindo o
raciocínio: a própria idéia de forma jurídica, que se desenvolve no constituciona-
lismo moderno, é, pois, referente ao constitucionalismo moderno. nós só pode-
mos pensar na forma jurídica e em sua função de estabilização generalizada de
expectativas de comportamento quando normativamente atrelada ao princípio do
discurso. não podemos dizer, ao menos de maneira adequada, que o nazismo ou a
ditadura militar no Brasil, enfim, que qualquer regime violento, tenham se justi-

32 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 188.
ficado, ou desenvolvido um direito capaz de ser interpretado como direito da
modernidade. exatamente porque partem de premissas e práticas violentas, anti-
modernas; e pretender atribuir ao pretenso sistema normativo uma “forma jurídi-
ca moderna” é um contra-senso perigosíssimo. e tudo isto porque, uma vez mais,
um “direito” assim, não é direito, isso é, não é direito moderno, não é o direito
que a modernidade exige para si própria. e essa exigência se refere também a
questões da forma jurídica – a modernidade exige do direito o cumprimento de
sua função de estabilização generalizada de expectativas de comportamento.
Somente uma leitura principiológica e normativa do direito, como proposta e
pretendida por haBermaS, é capaz de nos conduzir à afirmação de que pretender
um “direito” nazista é um absurdo. não podemos vislumbrar, em um prática que
se pretende normativa – mas não o é –, porém, violentada em níveis altíssimos por
diretrizes e determinação políticas ao gosto de um código de conveniência/incon-
veniência, o reconhecimento e a praxis que o direito exige. nem sequer há que se
falar em uma “forma jurídica”: uma prática política que se infiltra tão fortemente
em questões pretensamente normativas desnatura a própria forma do direito
moderno. não se pode falar em “estabilização generalizada de expectativas de com-
portamento” em um tal contexto; a estabilização de expectativas, da maneira leva-
da adiante pelo direito, pressupõe sua compreensão como um sistema idealmente
coerente de princípios, e jamais um desordenado conjunto de decisões políticas
violentamente impostas quando convenientes. Porque em face desse quadro, não
há “estabilização” do que quer que seja, muito menos o respeito à força normativa
que se desnatura em razão da violência da imposição de diretrizes políticas.
Somente uma prática democrática é capaz de sustentar a forma jurídica moder-
na. melhor dizendo, somente em uma democracia se pode dizer que há forma jurí-
dica moderna. e isso porque, uma vez mais como pressuposto pela Teoria discursiva
do direito, somente há direito da modernidade em uma democracia radical.
além disso, fica truncada, em face de sua própria proposta teórica, a afirma-
ção do autor no sentido de que a forma jurídica seria capaz de uma explicação tão-
somente funcional, porém, não de uma justificação normativa. Sobretudo quando
haBermaS, pretendendo explicar o “entrelaçamento” entre princípio do discurso
e forma jurídica, se refere à “gênese lógica dos direitos”, sem os quais não se pode-
ria pretender uma legítima auto-legislação cidadã.33
assim, haBermaS logo introduz qual seria a primeira dessas categorias de
direitos fundamentais, sem os quais não se poderia construir um direito moderno
válido, referindo-se a

33 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 187. cf. as indispensáveis conclusões do Professor manueL JimÉnez redondo,
supra, estudo Prévio.
“derechos fundamentales que resultan del desarrollo y configuración políticamen-
te autónomos del derecho al mayor grado posible de iguales libertades subjetivas de
acción.”34

mais adiante o autor complementa no sentido de que a questão de saber quais


leis são legítimas, não pode ser respondida referindo-se somente à forma dos direi-
tos subjetivos, pois,

“Sólo con ayuda del principio del discurso muéstrase que cualquiera tiene derecho a
la mayor medida posible de iguales libertades subjetivas de acción. Sólo son legítimas
aquellas regulaciones que satisfagan a esta condición de la compatibilidad de los
derechos de cada uno con iguales derechos de todos.”35

devemos ressaltar uma questão: dizer que são legítimas aquelas regulamen-
tações que satisfaçam a compatibilidade dos direitos de um com iguais direitos de
todos, não é o mesmo que afirmar que todos temos direito a iguais liberdades sub-
jetivas na maior medida possível. não, ao menos, necessariamente.
como vimos, o que, às vezes, haBermaS não consegue expressar bem é o sen-
tido subjacente à sua própria teoria de que a forma jurídica moderna somente se
pode vislumbrar como presa ao princípio do discurso. isto é, não há forma jurídi-
ca moderna sem democracia. a maneira como haBermaS coloca a “forma jurídi-
ca” em face do “princípio do discurso” não nos permite compreender muito bem
o que sua própria teoria nos exige, o que seja, um adequado enfoque da tensão
entre faticidade e validade. Quando diz que o conceito de “forma jurídica” permi-
te estabilizar expectativas de comportamento do “modo indicado”, este “modo in-
dicado” refere-se interna e intimamente ao princípio do discurso, embora outras
interpretações pudessem concluir no sentido de que poderíamos, a despeito de
pretensões de positividade, nos topar com a forma jurídica fora de contextos
democráticos, embora esta não seja uma melhor interpretação daquele trecho à
luz de todo o contexto da teoria.
o que aqui reforçamos é que somente podemos nos topar com a forma jurídi-
ca moderna, e suas co-implicações, em uma democracia. e isso porque não pode-
mos dissociar, sem maiores traumas, questões formais de questões normativas. Se
houve pretensões de coercibilidade em regimes como o nazista, que se valeram
parasitária e travestidamente de uma forma jurídica, não podemos, entretanto,
sequer sustentar a verificação ali da idéia de “positividade” atrelada ao direito da

34 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 188.
35 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 189.
modernidade. como desdobramentos, não podemos funcionalmente afirmar que
houvera a estabilização generalizada de expectativas de comportamento.
o fato de haver pretensões de juridicidade, pretensões de “positividade”, não
implica, por si, o reconhecimento da “positividade” que o direito da modernidade
está a exigir, enquanto referência normativa a textos legislativos legítimos. a
questão é que a forma jurídica moderna somente pode ser adequadamente com-
preendida quando se introjeta, em sua compreensão,e em sua justificação, a indis-
sociabilidade de questões normativas. Por essa razão é que outrora afirmamos que:

“aqui está o paradoxo do direito: o fato de que sua legitimidade depende de sua
forma, de uma forma jurídica que, na modernidade, se construiu normativa e socio-
logicamente alicerçada nos princípios de igualdade e liberdade, num processo de
diferenciação funcional. embora tais princípios de liberdade e igualdade sejam prin-
cípios normativos, não se pode pretender fundá-los para além do próprio direito, isto
é, para além de sua forma jurídica moderna, razão pela qual, no que tange ao direito,
somente podemos, na modernidade, falar em tal forma, o que implica também dizer
que tais princípios sejam assumidos pela comunidade jurídica ainda que numa deci-
são simbólica de uma assembléia constituinte que, paradoxalmente, tem que deci-
dir por tal juridicidade (forma jurídica) quando (ou porque) não poderia de outra
forma decidir legitimamente.”36

a introjeção dessas questões normativas na compreensão da forma jurídica


refere-se não somente ao seu manejo no desenrolar da praxis jurídica, como tam-
bém refere-se a uma justificação capaz de ser-lhe referida. Quando afirmamos que
a forma jurídica se constrói normativa e sociologicamente alicerçada nos princípios
de igualdade e liberdade, contrariamos haBermaS quando afirma que tal questão
não seria passível de uma justificação normativa. e os desdobramentos dessa ques-
tão, de maneira firme manueL JimÉnez redondo apresenta em páginas anteriores.
aqui resta-nos pontuar que a exigência normativa de um direito “ao maior
grau, ou medida, possível de iguais liberdades subjetivas de ação” aparece não só
quando haBermaS inicia sua explicação da “gênese lógica dos direitos”, mas tam-
bém, embora muito menos enfático, quando defende que o direito moderno –
“positivo”, cogente e estruturado individualisticamente – “resulta de normas pro-
duzidas por um legislador e sancionadas pelo estado, tendo como alvo a garantia
de liberdades subjetivas”.37

36 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 105.
37 haBermaS, Jürgen. o estado democrático de direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditó-
rios?, cit., p. 153.
não nos resulta coerente a afirmação de que o alvo do direito seria a garan-
tia de liberdades subjetivas, liberdades estas que devem ser garantidas – em face
de um direito a isso – na maior medida possível, e a conclusão de que a forma
jurídica moderna seria passível de uma explicação meramente funcional.
verdade é que o direito, em razão de sua forma, supera déficits funcionais de
uma moral pós-convencional; mas diferente é a questão em torno da qual se pre-
tende afirmar que essa forma jurídica mesma não seria justificada, ou justificá-
vel, normativamente.
como coloca JimÉnez redondo, o direito a um reconhecimento a todos na
maior medida, ou grau possível, de liberdades subjetivas se perfaz como uma exi-
gência normativa genuína, e que tem implicações normativas importantes na jus-
tificação do direito e em sua aplicação.
em face do processo de modernização da Sociedade, que co-implica a dessa-
cralização e a descentração dessa Sociedade, bem como um processo de diferen-
ciação funcional dos sistemas, de assunção de que as construções dessa Sociedade
se dão mediadas lingüisticamente, além de um processo de especialização dos juí-
zos de racionalidade,38 podemos dizer que a razão subjetiva moderna, em razão de
toda libertação modernamente conquistada, se vislumbra como “absoluta”, isso é,
como encontrando limite tão-somente na igual liberdade dos demais. isso impli-
ca dizer que somente através da mediação lingüística é possível a compatibiliza-
ção dessas liberdades. mas, vejamos que a própria mediação lingüística é assumi-
da como medium para a viabilização dessas mesmas liberdades. isso significa dizer
que a estabilização e a generalização de expectativas de comportamento, na
modernidade, e pelas questões funcionais já elucidadas em face da moral, somen-
te se podem dar através da forma jurídica. inclusive porque somente essa forma
jurídica é capaz de garantir, funcionalmente, não só tomadas de decisões coletiva-
mente vinculantes, como também a estabilização generalizada de expectativas de
comportamentos. e isso somente em uma democracia.
Somente através da forma jurídica é que podemos afirmar que se torna, na
Sociedade moderna, possível – e inclusive de um ponto de vista de eficácia – a
compatibilização recíproca do arbítrio de todos mediante leis gerais. disso pode-
mos tirar várias conseqüências. a primeira é que, modernamente, somos livres, e
que temos como limite à nossa liberdade a liberdade do outro e de todos. isso
implica, simultaneamente, a idéia de que a constituição de nossa liberdade se dá
na tomada em consideração da liberdade dos demais de uma maneira generaliza-
da. isso significa dizer que a compatibilização de nossas liberdades somente se
pode dar mediada lingüisticamente; e a forma jurídica moderna é que torna tal

38 chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen,
Luhmann e habermas, cit., p. 187.
relação de reciprocidade operacionalmente possível. a segunda conseqüência, e
devedora de uma compreensão kantiana, é que, à medida que somos livres,
somente se justificam as limitações à nossa liberdade que se refiram restritamen-
te ao imperativo de compatibilização das liberdades de todos. isso implica dizer
que seria ilegítimo o não-reconhecimento de todos os concidadãos como dotados
do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas. e isso parece
que haBermaS entende, embora não articule de maneira muito adequada.
com isso se poder dizer que a forma jurídica moderna é passível, sim, de uma
justificação normativa em termos de liberdade e igualdade. Significa dizer que a
forma jurídica é normativamente indispensável por ser o único meio, na mo-
dernidade, através do qual é possível a construção lingüisticamente mediada de
normas jurídicas capazes de garantir a compatibilização e o reconhecimento de
liberdades a todos, e, com isso, cumprir sua função de estabilizar expectativas de
comportamento. enfim, por ser o único meio capaz de garantir o reconhecimen-
to e o exercício da própria liberdade.
o fato de a complementaridade entre direito e moral ser uma questão passí-
vel de uma explicação funcional, não decorre, todavia, o fato de as diferenças
entre entre direito e moral serem meramente funcionais, muito menos que a
forma jurídica seja dotada de uma explicação, justificação, tão-somente funcional
e não normativa a exigir sua indisponibilidade.
isso é o que nos obriga a reconhecer que a assembléia constituinte,39 ainda
que em uma decisão simbólica, tenha que, em um duplo sentido, decidir pela
forma jurídica (através e sobre) quando, ou exatamente porque, de outra forma
não poderia decidir. a pressão normativa aqui presente se refere ao fato de que
somente a forma jurídica moderna é capaz de servir, legitimamente, à produção
de normas jurídicas, isto é, de permitir, em face da exigência normativa referente
ao direito ao reconhecimento na maior medida, ou grau, possível de iguais liber-
dades subjetivas a todos, que nos enxerguemos simultaneamente como destinatá-
rios e co-autores do direito, isto é, como auto-legisladores.
nessa ordem das coisas, é que outrora afirmamos que:

“o princípio da dignidade, pois, e aqui propomos, surge da assunção na óptica de


uma prática interpretativa de aplicação do direito, do sentido normativo subjacente
àquilo capaz de ser remontado como o entrelaçamento entre a forma jurídica moder-
na e o princípio do discurso, e com isso afirmamos que se trata, pois, da exigência

39 Por uma releitura de traços do Poder constituinte em face da complexidade do direito moderno, cf.: coSTa,
alexandre Bernardino. os desafios postos ao poder constituinte no estado democrático de direito. 2005.
Tese de doutorado. Programa de pós-graduação em direito da universidade Federal de minas gerais, 2005,
Belo horizonte.
normativa de se assumir os envolvidos em cada caso concreto como membros de uma
comunidade política que luta e os reconhece como livres e iguais.”40

e aqui devemos entender esse “sentido normativo subjacente” como o pró-


prio direito à maior medida possível de iguais liberdades a todos. e quando nos
referimos ao “entrelaçamento entre a forma jurídica moderna e o princípio do dis-
curso”, o fazemos em um sentido muito específico; no sentido de que somente dis-
cursivamente é que se pode “operar” a forma jurídica, isto é, no sentido de que são
normativamente indissociáveis forma jurídica e princípio do discurso, em face da
exigência de reconhecimento de iguais liberdades subjetivas a todos na maior
medida possível. isso justifica não somente a forma jurídica desde um viés norma-
tivo, como coloca também, aos participantes dos discursos jurídicos, no exercício
de suas liberdades comunicativas, uma exigência normativa. e a partir do momen-
to em que não se pode coerentemente cindir forma jurídica e princípio do discur-
so, torna-se imperioso compreender que não só a própria forma jurídica moderna,
mas também os direitos políticos surgem como implicações desse direito ao maior
grau possível de liberdades subjetivas, isto é, como decorrentes dessa exigência de
compatibilização e possibilitação de liberdades.
a questão neste ponto colocada não é como funciona (ou opera) a democra-
cia, mas sim o porquê da democracia ser normativamente exigível (ou justificável)
na, e pela, modernidade. e se a autonomia jurídica se cinde em uma autonomia
privada, e outra pública, isso tem a ver com questões referentes à “positivação” do
direito e uma dependente separação de papéis, embora não definitiva, entre des-
tinatários e autores do direito.41 em outras palavras, essa distinção não é capaz de
explicar a exigência normativa subjacente à forma jurídica moderna, embora seja,
obviamente, peça central na explicação, normativa, da operacionalização legítima
de uma praxis democrática.
e é exatamente a esta praxis democrática que nos faz indispensável apresen-
tar algumas considerações. inicialmente, cabe-nos resgatar o sentido da expressão
quando haBermaS afirma que o direito moderno “resulta de normas produzidas
por um legislador e sancionadas pelo estado”. isso jamais se confunde seja com
uma interpretação ainda não tão sofisticada da volonté générale como herança
imediata do período revolucionário francês, seja com a crença de uma “onipotên-
cia do legislador”, como defendida pela escola da exegese. antes, o que haBermaS
coloca é que o princípio democrático, uma vez dotado da finalidade de fixar um

40 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 219.
41 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 649.
procedimento de produção legítima das normas, permite uma melhor compreen-
são e assunção de uma prática, capazes de articular legitimamente a idéia de direi-
tos fundamentais e a idéia de soberania popular.
realmente, e em razão de questões acima pontuadas, somente um direito
fruto de uma auto-legislação pode ser assumido como legítimo na modernidade.
e isso se deve ao fato de que a própria idéia de liberdade moderna não há que ser
violentamente limitada desde fora, mas sim desenvolver sua auto-constituição na
compatibilização em face da liberdade dos demais através de uma mediação lin-
güística. e somente uma mediação lingüística capaz de garantir a todos os afeta-
dos iguais possibilidades de participação nesse processo de institucionalização de
normas jurídicas de ação, pode ser assumida como exigindo condições comunica-
tivas de produção de legitimidade.
isso força, portanto, a compreender que o processo de justificação, ou gera-
ção, de normas do direito da modernidade, exige uma compreensão mais sofisti-
cada da idéia de soberania popular que aquela apresentada e assumida na praxis
jurídico-política em face da constituição francesa de 1791, e como acima por nós
reconstruída a partir de carrÉ de maLBerg. a assunção da legitimidade de uma
determinada criação normativa não pode ser simplesmente explicada através da
referência ao Legislativo como representante da vontade geral. isto é, se a lei é
expressão da vontade geral, isso jamais pode significar uma redução da expressão
dessa vontade geral àquilo que outrora o Legislativo, uma vez que corpo de repre-
sentantes da comunidade política, decida. e isso porque não podemos reduzir a
compreensão de soberania popular a um procedimento, ou ao menos, a um mero
“procedimento formal” como pontuado por carrÉ de maLBerg. a questão que
está em jogo é que a soberania popular deve ser compreendida em termos de um
poder comunicativo, isto é, no sentido da criação de forças políticas capazes de
legitimamente garantirem, sob a óptica de um discurso jurídico de justificação –
e, portanto, institucionalizado –, uma decisão que leve em consideração a força
dos melhores argumentos. vejamos, agora, que essa decisão não é capaz de ser
reduzida à vontade do Legislativo somente, ou ao menos não deveria ser, porque
nas lutas políticas cobram enfrentamento discursivo-racional argumentos coloca-
dos pelos próprios cidadãos, capazes de se organizarem e de se associarem politi-
camente, no exercício de suas liberdades políticas.
com isso, o que já se desponta é que uma prática democrática implica, real-
mente, que a legislação seja expressão de uma vontade geral. mas somente a ins-
titucionalização de procedimentos de criação normativa capazes de garantir a
abertura desse mesmo processo a pressões políticas decorrentes da mobilização da
opinião pública levadas adiante pela sociedade civil, bem como a assunção séria,
por parte desse mesmo processo institucionalizado, desses argumentos publica-
mente debatidos, pode ser efetivamente enfrentada e compreendida como uma
prática democrática capaz de conferir, assim, legitimidade à própria criação de
normas jurídicas. isso porque os cidadãos têm garantidos direitos – e, portanto,
possibilidades – de participar no debate público de questões que se colocam, ou se
fazem por eles colocar, publicamente. aliás, é a garantia de uma tal “autonomia
pública”, como defendida por haBermaS, o que torna capaz e possível vislumbrar-
mos os concidadãos não como meros destinatários das normas jurídicas, mas como
seus co-autores, uma vez que o direito os garante, de maneira recíproca e igual,
direitos que os possibilitam participar e tomar posições argumentativamente em
face de questões politicamente relevantes. e, assim, o próprio direito, no reconhe-
cimento dessas liberdades comunicativas, acaba por garantir a todos iguais possi-
bilidades de participação no processo de construção do direito.
não devemos esquecer, todavia, que o sentido do exercício dessas liberdades
comunicativas, bem como o sentido do próprio processo institucionalizado de
criação normativa, somente se justifica à luz da exigência do reconhecimento, no
maior grau ou medida possível, de iguais liberdades subjetivas a todos.
isso significa dizer que o reconhecimento da própria auto-legislação pode ser
reconstruído em termos daquela compatibilização de liberdades subjetivas que
acima afirmamos. É a exigência do reconhecimento de iguais liberdades subjetivas
a todos na maior medida possível, o que justifica dizer que o direito moderno, em
face de seu próprio caráter moderno, “de uma forma jurídica da qual não se pode
legitimamente dispor”, implica, paradoxalmente, o fato de que em uma democra-
cia as decisões podem ser válida ou legitimamente tomadas na exata medida em
que “não se decida por não mais decidir”.42
e isso implica algo mais profundo, o que seja, a indisponibilidade política por
parte dos próprios afetados de suas liberdades comunicativas como corolário da
indisponibilidade de suas liberdades subjetivas reconhecidas na maior medida
possível. Somente assim se faz possível compreender que a criação de uma lei que
fira direitos fundamentais de uma minoria é capaz de ser entendida como ilegíti-
ma, embora capaz de ser discursivamente referida a um processo argumentativa-
mente aberto à participação de todos os concidadãos. Somente assim se articula,
adequadamente, a idéia de soberania popular à idéia de direitos fundamentais,
quando se reconhece a impossibilidade de geração de legitimidade apartada do
reconhecimento de liberdades comunicativas e liberdades subjetivas no maior
grau possível. isso implica, diretamente, no reconhecimento e na construção de
uma Sociedade de homens livres e iguais.
isto significa dizer que o direito seria o meio através do qual o poder comu-
nicativo se transforma, se traduz ou se converte em poder administrativo, na

42 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 02.
medida em que, mediante a geração legítima, garantida normativamente, de um
poder comunicativo, é que se autoriza, validamente, o exercício de um determi-
nado poder instrumentalizado. essa conexão entre o poder comunicativo – possí-
vel em razão do reconhecimento de uma autonomia pública e das liberdades
comunicativas que a garantem – e o poder administrativo está diretamente ligada
à questão funcional de superação, por parte do direito, do déficit de eficácia do
sistema da moral, uma vez que aquela conexão vem, portanto, conferir legitimi-
dade ao uso de um poder que, em realizando coerção, não se justifica em si mesmo
como violência, mas antes mantém-se “regenerado” em razão da fonte de legiti-
midade representada pelo poder comunicativo que o justifica.
o mesmo, por seu turno, se aplica no que tange à superação do déficit moti-
vacional. a aplicação do direito somente pode ser considerada legítima na medi-
da em que seja capaz de levar adiante esse projeto de construção de uma Sociedade
de homens livres e iguais. isso exige, por um lado, a abertura discursiva em pro-
cessos institucionalizados de aplicação normativa da participação argumentativa
de todos aqueles que por uma decisão jurisdicional possam ver-se afetados e, por
outro lado, um juízo de correção normativa orientado ao sentido do que significa,
em sede de aplicação normativa do direito à maior medida, ou grau, de iguais
liberdades subjetivas a todos.

ii. acerca da eXigência normaTiva do reconhecimenTo de


iguaiS LiBerdadeS a TodoS na maior medida PoSSíveL

aqui deparamo-nos com o que vínhamos buscando mais diretamente: o sen-


tido normativo da legislação e sua distinção em face do sentido normativo da juris-
dição. uma vez que já nos torna claro que a legitimidade de processos de criação
normativa não pode se resumir, ou se reduzir, a meras questões “formais” e de
representação, como colocado por carrÉ de maLBerg, como também nítido já nos
faz o fato de que somente uma compreensão do direito como um sistema ideal-
mente coerente de princípios permite-nos superar as dificuldades às quais o con-
vencionalismo jurídico se manteve, e ainda se mantém, preso, quais sejam, e
exemplificadamente, o reconhecimento de uma discricionariedade e suas inter-
pretações pragmatistas em sede de aplicação normativa – como a própria escola da
exegese se mostrou prisioneira e incapaz desse problema se livrar, sobretudo
quando decide interpretar o problema como atrelado à reconstrução da “vontade
do legislador”, o que acabaria por realizar um retorno ao cerne do problema –, o
que justifica, normativamente, a distinção entre uma decisão legislativa e outra
jurisdicional e que se encontra tão emaranhada à discussão jurídica moderna refe-
rente não somente ao falso-problema das lacunas, como também ao problema das
fontes no direito?
Tanto a legislação quanto a jurisdição devem levar em consideração a exigên-
cia do reconhecimento, na maior medida possível, de iguais liberdades fundamen-
tais a todos os concidadãos.
É claro que, do ponto de vista da legislação, isso exige que todos os cidadãos
sejam tratados e reconhecidos de maneira igual sob pena de inconstitucionalida-
de da lei. isso significa dizer que o sentido dessa igualdade há que ser assumido em
face do sistema de direitos fundamentais. um projeto de lei jamais pode negar
direitos fundamentais argumentativamente sustentáveis de quem quer que seja,
sob o argumento de imposição de um ethos, como imposição de uma determina-
da compreensão privada de vida boa sobre uma minoria, ou ainda que venha a res-
tringir liberdades fundamentais de todos. a questão é que a justificativa da cria-
ção normativa jamais pode ser assumida como imposição de um ethos, de uma
particular concepção de mundo sobre os demais. antes, a criação normativa
somente se pode dar de maneira adequada quando proveitosamente é capaz de
articular soberania popular e direitos fundamentais. decisões legislativas devem
ser vislumbradas como decisões coletivamente vinculantes, o que significa dizer
que em um processo legislativo são tomadas decisões que devem ser assumidas
como vinculantes de maneira generalizada. internamente à questão da legitimida-
de, a exigência do reconhecimento, na maior medida possível, de iguais liberda-
des fundamentais a todos, impõe um sentido normativo à legislação, o fato de que
essas decisões coletivamente vinculantes somente têm um sentido, qual seja, o
desenvolvimento desse sistema de direitos fundamentais, de maneira a reconhe-
cer, no maior grau possível, iguais liberdades a todos.
isso não significa dizer que argumentos éticos não sejam determinantes em
processos legislativos. não se exige da legislação um sentido moral de reconheci-
mento de liberdades jurídicas no igual interesse de todos os afetados por essas
mesmas normas jurídicas. o que se coloca de maneira central e determinante é
que esses argumentos éticos porventura determinantes de uma determinada deci-
são legislativa, por se apresentarem, em seu contexto, como um melhor argumen-
to a justificar aquela concreta decisão política – e assim, inclusive, no exercício de
liberdades comunicativas –, não fazem com que a decisão legislativa, por si, ilegí-
tima. a ilegitimidade da assunção determinativa de argumentos éticos em um dis-
curso de justificação normativa somente se dará quando essa assunção se der ao
preço ou ao custo de violação e desrespeito a direitos fundamentais de qualquer
concidadão, isto é, quando tal assunção encontrar como justificativa não um exer-
cício democrático das liberdades comunicativas, mas sim a pretensão de imposi-
ção de um ethos.
a exigência do reconhecimento, na maior medida possível, de iguais liberda-
des a todos, deve ser interpretada, legislativamente, no sentido de que o direito,
em razão de sua forma jurídica moderna, se constrói aberto não só a argumentos
jurídicos e morais, mas também a argumentos e razões éticos e pragmatistas. Se é
verdade que o direito moderno pode ser vislumbrado como fonte de justiça, como
não sendo moralmente neutro, uma vez que razões morais penetram de maneira
determinante em processos de produção legislativa43 – e à medida que direito e
moral surgem em uma relação de complementaridade funcional, e não normati-
va –, decorre que a compatibilização das liberdades individuais, mediada lingüís-
tica e institucionalmente, não se confunde com as exigências de uma tal compati-
bilização moral. isso significa dizer que a validade do direito está indissociavel-
mente atrelada a questões sociológicas, mas também normativas, co-implicadas no
processo de modernização da Sociedade. os déficits funcionais de uma moral já
foram pontuados em face da própria modernidade da Sociedade moderna. não se
torna eficazmente possível a exigência de compatibilização generalizada e institu-
cionalmente garantida das liberdades, de maneira a satisfazer igualmente o inte-
resse de todos. isso exigiria que todos fôssemos socializados em condições favorá-
veis à formação do superego, que correspondessem aos princípios morais.44
a impossibilidade disso em face da pluralidade da vida moderna já coloca a
possibilidade de uma decisão coletivamente vinculante que sempre se dê nesse
sentido em xeque. assim é que podemos reconhecer que o processo de justifica-
ção do direito, desde o seu discurso de justificação normativa, se abre não somen-
te a questões jurídicas e morais, mas também a questões éticas, referidas a valores
particularizáveis, e a questões pragmatistas, de meios a fins.
Todavia, parece-nos sintomática a afirmação de haBermaS no sentido de que
o direito, embora não subordinado à moral, e sim em uma relação de complemen-
taridade com esta, não pode ser interpretado como moralmente neutro, pelo fato
de conteúdos morais poderem ser, inclusive, juridicamente irradiados a sistemas
autonomizados, como economia, e com a simples exigência de obediência gene-
ralizada ao direito.45
a nossa conclusão só se pode dar no seguinte sentido: à medida que o direito
não pode ser justificado em um ethos, não mais capaz de legitimamente explicar
a validade do direito em face da complexidade da modernidade, nem em um prin-
cípio moral, uma vez que a idéia do princípio do discurso, e de sua corresponden-

43 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 651.
44 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 179.
45 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 184.
te autonomia, se articula em um tal nível de abstração capaz de garantir a sua neu-
tralidade moral – e jurídica –, isso não significa que a moral não pressione o
direito desde a óptica de sua justificação. o fato de a justificação do direito cons-
tantemente se fazer aberta a argumentos éticos e pragmatistas, por outro lado
implica sempre o risco de se assimilar a validade do direito a uma ordem concre-
ta de valores, a uma eticidade concreta, que pode levar à destruição da própria
forma jurídica46 – pensemos no nazismo, por exemplo.
a forma jurídica moderna somente se desenvolve e se mantém como tal quan-
do a própria geração do direito seja sempre alimentada por razões morais em seu
discurso de justificação normativa, não se perdendo, assim, em uma simples dispu-
ta e imposição de um ethos. o fato de conteúdos morais serem juridicamente irra-
diados pelo direito, não transforma a justificação deste em uma justificação moral.
vimos, muito bem, o que o princípio democrático representa, inclusive, em face da
dimensão institucionalizada do direito. mas, como a prática legislativa do direito
se desnatura quando a discussão acaba se transformando em uma disputa pela
imposição de um ethos sobre todos, em razão da própria destruição da forma jurí-
dica – e todas as questões normativas co-implicadas –, nos torna claro que a não-
neutralidade moral do direito em razão de sua abertura a razões morais quando do
discurso de justificação da norma, cobra do direito não o reconhecimento de direi-
tos subjetivos no igual interesse de todos, mas, antes, cobra, legislativamente, o
reconhecimento, na maior medida possível, de iguais liberdades a todos.
e se se trata de uma exigência à maior medida, ou ao maior grau, de iguais
liberdades a todos, isso assim se dá em razão de que argumentos éticos e pragma-
tistas são co-determinantes de decisões legislativas coletivamente vinculantes. e
isso em razão de todas as razões sociológicas, e normativas, capazes de serem
remontadas ao caráter moderno da modernidade. o que deve ser colocado em rele-
vo é que a efetiva compatibilização das liberdades, através de um exercício auto-
legislador, somente se pode dar na modernidade através da forma jurídica moder-
na, e isso já representa, pois, a impossibilidade de se buscar tal compatibilização em
termos morais, de somente se tomar decisões coletivamente vinculantes que sejam
justas, isto é, que satisfaçam, em igualdade, o interesse de todos os afetados.
Por outro lado, se tal pretensão moral se faz generalizadamente impossibilitada
pelos meios funcionais do direito, isso não nega, por seu turno, essa pressão moral
que ao direito é colocada desde uma óptica de sua justificação. válidas, assim, são
somente as normas jurídicas construídas em discursos racionais e que também
tomem em consideração argumentos éticos e pragmatistas, mas na medida em que:
a) se esforcem a reconhecer, no maior grau possível, iguais liberdades a todos; e b)

46 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 220.
simultaneamente não desnaturem a própria forma jurídica moderna. isso traz como
corolário duas conseqüências que devem ser assumidas dependentemente uma da
outra: a) uma questão normativa, referida à exigência que a modernidade coloca ao
direito de desenvolvimento legislativo do sistema de direitos, de maneira a adaptá-
lo da melhor maneira possível, no maior reconhecimento de liberdades possível a
todos, às circunstâncias atuais; e b) uma questão funcional, referida à operacionaliza-
ção e manutenção da forma jurídica moderna que, enquanto tal, traz consigo impli-
cações normativas, além de se justificar também normativamente; isso implica dizer
que caso a prática legislativa não se esforce rumo ao maior reconhecimento possível
de liberdades a todos, isto é, se não atualizar constantemente a pressão moral que o
direito sofre, corre-se o risco de se fazer desmoronar a democracia e a própria forma
jurídica moderna, uma vez que a questão passa a ser parasitariamente entendida em
termos da imposição de um ethos, de uma concepção de vida boa sobre os demais.
o que isso representa é que o direito somente pode se valer de sua moderni-
dade quando se mantém aberto, e constantemente aberto a conteúdos morais.
embora esses conteúdos morais não justifiquem o direito, que antes se justifica
em procedimentos institucionalizados de geração democrática de suas normas,
realizam, ao mesmo tempo, uma tremenda pressão na justificação de normas jurí-
dicas. à medida que as decisões legislativas se fazem impossibilitadas de sempre
tomarem em consideração o igual interesse de todos os afetados por essas mesmas
decisões, por outro lado, e de maneira global, se faz exigível à prática de justifica-
ção do direito que razões morais sejam sempre trazidas na construção de normas
jurídicas, sob pena de se perder a própria modernidade do direito.
Por isso é que a exigência do reconhecimento na maior medida possível de
iguais liberdades a todos se faz aqui determinante. uma vez que moralmente as liber-
dades já são reconhecidas de maneira a satisfazer de forma igual o interesse dos afe-
tados – o que implica reconhecer que meu âmbito de ação somente pode ser restrin-
gido pela igual consideração que devo ter sobre a liberdade do outro –, no direito o
reconhecimento das liberdades é também, mas não só, dependente de decisões legis-
lativas que, por sua vez, se valem, no processo de sua justificação, de argumentos não
só morais, mas inclusive éticos e pragmatistas. isso significa dizer que o reconheci-
mento e a construção legislativos de direitos não se dão exclusivamente com base em
razões morais, mas pode se dar com base em razões éticas. e isso implica dizer que
direitos e deveres podem ser reconduzidos, desde uma óptica interna à argumenta-
ção de justificação normativa, a fortes argumentos éticos apresentados e assumidos
em uma decisão política. isso não é um problema na justificação do direito. mas isso
pode se tornar um problema quando os discursos de justificação passarem sistemati-
camente a ser vislumbrados como a tentativa de imposição de um ethos. Sabemos a
que isso leva. Por isso o direito não se pode apartar da exigência normativa de reco-
nhecimento, no maior grau possível, de iguais liberdades a todos. e esse “maior grau”
refere-se ao fato de que possíveis razões éticas e pragmatistas assumidas no debate de
justificação podem ser perfeitamente entendidas como os melhores argumentos
naquele processo. assim, não se exige que razões morais sejam sempre determinan-
tes. essa “possibilidade” há que ser articulada de maneira construtiva, tanto em face
das circunstâncias políticas do contexto de geração da norma, como também dos
argumentos internamente apresentados ao debate legislativo. e isso, quando bem
compreendido, não se trata de “limitações” ao sistema de direitos, mas de elementos
constitutivos de seu próprio desenvolvimento e atualização.
com dWorKin, e retomando questões que se encontram subjacentes tanto
aos pressupostos interpretativos da constituição francesa de 1791, como à com-
preensão que a escola da exegese tem da prática jurídica, podemos distinguir dois
conceitos de democracia, dos quais somente um nos fará sentido.
um desses sentidos compreende a democracia desde uma simples óptica
majoritária: todas as questões jurídicas devem ser decididas pelo recurso ao voto
majoritário.47 compreendida assim, a idéia de democracia se atrela fortemente a
uma compreensão convencionalista do direito, a vislumbrar como normas jurídi-
cas somente aquelas decisões fruto de uma deliberação majoritária de um
Legislativo para tanto constituído.
Por outro lado, nos convida dWorKin a compreender a democracia como um
auto-governo por parte de todos os concidadãos que atuam como membros iguais de
uma determinada comunidade jurídica. e isso porque o equívoco da compreensão
anterior se daria porque as próprias decisões por maioria somente podem ser valida-
mente assumidas sob o cumprimento de certas condições. e, assim, dWorKin desen-
volve quais seriam essas condições48 de maneira, senão muito próxima, ao menos
complementar, às colocações oferecidas por haBermaS acerca dessa temática.
assim, cabe-nos fazer uma consideração acerca do sentido normativo de uma
tal exigência ao reconhecimento, na maior medida possível, de iguais direitos a
todos os concidadãos a partir de algumas questões colocadas por dWorKin. de
acordo com o princípio de integridade política, que cobraria um sentido legislati-
vo, e outro jurisdicional, dWorKin esclarece que isso implicaria, na verdade, dois
princípios de integridade política:

“um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de
leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto
quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido.”49

47 dWorKin, ronald. Justice in robes. cambridge: harvard university Press, 2006, p. 133.
48 dWorKin, ronald. Justice in robes, cit., p. 133 et seq.
49 dWorKin, ronald. o império do direito. Trad. Jefferson Luiz camargo. São Paulo: martins Fontes, 1999, p.
213.
Legislativamente, isso não implica o reconhecimento de que nossas leis sejam
perfeitamente coerentes, mas antes significa uma exigência em se empenhar para
que sejam “remediadas” quaisquer incoerências com as quais possamos nos topar.
e isso porque a integridade na legislação, ainda segundo dWorKin, ”restringe
aquilo que nossos legisladores e outros partícipes de criação do direito podem
fazer corretamente ao expandir ou alterar nossas normas públicas”.50 e isso signi-
fica impor ao Legislativo uma restrição, no que tange a uma prática democrática
do processo legislativo, de se orientar pela mera faticidade de acordos, convenções
e negociações conciliatórias sempre capazes de permitir que direitos fundamentais
sejam violados. Significa fazer-nos compreender o processo legislativo sob a ótica
não de uma convencionalista e conciliatória concepção majoritária de democra-
cia, mas nos força a compreender que o direito trata-se de um sistema de princí-
pios que, por sua vez, exige de nós a assunção de pressupostos normativos sem os
quais não podemos nos enxergar como nos auto-governando livremente.
aliás, é a isso mesmo que se refere o direito à maior medida de reconheci-
mento de iguais direitos fundamentais a todos desde a óptica legislativa, ao fato de
que a força de legitimidade da legislação, isto é, de que seu sentido normativo não
se esgota na referência a meros acordos e negociações conciliatórias capazes, de
maneira sistêmica, de fazerem com que a forma jurídica e, conseqüentemente, a
legitimidade do direito sejam destruídas. uma legislação que tenha conciliatória
e convencionalmente privilegiado uma determinada concepção ética e que não
seja capaz de se compatibilizar com uma interpretação coerente do sistema de
direitos fundamentais deve ser assumida, desde a óptica de aplicação jurídico-nor-
mativa, como inconstitucional.
Por seu turno, referido “direito à maior medida possível de iguais liberdades
a todos”, sob o viés da aplicação jurídico-normativa, inicialmente cobra o sentido
normativo – e não meramente lógico-estrutural ou funcional como em KeLSen ou
mesmo em coSSio –, de que tudo aquilo o que não é juridicamente proibido é,
pois, permitido. É claro que o sentido de proibição e permissão jurídicas somente
se pode dar em uma reconstrução principiológica na busca de um juízo de coerên-
cia normativa. e isso somente se pode dar com base em uma reinterpretação jurí-
dica dos princípios jurídicos, sem que se sobreponha, em sede de aplicação norma-
tiva, uma determinada compreensão privada de vida boa como justificativa da
limitação e não reconhecimento jurisdicional de certos direitos. esse, inclusive, é
o sentido que se pode cobrar do juízo de imparcialidade em sede de aplicação
jurisdicional, o que seja, o sentido de que o projeto de vida de outrem não pode

50 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 261.


ser instrumentalizado por uma finalidade eleita pelo intérprete-aplicador ou por
um suposto argumento referente a um ethos comum.
o reconhecimento, em sede de aplicação jurídico-normativa, do “direito à
maior medida possível de iguais liberdades” significa normativamente várias coi-
sas que somente podem ser assumidas de maneira co-implicada:

a) o sentido, já referido, de que tudo o que não está proibido está permitido.
essa é uma conseqüência da pressão normativa que o princípio do “direito
à maior medida possível de iguais liberdades” cobra na prática interpreta-
tiva e aplicativa do direito. uma resposta meramente funcional a essa
questão se faz insuficiente e inadequada;
b) juízos de imparcialidade, nos quais argumentos éticos, morais e pragmatis-
tas não podem ser assumidos como determinantes da interpretação em
face do caso;
c) a assunção da especificidade de cada caso, o que nos cobra a compreensão
de que cada caso é único em circunstâncias que lhe dizem respeito, sendo
as normas jurídicas tão-somente em princípio aplicáveis, sobretudo quan-
do se toma em consideração determinadas situações-padrão a partir das
quais as próprias normas foram legislativamente construídas;
d) uma compreensão do princípio da igualdade não de maneira meramente
“formal”, mas sim no reconhecimento, a partir das especificidades de cada
caso, de que as diferenças pontuadas pelos afetados por uma decisão juris-
dicional, ou do debate, reconstruídas pelo juiz, devem ser interpretadas
normativamente como diferenças, ou igualdades, juridicamente relevan-
tes. embora o paradigma liberal tenha dado curso à exigência normativa
do reconhecimento de iguais direitos a todos sob a óptica de uma com-
preensão meramente formal do princípio da igualdade, é em face da exi-
gência normativa de reconhecimento, na maior medida possível, de iguais
liberdades a todos, que o próprio paradigma liberal, bem como o de bem-
estar social – e desde outros problemas – se mostraram incapazes de ofere-
cer respostas coerentes;
e) a compreensão de que as circunstâncias fáticas e os elementos referentes a
essas circunstâncias não podem ser interpretadas como limites à realização
dos direitos – em uma inapropriada cisão entre ideal e real51 –, mas como
elementos constitutivos da interpretação e realização do sistema de direi-
tos em face do caso, refletindo, assim, a tensão entre ideal e real de manei-

51 cf. o Posfácio em: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstru-
ção crítico-discursiva na alta modernidade, cit.
ra reconstrutiva e na luta por um juízo de coerência normativa em face do
caso concreto. não se confunde, portanto, e de maneira alguma, com uma
proposta aos moldes de roBerT aLeXy em defesa de uma “otimização dos
princípios” quando da aplicação normativa: o código do direito, como já
bem elucidado por haBermaS, é binário, e não gradual;
f) uma decisão jurisdicional que se refira a direitos e deveres, e não uma deci-
são que pretenda ser coletivamente vinculante, como as decisões legislati-
vas que, todavia, se abrem à força de argumentos éticos, morais e pragma-
tistas como forma de construir um melhor argumento a possibilitar referi-
da vinculação coletiva;
g) por fim, co-implica a exigência de uma auto-purificação do direito, em
que este, aprendendo com seus equívocos do passado, parte constantemen-
te rumo a uma superação desses equívocos à luz de uma sempre constante
atualização e de um constante desdobramento do sentido inesgotável do
sistema de direitos, no sentido de um reconhecimento normativamente
coerente de iguais liberdades a todos. Significa dizer que há uma pressão
interna ao sistema dos direitos que o cobra uma sempre mais aperfeiçoada
expansão a todos os concidadãos. a referência a uma auto-purificação do
direito significa exatamente que o direito pode sempre expandir-se –
gerando distinções normativas internas e tornando-se, assim, mais com-
plexo – a um sempre maior reconhecimento de iguais direitos fundamen-
tais a todos no constante desdobramento das igualdades e das diferenças.

e tudo isto está diretamente conectado a uma questão que outrora pontua-
mos, a saber, ao sentido de que a luta por reconhecimento de direitos em sede
jurisdicional não deixa de ser uma luta política, porque

“uma ‘luta política’ pelo reconhecimento também se pode dar na esfera jurisdicional,
mas não da mesma maneira que na esfera legislativa. afinal, na esfera jurisdicional
tal reconhecimento depende não da força política do argumento, mas do fato de per-
mitir uma coerente re-interpretação do direito enquanto um sistema idealmente
coerente de princípios – enfim, capaz de permitir a própria auto-purificação do
direito. afinal, em uma compreensão procedimental, de uma postura privatística
característica do paradigma liberal, ou de uma postura clientelista do paradigma de
bem-estar, o cidadão passa a assumir seu papel em discursos políticos para fazer valer
seus interesses vulnerados. isto é, se engajam em uma disputa política no reconheci-
mento, ou na busca de reconhecimento, daquilo que de seus pontos de vista políti-
cos seriam seus direitos. assim é que uma participação política, ativa e legítima, é
capaz, mesmo em face da jurisdição, problematizar determinadas questões interpre-
tativas do direito de forma a integrar, pois, o processo de auto-correção do direito;
ou como diria dWorKin, de uma auto-purificação. com isto não estamos defenden-
do ou afirmando que as decisões no reconhecimento de tais pretensões seriam deci-
sões institucionais a serem tomadas do ponto de vista político; mas antes no sentido
de que tais lutas políticas pelo reconhecimento problematizam questões levantando
indagações, inclusive, acerca de qual, realmente, seria, então, a melhor interpretação
do direito – no sentido todo aqui desenvolvido – em face desta nova situação pinça-
da e problematizada. Somente a partir do processo de auto-correção é que a luta pelo
reconhecimento poderia surtir, no direito, uma re-interpretação legítima da questão
então em debate.”52

afinal de contas, o sentido da coerência normativa somente pode ser adequa-


damente enfrentado quando, em uma interpretação jurídica de aplicação, se toma
em consideração aquele sentido normativo genuíno do “direito à maior medida
possível de iguais liberdades”, uma vez mais como uma releitura procedimental do
princípio da dignidade da pessoa.
e somente quando se supera uma concepção convencionalista do direito,
rumo a uma compreensão efetivamente principiológica, é que se consegue dar
vazão à exigência normativa de que sejam reconhecidas iguais liberdades subjeti-
vas a todos os concidadãos na maior medida possível.
É sobre todas essas questões que os capítulos seguintes se referem.

52 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., pp. 70 e 71.
caPíTuLo 4
doS coSTumeS:
ou da TenSão argumenTaTiva inTerna à
Teoria do direiTo enTre o convencionaLiSmo
e uma Teoria da argumenTação Jurídica

i. a TíTuLo de inTrodução

retomemos uma questão que apresentamos logo na introdução: podemos nos


referir a “fontes do direito” que não sejam as normas do próprio sistema jurídico-
normativo?
Para começarmos a responder tal questão, sem cairmos em uma perigosa
redução positivista-sociológica, à qual KeLSen, inclusive, se manteve preso, vamos,
diante da consideração dos “costumes” como “fonte” do direito, procurar proble-
matizar tanto aspectos de uma teoria das fontes aos moldes inicialmente propos-
tos pela escola histórica de Savigny e PuchTa e resgatados pelo pandectismo de
WindScheid (ii).
Posteriormente apresentaremos uma reconstrução dos argumentos de KeLSen
a tal matéria, visto que, uma vez herdeiro de JeLLineK, introjeta de maneira mais
sofisticada a questão das “fontes” em face de uma Teoria do direito que teve que
se rever para, diante da ruptura paradigmática proporcionada pelo paradigma
social do direito a partir das pré-compreensões liberais de direito e de estado, se
adequar a um alargamento da atividade regulamentadora e intervencionista do
estado (iii).
Trazendo à tona compreensões subjacentes a ambos paradigmas do direito
aqui tomados em conta como ponto de partida para a discussão, trilharemos rumo
a uma proposta interpretativa que leve em consideração uma revisão teórica a par-
tir de traços reconstrutivos da nossa própria praxis jurídica. Para tanto, uma teo-
ria da argumentação jurídica assumida criticamente nos servirá como chave inter-
pretativa a essa polêmica que aqui pretendemos instaurar (iv).
ao final do capítulo, apresentaremos nossa contribuição à matéria, concluin-
do que os “costumes” não são capazes de criar normas jurídicas, quando muito nos
são valiosos como meio de se proceder a uma releitura do direito em face de um
caso concreto como forma de se reconhecer, em uma luta argumentativa, direitos
e/ou deveres interpretados a partir de princípios jurídicos modernamente assumi-
dos como determinantes da própria justificação da forma jurídica moderna (v).

ii. a TenSão enTre a “FenomenoLogia” da PraXiS e a “convicção


nacionaL” como FundamenTo do “direiTo conSueTudinÁrio”: aS
ProPoSTaS de PuchTa e Savigny reSgaTadaS PeLa
PandecTíSTica de WindScheid

inicialmente, cabe ressaltar que, desde a perspectiva assumida por PuchTa,


torna-se necessária uma explicação acerca do que significa, no contexto de seus
escritos, a referência à origem externa do direito. PuchTa se refere à existência do
direito, que viria a determinar e ordenar as relações humanas, como fundada na
consciência jurídica dos homens. Todavia, tal consciência, segundo o autor, há
que ser compreendida não como algo capaz de se justificar profanamente mas,
pelo contrário, tal consciência jurídica seria algo advindo de deus e o direito,
pois, seria, digamos, uma “ordem divina” revelada ao homem através, porque por
meio, de sua consciência.1 afinal, o “verdadeiro criador” se esconderia como que
por detrás do espírito humano, fazendo-nos acreditar que o direito, por fim, seria
fruto da criação da consciência humana, tanto no aspecto de seu desenvolvimen-
to, quanto no que se refere também à sua formação.2
acaba assumindo PuchTa que a consciência do indivíduo, que assim a pos-
sui, vez que membro de um povo, é que teria o condão de estabelecer uma “liga-
ção”, um “liame espiritual” deste mesmo povo. o espírito do povo, pois, é que seria
a fonte de seu próprio direito e das convicções jurídicas que, todavia, poderiam se
manifestar e tornar-se realidade ainda que em um único indivíduo.3
entende PuchTa que esta seria, então, a razão da contingência que os siste-
mas jurídicos apresentam; afinal, o direito estaria atrelado às diferenças dos povos
e, portanto, de seus espíritos. a especialidade das opiniões jurídicas, segundo o
autor, seria não menos importante que o idioma na caracterização das diferenças
de nacionalidade, na exata medida em que a comunidade do direito seria um dos
vínculos espirituais que se refeririam a um povo. assume a posição, então, de que
o desenvolvimento histórico da consciência jurídica formaria um dos elementos
que nos permitiriam distinguir um povo de outros.4

1 PuchTa, georg. corso delle istituzioni. Trad. a Turchiarulo. napoli: Tipografia all’insegna del diogene,
1854, v. i, p. 7.
2 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 7.
3 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 7.
4 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 7.
mas prossegue PuchTa afirmando que para a “existência real” do direito não
bastaria a simples consciência: somente poderíamos atribuir realidade a esse qua-
dro que se perfaz “naturalmente”, porque divinamente conduzido, quando perce-
bêssemos que os vínculos da vida seriam realmente ordenados segundo os princí-
pios de tal consciência jurídica.5 na medida em que o direito seria conformado por
preceitos que ordenariam que algo ora fosse feito, outrora que não o fosse, não seria
suficiente que a mera vontade dos indivíduos existisse para que o quadro da “reali-
dade” do direito estivesse conformado. afinal, vai o autor entender que a vontade
de mais indivíduos, quando orientada a “um mesmo direito”, tende a se fazer valer
e a impedir a injustiça.6 mas também avança no sentido de que não satisfaria a mera
vontade, pois seria necessário um órgão ao qual se reconheceria uma atuação, visto
que imbuído de autoridade. afinal, sem a existência do estado, o direito, para
PuchTa, apresentaria uma existência tão-somente precária e imperfeita.7
na medida em que vai assumir que a origem imediata do direito seria invisí-
vel, desenvolve a idéia de que alguns vieram a pensar que o povo viria a apreender
suas opiniões jurídicas, no sentido de convicções de especialistas, dos jurisconsul-
tos. outros, por sua vez, acreditaram que seria uma questão de mera observação:
bastaria observar que, quando alguém empreende algo, outros podem facilmente
fazer o mesmo e, quando alcançado um número maior, uma maioria, o povo, por
força do hábito persuade a si mesmo de que realmente se deva agir como já se age.8
PuchTa, discordando de tais posicionamentos, acreditou que o direito, em
sua origem, poder-se-ia manifestar externamente por três formas, a saber; a) como
uma “convicção imediata dos membros da nação”, isto é, o direito consuetudiná-
rio, vez que “imediata consciência nacional”; b) como lei; e c) como produto da
dedução científica.9 neste momento nos interessa somente o que se refere ao cha-
mado “direito consuetudinário”.
desenvolvendo sua proposta teórica, o autor aprofunda afirmando que o direito
consuetudinário, como fonte do direito, seria estreitamente conexo com a origem
fundamental de cada e específico “direito humano”. e tal fonte seria, pois, a consciên-
cia nacional dos membros de um povo.10 a manifestação perfeita, na expressão de
PuchTa, desta consciência nacional seria o fato de os indivíduos agirem em conformi-
dade às suas “convicções jurídicas”, conformando-as com a prática. na medida em que
a própria prática teria em seu fundamento um núcleo comum, a própria consciência
nacional de um povo, tais práticas repetiriam uniformemente a partir de si mesmas,

5 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 8.


6 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 8.
7 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 8.
8 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 8.
9 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 9.
10 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 9.
assumindo, pois, a forma dos costumes.11 mas, adverte PuchTa, que não se poderia
pretender acreditar que a repetição dos atos, que acabam por constituir o costume, é
que poderia ser considerada como a fonte do direito. muito antes, entende que a opi-
nião verdadeira é a contrária, pois a prática seria tão-somente o último momento,
momento este em que o direito já se encontraria fecundado e vivo nas consciências
individuais e que viria, portanto, a tomar forma externamente na prática.12
mas, afinal, como PuchTa vem a explicar de que maneira poderíamos reco-
nhecer o direito consuetudinário? na medida em que a consciência espontânea do
povo surge como fonte do direito, ao lado da legislação e da ciência, atribui o
autor realce à questão acerca do modo de se reconhecer o direito, pois interessa-
ria a todos investigar sob quais condições poder-se-ia afirmar a existência de um
princípio jurídico, reconhecendo, destarte, a existência, no que aqui nos interes-
sa, de um direito consuetudinário.13
de maneira mais simplificada começa o autor a expor que o meio mais natu-
ral de reconhecer o direito consuetudinário seria a própria prática na qual a con-
vicção jurídica nacional, afinal, viria a se manifestar e refletir.14 Tal prática con-
sistiria em atos que “conteriam” a aplicação de princípios jurídicos, podendo ser
tanto uma prática extra-judicial, como também judicial, consubstanciando-se,
nesta hipótese, em usus fori.15
mas, ao indagar sobre quais condições são necessárias para que se pudesse iden-
tificar a prática como capaz de ser interpretada como um “meio incontestável de reco-
nhecimento do direito consuetudinário”, propõe PuchTa que o que vai guiar esta
interpretação seria, antes de mais nada, a verificação se a própria prática teria uma
capacidade de ser assumida como emanação de uma convicção comum e nacional.16
Para tanto, seria necessário: a) que a aplicação do princípio subjacente à prá-
tica fosse assumido como a aplicação de um princípio jurídico ou também inter-
pretado como uma necessidade jurídica; e b) que tal prática pudesse se verificar
como constante e uniformemente repetida nos casos particulares em que fora ale-
gada a aplicação do então referido princípio – de onde, pois, PuchTa nos recorda
a idéia de longa consuetudo.17 não basta a referência a tão-somente este pressu-
posto para que se fale em um direito consuetudinário. PuchTa mesmo nos alerta
no sentido de que a mera repetição de um ato em épocas e momentos diferentes
pode dar-se por questões “meramente fenomênicas”, não se ligando, espiritual-

11 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 9.


12 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 9.
13 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 10.
14 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 10.
15 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 10.
16 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 11.
17 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 11.
mente, pois, à consciência nacional. aproveita também para concluir no sentido
de que quando uma prática costumeira vem a expressamente contrariar um pre-
ceito religioso, ou uma regra de direito que não admita qualquer exceção, por mais
antigo que seja referido costume, não poderia, por sua contrariedade, ser tomado
como expressão de um princípio jurídico18 – afinal, a “prática” entraria em con-
tradição com o fundamento último do direito para PuchTa, qual seja, a consciên-
cia nacional de um povo concebida por deus.
a postura assumida e defendida por PuchTa acerca do papel criativo dos cos-
tumes no seio do desenvolvimento do sistema normativo acabou recebendo gua-
rida por parte de outros pensadores que, cada qual à sua maneira, acabaram por
assumir o direito consuetudinário como fonte do próprio direito.
ainda que não oferecendo uma justificação última em termos estrita e dire-
tamente teológicos,19 Savigny se mostrou extremamente simpático às propostas
de PuchTa no tema que aqui nos interessa, a ponto de em seu System seguir, em
linhas gerais, a defesa empreendida por PuchTa.
começa Savigny a explicitar, em termos de uma justificação moral relaciona-
da ao valor intrínseco da tutela jurídica da própria capacidade moral, que o “direito
do povo” se desenvolveria não de uma maneira explícita ou exteriorizada mas,
muito antes, de uma maneira invisível.20 assim, toma o cuidado de nos alertar de
que a expressão “direito consuetudinário” poderia nos induzir a compreensões fal-
seadas. Poderia levar à interpretação de que a origem do direito seria fruto de uma
“casualidade”, ou que teria sido deixada ao “arbítrio”,21 como se fosse algo que não
estivesse amarrado a uma concepção espiritual de um determinado povo.
afinal, também Savigny vai assumir a posição de que uma análise mais apu-
rada acerca do fundamento do direito nos levaria a reconhecer a existência de
uma consciência geral do povo, invisível por sua natureza, e que somente poderia
ser, portanto, reconhecida nos atos exteriores que viriam a se manifestar vez que
usos, hábitos e costumes.22

18 PuchTa, georg. corso delle istituzioni, cit., p. 11.


19 Todavia, vale a pena ver que, para Savigny: “La misión general de todo derecho puede ser reducida sencil-
lamente al destino moral de la naturaleza humana conforme la misma se expressa en la concepción cristia-
na de la vida. en efecto, no debemos reconocer sólo el cristianismo como regla de la vida, sino que el mismo
transformó realmente el mundo, de suerte que por ajenos e inclusive hostiles que nuestros pensamientos
puedan parecer respecto a él, no obstante los domina y matiza el cristianismo. (...) el estabelecimiento de
una meta es por completo suficiente; y no es de ningún modo necessario colocar a su lado otra segunda com-
pletamente diferente con el nonbre del bienestar público: al lado del principio moral otro independiente de
economía política.” Savigny, Friederich carl von. Los fundamentos de la ciencia Jurídica, cit., p. 66. a jus-
tificação moral em Savigny, pois, deve ser entendida como uma justificação em princípios morais naturali-
zados como princípios cristãos e, todavia, incapazes de se descolarem de um ethos tradicional.
20 Savigny, Friederich carl von. derecho romano actual, cit., p. 80.
21 Savigny, Friederich carl von. derecho romano actual, cit., p. 81.
22 Savigny, Friederich carl von. derecho romano actual, cit., p. 81.
não devemos incorrer no perigo de compreender que Savigny se atrelaria
àquela interpretação meramente “fenomênica” à qual PuchTa fez referência como
insuficiente para desvelar o “real” sentido de uma prática reiterada e uniforme.
antes, parte Savigny à construção no sentido de que, a seu ver, uma série de atos
uniformes, uma prática constante, acusaria uma origem comum, a saber, e em sua
opinião, “a essência do povo”. caso não se pudesse alcançar esta origem comum,
estar-se-ia em face da mera arbitrariedade e do acaso.23
Para o autor, assim como também para PuchTa, o costume não determinaria
o direito, mas seria o signo através do qual o direito positivo (válido) poderia ser
reconhecido. isso porque assume o argumento de que os princípios fundamentais
do direito “viveriam” com a consciência de um povo, não podendo, pois, ser des-
conhecidos. afinal, Savigny, na assunção de uma ética materializante, acredita ser
possível interpretar uma distinção entre “princípios jurídicos fundamentais”, cujo
desconhecimento não poderia ser alegado, e “princípios jurídicos secundários”,
menos evidentes, mais obscuros e, portanto, passíveis de maiores confusões. mas,
quanto aos princípios jurídicos fundamentais, que viveriam na consciência do
povo, o costume cumpriria um papel pedagógico para Savigny: afinal, assume o
autor a postura de que para que o povo tenha uma “consciência clara e distinta”
de tais princípios, este mesmo povo necessitaria vê-los aplicados com uma certa
freqüência. Para reforçar seu posicionamento Savigny faz alusão a uma frase de
PuchTa segundo a qual “o costume, para o povo que o estabelece, é um espelho no
qual ele se reconhece”. 24
e conclui Savigny que não devemos ser levados por pensamentos no sentido
de que o reconhecimento do direito positivo por meio dos costumes deva ser
interpretado como algo inferior. Somente estar-se-ia correndo esse risco quando
a “adoção de um costume” fosse fruto de um ato “irrefletido”, determinado por cir-
cunstâncias meramente acidentais – ou “fenomênicas”, no sentido de PuchTa. mas
dito preço não se pagaria se tal adoção fosse resultado de uma “deliberação da inte-
ligência” a manter a “dignidade do direito”.25 afinal, o direito consuetudinário se
produziria não a partir das vontades dos indivíduos, mas porque oriundo da comu-
nidade das convicções de um povo manifestadas, pois, em atos costumeiros: este,
inclusive, é o motivo pelo qual não os usos reiterados haveriam que ser interpre-
tados como produtores do direito; antes, o costume seria tão-somente um meio
através do qual se reconheceria o direito manifestado pela convicção do povo.26

23 Savigny, Friederich carl von. derecho romano actual, cit., p. 81.


24 Savigny, Friederich carl von. derecho romano actual, cit., p. 81.
25 Savigny, Friederich carl von. derecho romano actual, cit., p. 82.
26 Savigny, Friederich carl von. derecho romano actual, cit., p. 109.
WindScheid, no giro positivista de sua pandectística, vai também comparti-
lhar, em linhas gerais, das compreensões de Savigny e PuchTa acerca da validade
e formas de reconhecimento de um suposto direito consuetudinário. afirma
WindScheid que PuchTa representou um papel importantíssimo no desenvolvi-
mento de uma teoria do direito consuetudinário, bem como Savigny teve a impor-
tância de tê-la, em um primeiro momento, apresentado em seus lineamentos.27
entende WindScheid que por direito consuetudinário há que se assumir
como aquele direito usado de fato sem que o estado o haja estabelecido.28 isso
porque, segundo o autor, no uso se manifestaria a convicção daqueles que “usam”,
lançando mão de tal prática como sendo direito. e, exatamente nessa razão, esta-
ria assentada a força obrigatória do direito consuetudinário.29 Se se perguntasse
acerca do sentido de validade jurídica de uma prática usual levada adiante pelos
cidadãos, a resposta seria: a convicção que eles teriam acerca da própria força jurí-
dico-obrigatória desse uso.
explicita WindScheid, na pretensão de conformar essa compreensão à sua
proposta teórica, que, ao final, a fonte última do direito positivo há que ser vis-
lumbrada como a consciência do povo (“ragione dei popoli”), na medida em que
tanto para os indivíduos, como para o povo, a razão apresentar-se-ia como a últi-
ma instância de medida das coisas.30 e por meio dessa consciência popular é que
se poderia ter instituído, imediatamente por parte do próprio povo, um direito
que se positivaria não por via legislativa, mas através do uso.31 afinal, estabelece
WindScheid uma proporção entre a produção legislativa de um povo e a firmação
de um direito consuetudinário: entende o autor que na mesma medida que se
desenvolve a legislação, também se daria a retração do direito consuetudinário.
isso estaria justificado no fato de que uma vez que a Sociedade teria se torna-
do mais complexa, no sentido de um maior desenvolvimento das relações huma-
nas, mais difícil seria pretender a formação homogênea de uma convicção jurídi-
ca.32 em razão das diferenças geográficas ou profissionais os indivíduos acabariam
por assumir o “direito dos juristas”.33
antes de prosseguirmos no desenvolvimento que WindScheid empreende,
cabe-nos aqui fazer um parêntese no que se refere à recente obra de um dos maio-
res processualistas da atualidade, eLio FazzaLari. a referência à obra de

27 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette. Trad. carlo Fadda e Paolo Bensa. Torino: uninone
Tipografico-editrice Torinese, 1902, v. 1, p. 50.
28 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 50.
29 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 50.
30 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 51.
31 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., pp. 51-52.
32 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 52.
33 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 53.
FazzaLari torna-se neste momento interessante por nos oportunizar a compreen-
são de que todos esses desenvolvimentos desde Savigny, passando por tantas tra-
dições do direito e da ciência do direito, se mantêm, em linhas gerais, vivos até
os dias de hoje. afinal, FazzaLari é quem vai afirmar que a “juridicidade” de uma
norma consistiria no fato de esta mesma norma ser interpretada como vinculante
e exclusiva. vinculante no sentido de que a conduta dos indivíduos deve confor-
mar-se à regra “na qual a norma consiste”; exclusiva porque esta mesma norma há
que ser interpretada como prevalente em face de eventuais outras regras como,
por exemplo, segundo o autor, aquelas regras de costumes.34
continua FazzaLari dissertando no sentido de que a consideração da vincu-
latoriedade e exclusividade da norma há que ser concretamente analisada: afinal,
e aqui é o que mais nos interessa, assume o autor a posição de que os membros de
uma Sociedade nutrem, no que se refere à regra jurídica, a opinio juris vel neces-
sitatis, isto é, o compartilhamento entre os indivíduos de que a norma seria vin-
culante e exclusiva e, portanto, jurídica.35 complementa ainda FazzaLari no sen-
tido de que o que poderia mais seguramente provar a convicção desses cidadãos
seria a prevalência, entre esses mesmos sujeitos, da observância da referida norma
e sua marginal não-observância.36
a importância da referência à proposição de FazzaLari se faz na exata medi-
da em que o autor, ao se referir à questão da opinio juris vel necessitatis, acaba por
estabelecer uma conexão a toda a discussão aqui desenvolvida por, em nota de pé
de página, diretamente fazer menção aos escritos de PuchTa. não é sem sentido,
afinal, a expressão opinio juris vel necessitatis... na própria compreensão de
WindScheid, mas também nas colocações de Savigny e PuchTa, a expressão vem
tão-somente densificar o que é exigido como pressuposto da constatação de um
direito consuetudinário para além da simples prática reiterada de atos.
É nesse sentido que WindScheid, no que se refere aos “requisitos para o nas-
cimento do direito consuetudinário”, vai afirmar a existência de basicamente cinco
pressupostos (“requisitos”). o primeiro haveria que ser o fato de o uso não derivar
de outros motivos que não aquele apontado pela convicção de sua necessidade jurí-
dica.37 isto é, a própria idéia de opinio juris vel necessitatis referida por FazzaLari.
além disso, entende WindScheid que tal convicção não pode, para efeitos de
reconhecimento de direito consuetudinário, ser algo casual, um fato isolado, mas,
antes, há que se repetir, com uma certa duração.38

34 FazzaLari, elio. istituzioni di diritto processuale. 4. ed. Padova: cedam, 1994, p. 22.
35 FazzaLari, elio. istituzioni di diritto processuale, cit., pp. 22-23.
36 FazzaLari, elio. istituzioni di diritto processuale, cit., p. 23.
37 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 54.
38 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 54.
mas não basta a opinio juris vel necessitatis e uma repetição prolongada no
tempo, porque também haveria que se verificar uma uniformidade dos atos refe-
ridos ao uso,39 pois, afinal, não se podem “perder” em seu sentido caindo na rea-
lização de atos exatamente opostos.
acerca da convicção daqueles que lançam mão do uso, afirma WindScheid
que haveria que existir uma “verdadeira convicção” por parte dos “usuários”, não
devendo a opinio juris vel necessitatis ser guiada por compreensões errôneas.40
Por fim, outro pressuposto na verificação da existência de um direito con-
suetudinário seria o fato de que o conteúdo do uso não poderia ser irracional, não
no sentido da prática ser inoportuna, mas contraditória ao fundamento da ordem
política e moral.41
o problema de toda esta concepção se encontra no fato de uma profunda jus-
tificação em termos ético-políticos do direito e do estado de direito que merece-
rá, mais adiante, ser problematizada. inclusive porque todos esses autores partem
de uma compreensão materializada, eticizada, daquilo que haveria que ser assu-
mido como convicção da nação/do povo para, a partir de então, proceder a uma
densificação de um projeto político pré-moldado pelas convicções supostamente
assumidas como comuns a todos os membros da comunidade jurídica.
mas, resgatando a idéia de usus fori apresentada por PuchTa, WindScheid
mesmo é quem também explicita no sentido de que a existência de referido
direito consuetudinário poderia se dar tanto pelo uso do próprio povo que sub-
mete as relações de suas vidas a certa norma – o que nos leva a crer na neces-
sidade de se explicitar a distinção entre aceitação e aceitabilidade normativa –,
ou ainda fruto do uso dos juristas que aplicariam certas normas nas sentenças,
enfim, na prática jurisdicional, o que WindScheid vem a chamar de “uso dos
tribunais”.42
interessante questão enfrentada mais diretamente por WindScheid, mas não
tão bem elaborada por PuchTa em seu cursus der institutionen, é a que diz res-
peito aos “costumes contra legem”. assume WindScheid que o direito consuetu-
dinário teria força normativa tal qual a lei; o direito consuetudinário não teria
papel de tão-somente completar, mas também de “abolir o direito vigente”.43 e tal
fato se daria não somente entre normas de direito consuetudinário, mas inclusi-
ve entre estas e a legislação. Todavia, alerta-nos o autor de que o direito consue-

39 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 54.


40 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 54.
41 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 55.
42 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 56.
43 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 59.
tudinário não teria qualquer força quando uma lei viesse a declará-lo como não
obrigatório.44
mas não fora essa a opinião sustentada pelo próprio WindScheid em edição
anterior de seu Pandekten. o autor mesmo fez questão de deixar claro que sua
posição anterior, no sentido de que “a lei não poderia dispor que o direito não
fosse direito”, tolhendo no futuro, como veio a explicar, a vigência de um direito
consuetudinário ou de uma lei, não poderia mais ser sustentada. no que interessa
à matéria em foco aqui, WindScheid veio explicar seu, então, novo posicionamen-
to. Segundo este, uma lei, que viesse a excluir a força obrigatória de um futuro, e
posterior, costume, poderia também ser ab-rogada por outro costume... afinal, se
uma convicção jurídica futura viesse a expressar, especificamente, que referida lei
não teria mais vigência, aí sim, tal lei não mais regularia a proibição de se reco-
nhecer força normativa a um costume num determinado sentido.45 mas, veja o
artifício empregado por WindScheid: não é um costume qualquer aquele a ab-
rogar a lei proibitiva, muito menos aquele outrora proibido pela própria lei em
questão; antes, somente um costume que firmasse a convicção jurídica de que a lei
proibitiva não haveria mais que ser considerada vigente é que poderia ab-rogá-la
– uma contradição patente, pois, do ponto de vista defendido pelo próprio autor,
o fato de se ter a opinio juris vel necessitatis acerca de um uso já implicaria uma
produção imediata de direito, tacitamente, pois, ab-rogando a lei proibitiva.

iii. arrumaçõeS no SóTão da Pirâmide normaTiva: o direiTo


conSueTudinÁrio em Face da Teoria KeLSeniana Para aLÉm
da ProPoSTa naTuraLizanTe da eScoLa hiSTórica

KeLSen, estabelecendo uma crítica ferrenha à toda a jurisprudência tradicio-


nal que o antecedeu, vai, na construção de sua reine rechtslehre, proceder a uma
reconsideração de uma série de questões fundamentais ao direito e à Teoria do
direito. Partindo de uma proposta pretensamente “pura” à consecução de um estu-
do científico do direito, no sentido de uma Teoria dogmática do direito, KeLSen
também enfrenta, no campo daquilo que entende como dinâmica jurídica, a pro-
blemática dos costumes como fatos criadores do direito. Porém, cabe-nos, desde já,
fazer o alerta de que a preocupação do autor não se orienta a uma justificação no
sentido de uma convicção nacional compartilhada em termos de um pressuposto
espiritual: antes, se orienta por uma releitura radicamente funcional acerca da efi-
cácia dos costumes, e da eficácia do reconhecimento da eficácia dos costumes.

44 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 60.


45 WindScheid, Bernhard. diritto delle pandette, cit., p. 60.
na medida em que na teoria kelseniana o fundamento de validade de uma
norma positiva há sempre que ser considerado como outra norma hierarquica-
mente superior, norma esta posta por um ato de vontade ou, finalmente, pressu-
posta por um ato de pensamento (norma fundamental), todavia, não bastaria para
a constatação da validade normativa, em termos fracos, que uma norma fosse pro-
duzida em conformidade à outra que veio, para tanto, atribuir poder/competência
à autoridade que expressou seu ato de vontade, que, em razão da norma hierarqui-
camente superior, passaria a ser interpretado como dotado não somente de um
sentido subjetivo, mas também como supostamente dotado de um sentido objeti-
vo: o sentido de “juridicamente válido”.46
Seria necessário que além do fundamento de validade também se verificasse
uma condição de validade, qual seja, para KeLSen, um mínimo de eficácia a ser
constatado no tocante à norma em questão. referido mínimo de eficácia surgiria
como condição de validade da norma, pois não seria o bastante que a norma tives-
se sido criada de acordo com normas de escalões normativos superiores. afinal,
ainda que uma norma assim produzida fosse em princípio válida, tal validade,
segundo KeLSen, poderia ser limitada pela falta de verificação de eficácia da
mesma norma. Surge, pois, o mínimo de eficácia normativa como condição capaz
de limitar a validade de uma norma em princípio válida porque produzida em
conformidade com outra hierarquicamente superior.
referida explicação torna-se central se pretendemos enfrentar a questão dos
costumes na teoria kelseniana. isso porque, para KeLSen, uma norma poderia, per-
feitamente, perder sua validade pelo fato de, por um longo período, permanecer
inaplicada por quem haveria de cumprir o dever-ser, ou inobservada por quem
teria o dever-jurídico estabelecido pela mesma. esta é a figura da desuetudo que o
autor explica como um “costume negativo”, cuja função seria, em suas palavras,
“anular a validade de uma norma existente”. na medida em que a Teoria Pura
assume o costume como um fato criador, gerador, do direito, nada mais coerente
que também assumir que o direito legislado possa ser também derrogado median-
te práticas consuetudinárias.47 e continua KeLSen: na medida em que a eficácia
surgiria como condição de validade não tão-somente do ordenamento jurídico
como um todo, mas inclusive das normas particulares, então os costumes, vez que
dotados de uma função criadora do direito, não poderiam deixar de ser conside-
rados como tais pela legislação, enfim, referida função dos costumes não poderia
ser excluída pela legislação48 – ponto no qual KeLSen, pela reconstrução aqui

46 chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen,
Luhmann e habermas, cit., p. 13 et seq; chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito
Penal: contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois, cit., p. 39 et seq.
47 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 237.
48 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 238.
empreendida, toma partido contra a postura defendida finalmente por
WindScheid. mas, de que maneira poderiam os costumes, em face da Teoria Pura,
ser considerados como fatos criadores do direito?
dentro da perspectiva escalonada que o autor empreende em sua interpretação
no tocante ao direito, entende KeLSen que o escalão normativo imediatamente
seguinte ao da constituição seria aquele referido a normas gerais criadas ou pela
legislação, ou pelos costumes. isso porque de uma maneira geral, vai afirmar KeLSen,
as constituições modernas instituem um “órgão legiferante especial” competente,
pois, para a produção de normas gerais a serem aplicadas pelo seguinte escalão judi-
cial/administrativo. mas nada poderia impedir uma organização que suprimisse este
órgão legiferante e que fosse concebido aos tribunais e às autoridades administrati-
vas competência para que eles mesmos procedessem à criação das normas por eles
entendidas como “adequadas ou justas para aplicar nos casos concretos”.49
mas, deixando de lado esta hipótese, acerca da qual nos referimos já nos capí-
tulos anteriores, parte KeLSen para considerar, de maneira generalizada, a situação
de uma ordem jurídica que instituiria um tal órgão legislativo especial.
Partindo de uma proposta convencionalista, assume que as normas criadas
pela via legislativa seriam frutos de atos de vontade expressos, isto é, seriam nor-
mas conscientemente postas, e cujo sentido de validade adviria da norma hierar-
quicamente superior a atribuir competência a tal órgão para, exatamente, produ-
zir, criar, tais normas.50
Por outro lado, a constituição, nesta perspectiva, poderia também vir a ins-
tituir como fato produtor de direito práticas consuetudinárias.51 e um tal fato
consuetudinário teria como traços centrais as características de que: a) os mem-
bros de uma determinada comunidade jurídica agissem de forma sempre idêntica
em certas e determinadas circunstâncias; b) esta forma de agir se devesse por um
tempo “suficientemente longo”; c) por essas razões anteriores, surgisse nos indiví-
duos, mediante seus atos, a vontade coletiva do dever de assim se conduzirem.52
enfim, seria a própria assunção, também por KeLSen, ainda que do ponto de vista
da fundamentação apresente suas diferenças em face da escola histórica e da
Pandectística, da tese da opinio juris vel necessitatis.
Tal proposta se coadunaria com o projeto presente na Teoria Pura, na medi-
da em que o costume somente seria passível de ser considerado como um fato cria-
dor de norma juridicamente válida se o próprio fato consuetudinário fosse inseri-
do na constituição como um fato produtor de normas jurídicas...53

49 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 250.


50 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 250.
51 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 251.
52 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 251.
53 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 251.
reporta-nos KeLSen que, para a jurisprudência tradicional, a opinio necessi-
tatis seria um elemento, um traço característico daquilo que poderia ser interpre-
tado como fato consuetudinário, e que isso implicaria a necessidade de que os atos
relativos ao costume fossem praticados na convicção que devessem ser, pois, pra-
ticados. mas, acresce o mesmo autor que, em sendo o direito consuetudinário
direito positivo, tal qual o direito legislado, haveria que ser considerado como um
ato de vontade coletivo cujo sentido subjetivo pudesse ser interpretado como
norma juridicamente válida, como, pois, direito consuetudinário positivo.54
assim, parte KeLSen para uma engenhosa construção no sótão de sua própria
pirâmide normativa. Quando poderia o direito consuetudinário ser tomado em
consideração pelos órgãos aplicadores do direito? o autor nos responde explican-
do-nos que isso somente se poderia dar quando esses mesmos órgãos, jurisdicio-
nais e administrativos, fossem competentes para tanto, isto é, tivessem essa com-
petência atribuída constitucionalmente. mas, e se por acaso o costume não fosse
instituído na constituição como fato produtor do direito? engenhosamente cons-
trói KeLSen uma saída para tal dilema afirmando que, caso ocorra dita situação,
teríamos, todos nós, que pressupor que a instituição do costume como fato capaz
de criar normas jurídicas já se encontraria presente e marcante na própria norma
fundamental. Teríamos, pois, que pressupor “uma norma fundamental que insti-
tua [instituísse] como fato produtor de direito não só o fato legislativo como tam-
bém o fato do costume qualificado”!55
isso nitidamente se coaduna com outra crítica que já realizamos à teoria de
KeLSen no sentido de que a verificação de um mínimo de eficácia não surge como
uma mera condição de validade da norma, mas surge como o próprio fundamen-
to último de todo o ordenamento jurídico, explicado em termos de uma redução
da validade normativa à faticidade de sua imposição.56
e estabelecendo um diálogo com a tradição que o antecedeu, KeLSen veio a
explicitar que sua teoria, que vem a afirmar o costume como um fato produtor do
direito, se contrapõe à proposta da escola histórica de Savigny, e aqui também
dizemos de PuchTa e resgatada por WindScheid, que vem a afirmar que o costu-
me teria um caráter meramente “declaratório”, no sentido de que o costume não
seria o fundamento do direito, mas tão-somente nos permitiria reconhecer o
direito positivo,57 vez que reflexo de uma “convicção do povo”. afinal, para essa

54 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 251.


55 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 252.
56 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito Penal: contribuições a uma reconstrução
da dogmática penal 100 anos depois, cit., p. 39 et seq. cf. as reflexões desenvolvidas no capítulo 2 em:
chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit.
57 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 252.
tradição, o direito não seria produzido nem pela legislação, muito menos pelo cos-
tume, mas antes, e tão-somente, pelo “espírito do povo”. a isso KeLSen dispara sua
crítica segundo a qual, diante de uma teoria jurídica neo-positivista como a sua,
não se poderia aceitar um “imaginário espírito do povo” dotado de uma função
constitutiva, criadora, produtora do direito – isso porque, como bem explicita, tal
pretensão de se fazer vislumbrar um “espírito do povo” acabaria por naturalizar a
discussão, vez que variante de uma concepção da teoria do direito natural que
viria a refletir uma tensão entre o direito referido ao espírito do povo e o direito
reproduzido pela legislação/costume.58
Também critica KeLSen compreensões orientadas às opiniões de que o uso
consuetudinário dos membros da comunidade jurídica somente se transformaria
em norma jurídica mediante, através, do reconhecimento por parte de um tribu-
nal que viria a aplicar referida regra. Surpreendentemente, tal é a posição recen-
temente defendida por um autor posterior a Kelsen, e deste tão crítico, quem seja,
niKLaS Luhmann. mas, continua KeLSen, tal posição de que os tribunais encontrar-
se-iam em face de normas consuetudinariamente produzidas em nada se diferiria
daquela situação em que o foco se refira a normas legislativamente criadas. isso
porque, para o autor, o tribunal há que verificar, quando da aplicação normativa,
se mesmo uma norma legislada há que ser considerada como uma norma juridica-
mente válida... e isto, referido órgão somente alcança mediante a referência a uma
norma pressuposta (norma fundamental) que, por sua vez, também incluiria a
referência aos costumes como fatos produtores do direito.59 assim, não seriam os
tribunais os órgãos a transformar os costumes em normas de direito consuetudi-
nário, antes seriam tão-somente uma instância de confirmação, porque de aplica-
ção, de normas supostamente anteriores ao próprio caso concreto em considera-
ção pelo órgão.
É claro que haveria diferenças, segundo KeLSen, entre a legislação e a produ-
ção costumeira das normas. naquela, a autoridade produtora das normas não se
identificaria com os indivíduos que seriam submetidos às mesmas normas. nesta
haveria, até uma certa medida, uma coincidência segundo o autor: não haveria a
exigência de que todos tivessem participado na formação do costume. Bastaria que
a maioria dominante dos membros da comunidade jurídica tivesse participado de
tal produção normativa60 – o que resgata a necessidade de se esclarecer a distin-
ção entre aceitação e aceitabilidade normativa.
Por fim, conclui KeLSen: se por fonte do direito, a uma melhor luz, podemos
vislumbrar “o fundamento de validade jurídico-positivo de uma norma jurídica”,

58 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 253.


59 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 254.
60 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 254.
isso significa que a fonte de uma norma há que ser considerada, sempre, como a
norma jurídica positiva do escalão superior que veio a regular sua produção.
destarte, a constituição seria, pois, a fonte das normas produzidas por via legisla-
tiva ou consuetudinária e, por fim, a “fonte do direito só pode ser o direito”.

iv. enTre aceiTação e aceiTaBiLidade: oS rumoS Para um reSgaTe


da inTerPreTação democrÁTica do direiTo e do eSTado
de direiTo

desde uma óptica que assuma as problematizações em torno das pré-com-


preensões referentes às interpretações liberais consubstanciadas na perspectiva
assumida pela escola histórica e pelo pandectismo, bem como os questionamen-
tos que dizem respeito a um neo-positivismo revisitado em termos de uma sofis-
ticação funcionalista, em face dos desafios do estado Social, podemos perceber que
tanto em uma, quanto em outra proposta interpretativa, assume-se, sem maiores
e maduros questionamentos, o subjugar de todos a uma identidade ética compar-
tilhada pelos indivíduos de uma Sociedade, seja por se “ligarem” à comunidade em
termos de um “espírito do povo” a permitir, suposta e fantasticamente, um núcleo
normativo comum co-determinante da vida coletiva, seja pela aceitação, desde
uma perspectiva fraca de observação sociológica, de comandos normativos inter-
pretados como válidos desde o centro detentor do monopólio do uso da força.
desde já adiantamos um problema que não encontra uma interpretação coe-
rente tanto em uma, quanto em outra proposta teórica: na medida em que a
modernidade implicou não só uma dessacralização das formas de vida, mas tam-
bém, e como questões co-implicadas, uma diferenciação funcional dos sistemas e
uma “especialização” de esferas de racionalidade, enfim, vislumbrando-se em um
mundo mediado lingüisticamente desde uma perspectiva descentrada,61 como
essa mesma modernidade pode, legitimamente, lidar com a pluralidade ética sem
perder a capacidade de alimentar um sistema normativo de ação que é o direito?
Primeiramente, podemos desde já adiantar que as propostas teóricas de
Savigny e PuchTa falham nessa empreita, seja por pretender um valor moral
intrínseco aos indíviduos a justificar a legitimidade da própria tutela jurídico-juris-

61 chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen,
Luhmann e habermas, cit., p. 185 et seq. cf. o capítulo primeiro, em que haBermaS procede a toda uma
reconstrução revisitada da problemática desde seus escritos anteriores: haBermaS, Jürgen. Facticidad y vali-
dez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.; cf. ainda:
haBermaS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: crítica de la razón funcionalista. Trad. manuel
Jimenez redondo. madrid: Taurus, 1987, t.i, p. 43 et seq.; haBermaS, Jürgen. verdad y justificación. Trad.
manuel Jiménez redondo. madrid: Trotta, 2003; haBermaS, Jürgen. agir comunicativo e razão destrans-
cendentalizada. Trad. Lucia aragão. rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.
dicional, para aquele, seja porque, para este, o fundamento último do direito e da
própria normatividade do sistema jurídico moderno encontrar-se-ia na voluntas
dei, a ser “acessada”, contínua e universalmente, pelos indivíduos que se reconhe-
ceriam, pois, e imediatamente, como criadores de seu próprio direito positivo.
Sabemos que a justificativa de Savigny, no sentido de entender a legitimida-
de do direito atrelada a um valor intrínseco, naturalizado, portanto, da própria
autonomia moral acaba, ao fim, por ser devedora de uma teoria aos moldes de uma
justificativa naturalista, de uma proposta bem ao gosto da teoria do direito natural.
Pretender, pois, o espírito do povo, como aquilo que nos viria a indicar o sentido,
o fim do próprio sistema jurídico, na medida em que seria, por conseguinte, refle-
tido nas construções normativas de uma dada e concreta Sociedade, ao mesmo
tempo em que pretende uma leitura “oficial” a este “espírito” – à medida que leitu-
ras diferenciadas são passíveis de serem vislumbradas na modernidade, por já não
estarmos mergulhados em um mundo-da-vida compartilhado em termos de ima-
gens sacralizadas, mas, antes, profanas –, é incapaz de lidar legitimamente com a
questão que, linhas acima, entendemos como central à própria modernidade: afi-
nal, como enfrentar a pluralidade sociologicamente marcante em tempos moder-
nos sem perder a dimensão da validade, da racionalidade normativa?
Savigny, ao pressupor um telos ao espírito do povo, sentido este pretendido
como divinamente revelado por PuchTa, acaba retirando da própria Sociedade a
construção reflexiva dos rumos a serem por ela mesma assumidos. afinal, se não
nos é mais possível falar em um “espírito do povo” metafisicamente pretendido,
por outro lado nos parece mais que plausível pretender que construções sociais
venham a determinar a própria Sociedade, o que, inclusive, abarca a construção
do direito dessa Sociedade.
não mais temos a ingenuidade de crer na explicação da justificação de ques-
tões sociais como algo exorcizado para fora dela mesma. Sabemos que a Sociedade
constrói a si mesma através de media da comunicação. não mais podemos preten-
der uma fundamentação sacralizada dessa Sociedade. o que a Sociedade medieval
certamente não foi capaz de perceber é que a fundamentação divina que se encon-
trava subjacente ao pano-de-fundo constituído por seu mundo-da-vida, nada mais
fora que uma construção da referida Sociedade. ora, a explicação sacra de, e para,
uma Sociedade estamental, como a Sociedade medieval, não nos pode mais ser
sentida como um “dado”, mas sim como algo construído, e constantemente toma-
do, por esta mesma Sociedade.
assim, nos surge, na modernidade, como algo incoerente e inconsistente, a
fundamentação sacralizada tão fortemente pretendida outrora por PuchTa; pela
dessacralização que a Sociedade moderna representa em face da Sociedade medie-
val, por ser a Sociedade moderna uma Sociedade descentrada, e pelo fato de ter-
mos aprendido que a Sociedade é fruto de processos comunicativos de sua própria
construção, além de termos apreendido a especialização de esferas de racionalida-
de, não nos parece, já de longe, plausível nem uma justificação em termos de um
“espírito do povo” a ser desvelado e desdobrado na busca de um fundamento
“firme” para o direito, muito menos uma pretensão como a de PuchTa: afinal, a
própria concepção de deus com a modernidade passou a ser problematizável, por-
que compreendida enquanto fruto de processos comunicativos. não mais temos
pretensões de racionalidade legitimamente sustentáveis porque convencionadas e
blindadas sacramente – as questões que outrora foram, desde sempre, retiradas,
porque colocadas para fora, do redemoinho argumentativo,62 pela referência reli-
giosa ao inquestionável e ao intocável, passaram, na modernidade, inclusive pela
própria pluralidade religiosa, a ser passíveis de questionamentos e problematiza-
ções argumentativas. não há que se pretender, pois, hoje – em uma alta
modernidade, por termos consciência do nosso tempo, das nossas limitações e das
contextualizações, sempre necessárias, para bem se compreender as construções
da própria Sociedade –, juízos e conclusões absolutas e eternas.
KeLSen, desde sua postura epistemológica assumida na construção de suas
propostas teóricas de interpretação e compreensão do direito, ao menos enfren-
tou, ao seu modo, a questão da pluralidade ética sem, todavia, alcançar uma saída
capaz de ser assumida como legítima. afinal, quando do capítulo em que discute
a distinção entre direito e moral, em sua reine rechtslehre, KeLSen veio a expli-
citar que a necessária distinção entre direito e moral justificar-se-ia em termos de
uma referência global tangente àquele, enquanto a moral apresentar-se-ia sempre
como particular e referida a posicionamentos subjetivos. ainda que não assuma-
mos a distinção entre direito e moral nestes termos, KeLSen vai, ao final, ao
mesmo tempo em que afirmar a distinção entre direito e moral, sobretudo em ter-
mos e para efeitos de uma ciência e de sua “coerência” epistemológica, não excluir
que na própria construção do direito questões por ele então consideradas “morais”
re-entrem: afinal, uma norma positiva nada mais significaria que um ato de von-
tade da autoridade competente de “escolha” de uma das interpretações possíveis
de uma norma, dotado, pois, de um sentido subjetivo e também de outro objetivo;
e isso porque interpretado tal ato em face de uma norma hierarquicamente supe-
rior que à autoridade atribuiria poder/competência, exatamente, para validamen-
te perante o direito realizar tal escolha.
empregado tal raciocínio silogístico à própria matéria dos costumes como atos
coletivos capazes de criar normas juridicamente válidas, além de nos permitirem
vislumbrar a figura da desuetudo – em razão do não-cumprimento do mínimo de
eficácia, vez que condição de validade da norma –, KeLSen veio a concluir que o

62 cf. o capítulo primeiro como um todo em: haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el
estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.
direito é que seria “fonte” do próprio direito. ora, ao final, seria o próprio direito
que determinaria quando e como determinados atos de vontade, individuais ou
coletivos, haveriam que ser reconhecidos como dotados de um sentido jurídico.
retomaremos, mais à frente, quando podemos afirmar o direito como
“fonte” do direito... Por aqui nos basta, por enquanto, afirmar que a presença de
um argumento de autoridade, aos moldes de KeLSen, não nos permite, em face da
modernidade da modernidade, sustentar sua proposta interpretativa. afinal, o
autor entendia que o direito sempre seria uma ordem jurídica coercitiva que
poderia ser interpretada como de uma determinada comunidade jurídica. a ques-
tão se torna mais delicada quando a própria ordem jurídica passa a ser assumida
como referida ao monopólio do uso da força: somente assim, afinal, a ordem jurí-
dica poderia ser interpretada como uma ordem coercitiva e globalmente eficaz.
avançando nos argumentos do autor, as normas tocantes à ordem jurídica garan-
tida e imposta pelo estado, vez que detentor do monopólio do uso da força, pode-
riam tanto ser aceitas pelos cidadãos, que se comportariam em conformidade ao
dever jurídico que essas normas viessem a estabelecer, como também poderiam
não ser aceitas, podendo, pois, ser ainda aplicadas pelos órgãos competentes, que
deveriam se orientar rumo à conduta devida (aplicação da sanção) estabelecida
por cada, e toda, norma jurídica, não obstante a discordância dos cidadãos em face
de uma norma sob questão.
Podemos já vislumbrar que a proposta teórica de KeLSen, percebendo a com-
plexidade ética da Sociedade moderna, não vem a fundamentar o direito em um
suposto “espírito do povo” compartilhado em termos substancialistas, nem pressu-
põe, necessariamente, a aceitação coletiva das normas referentes à ordem jurídi-
ca: bastaria um aparato institucional e militar suficientemente forte, capaz de
fazer valer, em face da Sociedade civil, as “normas jurídicas” impostas por um
determinado regime.
esse argumento de autoridade, tão fortemente marcante nas proposições
neo-positivistas do autor, não consegue se sustentar em face da seguinte indaga-
ção: a partir do momento em que um dos desafios que a modernidade colocou a si
mesma, qual seja, lidar racionalmente com a pluralidade ética, pressupõe uma jus-
tificação não mais sacralizada, porque esta sim é que estaria embebida em argu-
mentos de autoridade que vedariam questionamentos-chave de auto-indagação
social, como sustentar a “força” das normas jurídicas sem cair, mais uma vez, em
um argumento de autoridade, vez que a própria Sociedade moderna se enxerga
como autora de si mesma? afinal, com base em que argumento, senão o de uma
“autoridade intocável”, cuja força adviria da ameaça constante do uso da violên-
cia, posso pretender interpretar o direito como uma ordem normativa coercitiva
e globalmente eficaz a ser garantida por quem detém o monopólio do uso da força?
a proposta de KeLSen não leva a sério as conquistas subjacentes e muitas vezes
não explicitadas da própria modernidade. não leva adiante o que significa, em um
nível mais profundo, a superação de uma justificação sacra da Sociedade; é, pois,
incapaz de compreender que a superação de uma justificação em termos de argu-
mentos de autoridade, capazes de retirar da discussão pública determinadas ques-
tões, porque haveriam que ser sentidas como sempre constantes e inquestionáveis,
também não permite espaços para uma justificação em termos meramente socioló-
gicos de observação do fazer-valer o uso da força, aqui melhor interpretado, no
sentido mesmo de arendT,63 como violência. isso tudo porque a Sociedade moder-
na, ao perceber que constrói a si própria, não mais consegue sustentar a exclusão
de qualquer dos indivíduos dessa mesma Sociedade, porque não há nada que não
possa mais ser assumido como questionável por essa Sociedade; não mais há a cren-
ça de uma fundamentação última dessa Sociedade para além dela mesma. não mais
se sustentam interpretações que deixam implícitas exclusões naturalizadas ou natu-
ralizáveis: afinal, percebendo em que sentido a Sociedade constrói a si mesma e,
inclusive a imagem de si própria – enfim, a Sociedade da Sociedade –, concluímos
que a força capaz de superar tais naturalizações, inclusive dos argumentos de auto-
ridade, é a própria força do poder comunicativo.
numa alta modernidade, percebemos e temos a consciência de que as ques-
tões sociais são construídas comunicativa e argumentativamente no seio da pró-
pria Sociedade, além de constatarmos que normativa e sociologicamente os prin-
cípios de igualdade e liberdade foram assumidos pela própria modernidade no seio
de seu mundo social, equivale dizer, que as questões de Justiça e de Licitude pas-
saram a ser interpretadas não mais com base em argumentos naturalizados e de
autoridade como “posição de nascimento” – pois somente assim é que se pode
interpretar coerentemente a idéia de justiça e de debitum em São TomÁS de
aQuino, por exemplo –, mas antes assumidos e compartilhados em um mundo-da-
vida genuinamente moderno. afinal, no que tange a questões do mundo social, a
modernidade se construiu, e continuamente se constrói, sob a pretensão de um
igual reconhecimento de liberdades.
isso exatamente nos permite melhor refletir sobre a democracia como sendo,
na modernidade, o processo que nos permite co-construir o direito de maneira
legítima. Se, na alta modernidade, apreendemos que a Sociedade constrói a si
mesma através de processos comunicativos, e que a única força que se faz preva-
lecer é a própria força dos argumentos assumidos reflexivamente em debates
publicamente sustentáveis, não há mais que se pretender validade, na
modernidade, a argumentos de autoridade que, contrariamente, retiram sua força

63 arendT, hannah. crises da república. Trad. José Wolkmann. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 123 et. seq.
não de processos comunicativos sustentáveis em face do mundo-da-vida, mas de
uma naturalização que, no caso da teoria de hanS KeLSen, corre o tremendo risco
de se dar mediante o uso de violência, e não de poder comunicativo.
esta nota há que ser acentuada na teoria de KeLSen, mas que perfeitamente
também cabe às propostas tanto de Savigny, como também de PuchTa e
WindScheid – este, aliás, grande responsável pela virada positivista na interpreta-
ção do direito pela Pandectística –, porque, em reine rechtslehre, KeLSen, ainda
que prescindindo da aceitação por parte dos cidadãos, afirmava a validade de uma
ordem jurídica que se fizesse valer por simples imposição de órgãos orquestrados
em face daquele, ou daquilo, que deteria o monopólio do uso da violência – vio-
lência, e não poder, porque não justificado o seu uso em termos de discursos racio-
nais capazes de lhe conferir legitimidade.
Tudo isso, na teoria de KeLSen, é nítido quando, na verdade, a norma funda-
mental somente cumpriria seu papel quando todos se submetessem aos ditames de
uma constituição que fosse eficaz, eficácia esta capaz de ser alcançada a qualquer
preço, inclusive ao custo de uma imposição conseguida em termos de violência –
que refletiria numa aplicação das normas por parte dos órgãos competentes, e cuja
competência seria garantida pelo monopólio da força – ou, ainda, em razão de
uma larga aceitação da ordem jurídica – refletida no cumprimento por parte de
uma maioria dos cidadãos dos deveres jurídicos que lhes fossem impostos; o que,
definitivamente, não descarta hipóteses de “rebeldia” a serem superadas em ter-
mos de uso da violência.
isso porque a noção com a qual interpretamos a idéia de aceitação de normas
não está necessária e diretamente atrelada ao assentimento generalizado por parte
dos afetados dessas mesmas normas: uma postura passiva de não se mobilizar rumo
a algo diferente, seja por medo, seja pela própria força simbólica da imposição, por
opressão ou por conveniência e comodismo, acaba tendo que ser interpretada,
normativa e politicamente, como aceitação de “normas”, porque não em termos
reflexivos e críticos capazes de garantirem a racionalidade, em termos comunica-
tivos, de uma aceitabilidade normativa.
embora a concepção que perpassa a proposta teórica acima reconstruída
acerca dos costumes como “fonte” do direito esteja atrelada à idéia de opinio juris
vel necessitatis – e não obstante tal postura, afinal, poder ser genericamente assu-
mida como aceitação por parte dos membros de uma determinada comunidade
jurídica de uma prática interpretada, nos termos da própria aceitação, como “juri-
dicamente devida”, já que a “necessidade jurídica” há que, aqui, ser assim inter-
pretada –, entendemos que, exatamente nesse ponto, é que reside todo o proble-
ma de tal acepção dos “costumes” como pretensamente dotados de uma força jurí-
gena capaz de permitir a “criação” de normas supostamente válidas.
É nítido que tanto na vertente que defende um “espírito do povo”, seja em
termos tendentes a um teologismo, como em PuchTa, seja orientado a uma recep-
ção positvista, como em WindScheid ao pretender tal recepção como uma consta-
tação sociológica de uma homogeneidade ético-política da e na comunidade jurí-
dica, como também na proposta de KeLSen que, ao incorporar a questão da plura-
lidade ética, superando uma leitura ontologizante da escola histórica, não conse-
guiu, todavia, oferecer respostas para além da mera observação sociológica, típica,
pois, do próprio paradigma positivista de compreensão e interpretação do direito,
se encontra subjacente a pretensão de que as práticas reiteradas e uniformes dos
cidadãos estejam envoltas na capa de uma opinio juris, isto é, apresentem o pedi-
gree de serem práticas aceitas, ainda que não unanimemente, mas em face de um
contingente que represente a maioria (KeLSen).
e essa aceitação decorreria muito antes em termos de uma convicção nacio-
nal compartilhada (PuchTa), porque refletora de um pretensioso “espírito do
povo” (Savigny, WindScheid), ou de uma possível coincidência e repetição de atos
que haveriam que ser considerados como dotados de um sentido objetivo para
além do próprio significado coletivo da praxis: afinal, é assim que KeLSen, neste
caso, consegue remeter à norma fundamental, pressuposta, a própria pressuposi-
ção da validade jurídica dos “costumes”.
isso, tangente tanto à proposta de matriz da escola histórica, como também à
referida à Teoria Pura, coloca a seguinte questão central na superação desse impasse:
afinal, será que as questões atinentes ao direito da modernidade hão que ser racio-
nalmente conformadas em termos de uma mera constatação sociológica de uma acei-
tação, possível de se alcançar, inclusive, mediante ações instrumentais de emprego de
violência, ou tratar-se-ia de algo somente apreensível adequadamente não em face de
uma simples aceitação, mas de uma aceitabilidade construída argumentativamente?
a partir do conceito de aceitabilidade racional aprofundado pela Teoria do
discurso, de Jürgen haBermaS,64 podemos resgatar o que aqui já havíamos apre-
sentado, avançando no sentido de que não se tem mais a ilusão de uma fundamen-
tação da Sociedade para além dela mesma, nem que haja, pois, uma naturalização
do discurso em termos de argumentos de autoridade. isso porque, se libertando
dos grilhões de uma Sociedade sólida, como a Sociedade medieval, para usarmos a
expressão de zygmunT Bauman,65 a modernidade se liquefez em razão de uma

64 cf., como um todo, as conclusões alcançadas em: haBermaS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: crí-
tica de la razón funcionalista, cit.; haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado
democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.; haBermaS, Jürgen. verdad y justificación,
cit. cf. ainda, as importantes considerações de manueL JimÉnez redondo na introdução à versão castelha-
na de Faktizität und geltung. JimÉnez redondo, manuel. introducción. in: haBermaS, Jürgen. Facticidad y
validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.
65 Bauman, zygmunt. modernidade Líquida. Trad. Plínio dentzien. rio de Janeiro: Jorge zahar, 2001.
descentração, uma dessacralização, um processo de diferenciação funcional dos
sistemas, um processo de especialização das esferas de racionalidade, todos co-
implicados e somente possíveis porque construídos em termos de uma praxis
comunicativa a exigir de todos, e de cada indivíduo envolvido nesse projeto que
se abre continuamente ao futuro (mas também ao passado, paradoxalmente), a
assunção de uma postura realizativa,66 isto é, de uma postura que, em termos
comunicativos, signifique a defesa de pontos de vista e de opiniões não com base
no uso da violência ou “garantidos” por um argumento de autoridade sacado quan-
do conveniente, mas mediante as próprias regras da linguagem e que deságuam,
ao final, na força de um sempre melhor argumento.
Somente compreendendo a força do poder comunicativo gerado, pois, nos
processos de comunicação, equivale dizer, tão-somente a partir da apreensão de
que aquilo a garantir, a todos os co-implicados, a aceitabilidade de determinadas
construções da Sociedade, é a força do melhor argumento, podemos, reflexiva-
mente, pretender não só, mas também, um direito modernamente legítimo.
como KeLSen muito bem nos alertou, a referência, por parte da escola
histórica, a um “espírito do povo” apresentava embutido um argumento de auto-
ridade no sentido de que tal “espírito”, enquanto dotado de um telos não dominá-
vel pelo indivíduo, acabou por se apresentar como uma vertente devedora da tese
do “direito natural” a ser refletido no “direito positivo” – e pelos “costumes”,
inclusive. vimos também a proporção que a força da violência acaba tomando em
sede da Teoria Pura. e, exatamente por essas razões, é que podemos refutar ambas
propostas porque incapazes de lidar com os pressupostos subjacentes à própria
praxis social moderna.
a tese da opinio juris vel necessitatis parte da pressuposição de que os indi-
víduos compartilham ou de uma identidade ética comum, a guiar e a ser refletida
em suas condutas constantes e rotineiras, ou de uma vontade assumida como von-
tade coletiva de se orientar de determinada forma. o problema dessas teses é, exa-
tamente, não problematizar a legitimidade dessas práticas em face da pluralidade
e complexidade da modernidade; é não levar a sério que nada referente ao mundo
social nos é “dado”, mas, antes, construído em processos que, por sua vez, pressu-
põem uma dimensão normativa da comunicação, isto é, que pressupõem que algo
não pode ser validamente assumido como racional senão em face de um processo
comunicativo garantidor de um espaço capaz de permitir a construção de um
melhor argumento acerca de determinada questão.
na medida em que argumentos naturalizados de autoridade, como também
visto ao final do capítulo 2, não podem mais garantir a sustentabilidade racional de

66 günTher, Klaus. communicative Freedom, communicative power, and jurisgenesis. in: roSenFeLd, michel,
araTo, andrew. habermas on Law and democracy. Berkeley: california, pp. 234-254, 1998.
qualquer pretensão na modernidade, essa mesma modernidade se construiu, desde
sempre, com pretensões de reconhecimento, a todos, e no maior grau possível, de
iguais liberdades subjetivas – do que depende, inclusive, e sobretudo, o reconheci-
mento e garantia de liberdades comunicativas. aquilo capaz de ser considerado e
pretendido como racionalmente válido, pois, passou a depender de uma sustentabi-
lidade pública a ser confirmada, ou refutada, em discursos em que todos, pois, têm
reconhecidas e garantidas institucionalmente iguais possibilidades de participação.
esta é a peça-chave daquilo que podemos entender como aceitabilidade
racional: esta não implica uma concordância ou uma anuência com o conteúdo de
uma, por exemplo, lei aprovada no congresso nacional. não significa que através
de um “melhor argumento” se possa convencer o outro acerca de suas preferên-
cias pessoais…67 mas se abre a possibilidade para a compreensão de que por um
“melhor argumento”, sempre assim interpretado em face de um pano-de-fundo
intersubjetivamente compartilhado, podemos assumir determinadas pretensões
de verdade, ou de correção normativa, ou de veracidade como racionais.
a idéia de aceitabilidade, pois, nos permite vislumbrar a Sociedade como
uma Sociedade aberta, em constante processo de construção e de convencimento
argumentativo sustentável em face das pré-compreensões compartilhadas no
mundo-da-vida. É inevitável, pois, interpretar aceitabilidade como atrelada a uma
concepção procedimental, já que a aceitabilidade, como fruto de um jogo argu-
mentativo em que os participantes têm iguais possibilidades de participação,
somente é capaz de florescer na medida exata em que tal processo garanta as
regras da própria liberdade de igual argumentar...68
assim, não significa que a aceitabilidade – isto é, o fato de algo ser aceitável
a todos, porque construído em um discurso, vez que processo, em que todos os
interessados poderiam, ou podem, levantar pretensões argumentativas a serem
tomadas em conta, sendo admitidas, ou rechaçadas, já que todos têm reconhecidas
iguais liberdades comunicativas de participar da construção pública das próprias
questões pela Sociedade colocadas –, não abra espaços para a aceitação.
nitidamente um debate público, e aqui mais especificamente o de aprovação de
um projeto de lei, envolve pontos de vista passíveis de serem justificados, mas não
somente, em preferências ou valores pessoais. o fato de uma tal proposta ser apro-
vada não significa que todos passaram a compartilhar dos valores daqueles que

67 aliás, mesmo porque a praxis comunicativa da modernidade não apresenta qualquer pretensão de conven-
cimento do outro acerca de gostos ou preferências pessoais. muito antes pelo contrário, tal praxis se cons-
truiu em espaços de pluralidade ética sem qualquer ambicioso projeto de construção de uma homogeneida-
de ética, ou valorativa, dos concidadãos. embora não possamos convencer o outro sobre concepções de vida-
boa, podemos, todavia, em face de uma pretensão levantada por um mesmo indivíduo, problematizar em
torno de um juízo de veracidade.
68 günTher, Klaus. communicative Freedom, communicative power, and jurisgenesis, cit.
defendiam referido projeto de lei, nem que os “vencidos” na disputa argumentati-
va possam deixar de discordar da forma como uma determinada matéria fora regu-
lamentada. a questão há que ser analisada em termos do processo comunicativo
de construção da decisão que, no caso em tela, há que ser assumido como o pró-
prio processo legislativo.
o fato de em um processo legislativo argumentos éticos, mas também morais
e pragmatistas, serem trazidos na defesa ou na repulsa de um determinado proje-
to em discussão, jamais significa que para a aprovação deste mesmo projeto tenha-
mos que unanimemente convencer a todos, e a cada participante, deste processo
público de discussão, sobre os “argumentos centrais”. mas, ao mesmo tempo, tem-
se que garantir a possibilidade de participação, legislativa ou jurisdicional, consi-
derada a especificidade do caso, de qualquer afetado por essa decisão em sua cons-
trução: do contrário, não estaríamos levando a sério a dimensão argumentativa
subjacente à construção da modernidade; estaríamos vedando a participação a um
co-implicado com base em um argumento de autoridade incapaz de se sustentar,
mais uma vez, argumentativamente em face do mundo-da-vida moderno.
a aceitabilidade, pois, é dependente de um processo social de construção dis-
cursiva. algo, no mundo moderno, há que ser tido como aceitável na medida em
que seja fruto de um processo pública e argumentativamente sustentável em face
daquilo que nós mesmos compartilhamos. e isto é algo do qual não podemos dis-
por: as regras do jogo argumentativo não estão disponíveis para os seus participan-
tes. as regras do jogo argumentativo são atreladas à modernidade, e a própria
Sociedade não tem como dispor dessas regras sem deixar de ser, pois, moderna. e
isso tem a ver diretamente com o alicerce normativo da forma jurídica moderna
nos princípios de igualdade e liberdade explicitados no capítulo 3.
isso haBermaS entende como atinente à uma dimensão pragmática-universal
que se construiu com a, e pela, própria modernidade;69 isso, afinal, é que nos per-
mitiria continuar projetando o caráter moderno de nossa Sociedade que, ao com-
preender isso, aprende e se torna mais complexa, altamente moderna, pois.
conclusões alcançadas em respeito tão-somente à força do melhor argumen-
to, geradas, enfim, pelo poder comunicativo, sendo, assim, aceitáveis a todos que
desse processo tiveram e têm a possibilidade de participar, não excluem espaços
de aceitação, como já insinuado anteriormente. uma lei, por exemplo, legitima-
mente produzida, isto é, racionalmente aceitável, pode ser, por vários concida-
dãos, também aceita no sentido de se concordar com a forma com que trata deter-
minado assunto. mas ainda que do ponto de vista particular, de minha compreen-

69 construções devedoras aos desenvolvimentos presentes no capítulo primeiro em: haBermaS, Jürgen.
Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discur-
so, cit.
são de vida-boa, eu discorde de uma determinada regulamentação legal, essa
mesma regulamentação é para mim aceitável se eu tive possibilidade de participar
em sua construção – seja, exemplificadamente, participando do processo de elei-
ção dos representantes no Poder Legislativo e no Poder executivo, seja participan-
do dessa discussão na esfera pública, através de manifestações públicas, liberdade
de imprensa ou, ainda, fazendo valer minhas pretensões em vias institucionaliza-
das abertas, inclusive, à Sociedade civil. o fato de algo ser para todos aceitável não
significa, ou não depende, da aceitação de todos. não temos todos que comparti-
lhar de convicções aclamadas em termos de uma unidade nacional ou de um “espí-
rito do povo” para sermos membros de uma mesma comunidade jurídica. o poder
comunicativo gerado em discursos racionais é aquilo a garantir a legitimidade,
inclusive, da produção do direito. não temos que pretender vislumbrar, portan-
to, uma unidade ético-política para que seja possível uma vida sob o império de
um direito legítimo – não temos que compartilhar dos mesmos valores, mas temos
que assumir, por sua vez, a dimensão procedimental subjacente à praxis argumen-
tativa referida à modernidade.
Somente em respeito a esta dimensão, de respeito às iguais liberdades comu-
nicativas e de participação reconhecidas nesse processo público de discussão, é
que o direito é capaz de retirar sua força de legitimação. isto implica afirmar que
somente a democracia é capaz de justificar o direito,70 em face dessa idéia de acei-
tabilidade, na modernidade que se construiu como plural e como complexa; como
uma Sociedade incapaz de ingenuamente pretender explicações ético-materiali-
zantes para questões que envolvem uma infinitude de pontos de vista e preferên-
cias. disso se pode concluir que o papel da constituição, na modernidade, há que
ser assumido como o de garantidor das próprias condições comunicativas de pro-
dução de legitimidade e geração de poder comunicativo.71
disto se infere que essa dimensão, que aqui especificamente está recortada em
termos do direito, é constitutiva da própria forma jurídica moderna da qual o
direito, por sua vez, não pode dispor: do contrário, repita-se, o direito não poderia
ser considerado “moderno” – e, como debatido no capítulo 3, não se trata de uma
questão meramente funcional como haBermaS outrora insinuou. essa é a razão pela
qual sustentamos o entendimento de que o “direito” nazista não pode ser interpre-
tado como direito moderno, ou como paradigma do direito moderno; antes o
“direito” nazista há que ser interpretado como anti-moderno por, justamente, se

70 haBermaS, Jürgen. o estado democrático de direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditó-
rios?, cit., p. 152 et. seq.; haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático
de derecho en términos de teoría del discurso, cit., p. 61.
71 haBermaS, Jürgen. il nesso interno tra stato di diritto e democrazia. L’inclusione dell’altro: studi di teoria
política. Trad. Leonardo ceppa. milano: giangiacomo Feltrinelli, 1998, p. 249 et seq.
colocar na contra-mão do projeto moderno de igual reconhecimento de liberdades,
na maior medida possível, aos e pelos concidadãos. afinal, o “direito” nazista não
pode ser pretendido como racionalmente justificado em face do caráter moderno da
modernidade: antes, justifica-se não em um poder comunicativo, mas em termos de
um argumento de autoridade, bem ao gosto da teoria kelseniana.
É claro que as problematizações referentes a um discurso de justificação72
sempre nos conduzem a questionamentos acerca do processo legislativo, porque
processo democrático de produção do direito. Por outro lado, também é relevan-
te o processo de aplicação do direito, processo esse que envolve pretensões de cor-
reção normativa em face de um caso concreto. acima já tivemos a oportunidade
de rapidamente apontar no sentido de que a racionalidade na modernidade sofreu
um processo de especialização, e uma das pretensões de racionalidade que podem
ser assumidas pelos falantes é, pois, a pretensão de correção normativa que, obvia-
mente, envolve um juízo de adequabilidade normativa em face de uma situação
concreta recortada e problematizada em termos comunicativos.
o mérito dos escritos de KLauS günTher73 reside, dentre outros, em proble-
matizar as diferenças entre um discurso jurídico de justificação da norma, atinen-
te, a uma melhor luz, a um processo democrático, e um discurso de aplicação da
norma jurídica, referido a um processo jurisdicional – mas não só. haBermaS, assu-
mindo a proposta de günTher, mas a redimensionando em face da dimensão prag-
mática-universal à qual já nos referimos, vai aprofundar essa discussão sobretudo
em face dos processos comunicativos e da diferenciação funcional dos sistemas.74
o processo de modernização há que ser assumido, dentre outras questões,
como um também processo de diferenciação funcional dos sistemas. isso significa
que, diferentemente da Sociedade medieval centrada na religião, os sistemas
sociais, ao longo da modernização da Sociedade, passaram a se diferenciar, sendo
cada um dotado de uma função que lhe é própria e sustentável argumentativa-
mente em face do mundo-da-vida. não nos cabe aqui retomar qual seria a função
do direito. Por ora basta esclarecer que argumentos religiosos, políticos, morais,
econômicos, dentre outros, não podem encontrar, no processo de aplicação do
direito, aquela força do melhor argumento. isso porque se a Sociedade moderna
é uma Sociedade descentrada, o é exatamente na medida em que cada sistema pas-

72 nesse sentido, cf. os desenvolvimentos em: günTher, Klaus. The sense of appropriateness: application dis-
courses in morality and Law. Trad. John Farrell. albany: State university of new york, 1993.
73 cf., nesse sentido: günTher, Klaus. communicative Freedom, communicative power, and jurisgenesis, cit.;
günTher, Klaus. The sense of appropriateness: application discourses in morality and Law, cit.; günTher,
Klaus. un concepto normativo de coherencia para una teoría de la argumentación jurídica. Trad. Juan
carlos velasco arroyo. doxa, v. 17-18, pp. 271-302, 1995.
74 reflexões sobretudo desenvolvidas no capítulo quinto em: haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el
derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.
sou a ser seu próprio centro, assim também refletido em termos de uma diferen-
ciação de argumentos capazes de serem assumidos como determinantes em pro-
cessos argumentativos de problematização de pretensões de racionalidade.
Por isso é que nem argumentos éticos – referentes a concepções de vida-boa,
a valores, enfim –, nem argumentos morais – tocantes ao justo, isto é, àquilo capaz
de ser interpretado como decidido no igual interesse de todos –, nem argumentos
pragmatistas – que digam respeito aos meios de se alcançar uma finalidade, sem-
pre parcialmente eleita –, podem ser assumidos como argumentos determinantes
em uma aplicação jurídico-normativa.75 o juízo de correção normativa, em razão
da especialização dos juízos de racionalidade co-implicada no processo de diferen-
ciação funcional dos sistemas, no que diz respeito ao direito, somente se sustenta
em face de argumentos que tomem por centro, pois, o próprio direito. com isto
afirmamos que a modernidade exige que argumentos jurídicos, e tão-somente
argumentos jurídicos, sejam assumidos como determinantes do juízo de correção
em um processo argumentativo de aplicação normativa. Somente assim é capaz de
se garantir uma aplicação do direito que respeite a condição moderna de nosso
tempo, que respeite o processo social que se constituiu, e se constitui, na própria
modernidade, que respeite, portanto, a racionalidade e a aceitabilidade, argumen-
tativamente sustentáveis, na construção da praxis.
as conseqüências da assunção desses pressupostos subjacentes à praxis comu-
nicativa se refletem mais concretamente em algo que tanto o paradigma liberal,
quanto o paradigma social, foram incapazes de perceber. a aplicação do direito
não pode se prender a uma determinada concepção ética, axiológica, a introjetar,
no seio da argumentação jurídica de aplicação, uma ordem e uma hierarquia de
valores, a serem assumidas como determinantes do próprio juízo de correção nor-
mativa. antes, cabe-nos esclarecer que, se questões éticas – como também as
morais e pragmatistas –, surgem na argumentação das partes na reconstrução do
caso concreto e nas suas interpretações parciais do direito, o desafio da imparcia-
lidade do julgar exige, justamente, o afastamento dessas questões de modo a per-
mitir que a argumentação que venha a fundamentar o juízo de adequabilidade
normativa seja, sempre, um argumento jurídico, o melhor argumento jurídico,
assim sustentável em face do pano-de-fundo que o sistema jurídico moderno, e
seus princípios, representam.
do fato de que essas questões éticas, morais e pragmatistas sejam assumidas
como determinantes em um processo legislativo em que todos têm iguais possibi-
lidades de fazer valer seu ponto de vista no debate público, não decorre que pos-

75 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit.; haBermaS, Jürgen. on Law and disagreement. Some comments on
“interpretative Pluralism”. ratio Juris, v. 16, pp. 187-194, 2003.
sam ser determinantes da aplicação do direito. afinal, à medida que o direito é
um sistema funcionalmente diferenciado, temos que respeitar esse traço se pre-
tendemos levar a sério uma aplicação racional do próprio direito – e isso signifi-
ca tomar em consideração, de maneira determinante na aplicação do direito,
somente argumentos jurídicos... do contrário, a própria legitimidade da aplicação
normativa estaria posta em xeque: afinal, o lugar de se pretender fazer valer uma
convicção pessoal, ou grupal, na construção de uma norma, há que ser num pro-
cesso democrático, em que todos tenham iguais chances reconhecidas de partici-
par em um discurso público e coletivamente vinculante, e não em uma decisão
jurisdicional que ilegitimamente firmaria um determinado conteúdo ético não
com base em um “melhor argumento” – já que nenhum argumento é capaz de
legitimamente pretender afirmar uma concepção ética como superior à outra, na
medida em que a modernidade se construiu aberta à pluralidade axiológica –, mas
sob o peso de um mero argumento de autoridade a blindar argumentativamente
tal decisão.
Podemos, então, brevemente concluir que a problemática da legitimidade de
normas jurídicas não se trata de uma questão relacionada nem a uma determina-
da e concreta concepção ético-política materializada no espírito do povo, nem a
argumentos de autoridade a retirar da democracia a possibilidade de construção
aceitável do direito. como se pode apreender, trata-se de algo que vem a trans-
cender contextos e paradigmas específicos da modernidade, vez que atrelado a
uma pragmática-universal, a uma forma jurídica que não é daquela comunidade
concreta e circunstanciada, mas que a transcende, porque é referente à
modernidade – somente assim podemos compreender, afinal, a ilegitimidade do
nazismo...

v. a inSuSTenTaBiLidade da PreTenSão acerca doS “coSTumeS”


como “FonTe” do direiTo moderno: a aSSunção de uma
Teoria da argumenTação Jurídica orienTada ao
conSTiTucionaLiSmo moderno Para aLÉm de uma
convencionaLiSTa “Teoria daS FonTeS”

Toda a reconstrução teórica que apresentamos linhas acima mostra-se de


suma importância neste ponto, já que toda a discussão da Teoria constitucional
contemporânea parece estar envolvida no próprio desafio de uma teoria da argu-
mentação que seja capaz de explicitar pontos a serem tomados em consideração de
maneira reflexiva rumo a uma aplicação constitucionalmente orientada, pois, à
garantia dos direitos fundamentais. isso se torna uma peça-chave, e o direito
constitucional assume a centralidade em termos argumentativos que possui:
somente com o reconhecimento recíproco de direitos fundamentais garantidores
de uma autonomia pública é possível criar as condições necessárias de geração
racional, e legítima, pois, de poder comunicativo a partir de discursos, pública,
porque argumentativamente, sustentáveis. Somente o reconhecimento construí-
do pela Sociedade moderna, através de discursos racionais, dos direitos fundamen-
tais, indistintamente assim reconhecidos a todo e a qualquer membro dessa
mesma comunidade jurídica, é capaz de simultaneamente garantir espaços priva-
dos de construção da personalidade e também espaços públicos de construção da
Sociedade. É tão-somente da compreensão de que o mundo moderno se constituiu
mediado lingüisticamente, e que tal mediação não se deu blindada por qualquer
argumento de autoridade a retirar dos participantes qualquer indagação ou ques-
tionamento, é que podemos reconhecer a possibilidade de construções de vida que
se desenvolvem paralelas entre uma esfera pública e outra privada. e tudo isso
somente se dá normativamente orientado ao reconhecimento igual, e na maior
medida possível, de liberdades subjetivas a todos os membros de uma referida
comunidade. afinal, não mais podemos pretender o caráter moderno do estado de
direito se não vislumbrarmos o reconhecimento, indistinto a todos, de direitos
fundamentais a garantirem liberdades subjetivas e liberdades comunicativas, cujas
pretensões que trazem consigo mesmas encontram-se também subjacentes ao pró-
prio caráter moderno da modernidade.
a relevância dos direitos fundamentais, para além da co-implicada luta polí-
tica de seu reconhecimento, levou o pensamento constitucionalista contemporâ-
neo a centralizar as discussões em torno da hermenêutica constitucional e da com-
preensão da jurisdição constitucional como forma de se explicitar o caráter
moderno do direito, e as co-implicações disso na própria aplicação/interpretação
do direito, cujo desafio acaba por ser aquele que desde sempre a modernidade
colocou a si mesma, qual seja, levar adiante o projeto de reconhecimento, no
maior grau possível, de iguais liberdades subjetivas a todos...
assim, é que desde as propostas de dWorKin, refletidas em termos de uma
hermenêutica crítica herdeira das conquistas, obviamente, do giro lingüístico e
hermenêutico, argumentos capazes de serem considerados legítimos na interpre-
tação do direito somente podem ser argumentos de princípio,76 isto é, argumen-
tos que tenham por referência somente, e tão-somente, normas jurídicas. aquilo
que dWorKin outrora chamou de diretrizes políticas não podem ser capazes de,
legitimamente, afastar a aplicação de um princípio; afinal, os argumentos de prin-
cípio seriam trunfos na argumentação que se manteriam de pé exatamente pela

76 cf. sobretudo a partir do capítulo segundo em: dWorKin, ronald. Los derechos en serio. Trad. marta
guastavino. Barcelona: ariel, 1999.
força que geram em uma argumentação jurídica. isso porque, diante de argumen-
tos de princípios, argumentos orientados a uma determinada concepção política
materializada não podem se manter de pé: ora, a aplicação do direito é uma tare-
fa que tem que ser levada adiante sem que nós modifiquemos, a nosso gosto sem-
pre devedor a um posicionamento parcial, o próprio direito ao pretensamente
“dotá-lo” de uma finalidade a ser alcançada...77 o desafio que dWorKin lançou foi
o de, em certos limites, resgatar a própria racionalidade em aplicação do direito.
Para tanto, para que alcancemos uma aplicação racional, válida, legítima do
direito da modernidade é necessário que apreendamos a condição comunicativa
moderna a que este mesmo direito se encontra preso. afinal, somente a partir da
explicitação de uma dimensão hermenêutica é que nos é possível interpretar qual-
quer fato, qualquer texto: somente quando compreendemos que nosso mundo-da-
vida é construído por pré-compreensões intersubjetivamente partilhadas é que
entendemos como é possível, a partir dessas mesmas pré-compreensões, nos
comunicar, problematizando ora alguns aspectos desse mundo-da-vida, ora outros
traços, mas nunca problematizando todo este mundo-da-vida de uma só vez... o
mundo-da-vida é esse universo de questões silenciadas, de questões que um dia
tomamos contato e que, por ser impossível sempre trazê-las, a todo momento, à
tona, refogem, quando não problematizadas argumentativamente, para este pró-
prio mundo-da-vida silencioso, mas sempre presente, pois, sem ele, não seria pos-
sível nos comunicarmos.78
a construção do direito e a interpretação do direito também têm que levar
em consideração esse aspecto da construção comunicativa. não é possível, quan-
do da produção normativa, problematizar todas e quaisquer hipóteses imagináveis
e futuras que o direito terá que enfrentar. não mais acreditamos que seja possível,
mediante um processo de codificação, esgotar o conteúdo normativo de determi-
nada matéria: os duzentos anos que já se passaram desde a entrada em vigência do
code napoléon, bem como as lutas e os embates teóricos deste fato advindos, já
nos serviram como um grande aprendizado nesse sentido. Quando da produção
normativa em um processo legislativo, sempre são pensados casos-padrão, mas
nunca se pretende, ou se pode pretender, vislumbrar essa atividade como capaz de
esgotar os casos que virão.
e é este desafio, o de interpretar o direito em face de um caso concreto antes
não ocorrido, ou não sequer imaginado quando da própria construção legislativa,

77 dWorKin, ronald. de que maneira o direito se assemelha à literatura? uma questão de princípio. Trad. Luís
carlos Borges. São Paulo: martins Fontes, 2001.
78 noção devedora dos desenvolvimentos de gadamer, hans-georg. Philosophical hermeneutics. Trad. david
Linge. university of california: Berkeley, 1976. assumido criticamente por haBermaS a partir da pragmá-
tica-universal, dentre outros textos, no capítulo primeiro em: haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre
el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, cit.
que a teoria constitucional vem se debatendo ao longo dos últimos anos. e para
enfrentar esse desafio é necessário mergulharmos nas dimensões hermenêutica e
pragmática-universal da linguagem, no processo de modernização da Sociedade,
de forma que alcancemos uma adequada compreensão do direito moderno, como
aqui se tem feito, e da própria Sociedade.
e levando isso adiante, somente podemos concluir que o direito não mais
pode ser pretendido desde uma postura convencionalista; não podemos pretender
mais encarar o direito como um “conjunto de normas convencionalmente acor-
dadas por seus afetados ou por seus representantes”... essa compreensão é incapaz
de levar a sério todo o processo de modernização do direito... É incapaz de com-
preender que o direito pode ser assumido como esgotado em regras convenciona-
das, porque sempre surgirá o problema daquelas questões sobre as quais antes
sequer houve qualquer “acordo travado”, o que acaba abrindo espaços para o jul-
gador, em face dessa “nova” situação, decidir com base não no direito, já que não
haveria uma regra para o caso, mas com base naquilo em que pretensamente pode-
ria ser apreendido como o “espírito do direito”, ou o “espírito do povo”, ou a “fina-
lidade da lei”, enfim, com base em diretrizes ético-políticas, ou morais, incapazes
de garantir a imparcialidade do julgar.
exatamente por esses problemas é que, retomando dWorKin, este afirma que
somente podemos interpretar o direito adequadamente na medida em que o assu-
mamos como uma construção que vem se desenvolvendo desde o passado. o
direito há que ser interpretado como fruto de um único autor, qual seja, a comu-
nidade jurídica, que vem desenvolvendo esta sua “obra” desde o passado... assim,
o desafio nosso hoje é continuar, da melhor maneira possível, aquilo que desde o
passado vem se desenvolvendo; seria alcançar o sentido dessa prática de forma a
melhor desenvolvê-lo aqui, mas este sentido não pode ser dado pela convicção
particular de um juiz que se julga como legitimado a oferecer o rumo do direito.
afinal, o direito tem uma ambição para si mesmo,79 qual seja, a busca da sempre
correta interpretação para um caso concreto, e este desafio há que ser alcançado
mediante um esforço hermenêutico do intérprete de se afastar de argumentos que
não sejam referidos ao direito e, em face dos argumentos jurídicos possíveis em
face do caso, decidir por aquele melhor, isto é, por aquele que permite, diante do
caso, levar a sério esse sentido do direito que vem se desenvolvendo.80 mais
adiante veremos que tal sentido somente pode ser melhor compreendido quando
se percebe que há uma exigência normativa subjacente à própria forma jurídica

79 cf. texto central para a compreensão do pensamento de dWorKin em: dWorKin, ronald.Law’s ambitions
for itself. virgina Law review, v. 71, n. 2, pp. 173-187, 1985.
80 dWorKin, ronald. de que maneira o direito se assemelha à literatura? uma questão de princípio, cit.;
dWorKin, ronald. Law’s ambitions for itself, cit.
moderna que transcende contextos específicos, isto é, que se encontra por detrás
dos específicos paradigmas liberal, social e procedimental, e que inclui o próprio
desafio e projeto atinente ao direito moderno, qual seja, o reconhecimento, no
maior grau possível, de iguais liberdades indistintamente a todos; somente assim
podemos, de uma melhor maneira, resgatar o que se pode propor como “ambição
do direito para si mesmo”.
ou seja, diante de um caso há sempre que se buscar uma resposta que é a
melhor resposta, ou a resposta correta, e o que nos vai dizer qual resposta há que
ser assim assumida é o próprio caráter moderno do direito e tudo o mais que nisso
se encontra co-implicado: a forma jurídica moderna, o projeto moderno do
direito, o fato de o direito ser um sistema diferenciado funcionalmente, a cons-
ciência de que o direito é fruto de processos comunicativos sempre precários e
nunca absolutos capazes de tudo prever. isso tem um impacto tremendo em nossa
concepção de direito: afinal, em face de todas essas questões co-implicadas,
somente podemos interpretar o sistema jurídico como um sistema de princípios
compartilhados intersubjetivamente. Significa afirmar que o direito não se pode
pretender reduzido a normas convencionadas, porque isso seria desconsiderar a
dimensão hermenêutica que perpassa nossas práticas comunicativas.
ora, em razão da própria complexidade do mundo moderno, e diante da
consciência que temos hoje da condição de construção do mundo moderno, o
direito há que ser assumido como um sistema de princípios compartilhados pelos
membros de uma concreta comunidade jurídica, mas que dessa mesma concreta
comunidade transcende, não no sentido de um direito natural, mas no sentido de
conexão ao caráter moderno do direito: tal nota há que se perceber atrelada não
a contextos específicos, mas, embora dependentes destes para se verificar, é refe-
rida à modernidade.
e neste sentido é que os direitos fundamentais cobram um papel central
nesse mesmo sistema de princípios que compreendemos como direito. Porque
também são direitos garantidores das condições de geração de legitimidade.
assumido como um sistema de princípios atrelado a uma forma jurídica
moderna, que constrói a si mesmo legitimamente mediante processos públicos de
discussão em que todos temos a possibilidade de participação reconhecida, e ao
mesmo tempo interpretado como incapaz de ser encarado como fruto exclusivo de
convenções explícitas, como é possível ao direito decidir sobre um caso difícil,
para usarmos a expressão de dWorKin, sem abrir mão do seu caráter moderno e,
por conseguinte, em respeito aos direitos fundamentais dos envolvidos?
o desafio da interpretação constitucional reside exatamente em permitir
uma reflexão crítica acerca dessa situação, de uma tensão argumentativa em sede
de aplicação entre a faticidade das pretensões levantadas pelos envolvidos e a vali-
dade dessas mesmas pretensões. nesse sentido é que a Teoria do discurso é bas-
tante devedora da compreensão que günTher,81 a partir do aprofundamento das
questões levantadas por dWorKin, vai oferecer no sentido de que todo o direito,
vez que sistema principiológico, é sempre, em face de um caso a ser problemati-
zado argumentativamente, em princípio aplicável. isto é, todas as normas do
direito, que em abstrato hão que ser assumidas como princípios, são, sempre, em
princípio aplicáveis diante de um caso. São as problematizações do caso, as espe-
cificidades do caso apresentadas pelas argumentações das partes que participam
em igualdade no processo de aplicação do direito, bem como as interpretações do
direito que as partes constroem, é que permitirão, ao próprio processo de aplica-
ção normativa, afastar aquelas normas que antes eram tão-somente em princípio
aplicáveis, rumo à norma capaz de ser agora interpretada como a norma adequa-
da, enfim, a regra para o caso concreto. Tal juízo de adequabilidade normativa
somente é possível de ser alcançado quando se leva em consideração que o direito,
vez que sistema principiológico, há que ser interpretado como um sistema de
princípios idealmente coerente, para utilizarmos a expressão de günTher, ou
ainda de maneira a garantir a integridade do direito, na perspectiva de dWorKin.
conectando essas questões àquela justificação normativa da própria forma
jurídica moderna, podemos entender que tal coerência normativa, ou integridade,
há que ser interpretada em face do próprio projeto moderno de reconhecimento
de iguais liberdades, na maior medida possível, a todos. isso retoma a temática no
sentido de que o problema de interpretações normativas concorrentes acerca de
um determinado caso haverá que ser superado a partir da assunção da forma jurí-
dica moderna e de suas implicações. o direito não pode ser interpretado a partir
de uma determinada concepção ética pretensamente materializada no “espírito do
povo”; nem uma decisão jurisdicional, ainda que irrecorrível, pode ser assumida
como válida, racional ou legítima. não podemos pretender qualquer interpretação
do direito como sendo interpretação igualmente válida: não é qualquer uma das
pretensões interpretativas que concorrem na decisão de um caso, que podem ser
assumidas como indistintamente adequadas. afinal, somente uma resposta há que
ser considerada a adequada, aquela que impõe sua força pela do melhor argumen-
to que então se sustenta em face das regras da comunicação, do poder comunica-
tivo, do respeito aos direitos fundamentais, da forma jurídica moderna, enfim, do
caráter moderno do direito moderno. e essa resposta, assumindo toda essa dimen-
são complexa, poderá, ao final, ser sentida, exatamente por tudo isso, como coe-
rente ao direito... afinal, o desafio do intérprete é resgatar, do pano-de-fundo
constitutivo da própria praxis comunicativa referida ao direito, os princípios que,

81 noções devedoras a: günTher, Klaus. The sense of appropriateness: application discourses in morality and
Law, cit.; günTher, Klaus. un concepto normativo de coherencia para una teoría de la argumentación jurí-
dica. Trad. Juan carlos velasco arroyo. doxa, v. 17-18, pp. 271-302, 1995.
enquanto tais, hão que ser assumidos como jurídicos; também aqui, quando não
problematizados, os princípios refogem neste pano-de-fundo, devendo, sobretudo
em face de novos casos difíceis, ser resgatados de maneira reconstrutiva, de forma
a permitir, ao final, a reconstrução do direito diante do caso.
Somente assim é que podemos vislumbrar, agora, a atividade de aplicação do
direito como aceitável, como capaz de ser racionalmente justificada em termos
comunicativos de respeito recíproco e igual às liberdades dos envolvidos. esse é exa-
tamente o motivo pelo qual não se pode pretender validamente introjetar na inter-
pretação do direito uma ordem, ou uma hierarquia axiológica, bem ao gosto de uma
jurisprudência dos valores82 que tão alto ainda fala na teoria de roBerT aLeXy.83 não
é aceitável submeter o outro aos meus valores, sempre parciais; mas é a todos acei-
tável decidir um caso tomando por base aquilo pública e comunicativamente cons-
truído em respeito às liberdades de participação de todos os possíveis afetados.
nesse sentido é que nos interessa agora retomar, em outro nível, a discussão a
respeito dos costumes como supostamente “fonte” do direito. como pudemos per-
ceber, a doutrina tradicional, seja aos moldes da escola histórica, seja aos moldes
de um neo-positivismo como o de KeLSen, vem propondo que uma prática unifor-
me, contínua, à qual os cidadãos, ou a maioria dos cidadãos, interpreta como “juri-
dicamente necessária”, equivale dizer, como “vinculante” e “exclusiva”, no sentido
de FazzaLari, seria capaz de ou fazer refletir uma norma jurídica a partir do “espí-
rito do povo”, do qual o costume seria uma manifestação, ou criar uma norma jurí-
dica, porque tal ato de produção estaria pressuposto na norma fundamental.
o traço interessante de aqui se expor é que todas essas propostas acabam assu-
mindo a aceitação do costume por parte de membros da comunidade como o núcleo
gravitacional da própria idéia de opinio juris vel necessitatis. com isso afirmamos
que para essas interpretações somente quando os indivíduos assumem uma prática
constante, ao longo de um determinado período, com traços gerais uniformes e

82 Por uma crítica à “jurisprudência dos valores” e seus pressupostos, cf.: gaLuPPo, marcelo. igualdade e difer-
ença: estado democrático de direito a partir do pensamento de habermas. Belo horizonte: mandamentos,
2002; gaLuPPo, marcelo. os princípios jurídicos no estado democrático de direito: ensaio sobre o modo de
sua aplicação. revista de informação Legislativa, Brasília, v. 36, no 143, pp. 191-209, 1999; rocha, heloísa
helena nascimento. elementos para uma compreensão constitucionalmente adequada dos direitos funda-
mentais. in: caTToni de oLiveira, marcelo (coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo
horizonte: mandamentos, 2004; Souza cruz, Álvaro ricardo de. hermenêutica Jurídica e(m) debate: o
constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial. Belo horizonte: editora
Forum, 2007.
83 cf. escritos centrais do autor, que nos permite concluir pela perda do caráter normativo do direito quando
assumida sua proposta: aLeXy, robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. ernesto garzón valdés.
madrid: centro de estudios constitucionales, 1993; aLeXy, robert. Sistema jurídico, princípios jurídicos y
razón práctica. in: derecho y razón práctica. mexico: Fontamara, 1993; aLeXy, robert. Justification and
application of norms. ratio Juris, vol. 6, pp. 157-170, 1993; aLeXy, robert. a theory of constitucional rights.
oxford: oxford university Press, 2002; aLeXy, robert. constitutional rights, Balancing and rationality.
ratio Juris, vol. 16, pp. 131-140, 2003.
envolvida numa capa de aceitação do seu “significado jurídico”, é que se estaria
diante de um “costume”. do contrário, se a prática fosse uniforme, constante e rei-
terada, sem essa suposta aceitação do seu sentido, tão-somente sociologicamente
constatável, não se poderia falar de um “costume” a refletir/criar normas jurídicas.
Tudo isso acaba por inserir o pressuposto da opinio juris vel necessitatis numa
discussão que é, por final, referente à própria modernidade. Será que o simples fato
de os indivíduos, membros de uma determinada comunidade, passarem a aceitar
que uma certa compreensão normativa há que reger suas vidas, é capaz de estabe-
lecer novos parâmetros normativos, refletidos em uma “nova norma” a ser, a par-
tir de então, assumida como uma “norma jurídica”? ou será que esta questão tam-
bém há que ser problematizada em face do caráter moderno do direito a tomar em
consideração toda a dimensão lingüístico-pragmática subjacente?
aqui já podemos com firmeza perceber a insustentabilidade da justificação
do direito apresentada tanto pela escola histórica de Savigny e PuchTa, bem
como pela proposta positivista de KeLSen. resta-nos, em face da distinção entre
discursos de aplicação e justificação normativas, enfrentar a questão dos costumes
como pretensamente capaz de nos permitir vislumbrar uma nova norma jurídica.
a referência e crítica que KeLSen faz a compreensões que vão assumir que os
costumes somente se transformariam em normas jurídicas quando assumidos
pelos Tribunais tem uma razão: afinal, à medida que o direito da modernidade,
em face da moral, possui um diferenciado aparato institucional central para sua
própria operacionalização, o reconhecimento do direito de uma Sociedade é co-
dependente, pois, de seu próprio “processamento” em foros institucionalizados.
com isso queremos dizer que as intuições normativas dos cidadãos acerca do
direito dependem, em uma certa medida, de reconhecimento institucionalizado –
por sua vez dependente de um reconhecimento capaz de gerar legitimidade em
termos comunicativos – a estabilizar, muitas vezes, o sentido jurídico dessas mes-
mas intuições. com isso, não estamos afirmando que os “costumes” sejam capazes
de ser transformados e reconhecidos como dotados de “força jurígena” quando um
tribunal decide acerca de um caso que os envolva.
muito antes pelo contrário, afirmamos que os “costumes” não são capazes de
serem assumidos como “fonte” do direito, quando se tem problematizada a con-
dição moderna do direito moderno. defendemos aqui a posição de que não é uma
mera constatação sociológica de repetição reiterada, contínua e uniforme de uma
prática, prática esta aceita pelos seus realizadores como dotada de um “sentido
jurídico”, aquilo a garantir a legitimidade, a racionalidade, enfim, da interpreta-
ção desse mesmo ato como sendo dotado de um sentido jurídico determinante.
afinal, como vimos, o direito somente pode ser assumido como construído
legitimamente quando todos temos iguais possibilidades de participar em sua pro-
dução; com isso não afirmamos, jamais, que o direito possa ser compreendido
como esgotado nas normas surgidas desse jogo público de discussão em um pro-
cesso legislativo. antes, tomamos o cuidado de esclarecer que o sistema jurídico
há que ser apreendido como um sistema principiológico, sistema este capaz de
sempre se reinterpretar em face de novos casos rumo àquela capaz de ser conside-
rada uma resposta correta para cada caso. o fato de criarmos normas em proces-
sos legislativos de discussões e acordos, não decorre que o direito há que ser
entendido como esgotado nesses acordos: o respeito à dimensão hermenêutica e
pragmática-universal referida ao direito nos permite, argumentativamente, ir
“desenrolando”, “desenvolvendo”, “des-cobrindo” o direito em face de novos
casos, vez que assumido como sistema principiológico. Tudo isso em respeito à
forma jurídica moderna, e ao próprio projeto moderno do direito, qual seja, a
busca pelo igual reconhecimento de liberdades a todos os concidadãos, na maior
medida possível – igualdade esta a ser sempre interpretada diante das especifici-
dades dos casos, e não em “bloco”.
dessa forma é que quando percebemos que a referência aos costumes de nada
mais se trata do que de uma constatação sociológica de uma repetição aceita dessa
mesma atividade, podemos concluir o quão problemática é tal interpretação.
afinal, como visto, não podemos assumir como legítimo aquilo tão-somente acei-
to pelos membros de uma comunidade jurídica; há vários sentidos para a interpre-
tação da aceitação que não aquele atrelado à aceitabilidade. a legitimidade de uma
interpretação principiológica em face de um caso concreto há que, sempre, levar
em consideração a necessidade do respeito às condições de racionalidade, de acei-
tabilidade do próprio juízo de correção normativa que se pretende – assim é que
é, pois, possível superar validamente a tensão entre a faticidade das pretensões
levantadas e a legitimidade da solução que se pretende.
não é a simples referência a uma prática realizada uniforme, constante e rei-
teradamente com a “convicção” aceita por aqueles que a realizam de que assim se
deve portar aquilo capaz de criar uma norma a ser assumida por toda a comunida-
de jurídica. Se é verdade que determinadas práticas, determinados atos, podem
ser, aproblematizadamente, sentidos pelos indivíduos como que dotados de um
sentido jurídico, não podemos, assim, ainda que esses indivíduos aceitem que
aquilo é algo a regular suas vidas comuns, encarar esse quadro como determinan-
te do sentido jurídico-normativo da referida atividade.
isso porque somente uma interpretação capaz de assumir o direito como um
sistema de princípios coerente, somente quando a integridade do direito é assu-
mida reflexivamente na interpretação de novos casos difíceis, é que podemos pre-
tender alcançar, discursivamente, o sentido legítimo de tais casos. os costumes,
dessa forma, não são capazes de criar normas jurídicas; não é a mera constatação
sociológica da opinio juris vel necessitatis aquilo a garantir um escudo interpreta-
tivo a “blindar” a própria interpretação da praxis. o que vem a garantir o sentido
jurídico de uma determinada atividade é a reinterpretação, em face dessa mesma
atividade, que se é possível fazer do direito, assumindo sua forma jurídica e seu
projeto modernos, como aquilo a ser encarado como essencial nesse processo de
interpretação.
destarte, a opinio juris vel necessitatis referida aos tradicionais “costumes” é
definitivamente capaz de servir como forte intuição acerca do direito, e de sua
interpretação, diante de um caso concreto. mas tal intuição não pode ser, de
maneira não problematizada, assumida como determinante do direito pelo sim-
ples fato de os indivíduos compartilharem dessa convicção, porque entre eles acei-
ta... antes, a pretensão de validade subjacente a essa intuição normativa há que ser
problematizada em face do direito como sistema de princípios a serem reinterpre-
tados diante daquela mesma intuição. Pode-se concluir pela validade da pretensão
normativa levantada pelos participantes do discurso, como também se pode veri-
ficar sua ilegitimidade. mas esse juízo há que ser alcançado argumentativamente
em face do direito, há que vencer somente, e tão-somente, a força do melhor
argumento: e esta se atrela não à concepção de aceitação, mas antes à idéia de acei-
tabilidade racional...
uma prática reiterada somente poderá ser assumida como capaz de ser inter-
pretada como coerente ao sistema jurídico quando os argumentos que sustentam
esse seu sentido se mantêm de pé diante de uma interpretação assumida reflexiva
e criticamente pelos participantes do discurso. destarte, a conclusão é de que
somente o direito é que pode ser assumido como “fonte” do próprio direito. mas
não no sentido de KeLSen, a tomar como central, no que tange aos costumes, a efe-
tividade e a aceitação de determinados atos reiterados pelos concidadãos. muito
antes pelo contrário, há que se compreender no sentido de que somente a partir
dos princípios jurídicos é que podemos reinterpretar o próprio direito em face de
novos casos, sempre desafiadores à sua integridade e à sua coerência, pois.
os “costumes” podem ser interpretados como consoantes, ou como contrários,
ao sistema jurídico. mas não é o fato de um contingente de indivíduos passarem a
se portar de tal forma, ou deixarem de se portar de outra forma, aquilo a justificar,
de maneira sustentável, a criação de uma norma jurídica ou a não mais existência
de outras... estas são questões que se referem à comunicação, que terá que assumir
e desenvolver o projeto moderno do direito, enfim, o respeito à liberdade e à igual-
dade de maneira reflexiva por parte de um sistema normativo institucionalizado.
os costumes, quando muito, na interpretação da aplicação do direito, hão que ser
assumidos como intuições normativas, como pré-compreensões compartilhadas, a
serem sempre problematizadas argumentativamente em face do caso concreto e do
direito como um sistema normativo idealmente coerente.
nada disso nos impede, muito antes pelo contrário, porque nos convida, a
entender que os chamados “costumes contra legem” tenham um papel de alta rele-
vância na interpretação do direito. diante de um caso os argumentos referidos aos
“costumes contrários à lei” haverão que ser analisados reflexivamente de maneira
a permitir a constatação ou a refutação da pretensão normativa subjacente a estes
argumentos. com isto dizemos que a referência aos “costumes contra legem”, vez
que melhor assumidos como intuições normativas criticáveis, podem pôr em real-
ce determinados traços do direito que deverão ser sempre analisados diante de
cada caso apreendido em sua especificidade e perante o direito principiologica-
mente interpretado. afinal, o fato de algo ser interpretado como, em princípio,
“contrário à Lei” não significa que não esteja em conformidade com o direito...
caPíTuLo 5
da JuriSdição:
ou de uma diScuSSão acerca do conSTiTucionaLiSmo
e do PLuraLiSmo inTerPreTaTivo

i. a TíTuLo de inTrodução

em agosto de 2002, em decisão do Superior Tribunal de Justiça referente ao


agravo regimental em embargos de divergência no recurso especial nº 319.997-
Sc, 2001/0154045-5, o Senhor ministro humBerTo gomeS de BarroS, apresentou
a seguinte argumentação:

“miniSTro humBerTo gomeS de BarroS: Sr. Presidente, li, com extremo agrado, o
belíssimo texto em que o Sr. ministro FranciSco Peçanha marTinS expõe as suas
razões, mas tenho velha convicção de que o art. 557 veio em boa hora, data venia de
S. exa.
não me importa o que pensam os doutrinadores. enquanto for ministro do Superior
Tribunal de Justiça, assumo a autoridade de minha jurisdição. o pensamento daque-
les que não são ministros deste tribunal importa como orientação. a eles, porém, não
me submeto. interessa conhecer a doutrina de BarBoSa moreira ou aThoS
carneiro. decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer
nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso conso-
lidar o entendimento que os Srs. ministros FranciSco Peçanha marTinS e humBerTo
gomeS de BarroS decidem assim, porque pensam assim. e o STJ decide assim, por-
que a maioria de seus integrantes pensa como esses ministros. esse é o pensamento
do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental
expressarmos o que somos. ninguém nos dá lições. não somos aprendizes de nin-
guém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de
que temos notável saber jurídico – uma imposição da constituição Federal. Pode não
ser verdade. em relação a mim, certamente, não é, mas para efeitos constitucionais,
minha investidura obriga-me a pensar que assim seja.

Peço vênia ao Sr. ministro FranciSco Peçanha marTinS, porque ainda não
me convenci dos argumentos de S. exa.

muito obrigado.”
Tal postura do Senhor ministro nos faz questionar, exatamente, qual o limi-
te e, afinal, qual o papel da atividade e do ato do julgar. dessa forma, nos faz neces-
sário questionar, pois, em que sentido podemos constitucionalmente assumir a ati-
vidade jurisdicional? enfim, de que maneira podemos compreender o “proceder
adequado” da atividade do julgador?
as infelizes palavras do ministro nos fazem lembrar as primeiras linhas de
um antigo livro, qual seja, o discurso do método, em que renÉ deScarTeS, partin-
do, todavia, de pressupostos, os quais hoje não poderiam ser mais assumidos críti-
ca e reflexivamente como aceitáveis, faz a seguinte afirmação, hoje irônica, mas
aqui nesse contexto bastante plausível:

“o bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão
bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer
outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.”1

certamente o Senhor ministro humBerTo gomeS de BarroS deve considerar-


se dotado de extremo bom senso. como poderíamos ser levados a acreditar que
inúmeros outros julgadores também considerar-se-iam da mesma forma, ainda
que tenham posicionamentos jurídicos diferentes no que tange às mesmas ques-
tões, necessariamente coloca-se uma questão: se cada um acreditasse ser “livre”, a
partir de seu convencimento pessoal, subjetivo, para decidir os casos que lhes fos-
sem apresentados, acabaríamos por ser obrigados a vislumbrar a jurisdição como
“vontade dos juízes”, e não como uma instância de aplicação do direito. isso por-
que, na exata medida em que o “bom senso” é algo “tão bem dividido”, tornar-se-
ia impossível pretender racionalidade na aplicação do direito... afinal, o juiz há
que decidir de acordo com o seu “bom senso” ou em conformidade com aquilo que
o direito lhe diz para o caso?

ii. o “oBServador-neuTro” e o “ParTíciPe-imParciaL”:


diSTinçõeS enTre deScriçõeS e reconSTruçõeS do direiTo

certamente, na resposta à questão anterior, poderíamos constatar que as opi-


niões se dividiriam quanto a uma série de pontos. e essas opiniões aqui serão retra-
tadas em dois grandes blocos a reunir razões que seriam relevantes nesse dissen-
so. nos valeremos das metáforas do “observador-neutro” do direito e do “partíci-

1 deScarTeS, rené. discurso do método: para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências.
in: descartes. Trad. J. guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: nova cultural, 1996, p. 65.
pe-imparcial” do direito para melhor desenvolver os argumentos centrais nessa
discussão.
assumindo uma postura meramente descritiva e externa ao direito, o “obser-
vador-neutro” certamente partiria para responder à questão afirmando que, defi-
nitivamente, o juiz, para decidir um caso concreto, deve, sim, levar em considera-
ção o direito. e por direito compreende o observador como o conjunto de nor-
mas que, firmadas em acordos expressos, ou até mesmo tácitos – mas capazes de
serem reportados à conduta dos cidadãos –, são aceitas por todos como normas de
cunho jurídico. assim, o processo legislativo se tornaria uma peça central na con-
sideração do observador-neutro que, de sua observação, conseguiria vislumbrar
referido processo como um genuíno momento de criação normativa.
Por suas observações, também sabe o observador-neutro que jamais seria
possível pretender únicas soluções para casos familiares, quanto mais para casos
difíceis. isso porque observando várias decisões para casos afins, não acredita ser
possível decidir de maneira definitiva e correta um caso: em razão de vários juí-
zes sempre decidirem casos semelhantes de maneira completamente diferente,
acredita não ser plausível a pretensão de que para cada caso haja sempre uma
única resposta a ser assumida como adequada, correta, pois, ao mesmo. assim,
acaba por vislumbrar como às vezes não relevante a assunção séria de todos os
argumentos trazidos pelas partes na construção do processo e que dizem respeito
à reconstrução do caso e do direito.
o observador-neutro, muitas vezes espantado com o desenvolvimento da ati-
vidade jurisdicional por muitos, acaba entendendo que não poucas vezes o próprio
julgador se volta contra os argumentos construídos, ainda que com sua participa-
ção, no curso do processo, devorando-os, ignorando-os em sua própria decisão.
isso leva o observador-neutro a entender o juiz como uma figura mítica, um deus
a encarnar o papel do “senhor” da decisão, escolhendo, dentre possibilidades,
aquela leitura que ele entende mais adequada a partir do “seu livre-convencimen-
to”. e esse juiz cronoS vai buscar fundamentar seu ato em uma variada sorte de
razões que podem se fazer patentes ao observador-neutro, o que, inclusive, o leva
a acreditar que decidir um caso concreto à luz do direito seria algo extremamen-
te fácil, já que os mais variados argumentos podem ser chamados a justificar um
posicionamento jurisprudencial.
cronoS muitas vezes acredita que não há que fundamentar sua decisão, ou se
até mesmo acredite que tenha que fazê-lo, assim o faz por mera “formalidade”, já
que muitas vezes encarna seu mítico e poderoso papel a estabelecer que, pelo fato
de ser juiz, sua decisão seria per se válida. e essa validade, segundo pôde consta-
tar o observador-neutro, várias vezes é justificada em termos de um princípio da
autoridade do julgador. em outras situações cronoS pode não exaltar toda sua
fúria e buscar fundamentar suas decisões em critérios “medianos” de “bom senso”
ou “senso comum”, decisões que fazem nosso observador se sentir satisfeito, já que
uma certa justificação da decisão seria apresentada.
uma situação mais complicada que se coloca a cronoS, e que nos reporta
nosso observador-neutro, é a referente ao surgimento de casos anteriormente não
decididos. muitas vezes percebeu nosso observador que cronoS é colocado diante
de determinadas situações jurídicas que jamais foram decididas e que, também, não
haveria qualquer norma expressa para resolvê-las, seja porque tal situação jamais
fora objeto de consideração de qualquer norma convencionalmente firmada, seja
expressamente num processo legislativo, seja tacitamente na praxis cotidiana
representada pelos “costumes” daquela Sociedade. e nosso observador é capaz de
nos relatar que mesmo diante desses casos, em que não se teria qualquer norma
anterior para decidi-los, já que entende o direito como um conjunto de normas
acordadas, seja tácita ou expressamente, enfim, um conjunto de regras convencio-
nadas, cronoS é levado a decidir, mas não a partir de uma norma que o conferisse
embasamento argumentativo no que tange ao cerne da questão em foco. antes, é
possível observar que cronoS decide criando soluções, devorando as pretensões de
direito e de deveres presentes nas argumentações dos afetados pela decisão e dis-
cricionariamente oferecendo aquilo que ele entende como a sua solução adequada
para o caso. muitas vezes é possível perceber que tal juiz se vale de construções
perigosas, capazes de serem remontadas à escola da exegese, e sem qualquer sus-
tentabilidade mais profunda, como a referência à “intenção da lei” ou à “intenção
do Legislativo”2 para decidir esses casos difíceis. Também não é raro de ser levado
por argumentos fáceis e manipuláveis, sempre referentes a noções como as de “bem
comum” e “interesse público”, sempre interpretados à luz de seu ponto de vista.
Tudo isso porque as conclusões a que o observador-neutro pode chegar dizem
respeito ao fato de que, no conjunto de suas anotações, o direito haveria que ser
compreendido como um sistema de regras, um conjunto de normas acordadas, con-
vencionadas, e que na falta de uma convenção abriria a possibilidade ao julgador
de inventar, criar, discricionariamente, a solução para esses novos casos. nesse sen-
tido, não vai entender que o direito se reduziria a textos legislativos, muito antes,
acaba também por assumir os costumes como fatos capazes de gerar novas normas
jurídicas: afinal, os costumes são encarados como acordos tácitos, a gerar em todos
o sentimento de necessidade de seu cumprimento em razão de aceitarem, implici-
tamente, que se trataria de uma determinada conduta juridicamente devida. na
verdade, o que o observador acaba por concluir é que, no que tange a essas práti-
cas, o que importa é o sentimento que todos, ou a maioria dos indivíduos, nutrem
em relação a um dado comportamento. acaba por entender que a eficácia de um

2 retomaremos esta questão no capítulo seguinte.


determinado comportamento cobra um papel determinante e fundamental: norma;
afinal, é assumido como aqueles acordos observados e aceitos por todos e, como
tais, dotados de eficácia. Quando muito furioso, cronoS acredita que nem a aceita-
ção seria indispensável: bastaria o estado garantir sua decisão, impondo suas “nor-
mas”, para que sua atividade jurisdicional estivesse satisfeita.
Por outro lado, outro sujeito, ao pretender compreender o direito, vem a
assumi-lo desde uma ótica de um participante-imparcial. e àquela pergunta ini-
cial, tal participante da comunidade política, vai também compreender, mas a par-
tir de outros pressupostos, que o juiz há que sempre decidir casos concretos a par-
tir do direito. na verdade, este intérprete da comunidade jurídica vai disparar
várias críticas à compreensão alcançada pelo observador-neutro acerca do direito
e da atividade jurisdicional.
Primeiramente, vai entender o participante-imparcial que o direito não há que
ser compreendido como um “conjunto de normas convencionalmente firmadas”.
isso porque esse sujeito, por participar das discussões jurídicas da Sociedade, vai per-
ceber que não se pode pretender reduzir o direito a um conjunto de normas con-
vencionadas, acordadas, seja expressa ou tacitamente, em acordos legislativos e/ou
em uma prática cotidiana reiterada. afinal, entende o participante que a complexi-
dade do direito não pode ser reduzida em previsões convencionais; o direito é
muito mais complexo do que aquelas hipóteses e situações previamente pensadas e
acordadas entre sujeitos historicamente situados. isso não significa que o participan-
te não vislumbre acordos ou convenções legislativas como referidas ao direito. o
que o partícipe-imparcial nos pretende informar é que jamais qualquer legislação
será capaz de esgotar, por prever anteriormente, todas as situações que no presente
e no futuro podem se fazer juridicamente relevantes. o fato de convenções legisla-
tivas, oriundas de um processo legislativo, serem referenciais argumentativos – por-
que, afinal, como participante dessa comunidade e do direito da Sociedade, assume
o peso e a dimensão da argumentação dos indivíduos – na construção de soluções
em sede de aplicação do direito, não significa, segundo pôde constatar nosso partí-
cipe-imparcial, que tais normas esgotam o conteúdo normativo do direito.
na verdade, o direito aqui passa a ser entendido como um sistema de princí-
pios, princípios que podem ser, como referido acima, construídos num processo
legislativo, mas que também podem, e são, frutos de um processo histórico de
construção e contínua reconstrução do direito dessa Sociedade. com isso, não se
confundem as normas jurídicas com a visão pretendida anteriormente pelo obser-
vador-neutro: nosso participante-imparcial argumenta que as normas jurídicas
não são sempre frutos de acordos ou convenções, muito embora sejam também
sempre pressupostas na interpretação do direito.
ainda avança, na explicação dessa complexidade do sistema jurídico, afir-
mando que tais princípios são desdobramentos das ambições que o direito apre-
senta a si mesmo, são reinterpretações de normas jurídicas na busca do sentido do
direito, qual seja, a busca por igual reconhecimento, na maior medida possível, de
direitos fundamentais a todos. a essa conclusão chegou nosso participante exata-
mente porque não pretendeu compreender o direito desde uma mera ótica de
observador “externo” ao sistema, mas muito antes pelo contrário, a partir de uma
perspectiva interna ao direito, e às suas argumentações, às suas pretensões, e assim
compreendeu que o direito da modernidade apresenta, a si mesmo, um sentido,
uma pretensão argumentativa a ser em todo caso concreto considerada.
isso instiga nosso participante, que não se conforma com as conclusões do
observador-neutro que outrora afirmou que para casos concretos, sejam familia-
res, sejam difíceis, jamais poderiam ser pretendidas respostas corretas, adequadas,
a cada um. a partir de sua postura diferenciada, o participante, por pretender
entranhar nas argumentações jurídicas e em seus sentidos, vai perceber que para
todo caso concreto é sempre possível alcançar a construção de uma resposta cor-
reta. em face do fato de que vários juízes decidem casos semelhantes de maneira
diferenciada, o participante-imparcial nos alerta que isso jamais pode significar
uma conclusão pela irracionalidade do ato de julgar. alerta-nos no sentido de que
tal constatação sociológica é carente de problematizações em sede de sua legitimi-
dade, ou validade, em termos fortes. Tudo isso porque, mais uma vez diferente-
mente da proposta apresentada pelo observador, nosso participante vai compreen-
der como devida a sempre assunção séria, por parte do julgador, de todos os argu-
mentos trazidos pelas partes na construção do processo e que, pois, se referem à
reconstrução do caso e do direito... assim, os argumentos trazidos pelas partes,
hão que ser analisados imparcialmente, e a isso nosso participante propõe que o
julgador deve sempre levar em consideração o peso argumentativo das pretensões
levantadas pelas partes no próprio processo jurisdicional. a única solução correta,
adequada, para o caso, somente se pode fazer construir a partir do momento em
que os argumentos relativos ao caso concreto, e às suas co-implicações jurídicas,
são assumidos de maneira determinante pelo julgador. o juiz jamais pode ser con-
siderado como cronoS a devorar e destruir os argumentos das partes: antes, o juiz
há que perceber que sua atividade está definitivamente entreleçada àquilo cons-
truído e reconstruído no bojo do processo jurisdicional.
isso leva o participante-imparcial a compreender o juiz, metaforicamente,
também como uma figura mítica, como um herói, como hÉracLeS, que despren-
de uma enorme força intelectual na construção das soluções adequadas a cada
caso. hÉracLeS não tem a “liberdade” ou a “fúria devoradora” de cronoS.
hÉracLeS há que fundamentar seu ato de julgamento não em quaisquer razões que
“livremente” considere, de acordo com sua vontade, plausíveis para o caso. antes,
hÉracLeS há que se envolver, há que aprofundar no caso, e nos argumentos das
partes, há que entender o contexto, e os pressupostos que sua decisão exigem, sem
que isso signifique deixar de ser imparcial, mas, por outro lado, isso definitiva-
mente não significa ser neutro... a neutralidade é algo questionado por nosso par-
ticipante exatamente porque ele mesmo não entende como é possível a pretensão
de “neutralidade”, na medida em que vai compreender que a construção do
direito, e da Sociedade, somente se dá através da comunicação; e para que nós
possamos nos comunicar é necessário compartilharmos de determinados pressu-
postos comunicativos, de determinadas pré-compreensões sobre as quais não
podemos pretender, divinamente, nos manter neutros...
diferentemente de cronoS, hÉracLeS entende ser mais que necessário fun-
damentar sua decisão. aliás, o grande esforço desprendido por hÉracLeS se refere
exatamente à necessidade de se fundamentar, em face de todos os argumentos
apresentados, aquela interpretação e solução do caso, e para o caso, que ele com-
preende como adequada, mas não a partir de seu “bom senso” ou a partir de seus
valores, mas, muito antes pelo contrário, a partir de pressupostos comunicativos
referidos ao direito e que são compartilhados, ou compartilháveis, por todos na
Sociedade. e tais pressupostos são aquilo que faz a ligação entre o sentido do
direito e a própria possibilidade de uma única resposta correta para cada caso.
nosso partícipe-imparcial entende que são exatamente os princípios jurídicos, vez
que pressupostos comunicativos referidos ao direito, que hão que ser considera-
dos como determinantes na interpretação do próprio direito. e o participante,
exatamente por se aprofundar nesses pressupostos, e não pretender observá-los
desde fora e de maneira “neutra”, nos explica que uma compreensão adequada
desses princípios cobram, na própria construção do direito moderno, um sentido,
qual seja, a busca por igual reconhecimento de direitos fundamentais indistinta-
mente a todos na maior medida possível... afinal, essa há que ser considerada a
ambição do direito moderno para si próprio, qual seja, o reconhecimento, no
maior grau possível, de iguais liberdades fundamentais a todos. o sentido do
direito da modernidade há que ser interpretado como aquilo que os próprios pres-
supostos de interpretação e compreensão do direito moderno nos informam...
nosso participante-imparcial se assusta com essa complexidade do direito, e,
de maneira diametralmente oposta à do observador-neutro, conclui que a tarefa
de construir uma decisão válida para cada caso é algo extremamente difícil, à
medida que determinadas razões específicas, em face do processo jurisdicional e
dos argumentos apresentados pelas partes, hão que ser desveladas, descobertas,
pelo juiz. isso talvez é que justifique a força da qual hÉracLeS é dotado.
argumentos de autoridade não podem ser assumidos, nesse contexto, como capa-
zes de satisfazer a complexidade do ato de julgar. argumentos de “bom senso”,
“senso comum”, “interesse público” ou “bem comum” não são adequados para
satisfazer a fundamentação da decisão. nosso participante denuncia que embora o
observador-neutro pôde verificar fundamentações nesses sentidos, tais práticas
vieram a desconsiderar uma interpretação coerente desse sistema de princípios.
Se o observador-neutro vislumbrava o juiz como um juiz-cronoS, isso se
deve, dentre outras razões, ao fato de compreender o direito como um sistema de
regras convencionadas, a sempre deixar fora de consideração determinadas ques-
tões que no presente, ou ainda no futuro, ocorrem ou ocorrerão, e cujas normas
jamais conseguiriam lidar com essa complexidade social. Por outro lado, o parti-
cipante da comunidade jurídica acredita que não podemos entender o direito
como o conjunto de descontínuas convenções assumidas expressa ou tacitamente.
antes, vai assumir o direito como uma obra social, como uma construção históri-
ca de sua comunidade política embasada sobre pressupostos e princípios capazes
de permitir desdobramentos e reinterpretações das questões, por mais novidade
que consigo tragam. assim é que quando hÉracLeS é colocado diante de um caso
que jamais fora objeto de consideração por qualquer convenção normativa num
processo legislativo – e ainda que o tivesse sido –, não deve renunciar à possibili-
dade de decidir o “novo” e também não haverá que assumir sua tarefa acreditan-
do que qualquer resposta seja válida em razão de sua autoridade.
hÉracLeS é uma figura, antes de mais nada, humilde e aberta ao conhecimen-
to dos argumentos das partes e a novas interpretações do direito. Justamente por
não se acreditar superior aos outros membros de sua comunidade jurídico-políti-
ca, hÉracLeS apesar de também se achar dotado de “bom senso” não é, em razão
de sua postura em face dos demais, capaz de considerar-se dotado de um senso
melhor que o dos outros. nem de longe se confunde com a arrogância de cronoS,
que faz das partes do processo uma platéia para suas bênçãos. antes, hÉracLeS vai
assumir as partes como participantes da construção daquele processo, apresentan-
do argumentos pró e contra determinadas pretensões, pretensões essas a serem
deferidas, ou não, pelo julgador. e se hÉracLeS é humilde, ao mesmo tempo é tam-
bém uma criatura extremamente rigorosa na análise dos argumentos e na constru-
ção de suas respostas. na verdade, hÉracLeS vive em constantes dilemas acerca de
como interpretar cada caso à melhor luz do direito moderno. e, para superar esses
dilemas, hÉracLeS não nega a complexidade de sua tarefa, mas canaliza toda sua
força no aprofundamento dos pressupostos sobre os quais se desenvolve a praxis
jurídica moderna na busca da solução para o caso. e assim procede hÉracLeS
tomando como ponto de interpretação do direito os argumentos co-implicados
das partes e relativos não só ao fato, mas também ao próprio direito.
essa postura de hÉracLeS é bem entendida pelo nosso partícipe-imparcial. o
nosso estudioso compreende que hÉracLeS não é um ser “superior” a qualquer
cidadão. antes, interpreta que o juiz somente pode decidir qualquer caso de
maneira adequada, porque coerente, se se esforçar por construir uma resposta que
seja publicamente sustentável em face dos pressupostos que compartilhamos e que
dizem respeito ao direito como um sistema idealmente coerente de princípios
jurídicos. Todas essas questões são assumidas reflexivamente tanto por hÉracLeS,
quanto por nosso participante-imparcial, porque ambos acabam por compreender
que interpretar o direito pressupõe a interpretação de que participamos, todos, da
construção desse mesmo direito. afinal, o direito se constrói socialmente pelo
medium da comunicação que, por sua vez, se torna possível em face de pressupos-
tos, pré-compreensões, compartilhados intersubjetivamente por todos nós, cida-
dãos participantes dessa mesma comunidade política. a neutralidade, então, é
percebida como uma miragem, enquanto a imparcialidade é assumida como uma
tarefa que exige esmero.
Quando da decisão de uma decisão, hÉracLeS tem a convicção de que não
cabe a ele criar, inventar, qualquer norma para o caso. ao assumir o direito como
um sistema de princípios historicamente interpretáveis, o nosso juiz-herói, exata-
mente porque mortal, vai se esforçar para construir uma decisão que não seja sim-
plesmente aceita pelas partes afetadas por seu veredicto. isso porque hÉracLeS não
quer fazer acreditar que sua decisão seja válida em razão de sua mera autoridade
de juiz. antes, a humildade e o rigor de hÉracLeS, dele exigem que as partes não
o confundam com cronoS e, para tanto, a fundamentação que deverá ser apresen-
tada tem que levar em consideração os direitos e os deveres que estão em jogo
naquela argumentação. assim, avança hÉracLeS na crença de que lhe será possí-
vel alcançar, a partir dos princípios jurídicos, interpretáveis à luz do sentido do
direito, qual seja, o igual reconhecimento de liberdades a todos, a resposta que
seja adequada, correta, pois, àquele caso.
e a imparcialidade dessa decisão não estará jamais no fato de o juiz não poder
decidir em conformidade com a argumentação apresentada por qualquer uma das
partes. muito antes pelo contrário, a imparcialidade de hÉracLeS tem a ver mais
diretamente com o rigor de sua fundamentação, a sempre se pautar por argumen-
tos jurídicos e não axiológicos, pragmatistas ou morais.3 afinal, hÉracLeS não tem
pretensões de assumir o local de quem quer que seja na construção do direito. ele
sabe que sua função não é a de criar normas jurídicas – ao menos como cronoS
pensaria –, mas de interpretá-las, aplicando-as caso a caso. destarte, o papel da
jurisdição há que ser distinguido do papel da legislação. e é nesse seu compromis-
so constitucional que hÉracLeS sabe que sua tarefa é difícil e que não é qualquer
sorte de argumentação que se apresenta como capaz de justificar sua decisão.
afinal, diferentemente de cronoS, que entende que o direito não apresentaria,
em “casos-limite”, soluções para todos os casos, razão pela qual partia para a com-

3 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 263 et seq.
preensão da “intenção da Lei” ou dos “legisladores”, para, ao final, e de maneira
subvertida, corromper a interpretação naquilo que ele gostaria que o direito fosse,
hÉracLeS assume que o direito não é invenção exclusivamente sua e que não é ele
quem poderia, arrogantemente, pretender decidir como deveria ser o direito.
antes, se volta hÉracLeS ao passado do direito, para compreender a sua intenção,
o seu sentido, enfim, qual o rumo que o direito, desde o passado, vem apontando
como sendo a direção interpretativa a ser assumida na praxis jurídica.
e a partir da compreensão do ideal subjacente à praxis jurídico-moderna de
reconhecimento de iguais liberdades a todos na maior medida possível é que
hÉracLeS pode, finalmente, construir, diante dos argumentos apresentados no curso
do processo, sua decisão em face do que esses princípios jurídicos nos informam
perante as especificidades de cada caso. e isso pode significar que uma decisão impar-
cial se dê, em determinadas situações, ao assumir in totum, ou em parte, a argumen-
tação de um dos participantes no processo jurisdicional, como também pode impli-
car o não-reconhecimento das pretensões normativas de quaisquer das partes.
assim é que nosso partícipe-imparcial conclui que os “costumes” não podem
ser assumidos como fatos geradores de normas jurídicas. antes, tal como hÉracLeS
se esforçou por construir uma solução que fosse não meramente aceita pelas par-
tes daquele processo, mas sim argumentativamente sustentável a qualquer cidadão
daquela comunidade jurídica, enfim, aceitável, compreende agora o participante
que os costumes jamais criam normas, pelo fato de que não há que ser considera-
do como evento criador de norma jurídica o simples fato de uma determinada
conduta ser reiteradamente praticada com o sentimento compartilhado acerca da
“necessidade jurídica” de sua observação. antes, conclui que as pretensões norma-
tivas referentes aos costumes podem servir como fortes intuições normativas acer-
ca de seu sentido jurídico que, por fim, somente poderá ser constatado em face
desse sistema de princípios que o direito a interpretar representa. não é a respos-
ta simples daquele observador-neutro a constatar uma “convenção tácita” o que
justifica a criação de uma norma jurídica. mas, pelo contrário, tal prática somen-
te poderá ser considerada como juridicamente legítima se permitir uma interpre-
tação sustentável, porque coerente, em face dos princípios jurídicos que desde o
passado vêm se desenrolando.
Podemos perceber, de maneira bastante nítida, o quão estas questões concer-
nentes à melhor compreensão do direito como prática social se mostram refugia-
das no pano-de-fundo de nossa praxis.
em razão disso é que aqui pretendemos estabelecer um enfoque, a partir da
Teoria geral do direito tradicional – e pensada nos moldes neo-positivistas por
hanS KeLSen, daquilo que poderia ser considerado uma busca pela validade/legiti-
midade do direito em termos meramente “formais”, e também a partir de uma
Teoria da Sociedade aos moldes de niKLaS Luhmann, que vai interpretar tais ques-
tões como devedoras de uma leitura tão-somente funcional-objetivante (iii) –,
rumo a uma compreensão democrática e entendida em termos comunicativos do
que seja uma construção e uma reconstrução legítimas, em termos fortes, do
direito (iv). Para tanto, não devemos pretender interpretar as instituições de apli-
cação do direito como fechadas ou cerradas no saber de especialistas, ou naqueles
que nas mesmas se encontram em uma posição privilegiada, porque interna ao
próprio aparato institucional: antes devemos nos atentar para o fato de que a vali-
dade, em termos fortes, de qualquer decisão jurisdicional há que antes estar vin-
culada a uma dada compreensão de democracia que admita, e permanentemente
se mantenha aberta, à participação de todos os afetados a fim de que a própria
decisão se construa como publicamente sustentável (v).
Toda essa reconstrução se faz inevitável quando pretendemos enfocar a ques-
tão da interpretação jurídica a fim de que interpretemos, inclusive, o que possa ser
assumido como um desenvolver constitucionalmente adequado da atividade juris-
dicional.

iii. a BLindagem do Poder de cronoS ProPorcionada Por


PreSSuPoSToS (neo-)PoSiTiviSTaS de inTerPreTação do
direiTo em KeLSen e Luhmann: oS riScoS Para uma
comPreenSão da aTividade JuriSdicionaL

a pretensão de KeLSen, naquela que pode ser considerada sua principal e cen-
tral obra, era, antes de mais nada, realizar uma ciência do direito que, do ponto
de partida teorético eleito, qual seja, o neo-positivismo, implicava uma descrição
neutra de um objeto delimitado. destarte é que a idéia da Teoria Pura se delineou:
KeLSen pretendia realizar um estudo puro do direito e isso implicava, de início, a
superação de influências filosóficas (metafísicas), religiosas, políticas, morais,
sociológicas, na interpretação e conseqüente descrição do que poderíamos consta-
tar como sendo direito. É claro que o autor não dirigia esse ideal de “pureza” ao
próprio processo de conformação do direito: reconhecia que o direito, quando da
criação de normas (legislativas, jurisdicionais ou administrativas), seria suscetível
a questões políticas, tanto que, por exemplo, em matéria de interpretação, KeLSen
vai afirmar que não poderíamos pretender uma única resposta adequada para um
caso porque haveria uma margem de escolha por parte daquele que deveria apli-
car a norma e que, assim, submetido estaria esse seu ato não a uma ciência do
direito, mas antes à Política do direito.4 afinal, podemos aqui ser levados a com-

4 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 387 et seq.


preender a própria postura de KeLSen como extremamente próxima à daquele
observador-neutro – a pretensão do autor era a de “descrever neutramente” o
direito desde sua óptica de mero observador, pois, “neutro” do próprio direito.
mas foi pretendendo delimitar o direito como objeto para, assim, descrevê-
lo, que KeLSen procedeu à compreensão de que somente poderíamos falar em uma
ciência do direito quando nos desvencilhássemos de quaisquer influências “exter-
nas” no estudo e descrição das normas jurídicas. Procedeu, portanto, a uma distin-
ção, segundo ele intuitiva, entre ser e dever-ser: afinal, quando falássemos que
algo “seria”, tratar-se-ia de situação bem distinta de quando afirmássemos que
“devesse-ser”. a partir dessa distinção intuitiva que, segundo o próprio autor, não
poderia ser aprofundada – porque a toma de uma perspectiva naturalizante –, é
que KeLSen vai concluir que as normas, enquanto aquilo a que o direito se refere,
não se confundem com os fatos.
essa cisão proposta pelo autor lhe serve como substrato para justificar a
maneira pela qual vai buscar fundamentar a validade do direito: afinal, a partir do
momento em que o direito se refere a uma esfera do dever-ser, sua validade não
poderia, supostamente, ser reduzida à mera faticidade daquilo verificado na esfe-
ra do ser. Se as ciências referentes a essa esfera a explicariam com base em um
princípio da causalidade – que pretende, assim, estabelecer relações de causa e
efeito –, por outro lado as ciências normativas, nas quais a ciência do direito para
KeLSen estaria inserida – na medida em que compreende a ciência do direito, ao
menos em sede de Teoria Pura do direito, como, sobretudo, uma mera dogmática
jurídica descritiva –, lançariam mão não do princípio da causalidade, mas do prin-
cípio da imputação para descrever o seu objeto de investigação, qual seja, o pró-
prio direito.5
isso porque o princípio da causalidade nos serveria para pensar a conexão
entre dois acontecimentos referidos à esfera do ser, sendo que, no que tange a essa
conexão, não haveria que se falar em um ato de vontade mediador entre causa e
efeito. Por outro lado, quando pensássemos em termos do princípio da imputação,
poderíamos verificar que, entre o pressuposto da sanção, isto é, o ilícito, e a pró-
pria sanção, haveria sempre um ato de vontade a mediar e a determinar esta cone-
xão: entre, por exemplo, um homicídio ilícito e a pena de reclusão a ser imposta,
intermediaria, sempre, um ato de vontade.
e aqui chegamos ao ponto que levou KeLSen a pensar toda sua Teoria Pura da
maneira que hoje a conhecemos: o que nos permitiria falar que determinados atos
de vontade pudessem ser considerados juridicamente válidos, enquanto outros não?

5 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 79 et seq.


a argumentação do autor toma como pressuposto, conforme já insinuamos
nos capítulos anteriores, a cisão entre ser e dever-ser, pois a validade do direito,
para KeLSen, estaria referida ao direito, mas isso não implicava, para o mesmo, um
isolamento em face da esfera do ser: afinal, como veremos, a eficácia acabou
cobrando um posto importantíssimo na construção teórica aqui esboçada.
Procurando responder o porquê da consideração de um ato de vontade como
sendo juridicamente válido, vai o autor procurar explicação em um raciocínio silo-
gístico: deveríamos compreender os atos de vontade que criam, ou executam as
normas, como premissas menores de um silogismo em que a premissa maior have-
ria que ser considerada uma norma a atribuir poder/competência para a própria
criação ou execução da norma. destarte, a premissa maior deste silogismo pensado
por KeLSen seria uma norma jurídica que viria a atribuir poder/competência a
alguém a fim de que este possa, movendo-se de um escalão superior a um inferior
na pirâmide normativa que, figurativamente, representaria o direito, aplicar/criar
uma norma ou executá-la. assim, se perguntássemos por que o ato de um juiz que
condena um criminoso seria juridicamente válido, bem como se indagássemos por-
que o ato de um oficial de justiça que penhora bens de outrem seria também juri-
dicamente válido, a resposta haveria que ser no sentido de que os atos de vontade
(do juiz e do oficial de justiça) hão que estar fundamentados em uma norma hie-
rarquicamente superior a conferir competência para a condenação, e poder para a
execução da penhora. a conclusão do silogismo – se o ato de vontade é juridica-
mente válido, ou não – pressuporia, portanto, a constatação de um ato de vontade
(premissa menor) e uma norma hierarquicamente superior a atribuir poder/com-
petência (premissa maior). Por isso é que KeLSen vai propor que pensemos o direito
figurativamente em uma forma piramidal: a base da pirâmide, enquanto constituí-
da dos atos de execução, seria mais larga por serem “mais numerosos” que as nor-
mas que atribuem, justamente, poder para as suas execuções.
assim é que o autor, e a partir desse silogismo, vai estabelecer uma distinção
entre a interpretação como ato de vontade e a interpretação como ato de conhe-
cimento.6 É claro que esta distinção está vinculada, porque baseada, na distinção
de partida entre ser e dever-ser. inclusive porque se KeLSen vai se preocupar em
pensar o silogismo da maneira acima apresentada, ele assim o faz como maneira
de superar a idéia de que o dever-ser estaria, ou seria, isolado do ser: afinal, a pre-
missa menor, no silogismo apresentado, sempre tratar-se-ia de um fato da esfera
do ser (um ato de vontade). a questão a ser respondida, e a isso serve o desenvol-
vimento do raciocínio silogístico, é quando esse fato da esfera do ser haveria que
ser considerado como juridicamente válido perante o próprio direito; enfim, se,

6 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 387 et seq.


para além da mera faticidade, poderia o ato também ser considerado válido juridi-
camente.
Por isso é que KeLSen vai afirmar que a interpretação que nós, enquanto
“súditos” ou enquanto cientistas, realizamos do direito não há que ser considera-
da como dotada de “validade jurídica”. Se interpretamos as normas jurídicas para
cumprir os deveres jurídicos pelas mesmas determinadas, ou para que possamos
conhecê-las cientificamente, essa mesma interpretação não se pode pretender
“vinculante” ou “válida” porque esse nosso ato de vontade, ao interpretar as nor-
mas, não é capaz de ser referido a uma norma hierarquicamente superior que con-
fira competência para que nossa interpretação crie outras normas jurídicas válidas.
Por outro lado, ao julgador, por exemplo, há conferência de competência para que
o mesmo, ao interpretar o direito, esteja a criar normas por mover-se de um esca-
lão superior a outro inferior no interior da própria pirâmide normativa – e o
mesmo pode-se dizer de um ato de execução por parte de quem tem poder para a
sua realização, enfim, pode ser considerado como juridicamente válido.
isso não implica, para KeLSen, uma desconsideração ou irrelevância das inter-
pretações oferecidas ou estabelecidas pela ciência do direito: afinal, o fato de o
cientista do direito oferecer interpretações do direito não nos permitiria concluir
que essas mesmas interpretações poderiam ser consideradas como juridicamente
válidas. não poderíamos confundir o plano da interpretação como ato de conhe-
cimento com o da interpretação como ato de vontade juridicamente válido. à
ciência do direito, na medida em que deve, nessa visão, proceder a uma descri-
ção pura do seu objeto, qual seja, o direito, caberia a fixação ou o preenchimento
de uma moldura das interpretações possíveis das normas jurídicas. o direito a ser
interpretado acaba sendo desenrolado em um pelo quadro das interpretações que
devem ser objeto investigativo do estudioso. o papel da ciência do direito se
entrelaça ao oferecimento das interpretações possíveis das normas jurídicas. mas
se, no contexto estabelecido pela Teoria Pura do direito, à ciência não cabe o
papel de criar normas, mas de tão-somente interpretá-las fixando a moldura das
interpretações possíveis, por outro lado não significa que a ciência não tenha um
papel relevante quando da aplicação: justamente por oferecer a moldura dentro da
qual o aplicador pode decidir, acaba o conhecimento científico sendo, desde uma
perspectiva funcional, um alívio para a própria operacionalização do sistema.
mas o fato de a ciência oferecer “as interpretações possíveis” não implica, por
outro lado, que à mesma seja dada a possibilidade, segundo KeLSen, de estabelecer
qual seria a resposta correta, ou única, para um dado caso concreto. isso porque
não se trataria de uma questão científica, mas de Política do direito, justamente
porque ao aplicador seria dada uma margem de indeterminação que, através de
seu ato de vontade, seria superada no caso concreto. e, justamente, na medida em
que o ato de vontade para ser válido haveria que estar fundamentado em uma
norma hierarquicamente superior a conferir poder/competência ao sujeito, é que
qualquer leitura, dentre as possíveis, eleita pelo aplicador/executor da norma
haveria que ser considerada juridicamente válida. essa questão “política”, para
KeLSen, não pode ser pretendida como superável rumo à compreensão de que cada
caso tem uma única, e melhor, decisão: desde que a aplicação do direito, ou a sua
execução, se dê no interior da moldura, isto é, no sentido de quaisquer das “inter-
pretações possíveis”, o ato de vontade seria juridicamente válido, pois quem assim
o quis procedeu de acordo com a premissa maior que se trata de uma norma que
atribui poder/ competência a uma autoridade para decidir nos limites do próprio
ordenamento jurídico.
do ponto de vista interno à moldura, este posicionamento de KeLSen leva à
conclusão de que o aplicador, mas também o executor, pode optar por quaisquer
das leituras possíveis: direitos e deveres seriam restringidos ou determinados não
como sendo a solução adequada, mas na medida em que se apresentam como uma
decisão meramente possível: bastaria, por exemplo, o juiz ter querido optar por
outra “interpretação possível” para que a sua decisão fosse igualmente válida... o
decisionismo ao qual a teoria kelseniana chegou há que ser compreendido junta-
mente com a discricionariedade que a mesma acaba reconhecendo àquele que tem
competência atribuída para criar normas: o julgador – e KeLSen enfoca, sobretudo,
a hipótese de criação de normas individuais – que em sua decisão opta por uma
leitura normativa para além daquelas da moldura que a norma a interpretar repre-
senta, não deixaria de, por isso, tomar uma decisão válida; seria válida, ou melhor,
passaria a ser válida quando não mais questionável, isto é, quando tal decisão não
pudesse ser anulada, enfim, quando tivesse passado em julgado.
o giro decisionista e funcional na teoria kelseniana nos leva a concluir que a
validade das decisões estariam atreladas somente ao poder ou competência atri-
buídos ao sujeito autorizado e que este, ao decidir de qualquer forma dentre as
possibilidades existentes, estaria aplicando e criando uma norma válida. mas, caso
decida fora da moldura que o direito a aplicar representa, a decisão não
seria,”desde sempre”, válida, já que o que garantiria a chancela de sua validade
seria sua imutabilidade, isto é, que não mais pudesse ser questionada institucional-
mente. isso não deixa de ser um contra-senso na teoria do autor pois se, para o
mesmo, toda norma positiva tem como fundamento uma outra norma, positiva
(posta) ou não (pressuposta/norma fundamental), a validade dessas decisões, para
além da moldura, não seria dada pela referência a uma norma que atribua poder
ou competência: afinal, a nenhum juiz é atribuída competência para julgar para
além do direito – ressalvadas as colocações que KeLSen faz, por exemplo, a partir
do artigo 1º do código civil suíço, como vimos anteriormente. a decisão seria
considerada válida desde uma óptica funcional a levar em conta a sua inquestio-
nabilidade reduzindo aqui, e mais uma vez, validade à faticidade da decisão em
face de sua não-questionabilidade.
Toda essa questão há que ser entendida no sentido de que KeLSen compreen-
de o direito como uma ordem normativa dinâmica, e não regida por um princí-
pio estático.7 ordens normativas regidas pelo princípio estático admitiriam como
válidas normas individuais, ou mesmo outras normas gerais, que tivessem seus
conteúdos deduzidos de uma norma geral. o direito, afirma o autor, não pode ser
pensado nesses termos, pois o fato de alguém cometer um ilícito não torna válida
nossa decisão particular em querer aplicar certo dispositivo normativo deduzindo
do mesmo a norma para o caso particular. a validade da norma individual não
pode ser pensada em termos de conteúdo a ser atualizado naquela circunstância
concreta, mas antes deve referir-se a um aspecto “formal” de atribuição de poder
ou competência para, justamente, aplicar uma norma àquele caso específico.
assim, e por exemplo, o fato de alguém cometer um homicídio doloso não nos
legitima a decidir a sua pena de reclusão. nossa interpretação enquanto, por
exemplo, estudiosos do direito não passaria de um ato de vontade inserido na
esfera do ser, sem qualquer validade jurídica porque não fundamentado em uma
norma hierarquicamente superior a nos conferir poder/competência para aplicar
o direito no caso concreto. a decisão do juiz pode ser, no que tange ao conteúdo,
idêntica à nossa; sua validade se encontra não no conteúdo do decidido, mas no
fato de seu ato de vontade, sua autoridade, estarem respaldados por uma norma
hierarquicamente superior. Por isso afirmamos que KeLSen defende uma “comu-
nidade fechada de intérpretes da constituição”.
isso acaba, em sede da teoria kelseniana, criando uma via de legitimidade
meramente institucional e fática, típica de uma análise positivista.
mas se, como afirmado acima, pelo autor, toda norma positiva, enquanto
posta por um ato de vontade, somente haveria que ser considerada válida não pela
dedução de seu conteúdo de uma norma mais geral, isso somente poderia ser pen-
sado no sentido de que toda norma positiva, portanto, teria como fundamento
uma outra norma hierarquicamente superior que conferisse competência e poder
àquele que quer. essa norma hierarquicamente superior não necessariamente
haveria que ser uma norma posta por um ato de vontade; segundo KeLSen, o fun-
damento último do direito tratar-se-ia de uma norma pressuposta, qual seja, a
norma fundamental que, enquanto tal, não seria uma norma posta por um ato de
vontade, mas pressuposta por um ato de pensamento. isso porque, para que sua
construção escalonada se mantivesse coerente, seria necessário que a primeira
constituição histórica encontrasse fundamento também em uma norma hierar-

7 KeLSen, hans. Teoria Pura do direito, cit., p. 215 et seq.


quicamente superior – e a saída foi pensar a norma fundamental cujo conteúdo
poderia ser condensado no mandamento de que “devemos conduzir-nos de acor-
do com a constituição efetivamente posta”.
o paradoxo que a norma fundamental representa internamente à própria
teoria deve ser aqui melhor pontuado: KeLSen, como sempre lembrado desde as
primeiras linhas deste capítulo, procurou fundamentar o direito não na esfera do
dever-ser, não na mera eficácia ou faticidade, mas, antes, tentou sofisticar sua
construção criando a figura do fundamento de validade de uma norma como
sendo outra hierarquicamente superior. assim, uma norma seria válida para
KeLSen porque fundamentada em uma norma hierarquicamente superior e se
minimamente eficaz. o mínimo de eficácia surge, destarte, como condição de
validade da norma, sendo que essa eficácia poderia ser argüida tanto em termos de
cumprimento quanto de aplicação normativa. o grande paradoxo é que a norma
fundamental, ainda que não possa ser pensada cronologicamente, mas tão-somen-
te logicamente, como precedendo à primeira constituição histórica, não se trata,
nada mais, nada menos, de um fechamento operacional em termos de redução da
validade de todo ordenamento jurídico à faticidade da eficácia da constituição
então posta. na base de validação do ordenamento jurídico, para KeLSen, e na ver-
dade, se encontra a mera análise sociológica, e desde uma ótica funcional, da efi-
cácia de uma dada constituição erigida enquanto ato de vontade – de uma
assembléia constituinte ou de um tirano.
isso leva ao paradoxo interno no sentido de se ter, então, rompida a distin-
ção entre ser e dever-ser; o direito, enquanto sistema normativo, acaba, neste
nível global, retirando sua validade da mera faticidade da eficácia de uma dada
constituição outrora querida porque promulgada ou outorgada, tanto faz. nesse
nível de análise, a eficácia surge como o fundamento de validade e não como sim-
ples condição de validade, o que faz a própria teoria entrar em um estado convul-
sivo e argumentativamente insustentável.
isso porque há uma pressuposição, por parte da Teoria Pura, de uma com-
preensão e leitura sociológicas do que se poderia, naquele momento, verificar como
direito naquela mesma sociedade, enquanto algo vinculado a um complexo de atos
de vontade garantidos por um aparato “institucionalizado” que desse respaldo aos
mesmos, ainda que se utilizando da força. Pouco interessava se esta ordem fosse
democrática, ou não; ditatorial, ou não; se fosse aceita, aceitável ou imposta. o que
interessava, em uma única análise e descrição “puras” – que, na verdade, de “pure-
za” não têm nada exatamente por pressupor uma abertura a, e uma fundamentação
em dados sociológicos – era a mera faticidade da ordem global; e, de um ponto de
vista interno, a mera satisfação de uma norma hierarquicamente superior que con-
ferisse poder/competência para aplicar quaisquer das possibilidades que se fizessem
presentes. Tudo isso se agrava quando, mais uma vez, o autor se depara com os
limites de sua teoria, propondo o princípio da coisa julgada como capaz de validar
atos de vontade que se orientem para além do próprio direito.
a busca obsessiva pela segurança em KeLSen o levou a um sistema claustro-
fóbico que fora incapaz de enxergar os seus próprios limites. a mera análise “for-
mal”, baseada em atribuições de poder/competência, bem como referida à eficácia
de uma certa constituição, acabou abrindo à Teoria Pura a possibilidade, tão van-
gloriada por seu criador, de poder justificar quaisquer ordens normativas. Seja o
nazismo na alemanha, seja a ditadura militar no Brasil, todas essas ordens pode-
riam ser justificadas por KeLSen como sendo um direito válido porque coercitivo
e globalmente eficaz.
Talvez alguns, mas somente alguns, observadores, simpáticos à figura de
cronoS, certamente nos diriam que tal visão do juiz seria demasiadamente extre-
mista. afinal, seria plenamente possível, a partir mesmo de uma perspectiva de
observador do direito, perceber que a prática jurídica seria diferente da prática,
por exemplo, política. e tudo isso desde uma postura de mero observador do sis-
tema, distante dos pressupostos subjacentes a essa mesma prática comunicativa e
discursiva que é o direito.
Se nosso observador-neutro acreditasse ser a visão kelseniana do direito
muito “simples” e optasse por uma leitura mais complexa das mesmas questões,
poderia acabar percebendo que niKLaS Luhmann talvez oferecesse respostas a
questões que KeLSen, todavia, não seria capaz de oferecer.
Luhmann poderia ser útil ao nosso observador exatamente porque vai com-
preender o direito como um sistema de comunicação que pode ser observado por
outros sistemas e também por si próprio. isso porque o direito seria um sistema
social de função, um sistema da Sociedade que, por sua vez, se diferencia de
outros sistemas em razão de suas operações.
Para Luhmann, de início, poderíamos nos referir a sistemas como o sistema
biológico, o sistema psíquico e o sistema social. cada um desses sistemas se dife-
renciariam, uns dos outros, em razão da especificidade do seu operar. o sistema
biológico se diferenciaria do sistema psíquico em razão de suas próprias operações
que, por sua vez, também o permitiriam diferenciar-se do sistema social. afinal,
na base dessa construção podemos encontrar a referência ao sentido de que cada
sistema tem uma determinada operação referida tão-somente a si.
o sistema biológico opera, nesse contexto, a si mesmo a partir de sua opera-
ção, vida; o sistema psíquico a partir do pensamento e o sistema social, ou a
Sociedade, enfim, a partir de sua operação, comunicação. com isso firma
Luhmann a idéia de que um sistema jamais tem o condão de operar outro sistema:
afinal, cada um possui um medium operacional diferenciado. aliás, exatamente o
fato de a vida se distinguir do pensamento é que o emaranhado das operações vida
acaba por construir-se referido às suas próprias operações específicas, se diferen-
ciando, portanto, do seu ambiente. Podemos, pois, perceber que, para o autor, sis-
tema nada mais é que um emaranhado recursivo de operações, isto é, de operações
que se encontram sempre, e de formas mais variadas, entrelaçadas entre si.
inclusive essa é a razão pela qual os sistemas, por força de suas operações, vão se
diferenciando do resto: na exata medida em que vão se construindo recursivamen-
te com base em suas operações específicas.
assim é que podemos facilmente entender quando Luhmann nos vai dizer
que tanto o sistema biológico, quanto os sistemas psíquico e social são sistemas
autopoiéticos. o termo autopoiese Luhmann herdou dos desenvolvimentos de
estudos biológicos desenvolvidos por maTurana e vareLa que, ao lançarem a
idéia de autopoiésis, tinham em mente a capacidade auto-reprodutiva das células.
na medida em que autopoiésis significaria exatamente auto-reprodução, conden-
savam nesse termo, referidos biólogos, a capacidade que as células, em razão de
suas específicas reações, têm de reproduzir uma outra célula, ou outras células a
partir de si mesmas.
Trazido para o campo das ciências Sociais, o termo ganhou, com a Teoria dos
Sistemas, um sentido mais complexo: autopoiésis, em sede da teoria em questão,
implica mais que auto-reprodução, pois vem a agregar, inclusive, o sentido de
auto-organização sistêmica. com isso Luhmann pretendeu esclarecer que tanto os
sistemas biológicos e psíquicos, como também o sistema social, seriam sistemas
autopoiéticos na medida em que se auto-reproduziriam a partir de suas específi-
cas operações, além de, exatamente por essas mesmas operações, se organizarem
internamente ao mesmo tempo que, por tudo isso, se diferenciariam uns dos
outros. Somente assim é que nos é possível compreender o sentido da afirmação
quando Luhmann nos diz que “vida só gera vida”, “pensamento só gera pensamen-
to” e “comunicação só gera comunicação”...
com isso o autor pretendeu explicitar que jamais podemos afirmar que um
sistema determine operacionalmente outro sistema, já que as operações com base
nas quais se constroem e se organizam são especializadas. assim, o fato de a comu-
nicação não gerar pensamento, nem do pensamento gerar vida, por exemplo, há
que ser assumido na compreensão de que muito embora tais sistemas sejam dife-
renciados operacionalmente, não são, por sua vez, independentes ou reciproca-
mente isolados. antes, é possível perceber que esses sistemas são acoplados.
antes de avançarmos nessas considerações, cabe-nos rapidamente introduzir
a noção de indicação na Teoria dos Sistemas. Para Luhmann, a partir dos pressu-
postos teóricos com os quais construiu seu aporte de observação da Sociedade,
“indicar algo” é, exatamente, observá-lo distinguindo-o de todo o “resto”, isto é,
indicar é observar a partir de um lado positivo de uma forma. Forma é, pois, aqui-
lo a partir do qual se pode realizar distinções entre um lado positivo e, portanto,
um lado negativo dessa mesma forma (+/-). assim, se indicamos, por exemplo, o
sistema biológico, surge como lado positivo de uma forma, o próprio sistema bio-
lógico, aquilo indicado ou distinguido de todo o resto, e como lado negativo pode-
mos observar tudo aquilo que não seja o próprio sistema biológico, o que inclui,
mas neles não se esgota, os sistemas psíquico e social. Por outro lado, se indicar-
mos o sistema social, podemos vislumbrar como o lado positivo da forma de obser-
vação do sistema social, ou da Sociedade, o próprio sistema social, enquanto o seu
ambiente, ou seja, o seu lado negativo da forma, abrange tudo aquilo que não seja
a Sociedade... com isso temos clara a idéia de que para cada indicação, sempre
surge um ambiente específico: para cada sistema indicado no lado positivo da
forma, surge um ambiente que lhe é próprio, específico dessa indicação, razão pela
qual podemos afirmar que cada sistema tem a si referido um ambiente que jamais
pode ser observado como ambiente de outro sistema. afinal, o sistema, a partir do
momento em que se constrói autopoieticamente, se diferencia, em razão de suas
operações, de todo o resto.
Podemos, portanto, avançar, concluindo que para a Teoria dos Sistemas, tais
emaranhados recursivos de operações, que são os sistemas, não estão isolados de
seus respectivos ambientes. Podemos, antes, verificar que é possível haver troca
de informações entre esses sistemas a partir dos acomplamentos estruturais veri-
ficáveis entre os mesmos. assim, podemos observar que há acoplamentos entre o
sistema biológico e o sistema psíquico e acoplamentos entre o sistema psíquico e
o sistema social. aqui vamos enfatizar tão-somente o acoplamento estrutural
entre o sistema psíquico e o sistema social que podemos, segundo Luhmann,
observar como sendo a linguagem. a linguagem, vez que acoplamento entre os
sistemas psíquico e social, permitiria que esses sistemas reciprocamente se irritas-
sem, isto é, produzissem estímulos reciprocamente, a partir de suas operações
específicas. assim é que poderíamos observar que a Sociedade, uma vez que se
trata do sistema que opera comunicativamente, pode irritar, e efetivamente irrita,
sistemas psíquicos através da linguagem... a construção que Luhmann faz o per-
mite concluir que a comunicação jamais gera pensamento, ou seja, o sistema social
não determina as operações do sistema psíquico, muito embora o sistema social
possa irritar, pela linguagem, o sistema psíquico. e esse estímulo há que ser inter-
pretado pelo próprio sistema psíquico como capaz, ou não, de, naquela irritação
particular, causar uma resposta a partir das operações-pensamento. com isso
Luhmann pretende garantir a integridade do fechamento operacional dos siste-
mas: os sistemas, exatamente porque autopoiéticos, são enclausurados do ponto de
vista operacional, isto é, determinam a si próprios a partir de suas operações inter-
nas, o que não significa que não sejam abertos para conhecer seus respectivos
ambientes. afinal, devemos compreender essa proposta no sentido de que o fato
de os sistemas serem operacionalmente fechados não os impede de serem cogniti-
vamente abertos: são abertos para conhecer, e serem irritados, pelo ambiente, e a
resposta, ou sua ausência, a essa irritação é algo a ser determinado internamente
pelo próprio sistema irritado.
É a partir desses conceitos básicos que a Teoria dos Sistemas vai construir sua
observação do direito afirmando que o direito também seria um sistema auto-
poiético.8 com isso pretende sustentar a idéia de que o direito produz, reproduz
e organiza as suas próprias estruturas sistêmicas. afinal, e é isso que se encontra
por detrás da proposta teórica de Luhmann, qualquer sub-sistema social seria
autopoiético. mas o que diferencia esses sub-sistemas não são jamais suas opera-
ções: isso porque, afinal, todos os sistemas sociais de função operam a si próprios
através da comunicação. Todos esses sistemas, vez que sistemas sociais, se cons-
truiriam socialmente, isto é, comunicativamente. o interessante de observar é
que, para a Teoria dos Sistemas, o que vai então permitir a diferenciação entre
esses sistemas sociais de função seria não a operação, comum a todos, mas dois
aspectos: o código do sistema e sua função.
Para Luhmann cada sistema, com a modernidade, passou por uma especiali-
zação funcional. equivale dizer que cada sistema, nesse processo de diferenciação
funcional, passou a ter referida uma função própria que não é capaz de ser referi-
da a nenhum outro sistema.9 afinal, o que marca esse processo de diferenciação
funcional é, exatamente, o fato de cada um desses sistemas sociais passarem, com
o advento da modernidade, a se construírem referidos a funções diferenciadas. e
por função entende a Teoria dos Sistemas um problema a ser especificamente
enfrentado por cada sistema e que não cabe a nenhum outro sistema. assim, assu-
me que a função do sistema do direito é a de estabilização de expectativas de com-
portamento.
Por outro lado, também o código do sistema, juntamente com sua função, é
o que nos permitiria observar as operações de um sistema como diferenciadas de
outro. aliás, essas questões são mesmo capazes de serem vislumbradas, pela pró-
pria Teoria, como co-dependentes. É claro que a Política, a economia, a religião,
como algumas referências a outros sistemas sociais de função, e o direito, operam,
todos eles, através da comunicação. destarte, jamais poderia ser o meio operacio-
nal aquilo que permitiria distinguir esses sistemas. assim é que se pode observar
que cada sistema social de função tem um código que lhe é próprio. e por código
podemos compreender aquilo que permite realizar orientações das comunicações
como referidas a um, e não a outro, sistema. o código “licitude/ilicitude”, uma vez
que todo código possui um lado positivo, e um lado negativo, é o código do direito
e tem o condão de orientar as comunicações que podem ser observadas como
orientadas ao sistema do direito. assim, o direito se distingue de seu ambiente na

8 Luhmann, niklas. das recht der gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1993, p. 44 et seq.
9 Luhmann, niklas. das recht der gesellschaft, cit., p. 136 et seq.
medida em que suas comunicações são orientadas por um código próprio e deter-
minadas pelo próprio sistema, vez que operacionalmente fechado. Se indicarmos
o direito o distinguimos, como sistema, de tudo aquilo que não é direito, razão
pela qual a forma de observação do sistema do direito é “direito/não-direito”. ou
seja, a distinção entre o sistema do direito, observado a partir de suas operações,
e seu ambiente.
a partir dessa distinção entre os códigos dos sistemas é que Luhmann avança
em face das discussões propostas por KeLSen, afirmando que um sistema pode ser
corrompido por outro sistema quando aquele deixar de operar-se com base em seu
código, para passar a orientar suas comunicações por um código de outro sistema.
assim, essa figura da corrupção dos sistemas marca a situação quando, por exem-
plo, o sistema do direito, em suas decisões, deixasse de assumir o seu código lici-
tude/ilicitude, para assumir o código de outro sistema, como o código do sistema
da Política ou da economia. as decisões corrompidas do sistema do direito deixa-
riam, pois, de ser orientadas pelo código do direito, e passariam a ser orientadas
pelo código de outro sistema, o que significaria, pois, em um primeiro momento,
a desconsideração da dimensão programacional (normativa) do sistema jurídico,
como será visto adiante.
mas, do fato de o direito ser operacionalmente fechado, vez que autopoiéti-
co, não decorre que o direito, segundo Luhmann, seja isolado de seu ambiente.
antes, podemos perceber que o direito é cognitivamente aberto ao seu ambien-
te, o que o permite oferecer respostas, ou não, às irritações oriundas de seu am-
biente. assim, a Política e a economia, por exemplo, são sistemas sociais de fun-
ção e em face da forma direito/não-direito, se encontram no lado negativo, isto
é, estão referidos ao ambiente do direito, uma vez que não são construídos com
referência ao código do direito, mas aos seus respectivos códigos e funções.
e como Luhmann encara a norma? a teoria em questão vai afirmar que toda
e qualquer norma jurídica pode ser observada por uma determinada forma, qual
seja, se/então. isso significa que a Teoria dos Sistemas assume a norma como um
programa condicional.10 assim, o fato de as normas serem programas, isto é, de
estabelecerem sob quais condições há que ser atribuído o sentido de licitude, ou
de ilicitude, a um determinado comportamento, faz com que a teoria as encare
como condicionais, como capazes de estabelecer, sempre, as condições a partir das
quais são tomadas em consideração em face dos casos concretos.
nesse sentido, vai sustentar o autor que o direito seria um sistema codifica-
do e programado. o sistema do direito teria um código próprio, referência para
suas operações, além de ser programado, no sentido de que construiria estruturas

10 Luhmann, niklas. das recht der gesellschaft, cit., p. 197.


capazes de permitir a atribuição do lado positivo (licitude, ou o sentido de “con-
formidade ao direito”) ou o lado negativo (ilicitude, ou o sentido de “contrarieda-
de ao direito”) da forma do código. assim, as normas jurídicas seriam essas estru-
turas programacionais do sistema do direito que, para Luhmann, deveriam ser
assumidas como programas condicionais, ou seja, e como já explicitado, como
estruturas que convencionalmente prevêem as condições (se...) de sua própria
aplicação (então...).
assim, o sistema do direito, segundo essa compreensão, seria um sistema
pré-programado, em que a determinadas ocorrências já estariam convencionadas,
pré-determinadas, comunicativamente, e capazes de serem observadas pela forma
se/então. Por outro lado, Luhmann, de sua postura de mero observador, pôde per-
ceber que em determinadas situações o direito encontrar-se-ia em face de um
paradoxo. e aqui esse paradoxo tem a ver com a compreensão de norma assumida
pela Teoria dos Sistemas.
Para o autor, em determinadas circunstâncias poder-se-ia observar que o
direito se depararia com seus limites, que uma determinada situação a ser decidi-
da por um Tribunal, por jamais encontrar qualquer respaldo em qualquer norma
(programa), uma vez que não fora prevista pelo sistema – desde uma perspectiva
convencional, obviamente –, levaria ao paradoxo do direito ter que decidir uma
questão exatamente porque não há como decidi-la.
ora, o raciocínio de Luhmann, muito similar ao de KeLSen, inclusive, em sua
abertura ao reconhecimento da discricionariedade, tem uma relação direta com a
maneira que ambos os autores, por sinal, assumem o conceito de norma. Tanto
para KeLSen, quanto para Luhmann, norma jurídica, desde suas posturas de meros
observadores, são convenções firmadas que estabelecem as condições, também
convencionalmente marcadas, sob às quais justificar-se-ia sua aplicação. ambos,
pela postura meramente descritiva do direito são incapazes de perceber a comple-
xidade da praxis jurídica, reduzindo a concepção de norma à mera constatação de
convenções a estabelecer condições de aplicabilidade normativa...
nesse sentido, cronoS se sente bastante confortável porque, aliás, concorda
e compartilha das opiniões, nesse ponto, tanto de KeLSen, quanto de Luhmann.
Para cronoS não há norma para além daquelas convencionadas, acordadas, seja
num processo legislativo, seja em uma prática reiterada e compartilhada pelos
súditos do direito. o seu poder de decidir os casos oferecendo uma única respos-
ta adequada a cada caso lhe parece despropositada: afinal, cronoS se vale dos
argumentos de KeLSen, de mera observação do direito, para concluir que realmen-
te não se pode pretender, a cada caso, somente uma resposta, porque o que nós
podemos ter são respostas possíveis e igualmente válidas. Por outro lado, cronoS
também acredita que tem um poder para decidir casos não “decididos” (“conven-
cionados”) pelo direito anteriormente. acredita ter um poder discricionário para
resolver situações às quais as normas jurídicas não oferecem qualquer “parâmetro”
normativo. e tudo isso porque parte da idéia de que o direito não tem como pre-
ver, convencionalmente, todas as situações possíveis e imagináveis a serem trazi-
das ao próprio Poder Judiciário. assim, as propostas de KeLSen e Luhmann servem
como um alento a esse juiz devorador e inventor de direitos e deveres.
e aqui em Luhmann, mais especificamente, isso aparece em razão do parado-
xo que o direito há que enfrentar. a declaração do non liquet não parece ao autor
uma saída possível. antes, vai encarar que os Tribunais têm que decidir casos, uma
vez que a programação do sistema normativo não seja capaz de solucionar, a par-
tir dos princípios. mas não tenhamos a ilusão de que Luhmann assume a dimen-
são normativa desses princípios. muito antes pelo contrário, de sua postura de
mero observador, Luhmann nos reporta que os “princípios jurídicos” teriam um
papel central na criação de variações no sistema do direito. afinal de contas, os
princípios serviriam como curingas, como “cartas escondidas na manga” e que
seriam lançadas à mesa em uma situação na qual o direito não tivesse como deci-
dir o caso concreto. veja, portanto, que o próprio autor cria uma dualidade entre
normas jurídicas, convencionalmente construídas e observáveis pela forma
“se/então”, e os princípios jurídicos que não teriam um caráter normativo exata-
mente porque incapazes de serem observados pela forma se/então, além de não
serem convencionalmente acordados, como as “normas”, a sempre estabelecerem
uma relação condicional entre o fato e uma conseqüência.
nesse sentido, os Tribunais, para Luhmann, ocupariam um posto de destaque
no sistema do direito11 porque permitiriam superar esse paradoxo do decidir
quando a decisão “não” fosse possível. isso porque os princípios são assumidos pela
teoria em questão como meras criações dos juízes: os juízes criariam, inventariam
os princípios para se livrarem de casos concretos incômodos porque não solucio-
náveis à luz daquilo que entendem como direito e como norma jurídica. o artifí-
cio empregado pelo autor pretende incutir a idéia de que o fato de o Tribunal ter
criado, inventado um princípio jurídico seria uma decisão do sistema do direito.
assim, os Tribunais gerariam, para além das redundâncias que um suposto princí-
pio da igualdade justificasse, uma variação no sistema, o que seja, a criação de uma
gama de novas decisões introduzidas no sistema na solução de casos desiguais. e o
fato de o “sistema” ter marcado essa desigualdade abriria a possibilidade de que,
em cima dessa marca, fossem geradas novas redundâncias, novas igualdades, a par-
tir da própria desigualdade marcada.

11 nesse sentido, cf.: Luhmann, niklas. a posição dos tribunais no sistema jurídico. ajuris, Porto alegre, v. 48,
pp. 149-168, 1990.
e nesse ponto a Teoria dos Sistemas entra em colapso justamente por não
conseguir sustentar seus pressupostos. a partir do momento em que se abre a pos-
sibilidade para os Tribunais criarem os princípios jurídicos, não só fica inexplicá-
vel o princípio constitucional da separação dos poderes, como sem explicação fica
também o sentido condicional das normas e das decisões jurídicas no seio da pró-
pria Teoria dos Sistemas. Luhmann acaba reconhecendo que em determinadas
situações-limite, como essa com a qual estamos trabalhando, pelo fato de não
haver um programa, a operacionalização do direito deixaria de cumprir uma lógi-
ca condicional, rendendo-se a uma operacionalização teleológica, orientada a fins,
sempre ponderáveis e mensurados a partir da óptica daquele que decide, daquele
que inventa a solução para o caso. assim, o Tribunal nesses casos-limite é que
assumiria um papel central do sistema jurídico, literalmente inventando, desde
uma leitura pragmatista, aquilo que é a solução para o caso, mas não a partir do
que as normas jurídicas disciplinam, porque da maneira que assumiriam o concei-
to de norma, não haveria que se falar em uma norma sequer para esse “novo caso”,
porque antes não fora previsto...
ou seja, Luhmann acaba se contradizendo, justificando uma corrupção do sis-
tema do direito por outros sistemas porque incapaz de, a partir da sua postura de
observador, compreender a complexidade do direito e a limitação de sua visão e de
seus pressupostos. acaba assumindo que o direito, nessas situações, realizaria uma
abertura operacional, isto é, passaria a ser operacionalizado por referência a códi-
gos de seu ambiente, e não a partir de seu “interior”. isso leva Luhmann a reconhe-
cer tacitamente, com KeLSen, que as autoridades jurisdicionais seriam dotadas de
um poder para criar normas, de um poder de invenção, quando se encontrassem
perante um caso não “previsto” convencionalmente por qualquer outra norma
anterior, ou cuja solução do direito fosse desinteressante sob um viés axiológico –
sobretudo em KeLSen. ou seja, a autoridade, nessas situações, acabaria sendo inter-
pretada como não limitada pelo direito para construir a solução do caso, já que não
haveria qualquer norma jurídica capaz de ser referida a essa nova situação exata-
mente porque sua “novidade” não fora capaz de ser convencionalmente vislumbra-
da pelo Legislativo ou pelos súditos em suas “práticas reiteradas”...
cronoS pensa exatamente assim, ainda que de uma forma não tão bem siste-
matizada, mas esses são os pressupostos de sua maneira de enxergar o direito e de
o interpretar. no exercício de sua atividade, muitas vezes cronoS acredita, real-
mente, ser dono de “sua” jurisdição, lançando sua fúria mitológica contra aqueles
que se atrevem a oferecer-lhe um caso antes não imaginado por ninguém. nessas
situações, cronoS acredita se encontrar acima das partes e do direito, acima de
todos, e de seu posto seria legitimado a decidir da maneira que ele acredita que
deva ser a solução do caso, criando, ao gosto de Luhmann, soluções, princípios,
que acredita não ter qualquer respaldo em outra norma, senão em seu “bom
senso”. não interessa a cronoS o que dizem os estudiosos do direito, não interes-
sa a cronoS uma compreensão mais sofisticada do direito a assumir a força nor-
mativa dos princípios. antes, pressupõe nosso juiz-devorador que a solução para
os casos há que partir de sua convicção pessoal, ainda que os outros não compar-
tilhem de tal convicção... acredita que agir “eticamente”, enfim, cumprir de
maneira adequada o seu papel é lançar decisões que, ainda que travestidas de uma
certa argumentação jurídica, não passam de expressões daquilo que ele gostaria
que fosse o direito... afinal, em sua visão, o direito não teria resposta para essas
situações...

iv. a JuSTiFicação da auToridade de hÉracLeS a ParTir de


PreSSuPoSToS democrÁTicoS de conSTrução e inTerPreTação
do direiTo: a aSSunção do direiTo como um SiSTema
ideaLmenTe coerenTe de PrincíPioS

diante das construções teóricas sofisticadas que o observador-neutro foi


capaz de encontrar para melhor justificar seu ponto de vista, e esclarecer algumas
questões que não se faziam bem compreendidas, nosso partícipe-imparcial se mos-
tra assustado e logo sai em busca de outras propostas teóricas que sejam adequa-
das para fazer frente às leituras que KeLSen e Luhmann fazem da atividade jurisdi-
cional. Tudo isso porque nosso participante-imparcial, como membro da comuni-
dade jurídico-política, não admite as conclusões que alimentam cronoS por não
compartilhar dos pressupostos interpretativos que se encontram por detrás dessa
concepção.
isso porque o participante sabe que, na modernidade, não há estado de
direito sem democracia radical. e já de antemão compreende democracia antes
como uma abertura: uma abertura ao diferente, à participação, enfim, a uma cons-
trução deliberativa do direito e da Política em que todos têm reconhecidas, e na
maior medida possível, iguais liberdades fundamentais – inclusive de participação
nesse processo, se enxergando como co-autores do direito.
a validade de um direito assim construído não se reduz ou se encontra na
mera faticidade de uma eficácia global de um emaranhado de “normas”, ou, em
particular, não se reduz à referência a um poder ou competência atribuídos a uma
certa autoridade. o neo-positivismo jurídico não conseguiu se desvencilhar de
uma compreensão do direito em termos funcionais e objetivantes. antes, o que
interessa a essa postura meramente observadora é conformar as práticas que se
pretendem jurídicas com um complexo mais alargado, qual seja, o direito como
sistema. É nessa esteira que KeLSen vai acabar optando por uma teoria genética em
termos “formais”: à validade da norma tão-somente interessa sua origem, se advin-
da de um sujeito dotado de poder ou competência para tanto – o que, ainda, como
visto, traz inconsistências indesculpáveis no terreno daquilo mesmo outrora pro-
posto, quando KeLSen se depara com as dificuldades que são as decisões fora do
quadro das “interpretações possíveis” que a norma a interpretar representa. ou
ainda quando Luhmann vai pretender atribuir ao sistema jurídico a validade da
criação de “princípios” pelos Tribunais, numa assunção velada da discricionarie-
dade jurisdicional a não assumir, de maneira séria, o pressuposto de que o direito
há que ser interpretado em face do seu caráter público, isto é, em face de seu pro-
cesso público e democrático de reconhecimento.
aqui passaremos a enfocar, sob a proposta do partícipe-imparcial, a legitimi-
dade em termos discursivos: não podemos compreender como legítima, válida,
racional em termos modernos, uma norma sob a justificativa de que quem a deter-
minou fora uma autoridade que, para isso, teria uma “autorização”. antes, válidas
são normas que podem ser sustentadas perante todos, vez que assumidos como co-
participantes do processo de construção do direito.12 e isso não implica a concor-
dância de todos no que se refere a todos os conteúdos normativos em específico.
antes alerta-nos para o fato de que se quisermos nos referir a um direito válido
devemos perceber este que é fruto de práticas sociais e que, na modernidade, são
assumidas como práticas comunicativas capazes de serem problematizadas, tam-
bém comunicativamente, de maneira a construir um juízo de validade, racionali-
dade, ou não.
e exatamente porque o direito não nos é dado desde o exterior de nossa pró-
pria Sociedade, mas, antes, é fruto de um processo de reconhecimento e luta
comunicativa interna, é que devemos, pois, levar a sério as dimensões hermenêu-
tica e pragmática-universal do direito.13
como prática comunicativa, como praxis social, o direito somente se cons-
trói a partir de determinados pressupostos a permitirem sua própria compreensão.
afinal, toda prática comunicativa envolve uma dimensão que hoje não podemos
mais pretender ignorá-la, qual seja, uma dimensão hermenêutica, uma dimensão
interpretativa, permeada de pré-compreensões, pré-conceitos, pressupostos
comunicativos, enfim, compartilhados intersubjetivamente e que, exatamente por
essa razão, nos permitem compreender e interpretar essa prática social. o direito
moderno, compreende nosso participante, não se desenvolveu ao léu. nossa prá-
tica jurídica não se reduz a, ou se confunde com, escolhas, convenções e acordos
que somente se justificam à luz de sua própria faticidade. antes, compreende

12 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 172.
13 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 63 et seq.; haBermaS, Jürgen. verdad y justificación, cit., p. 65 et seq.
nosso participante um nível mais profundo da experiência jurídica, uma dimensão
mais fundamental e que, por sua fundamentabilidade, nos permite compreender
o direito, e não somente descrevê-lo.
a isso KeLSen e Luhmann sequer voltaram seus olhos, porque em suas visões-
de-mundo não cabia a referência a essa dimensão hermenêutica. antes, acredita-
vam que a ciência do direito teria, sim, um papel de observação/descrição do
direito, com a pretensão de que a descrição pudesse satisfazer a complexidade da
tarefa cognoscitiva referida ao direito. Por outro lado, defendiam que tal postura
de observador também fosse assumida pelo aplicador do direito, a observar como
normas jurídicas somente aquelas convenções condicionais a preverem suas pró-
prias situações de aplicação.
nosso participante-imparcial tem a intuição de que aqui reside um dos pro-
blemas centrais de uma compreensão neo-positivista do direito e dessa atividade
interpretativa. afinal, se o participante consegue vislumbrar a possibilidade de
uma decisão imparcial, por exatamente levar em conta, e a sério, todos os argu-
mentos das partes interpretados num determinado contexto paradigmático, por
outro lado denuncia que aquela pretensão de neutralidade muitas vezes tão-níti-
da nas propostas interpretativas de Luhmann, mas sobretudo de KeLSen, há que ser
deixada de lado. Se neutralidade significa o afastamento dos pressupostos e pré-
conceitos subjacentes à própria prática jurídica, como nos demonstraram tanto
KeLSen, quanto Luhmann, tal postura há que ceder lugar a uma compreensão de
que o direito é construído pela Sociedade e há que ser compreendido como tal à
luz de sua dimensão hermenêutica, e também pragmática-universal, a comparti-
lhar pressupostos comunicativos sem os quais não nos é possível compreender o
próprio direito.
a essa conclusão nosso participante chega após fazer uma interessante con-
sideração. Quando alguém observa a conversa entre duas pessoas, ele pode até nos
reportar, de maneira descritiva, quais foram as palavras, as expressões e até a ento-
nação de referido diálogo. como observador, esse sujeito pode nos apresentar con-
clusões a respeito daquilo faticamente por ele presenciado. mas isso, conclui nosso
participante, não significa que o observador tenha, realmente, entendido o senti-
do daquele diálogo, seja porque não conhece as pessoas envolvidas pelo mesmo,
seja porque, e aqui se encontra o cerne da questão, não compartilha dos pressu-
postos subjacentes àquele diálogo e que lhe permitiriam compreender o sentido da
própria discussão. assim é que nosso participante, em sua percepção arguta, con-
clui que o sentido das práticas comunicativas somente pode ser compreendido na
medida em que são levados a sério os pressupostos a partir dos quais essa mesma
prática avança. conclui, pois, que não se pode simplesmente pretender conhecer
o diálogo, ou compreendê-lo, por mera observação e descrição daquela prática
comunicativa, mas que compreendê-la e conhecê-la implica mergulhar nos seus
pressupostos que permitirão, ao serem reconstruídos, juntamente com a própria
praxis comunicativa, alcançar uma leitura coerente da discussão.
e pelo fato de o direito ser fruto de uma construção social, pois, comunica-
tiva, é que podemos pretender o sentido dessa praxis somente quando nos enxer-
gamos como participantes desse processo de construção e reconhecimento do pró-
prio direito. afinal, na modernidade somente são capazes de serem consideradas
válidas normas jurídicas capazes de serem referidas a todos os concidadãos como
seus co-autores ou co-participantes em processos comunicativos, processos esses a
assumir a igualdade entre todos esses cidadãos em face de outra dimensão também
subjacente a essa prática comunicativa orientada ao entendimento, qual seja, a
pragmática-universal.
isso porque, como membro dessa comunidade jurídico-política, nosso partí-
cipe-imparcial alerta-nos para o fato de que esse sistema de normas jurídicas,
construído comunicativamente, somente poderá ser considerado legítimo se todos
os afetados pelo mesmo possuírem oportunidades igual e reciprocamente reco-
nhecidas de participar dessa construção.
assim é que se pensamos tanto em uma “comunidade fraternal verdadeira”,14
ou em termos de uma ação comunicativa, o que se encontra subjacente é uma
dimensão pragmática-universal que nos cobra igualdade no que tange às liberda-
des juridicamente reconhecidas a nós mesmo e por nós mesmos. o que deve ser
ressaltado é que, modernamente, a racionalidade comunicativa referida a proces-
sos comunicativos de construção de consensos, entendimentos, cobra-nos uma
dimensão normativa da comunicação (pragmática-universal) em que, por exem-
plo, a vedação à participação de certa pessoa, ou de certo grupo de pessoas nesse
processo, bem como o império de argumentos de autoridade em um discurso leva-
do adiante, são rechaçados como incapazes de possibilitar a construção de um
acordo racional, porque livre, e baseado na força da própria argumentação.
ora, se o direito é construído em termos comunicativos, isto é, em discursos
públicos que dizem respeito a todos nós, membros da comunidade jurídica, temos
como pressuposto de sua validade a possibilidade de participação de todos enquan-
to afetados e interessados, ou, ainda que não, nesses mesmos debates públicos.
assim, pois, é que se pode pretender o nexo interno entre democracia e estado de
direito, entre direitos fundamentais e soberania popular: afinal, são os direitos polí-
ticos que garantem as condições comunicativas em nível institucional para a cons-
trução racional, pois orientada à construção de acordos/consensos, do direito.15

14 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 243 et seq.


15 haBermaS, Jürgen. el vínculo interno entre estado de derecho y democracia. La inclusión del otro. Trad.
Juan carlos velasco arroyo. Barcelona: Paidós, 1999, p. 247 et seq.
o que nosso participante pretende denunciar é que a autoridade do direito não
advém nem de uma norma fundamental, como pensado por KeLSen, a reduzir a vali-
dade das normas jurídicas à sua mera faticidade, à mera observação “neutra” de pre-
tensões normativas que se fazem valer por meio de aparatos institucionais a impô-
las, sem compreender essa dimensão mais complexa e principiológica do direito –
ou seja, denuncia que a validade das normas não decorre da “santidade” da autori-
dade dotada de competência atribuída para realizar um ato –, nem jamais descamba
para uma justificação naturalista da própria validade do direito. afinal, a Sociedade,
em sua alta modernidade é capaz de vislumbrar-se como construtora de seu pró-
prio direito, que não se justifica em outra coisa senão na própria força argumenta-
tiva capaz de ser gerada em processos discursivos orientados ao entendimento, à
construção de consensos rumo ao reconhecimento, na maior medida possível, de
iguais liberdades a todos. a Sociedade, portanto, não externaliza o fundamento do
seu direito, mas antes encara-se como responsável por seu reconhecimento.
Se indagarmos acerca do cerne da validade do direito medieval encontrare-
mos como referência a vontade de um deus onipotente e ponto de partida para a
praxis e para a própria interpretação daquela Sociedade. o “direito dos homens”
era, naquele contexto, considerado como legítimo, válido, na medida em que se
orientava por diretrizes atreladas a uma certa concepção de direito natural de
cunho sagrado. não se pode jamais falar, àquela época, em “direitos fundamentais”
como hoje os assumimos; muito menos em igual e recíproco reconhecimento de
liberdades. antes, a sociedade medieval se apresentava como estamental e retira-
va a legitimidade de sua organização mais uma vez de deus: afinal, se havia ser-
vos é porque deus teria determinado, externamente à própria sociedade medieval,
que alguns teriam nascido para trabalhar, e questionar a vontade de deus era algo
impensável porque contraditório: como questionar o inquestionável? assim é que
se pode falar em privilégios muitas vezes reconhecidos entre os nobres, dos quais
a magna carta de 1215 é um exemplo formidável – e jamais um “esboço” do pro-
jeto constitucional moderno. Se se poderia falar em uma universalidade do direito
medieval, esta não se referia à igualdade no que tange ao reconhecimento de direi-
tos, mas à convergência de todos a um único deus, portanto, universal.
Se pensarmos, por outro lado, no contexto de ruptura do mundo medieval e
firmação das bases do estado moderno, esta mesma questão da universalidade do
direito está justificada em termos diferenciados: aqui, agora, universalidade
implica a ruptura dos grilhões medievais que prendiam cada qual ao estamento de
nascimento. Todos os indivíduos passaram a ser interpretados como dotados de
direitos porque naturais. geralmente envoltos na metáfora de um estado de natu-
reza, aos teóricos-políticos, em razão das questões que inclusive os prendiam ao
seu contexto histórico, era forçoso reconhecer “direitos da natureza”, direitos,
referidos ao “estado natural” do homem, que, enquanto racional, estaria e seria,
efetivamente, referente a todos os homens. a tese do direito natural, nesses ter-
mos, antes pretendia garantir iguais direitos a todos em medida da racionalidade,
métrica da igualdade entre os homens. o surgimento do estado é, de maneira bas-
tante superficial e generalizada, assumido como a fundação, por um “contrato
social”, de uma autoridade artificial que se justificaria como instrumento da
garantia desses direitos naturais e anteriores, pois, à própria institucionalização
das condições que nos permitem falar em democracia...
É claro que a tese do direito natural racional cumpriu um papel importantís-
simo na consubstanciação e conformação do estado moderno; por outro lado, esta
mesma tese fora, à sua época, incapaz de perceber um paradoxo interno: o fato de
que de “naturais” tais direitos não tinham absolutamente nada, mas, antes, deve-
riam ser interpretados como historicamente inseridas as suas defesas em um cená-
rio político concreto e que sua construção haveria que ser contextualizada, com-
preendendo o pano de fundo dessas práticas comunicativas, enquanto luta de uma
Sociedade na superação das práticas absolutistas a não levar a sério, pois, as pró-
prias dimensões hermenêutica e pragmática-universal que intuitivamente eram
capazes de se fazer assumir na argumentação desses teóricos.
isso nos serve como maneira de chamar a atenção para o fato de que o
direito, e sua construção, inserem-se em contextos concretos e que, em face des-
ses mesmos contextos é que será interpretado e re-interpretado. com isso pode-
mos, inclusive, unir as duas perspectivas naturalizantes, tanto a medieval, como a
que pretendeu suplantá-la, na mesma crítica: ambas foram incapazes de perceber
que a validade do direito que buscavam, apesar de referente a “deus” ou à “natu-
reza racional”, fora cunhada internamente a ela própria, e não alcançável para
além de seus muros.
e após um longo esforço procurando por leituras de todas essas questões,
nosso participante-imparcial se satisfaz, em certa medida, com as propostas de
Jürgen haBermaS e ronaLd dWorKin segundo as quais, e de sua forma mais sofis-
ticada de compreender o direito, oferecem, cada uma ao seu modo, aspectos rele-
vantes para a adequada interpretação do direito moderno.
com ronaLd dWorKin nosso participante entendeu o papel de hÉracLeS.
afinal, assumindo o direito como integridade, dWorKin nos ensina que o direito
há que ser compreendido como fruto de um processo histórico de reconhecimen-
to, um processo referido a um único autor, qual seja, a própria comunidade polí-
tica. referindo-se à metáfora do “romance em cadeia”, a explicitar a própria
dimensão hermenêutica da praxis comunicativa, dWorKin nos propõe perceber
que o direito de hoje há que ser compreendido como engajado numa cadeia de
desenvolvimento que, desde o passado, veio se construindo pelas mãos da comu-
nidade.
e como prática interpretativa e comunicativa, o direito não pode jamais ser
pretendido como reduzido a convenções, ou a acordos realizados no passado por-
que, muito embora esses acordos e essas convenções possam se fazer sentir rele-
vantes na interpretação do próprio direito, eles não nos permite esgotar seu sen-
tido complexo. a isso hÉracLeS compreende bem porque sabe que a impaciência
de cronoS reside exatamente no fato de enfrentar, como diria dWorKin, os hard
cases, aqueles casos difíceis, que exigem de hÉracLeS, ou da visão hercúlea para
dWorKin, um esforço interpretativo a mergulhar nos pressupostos, nos princípios
jurídicos capazes de permitir a solução correta para o caso. essa é a razão, inclusi-
ve, pela qual nosso participante-imparcial sempre achou, diferentemente do
observador-neutro, difícil a tarefa de reconstruir o direito para solucionar casos
antes não enfrentados pela praxis jurídica, ou enfrentados sob uma perspectiva
agora não mais satisfatória porque insustentável diante da compreensão que se
tem do próprio direito.
cronoS acha fácil a tarefa de julgar porque qualquer interpretação normati-
va que ofereça ao caso, e ao gosto de KeLSen, acredita ser válida. e mesmo quan-
do não haja uma norma para o caso, já que é incapaz de assumir os princípios,
desde sua visão convencionalista, como sendo dotados de normatividade jurídica,
continua a encarar sua tarefa como sendo ainda assim fácil já que, discricionaria-
mente, poderia, sociológica e funcionalmente, inventar a norma para o caso.
dWorKin denuncia tal postura interpretativa do direito, ao conceder ao juiz
o poder para criar no caso, discricionariamente, direitos e deveres sem qualquer
respaldo no direito. Tais situações seriam inventadas, bem ao gosto, inclusive, não
só de KeLSen, mas também de Luhmann, ex post facto,16 sendo, pois, não aplicações
do direito, anterior ao caso, mas invenções de um juiz-devorador para o caso. a
percepção de dWorKin é relevante à medida que nos permite criticar o fato de
cronoS, como aqui o encaramos, não respeitar o princípio da separação dos pode-
res, e acreditar ser uma autoridade acima da própria comunidade jurídico-política.
assim é que nosso participante-imparcial fica satisfeito com as conclusões às
quais dWorKin chega. afinal, para todo caso, mesmo para os hard cases, há sem-
pre uma resposta a ser assumida como melhor, não no sentido de que outras tam-
bém satisfariam as pretensões normativas subjacentes ao caso, mas porque somen-
te aquela decisão, para aquele caso e em face daqueles argumentos construídos
naquele processo, é que surge como a resposta capaz de satisfazer as exigências que
o juízo de correção normativa cobra a cada caso. dWorKin nos ajuda a, criticamen-
te, levar a sério a dimensão hermenêutica da nossa praxis jurídica, ao nos atentar
para o fato de que somente podemos compreender o desafio que cada caso concre-

16 no sentido da crítica de dWorKin em: dWorKin, ronald. Levando os direitos a sério. Trad. nelson Boeira.
São Paulo: martins Fontes, 2002, p. 27 et seq.
to sempre nos apresenta quando levamos em conta todos os argumentos apresen-
tados no caso. Somente assim assumiríamos seriamente os participantes do proces-
so como iguais, bem como a possibilidade de uma construção imparcial.
Somente ao assumir essa dimensão hermenêutica na compreensão do direito,
e desde uma óptica crítica a buscar, inclusive, por um sentido do próprio direito
que venha a transcender de contexto, é que dWorKin nos oferece subsídios para
espancar a discricionariedade e todos os problemas nela co-implicados. afinal, se
reconhecemos com o nosso hÉracLeS, nossa versão grega e mais pura do hÉrcuLeS
de dWorKin, que o direito é um sistema de princípios – pois, afinal, somente
levando seriamente em consideração os pressupostos normativos de compreensão
do próprio sentido do direito, que são os princípios jurídicos – é que podemos con-
cluir que, para cada caso, ainda para os mais difíceis, temos sempre uma resposta
anterior capaz de ser desvelada. isso porque por essa compreensão o juiz jamais é
encarado como o “senhor” de “sua” jurisdição, mas é entendido como uma autori-
dade que, não obstante participar da construção do processo, há que ser interpre-
tado como autorizado a cumprir um papel que não pode ser desconsiderado.
do fato de vislumbrarmos a postura argumentativa das partes no processo
jurisdicional, não segue também um esvaziamento do papel do juiz, ou de sua auto-
ridade. realmente não podemos mais compreender tal autoridade como dotada de
uma atividade autoritária a possibilitar, do alto de seu “notável saber jurídico”, a
ditadura de um pensamento ou convicções subjetivas, “convencidas livremente”,
sem qualquer respaldo ou sustentabilidade argumentativa em face dos pressupos-
tos comunicativos referidos ao direito e compartilhados pela comunidade jurídico-
política. nessa esteira, muito diferentemente do que cronoS certamente pensaria,
e do que parece pensar o Senhor ministro humBerTo gomeS de BarroS, o papel dos
estudiosos do direito não podem ser ignorados quando isso implicar, exatamente,
ignorância do direito, do seu sentido e de seus pressupostos interpretativos.
a autoridade do julgador, e isso compreende bem nosso participante-impar-
cial ao atentar-se à atividade de hÉracLeS, e a partir das conclusões de dWorKin,17
há que ser assumida, em uma melhor interpretação, como uma atividade de res-
gate, em face de cada caso, do sentido do direito, das ambições que o direito tem
para si mesmo e que hão de ser assumidas como a busca, no maior grau possível,
da igual realização de liberdades a todos. a autoridade do juiz se assenta no fato
de ser autorizado a decidir imparcialmente, implicando isso a consideração de
todos os argumentos apresentados pelas partes que, em pé de igualdade, participa-
ram do processo jurisdicional, além da assunção do direito como um sistema de
princípios a nos informar, em um nível mais profundo, qual seja o sentido do

17 dWorKin, ronald. Law’s ambitions for itself, cit.


direito interpretável e capaz de ser reconstruído caso a caso em busca da solução
correta para a especificidade das mais variadas situações.
a sofisticação desse ponto de vista nos permite superar a compreensão do
direito como um sistema de regras, de normas convencionadas que esgotariam o
sentido normativo do direito e que, simultaneamente, abririam as portas tanto para
um decisionismo quanto a uma discricionariedade da atividade interpretativo-juris-
dicional. Somente quando não nos pretendemos “neutros” em face dos pressupostos
comunicativos subjacentes à praxis jurídica, mas nos assumimos como membros
dessa comunidade que desde o passado veio construindo esse direito, é que pode-
mos compreender que devemos assumir uma postura realizativa na interpretação do
direito, isto é, devemos interpretá-lo não como alheio às ambições que o próprio
direito veio, em sua história, firmando como suas. Para utilizarmos uma expressão
de dWorKin, devemos assumir o desafio de interpretar o direito na busca por sua
integridade na correção normativa, significando essa integridade do direito o exato
sentido dessa compreensão coerente dos princípios, caso a caso, à luz dos pressupos-
tos de interpretação do direito, que também se fazem perceber em face da história
institucional do direito e da força gravitacional das decisões do passado.18
o fato de determinada questão ter sido no passado compreendida em um
certo sentido não significa, jamais, que “para sempre” há que continuar a ser inter-
pretada da mesma forma. antes, e a isso dWorKin também nos alerta, as decisões
institucionais anteriores nos servem como pontos desse “romance em cadeia” que
metaforicamente o direito representa. Tais decisões nos permitem tomar conhe-
cimento de como essas questões foram interpretadas no passado podendo, à luz de
novos questionamentos, se fazer relevantes na reconstrução dos pressupostos sub-
jacentes à própria compreensão da matéria. mas isso jamais significa que nos capí-
tulos seguintes desse romance temos que repetir os fatos dos capítulos anteriores.
a assunção das dimensões hermenêutica e pragmática-universal do direito
encontra-se exatamente conectada à compreensão de que a integridade do
direito, vez que busca uma interpretação coerente do direito, exige de todos nós
a constante revisão dos pressupostos interpretativos em face de novas questões
surgidas e perante novas formas de compreensão de matérias antes pacificamente
assumidas como não-problematizadas. assim, a integridade do direito exige, a
cada caso, um juízo de correção sustentável em face dos pressupostos de interpre-
tação do direito, mas exige algo para além dessa mera decisão: a compreensão de
que essa integridade também se realiza no processo contínuo de assunção desses
pressupostos de interpretação do direito. Somente assim é que podemos entender

18 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 477 et seq. Todavia, tal força gravitacional dos preceden-
tes, bem como a história institucional, jamais podem ser interpretados como limites à realização da integri-
dade como dWorKin, todavia, parece admitir. cf., infra, capítulo 8.
a metáfora do “romance em cadeia”, uma estória que tem um sentido mais além
de cada específico capítulo. o desafio é, pois, exatamente assumir esse sentido em
cada decisão: e isso somente é possível se compreendermos que tal integridade, tal
ideal de coerência normativa, é capaz de ser realizado a cada caso e simultanea-
mente conectado a algo que transcende a concretude de cada caso...
embora dWorKin não tenha explicitado com contornos tão sofisticados,
como faz Jürgen haBermaS, as exigências que a dimensão pragmática-universal
cobra na compreensão e interpretação do direito, podemos perceber que tais pres-
supostos encontram-se subjacentes à forma dworkiana de compreender o direito,
seja por assumir, ainda que inadequadamente, a idéia de uma “integridade pura”,
seja pela referência a uma “comunidade fraternal” a cumprir determinados requi-
sitos para a consideração da legitimidade de seu direito, seja ao pretender ambi-
ções do direito para si mesmo.
haBermaS, pelo aprofundamento das questões relativas à ação comunicativa,
apresenta uma leitura mais sofisticada e explícita de determinadas questões. Sem
dúvida alguma a dimensão pragmática-universal, ao cobrar dos participantes de um
processo discursivo orientado à construção de consensos uma consciência normati-
va, isto é, a necessidade de se pautar por determinados princípios subjacentes à
comunicação sem os quais uma decisão poderia ser imposta, mas não construída, nos
permite compreender em que sentido podemos pretender a construção de decisões,
mediadas lingüisticamente, que sejam racionais, válidas, legítimas, enfim. Somente,
segundo haBermaS, quando os afetados pelas normas acordadas, aqui em questão as
normas jurídicas, enfim, por se encontrarem sob o império dessas normas, tiverem
iguais possibilidades de participar do processo discursivo de sua construção é que se
poderia, validamente, pretender legitimidade, ou racionalidade, nesse processo de
reconhecimento normativo. a pragmática-universal, vez que uma dimensão nor-
mativa referida ao processo de construção discursiva de consensos, cobra desse
mesmo processo o cumprimento a exigências de igualdade de seus participantes,
livres para argumentar, a partir de seus particulares pontos de vista, aquilo que con-
sideram relevante ao discurso. no que tange ao direito, podemos, pois, perceber que
a dimensão pragmática-universal cobra um nexo interno entre democracia e
direito: somente se pode compartilhar de um direito racionalmente ou legitima-
mente constituído na medida em que todos os cidadãos desse império do direito
tiverem garantidas condições de igual participação livre nesse processo.19
assim, democracia e direitos fundamentais, por serem co-dependentes – na
medida em que a idéia dos direitos fundamentais cobra um desenrolar legítimo

19 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 63 et seq.; p. 147 et seq.
num processo publicamente sustentável, e a democracia, por sua vez, depende das
condições pragmático-universais garantidas pelos direitos fundamentais, pelos
direitos políticos –, nos esclarece o processo discursivo-racional de construção do
direito: a legitimidade ou a racionalidade da construção do direito por um pro-
cesso legislativo é dependente, pois, da garantia dos pressupostos comunicativos
referidos à pragmática-universal a cobrar, de todos, igualdade de possibilidades de
manifestação livre em uma discussão, livre de pressões psicológicas ou físicas,
inclusive, bem como livre do “poder” quase “sobrenatural”, porque não sobrevi-
vente a um discurso aberto a críticas, de uma autoridade a supostamente justificar
“por si”, por sua simbologia naturalizada, a “força” de sua decisão... antes, nos per-
mite concluir haBermaS, decisões em sede de processos comunicativos orientados
ao entendimento somente se sustentam publicamente quando ancoradas na força
do melhor argumento, e não na violência ou abuso de poder/autoridade.
na medida que podemos avançar, e constatar que o processo de aplicação do
direito é também um processo comunicativo orientado à construção de um con-
senso, orientado ao entendimento, podemos perceber que também os pressupos-
tos atinentes à pragmática-universal hão de ser respeitados, caso se pretenda
alcançar uma decisão jurisdicional que seja racional. isso implica afirmar que
aqueles afetados pela decisão têm que ter reconhecidos, em sede do processo juris-
dicional, iguais direitos de participação na construção desse processo, o que se
refere, pois, à apresentação livre de argumentos referentes ao caso e ao direito. o
reconhecimento do contraditório, vez que reconhecimento de iguais possibilida-
des de participação no processo, e da ampla argumentação, vez que reconheci-
mento de liberdade argumentativa referente ao objeto de discussão no processo,
tornam-se indispensáveis para uma praxis jurisdicional legítima.
atrelada a essas questões temos a própria exigência da fundamentação das
decisões: afinal, a pretensão de racionalidade/legitimidade do processo jurisdicio-
nal está entrelaçada à assunção, de todos os envolvidos nesse processo, com as
questões nele levantadas e debatidas argumentativamente. com isso a autoridade
jurisdicional se torna, desde uma racionalidade comunicativa, obrigada a funda-
mentar, detidamente, sua decisão, se valendo dos argumentos e provas apresenta-
dos pelas partes, levando a sério aquilo reconstruído no bojo do processo a partir
do qual tem o dever de aplicar o direito ao caso.
afirmamos, com isso, que uma adequada atividade jurisdicional envolve a
assunção, por parte da autoridade jurisdicional, desses pressupostos comunicativos
de interpretação e compreensão do direito. concluímos, portanto, que não se pode
pretender interpretar o direito moderno sem ter em mente o respeito à pragmáti-
ca-universal que se conecta à própria realização e operacionalização do sentido do
direito, qual seja, o de igual reconhecimento de liberdades fundamentais a todos,
na maior medida possível. nesse ponto em específico podemos já esclarecer a tam-
bém co-dependência entre as dimensões hermenêutica e pragmática-universal: afi-
nal, os pressupostos de interpretação e compreensão do direito antes que se afastar
dos pressupostos da pragmática-universal, deles compartilham, nos fazendo, pois,
esclarecer que o sentido do direito moderno está atrelado ao aprofundamento na
compreensão dos pressupostos de reconhecimento e legitimidade do direito que,
por sua vez, não se deslindam da própria pragmática-universal. Se os direitos fun-
damentais também atrelados estão à idéia de garantias institucionais das condições
de produção e aplicação legítimas/racionais do direito, isso pressupõe, para além do
reconhecimento dos próprios pressupostos pragmático-universais, a idéia de liber-
dades subjetivas e a garantia de uma esfera privada de auto-realização pessoal: pois
só dessa forma é que se pode, inclusive, livremente participar de um processo argu-
mentativo, sustentando opiniões e argumentos próprios, e não alheios... disso
podemos concluir que o reconhecimento institucional dos pressupostos pragmáti-
co-universais pressupõe, por seu turno, outros pressupostos sem os quais não há
como exercer, livremente, a própria liberdade comunicativa.
Tudo isso é compreendido por hÉracLeS, mas ignorado por cronoS. Talvez
seja esse o cerne da razão pela qual o observador-neutro interpretou de maneira
tão simplificada o ato de decisão de cronoS, mas não o participante-imparcial que
viu nas mãos de hÉracLeS o desafio de realizar um trabalho que exigia respeito e
consideração das partes envolvidas.

v. o SenTido de como a JuriSdição não Pode Ser aSSumida como


“FonTe” do direiTo

Por tudo discutido até aqui cabe esclarecer que, não obstante a racionalidade
dos processos legislativos e jurisdicionais entrelaçarem-se com pressupostos prag-
mático-universais, há uma diferença central, entre ambos, que não pode ser olvi-
dada. Se no processo legislativo, argumentos referidos a valores (axiológicos), argu-
mentos morais (referidos à justiça) e argumentos pragmatistas (referidos a uma
concepção a tomar em conta meios adequados para realização de determinados
fins) podem assumir de maneira determinante a força de argumentos capazes de
determinar a decisão legislativa, por outro lado, em um processo jurisdicional tão-
somente argumentos jurídicos podem cobrar força em uma decisão, uma vez que
estamos nos referindo a um discurso de aplicação normativa, e não a um discurso
de criação, ou justificação, de normas.20 afirmamos, com isso, que a racionalidade,
ou a legitimidade, ou a validade, aqui, todas, assumidas como sinônimas, em um

20 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 288 et seq.
processo de aplicação normativa está dependente da compreensão e assunção por
parte da autoridade jurisdicional, inclusive, da diferença argumentativa entre legis-
lação e jurisdição em face, mais uma vez, dos pressupostos comunicativos referidos
à praxis jurídica moderna. argumentos relativos a concepções valorativas, a ques-
tões morais ou a finalidades a serem supostamente alcançadas não conseguem, em
um processo jurisdicional, satisfazer as exigências de um juízo racional de correção
normativa que há que assumir a pluralidade e a complexidade axiológica de nossa
Sociedade, a diferenciação funcional entre o direito e a moral, bem como ainda a
racionalidade comunicativa, e não instrumental ou estratégica, referida ao direito.
Por essas questões, uma decisão jurisdicional somente pode ser assumida como
legítima na medida em que se abre de maneira igual à participação dos afetados,
além de assumir o direito como um sistema de princípios a serem re-interpretados,
no caso concreto, na busca daquela interpretação capaz de permitir, nesse mesmo
caso, uma leitura coerente do próprio sistema jurídico.
com isso afirmamos que o que confere racionalidade ao processo de aplica-
ção do direito não há que ser, em última instância, como pensam KeLSen e
Luhmann, o “saber de especialistas”. o juiz, ou o Tribunal, jamais está legitima-
mente autorizado a “criar” princípios, ou a “inventar” normas para os casos difí-
ceis, não inseridos dentre as “leituras possíveis” ou não anteriormente tomados em
consideração pelos “programas condicionais” que as normas representariam. da
incompreensão neo-positivista tanto de KeLSen, como de Luhmann, devemos
esclarecer que, embora tais pensadores, em desconsideração total à distinção entre
legislação e jurisdição, bem como aos pressupostos hermenêutico-pragmáticos de
construção e compreensão do direito, tenham colocado nas mãos dos especialis-
tas do direito qual deveria ser a solução para um caso antes não convencionado.
isso abriu, e ainda continua a abrir, aos próprios juízes, em face de seu posto pri-
vilegiado na estrutura jurídico-institucional moderna, a possibilidade de “criar”
soluções, “inventar” princípios para superar essa dificuldade, “criando”, pois, nor-
mas, razão pela qual durante longas décadas foi a “jurisprudência” assumida como
“fonte criativa” do direito. afinal, os juízes e os Tribunais, por seu “especial
saber”, seriam dotados de um poder místico de informar, como grandes oráculos
institucionalizados, a bênção que suas decisões pretendiam semear.
o que essa concepção é incapaz de assumir, exatamente porque parte de uma
pretensa neutralidade a tão-somente observar o direito, é que a atividade de apli-
cação jurídico-normativa jamais se pode confundir com a atividade legislativa,
com o processo democrático. do contrário, estaríamos abrindo esferas institucio-
nais de criação normativa que não estariam vulneráveis à participação e pressão
comunicativa de todos os concidadãos. estaríamos conferindo aos especialistas do
direito, que são os juízes e também os ministros dos Tribunais Superiores, o títu-
lo de “legisladores de plantão”, a ocupar o locus do discurso democrático, da pró-
pria Sociedade civil, decidindo, a partir de seus valores, a partir do que acreditam
ser justo e a partir do que gostariam que fosse o direito, “normas jurídicas” que
não passariam de uma interpretação axiológica, moral ou pragmatista daquilo que
eles desejassem que fosse a solução para o caso.
a partir das lições de dWorKin e haBermaS podemos esclarecer que em face
de hard cases a autoridade jurisdicional há de assumir, sim, sua autoridade que, em
uma democracia e em um exercício legítimo, é autorizada. autorizada a assumir
o direito como um sistema de princípios, como um sistema capaz de ser, a cada
novo caso difícil surgido, re-interpretado em face de novos argumentos ou novas
questões trazidas à esfera institucional que a jurisdição representa. afinal, tal
autoridade está autorizada a aplicar o direito ao caso, e não a “inventá-lo” ao seu
gosto ou agrado, e não a “criar” uma solução que entenda mais justa ou capaz de
atingir uma “finalidade” que supostamente embute, em sua interpretação, como
sendo uma “finalidade da norma”... como insistentemente marcado nessas pági-
nas, a autoridade jurisdicional está autorizada a interpretar o direito, perante os
casos, a partir do sentido que a própria prática jurídica, desde o passado, nos infor-
ma qual é, senão o sentido de igual realização dos direitos fundamentais a todos e
em cada caso e na maior medida possível.
nesse sentido, se por um lado podemos afirmar que o juiz, ou os Senhores
ministros, não estão autorizados a inventar normas, a “criar” princípios jurídicos
– mesmo porque princípios jurídicos somente são jurídicos se assumidos como
referidos à praxis discursiva que o direito representa, e não se “inventados” por
um especialista –, o que certamente levaria Luhmann a vislumbrar a geração de
uma “variação” no sistema, por outro lado o que nos parece adequado reconhecer
é que os julgadores têm reconhecida uma autoridade que assim é assumida por
autorizá-los, e deles cobrar, uma constante re-interpretação do direito, uma con-
tínua re-leitura do sistema do direito, assumindo seus pressupostos e sua comple-
xidade no próprio ato de julgar. a lição que hÉracLeS nos deixa é exatamente a de
que somente quando se assume o direito como esse complexo sistema de princí-
pios jurídicos é que se pode pretender, validamente, a cada caso, construir uma
resposta com respaldo normativo, e não sair em busca de uma solução “soterioló-
gica” a encontrar no saber de especialistas um nicho criativo.
o que devemos colocar em relevo é que muito embora os especialistas do
direito possam ter um posto privilegiado na compreensão do direito, isso jamais
significa que o direito somente possa ser compreendido pelos mesmos e, mais que
isso, que o direito seja aquilo que esses especialistas pretendam que ele seja...
antes, o direito, vez que praxis comunicativa, repousa em pressupostos compar-
tilhados socialmente, compartilháveis, pois, por todos os concidadãos. mesmo
aqueles que corajosamente assumem ser dotados de um “notável saber jurídico”
não estão legitimados a fazer do direito aquilo que eles pensam como tal.
discordando, pois, do Senhor ministro humBerTo gomeS de BarroS: a doutrina
pode, sim, ser extremamente relevante na explicitação desses pressupostos norma-
tivos que o próprio direito carrega consigo, discursivamente problematizando
questões que a prática jurídica possa estar, continuamente, negando nessa busca
incansável por igual realização e reconhecimento, no maior grau possível, de
liberdades subjetivas a todos.
a não ser que se assumam os Tribunais como oráculos, e os juízes como
deuses cronoS a devorar as pretensões normativas das partes, a racionalidade
normativa exige, pois, o dever de interpretar o direito a partir de seus próprios
pressupostos normativos, distinguindo legislação e jurisdição, assumindo que o
direito somente é sustentável porque é obra de uma comunidade jurídica e não de
poucos especialistas, enfim, exigindo imparcialidade do julgador, o que significa,
como constatado por nosso participante-imparcial, jamais uma pretensão de neu-
tralidade, mas o mergulho nos argumentos das partes como forma de distinguir
argumentos jurídicos de argumentos axiológicos, morais e pragmatistas. a impar-
cialidade está em decidir o caso, levando os argumentos das partes a sério, desde
uma perspectiva jurídica, e não se deixando envolver por argumentos outros rela-
tivos a tais ou quais valores, a normas morais, ou às conseqüências, para além dos
direitos e deveres dos afetados, que tal decisão possa ter, ou deixar de ter... enfim,
a decisão há que ser publicamente sustentável, isto é, que se ancorar nos pressu-
postos socialmente compartilhados e referidos à praxis jurídica.
nem a Sociedade, nem a doutrina, hão que se moldar, contrariamente aos
argumentos do Senhor ministro humBerTo gomeS de BarroS, ao pensamento do
Superior Tribunal de Justiça. Talvez falte, não só ao arrogante cronoS, nosso juiz
imaginário e abstrato, mas também a alguns especialistas do direito, mesmo àque-
les de suposto “notável saber jurídico”, a compreensão democrática de que o
direito não é aquilo que eles decidam que seja.
afinal, como outrora nos lembrou meneLicK de carvaLho neTTo, “questio-
nável, por seu turno, é precisamente a atuação privatizante que alguns persona-
gens conseguem realizar no exercício dos mais relevantes cargos públicos da
república. descalçar a legitimidade que empresta dignidade ao exercício dos mais
altos cargos públicos do país é atuar como cronoS, que ao devorar seus próprios
filhos acreditava se eternizar no trono do olimpo.”21

21 carvaLho neTTo, menelick. a revisão ilegítima: entrevista a Paulo Sávio Peixoto maia e denise gama.
Tribuna do Brasil: constituição e democracia, Brasília, unB, 05 de março de 2006, pp. 12.13.
caPíTuLo 6
da LegiSLação:
ou de uma reFLeXão acerca do Seu SenTido normaTivo
em Face da democracia e da coerência no direiTo

i. uma nova veLha QueSTão

marceLa de JeSuS gaLanTe Ferreira, nascida em cidade do interior de São


Paulo, qual seja, Patrocínio Paulista, quando do início da escrita da Primeira
edição deste livro, completara mais de duas semanas de vida.1 não seria de se
estranhar que uma recém-nascida completasse quinze dias de vida. mas o que cha-
mava a atenção da opinião pública neste caso é o fato de se tratar de uma criança
diagnosticada, supostamente e em princípio, como anencéfala.
a médica da criança, que assumidamente, em face de tantos outros casos de
anencefalia já vividos e reportados, afirmara que contra todas e quaisquer expecta-
tivas médicas vinha a criança sobrevivendo por longos dias. marceLa respirava com
ajuda de aparelhos que regulam a quantidade de oxigênio que, todavia, no final da
segunda semana e início da terceira, tivera uma redução em face da “melhora” do
quadro da paciente. as convulsões e febres que foram mais comuns na primeira
semana também não mais se apresentavam, informando, ainda, a pediatra, que
marceLa não mais estava a receber qualquer tipo de medicamento na veia, manten-
do-se, contudo, a alimentação intravenosa pois, por não mais conseguir respirar sem
o auxílio de qualquer aparelho, era incapaz a recém-nascida de sugar o leite do seio
de sua mãe, como todavia veio conseguindo até o décimo dia de vida.

1 cf.: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u129021.shtml>. acessado em 06/12/2006. entretanto,


cabe salientar que marceLa veio a falecer um ano e oito meses após o seu nascimento, momento este em que foi
diagnosticada como anencéfala. Todavia, cabe salientar que na audiência pública realizada pelo Supremo
Tribunal Federal, para o debate em torno do reconhecimento, ou não, da legitimidade jurídica da realização do
aborto de anencéfalos, no dia 04 de setembro de 2008, “o representante da Sociedade Brasileira de medicina
Fetal, heverTon PeTTerSen, mostrou ultra-sonografias e exames de marceLa de JeSuS e disse que não se trata de
uma criança com anencefalia, principalmente por apresentar cerebelo. ele citou ainda que, para a medicina, dois
aspectos indicam a morte: a parada cardíaca e a morte encefálica e disse que um feto anencéfalo é um ‘natimor-
to neurológico’”, segundo o site da Folha on line. disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidi-
ano/ult95u441285.shtml>. acessado em 27/02/2009. veremos como argumentos “biologicistas” não podem
determinar a solução ao caso, embora sejam sempre relevantes como elementos para sua reconstrução e entendi-
mento. cabe salientar que o Supremo Tribunal Federal, até a data de fechamento desta edição, qual seja, dia 28
de fevereiro de 2009, ainda não enfrentara o mérito da adPF em questão.
Surpreendente, por outro lado, é o depoimento da profissional da medicina
que acompanha o caso ao afirmar que marceLa, em caso de alta, “precisaria
somente” de acompanhamento de fisioterapeutas em casa, porque contraditoria-
mente, em seguida afirma que a “evolução” do quadro clínico é imprevisível, sem
qualquer projeção de como seriam os dias seguintes...
a mãe da criança ficou em quarto cedido pela Santa casa da cidade e apesar
de os profissionais da Saúde terem, à época, alertado sobre a impossibilidade de
sobrevida, ainda assim guardava as esperanças. isso porque casos de anencefalia,
apesar de marceLa ter nascido com o bulbo cerebral e a medula, responsáveis pelo
controle da respiração e batimentos cardíacos, se caracterizam como quadros anô-
malos em que há inviabilização da manutenção das funções vitais do corpo.
casos de gestação de fetos anencéfalos vêm sendo debatidos de maneira mais
incisiva tanto por órgãos institucionalizados, como pela Sociedade civil, sobretudo,
mas não só, a partir da liminar que o ministro marco aurÉLio concedeu em face do
pedido da confederação nacional dos Trabalhadores na Saúde (cnTS), em julho de
2004, reconhecendo, pois, que as gestantes teriam direito de interromper a gravidez
através de intervenções médicas quando o feto gerado fosse anencéfalo. esta foi a pri-
meira vez em que o Supremo Tribunal Federal enfrenta a questão da anencefalia sob
o ângulo do reconhecimento do direito de interrupção da gravidez. isso porque em
março do mesmo ano o próprio STF veio a julgar um habeas corpus referente ao reco-
nhecimento a uma mãe do direito de prática de interrupção da gravidez em razão da
anencefalia do feto que, todavia, fora julgado prejudicado porque, antes do julgamen-
to do mérito, a criança veio a nascer e sobreviver por apenas alguns minutos.2
as razões pelas quais a cnTS ingressou com o pedido através de uma
argüição de descumprimento de Preceito Fundamental (adPF n. 54) dizem res-
peito, sobretudo, e segundo a entidade, ao fato de haver ao mesmo tempo decisões
jurisprudenciais, em todo o país, que reconheciam o direito das gestantes e outras
decisões em sentido contrário. o que também se pretendia, portanto, era a supe-
ração de um quadro “instável” aos profissionais da Saúde, sobretudo na busca pelo
reconhecimento, por parte do Supremo Tribunal Federal da legitimidade da inter-
rupção da gravidez como antecipação terapêutica do parto. isso porque a própria
cnTS veio a esclarecer que a anencefalia é uma formação fetal congênita, irrever-
sível e sempre incompatível com a vida fora do útero que, todavia, pode ser detec-
tada, desde antes, por seguros exames de ecografia.
mas prossegue a argumentação da cnTS, o que o ministro marco aurÉLio
também nos apresenta em sua decisão-liminar, que a “permanência de feto anôma-
lo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à

2 Trata-se do hc 84025, oriundo do rio de Janeiro, julgado em 04 de março de 2004 e cujo relator fora o
ministro JoaQuim BarBoSa.
saúde e à vida da gestante”, sobretudo em razão de índices altos de morte intra-ute-
rinos dos fetos anencéfalos. Por estas razões, inclusive, é que se pleiteou o reconhe-
cimento da interrupção da gravidez como antecipação terapêutica do parto.
como ainda o ministro marco aurÉLio nos permite observar, fora em prin-
cípio, pois, solicitado que se reconhecesse o direito subjetivo da gestante de rea-
lizar a antecipação terapêutica do parto sem a necessidade de apresentação prévia
de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do estado,
desde que feito o diagnóstico por médico habilitado.
em liminar, do dia 1º de julho de 2004, e como já ressaltado, o ministro
marco aurÉLio, no reconhecimento da “dignidade da pessoa humana”, e assumin-
do que a ciência médica, em casos de anencefalia, “atua com margem de certeza
igual a 100%”, desenvolve sua argumentação, na concessão do pedido, afirmando
que se trata “de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – que conflita
com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade”.
o advogado da entidade no caso, LuíS roBerTo BarroSo, compreende, em
entrevista à Folha online, em 2 de julho de 2004,3 e à luz do que se esteve a deba-
ter, que obviamente a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia deve,
como referido, ser compreendida como antecipação terapêutica do parto, e não
como aborto, uma vez que faltante estaria o pressuposto central para a caracteri-
zação desse crime, qual seja, a viabilidade da vida em gestação – o que não existe
em casos de anencefalia. além disso, afirma o advogado que obrigar a mulher a
manter-se grávida nesses casos seria uma situação de violação de sua integridade
física, visto que seu corpo passará “inutilmente”, em suas palavras, por inúmeras
transformações, uma vez que o feto não terá viabilidade de vida fora do útero,
acrescentando ainda que “os sentimentos por que passa uma gestante obrigada a
levar a termo uma gravidez desse tipo se equiparam à tortura psicológica”. ainda
teve o advogado o cuidado de ressaltar que a submissão à antecipação terapêutica
há que ser interpretada como um direito da mulher que, de acordo com suas con-
vicções, pode, por outro lado, decidir também levar a gravidez adiante.
não obstante somente em 2004 tal questionamento ter sido levado ao STF,
órgãos das Justiças estaduais vêm, desde há muito, reconhecendo a interrupção de
gravidez de fetos sem cérebro. Segundo se pôde apurar, a primeira decisão juris-
dicional no Brasil autorizadora da interrupção de gravidez em razão do diagnósti-
co médico de anencefalia se deu em 1989 no estado de rondônia. várias outras
foram proferidas e uma, inclusive, às “vésperas” da liminar concedida pelo STF,
pelo Tribunal de Justiça do rio grande do Sul.4

3 cf.: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u96407.shtml>. acessado em 06/12/2006.


4 cf.: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u96454.shtml>. acessado em 06/12/2006.
como era de se esperar, a decisão por parte do ministro marco aurÉLio infla-
mou, produtivamente, o debate público em nosso país. entidades representativas
de classes, mas não só, passaram a se posicionar em face da liminar concedida.
a ordem dos advogados do Brasil, que inicialmente não opinou sobre a
decisão, optou, em 2 de julho de 2004, por compor um grupo de especialistas na
área de Biodireito para examinar os elementos apresentados pelo caso para,
somente depois, divulgar sua posição oficial. Posição esta revelada em nota em 16
de agosto do mesmo ano, na qual esclarece que o conselho Federal da oaB não
veio a interpretar a interrupção da gestação, em casos de fetos anencéfalos, como
sendo práticas abortivas, sob o argumento de que não seria aceitável, sabendo-se
que o feto não tem condições de vida fora do útero, assumir como aborto a inter-
rupção da gravidez.5
Por outro lado, a conferência nacional dos Bispos do Brasil, desde o início,
opinou de forma radicalmente contrária aos argumentos apresentados na liminar
em questão. isso porque entende que a gravidez jamais deveria ser interrompida,
mesmo em casos em que o feto não possua cérebro.6 de acordo com o, à época,
secretário geral da cnBB, dom odiLo Pedro Scherer, os fetos mesmo sem cére-
bro teriam “dignidade da pessoa humana”, e que não reconhecer que “não há vida”
em razão da ausência de um órgão seria um contra-senso em razão de gestações se
desenvolverem e até culminarem com o nascimento da criança anencéfala.7 vale
ressaltar que, mesmo antes da liminar do ministro marco aurÉLio, a cnBB vem
tentando participar das discussões processuais, na qualidade amicus curiae, pre-
tensão esta indeferida pelo ministro relator em 24 de junho de 2004.8
não obstante as discussões terem se tornado inflamadas, em razão do reconhe-
cimento em liminar do direito das gestantes interromperem terapeuticamente a gra-
videz, e se valendo de tal reconhecimento, foram realizadas, ainda em julho de 2004,
algumas interrupções de gravidez, como em São Paulo e no rio de Janeiro.9
em 2 de agosto de 2004 o STF, por decisão unânime, deliberou que a apre-
ciação da matéria fosse julgada em definitivo no mérito, abrindo, portanto, vista
dos autos ao então Procurador-geral da república, cLÁudio FonTeLeS, que em 19

5 cf.: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98285.shtml>. acessado em 06/12/2006.


6 cf.: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u98285.shtml>. acessado em 06/12/2006.
7 cf.: <http://www.1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u96379.shtml>. acessado em 06/12/2006.
8 Segundo o ministro marco aurÉLio, em sua decisão sobre a admissão da cnBB como amicus curiae: “o
pedido não se enquadra no texto legal evocado pela requerente. Seria dado versar sobre a aplicação, por ana-
logia, da Lei n. 9.868/99, que disciplina também o processo objetivo – ação direta de inconstitucionalidade
e ação declaratória de constitucionalidade. Todavia, a admissão de terceiros não implica o reconhecimento
de direito subjetivo a tanto. Fica a critério do relator, caso entenda oportuno. eis a inteligência do artigo
7º, § 2º, da Lei n. 9.868/99, sob pena de tumulto processual. Tanto é assim que o ato do relator, situado no
campo da prática de ofício, não é suscetível de impugnação por via recursal.”
9 cf.: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u96853.shtml >. acessado em 06/12/2006.
de agosto devolveu os autos ao STF oferecendo parecer no sentido de não se defe-
rir o pedido conforme a interpretação apresentada pela argüente. Também se posi-
cionou de maneira contrária, pois, à liminar concedida pelo ministro marco
aurÉLio, colocando-se, assim, por sua rejeição. FonTeLeS sugeriu que essa questão
fosse decidida pelo congresso, e não pelo Supremo Tribunal Federal...
certamente levando em consideração o debate público instaurado pela deci-
são liminar por si concedida, e em face de inúmeros pedidos por parte de entida-
des organizadas para serem admitidas no feito na qualidade de amicus curiae – não
só da cnBB, mas também da associação nacional pró-vida e pró-Família e
associação univida, da associação de desenvolvimento da Família (adef), da
católicas Pelo direito de decidir – e de PauLo reSTiFFe neTTo na qualidade de
“curador do nascituro”, o ministro marco aurÉLio, em 30 de setembro, veio a
propor uma audiência pública, segundo o que se pode apreender de suas linhas:

“a matéria em análise deságua em questionamentos múltiplos. a repercussão do que


decidido sob o ângulo precário e efêmero da medida liminar redundou na emissão de
entendimentos diversos, atuando a própria Sociedade. daí a conveniência de acio-
nar-se o disposto no artigo 6º, § 1º, da Lei n. 9882 de 3/12/1999 (...) então, tenho
como oportuno ouvir, em audiência pública, não só as entidades que requereram a
admissão no processo como amicus curiae (...) como também as seguintes entidades:
Federação Brasileira de ginecologia e obstetrícia, Sociedade Brasileira de genética
clínica, Sociedade Brasileira de medicina Fetal, conselho Federal de medicina, rede
nacional Feminista de Saúde, direitos Sociais e direitos representativos, escola de
gente, igreja universal, instituto de Biotécnica, direitos humanos e gênero (...)
deputado Federal JoSÉ ariSTodemo PinoTTi.”

no mesmo dia, o ministério Público Federal juntou solicitação aos autos no


sentido de que a via eleita pela argüente não caberia para o tratamento do tema,
solicitando, pois, o arquivamento da adPF.
no dia 20 de outubro de 2004, o Supremo Tribunal Federal veio a revogar a
liminar no caso, concedida em 1º de julho. Logo no início do julgamento, o então
Procurador-geral da república, cLÁudio FonTeLeS, sustentou que não caberia ao
Supremo Tribunal Federal enfrentar a matéria em questão pela adPF por supos-
tamente ser matéria de competência do Poder Legislativo. em tal decisão, o
Supremo, entretanto, referendou a primeira parte da liminar no que diz respeito
ao sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, ficando
vencido tão-somente o ministro cezar PeLuSo.
Posteriormente, os ministros passaram a deliberar sobre a revogação da limi-
nar concedida no que tange ao reconhecimento do direito à gestante de realizar a
antecipação terapêutica do parto. em maioria – eroS grau, JoaQuim BarBoSa,
cezar PeLuSo, giLmar mendeS, eLLen gracie, carLoS veLLoSo e neLSon JoBim –,
os ministros decidiram pela revogação da liminar no que se refere ao reconheci-
mento da interrupção da gravidez em casos diagnosticados de anencefalia, fican-
do vencidos o ministro-relator marco aurÉLio, e os ministros carLoS ayreS
BriTTo, ceLSo de meLLo e SePúLveda PerTence.
como esclarecido, dita decisão se referiu à revogação da liminar que, toda-
via, gerou efeitos jurídicos a alcançar as, porventura, antecipações terapêuticas do
parto realizadas entre a data de sua concessão, dia 1º de julho, e a data de sua revo-
gação, dia 20 de outubro de 2004.
não obstante a decisão ter-se pautado pelo efeito suspensivo de processos em
andamento, e levando-se em consideração o esquema constitucional brasileiro a
reconhecer não somente o controle concentrado de constitucionalidade, mas tam-
bém o controle difuso, inúmeras decisões posteriores à revogação, sejam de
Primeira ou de Segunda instância, continuaram a reconhecer o direito às gestan-
tes de interromperem a gravidez em casos de comprovada má-formação fetal em
razão da anencefalia.
assim foi a decisão proferida pelo juiz da 1a vara criminal de goiânia que,
em novembro de 2004, veio a reconhecer o direito à antecipação terapêutica em
face de laudos médicos que comprovaram a “impossibilidade de vida biológica e
moral”. na sentença, o juiz não ignorou a revogação da liminar, mas veio a afir-
mar sua “autonomia para decidir de maneira diversa”.10
Por seu lado, em 09 de março de 2005, o conselho nacional de Saúde apro-
vou uma resolução em favor do direito à interrupção da gravidez. apesar de não
poder ser assumida como norma jurídica a permitir a solução dos casos controver-
sos, tal resolução acabaria servindo como diretriz para as políticas do Sistema
único de Saúde (SuS), caso o STF venha a reconhecer essa hipótese de antecipa-
ção terapêutica do parto. a decisão do cnS foi antecedida de intensa discussão de
argumentos jurídicos e médicos contra e a favor da interrupção da gestação em
casos de anencefalia. contra a resolução votaram os representantes da cnBB
(ziLda arnS), da confederação Brasileira de aposentados e Pensionistas (geraLdo
adão SanToS, suplente) e da entidade nacional de Portadores de Patologias e
deficiências (gySeLLe Saddi).11
o que devemos ressaltar é que a discussão e decisão por parte do STF ainda
não enfrentou o mérito da questão. a revogação da liminar, como tal, não findou
a discussão. muito antes pelo contrário, acabou tornando-a mais profunda.
em resposta à solicitação do ministério Público Federal feita em 30 de setem-
bro de 2004, e que se refere à questão de ordem alusiva ao não-cabimento da via

10 cf.: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u102005.shtml>. acessado em 06/12/2006.


11 cf.: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u106612.shtml>. acessado em 06/12/2006.
eleita ao tratamento do tema, o próprio Supremo veio a decidir se seria, ou não
competente para decidir o mérito em face da argumentação do então Procurador-
geral da república, além de também discutir se a argüição de descumprimento
de Preceito Fundamental seria, ou não, admissível a esse caso.
em julgamento realizado em plenário, e apesar da enorme pressão de entida-
des contra o reconhecimento da interrupção da gravidez em casos de anencefalia,
o Supremo Tribunal Federal veio, em 28 de abril de 2005, por maioria, a entender
ser admissível a via da adPF para se decidir o caso. Foram, nesse julgamento, ven-
cidos os ministros eroS grau, cezar PeLuSo, carLoS veLLoSo e eLLen gracie.
assim, fora rejeitada pelo Supremo, a proposta de arquivamento de cLÁudio
FonTeLeS.
Por seu turno, a audiência pública a ser convocada em face da decisão do
ministro-relator, em 30 de setembro de 2004, ainda não fora realizada, razão pela
qual em 24 de maio de 2005 é juntada aos autos petição da Procuradoria-geral da
república requerendo, ao ministro-relator, a realização da audiência. a movi-
mentação por parte da Sociedade civil também não parou. em 1º de julho de 2005,
exatamente um ano após a concessão da liminar pelo ministro marco aurÉLio, a
conectas direitos humanos e o centro de direitos humanos (cdh) requereram
a admissão no feito na qualidade de amicus curiae.
não obstante a discussão não ter alcançado o mérito no seio da adPF/54,
mesmo após a decisão da questão de ordem tomada em 28 de abril de 2005, os
Tribunais e juízes vêm amplamente reconhecendo a possibilidade jurídica de
interrupção de gravidez em casos de anencefalia. assim decidiu o Tribunal de
Justiça do estado de Pernambuco (Terceira câmara cível), em 9 de maio de 2005,
sob a alegação de que a gestação de feto anencéfalo vem a vulnerar a “saúde física
e psíquica da mulher, como também atenta contra a sua dignidade”; o então juiz
substituto em Tupanciretã, no rio grande do Sul, em 11 de maio de 2005; o
Tribunal de Justiça do estado de minas gerais (décima Terceira câmara cível),
em 4 de agosto de 2005, dentre tantas outras decisões capazes de serem vislumbra-
das pelos Tribunais de Justiça e no interior do País.
até o resistente Superior Tribunal de Justiça veio, em 23 de dezembro de
2005, a reconhecer o direito à gestante de interromper a gestação em casos de
anencefalia. em liminar concedida, o então ministro edSon vidigaL veio a reco-
nhecer que

“nesse contexto, certo é que a gestação infrutífera ora impugnada trará riscos à pró-
pria saúde da gestante, que poderá sofrer por toda sua vida dos danos, senão físicos,
dos prejuízos psicológicos advindos do fato de carregar nove meses uma criança em
seu ventre fadada ao fracasso.”
Por outro lado, e paralelamente às discussões jurisdicionais, a comissão de
Seguridade Social e Família da câmara dos deputados votaria em novembro de
2005 o projeto de lei que traria a proposta de descriminalização de aborto no País.
Segundo esse projeto, a mulher poderia optar pelo aborto até a 12a semana de ges-
tação, sem apresentar qualquer motivo que justificasse tal prática, e até a 20a
semana se a gravidez tivesse resultado de estupro. Por outro lado, em casos de
anencefalia, ou de risco para a gestante, a interrupção da gravidez poderia ser rea-
lizada a qualquer momento. Todavia, a pedido de deputada participante da
comissão, a votação foi adiada para data posterior na qual, todavia, não fora rea-
lizada por falta de quórum.
em face dos vários argumentos e posicionamentos que estão a disputar um
melhor juízo sobre a questão da anencefalia, podemos pontuar alguns questiona-
mentos que merecem ser melhor aprofundados.
o fato de marceLa, recém-nascida anencéfala no estado de São Paulo, resistir
bravamente em vida por mais de quinze dias, deve ser considerado como um argu-
mento determinante contra a interrupção da gravidez em casos de anencefalia?
Podemos afirmar que a gestante, em razão do diagnóstico médico a constatar
a má-formação fetal concernente à ausência de crânio, ou de estruturas cerebrais
indispensáveis à manutenção da vida, tem o direito de decidir sobre o adianta-
mento terapêutico do parto? isso se justificaria à luz da garantia de sua integrida-
de física e autonomia privada?
Por outro lado, o nascituro, sobretudo em face da proposta de participação de
um “curador” peticionada em face da adPF/54, em 29 de setembro de 2004, não
teria direitos a serem jurisdicionalmente resguardados, tais como o direito à vida,
à integridade física e à dignidade da pessoa?
diante dos argumentos levantados pelo então Procurador-geral da
república, tratar-se-ia essa matéria de uma questão a ser debatida e decidida em
sede do Poder Legislativo, e não do Poder Judiciário, por ser uma questão extre-
mamente controversa e que mereceria maior “reflexão social” sobre o tema?
o que se pretende discutir, pois, é a velha questão em torno do sentido de se
interpretar a legislação em conformidade com, e não contra, o direito...
Buscaremos responder a esses questionamentos partindo, sobretudo, dos
votos vencidos da ministra eLLen gracie e do então ministro carLoS veLLoSo à
questão de ordem levantada pelo então Procurador-geral cLÁudio FonTeLeS.
assim, na reconstrução dos argumentos dos ministros, já procuraremos apontar
algumas críticas a pressupostos que sempre rondam a interpretação do direito,
sobretudo quando o que se está em jogo é uma interpretação construtiva do
direito (ii). em seguida, ofereceremos críticas a concepções interpretativas que
pretendem superar as dificuldades hermenêuticas referindo-se a uma “intenção
legislativa” ou “intenção da lei”, com o auxílio da proposta teórica de dWorKin (iii
e iv). Por fim, apresentaremos em que sentido podemos interpretar, juridicamen-
te, a questão da interrupção da gravidez em casos de anencefalia em uma socieda-
de que luta pelo reconhecimento, no maior grau possível, de iguais direitos fun-
damentais a todos os concidadãos12 (v).

ii. o imPÉrio de aSTrÉia

nas discussões processuais acerca da questão de ordem proposta pelo então


Procurador-geral da república, cLÁudio FonTeLeS, em face da argüição de
descumprimento de Preceito Fundamental número 54, a discutir a constituciona-
lidade, ou não, da prática de interrupção de gravidez quando da gestação de feto
anencéfalo, vários argumentos foram levantados, pelos ministros do Supremo
Tribunal Federal, ora para reconhecer, ora para rejeitar, a possibilidade jurídica de
se fazer, legitimamente, a interrupção da gestação. dentre aqueles que acredita-
ram não ser a adPF o foro discursivo adequado à solução da controvérsia, por ser
crime de aborto a cessação do período de gestação, temos o voto vencido da
ministra eLLen gracie cujos argumentos merecem ser melhor enfrentados de
maneira crítico-reflexiva.
referindo-se, logo no início do seu voto, realizado no dia 27 de abril de 2005,
em Tribunal Pleno, à disposição legislativa concernente ao crime de aborto, inda-
ga a Senhora ministra:

“o que vem a crivo do Tribunal nesta ação? uma norma velha de 65 anos que, ao
momento da promulgação da constituição Federal de 1988, foi recepcionada como
todo o código Penal.”

Primeiramente, cabe-nos ressaltar uma enorme impropriedade capaz de ser


inicialmente percebida no pequeno trecho acima. não nos parece, de maneira
alguma, adequado dizer que uma determinada norma, adjetivada como “velha”,
tenha sido recepcionada, no momento da promulgação da constituição da
república, em 1988, como todo o código Penal.
inicialmente podemos pontuar afirmando que a questão em torno da recep-
ção constitucional de determinada norma não é algo capaz de ser pretendido em
termos definitivos, muito menos in totum. com isso, colocamos a claro que norma

12 complementar ao que aqui vamos discutir, devem ser assumidas leituras que buscam compreender a figu-
ra da desobediência civil no marco do constitucionalismo moderno. cf., sobretudo, em nosso País: SaLcedo
rePoLêS, maria Fernanda. habermas e a desobediência civil. Belo horizonte: mandamentos, 2003; riBeiro,
Fernando José armando. conflitos no estado constitucional democrático: por uma compreensão jurídica da
desobediência civil. Belo horizonte: mandamentos, 2004.
é diferente de texto legislativo, muito embora possamos, indubitavelmente, ter
normas que assumam, que tenham, por referência, um determinado diploma nor-
mativo. esta é, inclusive, uma característica atrelada ao direito da modernidade,
à sua forma jurídica moderna, como temos visto nos capítulos anteriores.
assim, vários questionamentos em torno do controle de constitucionalidade
de normas, bem como da recepção constitucional, merecem ser melhor revisita-
dos, noutro local, à luz da compreensão de que norma somente pode ser assumi-
da como interpretação...13 afirmar que determinada norma fora, ou não, recep-
cionada, bem como pretender se determinada norma é, ou não, constitucional,
tem diretamente a ver com uma questão interpretativa. e como atividade herme-
nêutica, a interpretação normativa é um processo constante, contínuo, a sempre
exigir dos intérpretes uma postura de abertura e crítica interpretativas capazes de
levar adiante o processo e projeto de modernização do direito.
a postura a ser assumida pelos intérpretes jamais pode confundir-se com a
daqueles que se cegam às circunstâncias do caso e às re-interpretações, do direito,
capazes de, na busca de uma coerência interpretativa, assumir o direito como um
sistema de princípios prima facie aplicáveis.14
a era de aSTrÉia,15 não só em razão de uma suposta fundamentação ou jus-
tificação moral do direito, mas também em razão das vendas que traz sobre seus
olhos, deve ser superada. a ruptura que representa o ato de arrancar as vendas de
aSTrÉia não se pode dar senão de maneira radical. e se de maneira radical isso
ocorre, é porque não se dá sem crises, sem uma profunda reflexão acerca de ques-
tões constantemente assentadas e assumidas de maneira não-problematizada na
prática argumentativa do direito. metaforicamente, essa juíza aSTrÉia, cegamen-
te incapaz de perceber questões que hoje não se fazem mais intransparentes, con-
tinua a pensar o direito desde o seu particular arcabouço compreensivo, porque
não se manteve, e não se mantém, aberta a questões outras que cotidianamente ao
direito se colocam.

13 cf., nesse sentido, o Posfácio em: chamon Junior, Lúcio antônio. Filosofia do direito na alta modernidade:
incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e habermas, cit.
14 günTher, Klaus. The sense of appropriateness: application discourses in morality and Law, cit.; günTher,
Klaus. un concepto normativo de coherencia para una teoría de la argumentación jurídica, cit.
15 aSTrÉia é uma personagem mitológica grega sobre a qual pairam inúmeras controvérsias. Filha de TêmiS e
zeuS, aSTrÉia seria a personificação da justiça a carregar uma espada e uma balança como forma de semear
entre os homens os sentimentos de justiça e virtude. isso, durante a idade de ouro, porque aSTrÉia, ao se
dar conta da “degeneração moral” dos homens a se espalhar pelo mundo, voltou-se aos céus cristalizando-
se na constelação de virgem. Segundo os estudiosos, a releitura romana de aSTrÉia seria referida à imagem
da deusa JuSTiça, ora também confundida com diKÉ, mas não com TêmiS, igualmente mãe de diKÉ na
mitologia grega. cf., nesse sentido: grimaL, Pierre. dicionário da mitologia grega e romana. 2.ed. rio de
Janeiro: Bertrand, 1993, p. 51; p. 262; p. 435. há quem afirme que somente em roma é que a deusa adqui-
re as vendas sobre os olhos. aqui, assumiremos a figura de aSTrÉia de maneira a levar em consideração
inclusive, pois, as releituras que dela foram, com o passar dos tempos, realizadas.
aSTrÉia é cega, mas não para tudo. Também não podemos pretender que a
ela tudo se faça claro... Sabemos que num mundo mediado lingüisticamente, per-
passado por dimensões hermenêutica e pragmática-universal, somente capaz,
pois, de ser compreendido paradigmaticamente, determinadas questões a nós se
fazem, constantemente, e de maneira contingente, transparentes, e também
intransparentes. mas o que tomamos como central é o fato de aSTrÉia ser aqui
cega para questões centrais e extremamente caras ao direito moderno, quais
sejam, o projeto jurídico-moderno, a função do direito da modernidade e a com-
preensão do direito como sistema principiológico de normas prima facie aplicá-
veis em seu ideal de coerência.
a juíza aSTrÉia certamente compartilha de questões basilares e referentes a
todo o direito. Provavelmente enxerga seu juízo como um foro que há de ser assu-
mido responsavelmente. entende que sua tarefa há de ser uma tarefa de tratar
situações similares, iguais, de maneira igual, e os casos diversos de maneira tam-
bém distinta. Todavia, a cegueira de aSTrÉia a deixa em dúvida acerca de quais
critérios devem ser seriamente assumidos na construção em seu juízo da distinção
entre igualdades e diferenças.
o que se faz mais palpável à figura dessa juíza, aqui metaforicamente toma-
da em conta, é o texto das leis. acredita ser o texto legislativo a fonte da qual as
controvérsias jurídicas devem partir e encontrar seu porto. certamente porque de
sua constelação, aSTrÉia se apavora ao supor que estaria sendo injusta ao propor
uma “leitura inovadora” e que não tivesse referência expressa ao diploma legisla-
tivo. Poderiam acusá-la, exatamente por ter seus olhos vendados, de se valer dessa
situação para inventivamente impor soluções controversas e sem sustentabilidade
jurídico-interpretativa.
assim é que, partindo dessa metáfora, pretendemos analisar argumentos ven-
cidos e, uma vez mais, referidos à questão de ordem levantada no curso do proces-
so relativo à adPF/54.
na continuidade da construção de seu voto, a ministra eLLen gracie, desen-
volve seu raciocínio afirmando que o próprio código Penal, supostamente todo
recepcionado em face da constituição da república de 1988, nos permitiria vis-
lumbrar, no que tange ao aborto, que “criadas foram duas exceções em que tal prá-
tica não será penalizada”, e que o que se estaria a pretender com referida argüição
de descumprimento de Preceito Fundamental seria a “inserção”, no direito bra-
sileiro, de uma terceira causa exculpante, qual seja, a relativa à antecipação tera-
pêutica do parto em situações de anencefalia do feto gerado. em suas palavras:

“ou seja, que, além do abortamento sentimental (gravidez fruto de violência) e do


abortamento terapêutico (risco para a vida da mãe), também seja isento de penalida-
de o abortamento de feto diagnosticado como anencefálico. É, sem dúvida, atuação
legislativa que se pretende do Tribunal.”

Podemos já perceber o quão forte se faz o apego ao diploma legislativo, como


se da referência tão-somente ao texto legal pudéssemos alcançar e reconstruir o
sentido que o direito nos exige em face desse caso. a ministra, perante o pedido
levado ao Supremo Tribunal Federal, acabou, pois, por partir do pressuposto de
que o código Penal veio a prever duas hipóteses lícitas de interrupção da gravi-
dez, quais sejam, aquelas referidas ao artigo 128 do referido diploma legislativo.
nesse raciocínio, a busca pelo reconhecimento interpretativo e jurídico de uma
terceira hipótese a impedir o juízo de ilicitude em caso de interrupção da gravidez
é interpretada, pela ministra eLLen gracie, como uma pretensa atividade legisla-
tiva que se estaria a rogar ao Tribunal.
Tanto que, em seguida a esse trecho de seu voto, adiciona elementos no sen-
tido de que não poderia, em sua visão, ficar sem registro o fato de que existem inú-
meras iniciativas parlamentares que pretendem “alargar as excludentes de ilicitu-
de da prática de abortamento”. refere-se ainda aos números dos projetos de leis
que dizem respeito a esse assunto, bem como seus respectivos autores, salientan-
do que, enquanto um desses projetos fora arquivado, os outros se encontram em
tramitação nas casas do congresso nacional.
e citando um trecho, aqui reproduzido, do parecer de nÉri da SiLveira, enca-
minhado pela união dos Juristas católicos do rio de Janeiro e São Paulo, confor-
me nos é informado pelo próprio voto, parece eLLen gracie concordar com suas
palavras no sentido de que:

“não há como deixar de conferir à pretensão da autora [cnTS] o evidente intui-


to de ver instituído, por meio de decisão judicial, em controle concentrado de
constitucionalidade, aquilo que o legislador, até hoje, não concedeu, ao não apro-
var projetos de lei, no congresso nacional, com o objetivo de introduzir, no sis-
tema do código Penal, a hipótese de não-punição de aborto praticado, quando se
comprovarem graves anomalias no feto, em termos a não apresentar condições de
sobrevida. (...) não é de admitir-se que (...) se venha a instituir hipótese outra de
excludente de punição, quando o legislador, de forma inequívoca e estrita, alinha
os casos em que o crime em referência não se pune, máxime, na espécie, diante
da existência de proposta legislativa em exame no congresso nacional.” (itálicos
nossos)

embora a figura de aSTrÉia tenha se cristalizado numa distante constelação,


o imaginário daqueles que, cotidianamente, enfrentam questões jurídicas, parece
ainda mergulhado em suas convicções. uma espécie de “complexo de aSTrÉia”,
cuja principal característica seria, no resgate de algumas posturas da escola da
exegese, um forte fetichismo no que tange ao apego ao texto legislativo, numa
busca infinita por uma inalcançável “segurança jurídica”, está sempre a represen-
tar um permanente risco às práticas interpretativas do direito. e aqui já podemos
ver que uma das mais perversas conseqüências que uma postura interpretativa
permeada por tal “complexo” traz é a confusão entre uma adequada distinção
entre atividades legislativas e jurisdicionais.
no caso em discussão, inegavelmente o que se apresenta é uma interpretação
do direito que, além de fortemente se prender aos grilhões textuais de diplomas
normativos – e como se textos fossem normas –, somente se justifica à luz de um
sistema de normas convencionadas a pressupor o direito como referido a esque-
mas normativos negociados, por meio de leis ou “costumes”, a, sempre, abrirem
margem a uma atividade discricionária do julgador. o que a ministra eLLen
gracie tão veementemente pretende denunciar em seu voto é, muito antes pelo
contrário, reafirmado em suas palavras.
Tudo isso, quando da assunção de uma postura hermenêutico-reflexiva a
levar em consideração, e seriamente, as dimensões comunicacionais subjacen-
tes à nossa prática discursiva, torna claro que a argumentação aqui criticada não
se move no terreno de uma compreensão do direito como um sistema ideal-
mente coerente de princípios capazes de, em face de novos casos surgidos,
serem sempre re-interpretados à melhor luz do projeto moderno referido ao
direito, qual seja, de realização de iguais liberdades a todos os cidadãos no
maior grau possível. afinal, somente assim poderíamos considerar e levar
adiante a construção e o reconhecimento contínuo de uma Sociedade de
homens livres e iguais.
Partindo de outros supostos interpretativos, a enxergar na lei o início e o fim
do direito, a argumentação da ministra eLLen gracie foi incapaz de se ater à dife-
rença que o esquema interpretativo levado à discussão estava a nos exigir. e tudo
isso porque não se trata de uma mera questão legislativa; antes, o que se encontra
em jogo é uma interpretação constitucional de direitos fundamentais sem a qual
cairíamos nos equívocos aqui criticados.
em razão de tudo isso não se tornar nítido à ministra, é que vem a avançar
em sua argumentação alegando que o que se estaria a pretender com essa argüição
seria fazer com que o Supremo Tribunal Federal incluísse, inventasse, no direito
brasileiro uma hipótese de exclusão de ilicitude:

“o objeto da ação corresponde inegavelmente à tentativa de obter do Supremo


Tribunal Federal manifestação jurisdicional que acrescente ao ordenamento penal
uma nova hipótese de excludente de ilicitude da prática de abortamento. ou seja,
pede-se ao Tribunal que atue como legislador positivo, preenchendo tal lacuna.” (itá-
licos nossos)
como nossa reflexão tornar-se-á mais clara ao longo dessas páginas, podemos
já esclarecer que o pedido de reconhecimento da legitimidade da antecipação tera-
pêutica do parto em casos de anencefalia do feto não levanta qualquer pretensão
de atuação do Supremo como “legislador positivo”, nem pretende o preenchimen-
to de qualquer “lacuna”, tanto porque uma interpretação constitucionalmente
adequada a uma compreensão procedimental do estado democrático de direito
nos permite afastar não só a atividade jurisdicional de uma suposta ação legislado-
ra, quanto também porque, ao assumirmos o direito como um sistema idealmen-
te coerente de princípios, não mais há espaços a suposições de que haveria lacu-
nas no direito.
muito antes pelo contrário, dos pressupostos dos quais, mui respeitosamente,
parte a Senhora ministra eLLen gracie é que, mais cedo ou mais tarde, acabaría-
mos nos encontrando com os limites normativos do direito a se socorrer, pois, em
uma atividade inventiva e “criadora” dos Tribunais. isso porque ao compreender
o direito de maneira tão fechada, a ministra nos convida, em seus argumentos, a
assumi-lo como esgotando sua força normativa naquilo outrora firmado em acor-
dos legislativos, ainda que democraticamente construídos. o direito, nesta visão,
seria reduzido a convenções firmadas expressa e explicitamente por sujeitos his-
tóricos e que, exatamente por essa razão, seriam incapazes de prever todas as
situações possíveis, imagináveis e futuras de sua aplicação.
e a conseqüência inevitável desse raciocínio seria o reconhecimento de lacu-
nas no direito, a assunção de supostos “espaços não-normatizados” porque desde
antes incapazes de serem previstos pela atividade legislativa – ou até “consuetudi-
nária” – de criação normativa.
o que, partindo desses pressupostos, se torna obscuro, é o fato de o direito
jamais esgotar sua força deontológica em esquemas normativos convencionados.
antes, o direito é um sistema de princípios, um sistema normativo capaz de cons-
tantemente ser “atualizado” interpretativamente à luz de seu sentido moderno,
qual seja, a busca pelo igual reconhecimento de liberdades fundamentais a todos
os cidadãos membros de uma sempre e mesma comunidade política na maior
medida possível. destarte, o sentido normativo do direito, embora, nitidamente,
tenha como referência, na modernidade, textos legislativos, por outro lado não se
pode pretender refém de uma leitura extremamente sufocante e incompleta de
sua dimensão e força normativas.
os princípios jurídicos da liberdade e da igualdade oferecem ao direito um
desafio infindável de constante luta pelo reconhecimento de diferenças, sob a
égide das especificidades de cada caso, na (re)construção do que, em face dessas
diferenças, argumentativamente no bojo de um processo, constatáveis, seja a única
resposta adequada ao caso.
aSTrÉia certamente se assusta com a força dessa afirmação. Pelo contrário,
teme afirmar que existam sempre respostas que possam ser assumidas como “úni-
cas” a cada caso. antes, entende que seu papel seria, a partir de uma leitura e busca
do sentido dos textos legislativos, alcançar qual a decisão a ser tomada em face do
caso a partir do que fora decidido antes. o seu complexo a impede de assumir, de
maneira legítima, os louros de uma reconstrução jurisdicional do que seja, em face
do caso que se lhe apresenta, o igual reconhecimento de liberdades fundamentais
aos afetados pela decisão. como afirmado anteriormente, as vendas que cobrem
seus olhos, a impossibilita de adequadamente vislumbrar as diferenças que fazem
diferença em cada novo caso.
nesse sentido, entende aSTrÉia que toda e qualquer interpretação que, se
valendo do adjetivo “jurídica”, fuja de decisões que antes foram legislativamente
assumidas, seria um sacrilégio, uma violação de sua função que deve ser a todo
custo evitada. isso porque não compreende aSTrÉia que sua atividade não é cega,
mas aberta à busca por uma coerência normativa, a cobrar dos intérpretes-aplica-
dores um juízo de adequabilidade em face das concretas circunstâncias então
apresentadas pelo caso em discussão. e esse reconhecimento jamais se confundi-
ria com a atuação de um “legislador positivo” porque não estaria o intérprete
inventando ou criando uma solução ao caso, mas interpretando adequada e prin-
cipiologicamente as circunstâncias do fato de maneira a desvelar a solução ade-
quada àquele caso.
em descompasso com o que estamos a defender, continua a ministra acres-
centando que a jurisdição constitucional é “normalmente” convocada para
“expungir do ordenamento” normas que sejam inconstitucionais, mas “não para
oferecer acréscimos ao ordenamento positivo em usurpação à competência dos
outros dois poderes” (itálicos nossos). o que estas palavras exprimem é a não-com-
preensão de que uma leitura principiologicamente adequada do direito, em face
da especificidade da situação interpretativa em questão, não se trata de uma ativi-
dade legislativa, nem de uma criação normativa, mas de uma aplicação dos prin-
cípios jurídicos a exigir um juízo de coerência normativa em face dos traços e
aspectos diferenciados que a situação a decidir impõe argumentativamente.
desde que compreendamos o direito como um sistema de princípios, à luz
do que seu desafio nos cobra, isto é, a busca de um igual reconhecimento de direi-
tos fundamentais a todos os membros da comunidade política, na maior medida
possível, podemos entender que a jurisdição não há que ser interpretada nem
como um “legislador positivo”, nem como um “legislador negativo”, a “expungir
do ordenamento” normas incapazes de serem interpretadas coerentemente com a
constituição. muito antes pelo contrário, a atividade jurisdicional é um exercício
de aplicação normativa, ainda que em sede de controle de constitucionalidade.
equivale dizer que a atividade jurisdicional de interpretação e aplicação do
direito não se confunde com os limites e função de uma atividade legislativa, nem
sequer no controverso campo do controle de constitucionalidade.
Por outro lado, reconhecer jurisdicionalmente direitos até então não “previs-
tos” em textos legislativos jamais pode ser sempre confundido com o exercício de
uma atividade legislativa. o Judiciário não pode fugir de seu papel de aplicação
normativa e, pois, de garantia dos direitos fundamentais em casos controversos e
difíceis. a busca por uma solução adequada exige um esforço interpretativo que,
embora não seja óbvio, é capaz de ser realizado desde que assumamos, responsa-
velmente, a tarefa de realização e garantia dos direitos fundamentais a cada caso.
Significa dizer que reconhecer – e não inventar – jurisdicionalmente um
direito ou um dever não convencionalmente firmados pelo Legislativo não impli-
ca extrapolar os limites da função jurisdicional; antes, representa o esforço de se
construir, reconstruindo o direito, a solução que ao caso, e sob o manto da busca,
da maior maneira possível, pela igual realização dos direitos fundamentais, seja
capaz de ser, então, assumida como a solução adequada ao caso. destarte, esse
esforço há que assumir, pois, o desafio que a leitura dos princípios de liberdade e
igualdade em face das peculiaridades do caso impõe. Tudo isso porque o sentido
normativo do direito jamais se pode deixar fazer refém do institucionalmente
convencionado em leis.
a não assunção séria das questões que aqui pontuamos, levou a ministra
eLLen gracie a conclusões que estamos, nestas páginas, contra-argumentando,
sobretudo porque o que se está em jogo é uma determinada compreensão do
direito a nos cobrar, a todo instante, uma postura realizativa na busca e garantia
das liberdades fundamentais de maneira indistinta a todos. assim, não podemos
compartilhar das pretensões argumentativas levantadas pela ministra quando afir-
ma que a jurisdição constitucional deveria atuar

“Sempre numa atividade de excisão, não de inclusão de regras. entre nós, mesmo na
avaliação de inconstitucionalidade por omissão, este Tribunal tem-se limitado a assi-
nalar ao legislador a falha diagnosticada, não se adiantando a preenchê-la.” (itálicos
nossos)

de maneira desafortunada, nessas linhas a Senhora ministra nos torna trans-


parente os pressupostos, de um modelo de normas convencionadas, dos quais
parte à interpretação do direito. como a outra face de uma mesma moeda, o reco-
nhecimento das lacunas, ou “falhas” do direito – a serem reconhecidas em sede de
“controle de constitucionalidade por omissão” – pressupõe uma visão do direito
como a convencionalista. isso significa, uma vez mais, e para esta tradição, que
normas jurídicas seriam aqueles acordos firmados expressamente em processos
legislativos, por exemplo, ou tacitamente a assumirem a forma de “costumes”.
inegavelmente, se as normas jurídicas se reduzem a essas convenções a suposta-
mente esgotar o sentido normativo do direito, quando da aparição ou problema-
tização de um novo caso então não previsto por qualquer dessas “normas”, estaría-
mos diante de um caso de lacuna, ao qual o Tribunal, muitas vezes, tão-somente
se pronuncia no sentido de “avisar” ao Legislativo o “encontro” de mais uma
suposta falha no sistema normativo...
o Tribunal, e essa vem sendo a prática corrente do Supremo Tribunal
Federal, esvazia, destarte, seu próprio papel em uma democracia, qual seja, inter-
pretar à luz do direito, e não somente das leis, qual viria a ser a resposta correta
ao caso que se lhe apresenta. atordoados pelo “complexo de aSTrÉia”, os membros
do Supremo, a exemplo da ministra eLLen gracie, não assumem a tarefa que lhes
cabe de levar adiante o processo de interpretação e aplicação do direito na busca
pelo desdobramento dos direitos fundamentais à luz das mais diferenciadas e
imprevisíveis situações caso a caso problematizáveis. antes, sentem-se derrotados
e impotentes em face da falha reconhecida, cabendo-lhes, em suas visões, tão-
somente alertar ao Legislativo para que legisle acerca daquela matéria.
Percebe-se, pois, quão forte uma compreensão convencionalista do direito se
faz em sua prática interpretativa, ao ponto de o Supremo Tribunal Federal sequer
ser capaz de construir de maneira adequada a distinção que a constituição da
república está a exigir entre a figura do mandado de injunção e a do controle de
constitucionalidade por omissão.16
Partimos de outros pressupostos, de que o direito, assumido como sistema de
princípios, embora não possa desde antes prever todas as possibilidades interpre-
tativas de sua aplicação pode, por sua vez, apresentar, sempre, uma resposta à luz
de suas normas, de seus princípios jurídicos, a cada caso. e isso somente é possível
na medida em que, a um só tempo, afastamos de sua interpretação o sentido de que
há lacunas do direito, de que as normas jurídicas devam ser compreendidas exclu-
sivamente enquanto convenções e de que devemos reconhecer uma discriciona-
riedade e um decisionismo na atividade interpretativa do aplicador do direito.
antes, só a compreensão e assunção na praxis jurídica de seu sentido principioló-
gico é capaz de garantir uma atividade jurisdicional legítima e compromissada
com os ideais de uma democracia na modernidade.
Por outro lado, esses pressupostos convencionalistas na interpretação do
direito, incapazes de se manterem atentos ao sentido que a tomada em considera-
ção das dimensões hermenêutica e pragmática-universal nos cobra, se cristaliza-

16 cf., nesse sentido: caTToni de oliveira, marcelo andrade. Tutela jurisdicional e estado democrático de
direito: por uma compreensão constitucionalmente adequada do mandado de injunção. Belo horizonte:
del rey, 1998.
ram em uma tradicional e corrente noção de que a lei seria a fonte “primordial”,
“principal” ou “superior” do direito moderno.
Também essa questão é refletida no voto da ministra eLLen gracie, quando
concorda, citando trechos de palestra proferida por gomeS canoTiLho, no sentido
de que, nas palavras deste,

“Facultar aos Tribunais constitucionais a faculdade de produzirem normas não deci-


didas pelo legislador e não derivadas expressa e inequivocadamente de uma regra
constitucional será investir os mesmos tribunais em funções legislativas e adminis-
trativas, funções essas que os mesmos Tribunais não possuem, incorrendo as referi-
das decisões normativas em vício de usurpação de poder (...) conferir força obriga-
tória à parte aditiva da sentença será investir a regra criada pelo Tribunal
constitucional numa potência superior à da própria lei.” (itálicos nossos)

a incompreensão tanto da ministra, quanto do Professor, nesse ponto espe-


cífico, se refere ao fato de que as normas jurídicas são dotadas, desde uma óptica
hermenêutico-crítica, de sentido aberto às peculiaridades de cada caso. isso signi-
fica dizer que uma interpretação coerente do direito, a alcançar a interpretação
correta, e única, a cada situação, jamais pode ser pretendida como “criação” de um
Tribunal, não ao menos no sentido de sua invenção, mas, quando muito, no sen-
tido de atualização, naquele caso, do que o direito está a nos cobrar no que diz
respeito ao reconhecimento de liberdades aos afetados por aquela decisão.
com isso, afirmamos que a construção do que seja a leitura correta para cada
caso dos princípios de liberdade e igualdade não significa reconhecer ao Tribunal
um “vício usurpador” como as palavras do constitucionalista português suposta-
mente poderiam nos fazer crer. muito antes, implica sabermos levar a sério aquilo
assumido argumentativamente pelos participantes do processo jurisdicional como
circunstâncias relevantes e determinantes a uma adequada e correta leitura jurídi-
ca do caso. não podemos pretender interpretar os casos que se colocam ao direito
de maneira insensível e distante, como aSTrÉia nos sugere. Pelo contrário, é neces-
sário arrancarmos as vendas que nos impedem de enxergar as diferenças relevan-
tes em cada caso, e isso não nos exige um distanciamento “estelar” em face das
argumentações das partes mas, contrariamente, nos cobra um mergulho profundo
naquilo levantado em cada caso pelos participantes argumentativos de sua recons-
trução processual. não podemos friamente e de maneira distanciada simplesmente
“notificar” o Legislativo para que legisle em casos de supostas “lacunas”...
nem podemos compartilhar da crença de que uma atividade interpretativo-
reconstrutiva por parte dos Tribunais, constitucionais ou não, do sentido do
direito, e que suas normas estão a exigir principiologicamente, seja usurpação de
função legislativa. antes, a assunção dessa tarefa, na linha que aqui se vem deli-
neando, é o que, pois, estaria a garantir uma justificável distinção entre atividade
legislativa e jurisdicional.
Todavia, conclui a ministra eLLen gracie seu voto à questão de ordem levan-
tada na adPF/54, afirmando que

“a sociedade brasileira precisa encarar com seriedade e consciência um problema de


saúde pública que atinge principalmente as mulheres das classes menos favorecidas.
e deve fazê-lo por meio de seus legítimos representantes perante o congresso
nacional, não, ao contrário, por via oblíqua e em foro impróprio, mediante mecanis-
mos artificiosos que (...) acarretaria uma ruptura de princípios basilares, como o da
separação de poderes e a repartição estrita de competências entre eles. Parece-me
profundamente antidemocrático pretender obter, por essa via tão tortuosa da adPF,
manifestação a respeito de um tema que, por ser controverso na sociedade brasilei-
ra, ainda não logrou apreciação conclusiva do congresso nacional (...) não há o
Supremo Tribunal Federal de servir como “atalho fácil” para a obtenção de resulta-
do – a legalização da prática do abortamento – que os representantes eleitos do povo
brasileiro ainda não se dispuseram a enfrentar.” (itálicos nossos)

uma pergunta inicial se deve fazer: fora requerida ao STF a criação de uma
norma, em usurpação de competência do processo legislativo, ou fora solicitado o
reconhecimento de um direito subjetivo a ser assim interpretado em face do que
o sistema jurídico, interpretado à luz dos direitos fundamentais e do ideal de coe-
rência no desdobramento do sistema de direitos, nos informa à especificidade do
caso, qual seja, uma gravidez que à gestante se tornou indesejável em face do qua-
dro irreversível de anencefalia do feto que se encontra em seu ventre?
não seria esta uma questão de direitos fundamentais a merecer uma interpre-
tação mais sofisticada por parte dos membros do Supremo Tribunal Federal, que a
leitura oferecida pela ministra eLLen gracie? definitiva e respeitosamente discor-
damos, in totum, da argumentação aqui colacionada, para retomarmos ao que nes-
tas páginas estamos a afirmar.
o que está em foco no debate desta adPF/54 é uma determinada compreen-
são de direito a nos exigir uma constante abertura e revisão de pontos de vista
normativos cristalizados em face de casos familiares e reiterados. à especificidade
do caso em tela não nos podemos tornar cegos. devemos assumir o que uma apli-
cação do direito, em uma democracia, está a nos exigir, isto é, uma interpretação,
a partir de seus pressupostos, capaz de realizar, em cada caso – e desde seu senti-
do jurisdicional –, o projeto moderno de reconhecimento de iguais direitos a todos
no maior grau possível. isso sim é a tarefa de um Tribunal constitucional, e não a
renúncia a este desafio sob a desculpa de que o congresso nacional “ainda não se
dispôs a enfrentar tema tão controverso”.
a interpretação do direito exige, como já afirmado, uma postura realizativa,
uma postura capaz de assumir seriamente o papel de membro de uma comunida-
de jurídica a compartilhar, intersubjetivamente, princípios jurídicos comuns e
interpretáveis à melhor luz de sua realização indistinta a qualquer indivíduo.
inúmeras questões controversas estão sempre a tramitar nas casas Legislativas ou
são sempre assunto de inúmeros projetos de lei. o convencionalismo extremista
da ministra eLLen gracie está a nos sugerir que sequer casos em discussão pela
opinião pública, ou pelo Poder Público, podem ser julgados e decididos pelo
Tribunal, sob pena de se tomar uma decisão “antidemocrática”...
a incompreensão desse entendimento se centra no fato de que o direito está
mais além daquilo que os textos legislativos podem nos informar. aliás, o sentido
adequado desses mesmos textos legislativos somente pode ser alcançado na medi-
da em que suas interpretações se abrem a uma compreensão do direito como um
sistema de princípios. aqui se centra, portanto, a ruptura em face daquela tradi-
cional e pretensa “superioridade” das leis em face de “outras normas”. mesmo por-
que o que afirmamos é que o texto legislativo não é norma, mas somente o senti-
do atribuído a esse texto é que se pode compreender como dotado de força nor-
mativa.
e para alcançarmos esses múltiplos sentidos atribuíveis a dispositivos legisla-
tivos devemos, simultaneamente, pressupor uma hipótese interpretativa em face
da qual buscamos uma interpretação desses textos que seja coerente com todo o
sistema do direito. com isso, o sentido normativo de convenções legislativas
somente ganha densidade na medida em que abertas se fazem a uma dimensão
principiológica do direito.
equivale, pois, dizer, que não podemos pretender fazer das leis “fontes supre-
mas” ou “superiores” de normas jurídicas; antes, devemos reconhecer que a cons-
trução legislativa, fruto de um devido processo democrático, somente adquire sen-
tido interpretável quando a assumimos como inserida em uma atividade de inter-
pretação principiológica. Somente quando problematizamos e assumimos em
nossa prática jurídica esses pressupostos interpretativos que os princípios histori-
camente construídos e reconstruídos representam, bem como as interpretações e
re-interpretações de normas legislativamente referidas, é que podemos realizar
uma atividade de aplicação do direito capaz de se atentar ao seu ideal de coerên-
cia e de reconhecimento de uma Sociedade de homens livres e iguais.
e isso muitas vezes significa cobrar dos Tribunais a firmação de um sentido
normativo que, embora não tenha ainda sido expresso, pode ser assumido como
“desde sempre” atrelado ao núcleo de direitos fundamentais. o que se exige, pois,
não é uma invenção normativa em detrimento da atividade legislativa, mas o
reconhecimento de uma liberdade cujo sentido já se encontra mergulhado no
emaranhado principiológico que o direito é. o desafio que o direito nos impõe é
buscar desvelar, tornar descoberto, o sentido que a própria prática jurídica já está
a nos dizer para aquele caso.
contrário ao que estamos a defender, e em consonância à intepretação da
ministra eLLen gracie, o então ministro carLoS veLLoSo, também seduzido pelos
pressupostos nos quais aSTrÉia se encontra mergulhada, acredita que o que se
estaria pretendendo com a adPF/54 seria uma “inovação no mundo jurídico”, a
criação de “mais uma forma de exclusão do crime de aborto, o que não seria pos-
sível em sede de interpretação conforme a constituição”.
não vamos retomar aqui toda a argumentação precedente. o que mais nos
chamou a atenção do voto na questão de ordem em discussão, é um trecho em que
carLoS veLLoSo, citando moreira aLveS, discute os pressupostos de quando se
poderia sustentar uma “interpretação conforme a constituição”:

“... o ministro moreira aLveS anotou que a interpretação conforme ‘só se admite
quando não altera a mens legis, certo como é que o Poder Judiciário, no exercício
do controle da constitucionalidade da lei, só atua como legislador negativo, e não
como legislador positivo, o que ocorreria se sua interpretação alterasse o sentido da
lei’.” (riscos nossos; itálicos e negritos no original)

“acrescentou o eminente ministro moreira aLveS: ‘como observa SchLach (...),


com base nas decisões da corte constitucional alemã, não se pode, a título de se
interpretar uma lei conforme a constituição, dar-lhe sentido que falseia ou viole o
objetivo legislativo em ponto essencial’.” (itálicos nossos)

os questionamentos que aqui apontamos se referem basicamente a duas


questões co-dependentes: a) podemos assumir um “sentido naturalizado” ou óbvio
de uma lei ao ponto de determinarmos, desde antes e para todos os casos, seu
“objetivo essencial” de maneira que as interpretações que se façam da mesma não
“altere” o seu sentido?; e b) o que significaria pretender afirmar uma mens legis,
ou “espírito da lei”, ou “vontade do legislador”, em face de uma prática constitu-
cional que mereça esse nome?
essas são questões capazes de serem resgatadas a partir dos trechos acima
citados do voto do, à época, membro do STF, carLoS veLLoSo, e cujas respostas
pretendemos enfrentar nas páginas seguintes.
Por sua vez, e em razão do que pressupõem como sendo a prática jurídica,
tanto a ministra eLLen gracie, quanto o ex-ministro carLoS veLLoSo, assumiram
a postura de que a via institucionalizada pela figura da argüição de
descumprimento de Preceito Fundamental seria inadequada para a discussão e
decisão da matéria, não porque haveria um outro processo jurisdicional que fosse
adequado, mas porque essa questão supostamente não seria passível de discussão e
decisão em sede do Poder Judiciário, uma vez que cederam às graças da argumen-
tação do, à época, Procurador-geral da república, a exigir que se deixasse a solu-
ção do tema por conta do congresso nacional.
Já vimos que essa proposta não assume a sério o papel de um digno Tribunal
constitucional no estado democrático de direito. nos resta, ainda, oferecer a
interpretação capaz de, em face do alegado pela argüente, ser assumida como ade-
quada a uma atividade legítima de aplicação do direito.

iii. vaLe a inTenção?

aSTrÉia, em face das críticas que aqui se apresentam, se assustou e não con-
segue imaginar como poderia exercer sua atividade aplicativa do direito sem
incorrer em uma invenção normativo-jurisdicional. Por outro lado, pensa que
argumentos, como o apresentado por carLoS veLLoSo, acerca de um “espírito”,
“vontade” ou “intenção” da lei possa ser-lhe útil na construção de suas decisões, já
que se lhe tornaram nítidos vários problemas de se entender o direito convencio-
nalmente preso a disposições legislativas. assim é que aSTrÉia pretende valer-se
de hermeS, o intérprete da vontade divina,17 para tomar ciência daquilo que no
passado, sobretudo em razão de seu fetichismo com a lei, os legisladores “pensa-
ram” e “assumiram” como “intenção” ao aprová-la.
a metáfora do juiz hermeS é devedora das propostas teóricas de ronaLd
dWorKin. em face da corrente prática interpretativa nos Tribunais a indagar sobre
as declarações feitas por membros do Legislativo, quando do processo da construção
e aprovação de um determinado diploma normativo, a pretensamente nos permitir
vislumbrar uma “finalidade” da lei,18 dWorKin problematiza no sentido de que essas
declarações porventura realizadas não são, a bem da verdade, eventos que merecem
ser tomados como centrais ou determinantes na interpretação normativa mas que,
muito antes pelo contrário, vem a evidenciar um estado mental de determinados
sujeitos particulares e concretos e que, supostamente, seria representativo de um
“estado de espírito” de uma maioria cujos votos teriam sido indispensáveis à aprova-
ção daquela lei. e geralmente os juízes se voltam a esse passado da lei quando o texto
legislativo não se faz claro, na tentativa de se descobrir qual era o “estado de espíri-
to” que o Legislativo teria vindo a imprimir com a aprovação do diploma.19
assim é que nos pontua dWorKin no sentido de que indagar sobre a “inten-
ção da lei” é assumir na atividade interpretativa a relevância da intenção de um
locutor que nos diz algo. e isso, no que se refere a diplomas legislativos, nos leva

17 grimaL, Pierre. dicionário da mitologia grega e romana, cit., p. 224.


18 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 378.
19 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 379.
a um questionamento múltiplo e a um problema prático enorme na medida em
que se acaba tendo que decidir sobre, por exemplo, quais personagens históricos
podem ser assumidos como “legisladores”, bem como ainda sobre qual método
deve ser empregado para “descobrir” suas intenções ao aprovar um determinado
texto legal, além de nos colocar a difícil questão tangente à combinação dessas
intenções que se diferem em um processo legislativo.20
isso, portanto, já nos permite perceber o quão arriscada, a uma democracia,
referida postura interpretativa se faz. e o risco se encontra, pois, exatamente na
abertura que a resposta a essas questões coloca ao direito em face de posições polí-
ticas diferenciadas, ao gosto de conveniências a reforçar tal ou qual “intenção” ou
“finalidade” assumida como supostamente “da” lei quando, na verdade, o que se
está a fazer é um reducionismo pragmatista a infiltrar na interpretação da lei as
convicções pessoais de um concreto juiz.21
o que essa teoria da intenção do locutor pretende é imputar à figura “dos
legisladores” intenções que supostamente estariam a nos dizer algo específico e
que fosse esclarecedor à interpretação da lei. É uma busca incessante por aquilo
que tinham, realmente, em mente quando votaram pela aprovação de uma lei.
mas o que dWorKin desde já nos esclarece é que os legisladores não têm domínio
de suas palavras... isso significa dizer que quando um deputado, por exemplo, vota
pela aprovação de um determinado texto normativo, ele pode até prever que
aquele obscuro texto concreto vá ser interpretado em um, ou outro, sentido, de
acordo com aquilo que ele imagina que seria “bom”, ou ainda de acordo com aqui-
lo que ele considera “ruim”.22 agora, se assumimos a idéia de que os juízes, ao
interpretarem uma lei obscura, devam se valer da busca por aquilo que a maioria
dos legisladores supostamente previram como ela deveria ser aplicada, enfim,
como uma questão de fato psicológico, nas expressões de dWorKin, então cairía-
mos em um círculo sem fim: o que o juiz teria que decidir seria sobre aquilo que
os legisladores previram que ele faria, isto é, deveria decidir sobre o que os legis-
ladores outrora previram que o juiz iria pensar que esses mesmos legisladores
tivessem previsto que ele, juiz, faria... na verdade, esclarece dWorKin, somente
quando o método interpretativo independa das previsões dos legisladores é que se
pode, de maneira frutífera, prever como os juízes irão interpretar as leis.23
mas hermeS não entende bem essas colocações. acredita que a legislação é
uma atividade comunicativa e que a aplicação das leis, por outro lado, somente se
pode dar de maneira adequada quando descobrir o que os legisladores estavam

20 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 380


21 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 281.
22 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 387.
23 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 389.
tentando dizer quando de sua aprovação. Se por um lado, continua dWorKin, já
nos é difícil conhecer as intenções de pessoas com as quais convivemos, a hermeS
se coloca um tremendo problema quando nos damos conta de que deverá buscar
a intenção de pessoas estranhas e, não raro, já mortas. mesmo porque muitos dos
legisladores que aprovaram determinada lei, inclusive pelo contexto dessa criação,
jamais teriam sequer imaginado uma nova situação que agora vem a surgir.24
então, na tentativa de construir um método a buscar essa “intenção da lei”,
hermeS procura responder à primeira das questões: idéias de quem devem ser pes-
quisadas? Quem pode ser assumido como “legisladores”? hermeS já fica apavora-
do com o fato de que uma visão realista do processo legislativo democrático abre
espaço para a discussão e participação públicas não somente dos membros do
congresso, mas de funcionários das casas legislativas – integrantes, por exemplo,
de comissões Parlamentares, ou pareceristas –, do Presidente que, por exemplo,
propôs o projeto em debate, dos cidadãos que podem entrar em contato com seus
representantes como forma de fazer pressão, além de grupos da sociedade civil
organizada a também participar do debate. como indaga dWorKin, se todos esses
membros da comunidade política participam de maneira a influenciar o processo
de construção legislativa, será que hermeS teria alguma razão sustentável para não
levar em consideração a intenção de todos esses sujeitos concretos?25
o dilema de hermeS começa a tomar contornos mais nítidos na medida em
que o método de investigação da intenção do locutor, daquele que nos pretende
dizer algo, não permite, por si só, estabelecer, na complexidade desse processo,
quais dessas múltiplas intenções valem, e qualquer escolha por uma, ou outra, já
apresentar-se-ia como aleatória e, nas palavras de dWorKin, perversa.26
em continuidade à metáfora de hermeS, esclarece o autor no sentido de que
devamos, por exemplo, supor que aquele venha a decidir-se tão-somente pela
intenção dos membros das casas Legislativas, não porque acredite ser irrelevante
a participação e pressão públicas no processo democrático, mas porque, em sua
visão, o alargamento do universo das intenções tornaria vaga e imprecisa qualquer
idéia de “intenção legislativa” a ser útil em uma tentativa de esclarecimento prá-
tico de ambigüidades da legislação.27
assim, cai hermeS em outra cilada: de que maneira podem as múltiplas pre-
tensões dos membros das casas legislativas ser combinadas, uma vez que já se tor-
nou a ele claro que essas intenções são divergentes e até mesmo, muitas vezes,
conflitantes? o método interpretativo eleito por hermeS lhe exige uma combina-
ção dessas múltiplas opiniões em uma certa “intenção grupal mista”. e, aqui, está

24 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 382.


25 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 383.
26 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 384.
27 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 385.
aberta outra dificuldade: deve escolher a intenção de uma “maioria” que, suposta-
mente, desde uma assunção “homogênea” de pretensões, se é que isso seja possí-
vel, forme um grupo suficientemente grande a aprovar a lei, ou deve, por outro
lado, buscar uma “intenção representativa” a pressupor o mito de um “legislador
médio” que possa ser fantasiosamente próxima à intenção de cada um dos particu-
lares, porém, não idêntica às pretensões de nenhum deles? e neste caso, como
dWorKin mesmo levanta, como construir-se-ia esse mito do “legislador médio”?28
o que hermeS não percebe nitidamente é que “buscar a vontade” em um
exercício interpretativo tão complexo a pretensamente conferir valor interpreta-
tivo determinante às intenções e pretensões em jogo é, na verdade, colocar-se no
trono de um julgador político, a eleger, à luz de suas convicções pessoais do que
deva ser o direito, a “finalidade” ou “objetivo” intencionalmente infiltrado nas
entrelinhas da lei.29
hermeS tenta mais uma saída interpretativa para seu dilema. Supondo que a
“intenção” não se deva confundir nem com as esperanças, nem com as expectati-
vas, em torno daquilo que os legisladores estariam a projetar que os juízes fariam
interpretando o texto legal – mesmo porque agora hermeS já se dá conta de que
inúmeras questões podem nem sequer ser psicologicamente previstas pelos sujei-
tos legisladores –, nosso metafórico juiz resolve, então, perquirir sobre uma certa
dimensão contrafactual dos estados de espírito desses sujeitos concretos. assim, a
questão retoma outro significado: como um determinado membro do congresso
votaria acerca de certa questão se a pudesse ter previsto? mas ainda assim hermeS
se mantém refém de seu dilema; afinal de contas, essa resposta é impossível de ser
oferecida porque esse mesmo sujeito concreto poderia estar envolto numa série de
motivos que, como nos esclarece dWorKin, poderiam levá-lo a contrariar o autor
do projeto de lei, ou ainda porque estava sendo chantageado para votar num, ou
noutro sentido. assim, “não há nenhuma resposta razoável para esta questão”.30
o que hermeS ainda não percebe é que há uma enorme diferença entre inter-
pretar uma prática social, como o direito, e interpretar as palavras de um amigo
que está a nos dizer algo. o que naquela se busca interpretar é uma construção da
comunidade política que é, exatamente por isso, distinta dessa mesma comunidade
– e isso é bem diferente de interpretar o que as pessoas dizem em uma conversa.31
a interpretação do direito há que assumi-lo como algo que, embora dependente de
sujeitos históricos e concretos, tem uma dimensão transcendente de contextos,32

28 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 386.


29 nesse sentido, dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 386
30 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 392.
31 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 61.
32 nesse sentido, cf.: haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de
derecho en términos de teoría del discurso, cit., p. 63 et seq.
devendo-se se ater ao “propósito” dessa prática, afim de torná-la algo melhor33 no
sentido daquilo que desde o passado essa mesma prática vem se desenvolvendo. a
interpretação nesse caso há que ser assumida como um empreendimento34 que
coloca aos sujeitos intérpretes algo do qual não se podem livrar, o que seja, o sen-
tido dessa mesma prática social. assim firmamos a posição de que o caminho de se
interpretar o direito tem a ver diretamente não com as intenções perdidas de sujei-
tos concretos em processos legislativos, não ao menos sob a forma de esperanças,
expectativas ou estados de espírito contrafáticos, mas sim com o sentido que a prá-
tica do direito nos vem impondo desde o seu passado, e isso, se se pretende real-
mente interpretar o direito à sua melhor luz na busca de sua legitimidade, signifi-
ca reconhecer que esse passado representa uma coerção argumentativa aos intér-
pretes. Figuras fictícias de uma “intenção de uma maioria”, ou de um “legislador
mediano”, embora possam ser de fácil manuseio, jamais podem obscurecer o senti-
do de realização de uma Sociedade de homens livres e iguais que permeia e justifi-
ca a prática do direito da modernidade.

iv. enTão hermeS Se Torna gêmeo de hÉracLeS?

hermeS não se encontra ainda convencido deste sentido do direito da


modernidade, nem também consegue vislumbrar como se poderia buscar uma
reconstrução coerente dessa prática social argumentativa que o direito é. ele pre-
fere investir em caminhos mais profundos, uma vez já percebido que as esperan-
ças ou expectativas de um determinado legislador concreto, ou mesmo aquilo que
ele supostamente faria em situações que nem sequer ocorreram, não lhe servem
como elemento interpretativo a superar a “obscuridade” textual. antes, decide
investigar, então, as convicções políticas que levariam esse mesmo sujeito a votar
em favor de um determinado projeto de lei, ou o teria levado a fazer se tivesse
assim votado por uma questão de princípios.35
essa compreensão hermeS acaba reconhecendo ser superior a todas as outras,
em especial àquela que se refere aos mistérios e arbitrariedades de procedimen-
tos contrafactuais. isso porque nos convence dWorKin que essa via de uma inter-
pretação pela busca das convicções “se ajusta muito melhor aos objetivos de uma
comunidade de princípios”.36 e isso porque os cidadãos-membros de uma comu-
nidade política esperam de seus representantes que atuem com base em princípios

33 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 64.


34 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 65.
35 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 393.
36 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 394.
e com integridade,37 isto é, com base em sentidos normativos a lhes informar o
próprio sentido que a prática jurídica lhes impõem e de maneira a resguardar um
juízo de coerência dessa mesma prática social. Somente na busca dessa “convicção
geral” a perpassar a prática, inclusive, legislativa, é que se poderia buscar uma
saída interpretativa à obscuridade dos textos legislativos, pois somente assim as
especificidades e ambições pessoais de cada um dos membros das casas
Legislativas estariam neutralizadas em face “das convicções predominantes na
legislatura como um todo”.38
isso significa exatamente dizer que há um sentido compartilhado pelos mem-
bros dessa prática legislativa que deve ser considerado não como intenções ou
desejos individuais, mas como algo que se refere, de maneira pressuposta e implí-
cita, à própria prática legislativa. Portanto, essa conclusão está a exigir do intér-
prete-aplicador uma reconstrução do sentido dessa prática, isto é, de quais são
essas convicções que a um só tempo permeiam a atividade legislativa e são capa-
zes de garantir as bases de uma comunidade político-democrática.
obviamente que se tomarmos a individualidade de cada um dos congressis-
tas, essas convicções encontrar-se-ão, quase sempre, escalonadas em uma ordem
de opiniões hierarquizadas: algumas opiniões podem ser assumidas como que
dotadas de pesos diferenciados.39 mas hermeS já percebera que se se deixar levar
por esse raciocínio, a arbitrariedade e a impossibilidade de se pretender formar um
arcabouço interpretativo re-entra uma vez mais em face das infinitas variações
axiológicas que se fariam presentes em seu desafio.
antes, hermeS entende que a única forma de se compreender as convicções
que perpassam essa atividade é, senão, interpretá-las no sentido de permitir a con-
secução dos objetivos de uma comunidade de princípios, isto é, no sentido de que
as leis “devem ser interpretadas de modo a expressar um esquema coerente de
convicção dominante dentro da legislatura que as aprovou”.40
isso significa dizer que somente uma interpretação coerente das leis, a assu-
mir essa convicção generalizada na prática social e argumentativa que é o direito,
é capaz de assumir seriamente o sentido do direito.
e a coerência dessa interpretação, sustentamos nós, há que ser buscada a uma
melhor luz, a uma melhor compreensão do processo interpretativo, ou seja, na
consecução de uma comunidade de princípios, equivale dizer, de uma Sociedade
de homens livres e iguais e que, exatamente por isso, assumem e levam adiante o
contínuo desafio de igual e indistinto reconhecimento, na maior medida possível,

37 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 394.


38 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 394.
39 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 395.
40 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 396.
de liberdades fundamentais a todos em face da pluralidade e especificidade dos
casos que a essa comunidade se apresentam.
então o que se encontra em jogo é qual sistema de convicções vem a ofere-
cer, em uma análise global, a melhor justificativa a essa prática jurídico-interpre-
tativa dos diplomas normativos.41 hermeS já não tem a menor pretensão de encon-
trar um idêntico esquema de convicções compartilhado de maneira aproblemati-
zada por todo e qualquer membro das casas Legislativas. conclui que o único
caminho que lhe resta é compreender não a atuação isolada de cada um desses
membros mas, muito antes pelo contrário, buscar compreender o sentido da atua-
ção da legislatura em si, de maneira a alcançar “qual sistema coerente de convic-
ções políticas justificaria melhor o que ela realizou”.42
à medida que o congresso nacional não é um ser dotado de espírito, somen-
te podemos buscar apreender o que a atividade desenvolvida pelos congressistas
pressupõe na busca de uma interpretação coerente dessa mesma atividade. o que
interessa à interpretação do direito não são as individuais e concretas esperanças,
expectativas ou opiniões dos deputados ou senadores. o que está a interessar são
as convicções, os pressupostos, as pré-compreensões que permeiam e permitem
uma melhor justificativa, à luz da democracia representativa, do que a atividade
legislativa está, desde o passado, a desenvolver. assim, hermeS se volta ao passa-
do não para procurar “reviver” as intenções de sujeitos já falecidos, mas para pro-
curar compreender, de maneira coerente, as convicções e princípios que a prática
legislativa vem, desde antes, pressupondo em seu desenrolar argumentativo.43
como esclarece dWorKin, o problema “combinatório” – das convicções
peculiares de cada membro legislador – se esvazia, na medida em que o que já se
torna claro para hermeS é o fato de que o que somente pode ser assumido é o sen-
tido da história institucional, e não das intenções individuais... e isso é, pois, assu-
mir na interpretação do direito seu sentido de coerência normativa, o que acaba
por tornar o método de hermeS, de busca por uma “intenção” ou “espírito” legis-
lativos vazio de conteúdo: afinal, hermeS acabara de se tornar gêmeo de hÉracLeS
– ou do hÉrcuLeS de dWorKin.44
hÉracLeS, enquanto metáfora a explicitar uma postura jurisdicional adequada
à interpretação do sistema jurídico-principiológico, sabe que as diversas declara-
ções feitas pelos legisladores ao longo dos tempos devem ser assumidas como pági-
nas de uma história que deve ser lida na busca de realização de sua coerência inter-

41 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 402.


42 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 402.
43 nesse sentido, dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 403.
44 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 403.
pretativa, isto é, de sua integridade. e tudo isso somente assim se pode realizar sob
o manto dessas convicções gerais permeadas nessa prática social-normativa.
afinal de contas, hÉracLeS sabe que a “intenção de uma lei” não pode jamais
ser assumida como uma combinação aleatória de convicções descontínuas, mas
devem ser interpretadas à luz do sentido do direito. isso não o faz ignorar as decla-
rações dos legisladores, mas também não as super-valoriza ao ponto de pretender
nelas enxergar algo além de “eventos políticos importantes em si próprios”.45
aqui já podemos adiantar que hÉracLeS somente conseguirá tal feito na
medida em que assume como trunfos na argumentação os princípios jurídicos a, a
um só tempo, justificar e garantir a construção coletiva de uma Sociedade de
homens que se reconhecem mutuamente, e na maior medida possível, como livres
e iguais. e o exercício de interpretação coerente, isto é, a luta pela integridade há
que partir e retornar a esse ponto se se pretende um exercício e compreensão ade-
quados da prática legislativa e aplicativa do direito.
isso significa dizer que essa comunidade de princípios somente fará jus ao seu
status na medida em que encarar as diversas leis não como decisões convenciona-
das, esparsas e descontínuas ao longo do tempo. muito antes pelo contrário, ao nos
assumirmos como uma comunidade de princípios devemos, juntamente com
dWorKin, encarar de frente o significado mais profundo que a prática jurídica está
a nos exigir e que jamais virá declarado de maneira inequívoca em textos legisla-
tivos. assim devemos proceder porque a atividade legislativa, vez que uma ativi-
dade personificada dessa comunidade, impõe promessas, isto é, implica a assunção
por parte de seus aplicadores das convicções que sustentam e conferem legitimi-
dade à prática jurídica e política dessa comunidade. Significa dizer que deve ser
assumida uma atitude performativa ou realizativa46 dessas convicções caso a caso
de maneira a realizar, em situações aplicativas, esse ideal de coerência interpreta-
tiva. a aprovação de uma lei não vem a meramente “registrar” intenções47 de
sujeitos concretos; vem a exigir uma postura interpretativa dos cidadãos na con-
secução do ideal de integridade a melhor justificar a comunidade de princípios.
hÉracLeS, como vimos no capítulo anterior, sabe o quão difícil é interpretar
um mesmo diploma legislativo ao longo dos tempos. com o passar dos anos, novas
circunstâncias antes sequer previsíveis vem cobrar-lhe uma decisão adequada. e
enquanto a maioria dos “juízes se vêem diante de uma opção entre aplicar a lei ori-
ginal, com o significado que sempre teve, ou emendá-la às ocultas para atualizá-
la”,48 hÉracLeS supera essa fraqueza hermenêutica ao assumir que o que deve ser

45 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 380.


46 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 413.
47 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 413.
48 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 416.
interpretado, em conjunto, é o sentido do processo que a prática jurídica nos
expressa. com isso, nos confirma que um eleito grupo de pessoas a cumprir uma
função político-representativa não são os “criadores exclusivos” de uma lei, mas
que toda a comunidade se encontra engajada nessa prática social49 – o que, por-
tanto, espanca de vez a pesquisa por uma mens legis ou legislatoris a supostamen-
te assumir o locus do sentido normativo dessa atividade argumentativa...
uma interpretação histórica da legislação só se apresenta como útil à prática
argumentativa do direito não na medida em que clarifica desejos e intenções par-
ticulares presos a contextos concretos e datados, mas quando nos permite recons-
truir o sentido de sua transcendência na busca, pelo direito da modernidade, de
igual reconhecimento de direitos a todos os cidadãos. esse é o sentido normativo
de coerência que a prática jurídica está a nos cobrar.

v. aFinaL, o Que eSTÁ em Jogo na adPF/54?

aSTrÉia, impressionada com o fato de hermeS, ao final, se confundir com


hÉracLeS, arrancou suas próprias vendas porque entendeu que a imparcialidade
no ato de julgar não significa distanciamento em face dos argumentos do caso e
das convicções a permear a prática jurídica. ansiosa a colocar em prática o que
aprendera com hÉracLeS, aSTrÉia reconsidera o que antes pensava, e entende que
um apego “cego” à lei faz com que a interpretação do texto legislativo se volte con-
tra o próprio direito. começa a perceber que, diferentemente do que sustentava
antes, e do que sustentou a ministra eLLen gracie e o ex-ministro carLoS
veLLoSo em seus respectivos votos, o direito não é uma construção exclusiva do
congresso nacional ou de seus membros. Passa, então, aSTrÉia a compreender
que o direito é uma prática social argumentativa incapaz de ser aprisionada e refe-
rida a um corpo específico de sujeitos concretos, ainda que representativamente
eleitos por todos os cidadãos.
o que sustenta a prática jurídica é o sentido mais profundo inerente a essa
prática, como um direito que se encontra além do direito enquanto busca cons-
tante de realização do ideal normativamente referido de uma Sociedade de indi-
víduos livres e iguais. com isso já se torna claro que não podemos assumir qual-
quer atitude interpretativa em face de nosso corpo de leis. Também não podemos,
conforme já comprovado, nos valer de argumentos em torno de intenções ou fina-
lidades que os responsáveis por sua aprovação legislativa tentaram imprimir ao
texto normativo. antes, compreendemos que o sentido da prática normativa

49 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 416.


transcende qualquer desses sujeitos concretos, embora por esses mesmos sujeitos
possa ser resgatada e continuamente atualizada.
a atitude interpretativa que o direito está a exigir é uma atitude performati-
va ou realizativa, isto é, capaz de assumir seriamente os compromissos que o
direito exige de todos nós, membros de uma comunidade política, em sua inter-
pretação e aplicação. com isso, a única postura capaz de ser legitimamente assu-
mida nesse exercício hermenêutico é aquela compromissada com a garantia e rea-
lização indistinta e da maior maneira possível de iguais liberdades a todos os cida-
dãos membros dessa comunidade. o que muitas vezes não se torna percebido, e
inclusive nos argumentos aqui reconstruídos e referidos à adPF/54, é que somen-
te uma postura interpretativa é capaz de desenvolver legitimamente a atividade
jurisdicional, qual seja, a busca pela integridade ou pelo ideal de coerência norma-
tiva do direito.
Páginas acima afirmamos que um “distanciamento estelar” como o de
aSTrÉia é incapaz não só de permitir a assunção dessa postura, como também de
permiti-la tomar contato com as especificidades de cada situação que lhe aparece
– o que, na verdade, se encontra implicado em uma postura realizativa na com-
preensão do direito. Sustentamos anteriormente que somente um mergulho nos
argumentos das partes pode permitir uma decisão capaz de levar adiante essa nova
página da história do direito. história cujo sentido é a incessante autopurificação
na busca de igual reconhecimento de direitos fundamentais a todos.
com isso, o que se pretende marcar é que o papel dos juízes não pode mais
ser pretendido aos moldes outrora sustentados por supostos neo-positivistas. uma
pretensa “neutralidade”, a permitir ao julgador enxergar, quase que de maneira
vidente, a “verdade” no caso, não mais se sustenta. a partir da compreensão de
que nosso mundo é mediado lingüisticamente, não mais se faz seriamente susten-
tável a pretensão de que possamos ser “neutros” em face de qualquer coisa que
seja. isso porque a postura básica para qualquer atividade interpretativa jamais
pode ser a “neutralidade”, mas o mergulho, o compartilhamento, de determinados
pré-conceitos e pré-compreensões que nos forma um arcabouço hermenêutico a
nos permitir a própria atividade interpretativa adequada.
com isso firmamos a idéia de que somente o enfrentamento das peculiarida-
des de cada caso nos pode garantir a construção de uma resposta, sob o manto dos
princípios jurídicos interpretados à sua melhor luz, que seja “a” resposta adequa-
da àquele caso específico. e essa resposta adequada, uma vez mais, está circular-
mente a depender da assunção séria de uma postura realizativa. Foi exatamente ao
compreender estas linhas que aSTrÉia tomou a iniciativa de arrancar suas próprias
vendas, porque passou a captar o sentido de que uma interpretação adequada do
direito exige olhos bem abertos às diferenças e igualdades, às continuidades e des-
continuidades dessa interpretação do direito em sua luta pelos mais plurais reco-
nhecimentos de esferas de liberdade.
a imparcialidade está, portanto, em se tomar em consideração as argumen-
tações das partes envolvidas em um processo jurisdicional de maneira a interpre-
tá-las não em conformidade com uma suposta “intenção do legislador” ou com um
“espírito da lei” – a sempre, inevitavelmente, abrir margem a uma interpretação
do direito infiltrada por razões particulares e valorativas, a fazer imprimir na
decisão convicções subjetivas a subverter, pois, o sentido jurídico-normativo em
questão. a imparcialidade está em, portanto, assumir uma atitude interpretativa a
reconhecer, diante dos argumentos processualmente construídos, qual é a única
decisão que naquele caso seja capaz de realizar de maneira adequada o ideal de
igual reconhecimento de direitos fundamentais aos afetados pela decisão.
a assertiva de que para cada caso haveria sempre uma única resposta é algo
que veio intrigando aSTrÉia. como poderia ela pretender uma única resposta em
face da multiplicidade e complexidade interpretativa a rondar o direito? não esta-
ria sendo uma juíza autoritária ao pretender afirmar que existiria tão-somente
uma resposta adequada, e não somente várias respostas igualmente possíveis para
resolver a contenda?
mas agora aSTrÉia está mais consciente de sua atividade interpretativa, e
sabe que a realização da única resposta adequada não se dá sob a égide do que ela
pensa que deva ser a resposta ao caso, mas do que o direito lhe informa àquele
caso. o juízo de adequabilidade, portanto, em face da pluralidade interpretativa a
sempre se fazer presente nas discussões jurisdicionais, somente pode ser firmado
de maneira adequada quando o que o determina são os supostos orientados a uma
prática democrática e legítima da jurisdição, isto é, quando esta assume em sua ati-
vidade o desafio modernamente referido ao direito de igual garantia de liberda-
des a todos os concidadãos no maior grau possível.
essa é a razão, inclusive, pela qual aSTrÉia compreendeu por que hermeS se
tornou um reflexo de hÉracLeS. ao perceber que a busca por uma “intenção legis-
lativa” ou “espírito da lei” era uma empreitada fadada ao fracasso, porque a práti-
ca social que é o direito deve ser interpretada de maneira (re)construtiva e não
aos moldes de uma interpretação conversacional, hermeS percebera que o único
caminho era investigar as convicções a perpassar historicamente as atividades da
legislatura, e isso o levou ao inevitável encontro de hÉracLeS.
Sabemos, hoje, que uma interpretação do direito aberta a argumentos valo-
rativo-axiológicos, sempre capazes de, inadvertidamente, se fazerem infiltrados
em argumentações em torno de “intenções”, “espíritos”, “vontade” e “finalidades”
legislativas, são caminhos perigosos para uma prática materializadora da atividade
jurisdicional. com isso afirmamos que os juízes, muitas vezes seduzidos pelo velho
“complexo de aSTrÉia”, ao procurar soluções nos antigos conselhos de hermeS,
acabam por introjetar, na interpretação do direito, o seu particular modelo de
convicções de maneira a impor ilegitimamente aos afetados pela decisão que está
a tomar seus valores e suas convicções pessoais do que entenda ser uma melhor
prática do direito. o direito não está a nos exigir a “invenção” do que seja uma
melhor prática a ele... o direito já nos informa qual é esse sentido. não nos cabe
“inventá-lo”, mas “somente” desvelá-lo, torná-lo descoberto em cada performan-
ce interpretativa.
do contrário estaríamos nos valendo do direito como um instrumento de
dominação,50 bem ao gosto de leituras sociológicas, contemporâneas ou clássicas.
isso porque o direito passaria a ser interpretado não como instituidor de espaços de
liberdade reciprocamente reconhecidos para seu exercício plural e contingente, mas
como meio de imposição de formas concretas e definidas, a partir de uma determi-
nada concepção de “vida boa” aleatoriamente eleita pelo intérprete-aplicador.
o que esta postura não está a perceber é que o direito só se realiza de manei-
ra adequada quando aberto às mais variadas formas de exercício das liberdades
subjetivas. do contrário, limitaríamos os direitos “desde fora”, isto é, impondo res-
trições fundadas em convicções pessoais – sempre particulares e jamais generali-
záveis – a todo o corpo de membros de uma comunidade política. Se um juiz inter-
preta os contornos e “limites” de um determinado direito como a “liberdade de
crença”, por exemplo, a partir de suas convicções particulares, obviamente que em
sua decisão não estará reconhecido um exercício aberto e plural desse mesmo
direito, porque ele o compreende desde a sua concreta e materializada ordem de
valores a estabelecer hierarquias aleatórias e não generalizáveis.
as liberdades jurídicas devem ser interpretadas de maneira a tomar em con-
sideração o processo de modernização do direito, não se prendendo a formas
materializadas e particulares de compreensão do que seja a forma ou conteúdo de
seu exercício. do contrário, o direito transformar-se-ia, realmente, em um instru-
mento de dominação de uns sobre outros, colocando em risco não só formas plu-
rais de vida e o exercício desses direitos, mas também o sentido do normativo
reconhecimento dessa Sociedade como sendo de homens livres e iguais...
como insinuado páginas acima, o sentido de realização de uma Sociedade
nestes moldes, interpretado à sua melhor luz, é aquilo a permear e permitir, dis-
cursivamente, a legitimidade da prática do direito da modernidade. o que com
isso escrevemos, é que o direito moderno, em face de seu projeto e daquilo que o
sustenta argumentativamente, somente se justifica em face de uma compreensão
da democracia e da operacionalização da prática jurídica na busca constante de
implementação, aqui e agora, dos ideais de uma praxis autolegisladora somente

50 cf. o Posfácio em: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstru-
ção crítico-discursiva na alta modernidade, cit.
capaz de ser coerentemente interpretada a partir dos princípios cujas reconstru-
ções se prendem às tradições jurídico-políticas modernas de realização de iguais
liberdades subjetivas a todos na maior medida possível.51
Se outrora aSTrÉia não compreendera isso, é porque não lhe fazia claro que
este projeto modernamente referido à igual realização de liberdades a todos, é co-
dependente de uma compreensão principiológica do direito a permitir-lhe, inclu-
sive, levar à frente sua função na Sociedade, qual seja, de estabilização generaliza-
da de expectativas de comportamento. Somente quando construímos o direito
democraticamente, isto é, aberto a uma concepção a garantir, a um só tempo, a
pluralidade de formas de vida e a assunção deste projeto como algo que diga res-
peito a todos os cidadãos, como autolegisladores e co-autores desse mesmo
direito, é que podemos interpretá-lo como uma prática social argumentativa
ancorada em princípios a garantirem que expectativas comportamentais sejam
estabilizadas na Sociedade, isto é, no fluxo comunicativo.
o que isso implica é o reconhecimento de que uma interpretação axiológica
ou política do direito, muitas vezes pretendida pelo Judiciário, afronta, de manei-
ra central, a função do direito. Quando passamos de uma discussão normativa a
outra valorativa as pretensões de estabilização de expectativas já se encontram
ameaçadas em face, uma vez mais, da falta de generalização dos valores em uma
Sociedade que realmente se vislumbre e se pretenda como democrática. Quando,
ao gosto de uma “jurisprudência dos valores”, se pressupõe uma ordem axiológica
concreta e hierarquizada, a partir da qual se toma o direito a interpretar, fracas-
sada já se encontra a pretensão de se alcançar, a cada caso, a adequabilidade nor-
mativa. a decisão passaria a se mover no campo dos gostos e convicções particu-
lares se distanciando daquilo que, de maneira generalizada, se poderia sustentar
naquele contexto em face do que o projeto jurídico-moderno a nós impõe.
Levando em consideração tudo até aqui problematizado, podemos já, adequa-
damente, retomar a questão subjacente às questões que vêm sendo apresentadas:
afinal de contas, o que está em jogo na adPF/54?
de maneira mais imediata podemos afirmar que o que se encontra em ques-
tão é o reconhecimento, ou não, institucional do pretendido direito, às mulheres,
de interromperem a gravidez, como antecipação terapêutica do parto, em casos de
gestação de feto anencéfalo. Porém, se olharmos mais de perto perceberemos que
existem outras questões que se encontram, de maneira subjacente, presas a essa
discussão, isto é, ao reconhecimento, ou não, do direito subjetivo em debate. o
que se encontra em jogo, afinal, é qual compreensão do direito, e dos direitos fun-

51 nesse sentido: haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de dere-
cho en términos de teoría del discurso, cit., p. 469 et seq.
damentais, pois, deve ser assumida por uma prática jurisdicional que seja digna de
sua atividade em face do direito da modernidade.
o que se encontra em discussão é também uma determinada compreensão da
constituição da república de 1988 e do constitucionalismo moderno, da função
do direito e de pretensões acerca de uma melhor e coerente proposta interpreta-
tiva do sistema jurídico-normativo. Por isso, a resposta à adPF/54 envolve ques-
tões mais profundas de Teoria e Filosofia do direito.
o que com isso afirmamos, é que o direito, desde agora, tem, sim, uma resposta
ao caso. e essa resposta, diante da exigência de imparcialidade normativa, não nos
pode ser fornecida em face das convicções individuais, supostas intenções legislativas,
expectativas ou esperanças particulares. essa resposta há que ser reconstruída assu-
mindo o direito como um sistema de princípios capaz de ser coerentemente interpre-
tado na reconstrução da única resposta adequada a esta situação em específico.
do contrário, estaríamos abrindo o direito a uma interpretação valorativo-axio-
lógica em que um determinado intérprete-aplicador imporia, em face das questões pelo
caso suscitadas, seus valores particulares, sua concepção materializada de compreensão
do exercício de uma determinada liberdade, sem se manter aberto ao que significa um
reconhecimento plural e diversificado do exercício de liberdades subjetivas.
o que está em jogo, portanto, é uma interpretação deontológica do direito,
capaz de satisfazer o ideal de coerência normativa, sempre precário em face dos
riscos de uma interpretação política e axiológica a continuamente rondar a práti-
ca jurisdicional. não se pode pretender vislumbrar nesse caso, como igualmente
em outros, o Supremo Tribunal Federal como “guardião” de “valores comunitá-
rios” supostamente compartilhados de maneira homogênea e aproblematizada. o
que se está a discutir são normas, e não valores, é o que deve ser interpretado
como devido em face do argüido, e não o preferível...
destarte, já podemos afirmar que a resposta, em face dos argumentos apresen-
tados, é de que, independentemente do código Penal prever, ou não, a hipótese a
impedir a formação do juízo de ilicitude em casos de interrupção da gravidez de
fetos anencéfalos, o direito reconhece, em sua melhor luz, esse direito às gestantes.
Primeiramente cabe-nos considerar que, uma vez mais, a legislação deve ser
interpretada no sentido de realização do projeto jurídico moderno. o fato de uma
determinada situação não ter sido explicitada legislativamente jamais pode nos
permitir concluir pela ausência ou lacuna de tratamento jurídico. muito antes
pelo contrário, isso vem a nos ser útil para que compreendamos o caráter contin-
gente e histórico do direito: o nosso desafio é saber atualizar o direito em face de
situações imprevistas, porque imprevisíveis, sem, com isto, perder seu ideal de
coerência normativa. como exigir do “legislador” de 1940 a previsão expressa de
situações que o avanço tecnológico a cada dia nos impõe? Por outro lado, isso
jamais pode significar que o direito, uma vez que sistema principiológico, não
tenha uma resposta adequada a essas questões.52 não se poderia, também, preten-
der afirmar, ao gosto de premissas neo-positivistas, que o direito apresentaria tão-
somente “respostas possíveis” a esse caso: antes, devemos levar a sério a pretensão
de racionalidade na operacionalização do sistema jurídico que nos cobra, portan-
to, a realização de um adequado juízo de correção normativa, isto é, a busca por
um juízo sustentável de adequabilidade normativa.
mas devemos já advertir que a interpretação no sentido de que o direito
garante, em um esforço interpretativo à sua melhor luz, às mulheres gestantes de
fetos anencéfalos a liberdade subjetiva de interromper a gravidez, não se trata de
uma leitura sustentável com base em meus particulares valores, mas em face de uma
interpretação adequada dos princípios jurídicos sob o manto de seu ideal de coe-
rência normativa e de seu projeto de iguais realizações de liberdades fundamen-
tais a todos na maior medida possível.
a assunção dessa interpretação pelo Supremo Tribunal Federal não deveria
levar os ministros ao pensamento de que se estaria “inventando” uma solução jurí-
dica para um caso que, supostamente, ainda “não teria” solução, porque ainda em
espera deveríamos ficar, na expectativa de uma decisão das casas Legislativas. essa
interpretação assume pressupostos interpretativos acerca da prática jurídica das
quais não podemos compartilhar. o primeiro desses supostos diz respeito a uma
pretensa existência de “lacunas” no direito. essas lacunas, ou falhas, como referi-
do acima, seriam caracterizadas por uma insustentável “ausência de normas” a
permitir uma solução adequada àquele caso. essa é, inclusive, a razão pela qual tão
fortemente a ministra eLLen gracie e também o ex-ministro carLoS veLLoSo
apresentaram a argumentação páginas acima reconstruídas. o fato de não haver
previsão legislativa de uma determinada situação a tocar o direito não pode signi-
ficar, jamais, que não exista uma solução jurídica adequada ao mesmo.
Somente uma concepção convencionalista como a debatida aqui é capaz de
propor esse falso problema à praxis jurídica da modernidade. o que está em jogo
não é uma “invenção” jurisdicional no exercício arbitrário de uma discricionarie-
dade. o que está em questão é uma interpretação adequada e coerente do direito,
e de seu projeto moderno, capaz de nos permitir desvelar, des-cobrir, qual respos-
ta pode ser assumida como adequada às especifidades do caso que se contorna.
Pretender argumentos como o de “superioridade da lei”, uma vez como pre-
tensa “fonte superior” do nosso direito, é se manter preso a uma certa tradição
sociológico-interpretativista da prática jurídico-normativa incapaz de compreen-
der que o direito somente se justifica à luz de seu caráter principiológico. essa,
afinal, é outra falsa questão levantada pela argumentação que aqui criticamos.

52 cf. nosso: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito Penal: contribuições a uma
reconstrução da dogmática penal 100 anos depois, cit., p. 73 et seq.
o direito moderno, em razão de sua forma, se caracteriza, como visto no
capítulo 3, também, mas não só, pela referência à sua “positividade”.
a positividade do direito tornou-se, na modernidade, um aspecto central da
própria argumentação jurídica. anteriormente compreendida a partir da tensão
entre direito positivo e direito natural, tal compreensão hoje deve ser devidamen-
te re-interpretada em face daquilo capaz de ser, publicamente, sustentado como o
direito vigente. com isso, não estamos a afirmar que o direito positivo se reduza a
textos normativos, a diplomas frutos de um processo legislativo. compartilhamos
da concepção segundo a qual o direito positivo se confunde com a própria praxis
argumentativa que, enquanto tal, implica o reconhecimento recíproco – porque
intersubjetivamente levado adiante em respeito a uma dimensão pragmático-uni-
versal – de um sistema de direitos e deveres fruto de um exercício autolegislador.
direito positivo e direito vigente hão que ser assumidos como sinônimos, como
praxis jurídica comunicativamente construída, reconhecida e compartilhada.
Por outro lado, muitas vezes a referência ao fato de algo não estar “positivado
na lei”, como nos parece ser o caso em tela, representa um equívoco em sede desta
discussão se com isso é pretendido esquivar-se de uma solução adequada ao caso. a
partir do momento em que somente podemos interpretar a positividade do direito
como enlaçada à idéia de sua vigência, isto é, à concepção de reconhecimento com-
partilhado de padrões normativos a mutuamente reger nossas vidas, não podemos
continuar a cair em falácias como a idéia de que o direito se reduza a textos nor-
mativos. Se é verdade que a legislação democraticamente construída estabelece, de
maneira abstrata e geral, interpretáveis padrões normativos capazes de serem assu-
midos como coletivamente vinculantes – no cumprimento, pois, da função do
direito de estabilizar expectativas de comportamento de maneira generalizada –,
desde outro lugar sabemos que o sentido normativo da própria legislação está a
depender de uma sempre renovadora interpretação principiológica do direito a
revolver, trazendo à tona igualdades e diferenças muitas vezes incapazes de se faze-
rem sentidas a partir de uma “simples” interpretação do texto legal porque se
podem fazer, inclusive, e desde antes, intransparentes à própria prática legislativa.
o direito da modernidade nitidamente se construiu, e se constrói, uma vez
que praxis interpretativa, com referência, igualmente traçada desde uma óptica
argumentativa, a textos normativos. o que não nos pode imobilizar é a pretensão
de que supostamente o sentido do texto normativo se prende a si próprio. afinal,
as especificidades dos casos, e suas peculiaridades, sempre nos devem chamar a
atenção para, na busca do equilíbrio reflexivo,53 alcançar e compreender qual o
sentido das normas em princípio aplicáveis ao caso. com isso, podemos concluir,

53 Sobre isto, cf.: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução
crítico-discursiva na alta modernidade, cit., p. 107.
circularmente, que embora a legislação represente, na argumentação, um referen-
cial, por outro lado jamais teria o condão de reduzir, mágica e definitivamente, a
complexidade do sistema jurídico em face de seu caráter principiológico e do que
está a implicar, em um nível mais profundo, seu ideal de coerência normativa. a
contingência do direito não está atrelada somente ao processo legislativo, mas
também envolvida se encontra no reconhecimento principiológico das igualdades
e diferenças... e, para tanto, não podemos confundir, como os argumentos ofere-
cidos pelo STF insinuam, direito positivo ou vigente com “direito legislado”.
assim, fugir do que a atividade jurisdicional seriamente está a cobrar das
autoridades jurisdicionais sob a alegação de que há “falhas” no “ordenamento”, de
que a lei é “fonte superior” ou de que a questão não pode ser resolvida por um
suposto “atalho fácil”, é, pois, e ao final, sustentar argumentos capazes de justifi-
car a negação do acesso à Justiça, em termos fortes, como ocorre, por exemplo, e
aqui vale relembrar, com o mandado de injunção e a predominante interpretação
que lhe é dispensada pelo Supremo Tribunal Federal.
o direito, na busca por sua autopurificação, permite a reconstrução dos prin-
cípios da liberdade e da igualdade como respostas que não poderiam ser pretendi-
das como “invenções”, isto é, como não-fundamentadas propostas interpretativas,
mas, pelo contrário, como a tomada em consideração, de maneira firme e clara,
das diferenças que, nos casos, fazem diferença.
o direito garante, legitimamente, a liberdade à gestante de interromper a gravi-
dez em casos de anencefalia, por um complexo de razões que aqui passamos a analisar.
Primeiramente, cabe-nos, desde já, colocar de lado, porque acreditamos já estar
suficientemente explicitada nossa posição, a argumentação de cLÁudio FonTeLeS no
sentido de que a questão em foco deveria ser deixada para o debate legislativo e que
tanto seduziu, por exemplo, a ministra eLLen, gracie como pudemos ver.
um argumento que deve ser definitivamente enfrentado é aquele que se refere
ao nascituro como sujeito dotado de direitos juridicamente garantidos. certamente
acreditamos que o nascituro possa ser interpretado como dotado de personalidade
jurídica, e isso nos informa a possibilidade de, na argumentação jurídica, ser assumi-
do um referencial de imputação de direitos e/ou deveres. a partir do momento, mas
não só, em que a prática jurídico-argumentativa atribui ao nascituro determinados
direitos, como direitos patrimoniais – e, porque não, os decorrentes deveres desses
direitos e que, embora devam ser cumprido pelos pais, referem-se ao patrimônio do
nascituro –, o que se está a reconhecer é que o nascituro, definitivamente, e em face
dos mais variados casos, pode ser assumido como um sujeito de direitos (e deveres).54

54 Para mais detalhes, cf.: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma recons-
trução crítico-discursiva na alta modernidade, p. 143 et seq.
isso não significa que o nascituro seja, em toda e qualquer situação possível e imagi-
nável, dotado de personalidade jurídica.
Pensemos o seguinte esquema interpretativo: Se perguntássemos a aSTrÉia se
o homicídio é proibido, ela nos diria, antes de compreender a complexidade da
praxis jurídica, que o homicídio é proibido. mas se a indagássemos sobre a exis-
tência de determinadas situações, como legítima defesa, continuaria aSTrÉia a
afirmar que o homicídio é proibido e que a legítima defesa seria uma exceção à
regra de que não devemos matar outrem. essa concepção se ajusta de maneira per-
feita a uma compreensão do direito aos moldes de uma visão convencionalista:
existem regras que estabelecem, desde sempre e desde antes, seus contornos e sen-
tidos normativos. Todavia, determinadas situações poderiam tão-somente excep-
cionar esse conteúdo.
Se, agora, perguntássemos a hÉracLeS se o homicídio é proibido, ele nos diria
que sim, que o homicídio é, em princípio, proibido. o que está em jogo aqui é uma
compreensão do direito aberta às interpretações que as especificidades de cada
caso estão a requerer. com isso, o que se pode afirmar é que o sentido normativo
de proibição do homicídio não é excepcionado por nenhuma norma; antes, já se
assume, na postura interpretativa, a compreensão de que não nos é dado prever
todas e quaisquer situações possíveis e imagináveis de aplicação da norma, isto é,
nos é impossibilitado prever todos os seus sentidos normativos possíveis, porque
isso está a depender das peculiaridades a serem levadas a sério em cada situação.
o fato de que o homicídio seja, em princípio, proibido, não significa que o
seja em qualquer situação – nem que seja excepcionado por outra “regra”. o que
não se percebe é que o raciocínio regra/exceção está a pressupor uma compreen-
são convencionalista do direito a, exatamente, prever expressamente e de manei-
ra taxativa quais são as “exceções admitidas a uma determinada norma”. Partimos
de pressupostos bastante diferentes.
do fato de o nascituro, em princípio, poder ser assumido como titular de
determinados direitos, não significa que em todo e qualquer caso deva ser interpre-
tado como dotado dos mesmos direitos. o que com isso afirmarmos é que essa ques-
tão, como qualquer outra questão referida ao direito, é dependente das circunstân-
cias do caso e daquilo capaz de, à luz do direito, ser assumido como relevante em
sua interpretação no reconhecimento contínuo de diferenças que fazem diferença
em face de outros casos. o direito não pode ser interpretado da maneira que os
convencionalistas pretendem, isto é, atribuindo sentidos fixos e imutáveis às nor-
mas; antes, o que aqui se está a explicitar é que o sentido normativo é dependente
do contexto de interpretação e dos contornos do que se encontram em tela.
assim, se indagarmos as razões jurídicas pelas quais o direito garante ao nas-
cituro determinados direitos subjetivos – o que, pois, nos permitiria vislumbrá-lo
como, em princípio, dotado de personalidade jurídica –, encontraremos a resposta
na esfera da autonomia jurídica. o sentido de se reconhecer ao nascituro determi-
nadas liberdades jurídicas como, por exemplo, direitos patrimoniais, mas também
outros como direito à alimentação e à sua integridade – interpretáveis caso a caso –,
se refere à garantia de condições que àquele sujeito é reconhecida em razão de ser
um sujeito futuramente capaz de exercer sua autonomia jurídica. É, pois, a realiza-
ção e um exercício futuro de uma autonomia jurídica o que está a justificar o reco-
nhecimento do nascituro como possível referencial de imputação de direitos e
deveres. o seu reconhecimento como futuro ator de suas liberdades subjetivas.
e o que estamos a referir por exercício de autonomia jurídica não se confun-
de com as clássicas noções de “capacidade jurídica”.55 Por sua vez, diz respeito à
garantia de determinadas esferas de liberdade de escolha, inclusive, que não só
sujeitos adultos e “mentalmente sadios” são capazes de exercer, mas também
crianças e indivíduos portadores de sofrimento mental. uma criança de seis anos
ou um homem de trinta anos e portador da síndrome de down não devem ser vis-
lumbrados como alheios a essas questões; em face de determinadas situações, e
diante da especificidade que cada caso requer, o direito há que ser re-interpreta-
do na busca do que significa a garantia, em cada caso, de autonomia jurídica,
pública e privada. Será que crianças e portadores de sofrimento mental não reali-
zam escolhas, ao longo de suas vidas capazes de serem interpretadas como referi-
das às suas respectivas “auto-realizações”? ainda que não trabalhadas de maneira
tão explícita ou consciente, todos nós temos gostos e preferências que, em princí-
pio, nos são garantidos pelo direito. e diferentemente não poderia ser no que diz
respeito às crianças ou àqueles que possuem algum sofrimento mental.
Todavia, no caso do feto anencéfalo a interpretação jurídica não pode igno-
rar a peculiaridade do diagnóstico hoje capaz de ser realizado em gestação. em
face da irreversibilidade do quadro, como sustentar, pois, a garantia futura do
exercício de uma autonomia jurídica àquele que, em razão de sua má-formação
congênita, já nasce sem condições biológicas de manutenção de sua vida?
Seja de pessoas, seja de atividades personificadas, o direito garante direitos e
imputa deveres em face de uma autonomia privada a ser exercida atual ou futura-
mente. no caso de fetos anencéfalos, essa interpretação se abre à especificidade do
caso: se é certo que “nascituros” em princípio têm determinados direitos capazes
de serem reconhecidos, isso jamais significa “que tenham” esses mesmos direitos
em toda e qualquer situação. ou seja, isso nos cobra assumir seriamente as dife-
renças e as igualdades entre os casos em face da exigência normativa genuína que
a busca de iguais liberdades subjetivas a todos os membros de uma comunidade
jurídica, e na maior medida possível, está a nos cobrar.

55 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 183 et seq.
Podemos já concluir no sentido de que a interrupção de gravidez é, em prin-
cípio, uma prática proibida, mas que, em face da especificidade e do reconheci-
mento de diferenças que uma gravidez de anencéfalo requer, neste caso é permi-
tida. e, vejamos bem, tal abertura somente é capaz de ser interpretada como direi-
to e jamais como um dever.
afinal de contas, não se está a reconhecer traços de uma autonomia jurídica
da gestante desse feto?
nitidamente, a interrupção da gravidez, vez que incapaz de ser interpretada
como prática de crime de aborto em razão do argumento jurídico – e não mera-
mente “biológico” – de impossibilidade de construção de uma subjetividade capaz
de exercer autonomia jurídica, deve ser interpretada de maneira co-dependente
ao direito que se deve reconhecer à mãe dessa criança. a decisão sobre a realiza-
ção, ou não, do adiantamento terapêutico do parto – em situações nas quais a ges-
tante se encontra consciente e em condições de tomar essa decisão – somente cabe
à própria gestante.
e isso se deve não no mesmo sentido do argumento empregado por muitos,
inclusive por dWorKin, e do qual discordamos, de que a mulher teria direito sobre
seu próprio corpo, o que tornaria o “crime de aborto” em si, e em determinados con-
tornos, inconstitucional.56 não defendemos a postura de que a proibição de inter-
rupção de gravidez seja, necessariamente, inconstitucional. mas assumimos que não
reconhecer à mulher o direito de interromper a gravidez em casos de anencefalia é,
por outro lado, uma violação profunda ao sentido do direito da modernidade, isto
é, ao sentido dos direitos fundamentais e de sua interpretação coerente.
como garantir à gestante do feto anencéfalo igual liberdade à sua saúde, e
neste caso concreto, senão mediante o reconhecimento do direito à interrupção da
gravidez? Somente uma compreensão adequada do que seja “saúde”, inclusive a
abarcar a integridade psíquica, nos permite reconhecer, nesse caso, as diferenças
que merecem ser marcadas. a busca pelo igual reconhecimento de direitos funda-
mentais a todos nos exige construir as diferenças entre uma gravidez indesejada,
por exemplo, mas fruto da não-utilização de meios contraceptivos – ou, ainda, de
uma falha desses meios, mas que à mulher seria previsível – e uma gravidez de um
feto anencéfalo. Se, no que tange à primeira situação, a mulher, no uso de sua
autonomia, decidiu manter a relação sexual, assumindo a gravidez ou resignando-
se quanto a esta, na segunda, por que deveríamos obrigar à mulher seguir com
uma gravidez indesejada que assim é tida por fatores (anencefalia do feto) que não
dizem respeito ao exercício de sua autonomia, mas, muito antes pelo contrário,

56 dWorKin, ronald. o direito da liberdade: a leitura moral da constituição norte-americana. Trad. marcelo
Brandão cipolla. São Paulo: martins Fontes, 2006, p. 150 et seq.
por questões que não dizem respeito à sua vontade? como reconhecer, pois, as
igualdades e as diferenças nessas situações?
Para respondermos, pensemos no seguinte quadro: uma gestante que desco-
bre que seu futuro filho é portador da síndrome de down poderia se valer do argu-
mento aqui apresentado para realizar a interrupção da gravidez que acabou por se
tornar indesejada, uma vez que seu filho tem uma síndrome que não dependeu do
exercício de sua autonomia?
Temos, na verdade, três situações diferentes.
a) na primeira delas, é claro que não se pode pretender interpretar a prática
abortiva como juridicamente permitida, em razão de que o reconhecimento jurídi-
co – e aqui não estamos a discutir traços político-pragmatistas dessa questão – da
proibição do aborto não viola, em princípio, qualquer direito fundamental das
mulheres. antes, estas têm garantidos direitos capazes de permitir-lhes tomar a
decisão acerca de como e de quando manter relações sexuais. isso significa dizer que
a proibição do aborto, como aqui colocado em face dessas circunstâncias, é compa-
tível com aquilo que, contextualizadamente, podemos interpretar como autonomia
privada dessas mulheres. um suposto direito constitucional das mulheres e genera-
lizado à prática abortiva geralmente é atribuído como referente à autodeterminação
física de seus corpos, ou como um direito à própria sexualidade. desde já afastamos
estas interpretações normativas à matéria: o primeiro argumento se faz por demais
naturalizado; afinal, o feto não é uma parte do corpo da mulher. Quanto ao segun-
do, o aborto não é o único meio através do qual as mulheres poderiam impedir ou
evitar o nascimento de filhos. há outros meios que, no uso de sua autonomia, podem
ser empregados como maneira de livremente viver sua sexualidade. Se o aborto fosse
o único meio disponível ou possível para se impedir a gestação e o nascimento inde-
sejados de um filho, nossa resposta deveria ser outra.
b) Por outro lado, o último dos exemplos também não abriria à mulher o
direito de interromper a gravidez sob o simples argumento de que seu filho é por-
tador da síndrome de down. como acima já esclarecido, distinguem-se, sobrema-
neira, o fato de uma criança ser portadora de sofrimento mental e outra ser anen-
céfala. isso porque aos portadores de sofrimento mental é possível construir sua
particular subjetividade e exercer direitos, inclusive, na construção dessa subjeti-
vidade, o que, desde o início, aos anencéfalos já lhes é impossível.
c) mesmo o precioso caso da marceLa, que acima apresentamos, não é capaz
de servir como argumento contra o reconhecimento às gestantes de se decidir
sobre a interrupção da gravidez em casos de anencefalia. Se é verdade que
marceLa sobrevive, por outro lado não se pode pretender interpretar que ao
direito isso sirva como argumento para não reconhecer a liberdade de se fazer a
antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia.
marceLa, como qualquer pessoa, tem direito ao tratamento médico adequa-
do, uma vez que, com seu nascimento com vida não pode, em princípio, ser dei-
xada sem os cuidados que seu caso exige. mas esta, por outro lado, é uma questão
que também diz respeito a uma decisão dos pais de marceLa, em face da irrever-
sibilidade de seu quadro. afinal, não é essa uma argumentação capaz de apresen-
tar razões jurídicas à prática de eutanásia,57 senão aquelas referentes à impossibi-
lidade de se vislumbrar em uma determinada pessoa a reversibilidade de seu qua-
dro clínico e conseqüente desenvolvimento de uma subjetividade juridicamente
capaz de exercício de autonomia jurídica?
o que, com tudo isso, estamos a dizer? Que o reconhecimento de iguais direi-
tos fundamentais às gestantes de fetos anencéfalos nos exige interpretar o direito
principiologicamente à luz da concretude dos casos e na busca do reconhecimento
dos direitos, e deveres, que o caso está, juntamente com o direito, a nos informar.
em face das conseqüências físicas e, sobretudo, de ordem psicológica que a manu-
tenção de uma gravidez, por nove meses, de um feto que já se sabe nascer com
nenhuma expectativa de sobrevida pode gerar à gestante, como reconhecer-lhe
autonomia jurídica, isto é, como reconhecer-lhe o princípio da igualdade na dife-
rença de seu caso, senão reconhecendo que a garantia de sua saúde está a depender
da antecipação terapêutica do parto e conseqüente interrupção da gravidez?
novamente, que a interrupção de gravidez seja, em princípio, proibida, não
significa que assim seja sempre e em qualquer caso. uma interpretação coerente
do direito nos cobra reconhecer à grávida de anencéfalo o direito, cujo exercício
depende de suas particulares razões – e não das convicções de um juiz que concre-
tiza os limites e formas de exercício dos direitos desde sua particular e materiali-
zada concepção valorativa –, de interromper, ou não, a gravidez. essa, inclusive, e
em face do caso, é a única resposta capaz de reconhecê-las como iguais na assun-
ção das liberdades fundamentais, na maior medida possível.
aliás, levando adiante, à melhor luz, uma interpretação do direito como um
sistema coerente de princípios, não seria esse o sentido que, inclusive, uma inter-
pretação principiológica do direito está a nos cobrar no reconhecimento de uma
Sociedade de homens, em suas autonomias jurídicas, livres e iguais?
os argumentos aqui apresentados somente podem ser assumidos de maneira
co-implicada e complementar. nenhum desses argumentos, tanto no que se refe-
rem ao feto, quanto à gestante, fazem sentido se tomados isoladamente.
em face da irreversibilidade do quadro do anencéfalo, não seria, em determi-
nados casos, inclusive, uma forma de principiologicamente re-interpretar certas

57 nesse sentido: SÁ, maria de Fátima Freire de. direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2. ed. Belo
horizonte: del rey, 2005; chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria constitucional do direito Penal: por uma
reconstrução crítico-discursiva na alta modernidade, cit., p. 169 et seq.
interrupções de gravidez de fetos anencéfalos como a única forma de salvar a vida
da gestante? afinal de contas, em face do que estamos a argumentar, devemos
interpretar “vida” só no sentido de sua “integridade física”, mas não também de
sua “integridade psíquica”, à luz do que o direito nos diz a esse caso? Se nos pren-
dermos a uma compreensão convencionalista da prática jurídica, absurda seria
essa leitura...
Tudo isso porque a pretensa busca por uma “segurança jurídica” jamais pode
ingenuamente ser confundida, outra vez, como um apego a textos legislativos,
mas, pelo contrário, referida à certeza de que a postura assumida na interpretação
do direito será aquela realizativa, a respeitar a pluralidade da Sociedade, enfim, o
sentido principiológico do direito da modernidade.
caPíTuLo 7
o Que o direiTo não É

i. aLgunS enigmaS FinaiS

na hipótese de uma mulher, à qual seria realizada uma cirurgia de laqueadu-


ra, ter sido equivocadamente submetida a um procedimento de inseminação arti-
ficial, em razão de um comprovado erro médico que veio a confundir as pacien-
tes, do qual resultou uma gravidez, pois, indesejada e nem sequer previsível, o
direito lhe reconheceria a liberdade subjetiva à prática abortiva, isto é, à interrup-
ção de sua gestação?
ou ainda, em outro esquema interpretativo: supondo que dois sujeitos, no uso
de suas respectivas autonomias privadas, firmassem um acordo, segundo o qual o
credor se obrigasse a realizar o depósito bancário de um cheque emitido, em uma
data posterior por ambos acordada mas que, todavia, não fora respeitada porque,
sob o argumento de que tal acordo não vincularia um terceiro, ou seja, a própria
instituição bancária, o credor decidiu realizar o depósito antes da data negociada,
o direito abriria, validamente, ao emissor do cheque o direito de ser indenizado
moral e/ou materialmente por eventuais violações a seus direitos causadas?
o que se indaga, afinal, é o seguinte: qual compreensão de direito há que ser
assumida pela praxis jurídica se pretendermos uma interpretação e aplicação do
direito coerentes? em que sentido podemos afirmar uma racionalidade na ativi-
dade de aplicação do direito, ou tratar-se-ia de uma questão “irracional”, aberta à
mais variada sorte de razões, gostos e finalidades aleatoriamente eleitas pelo intér-
prete-aplicador?
o aqui proposto refere-se, assim, àquilo que poderíamos chamar de um “pro-
ceder adequado” da atividade jurisdicional de aplicação do direito. Procura-se,
então, enfrentar as dificuldades que sempre estão a rondar a prática aplicadora do
direito da modernidade à luz da problematização dos supostos interpretativos a
essa prática subjacentes. ofertamos, portanto, uma compreensão democrática do
exercício da atividade jurisdicional, livre de argumentos de autoridade e naturali-
zantes; afinal, a interpretação do direito deve partir não da óptica de uma racio-
nalidade instrumental, mas sim comunicativa. É oferecida, pois, uma leitura a
enfrentar o pluralismo interpretativo de forma a garantir, a um só tempo, a força
normativa da constituição e a democracia.
ii. o Que o direiTo não É?

Sabemos que o direito não pode ser assumido de maneira aproblematizada


como aquilo que os juízes decidem que seja o direito. a aplicação do direito não
pode ser pretendida de uma maneira arbitrária, sob um viés decisionista como
KeLSen, por exemplo, propunha. Também podemos perceber que compreender o
direito, seja como aquele ou Luhmann o compreendiam, é exatamente não enten-
der a distinção capaz de ser reconstruída entre legislação e jurisdição. Levar a sério
a distinção entre as funções legislativas e jurisdicionais merece a compreensão do
direito em um outro sentido. na verdade, o direito não pode ser compreendido
dessa forma, uma vez que não pode ser assumido, no marco de sua legitimidade
moderna, como um “sistema de regras” a, supostamente, através de uma concep-
ção convencional e condicional de norma – “Se é a, deve-ser B” (KeLSen);
“se/então” (Luhmann) –, prever todas suas hipóteses de aplicação.
Se o direito não pode ser entendido como simplesmente referido àquilo que
os juízes decidem que seja o direito, bem como não há que ser assumido desde
uma postura a justificar um poder decisionista e discricionário dos juízes, é por-
que, na verdade, a concepção de direito que está por detrás das propostas de auto-
res como KeLSen e Luhmann, é que se encontra equivocada. isto porque o que é
pressuposto por esses autores demonstra, exatamente, os problemas de uma práti-
ca jurídica interpretada a partir de supostos neo-positivistas – ainda que re-apro-
priados sistemicamente, como no caso da Teoria dos Sistemas de Luhmann.
muito antes pelo contrário, o direito deve ser compreendido desde um outro
lugar, desde um prisma diferenciado; afinal, o direito não é um sistema de normas
convencionadas e sim um sistema de princípios. e dizer isso significa que para
todo e qualquer caso concreto há sempre uma única leitura que pode ser assumi-
da como uma “melhor resposta” para aquele caso.
diferentemente do que KeLSen pretendia afirmando que para cada caso exis-
tiriam tão-somente respostas possíveis, e que na falta de uma norma que estivesse
a prever respostas àquele caso – no estrangulamento do que outrora chamou de
“permissão negativa” –, o juiz “poderia” (desde uma perspectiva sociológico-ana-
lítica) resolver ou “inventar” uma decisão, o direito, pois, deve ser compreendido
a partir de uma perspectiva diferenciada a nos possibilitar vislumbrar que para
cada caso há sempre, sim, uma única resposta que é capaz, diante dos argumentos
das partes (re)construídos naquele também concreto processo, permitir a chegada,
a construção, da melhor resposta para aquele caso.
e devemos alertar de que a “melhor” resposta não pode ser assumida axiolo-
gicamente a nos fazer levar à compreensão de que seria uma “melhor” resposta
para uma parte, ou à outra, ou mesmo ao juiz, desde uma leitura valorativa. a
melhor resposta deve ser considerada em face da praxis jurídico-moderna. e ao
mesmo tempo em que devemos buscar a resposta adequada é nítido que, em face
de uma mesma situação jurídica, nos é possível vislumbrar leituras diferenciadas,
em razão de se poder ter para um determinado caso concreto propostas interpre-
tativas de normas que sejam diferenciadas em um certo contexto argumentativo.
o reconhecimento, inclusive, dessa pluralidade de leituras é que reforça, do
ponto de vista discursivo, a indispensabilidade do igual reconhecimento de liber-
dades de ampla argumentação – aqui assumida como o direito dos afetados pela
decisão e, pois, legitimados a participar do processo,1 de livremente argumentar e
contra-argumentar sobre qualquer questão que entendam ser relevante à constru-
ção do processo – e ao contraditório – re-interpretado, com FazzaLari, como
“simétrica paridade de armas”,2 enfim, como o igual reconhecimento de momen-
tos ou possibilidades de participação discursiva no desenvolvimento processual. É
exatamente em razão dessa pluralidade interpretativa, referente não somente às
interpretações das normas jurídicas, mas também, e de maneira co-dependente, às
circunstâncias fáticas, que se garante às partes a possibilidade de intervir discursi-
vamente, em pé de igualdade, no processo.
Por outro lado, o fato de existirem várias leituras possíveis, tanto dos fatos,
mas aqui em específico das normas, não significa que quaisquer dessas leituras
sejam igualmente válidas. há sempre uma leitura, dentre essas, que pode ser con-
siderada, e naquele caso assumida, como “a” melhor leitura, a leitura adequada
àquele caso. mas com base em que se pode chegar a qual dessas leituras é capaz de,
argumentativamente, ser encampada como a adequada ao caso?
KeLSen, de sua perspectiva decisionista, afirmara que questões políticas é que
determinariam, arbitrariamente, a escolha da decisão “correta” por parte do juiz. o
juiz é quem poderia escolher dentre a mais variada sorte de leituras normativas

1 as discussões de Teoria do direito contemporâneas, bem como os debates no campo do direito


constitucional, não têm como se apartar do enfrentamento de problematizações que tocam, de perto,
questões de Teoria do Processo. no sentido anunciado, cf.: LageS, cíntia garabini. Processo e jurisdição no
marco do modelo constitucional do processo e o caráter jurisdicional democrático do processo de controle
concentrado de constitucionalidade no estado democrático de direito. in: caTToni de oLiveira, marcelo
(coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo horizonte: mandamentos, 2004; caTToni de
oLiveira, marcelo. da constitucionalização do processo à procedimentalização da constituição: uma
reflexão no marco da teoria discursiva do direito. in: Souza neTo, cláudio Pereira; SarmenTo, daniel
(coords.). a constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007; Lima, martonio mont’alverne Barreto. a constitucionalização dos procedimentos par-
lamentares: legislativo e judiciário no jogo político democrático. in: Souza neto, cláudio Pereira; Sarmento,
daniel (coords.). a constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007; marinoni, Luiz guilherme. da teoria da relação jurídica processual ao proces-
so civil do estado constitucional. in: Souza neTo, cláudio Pereira; SarmenTo, daniel (coords.). a constitu-
cionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
2 FazzaLari, elio. istituzioni di diritto processuale, cit., p. 82.
possíveis e em consonância a posicionamentos e opiniões políticos – de acordo com
o diagnóstico de juiz-especialista acerca da leitura e decisão política àquele caso.
a outra leitura, que aqui propomos, ao compreender o direito como um sis-
tema de princípios, não admite tal “opção” porque justamente há que se levar em
consideração a diferença entre discursos de justificação e discursos de aplicação
das normas jurídicas. aplicar o direito envolve uma determinada estratégia e tipo
de argumentação que não se confunde com os discursos legislativos. É nítido que
em um discurso legislativo, de construção do direito, argumentos éticos – aqui
especificamente assumidos como referidos a valores, ao “preferível” ou ao “inte-
ressante”, a mim, ou a meu “grupo” –, argumentos morais – referidos à idéia de
justiça – e argumentos pragmatistas – envolvidos em uma idéia de meios a fins, ou
seja, orientados à determinação de meios e fins adequados à consecução de deter-
minado projeto – bem como, porque não, também argumentos jurídicos, são
todos, determinantes, centrais, na tomada de decisão legislativa e conseguinte
aprovação, ou não, de determinada proposta.
Por outro lado, aqueles argumentos éticos, morais e pragmatistas não podem
ser determinantes na aplicação do direito. um juiz, em sua função jurisdicional,
não pode decidir pela aplicação de uma determinada leitura normativa porque
esta se perfaz “boa” (“interessante”, ou não), porque permite, ou não, atingir deter-
minadas finalidades, em uma eleição de “prioridades”, ou em face da “justiça” ou
“injustiça” que referida leitura seja capaz de permitir.
Tomando esses argumentos como centrais na fundamentação de sua decisão,
acabaria o órgão jurisdicional por cair, pois, no exato decisionismo afirmado e pro-
posto por KeLSen. acabaria, portanto, por assumir uma determinada tomada de
postura axiológica e política – e por que não, também moral – na sua decisão.
o que isso significa? Significa, portanto, que o exercício de aplicação do
direito envolve um maior esforço. o exercício de interpretação feito há que assu-
mir, sim, as possibilidades de leituras, mas de forma a lutar por aquela capaz de ser
assumida como “a” adequada ao caso. não podem ser todas essas leituras preten-
didas como igualmente válidas, como outrora propôs KeLSen. não são todas essas
leituras capazes de serem assumidas, indistintamente, na aplicação do direito em
face do caso. Tudo isso porque a decisão por uma das leituras possíveis tem a ver,
destarte, com o projeto moderno que o direito construiu para si próprio, ou com
as ambições do direito para si mesmo.3
a questão-chave é que devemos compreender e assumir na praxis jurídica o
fato de o direito ter-se construído em um determinado sentido. há, pois, um senti-
do capaz de apontar o caminho à praxis jurídica. não podemos pretender afirmar,

3 dWorKin, ronald. Law’s ambitions for itself. virgina Law review, cit.
como KeLSen outrora pretendeu, que não haja um sentido na aplicação do direito.
o direito moderno, desde seu passado, desde as lutas históricas, e cotidianas, em
torno de seu desdobramento e aplicação, ambiciona, tem seus olhos voltados ao
igual reconhecimento de liberdades fundamentais a todos na maior medida possível
então o desafio do direito, da praxis jurídica, enfim, é a busca pela interpre-
tação das normas jurídicas no sentido da realização, em cada caso concreto, desse
projeto moderno. o direito se constrói, obviamente, por continuidades e descon-
tinuidades. Todos nós, cidadãos-membros de uma comunidade política, devemos
nos enxergar e atuar como co-autores do direito. a construção legítima do direito
da modernidade, enquanto reconhecimento válido dessa prática, depende do
pressuposto reconhecimento de iguais liberdades políticas de participação em seu
processo de desenvolvimento.
com isso, o direito da modernidade só será válido, somente poderá ser assu-
mido como legítimo, ao passo em que for construído, porque reconhecido, em
uma democracia. e para que haja democracia é pressuposto, por sua vez, o igual
reconhecimento pela, e na, praxis jurídica de liberdades subjetivas a todos e no
maior grau possível. Somente quando se reconhece, ou somente quando nós reco-
nhecemos a nós mesmos e de maneira indistinta, iguais direitos fundamentais,
bem como sua pressão de serem reconhecidos no maior grau possível, é que pode-
mos caminhar na luta pela construção e desenrolar válidos do direito.
a aplicação desse sistema jurídico, por seu turno, para ser válida há que respei-
tar, portanto, os pressupostos democráticos que à dita atividade se referem. isso sig-
nifica, então, afirmar que, para cada caso concreto, esse projeto moderno do direito
há que ser levado a sério. conclui-se, pois, que determinado juiz, a cada caso con-
creto julgado, não pode desconsiderar toda essa fundamentação, construção e luta
jurídico-modernas que, em sendo transcendente de contexto, transcende a própria
experiência de vida do julgador porque, e inclusive, assume por referência séculos
de prática jurídica moderna, não se fazendo ao aplicador disponível sua forma.
a decisão adequada, correta, no sentido de um juízo racional de correção
normativa, não pode estar, ou ser, aberta àquilo que caprichosamente, ainda que
sob argumentos éticos, morais ou pragmatistas, acredita o juiz ser a decisão do
caso... do contrário, se assim não assumíssemos nossa prática jurídico-interpreta-
tiva, cairíamos não só no problema do decisionismo mas, mais além, na própria
discricionariedade e arbítrio do/no ato de julgar – tanto KeLSen quanto Luhmann
acabaram incorrendo. o desafio, portanto, é compreender e assumir na interpre-
tação do direito que a cada caso é possível vislumbrar uma leitura capaz de ser
reconhecida como a melhor leitura do direito àquele caso, exatamente porque
capaz de ser interpretada como garantidora no maior grau possível, e naquela
situação em específico, de iguais direitos fundamentais aos afetados pela decisão.
Só podemos, portanto, considerar, pois, o cheque pré-datado como juridica-
mente válido se assumirmos essa empreitada e a complexidade do ato de interpre-
tação do direito. Se por um lado a legislação de títulos de crédito determina que
“cheque é ordem de pagamento à vista”, e o código Penal determina somente duas
situações autorizadoras para realização do aborto – quais sejam, em razão de gra-
videz resultante de estupro ou que coloque em risco a saúde da gestante –, por
outro lado não podemos interpretar o direito acreditando que a legislação traga,
por si só, e de uma suposta forma “clara”, “óbvia”, todas as respostas possíveis para
todos os casos – nem se apoiar na idéia de uma válvula de escape que KeLSen pre-
tendeu ao se referir a uma suposta “permissão negativa” globalmente interpretá-
vel à luz do ordenamento jurídico.
um esforço interpretativo muito maior é exigido do intérprete-aplicador do
direito. e exatamente por isso não podemos compreender o direito como um “sis-
tema de regras”, como um sistema normativo capaz de prever, ou pré-estabelecer,
convencionalmente – legislativa ou consuetudinariamente – todas as suas hipóte-
ses de aplicação. isso porque, de forma transparente já nos faz percebido, haverá
sempre situações novas – seja porque antes alheias ao direito ou ainda em razão
de um novo enfoque interpretativo – que jamais poderiam ser assumidas como
desde sempre convencionalmente firmadas ou previstas pelo sistema do direito. e
a assunção de uma discricionariedade (KeLSen/Luhmann) para a solução desses
impasses não pode, por seu turno, também ser assumida como uma “aplicação”
racional ou válida do direito porque supostamente justificada no saber de especia-
lista do juiz ou no aspecto organizacional que pretensamente viria a colocar os tri-
bunais no “centro” do sistema jurídico.
disso a nós se faz marcado qual o desafio que espera o direito, vez que pra-
xis interpretativa. nenhuma legislação estabelece, por exemplo, que o cheque pré-
datado seja “juridicamente válido”. nenhum diploma legislativo também estabe-
lece que a mulher teria, ou não, o direito a uma prática abortiva em face de uma
gravidez fruto de inseminação artificial realizada de maneira equivocada em razão
de um erro médico. isso exige, pois, do intérprete-aplicador do direito, um esfor-
ço interpretativo mais profundo, já que não poderá se socorrer de uma compreen-
são do direito atrelada a um sistema, ou “modelo”, convencional de regras.
em um reducionismo sociológico, a Teoria do direito moderna vem preten-
dendo explicar a “geração” de determinadas normas como atrelada a uma prática
costumeira, consuetudinária, a supostamente justificar, à luz do direito, certas
condutas como que dotadas de um caráter devido ou juridicamente exigível em
razão de seus atributos geralmente referidos à sua homogeneidade, estabilidade e
continuidade sociais, bem como no que também se refere a uma opinio juris sobre
sua “necessidade” ou “exigibilidade” jurídicas. Poderíamos até ser seduzidos a
compreender o esquema interpretativo apresentado logo no início deste capítulo,
e tangente à figura do cheque pré-datado, como referido a um costume que, pois,
poderia cobrar exigibilidade jurídica em face do desrespeito desse “costume” tão
recorrente em nossa praxis social.
Todavia, já vimos que não podemos assumir essa mesma prática consuetudi-
nária como dotada de força “normogenética”. do contrário, estaríamos reduzindo
a validade das normas jurídicas porventura assumidas dessas práticas à mera fati-
cidade de sua verificação e aceitação sociais. vimos que somente uma interpreta-
ção principiológica – a assumir as dimensões hermenêutica e pragmático-univer-
sal da comunicação – é capaz de garantir, a um só tempo, que práticas sociais gene-
ralizadas possam também cobrar não só eficácia, mas também legitimidade em
face do sistema do direito. Supera-se, assim, não só pressupostos de uma interpre-
tação convencionalista de normas jurídicas – ainda que costumeiras –, bem como
também abre espaço a uma compreensão da tensão entre aceitabilidade e aceita-
ção sem reduzir validade à faticidade.
o intérprete do caso – aqui em específico a autoridade jurisdicional, mas
também qualquer cidadão no exercício de uma atividade interpretativa do direito
– tem que se colocar como membro dessa comunidade jurídica, assumindo, para
tanto, uma postura realizativa. há que entender que uma decisão jurisdicional é
mais uma página firmada de uma história que vem se desenvolvendo há séculos...
e o desafio se perfaz aqui na busca pela coerência, inclusive, neste capítulo que se
está escrevendo. a questão como um todo envolve, uma vez mais, a busca pela
realização do ideal de coerência jurídico-normativa subjacente à toda prática
argumentativa referente ao direito.
como essa decisão pode ser coerente em face da história do direito que vem
se construindo?
essa história é uma história constante e intensa de luta pelo reconhecimen-
to, na maior medida possível, de iguais direitos fundamentais a todos. o paradig-
ma liberal de estado e direito, através de muitos embates, conseguiu firmar, em
um determinado contexto hermenêutico-interpretativo, o reconhecimento de um
núcleo de direitos comuns, em princípio, a todos os cidadãos.
ao longo dos anos, as conquistas das gerações anteriores sempre foram obje-
to de novas e outras interpretações paradigmaticamente referidas. isso tanto se
confirma que se passou a assumir, no discurso jurídico-moderno, que para se
garantir igualdade e liberdade seria indispensável pressupor o reconhecimento,
por exemplo – e no que aqui também marca uma ruptura paradigmática em face
do modelo liberal por uma compreensão social –, de condições mínimas de traba-
lho, como a fixação de um salário-mínimo e a exigência de condições de higiene
no estabelecimento laboral, bem como a referência a direitos à saúde e à educação
como forma, exatamente, de continuar levando adiante esse projeto moderna-
mente referido ao direito de igual reconhecimento e realização de direitos funda-
mentais a todos na maior medida possível.
Portanto, para os dois esquemas intepretativos inicialmente oferecidos,
podemos também assumir a existência de leituras que sejam capazes de ser reco-
nhecidas como “corretas” ou “adequadas” aos casos. mas devemos chamar a aten-
ção para o fato de que a resposta adequada não é aquela que o juiz supõe a partir
de seus valores, ou aquilo que ele entenda ser o “justo” àquele caso, nem também
pode abrir-se para as finalidades que o juiz pretenda alcançar ou evitar desde uma
compreensão político-materializante. a decisão somente pode ser construída
mediante uma interpretação coerente dos princípios jurídicos. Toda e qualquer
liberdade individual, uma vez que sempre referida às normas jurídicas em princí-
pio aplicáveis, pode ser remetida ou referida a desdobramentos e re-leituras de
liberdade e igualdade...
afinal, todas as situações concretas, sobretudo os hard cases, mas não só, aca-
bam recorrendo, porque central, a uma discussão em torno do que seria, diante de
uma situação, o reconhecimento, na maior medida possível, de iguais liberdades
aos afetados pela decisão daquele caso. Podemos, então, concluir, pela legitimida-
de/validade do cheque pré-datado não porque supostamente houvesse uma lei, ou
um “costume”, a prevê-lo, mas porque nós temos que reconhecer aos envolvidos
na emissão desse cheque, e à luz desse projeto, iguais liberdades.
Se duas pessoas, no exercício de sua liberdade de negociação, no exercício de
suas respectivas autonomias privadas, estabelecem um acordo livre e espontâneo
a fixar determinado dia para que aquele cheque seja depositado, a essas mesmas
pessoas não estaríamos reconhecendo iguais direitos se determinássemos que o
credor pudesse virar as costas ao seu oponente e, imediatamente, ir a uma agência
bancária4 para realizar tal depósito. Porque nesse caso estaríamos tratando os
envolvidos de maneira desigual, reconhecendo a um dos sujeitos “liberdades” não
reconhecidas ao outro, pois estaríamos firmando que aquele poderia estabelecer
um acordo livre com outrem e, unilateralmente, também romper, quebrar, esse
acordo. estaríamos, se entendêssemos pela ilegitimidade que a prática do cheque
pré-datado representaria, reconhecendo não iguais liberdades, mas um privilégio
àquele que não somente “poderia” realizar um acordo como também decidir, uni-
lateralmente, pelo não respeito ao mesmo...
então o desafio aqui assume uma outra face de, portanto, não permitir que a
legislação seja interpretada contra o próprio direito. É não se ater a um, diríamos,
“sociologismo-interpretativo”, enfim, a um convencionalismo, tal como KeLSen e

4 o argumento segundo o qual o acordo entre duas pessoas não vincula uma terceira também se aplica a esse
caso que aqui propomos: a instituição Bancária realiza a compensação do cheque não porque seu depósito
antes da data acertada seja uma prática lícita, mas porque o pacto firmado pelos sujeitos não a afeta.
Luhmann, e grande parte da tradição, outrora incorreram. Se por um lado o con-
vencionalismo pode se fazer mais “confortável” ao intérprete por tornar sua ativi-
dade interpretativa mais “aliviada” – por sempre andar lado a lado com um prag-
matismo arbitrário –, por outro lado esse mesmo convencionalismo depende de
uma compreensão de que, na falta de “previsão jurídico-normativa” para um
determinado caso, seria aberta ao juiz a via da discricionariedade.
exatamente por isso devemos tomar extremo cuidado com as leituras influen-
ciadas por um neo-positivismo no que se refere, mas não só, à aplicação jurisdicio-
nal do direito. essas leituras se mostram mais “envolventes”, porque abrem cami-
nhos mais “fáceis” para se decidir um caso, ao mesmo tempo em que se mostram des-
compromissadas com o projeto do direito da modernidade, porque a ele são cegas.
o que pretendemos aqui demonstrar, uma vez mais, é que o fato de uma lei
não prever determinada situação em “todos” os seus contornos não significa que o
direito não tenha uma resposta àquela mesma situação. o fato de o direito não
prever a hipótese de realização de aborto quando a mulher fosse, por erro médico,
submetida a uma inseminação artificial tem, inclusive e obviamente, uma razão
histórica de ser: o procedimento artificial de inseminação, como hoje o conhece-
mos, sequer existia quando da proposta e aprovação do código Penal de 1940.
o reconhecimento da discricionariedade jurisdicional na Teoria Pura do
direito de KeLSen ou na Teoria dos Sistemas de Luhmann poderia ser equivocada-
mente confundido com uma pretensa abertura do direito a uma constante “atua-
lização” e “acompanhamento” dos desenvolvimentos, inclusive “tecnológicos”, de
uma Sociedade. mas, muito antes pelo contrário, a sedução que esse argumento
possa apresentar obscurece uma prática autoritária – porque aberta às razões polí-
ticas do julgador – de aplicação normativa.
isso implica afirmar que a compreensão do direito não como um sistema de
regras, mas como um sistema de princípios é que, por sua vez, permite interpre-
tar legitimamente o direito de maneira a “acompanhar” as sempre novas situações
tematizadas institucionalmente, ou não. isso porque essa compreensão, como aqui
proposta, assume, desde o início, a impossibilidade “das normas” jurídicas preten-
derem “clareza” interpretativa e previsibilidade de suas situações aplicativas, mas
por outro lado, é sempre possível que, em face de um caso não-familiar, em razão
de um hard case, nós re-interpretemos esse sistema de princípios na busca da solu-
ção adequada no igual reconhecimento de direitos no caso.

iii. o Que o direiTo É?

o fato de a concepção do direito como sistema de princípios não apresentar,


desde sempre, ou mesmo agora, uma “receita” pronta para a interpretação dos
casos e do direito não significa que não seja possível construir soluções e respos-
tas jurídicas caso a caso. o que não podemos é pretender interpretar o direito
como um sistema de regras, acreditando que as normas convencionalmente firma-
das teriam capacidade de esgotar os seus sentidos normativos, deixando ao arbí-
trio de uma “permissão negativa” situações então não convencionadas a serem,
pois, superadas discricionariamente (KeLSen).
afinal, não mais é sustentável pretender esgotar a previsibilidade “das situa-
ções” nas normas jurídicas convencionalmente construídas, ou não. e, por outro
lado, do fato de não podermos também sequer prever, agora ou no futuro, todas as
interpretações de todas as normas, em abstrato e ex ante, jamais pode significar
uma irracionalidade na aplicação do direito. não podemos justificar uma decisão
jurisdicional na “força” – em sentido fraco – argumentativa que o trânsito em jul-
gado de uma decisão gera, ou seja, na redução da validade da decisão à faticidade
de sua imposição...
há que se ter por referência razões mais fortes nas decisões jurisdicionais que
aquelas referidas ao trânsito em julgado ou ao querido pelo intérprete-aplicador.
a decisão jurisdicional não se satisfaz, não se esgota, naquilo que o juiz quer ou
naquilo em que o juiz acredita que deva ser a construção do direito... do contrá-
rio, não estaria o julgador aplicando o direito, não estaria cumprindo com sua fun-
ção de aplicação do direito, a confundindo, pois, com uma função de criação nor-
mativa, com a função legislativa.
a compreensão do direito como sistema de princípios garante uma única
decisão adequada para cada caso, ou seja, para todo e qualquer caso é possível, sim,
alcançar a decisão adequada a partir de uma re-interpretação dos princípios em
face daquele caso. como no exemplo da prática de inseminação equivocadamen-
te realizada, é nítida a possibilidade de re-interpretação das liberdades (jurídicas)
que se abre em face das circunstâncias desse caso. isso assim pode ser assumido se
problematizarmos e, pois, concluirmos que esta mulher fora engravidada em des-
respeito à sua integridade física. a questão central – e que aqui poderia ser, clara-
mente, problematizada em termos das igualdades e diferenças – é o fato de a gra-
videz ter resultado de um ato ilícito, fruto de uma violação à liberdade, à integri-
dade física, o que, de certa forma, poderia nos levar a concluir em termos de uma
violação à liberdade à própria sexualidade.
Significa dizer, pois, ao mesmo tempo, que essa concepção do direito, como
sistema de princípios, não só permite um acompanhamento jurídico – e jurisidi-
cional – de novas questões e situações até então não familiares, mas também, por
outro lado, vem a limitar essa mesma atividade jurisdicional. compreender o
direito como um sistema idealmente coerente de princípios também implica
impor limites à atuação do Poder Judiciário no que aqui nos interessa, ou seja, à
atividade de aplicação do direito. Limites implicados na própria constituição de
sua atividade.
isso porque não mais será qualquer resposta, como pretendia KeLSen, aquela
assumida, racionalmente, como uma resposta válida. afinal, para cada caso, e a isso o
juízo competente há que observar, há uma resposta adequada que deve ser construí-
da pelos atores no, e autores do, processo, devendo todos se esforçar para escrever um
novo capítulo da história do direito que desde o passado vem se atualizando.
e essas páginas desse novo capítulo hão que ser coerentes com essa prática jurí-
dica que há séculos se desenrola. Quando um juiz vai decidir um caso é nítido que
assim o faz assumindo, inclusive como pressupostos, decisões passadas. É claro que
determinadas situações que se mantém constantes nos casos julgados, ou a serem jul-
gados, assumem um papel extremamente relevante na interpretação e aplicação do
direito ao novo caso. mas o fato de serem essas situações relevantes constantes, em
face desse exercício hermenêutico, não significa que sejam determinantes.
o fato de podermos verificar que os tribunais vêm decidindo de determina-
da maneira uma certa questão, que noutros casos se mantém constantes, não
implica que o Tribunal agora, diante desse novo caso, tenha que decidir da mesma
forma. as decisões passadas, como capítulos ou páginas anteriores dessa história,
não servem como um espelho cuja imagem se encontra já pronta para se fazer
refletir nesse novo caso. inclusive porque o juiz, agora, tem que decidir um caso
que, em sendo único, não se repete, uma vez que nenhum caso é idêntico ou igual
a outro – o que não impede serem observados como semelhantes em algumas cir-
cunstâncias constantes que os tornam casos familiares, ou não.
Faz-se nítido que as novas decisões podem determinar-se pelas interpreta-
ções que as decisões passadas assumiram, mas o intérprete-aplicador pode, exata-
mente, voltar às decisões do passado para concluir, em face dos argumentos no
processo construídos, e com a participação das partes, inclusive, que essas decisões
podem não ter conseguido compreender e realizar de maneira adequada e coeren-
te o problema constitucional subjacente a si mesmas, enfim, pode-se concluir que
as decisões passadas foram incapazes de adequadamente, aos olhos de hoje, ou
mesmo de sua época, reconhecer, de maneira adequada, iguais direitos fundamen-
tais aos seus afetados.
assim, abre-se, portanto, a oportunidade da apresentação de uma nova leitu-
ra ao caso – o que também é plenamente cabível em situações em que se possa
atentar para determinados aspectos até então “acidentais” do caso, antes simples-
mente ignorados, ou desconsiderados, e agora assumidos de maneira relevante (o
que faz, inclusive, gerar novas igualdades e diferenças argumentativas no sistema
do direito) – não surgida da “criatividade” ou “inventividade” da autoridade juris-
dicional, mas baseada em uma interpretação coerente do sistema de princípios que
é o direito. não se faz, portanto, mais intransparente o risco que a atividade de
aplicação do direito representa: toda e qualquer decisão se esforça por, ou preten-
de, uma justificação jurídica da leitura empreendida no caso.
mas o fato de uma decisão e os argumentos nela apresentados serem “traves-
tidos” de uma suposta juridicidade não significa, realmente, que se trate de uma
leitura jurídica. isso porque, muitas vezes, o próprio discurso torna obscura a
argumentação, por exemplo, pragmatista, ético-valorativa ou moral que se encon-
tra assumida como que por detrás dessa suposta decisão “jurídica”, embora juris-
dicional porque tomada no foro institucionalizado adequado. e, em um uso para-
sitário do discurso jurídico, essas decisões acabariam muitas vezes por “assumir”
argumentos pretensamente referenciados juridicamente aos princípios, como,
exemplificadamente, à “igualdade”, à “isonomia” e à “dignidade da pessoa” quan-
do, na verdade, somente poderíamos perceber a “lógica”, ou uso, prático-racional
nessa decisão quando analisássemos, mais profundamente, a argumentação no que
se refere aos supostos interpretativos e suas articulações no caso.
Por isso, podemos já inferir que a tarefa de se interpretar e aplicar o direito
não é nada fácil. É sempre um exercício extramamente trabalhoso (re)construir a
sempre única e correta decisão a cada caso. o juiz há que interpretar cada caso não
à luz de suas convicções pessoais, mas à luz daquilo que o direito lhe informa.
enfim, à luz daquilo que estamos discutindo como o projeto moderno referente ao
direito capaz, pois, de apontar o sentido, o caminho, da decisão. Por isso a refe-
rência constante a hÉracLeS.
e isso, podemos interpretar, é algo capaz de ser apreendido a partir do pró-
prio discurso jurídico-moderno atrelado, portanto, à praxis jurídico-normativa. o
papel do juiz é, então, em face dos casos que lhe são apresentados, escrever uma
nova página dessa história de maneira a levar adiante esse projeto de forma coe-
rente. mas qual o sentido, a direção, o rumo dessa história senão o igual reconhe-
cimento, no maior grau possível, de iguais liberdades subjetivas a todos?

iv. a modernidade do direiTo moderno

essa luta pelo reconhecimento de direitos é algo extremamente relevante não


só no que diz respeito à praxis de um processo legislativo em que há, obviamente,
uma luta política constante pelo reconhecimento de iguais liberdades, no maior
grau possível, a todos os concidadãos, uma vez que autores e atores do embate
político e da construção do direito numa democracia, mas também se refere, e a
isso devemos voltar nossa atenção, à aplicação do direito e aos direitos dos afeta-
dos por essa mesma atividade interpretativa.
reconhecer que a mulher, em nosso exemplo, não teria direito à prática abor-
tiva porque, dentre várias razões, o nosso código Penal não estaria a prever aquela
específica hipótese, é, pois, negar-lhe, neste caso, direito à integridade física. Seria
como afirmar que essa mulher teria o dever de suportar uma gravidez fruto de um
ato ilícito e nem sequer consentido porque oriundo de um crasso erro médico.
não sejamos irresponsáveis na interpretação e aplicação do direito! este nos
exige postura, uma postura realizativa em face de seu sentido a ser assumido quan-
do de sua interpretação, o que envolve, inclusive, o reconhecimento do outro
como “outro” assumido em sua autonomia jurídica. e reconhecer o outro como
sujeito não implica, muito antes pelo contrário, imputar-lhe privilégios, mas reco-
nhecê-lo como um referencial argumentativo de imputação de direitos iguais,
interpretáveis caso a caso a qualquer outro. ainda que em determinados casos “a
legislação” não permita a garantia de iguais liberdades, temos uma situação que
nos pode exigir um esforço hermenêutico-reflexivo mais sofisticado.
Primeiramente porque se estaria interpretando a legislação contra o próprio
direito, o que faria daquela leitura uma proposta interpretativa, ou esquema inter-
pretativo, inconstitucional. em segundo lugar devemos nos ater à compreensão de
que o direito, como sistema de princípios que é, nos exige a busca pela interpre-
tação coerente a cada caso. no exemplo do cheque pré-datado, se não o reconhe-
cêssemos como juridicamente válido estaríamos imputando ao seu beneficiário
supostamente “dois” direitos, ou uma dupla liberdade, em detrimento do não
reconhecimento de iguais liberdades ao seu emissor: estaríamos afirmando não só
o direito que o primeiro teria de negociar e quebrar unilateralmente essa negocia-
ção como também acreditaríamos que o emissor do cheque não teria qualquer
direito de nesse sentido negociar.
Tudo isso exige, portanto, de cada um de nós uma postura interpretativa a
tomar a sério, na interpretação jurídica, as circunstâncias e elementos argumenta-
tivamente no processo assumidos como relevantes a cada caso e pelas partes,
inclusive. o direito não pode ser interpretado de maneira descompromissada con-
sigo próprio. não podemos fazer do direito aquilo que, partindo de nossas mais
íntimas e particulares convicções – ou mesmo partilhadas por um grupo como
uma “finalidade política” ou um valor “preferível”, ou mesmo assumidas e susten-
tadas como uma decisão justa –, acreditamos ou gostaríamos que fosse o direito.
o direito é aquilo que desde o passado vem se construindo, e essa é uma
questão que transcende a nós mesmos. o projeto moderno do direito é anterior às
gerações anteriores à nossa e, exatamente por isso, também nos transcende.
e aqui a proposta de dWorKin nos pode ser interessante, uma vez mais, no
que agora se refere à metáfora, complementar ao seu hÉrcuLeS, qual seja, referida
ao “romance em cadeia” (novel in chain).5 imaginemos o presente quadro: se uma

5 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 275 et seq.


geração passada escreveu um capítulo de um determinado romance e deixou de
herança para a geração seguinte a tarefa de dar continuidade a essa estória, essa
nova geração, para continuar coerentemente o romance, antes de mais nada há
que buscar um mergulho e aprofundamento no capítulo anterior e, sobretudo, em
seus pressupostos a partir dos quais se poderia partir rumo à construção desse novo
capítulo. Somente quando as gerações compreendem o sentido dos capítulos ante-
riores é que se abre a possibilidade, naquele contexto, de uma construção coeren-
te com o passado no presente.
então o desafio ao qual nos referimos está, portanto, reconfigurado nos
seguintes termos: se compreendermos, metaforicamente, o direito como um
romance em cadeia, o desafio se recoloca enquanto uma busca pela apreensão do
sentido subjacente aos capítulos construídos pelas gerações anteriores. isso porque
esse mesmo sentido não está preso a, não é “próprio” de, nenhuma dessas gerações
em específico... esse “romance” é um projeto que transcende as concretas gera-
ções, embora destas dependa para sua atualização e desenvolvimentos – embora
esta seja uma questão implícita e não tão bem problematizada pelo próprio
dWorKin. e por exatamente não se prender a qualquer das gerações é que pode-
mos pretendê-lo como encadeado e transcendente de contexto porque, numa
sofisticação dessa leitura proporcionada pela Teoria do discurso, mergulhado
numa dimensão pragmático-universal da comunicação.
a reconfiguração desse desafio se dá no sentido de que o que deve ser enfren-
tada é uma interpretação que, aqui e agora, na feitura dessa nova página desse
“romance”, seja coerente com esse legado. É um projeto que, por transcorrer por
gerações, não se prende particularmente a nenhuma delas porque é um exercício
deixado às gerações seguintes. o capítulo de hoje não pode ser escrito em descon-
sideração aos capítulos anteriores, mas também isso não implica uma concordân-
cia com todas as linhas desse mesmo passado.
antes, o que se deve ter em mente é a busca pelo sentido, pelo “fio” dessa prá-
tica jurídico-argumentativa da modernidade, ainda que, justamente, em razão da
apreensão desse “sentido” possamos criticar as leituras que o próprio passado nos
apresenta a certas questões. e isso há que ser, pois, vislumbrado como um proces-
so constante que, ao mesmo tempo em que se volta ao pretérito, é também aber-
to ao futuro.
a partir do momento em que apreendemos que esse “fio” condutor da inter-
pretação jurídica se confunde com a luta pelo reconhecimento de direitos funda-
mentais indistintamente a todos, e no maior grau possível, podemos, por que não,
voltar nossos olhos para o passado para, ainda, criticar certas decisões à luz, agora,
dessa compreensão?
o importante de aqui ser frisado é que, para a prática do direito, a chance de
dirigirmos nosso olhar crítico-reflexivo ao passado implica uma possibilidade de re-
leitura desse “mesmo” direito em face de um futuro ao qual se mantém constante-
mente aberto. Podemos assumir, ao entendermos esse “fio” da prática jurídica, que
uma aplicação adequada do direito não é aquela que se fundamenta em argumen-
tos valorativo-axiológicos (éticos), pragmatistas ou morais, mas aquela leitura que,
juridicamente, leva adiante esse projeto que “desde sempre” vem se construindo.
e esse processo é um caminhar contínuo, que não pára. o que interpretamos
como liberdades e igualdades hoje não têm a mesma acepção daquilo que inter-
pretávamos quando da promulgação de nossa constituição. a interpretação do sis-
tema de direitos fundamentais é constantemente aberta a sofisticações como
forma de incluir diferenças gerando outras igualdades capazes de, por seu turno e
uma vez mais, firmar argumentativamente futuras diferenças. disso podemos
inferir que o caminhar do direito é uma trilha pela construção de sua legitimida-
de que somente se dá no sentido do igual, e no maior grau possível, reconheci-
mento de liberdades fundamentais a todos os membros de uma comunidade polí-
tica que, portanto, se vislumbram como co-autores do direito moderno.
a cada novo capítulo de nossa história escrevemos “novos” reconhecimentos
de liberdades fundamentais. e é esse sentido que deve ser pressuposto na ativida-
de interpretativa do direito por ser isso que há que ser constantemente atualiza-
do na praxis jurídico-moderna se pretendemos racionalidade e legitimidade, pois,
de sua operacionalização. e esta é uma questão referente não só à justificação, mas
também à aplicação do direito.
mas, ao mesmo tempo em que assumimos uma dimensão hermenêutica,
capaz de nos fazer perceber uma pluralidade de leituras em princípio aplicáveis de
uma norma, como decidir, em face: de um caso concreto, qual das várias interpre-
tações possíveis dessas normas há que ser assumida como a interpretação adequa-
da àquele caso?
a resposta somente se pode fazer de maneira a levar a sério a modernidade
do direito moderno... não podemos deixar a eleição da interpretação adequada ao
caso nas mãos de razões de “política do direito” como KeLSen outrora sustentou.
Se é certo que a cada caso sempre surgem várias leituras de inúmeras normas, não
é menos adequado pretender que somente uma leitura, em face de sua reconstru-
ção dicursivo-processual, seja a leitura correta, única, ao caso. mas a correção do
julgado não se pode inferir de preferências ou decisões pragmatista-axiológicas, ou
mesmo morais, do julgador. Tal correção somente pode pretender ser um juízo
válido na medida em que se pautar coerentemente, e a um só tempo, em face a)
dos argumentos reconstruídos no caso; e b) do projeto de igual reconhecimento de
liberdades subjetivas atrelado ao sistema de princípios que o direito a interpretar,
e aplicar, é e que exige um cumprimento no maior grau possível.
do ponto de vista do discurso de aplicação jurídico-normativa, tal sentido
implica um tremendo esforço de atualização, em cada caso, desse projeto moder-
namente referido à interpretação e à construção do direito. disso podemos con-
cluir que não podemos ser irresponsáveis, como KeLSen gostaria que fôssemos, se
pretendemos uma prática jurídica racional, válida. Significa, além disso, que não
podemos vislumbrar a interpretação do direito com os olhos de uma “(in)conve-
niência”, como Luhmann acabaria por nos permitir. isso porque o equívoco, mais
uma vez, desses autores é ter partido de uma concepção condicional e convencio-
nal de norma. isso acaba, pois, por gerar o paradoxo de Luhmann: determinadas
situações não poderiam ser decididas embora tivessem que ser superadas pelo “sis-
tema” – ainda que pela via de “programas teleológicos”.
muito antes pelo contrário, o direito nos exige a responsabilidade de incor-
porar, inclusive, e sobretudo, por parte do intérprete, uma postura realizativa
capaz de assumir o outro como um cidadão porque dotado de status de membro
de nossa comunidade política e, portanto, reconhecido como referencial de impu-
tação de iguais direitos fundamentais. há que se buscar, pois, em cada caso, reali-
zar a democracia. Só que realizar a democracia em cada caso de aplicação do
direito jamais pode significar a “criação” ou a “invenção” de uma norma, ainda
que “justa”; antes, implica aplicar o direito democraticamente construído e, pois,
alcançar uma interpretação que, justamente por isso, seja, nesse discurso jurídico
de aplicação, publicamente sustentável.
caPíTuLo 8
hÁ FonTeS do direiTo?

mas, de onde vêm os princípios jurídicos? o direito é uma prática argumen-


tativa, uma prática, pois, social regida, em sua racionalidade, por um ideal de ação
comunicativa orientada ao entendimento. e o direito, como prática social argu-
mentativa, foi-se construindo, e se construiu na modernidade, sobre o alicerce
que os princípios da liberdade e da igualdade representam. então, o desafio ima-
nente à essa praxis, ao longo de todos esses séculos, é interpretar os “novos” – e
também “velhos” – casos à luz desses pilares. e, assim, a partir dessas interpreta-
ções, a partir dessa prática argumentativa que é o direito, é que foram sendo cons-
truídos, em face de concretos embates e lutas históricas, como capítulos de um
romance, os mais diversos reconhecimentos de liberdades assumidas como funda-
mentais porque lingüisticamente mediadas e interpretadas como indispensáveis à
condição de liberdade do homem moderno.
a história do constitucionalismo, sem a qual não se pode mais pretender uma
Filosofia do direito moderno,1 nos torna claro que, não obstante o compartilha-
mento e estabilização na prática jurídica de direitos como “liberdade de expres-
são”, “manifestação”, “imprensa” e de “propriedade” (ou de sua “função social”),
por exemplo, se ligarem, indiscutivelmente, a lutas e contextos histórico-políticos
concretos, por outro lado tais compartilhamento e estabilização na comunicação
permanecem ligados àquela justificativa transcendente de contexto que o projeto
de igual reconhecimento, no maior grau, de liberdades a todos constitui. e tudo
isso há que ser cotidianamente revisitado numa leitura sempre atenta às dimen-
sões hermenêutica e paradigmático-universal subjacente. esses são capítulos e
mais capítulos escritos nessa constante atualização do projeto democrático de
cidadãos livres e iguais.
de onde vem o direito? do próprio direito, do desenrolar dessa praxis argu-
mentativa capaz de seriamente assumir seu projeto moderno. os princípios, pois,
nada mais são que sentidos normativos interpretáveis em consonância a essa prá-
tica social em movimento constante. Se hoje existem “novos direitos” – desenvol-
vidos no exercício de nossas liberdades políticas – que há vinte anos não “exis-

1 nesse sentido, cf.: caTToni, marcelo. notas programáticas para uma justificação pós-metafísica da Filosofia
do direito enquanto Filosofia do direito constitucional. direito constitucional. Belo horizonte: manda-
mentos, 2002.
tiam”, já nos é claro que, ao futuro, o reconhecimento de outras novas questões
está aberto. muitos desses direitos fundamentais podem simbólica, normativa e
textualmente serem referidos a um diploma normativo-constitucional – sobretu-
do em face das razões que permitem ao direito superar o déficit cognitivo do sis-
tema de saber que a moral representa. Por outro lado, não podemos ser ingênuos
e supor, uma vez mais, que o que diz a carta constitucional é “aquilo” reduzido
às folhas de papel... do contrário, cairíamos num fraco reducionismo convencio-
nalista outra vez, ainda que sofisticássemos essa proposta e acreditássemos que
“várias interpretações a esses textos” fossem possíveis.
Se por um lado a constituição, vez que diploma normativo, tem uma carga
simbólica por ser a referência da constituição do sentido de uma prática jurídica
de uma determinada comunidade política moderna, e que possa ser qualificada
como tal, por outro lado tal “carga simbólica” assim só se cumpre se compreende-
mos a constituição como prática comunicativa (hermenêutico-reflexiva) desen-
volvida por essa mesma comunidade e orientada ao projeto do direito da
modernidade. assumindo, assim, a constituição como uma prática, afirmamos
que seu mero simbolismo acaba se esvaindo porque se confunde com sua força
normativa inesgotável. inesgotável porque a todo e qualquer novo caso a assunção
do projeto constitucional moderno nos permite, destarte, concluir por qual leitu-
ra, das possíveis apresentadas, é a leitura correta.
assim, dizemos que somente o direito pode ser fonte do próprio direito. mas
em um sentido radicalmente diferente daquele outrora proposto por KeLSen. o
preço que uma tal afirmação tem à luz do convencionalismo do qual parte a pro-
posta teórica kelseniana, em seus momentos de maior exacerbação funcionalista,
nos impede assumir o sentido proposto pelo autor. Se somente o direito pode ser
fonte do próprio direito, isto assim o é por razões que, a partir, inclusive, das pro-
blematizações levadas adiante pela Teoria Pura, podem ser reconstruídas à luz do
projeto normativo do direito da modernidade no sentido de assumir sua com-
preensão como um sistema idealmente coerente de princípios.
Se assumirmos “fonte de normatividade” como a referência a elementos aos
quais podemos reconstruir o sentido e o juízo de legitimidade das normas, a única
conclusão que se faz possível é que somente existem fontes de normatividade no
direito. Parece ser essa a compreensão subjacente à afirmação de dWorKin quan-
do defende, no tocante ao direito,

“que esse sistema de princípios é abrangente, pois ordena tanto a igualdade em


consideração quanto as liberdades básicas. em nossa cultura, são essas as duas
principais fontes de todas as afirmações de direitos individuais. Por isso é estra-
nho que uma pessoa que acredita que cidadãos livres e iguais deveriam ter a
garantia de um determinado direito individual não pense também que a própria
constituição já contém esse direito, a menos que a história constitucional o
tenha rejeitado de forma decisiva.”2

o que podemos dizer é que os princípios de igualdade e liberdade somente


podem ser assumidos como fontes de normatividade em um sentido muito parti-
cular e que veio se desenvolvendo ao longo dessas páginas: no sentido de se com-
preender e assumir o direito – em face de sua modernidade e também do próprio
caráter moderno da modernidade – como um sistema idealmente coerente de
princípios que, superando as dificuldades de um convencionalismo e funcionalis-
mo exacerbados, permite aos concidadãos se vislumbrarem não somente como
destinatários das normas jurídicas, mas igualmente como seus co-autores, no
desenvolvimento e desdobramento da inesgotabilidade normativa do sistema de
direitos fundamentais interpretado à luz do direito de todos, e de cada um, de
terem reconhecidas, na maior medida possível, suas liberdades subjetivas. e para
que isso seja operacionalizado, se faz, pois, normativamente indispensável, além
de uma indisponibilidade funcional, o socorro a uma forma jurídica que, por sua
vez, somente pode permitir a geração de uma tal legitimidade em uma democra-
cia, donde inevitável se faz o reconhecimento de liberdades políticas.
o que se coloca em questão é a idéia de fonte de normatividade interna ao
direito, e não desde uma óptica meramente sociológica a investigar causas sociais
do surgimento de uma determinada norma. Sabemos que questões mais variadas
podem ser imputadas como causas de um processo legislativo democrático.
Sabemos, também, que o sentido normativo de fonte no direito exige que essas
causas sejam discutidas em uma construção legislativa mediada normativamente
pelo próprio ideal de reconhecimento do direito a iguais liberdades, na maior
medida possível, a todos. Se assumirmos esta articulação de liberdade e igualdade
como “fonte de normatividade”, conseguimos explicar não somente a geração
válida de normas legislativas, mas também o reconhecimento jurisdicional de
liberdades antes não reconhecidas e que assim passaram a ser como fruto de uma
luta pelo reconhecimento de diferenças antes apagadas ou não bem enfocadas pelo
sistema do direito. isto, definitivamente, e como colocado pelas páginas antece-
dentes, significa espancar, de vez, uma compreensão sociológico-convencionalis-
ta que sempre está a rondar a prática interpretativa do direito, rumo a uma com-
preensão que se mostra aberta ao futuro, no sentido de se permitir ressignificar no
cumprimento daquilo que exige o projeto normativo do direito da modernidade.
Percebe-se, pois, como nossa intuição inicial se confirma: as questões coloca-
das por uma Teoria das Lacunas no direito, ao serem devidamente enfocadas e

2 dWorKin, ronald. o direito da liberdade: a leitura moral da constituição norte-americana, cit., p. 117.
problematizadas, revolvem pressupostos basilares da compreensão da praxis jurí-
dica moderna que, por fim, permitem-nos demonstrar que uma tal Teoria das
Lacunas acaba, dos problemas que parte, por devorar a si mesma... não há lacunas
no direito, como também não há um “espaço jurídico vazio” no sentido explicita-
do no primeiro capítulo. o direito como sistema de princípios cobra, inevitavel-
mente, um sentido de completude. mas um sentido de completude radicalmente
distinto das propostas convencionalistas e pragmatistas que se socorrerem ora na
“vontade do legislador”3 ora em recursos como “analogia legis” ou “iuris” para rea-
lizar a integração do direito.
Se é verdade que pontos do falso-problema que é a questão das lacunas é
devedora, em parte, de uma convencionalista compreensão do exercício da legis-
lação como supostamente capaz de esgotar o sentido de normatividade do direito,
por outro lado também pudemos perceber como a “abertura” das “fontes do
direito” como referindo-se a costumes e à jurisprudência em nada permitiu colo-
car a questão em melhor leito. e isso exatamente porque o subjacente a todas essas
interpretações é o apego a um convencionalismo maléfico, a fazer crer que,
mesmo no caso dos costumes, o que estaria em jogo seria um acordo tácito e com-
partilhado aproblematizadamente por todos os indivíduos de uma determinada
comunidade política. Quando assumimos o direito como um sistema em seu ideal
de coerência normativa – e como desenrolar do direito à maior medida de iguais
liberdades a todos – essas questões adquirem uma significação não mais sustentá-
vel como antes. no caso dos costumes, não é admissível fazer surgir da mera fati-
cidade normas jurídicas. Se engiSch ou mesmo KanToroWicz vislumbraram o
direito comercial como eminentemente “costumeiro”, assim procederam desde
uma óptica sociológica, porém não normativa, muito menos em uma empreita
reconstrutiva, do sentido subjacente a esses “costumes”. o fato de os costumes não
criarem normas jamais pode significar que a interpretação dos ideais de liberdade
e igualdade não possa ser levada adiante por todos os concidadãos como uma
maneira de atualização do sentido normativo do direito. o que isso significa é que
a fonte de normatividade continua a ser os princípios de liberdade e de igualdade,
porém interpretados intuitivamente, e interpretáveis, pelos próprios concidadãos
em questões de seu cotidiano. a força normativa de uma tal prática social não se
refere a elementos fáticos repetidos uniformemente, muito menos em uma supos-
ta convicção compartilhada de maneira generalizada sobre a necessidade de juri-
dicamente se cumprir um determinado costume. antes, a força normativa é capaz

3 em uma crítica a essas questões, e na reconsideração de uma completude do direito, cf.: dWorKin, ronald.
La complétude du droit. in: amSeLeK, Paul; grzegorczyK, christophe. controverses autour de l’ontologie
du droit. Paris: Presses universitaires de France, 1989, p. 131 et seq.
de ser perfeitamente reconduzida aos princípios jurídicos capazes de também
serem reinterpretados pelos concidadãos em uma comunidade que realmente
mereça o nome de uma comunidade aberta de intérpretes da constituição. as pre-
tensões normativas referentes a essas práticas consuetudinárias não podem ser
reduzidas à mera faticidade de sua verificação. do contrário, seria reduzir aceita-
bilidade à simples aceitação, e isto já vimos antes.
Por outro lado, também não podemos assumir a jurisprudência como “fonte”,
não ao menos da maneira que a tradição coloca a questão, porque essa assertiva é
necessariamente dependente do reconhecimento de uma discricionariedade juris-
dicional – tão cara à Teoria das Lacunas porque também o é a uma Teoria das
Fontes no direito. evidentemente, como explicitado no capítulo 3, a jurisdição
desempenha o importante papel de garantir o reconhecimento de direitos e a
imputação de deveres desde uma óptica argumentativa referida exclusivamente a
argumentos jurídicos. Podemos entender o desafio da jurisdição em face daquilo
que podemos sintetizar como fonte de normatividade, o que seja, o direito, lin-
güisticamente mediado e institucionalmente perseguido, à maior medida possível
de iguais liberdades subjetivas a todos: o desafio da jurisdição é, no desdobramen-
to do sistema de direitos, a partir da tomada em consideração das especificidades
do caso e de um juízo de coerência normativa, reconhecer direitos e deveres como
“já embutidos”, como uma decorrência interpretativa do próprio direito que seria
chamado a somente atualizar-se em face da especificidade daquele caso. Por isso,
e ainda com dWorKin, não se faz relevante à prática do direito, muito menos à
sua Teoria, uma pretendida distinção entre “direitos enumerados” e “direitos não-
enumerados”.4 o que explica a legitimidade da decisão jurisdicional, então, não é
a faticidade de uma decisão de uma autoridade para um tal ato competente, mas o
fato de a jurisdição ser o locus institucionalizado de garantia do reconhecimento
de direitos e imputação de deveres na atualização da tarefa cobrada ao, e pelo,
direito de reconhecer, na maior medida possível, iguais liberdades a todos. e isto,
obviamente, se faz dependente da garantia de direitos de participação dos afeta-
dos pela decisão jurisdicional no processo de aplicação do direito.

4 dWorKin, ronald. o direito da liberdade: a leitura moral da constituição norte-americana, cit., p. 122. nos
torna claro o efeito nefasto que uma tal distinção entre “direitos enumerados” e “direitos não-enumerados”
é capaz de produzir no exercício de uma jurisdição que se pretenda democrática. ao introduzir outro falso-
problema, essa distinção cria complicações no sentido de supostamente fazer crer que os “direitos enume-
rados” constitucionalmente seriam dotados de um status argumentativo diferente daqueles “não-enumera-
dos”. a herança convencionalista dessa concepção obscurece o fato de que a legitimidade das decisões juris-
dicionais está em se assumir o direito como um sistema de princípios com todas as co-implicações aqui
explicitadas. e para um tal desenvolvimento da prática constitucional e jurisdicional nenhuma relevância
pode cobrar a referência semântica à enumeração, ou não, de um tal direito no corpo do texto normativo,
ainda que da constituição.
Também a legislação não pode ser, ao menos de maneira aproblematizada,
assumida como “fonte”. isso porque a própria legislação é submetida a juízos de
legitimidade que não dependem exclusivamente de sua forma, como outrora se
pensou e nos lembra carrÉ de maLBerg. Já oferecemos, no capítulo 3 o que o pro-
jeto normativo do direito da modernidade exige da prática legislativa. aqui, cabe-
nos somente ressaltar, uma vez mais, que a própria normatividade da legislação é
direta e internamente ligada a questões principiológicas que, ao final, recondu-
zem-se a reinterpretações de liberdade e igualdade de maneira a satisfazer a
cobrança de se reconhecer liberdades a todos no maior grau possível.
o que com isso relembramos é que a idéia das fontes no direito moderno não
é algo passível de deliberação. a fonte de normatividade somente é fonte de legi-
timidade no sentido de que não se pode decidir acerca dela, embora possamos
tomar decisões – jurisdicionais e legislativas – a partir dela. o projeto do direito
moderno, uma vez que sua fonte de normatividade, impõe e justifica uma forma
jurídica moderna e as conseqüentes garantias normativas que uma deliberação legí-
tima exigem, democraticamente operacionalizada por meio do reconhecimento de
direitos políticos, no que tange à legislação, e mediante o reconhecimento de direi-
tos de participação em discursos de aplicação normativa, no que tange à jurisdição.
destarte, o sentido de auto-purificação do direito, ou de sua abertura ou
inesgotabilidade normativa, há que ser assumido como normativamente determi-
nado pela idéia de fonte de normatividade. Significa dizer que somente uma com-
preensão do direito como um sistema de princípios em seu ideal de coerência nor-
mativa e orientado à realização do direito à maior medida possível de iguais liber-
dades a todos, permite-nos compreender o sentido de se afirmar um direito além
do direito.
Segundo dWorKin, o direito tem a possibilidade de ir se aprimorando, gera-
ção a geração, a partir dos deslizes e equívocos do passado, orientando-se, para
tanto, em uma idéia de auto-purificação. Porém, sob a óptica das decisões jurisdi-
cionais, isso não poderia implicar a crença em um direito “mais puro” do que
aquele que o juiz, em seu esforço interpretativo, deva se esmerar em sua aplica-
ção. assim, se a questão deve ser enxergar o direito atual “como um todo coeren-
te e estruturado”, isso significa, então, tornar o direito atual mais coerente do que
ele já se apresenta. e esse sistema mais coerente – numa auto-referenciação – há
que ser assumido como o próprio direito atual.5 isto porque interpreta dWorKin
o conceito de direito como referido àquilo defensável perante os tribunais –
espantando qualquer confusão com teses jusnaturalistas –, e esse aspecto tornaria
“o conteúdo do direito sensível a diversos tipos de limitações institucionais”.6

5 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 477.


6 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 478.
assim é que entende dWorKin que o seu juiz hÉrcuLeS, jamais poderia ignorar
a supremacia legislativa e o precedente de tribunais que imponham uma limitação
interpretativa à sua jurisdição sob o argumento de que o que se pretenderia seria um
aperfeiçoamento da integridade do direito – porque, procedendo-se desta maneira,
teria violado a integridade, uma vez que o sucesso interpretativo dessa seria comple-
tamente dependente do reconhecimento dessas “limitações institucionais”.7
esse problema colocado por dWorKin parte, na verdade, de uma não-adequa-
da articulação da tensão entre real e ideal. como vimos nos capítulos anteriores,
sabemos muito bem o que uma idéia de uma “supremacia do Legislativo”, levada às
últimas conseqüências pode acarretar. vimos também que a pretensão da legislação
como fonte suprema do direito da modernidade se faz insustentável em face do
caráter principiológico do próprio direito – afinal, o próprio texto legal somente
adquire significado normativo quando principiologicamente interpretado. as pre-
tensões em torno da idéia de súmula vinculante em nosso País, por outro lado, e
sobretudo em face de nossa particular tradição de controle de constitucionalidade,
também devem ser interpretadas à luz do direito como um sistema de princípios...
o que surge como contraditório é que na interpretação dessa questão
dWorKin parece não interpretar principiologicamente tais idéias de “soberania
legislativa” e de força dos precedentes. antes, procede a uma interpretação que
assume tais questões como limitações institucionais ao exercício da jurisdição em
sua busca pela integridade, e não como questões que devam ser assumidas como
constitutivas da própria atividade jurisdicional desenvolvida de maneira reflexiva
e normativa. isso se torna nítido quando afirma:

“não quero dizer com isso que, em tais casos, hÉrcuLeS sempre aceitaria a incoerên-
cia substantiva para manter a fidelidade aos princípios mais processuais, mas apenas
que o caráter complexo da prestação jurisdicional torna inevitável que ele, às vezes,
assim o faça.”8

e isso assim se faz presente nas conclusões de dWorKin porque neste ponto
não logra articular bem a tensão entre ideal e real, fazendo crer que a idealidade
– representada pela suposta “coerência substantiva” – poderia ser algo alheio à rea-
lidade – princípios “mais processuais” e supostamente limitadores da busca de uma
tal “coerência substantiva”.
mais adiante o autor vai apresentar uma distinção entre “integridade inclusi-
va” e “integridade pura”, o que vem a confirmar essa não-adequada reconstrução
da tensão entre ideal e real. enquanto o direito contemporâneo, aquele “direito do

7 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 479.


8 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 480
juiz, o direito que ele é obrigado a declarar e colocar em vigor”,9 seria atrelado à
idéia de “integridade inclusiva”, em que os “princípios mais processuais” poderiam
implicar uma limitação à “coerência substantiva”, outro direito, qual seja, um
direito “mais puro” se ligaria à idéia de uma “integridade pura” e se comporia de

“princípios de justiça que oferecem a melhor justificativa do direito contemporâneo,


posto que não são vistos a partir da perspectiva de nenhuma instituição em particu-
lar, abstraindo, desse modo, todas as restrições de eqüidade e de processo que a inte-
gridade inclusive exige”.10

a fundamentação moral do direito para dWorKin torna-se clara com essas


linhas.11 Também clara se faz a contraposição feita pelo autor entre “direito atual”
– limitado por questões institucionais – e “direito puro” – liberto de quaisquer ins-
tituições em particular... a existência de uma tal “integridade pura” não se justifi-
ca, não ao menos dessa maneira, como que em uma relação de independência a
questões institucionais. afinal, a forma jurídica moderna não é nem uma questão
meramente formal, muito menos só uma questão funcional... ao dizer que o
“direito puro” estaria contido no “direito do juiz”, e ao afirmar que aquele seria
pensado em abstração de qualquer restrição institucional, o autor acaba não colo-
cando de maneira adequada a distinção entre direito e moral, bem como atrelan-
do a moral a uma noção idealizada de “integridade pura” somente possível de ser
realizada aproximadamente em razão das “restrições” institucionais que sofre o
“direito do juiz”. Tudo isso, ao final, porque entende dWorKin que a moral é que,
ao final, justificaria o direito, por supostamente oferecer uma “melhor justificati-
va do direito contemporâneo”. vimos, anteriormente, que o direito, embora
aberto à moral, se justifica em uma prática de auto-legislação democrática.
a partir de uma adequada compreensão da tensão entre ideal e real, a afirma-
ção de um direito além do direito, ou de uma auto-purificação do direito, há que
ser melhor interpretada no sentido daquela abertura normativa do direito a futu-
ras ressignificações, no desdobramento da exigência de reconhecimento de iguais
liberdades a todos da maior maneira ou no maior grau possível. não se trata de uma
duplicação de um sistema de princípios, mas a compreensão de que internamente
ao direito é que o próprio direito – em razão da pressão que a moral realiza, desde
uma óptica de justificação democrática, e não moral, das normas jurídicas, e em
razão do reconhecimento normativo de igualdades e diferenças em face das espe-
cificidades dos casos, desde uma óptica de aplicação –, realiza um constante resga-

9 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 485.


10 dWorKin, ronald. o império do direito, cit., p. 485.
11 cf., nesse sentido: chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstru-
ção crítico-discursiva na alta modernidade, cit., p. 62.
te de construção de uma Sociedade de homens livres e iguais, tornando-se um sis-
tema cada vez mais complexo e alterando suas fronteiras para além daquilo que
hoje é, e no passado foram, reconhecidos como direitos e deveres.
e o reconhecimento jurisdicional de um “novo” direito não é uma conquista,
ou uma construção do julgador. embora possa ser argumentativamente qualificado
como novidade, aquele reconhecimento não deixa de ser algo que poderia, inclusi-
ve, ser assumido e compreendido como “desde sempre” capaz de ser interpretado
em face de seu caso-chave e à luz do discurso jurídico da modernidade. Seria como
um direito que se encontra velado, mergulhado nos meandros da nossa constante
prática jurídica e que embora nunca explicitado, quando trazido à tona, consigo car-
rega um feixe de luz capaz de, não raras vezes, fazer compreendê-lo como “óbvio”,
ainda que antes pressuposto seu sentido normativo – na assunção do projeto jurídi-
co-moderno – nesse emaranhado comunicativo que é a prática jurídica. assim sur-
gem novas igualdades e diferenças discursiva e argumentativamente referidas.
Todavia, um outro problema referente a essas questões pode ser percebido
bem ao final de Faktizität und geltung. haBermaS, referindo-se ao papel que os
cidadãos assumem no paradigma procedimental do direito no sentido de tomar
partido em discursos políticos para fazer valer seus interesses vulnerados, afirma
que esses mesmos cidadãos acabam, na articulação desses interesses, cooperando
no desenvolvimento de critérios concernentes ao trato igual de casos iguais e ao
trato desigual de casos desiguais. Porém, afirma que

“en la medida que las leyes han menester de una concretización por la que quedan
desarrolladas, y ello en un grado tal que la Justicia pese a todas las cautelas ha de tomar
decisiones en esa zona gris entre la producción legislativa y la aplicación del derecho,
los discursos jurídicos de aplicación han de complementarse de forma clara y recono-
cible con elementos tomados de los discursos de fundamentación.”12 (itálicos nossos)

aqui está uma questão que venho problematizando a algum tempo: qual o
sentido de se afirmar que uma tal decisão jurisdicional se daria em uma “zona cin-
zenta” entre o que seria “produção legislativa” e “aplicação do direito”? a meu
ver, nenhum. e isso afirmo a partir do momento em que assumimos o direito
como um sistema de princípios em seu ideal de coerência normativa.
como já explicitado no capítulo 3, e em outro lugar,13 as lutas argumentati-
vas pelo reconhecimento de direitos em sede de discussões jurisdicionais, isto é,

12 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 525.
13 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 70.
do reconhecimento de diferenças em face das igualdades já reconhecidas, têm
uma dimensão que não pode ser negada, qual seja, o fato de poderem ser vislum-
bradas como lutas políticas em defesa de interesses vulnerados. acontece que do
ponto de vista de uma aplicação normativa, o papel dos cidadãos, articulados em
associações civis ou organizações não-governamentais, ou ainda individualmente,
deve ser vislumbrado como referido ao reconhecimento institucional de preten-
sões normativas todavia carentes de garantia em algumas situações determinadas.
e o papel desses cidadãos é, pois, de exatamente se valerem de argumentos capa-
zes de demonstrar diferenças e igualdades que sejam suficientemente fortes para
garantir o reconhecimento de uma tal diferença. a luta política desses cidadãos –
sem dúvida alguma, extremamente frutífera para a construção de critérios de
igualdade e diferença de casos e questões que se colocam ao direito – não signi-
fica a abertura jurisdicional a argumentos éticos, morais ou pragmatistas; a preten-
são normativa subjacente a essa luta política é que deve ser analisada juridicamen-
te pelo órgão jurisdicional competente.
não se trata, portanto, de uma “zona cinzenta” entre produção legislativa e
aplicação do direito. antes, trata-se de uma claríssima zona de esforço interpre-
tativo-constitucional capaz, é verdade, de trazer à tona argumentos também
empregados pelos cidadãos em sua luta em face do sistema da Política, mas que
aqui somente podem ser encarados normativamente. Por mais que uma decisão
jurisdicional se refira a “elementos tomados de discursos de justificação normati-
va”, isto não significa que a atividade da jurisdição se dê em campo distinto se o
caso em debate fosse outro. mesmo porque esses elementos tomados de discursos
de justificação normativa devem ser vislumbrados como trazendo consigo preten-
sões normativas que, estas sim, e aqui está o cerne da questão, serão normativa-
mente enfrentadas pelo órgão jurisdicional. e isso mesmo em face de casos em que
faltariam normas legislativas e que serviriam à regulamentação de uma determi-
nada matéria que, “por sua própria natureza”, e na expressão de haBermaS, exigi-
ria leis: qual, afinal, o sentido normativo de se assumir o direito como um siste-
ma idealmente coerente de princípios, bem como, em face da nossa constituição,
o sentido normativo adequado ao constitucionalismo da figura do mandado de
injunção,14 senão permitir que decisões jurisdicionais sejam legitimamente toma-
das mesmo em casos em que ausentes estejam essas normas gerais e regulamenta-
doras de uma determinada matéria? em definitivo, e uma vez mais, não se trata
também aqui de qualquer zona cinzenta, mas sim de um exercício da jurisdição

14 caTToni de oliveira, marcelo andrade. Tutela jurisdicional e estado democrático de direito: por uma com-
preensão constitucionalmente adequada do mandado de injunção, cit.
que seja adequado ao sentido de fonte de normatividade referente ao próprio
direito.
e, referindo-se àqueles “elementos tomados dos discursos de justificação”,
complementa haBermaS no sentido de que

“estos elementos de una formación cuasi legisladora de la opnión y de la voluntad


necesitan, empero, de una legitimación distinta. esa carga legitimatoria adicional
podería quedar satisfecha obligando institucionalmente a la Justicia a dar justifica-
ciones ante un foro ampliado de críticos de ella. Para ello sería menester la institu-
cionalización de un espacio público-jurídico que vaya más allá de la actual cultura de
expertos y sea lo suficientemente sensible como para convertir en foco de controver-
sias decisones de principio que resulten problemáticas.”15 (itálicos nossos)

não se entende porque uma tal “legitimação distinta”, ou “adicional”, se faria


necessária quando realmente se assumem as conseqüências que a compreensão do
direito como um sistema de princípios em seu ideal de coerência nos impõe.
afinal de contas, o fato de o Judiciário poder se valer de elementos argumentati-
vos referidos a uma luta política, não o transforma, nem o coloca, em uma tarefa
“quase legisladora” – em face de uma decisão “quase” coletivamente vinculante.
antes, deveria ser encarada tal situação como uma excelente oportunidade de se
assumir principiologicamente o direito no reconhecimento, em sede de aplicação
normativa, do sentido normativo que a modernidade o cobra. o problema todo
seria, por exemplo, enxergar tal afirmação de haBermaS como uma possível justi-
ficação teórica para a figura do amicus curiae em sede de discussões normativas
controversas perante os Tribunais Superiores. o processo de aplicação do direito
deve se valer de argumentos jurídicos no enfrentamento de pretensões normati-
vas levantadas em seu bojo – mesmo no caso de uma tal, e inadequada, formação
“quase legisladora” das diferenças e igualdades.
Só podemos interpretar e entender o direito como, então, um sistema de
princípios. compreendê-lo dessa forma pode ser, para muitos, uma tarefa bem
mais árdua. mas, quem disse que a atividade interpretativa do direito se satisfaz,
no nível de sua legitimidade, com uma postura blasé do intérprete?
o próprio passado do direito, como vimos, permite-nos vislumbrar que a sua
história é repleta de equívocos e mal-entendidos do seu sentido. mas o direito
tem a capacidade de aprender com os tropeços do passado, ao mesmo tempo em
que se auto-purifica. afirmar, à melhor luz, que o direito é uma prática social que
permite sua auto-purificação, a partir dos erros e equívocos do passado, implica

15 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 526.
dizer que o próprio direito, relendo a si mesmo, pode vislumbrar determinadas
decisões – legislativas e administrativas e aqui, em específico, jurisdicionais –
como equívocos porque incoerentes com esse projeto do direito. esse novo capí-
tulo que se fará “escrito” pode superar a falta de coerência no tratamento de deter-
minadas questões jurídicas porque capaz de ser adequadamente focado ao que está
a exigir o constitucionalismo moderno.
PóS-eScriTo à Segunda edição

de Que maneira oS ideaiS de “inTegridade”


e “Forma Jurídica moderna” Se enTreLaçam?

reFLeXõeS a ParTir do Que uma “FiLoSoFia do direiTo PenaL”


Pode enSinar à FiLoSoFia do direiTo enQuanTo
“FiLoSoFia do direiTo conSTiTucionaL”

i.

desde a publicação de nosso texto anterior, intitulado Legitimidade na


modernidade: entre as ideias de democracia, forma jurídica e liberdades subjeti-
vas, tenho sido contundentemente indagado sobre a tese central sustentada
naquele texto e que aqui, neste livro, também encontra-se acolhida, qual seja, a
tese segundo a qual a ideia de forma jurídica moderna, e diferentemente do que
Jürgen haBermaS expressamente sustenta, não pode ser tão-somente explicada
funcionalmente, mas também capaz de ser assumida como dotada de uma justifi-
cação normativa.
a verdade é que o desenvolvimento deste tema é um aprofundamento de
outra afirmação que, já em 2006, fora exposta em nosso Teoria geral do direito
moderno: por uma reconstrução crítico-reconstrutiva na alta modernidade.
neste, afirmamos que a legitimidade do direito da modernidade “depende de sua
forma, de uma forma jurídica que, na modernidade, se construiu normativa e
sociologicamente alicerçada nos princípios de igualdade e liberdade, num proces-
so de diferenciação funcional”; e ainda que qualquer assembleia constituinte que
pretenda ser reconhecida como legítima “tem que decidir por tal juridicidade
(forma jurídica) quando (ou porque) não poderia de outra forma decidir legitima-
mente”, por mais que isso pareça paradoxal. e essas afirmações foram realizadas,
contextualmente, em um esforço reconstrutivo das possíveis relações interpreta-
tivas que permeiam o reconhecimento, na praxis, de direitos subjetivos e deveres
circunstancialmente imputados.
a partir, destarte, da elaboração mais cuidadosa dos argumentos que pode-
riam sustentar essas afirmações, bem como a partir dos argumentos também pers-
picazmente apresentados pelo Professor manueL JimÉnez redondo no estudo
Prévio a este livro, venho recebendo críticas que, de maneira geral, poderiam ser
assim resumidas:

a) o fato de se trazer à tona essa discussão, e apresentar uma solução como a


por mim esboçada, e igualmente defendida por JimÉnez redondo, a partir
de uma crítica à Teoria discursiva e Procedimental do direito, de
haBermaS, tratar-se-ia da criação de um falso-problema, a partir do que se
estaria apresentando uma falsa-“resposta”, uma vez que não haveria pro-
blema algum a ser respondido, já que o próprio haBermaS já superara essa
questão;
b) a defesa de uma justificação normativa à forma jurídica moderna seria des-
necessária porque, para satisfazer coerentemente à compreensão do
direito moderno, seria o bastante uma explicação funcional da juridi-
cidade;
c) a desnecessidade a que se refere o item anterior estaria atrelada a uma
incompreensão, de minha parte, de que a forma jurídica moderna, da
maneira como a exponho, seria fruto de uma interpretação retrospectiva
do seu sentido, isto é, eu estaria interpretando a forma jurídica como dota-
da, “desde sempre”, de uma justificação normativa, o que seria um equí-
voco, pois “não poderia me valer” de nossa experiência constitucional, de
mais de duzentos anos, para interpretar, ex post, o sentido da consolidação
e condensamento de referida forma jurídica porque esta poderia ser,
“desde sempre”, e uma vez mais, explicada, mas não justificada;
d) que a relação que sustento entre “forma jurídica moderna” e “liberdades
subjetivas” levaria ao equívoco de se pretender interpretar a “gênese lógi-
ca dos direitos” para haBermaS como uma “dedução lógica”, e não a partir
de uma reconstrução de seu sentido jurídico-normativo;
e) que eu, agora já em sentido oposto a b), realizo uma interpretação equivo-
cada, e incoerente, da Teoria do discurso de haBermaS, visto que eu não
sustentara a tese de que sua teoria apresentaria uma justificativa normati-
va para a forma jurídica moderna;
f) e isto porque, finalmente, quando haBermaS apresenta a distinção entre
direito e moral, estaria, segundo a crítica recebida, realizando uma propos-
ta de diferenciação baseada tão-somente em elementos formais e funcionais,
isto é, que eu não teria compreendido a “estratégia argumentativa” do autor
em face de sua particular discordância da solução à questão dada por KanT.

desde já devo adiantar que enfrentarei essas críticas sem, contudo, acreditar
que quaisquer delas faça algum sentido para além de uma defesa fundamentalista –
porque pretensamente privilegiada – e não-fundamentada, ou mesmo não-reflexi-
va, do que outrora haBermaS escrevera em Faktizität und geltung, e mais além.
Para tanto, me valerei de mais de duzentos anos não só de traços da história
constitucional, mas também do desenvolvimento do direito Penal da moder-
nidade. e, assim, pretendo mostrar como a Filosofia do direito, “enquanto
Filosofia do direito constitucional”, pode aprender com uma “Filosofia do direito
Penal”. nesse sentido, buscaremos enfocar, sobretudo, a ebulição social e intelec-
tual do século Xviii, como maneira de melhor expor nossos argumentos.

ii.

Se voltarmos nossos olhos para o contexto de justificação do direito Penal


dos séculos Xvi e Xvii, sobretudo, é inegável tomar em consideração que muitos
dos reis europeus assumiam que a unidade da fé entre seus súditos era um bem que
simultaneamente aumentaria a coesão interna e, por via de consequência, facili-
taria não só o exercício do poder, como, igualmente, o fortaleceria. destarte, e no
contexto da história da espanha, FranciSco TomÁS y vaLienTe esclarece que a
assunção deste pensamento se deu em concreto a partir do reinado de iSaBeL e
Fernando, quando, inclusive, passa-se a verificar uma coincidência entre a políti-
ca eclesiástica e a política secular, cuja personificação mais tarde dar-se-á através
do Santo ofício da inquisição, em que a simbiose era perfeita:

havia alguns delitos religiosos, havia algumas penas espirituais para aqueles que os
cometessem, porém também havia outras de caráter temporal; e havia um Tribunal
especializado no qual os teólogos e canonistas julgavam, condenavam ou absolviam,
ainda quando o “braço secular” executasse materialmente as penas temporais.1

TomÁS esclarece que autores clássicos desse período espanhol, como aLFonSo
de caSTro, difundiam a doutrina – que, aliás, era assumida como geral – de que
havia uma obrigatoriedade de consciência da lei penal justa. os teólogos, assim,
sabiam como servir ao poder real, e este igualmente soube tirar todo o proveito
dessa doutrina que, sob a opinião de outros pensadores, como Pedro de aragón,
fora extremada no sentido de, inclusive, defender que a toda lei penal justa esta-
ria imbuído o dever de sua consciência, inclusive no que tange às leis “meramen-
te penais” (leges mere poenales) – ainda que por “via indireta”.2 aliás, essa distin-
ção entre leis “propriamente penais” e “meramente penais” sobrevive até os dias

1 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii. 2. ed.
madrid: Tecnos, 1992, p. 86.
2 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 87.
de hoje, obviamente que com outros fundamentos, no direito Penal do common
Law, em que a sempre nebulosa diferença entre mala in se e mala prohibita é
constantemente chamada para se imputar, ou não, elementos da mens rea.3
e essa obrigatoriedade da consciência dessas leis penais justas encontrava-se
no fato de que, para o teologismo que sustentou essa prática social, a razão huma-
na seria uma participação do entendimento divino, fazendo com que se concluís-
se no sentido de que todo conhecimento válido assentava-se no conhecimento de
deus, no terreno – e sob domínio, portanto – da teologia, o que se projetou per-
feita e intensamente no direito a partir da tripartição clássica da escolástica entre
“lei eterna”, “lei natural” e “lei positiva”.4 e a relevância de todas essas questões
centra-se, especialmente, no fato de que durante os séculos Xvi, Xvii e parcialmen-
te no século Xviii o conceito e a prática na imputação de delitos estavam por
demais imbuídos da ideia de pecado; além de igualmente os juristas da época não
terem feito qualquer frente – porque eram indiferentes – à doutrina dos teólogos
moralistas.5 a temática em torno de uma “Filosofia do direito Penal” nesse perío-
do da história europeia, e aqui em especial do contexto espanhol, ou seja, a discus-
são sobre a legitimidade, limites e fundamentos de um direito Penal das
monarquias absolutas, não era um assunto enfrentado ou problematizado com
maior profundidade pelos juristas. muito antes, estes deixavam a cargo dos teólo-
gos e filósofos embebidos no conhecimento escolástico o enfrentamento dessas
questões, como as que dizem respeito à obrigatoriedade de consciência da lei
penal, bem como uma “teoria geral da lei penal ou da pena, porém sem incidir
(salvo referências isoladas) na análise do direito positivo”.6
e esta questão levantada por TomÁS é relevante na medida em que, frequen-
temente, atribui-se a aLFonSo de caSTro o título de “fundador do direito Penal
moderno”, ou da ciência do direito Penal, em “desonra” a ceSare Beccaria, con-
siderado por alguns autores espanhóis como um “mito” que precisava ser desmis-
tificado – pretensamente em favor de aLFonSo de caSTro. a questão é que TomÁS

3 Para uma ponte entre institutos penais do common Law e de nossa tradição penal de fundo germânico, e
embora não problematizando a distinção entre mala in se e mala prohibita, cf.: Piña rocheForT, Juan ignacio.
La estrutura de la teoría del delito en el ámbito jurídico del “common Law”. granada: colmares, 2002.
4 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 86.
5 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., pp.
89-90.
6 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p.
90. e referindo-se a aLFonSo de caSTro, que inclusive foi conselheiro pessoal de carLoS i e FeLiPe ii, escla-
rece que o objetivo das suas obras que enfrentavam temáticas penais era, eminentemente, “persuadir bien
a los Príncipes cristianos de que debían emplear sin contemplación alguna contra los herejes pertinaces y
obstinados, todas las penas consignadas en las leyes, a fin de poner coto a la propaganda de sus errores y
obligarles a abjurar de ellos. Se trata de un libro escrito en plena vigencia de la inquisición en su defensa y
de la política religiosa de la monarquía; pero sin preocupación científico-penal.”
vislumbra nesta disputa algo extremamente infrutífero, seja porque aLFonSo de
caSTro jamais se preocupou com um estudo normativo-sistematizado do direito
Penal positivo, seja porque, igualmente, Beccaria

não criou a ciência do direito Penal, entre outras razões, porque a isto não se pro-
pôs e porque tal ciência, ao seu modo, vinha sendo trabalhosa, lenta e cuidadosa-
mente elaborada desde alguns séculos (desde o Xiv, nada menos).7

então as questões ganham nova luz quando se entende que aLFonSo de


caSTro não foi um penalista no sentido contemporâneo do termo, mas sim um
filósofo do direito Penal cuja preocupação central era servir à monarquia e igual-
mente à religião a partir de sólidas bases de conhecimento teológico para justifi-
car o jus puniendi real.8
rumo ao século Xviii, quando, inclusive, em 1764 Beccaria apresenta ao
mundo dei dellite e delle pene, TomÁS chama nossa atenção para um dos fenôme-
nos a partir do que o iluminismo se realiza: a secularização da cultura, e aqui no
que especificamente nos interessa mais de perto, do direito.

aquela submissão da razão humana à divina, como participação desta, fica esqueci-
da: agora se utilizará a razão humana de modo “natural”, deixando às margens as con-
siderações da relação existente com a divina. a razão é glória do homem, o que cons-
titui sua verdadeira natureza, seu máximo poder.9

Passa-se, no campo de justificação do direito, e aqui, especificamente, do


direito Penal, de uma justificação e vinculação teológicas para uma tomada em
consideração do direito como fruto de um esforço humano derivado do “pacto
social”, implicando agora, em termos de legitimidade, que o direito positivo
venha a explicitar “as relações que derivam da natureza das coisas”, a partir do que
o direito contribuirá para a realização da felicidade e da liberdade dos indiví-
duos.10
e nesse afã de explicitar a natureza das coisas, dois nomes, na opinião de
TomÁS, foram os que mais contribuíram, na difusão em território europeu, de uma
fresca e renovada justificação e visão do direito Penal a partir das bases teóricas
do iluminismo que, então, poderia levar, desde os princípios por eles sustentados,
à correção do então direito Penal vigente.11

7 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 91.
8 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 92.
9 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 94.
10 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 94.
11 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 94.
monTeSQuieu, com seu de l´esprit des lois de 1748, e com sua particular forma
de escrita inclinada “à suavidade e à doçura”, plantou reflexões sobre algumas das
questões sobre o direito Penal que contextualmente lhe incomodavam, oferecendo
tanto críticas ao então direito Penal vigente, como também oferecendo bases para
uma profunda reforma e implementação de um outro direito Penal, agora preten-
samente melhor, e tudo isso expondo “máximas” e “regras gerais”,12 de maneira
clara, inteligível e facilmente aceitável por qualquer filósofo racionalista.13
e essa conquista monTeSQuieu empreendeu partindo da justificativa articula-
da em termos de liberdade e de sua proteção. a liberdade, para tanto, foi tomada
em consideração como um dos direitos básicos do cidadão e, nas palavras de
TomÁS y vaLienTe, consistia

realmente na segurança que cada indivíduo tenha [tivesse] de não ser vítima do des-
potismo, nem das falsas acusações públicas ou privadas que contra ele podem [pudes-
sem] dirigir seus concidadãos.14

dessa forma, a conexão entre questões políticas e penais fica esclarecida, ou


seja, percebe-se claramente que o direito Penal agora seria chamado não em nome
e em defesa da fé, mas para proteger a liberdade dos cidadãos. e, além dessas ques-
tões que se colocam de maneira relevante, em um giro individualista-racional no
combate a uma justificação teológica antes ocupante do lugar comum em torno da
legitimidade das normas penais, monTeSQuieu foi, muito provavelmente – e
sobretudo em razão de sua teoria da separação dos poderes – o primeiro a defen-
der, nesse novo contexto sociofilosófico, que as penas devem estar previstas na lei
e que devem guardar proporção com a gravidade e com a natureza do delito.15
Para os estudiosos do direito Penal da modernidade, torna-se nítida a gran-
de influência da obra de monTeSQuieu no pensamento e nos escritos de Beccaria.
assumindo a já difundida e generalizada doutrina do contrato social entre os pen-
sadores de sua época, Beccaria não teve uma preocupação de enfrentar questões
de direito positivo diretamente, mas tão-somente na medida em que seria sufi-
ciente para expor seus ideais; não se trata, em definitivo, de um trabalho que tinha
pretensões de ser reconhecido como acadêmico no meio científico, tanto que o

12 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p.
95. e conclui: “en cierto modo podría decirse simplificando que su famoso libro es un conjunto no entera-
mente riguroso ni sistemático, pero clarividente y coherente de sabias y ‘progressitas’ generalidades.”
13 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p.
96. “y sin provocar las encendidas contradicciones que el libro de Beccaria o los dispersos escritos penales
de voLTaire, sus ideas penales fueron quizá las más eficaces en la tarea de promover una profunda reforma
de las leyes penales.”
14 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 97.
15 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 98.
único autor a quem faz duas referências16 expressas é o próprio monTeSQuieu –
não obstante isso, seu trabalho teve um impacto em toda a europa, seja no pensa-
mento teórico-político, seja na prática jurídico-constitucional.
Segundo TomÁS y vaLienTe, dois fatos ocorridos em 1762 favoreceram, enor-
memente, a acolhida do texto de Beccaria, que data de 1764. Segundo o autor, o
primeiro desses fatos foi o surgimento do du contrat Social, de rouSSeau – que
fora decisivo para a sofisticação dos argumentos de Beccaria em torno do funda-
mento das penas –, e o outro se trata do julgamento, condenação e execução de
um pai que fora, equivocadamente, responsabilizado pela morte de seu filho na
França. o personagem, a partir deste episódio, que chamou para si a responsabili-
dade de instigar a opinião pública contra as atrozes, e não raras vezes equivocadas,
práticas penais e processuais-penais de seu tempo foi voLTaire, cuja discussão
provocada alcançou não só a anulação da sentença como proporcionou uma
atmosfera propícia, tanto para a recepção das ideias de Beccaria, quanto para a
realização das reformas necessárias.17 e em uma específica passagem de sua obra
TomÁS traz à tona algo que aqui nos soa de extrema importância para compreen-
der o projeto pretendido pelos iluministas:

Querem melhorar a realidade, dando-lhe nova forma, reformando-a. e sua formação


e experiência jurídica prática lhes ajudou a não propor soluções impossíveis, senão
exequíveis. Porém, essas modificações haveriam que vir, segundo eles, impostas
desde acima. “reformar legislando” poderia ter sido a máxima, ou emblema, destes
filósofos ilustrados.18 (itálicos nossos)

e todas essas propostas de modificações que começavam a se tornar consen-


so entre os ilustrados não mais eram justificadas no passado, nem na teologia, nem
no direito romano, porque nas últimas décadas do século Xviii tornou-se gene-
ralizado, entre os filósofos e teóricos, o pensamento do jusnaturalismo racional e,
igualmente, o contratualismo em suas mais diferentes versões. uma vez que o
direito passa a ser encarado como mero fenômeno social, deveria, por uma exi-
gência racional, adequar-se “racionalmente às necessidades dos tempos e dos paí-
ses e a certas exigências racionais de justiça”.19

16 São estas as duas referências: “o imortal Presidente monTeSQuieu discorreu rapidamente sobre essa maté-
ria”; “Toda pena que não derive da necessidade absoluta, diz o grande monTeSQuieu, é tirânica (...)”
(Beccaria, cesare. dos delitos e das penas. Trad. Lucia guidicini e alessandro Berti contessa. São Paulo:
martins Fontes, 1998, pp. 41-42).
17 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., pp.
99-100.
18 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 105.
19 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 104.
Beccaria assimilou toda essa efervescência quando escreveu o texto que o
imortalizou. ao propor uma profunda transformação das práticas penais de sua
época, acreditava ser indispensável desvinculá-las de suas ligações históricas, razão
pela qual não apresenta qualquer admiração, seja pelo direito romano, seja pelo
direito canônico. e as bases para essa transformação estariam simultaneamente vin-
culadas a uma maior fiscalização dos magistrados,20 ao fim dos privilégios da nobre-
za,21 e uma revolução através da educação,22 da ciência e da clareza das leis; e tudo
isso porque, na concepção de Beccaria, estas seriam, inclusive, razões capazes de
eficazmente prevenir a prática de delitos em uma sociedade23 – em contraposição à
crença de que um endurecimento das penas e do processo é que alcançaria esse fim.
o tema em torno da “segurança” dos cidadãos é algo central para se com-
preender a proposta do autor. na medida em que a origem das penas se deu após o
contrato social – cuja causa era o constante estado de guerra em que viviam os
homens –, pelo fato de os homens terem celebrado um contrato em que sacrifica-
vam, cediam, parte de sua liberdade natural para a consecução do bem comum, a
justificação para a existência da sanção penal se repousava como exigência para a
preservação da própria sociedade e contra aqueles que ansiassem retirar do “depó-
sito comum” sua parte cedida de liberdade; porque, neste caso, não somente “reti-
raria” a sua liberdade, como também apoderar-se-ia das liberdades dos demais. essa
é a razão pela qual o jus puniendi é agora justificado não mais na defesa, ou a par-
tir, de princípios teológicos, mas porque se trata de uma exigência racional, qual
seja, da necessidade de proteger esse depósito comum das liberdades individuais
cedidas; e aqui, resgatando monTeSQuieu, é que afirma que as penas somente se jus-
tificariam nessa necessidade, pois, do contrário, seriam tirânicas.24
de tudo isso, e no contexto de resguardo das liberdades dos indivíduos, resul-
ta que só as leis poderiam decretar as penas dos delitos, pois seria a figura metafó-
rica do legislador que representaria toda a sociedade unida por um pacto; assim, o
magistrado não estaria autorizado a ser inventivo no que tange à matéria penal
porque não representa a sociedade, mas é igualmente parte dela.

a primeira conseqüência desses princípios é que só as leis podem decretar as penas


dos delitos, e esta autoridade só pode residir no legislador, que representa toda a

20 Beccaria, cesare. dos delitos e das penas, cit., p. 135.


21 Beccaria, cesare. dos delitos e das penas, cit., p. 82.
22 Beccaria, cesare. dos delitos e das penas, cit., p. 136.
23 Beccaria, cesare. dos delitos e das penas, cit., p. 131.
24 “eis, então, sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos: sobre a necessidade de defender
o depósito do bem comum das usurpações particulares; e tanto mais justas são as penas quanto mais sagra-
da e inviolável é a segurança e maior liberdade que o soberano garante aos súditos” (Beccaria, cesare. dos
delitos e das penas, cit., p. 42).
sociedade unida por um contrato social; nenhum magistrado (que é parte integrante
da sociedade) pode, com justiça, infligir penas contra outro membro dessa mesma
sociedade. mas uma pena superior ao limite fixado pelas leis corresponde à pena justa
mais uma outra pena; portanto, um magistrado não pode, sob qualquer pretexto de
zelo ou bem comum, aumentar a pena estabelecida para um cidadão delinqüente.25

recapitulando: somente as leis podem criar delitos e suas correspondentes


penas porque só o Legislativo, representante da sociedade unida por um pacto, é
legitimado a criar essas leis que, para não serem tirânicas, devem se balizar naqui-
lo assumido como necessário, útil, à garantia da existência ordenada daquela pró-
pria sociedade. isto é, somente se justificariam se capazes de garantir o contrato
social e, dessa maneira, o poder do soberano que assim foi instituído a partir da
cessão de parte de liberdades naturais e individuais para, exatamente, se ter a
segurança e proteção das liberdades de todos. o estado, o poder do soberano, o
contrato social, a representação de todos pelo “legislador”, a existência de delitos
e de suas correspondentes penas, o jus puniendi, enfim, tão-somente se justifica-
riam na medida em que fossem úteis, necessárias, ao resguardo e à segurança das
liberdades dos indivíduos.
É sabida a influência que o pensamento dos iluministas tivera na elaboração
das primeiras legislações afetas à matéria penal da modernidade.
Franz von LiSzT esclarece que as ideias centrais do período filosófico aqui em
discussão – quais sejam, as ideias de proteção da liberdade individual contra o
arbítrio do Judiciário, supressão da tortura, abolição ou ao menos limitação da
pena de morte, acentuação da tese de que a pena só tem fins políticos, em contra-
posição a exigências “religiosas ou puramente morais”26 – logo foram acolhidas em
legislações de importantes países.

na rússia já em 1767 caTharina ii, nas suas notáveis “instruções à comissão incum-
bida de elaborar o projeto de um novo código”, tentou introduzir na linguagem do
legislador l´esprit des lois de monTeSQuieu; o espírito de Beccaria resumbrava no
cod. penal da Toscana de 1786 decretado por LeoPoLdo ii; na Áustria, SonnenFeLS
triunfou depois de longas lutas; na Prússia, Frederico ii encetou o caminho das refor-
mas, desde que assumiu o governo.27

reconhece-se, entre os juristas e estudiosos do direito Penal, que o princípio


da legalidade fora assumido pelo direito positivo primeiramente nas constituições

25 Beccaria, cesare. dos delitos e das penas, cit., p. 44.


26 LiSzT, Franz von. Tratado de direito Penal alemão. Trad. José hygino duarte Pereira. rio de Janeiro: F.
Briguet, 1899, t. i, p. 58.
27 LiSzT, Franz von. Tratado de direito Penal alemão, cit., pp. 58-59.
de alguns estados federados dos estados unidos, sobretudo na do estado da virgínia,
seguidas do famoso código Penal austríaco, de 1787, da declaração dos direitos do
homem e do cidadão, de 1789, bem como pela legislação prussiana, em 1794.28
a legislação penal da época das luzes, diz edmund mezger, tomou em consi-
deração esses novos pensamentos: quando, em 1787, no reinado de JoSÉ ii, verifi-
camos a substituição da constitutio criminalis Theresiana, de 1768, isso se dá em
favor de um novo código Penal para a Áustria, “adequado ao espírito do
iluminismo, ainda que em muitos extremos certamente segue de modo demasia-
damente unilataral”.29
roXin toma em consideração que há interpretações que sugerem que JoSÉ ii, ao
instituir esse novo código Penal, não queria proteger as liberdades do cidadão, mas
consolidar, através da eliminação do arbítrio jurisdicional, o seu domínio – ao que
serviria, pois, e nesta interpretação, à assunção do princípio da legalidade. “Porém,
a verdade é que neste caso se interpenetram ambos objetivos; o ‘absolutismo se
impôs já com a ideia ilustrada da legalidade’.”30 esclarece Franz von LiSzT que, no
tocante ao código Penal austríaco, são suas características a apresentação de

Linguagem breve e concisa, despotismo esclarecido, substituição da pena de morte


por penas de prisão crudelíssimas e que podiam prolongar-se até um século, inadmis-
sibilidade da analogia, definições defeituosas, tais são os traços característicos do
cod. Josephino.31

diferente não foi na espanha. Quando, em 1774, se autorizou a tradução para


o castelhano da obra de Beccaria, traz-nos TomÁS y vaLienTe a informação de que
esta edição trazia, em sua primeira página, a seguinte nota:

“o conselho, conformando-se com o parecer do senhor Fiscal, tem permitido a


impressão e publicação desta obra só para a instrução pública, sem prejuízo às leis do
reino e à sua pontual observância; mandando, para a ciência de todos, por no início
[do livro], esta nota.”32

a expressão, em nota, da tolerância – que é muito diferente de reconheci-


mento – no que diz respeito à circulação dessas ideias, “sem prejuízo da vigência
do então direito Penal vigente”, parecia já pressentir o que estava por vir. em

28 cf.: roXin, claus. derecho Penal: parte general. Trad diego manuel Luzón Peña et al. madrid: civitas,
1997, t. i, p. 142.
29 mezger, edmund. Tratado de derecho Penal. Trad, José arturuo rodriguez muñoz. madrid: revista de
derecho Privado, 1955, t. i, p. 34.
30 roXin, claus. derecho penal: parte general, cit., p. 142.
31 LiSzT, Franz von. Tratado de direito Penal allemão, cit., p. 59.
32 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 110.
1805, já no século XiX, carLoS iv promulgou a novíssima recompilação em maté-
ria penal, que não continha, essencialmente, nada mais que as “mesmas leis penais
vigentes de maneira acumulada durante os séculos anteriores”.33 Todavia, os reda-
tores do código Penal espanhol de 1822 tomaram em consideração as ideias
penais de monTeSQuieu e Beccaria, dentre outros como, BehTham e FiLangieri,
sendo que, com exceção deste, aqueles foram os pensadores mais citados nas dis-
cussões dos membros da comissão de redação do novo código.34
reinharT maurach pontua que, a partir desse novo ciclo filosófico e legisla-
tivo na cena europeia, a não mais fundamentação teológica do direito Penal, em
razão de sua secularização devedora à filosofia iluminista, partira, obviamente, de
uma compreensão de que se tratava de um complexo normativo sustentado pelo
estado e pela Sociedade, sendo que o debate em torno da questão penal, a partir
de então, se intensifica no que diz respeito à sua finalidade e à sua justificação.35
além da própria legalidade defendida – como combate à compreensão das penas
arbitrárias e rumo a uma limitação do poder dos estados absolutistas –, deve-se
igualmente reconhecer aos teóricos do século Xviii que

...as pretensões baseadas no contrato social, dirigidas contra o poder estatal, recla-
mam, em todo caso, a proporcionalidade entre culpabilidade e a pena, a fim de que
o delinquente não sofra uma intromissão de uma quantidade maior de direitos que
aqueles que usurpou ao violar o contrato social, o que constitui uma atenuação bási-
ca do sistema de penas existente até então e o começo do movimento abolicionista.
(...) na medida em que o iluminismo reclama uma proporção fato-culpabilidade,
pode-se dizer que estes esforços estão determinados pela humanidade, pela adequa-
ção; dito sucintamente, por considerações racionais: se a proporção não foi adequa-
da ao fim, ela não seria adequada ao direito Penal.36

isso é bastante nítido, por exemplo, na própria obra de Beccaria. a defesa


aguerrida tanto da legalidade, quanto da individualização da previsão da sanção
penal, já se faz notável, com contornos nem sempre muito nítidos, mas, em defi-

33 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 111.
34 TomÁS y vaLienTe, Francisco. el derecho penal de la monarquía absoluta: siglos Xvi, Xvii y Xviii, cit., p. 103.
35 maurach, reinhart. derecho Penal: parte general. Teoría general del derecho penal y estrutuctura del
hecho punible. Trad. de la 7ª edición alemana por Jorge Bofill genzch y enrique aimone gibson. Buenos
aires: astrea, 1994, p. 65.
36 maurach, reinhart. derecho Penal: parte general. Teoría general del derecho penal y estrutuctura del
hecho punible, cit., p. 92. esclarecendo ainda que: “La proporción es racional, pero no necesariamente
requerida: proporción no es aún retribuición justa. en estos puntos de vista encuentra eco con una fuerza
elemental el razonamiento de KanT. También él reclama proporción, y no sólo proporción, sino literalmen-
te retribuición, talión.”
nitivo, de maneira profundamente revolucionária, nos escritos dos pensadores do
século Xviii.
devemos chamar a atenção ao fato de que a discussão em torno da justifica-
ção do direito Penal, desde a infância da modernidade, esteve marcada, e de
maneira muito forte, por três ideias: as noções de indivíduo, legalidade e coerção
– sempre tomadas em consideração numa constante articulação em torno da
garantia das liberdades naturais.

iii.

Quando maurach, como explicitado acima, realça que o processo de secula-


rização do direito Penal fora peça-chave no seu desenvolvimento moderno, nos
instiga a voltar nossos olhos para o que efetivamente implicou esse processo de
secularização.
hanS BLumenBerg é enfático ao dizer que o que se passou, ao menos em cer-
tas instâncias específicas e de maneira central, no processo que se interpreta como
secularização, deve ser compreendido como a ocorrência de uma reocupação das
posições de resposta, antes ocupadas pela teologia, e que passaram a se tornar vazias
e incapazes de enfrentar questões que não poderiam ser eliminadas,37 fazendo com
que a filosofia moderna “substituísse”, em grande medida, a função da teologia.

assim, ainda quando a filosofia moderna se concebe como a mais aguçada contradi-
ção possível à sua pré-história, no que se considera ser a “superação”, essa mesma
filosofia é devedora ao quadro de referências ao qual ela própria renuncia.38

destarte, o projeto de inauguração de um completo e perfeito mundo novo,


a partir da concepção de uma era moderna, esbarrou e “falhou” – ao menos como
pretendido, ou imaginado – em razão da incapacidade de analisar suas próprias
pré-condições: a modernidade não tem como recorrer, fugir, daquilo que a ante-
cedeu.39 e tudo isso faz com que o

fenômeno moderno (interpretado como secularização) da reocupação de vazias posi-


ções de resposta não está ligado (is not bound to) especificamente à estrutura espiri-
tual dessa época.40

37 BLumenBerg, hans. The Legitimacy of the modern age. Trad. robert m. Wallace. cambridge: The miT
Press, 1991, p. 65.
38 BLumenBerg, hans. The Legitimacy of the modern age, cit., p. 69.
39 BLumenBerg, hans. The Legitimacy of the modern age, cit., pp. 74-75.
40 BLumenBerg, hans. The Legitimacy of the modern age, cit., p. 69.
Quando BLumenBerg se refere “à estrutura espiritual dessa época”, o está fa-
zendo no que diz respeito à época moderna. isto porque, segundo o autor, podem-
se verificar, amplamente, estruturas análogas nos processos históricos que envol-
vem tanto a recepção da antiguidade pelo cristianismo quanto a assunção das fun-
ções explanatórias do sistema teológico-cristão pela filosofia moderna.41
Tomando em consideração essas palavras de BLumenBerg, devemos com-
preender que, inclusive pelo que foi antes retratado, não se pode reduzir o proces-
so de modernização da Sociedade tão-somente à consideração de sua seculariza-
ção. Junto a isto, deve-se considerar, e sobretudo da maneira como o faz haBer-
maS, processos co-implicados, como os de diferenciação funcional dos sistemas, da
assunção de que esse “novo mundo” é mediado linguisticamente, além da tomada
em conta da especialização dos juízos de racionalidade.
aqui, voltemos à secularização. no que diz respeito a uma “Filosofia do
direito Penal”, percebemos que a justificação do direito Penal, antes explicada a
partir de bases teologicamente articuladas de princípios cristãos, fora esvaziado
nesse processo de modernização da sociedade, sendo posteriormente preenchido,
no contexto de uma separação entre as noções de pecado e crime, que veio somen-
te se fortalecer com as obras dos ilustrados que, no afã de projetar um novo
mundo, sem muitas explicações e reconstruções historiográficas, enxergaram no
esquema racionalizado do contrato social um ato fundacional de toda uma nova
era; como se essa nova era não fosse mais devedora ao seu passado que, enquanto
tal, deveria ser esquecido, quando não repugnado. em Beccaria, por exemplo,
essa questão é transparente. ao que não se atenta muitas vezes é que a própria tese
iluminista do contratualismo deita suas raízes mais profundas em noções devedo-
ras ao direito romano e ao direito canônico, reinterpretados, por sua vez, pela
teologia e pela jurisprudência medievais.
a partir do último quarto do século passado, todavia, os estudos de Teoria
Política perceberam que era necessário explorar mais detidamente essa “fundação
da modernidade”, resgatando, para tanto, elementos historiográficos a serem con-
juntamente interpretados com matrizes teóricas de modo a explicar melhor esse
processo.
QuenTin SKinner, por exemplo, e no contexto de discussão dos séculos Xv e
Xvi, vai esclarecer como o direito romano – por muitos iluministas apontado
como algo a ser esquecido –, paradoxalmente serviu para justificar o poder de reis
absolutistas, quando se interpretava que “todo príncipe deve ser considerado legi-
bus solutus, ‘livre da ação das leis’”,42 e também serviu como uma das “principais

41 BLumenBerg, hans. The Legitimacy of the modern age, cit., p. 69.


42 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno. Trad. renato Janine ribeiro e Laura
Teixeira motta. São Paulo: companhia das Letras, 1999, p. 403.
fontes do constitucionalismo moderno”. na reconstrução empreendida por
SKinner, há o esclarecimento de que ao mesmo tempo em que o digesto fora, com
razão, interpretado como sendo evocado pelos príncipes absolutistas como forma
de negar liberdades de participação política dos seus súditos, dispositivos do
direito romano relativos ao direito civil, bem como dispositivos do direito
canônico, “foram invocados com igual segurança, por alguns dos mais radicais
adversários do absolutismo europeu no início da era moderna”.43
e isso se deu através de uma “adaptação”: o pensamento constitucionalista –
no contexto do que podemos chamar de early modern era – reinterpretou argu-
mentos, então de direito Privado romano e canônico, e que justificavam o uso da
violência, de maneira proveitosa para a formação de uma consciência em torno de
liberdades políticas e contra o absolutismo. Foi a partir de dispositivos de direito
canônico, referentes à resistência às decisões de juízes injustos, e de dispositivos
do código civil, que permitiam em determinadas situações, como as de adultério
e legítima defesa, causar deliberadamente “uma injúria ou até mesmo a morte” –
que obviamente não traziam quaisquer pretensões de exercerem influência direta
na esfera política –, que aqueles teólogos radicais, contrários aos reis tirânicos, se
valessem dessas justificativas, para o emprego da violência privada, agora no
campo da resistência política.44 na década de 1340, ocKham já apresentara, segun-
do nos informa SKinner, essa roupagem política a uma teoria da resistência origi-
nariamente afeta ao direito Privado.
Partindo da ideia de que o rei somente seria superior ao seu reino no decur-
so regular, normal, dos acontecimentos, ocKham afirma, logo depois, que em cer-
tas circunstâncias excepcionais o rei poderia ser inferior ao reino, podendo-se
chegar até a depô-lo e o manter sob custódia.

o que, por sua vez, afirma occam, é justificado pelo fato de que a “lei da natureza,
como determina o primeiro livro do digesto, torna legítimo repelir a força com a
força” (vim vi repellere licet).”45

Levando a uma disseminação maior do raciocínio inaugurado por ocKham


no meio do pensamento escolástico radical, Jean gerSon esclarece que podem sur-
gir situações nas quais seria permissível que os membros da igreja recusassem obe-
diência ao Papa, da mesma forma que “seria permissível resistir à força com
força”.46

43 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno, cit., p. 404.


44 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno, cit., p. 405.
45 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno, cit., p. 406.
46 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno, cit., p. 406.
Quando traz essa discussão para o campo de uma esfera pública, gerSon não
hesita em igualmente assumir um direito de resistência. Segundo ele,

“é um erro afirmar que os reis estão livres de toda obrigação para com os súditos”,
pois “lhes devem justiça e proteção, pela lei divina e pelas leis da natureza”.
Prossegue então alertando que, “se falharem nisso, se agirem injustamente para com
os súditos e persistirem em seu comportamento perverso, então será hora de aplicar
a lei da natureza, que estabelece que podemos repelir a força pela força” (vim vi
repellere).47

além dos teólogos, também os juristas radicais se enveredaram por reinter-


pretações do direito romano de maneira a justificar certos limites na atividade
política, o que acabou justificando a teoria, e a prática de que, ao ser eleito, o
imperador teria firmado um contrato com os seus eleitores, assim jurando promo-
ver o bem do império e resguardar as “liberdades” dos súditos, e caso assim não se
procedesse poderia ser deposto – como efetivamente ocorrera em 1400, quando o
imperador WenzeL foi deposto, com a consequente afirmação de que os súditos
não mais lhe deviam lealdade, visto que os eleitores imperiais explicitaram que a
promessa de manter a unidade do império e a paz da igreja não fora cumprida,
cabendo-lhes, portanto, destituí-lo de seu posto, como se um tribunal fossem, e
assim executar a sentença pela violação do contrato firmado perante os súditos.48
essas teses somente serão resgatas posteriormente no século Xvi, sobretudo
por uLrich zaSiuS, que, examinando a constituição do império, concluiu que um
rei, em seu reino, teria mais “direitos” que o imperador no império, porque,
enquanto aquele transmite o reino aos seus legítimos herdeiros, não há sucessão
no caso do império a não ser por eleição. Porém, mais adiante afirma que, assim
como os príncipes-eleitores admitem o imperador, quando um vassalo admite
uma pessoa na qualidade de senhor, o quê disto resulta seriam obrigações essen-
cialmente feudais e de “caráter recíproco”.49 e, interpretando o direito romano,
afirma zaSiuS que as interpretações, a partir das leis, que atribuíssem, ou atri-
buíam, ao imperador um poder absoluto seriam equivocadas porque, não obstan-
te verdadeiramente deterem um poder muito grande, este poder serviria à manu-
tenção da segurança dos súditos, bem como à defesa da justiça, 50 decorrendo a
legitimidade de seu poder de um exercício racional e justo.51

47 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno, cit., p. 406.


48 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno, cit., p. 407.
49 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno, cit., p. 409.
50 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno, cit., p. 409.
51 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno, cit., p. 410.
resgatando vários dos argumentos oriundos do direito romano, bem como
uma interpretação a partir de BarToLo, em 1514 SaLamonio acaba por proferir
que nenhum príncipe poderia ser considerado legibus solutus, pois teria o dever
de governar de maneira honesta e justa, “em conformidade com as leis da nature-
za e os costumes do país em questão”, exatamente porque todo governante, para
ser assumido como dotado de um poder legítimo, tem que estar submetido às leis,
e não acima delas, sendo até mesmo

possível que uma lei proposta por um príncipe “seja ab-rogada em nome da justiça”
pelo povo soberano, se mais tarde este constatar que ela não “conduz à estabilidade
e ao bem comum.”52

maurizio FioravanTi, no esclarecimento do sentido de constituição medie-


val, pontua que este conceito de constituição mista53 estaria a serviço da defesa de
um certo “caráter plural” que compunha o quadro da sociedade medieval, bem
como a defesa dos poderes que dessa sociedade, ao mesmo tempo em que se temia
o nascimento de qualquer poder público que rompesse com esse equilíbrio. a ideia
de constituição medieval, portanto, trazia a pretensão de limitar esses poderes que
pudessem se sobrepor a esse equilíbrio. mas foi exatamente durante os séculos Xvi
a Xviii que esse conceito de constituição medieval entra em declínio pela destrui-
ção proporcionada pela exacerbação do poder dos soberanos absolutistas.54
o embate entre católicos e protestantes na França, marcados por guerras reli-
giosas, na segunda metade do século Xvi, foi passo decisivo no caminhar ao direito
da modernidade, embora as primeiras vozes que se levantaram a partir desses
acontecimentos, antes que romper com o passado medieval, procederam a um res-
gate da constituição mista, daquela constituição medieval.55
FrançoiS hoTman, em seu Franco-gallia, datado de 1573, não apela a qual-
quer solução mágica ou inovadora; muito antes pelo contrário, nada haveria que
ser inventado, pois a saída para as então dificuldades vividas encontrava-se em um
resgate normativo da histórica constituição medieval, que caíra no esquecimento.

nesta constituição, o rei não estava limitado só no que tange às leis dinásticas e de
alienação dos bens da coroa. o limite mais relevante era outro, e era o que obrigava
o rei a tratar da utilitas publicae, o bem comum e geral do reino, na presença do con-
selho público, dos estados gerais do reino. esse conselho não estava formado só pelos

52 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno, cit., p. 413.


53 Para o conceito de constituição mista, cf.: FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros
días. Trad. manuel martínez neira. madrid: Trotta, 2001, pp. 55 et seq.
54 FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros días, cit., p. 56.
55 FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros días, cit., p. 57.
magistrados do rei, eleitos por ele, mas também pelos magistrados do reino, que
assim o eram por dignidade nobiliária independente da influência régia, ou por
terem sido eleitos como deputados das províncias. assim, o reino em seu conjunto
estava representado pelos estados gerais, do que o rei mesmo formava uma parte, e
não somente o rei. e estes mesmos estados gerais eram os verdadeiros tutores da
constituição, que hoTman chama de politia, e entende como conjunto de “institui-
ções e costumes do reino, confirmados no curso dos tempos”.56

a novidade, nesse contexto, todavia, do pensamento de hoTman fica marcada no


fato de que a ideia de constituição medieval era utilizada como combustível para a luta
política de maneira a limitar o rei, sendo expressamente invocada contra o rei e contra
suas pretensões despóticas. o que está em jogo aqui é muito mais que um “direito de
resistência”, esclarece FioravanTi, como reconhecido pelos autores medievais dos sécu-
los Xii e Xiii a partir da obra de SaLiSBury e São TomÁS de aQuino. o que entra em cena
agora é que hoTman pensa que a França deveria buscar o caminho de sua reconstru-
ção, de resgate daquela constituição esquecida, a fim de que se encontrasse um rei capaz
de merecer o trono por ser justo; porém, na medida em que isso não se tornasse possí-
vel, o autor não semeia dúvida ao defender que o povo estaria perfeitamente legitima-
do em tomar para si todo o poder, porque este poder teria sido confiado, no contexto
de uma constituição histórico-medieval, ao rei pelo povo que, originariamente, o dete-
ria. com isso, hoTman provoca uma mudança significativa no pensamento e no ideário
político a partir de então: diferentemente de toda doutrina anterior a ele, defende que
o povo poderia existir politicamente antes do rei, e essa existência seria interpretada
como um sujeito dotado de uma constituição e em si ordenado, “porque para hoTman
o povo existe antes que o rei e, por isso, sempre pode existir também sem ele”.57
ocorreu, assim, uma modificação significativa na interpretação das condi-
ções que possibilitam uma tal constituição medieval, porque embora se continue
a referir a ela, era possível, na modificação da interpretação organicista daquela
sociedade, a partir do momento em que se permitiu a pensar o povo sem o rei –
ao mesmo tempo em que a constituição continuaria como critério de ordenação
do povo, mantendo os laços entre os diversos grupos e ordem vivos, ainda que em
ausência da figura real.58
nesse caminhar, de ruptura com a prática e o conceito de uma constituição
medieval, foi Jean Bodin quem, primeiramente, ofereceu uma nítida interpreta-
ção cujo peso foi marcar o desenvolvimento e a sofisticação de um novo conceito
e uma nova prática política capaz agora de ser percebida como moderna.59 a par-

56 FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros días, cit., p. 58.


57 FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros días, cit., p. 59.
58 FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros días, cit., p. 60.
59 SKinner, Quentin. as fundações do pensamento político moderno, cit., pp. 620 et seq.
tir da tomada de consciência em torno da impossibilidade de continuidade do pro-
jeto medieval, de manutenção pacífica e harmônica de uma ordem historicamen-
te desenvolvida, Bodin lança a ideia de que, para evitar o conflito e salvar a socie-
dade deste, era indispensável passar a assumir, no seio dessa mesma sociedade, a
existência de um poder de natureza distinta, dotado de uma força suplementar e
até então desconhecida.60
Porém, entende FioravanTi que foi a partir de hoBBeS que podemos falar de
um conceito diferenciado de constituição; não mais uma constituição histórico-
medieval, mas de uma constituição dos modernos. e esse conceito somente foi pos-
sível a partir do momento em que hoBBeS, valendo-se da noção de “estado de natu-
reza”, passa a assumir que os sujeitos protagonistas desse estado eram os indivíduos
considerados em si, tomados em conta de maneira exclusiva61 e não articulados em
termos de uma noção organicista a formar o “povo”, como em hoTman.
a associação política surgiria, então, dos conceitos de autorização e represen-
tação. na medida em que os indivíduos, até então absolutamente iguais entre si, e
em estado de natureza – razão pela qual estavam constantemente submetidos ao
perigo que isto representava aos seus direitos naturais –, decidem instaurar um
poder soberano comum, autorizando-o a salvar seus direitos do conflito e daque-
la precária condição incapaz de garanti-los, surge, talvez, a primeira noção moder-
na de representação, capaz de converter os inúmeros indivíduos em uma unidade,
qual seja, o povo. o soberano teria o dever, portanto, de proteger as vidas e os
direitos de seus súditos ao mesmo tempo em que, a partir dessa relação autoriza-
ção/representação, poderiam os súditos passar a gozar sob o império, e o silêncio,
das leis do soberano de determinados direitos. Todavia, não se reconhecia legiti-
mamente a possibilidade de os súditos se oporem ao seu soberano, porque qual-
quer oposição implicaria, de maneira perniciosa, uma debilidade da capacidade de
representação das ordens civis e políticas do soberano, expondo a própria socieda-
de em condição de regresso à conturbada condição anterior.62

Porém, em toda esta matéria de direitos, em uma análise ligada ao capítulo dos limi-
tes e das garantias, a partir de agora se deverá tomar em consideração a extraordiná-
ria novidade do poder soberano nascido da crise definitiva da constituição medieval
mista, e por isso mesmo pouco disposto a aceitar controles e contrapesos por parte de
outros poderes e, por outro lado, titular de maneira exclusiva de um poder de fazer
a lei à qual será bastante difícil opor limites apreciáveis.63

60 FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros días, cit., p. 74.


61 FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros días, cit., p. 79.
62 FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros días, cit., p. 81.
63 FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros días, cit., p. 81.
Todavia, é o próprio FioravanTi que toma o cuidado de sustentar que o poder
soberano para hoBBeS, ou para um rouSSeau, ao mesmo tempo em que se situam
no centro desse novo conceito que se perfazia, qual seja, a constituição dos
modernos não se configuraria como um poder arbitrário, sobretudo porque era
interpretado aquele poder soberano como um poder chamado pelos indivíduos
através do contrato social a instituir uma

lei certa através da qual fosse possível estabilizar a vida e as posses desses mesmos
indivíduos e, então, criar as condições para que pudessem começar a tomar forma os
direitos individuais.64 (itálicos nossos)

Sobre isso, sobre a existência dos direitos dos indivíduos, monTeSQuieu, mais
tarde, afirmara que somente em um regime político moderado seria possível o seu
desenvolvimento, e para tanto, seria indispensável uma lei positivamente delibe-
rada para que esses mesmos indivíduos viessem, no contexto da associação políti-
ca, a gozar desses direitos.65
Já, agora, no contexto revolucionário, a assunção de uma interpretação indi-
vidualista e contratualista no seio da cultura das liberdades da revolução Francesa
trouxe um fator que FioravanTi chama de legicentrista, pois

para os revolucionários franceses, e para a mesma declaração dos direitos, a lei é algo
mais – e distinto – que um instrumento técnico para garantir melhor os direitos e
liberdades que já são possuídos. a lei é, na verdade, um valor em si e não um mero
instrumento, porque só graças à sua autoridade se fazem possíveis os direitos e as
liberdades de todos: com sua ausência, faltando um legislador firme e autorizado, se
cairia no detestado passado da sociedade de privilégios do antigo regime.66

com isso, e a partir dessa nova interpretação, à imagem de que existiam direi-
tos pré-estatais, que imporiam deveres exclusivos ao estado de tutela e de conser-
vação, se soma e se sobrepõe a imagem

dos direitos de todos que existem só no momento em que a própria lei os torna pos-
síveis em concreto, afirmando-os como direitos dos indivíduos enquanto tais, contra
as velhas lógicas estamentais. as duas imagens convivem na revolução Francesa e,
juntas, expressam o grande mito do legislador que encarna a vontade geral, que fala
na nova língua da generalidade e da abstração. à sua autoridade máxima correspon-

64 FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros días, cit., p. 86.


65 FioravanTi, maurizio. constitución: de la antigüedad a nuestros días, cit., p. 98.
66 FioravanTi, maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones. Trad. manuel
martínez neira. madrid: Trotta, 2000, p. 62.
de a máxima garantia de que nenhum homem poderá ser limitado em seus direitos
por outro homem se não o for com base na lei, agora única autoridade legítima.67
(negritos nossos)

estabelece-se, portanto, uma tensão entre uma interpretação individualista e


outra estatalista, a partir do qual o “legicentrismo” não se orientou radicalmente
nem por uma, nem por outra; não se orientou radicalmente pela interpretação
individualista porque parte do pressuposto de que a lei geral e abstrata é a primei-
ra condição necessária para a existência dos direitos e liberdades no sentido indi-
vidualista; e nem se orientou radicalmente em favor de uma compreensão estata-
lista na medida em que a própria declaração dos direitos de 1789 nos exige com-
preender que o fim de qualquer associação política é a conservação dos direitos
naturais e imprescritíveis do homem. assim, a concepção política subjacente ao
projeto revolucionário francês se distancia de uma concepção a pensar uma socie-
dade civil composta por indivíduos titulares de direitos naturais que, através de
um contrato, somente pediam uma maior tutela e segurança destes direitos.

a revolução não pode estar contida nas fronteiras do jusnaturalismo lockiano, do


binômio britânico liberty and property, porque tem um projeto para o futuro que
deve realizar desde o poder constituinte do povo ou da nação. a revolução jamais
poderá ser somente um instrumento de conservação dos direitos e liberdades que já
são pensados como existentes autonomamente, como ocorre no mais tradicional
esquema jusnaturalista de tipo britânico. direitos e liberdades devem, pelo contrá-
rio, ser afirmados e construídos ativamente por parte da revolução mesma, contra
seus inimigos, sobre o plano prescritivo, como esperança de um futuro melhor e mais
justo.68 (negrito nosso)

as palavras de FioravanTi conseguem explicitar, de maneira sublime, o ideá-


rio e contexto das conquistas revolucionárias. o projeto da revolução Francesa se
distancia, nessa medida, de uma chamada concepção historicista do constitucio-
nalismo britânico,69 exatamente porque, naquela, o poder constituinte do povo foi

67 FioravanTi, maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones, cit., p. 62.
interessante é também a análise que o autor faz no que diz respeito às liberdades políticas. no caso “das
liberdades políticas, as ‘positivas’, a revolução parte – paralelamente – da afirmação da supremacia e da
prioridade do corpo soberano constituinte, denominado povo ou nação porém acaba por temer essa mani-
festação direta de soberania sem medida e por construir, então, em oposição ao radicalismo e ao voluntaris-
mo jacobino, uma doutrina da representação política que engloba o poder constituinte dos cidadãos no
poder constituído dos representantes eleitos, fundando a soberania dos segundos antes que a dos primeiros”
(FioravanTi, maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones, cit., p. 71).
68 FioravanTi, maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones, cit., p. 64.
69 Para uma inovadora reconstrução da história, e conquistas, do constitucionalismo na grã-Bretanha e nos
estados unidos da américa, sob o viés da Teoria dos Sistemas de niKLaS Luhmann, faz-se essencial: PaiXão,
assumido como hábil de se projetar, em um sentido prescritivo, sobre o futuro,
bem como ainda o “legislador” fora assumido na França como forte e com autori-
dade no que diz respeito à instituição de direitos e liberdades.70
não obstante a carga individualista, não se pode menosprezar a relevância
histórica que o elemento estatalista da revolução ocupou no seio das comunida-
des políticas pós-revolucionárias da europa continental. e tudo isso porque essas
comunidades passaram a estar obrigadas a desenvolver-se no campo de algumas
coordenadas rígidas que a revolução criara.

em concreto, nossa cultura dos direitos e liberdades estará obrigada a mover-se (...)
dentro de um contexto político-constitucional que já não poderá prescindir total-
mente do modelo estatalista, o que, melhor dizendo, quase o empurrará a ser domi-
nante. isto se realiza frente às imagens revolucionárias – individualistas e contratua-
listas – do caráter pré-estatal dos direitos individuais e do poder constituinte dos
cidadãos, porém em continuidade com a revolução mesma, enquanto olha a funda-
ção de um poder público forte, entendido como condição necessária para a existên-
cia dos mesmos direitos individuais e da unidade política da nação ou povo, em sin-
tonia com as doutrinas revolucionárias do legicentrismo e da representação político-
estatal que já anteriormente vimos.71

não sem motivos que John greviLLe agard PococK vai afirmar que a histó-
ria clássica do que passamos a chamar de liberalismo é, pois,

a história de como os direitos se tornaram a precondição, a ocasião e a causa efetiva


da soberania, de maneira que a soberania pareceu ser uma criatura dos direitos para
cuja proteção ela existia. É impossível negar que seja esse o principal tema da histó-
ria do pensamento político moderno, em sua fase inicial.72

cristiano; BigLiazzi, renato. história constitucional inglesa e norte-americana: do surgimento à estabiliza-


ção da forma constitucional. Brasília: editora unB, 2008.
70 FioravanTi, maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones, cit., p. 64.
71 FioravanTi, maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones, cit., p. 72.
72 PococK, John greville agard. Linguagens do ideário político. Trad. Fábio Fernandez. São Paulo: edusp,
2003, p. 92. o autor procede a uma crítica a SKinner ao denunciar que este não alcançara, em seu The
Foundations of modern Political Thought, “o ponto em que a virtude republicana ressurgiu de forma algo
inesperada no pensamento político do norte anglófono, do resto, centrado na lei, no rei e em deus. (...)
escrever a história do pensamento político em termos centrados na lei – que equivale, em grande medida,
a escrevê-la como história do liberalismo – é algo, como já vimos, prescrito em termos paradigmáticos. (...)
de 1688 a 1776 (e depois), a questão central na teoria política anglófona não era saber se se pode fazer opo-
sição a um governante por prevaricação ou mau governo, mas se um regime fundado no direito de nomea-
ção de cargos públicos, ou ‘patronagem’, dívida pública e profissionalização das forças armadas não corrom-
peria tanto governantes quanto governados. e corrupção era um problema de virtude, não de direito, que
nunca poderia ser resolvido por meio de uma afirmação do direito à oposição.”
iv.

nesse sentido, nos parece despropositada a afirmação de haBermaS, em seu


Faktizität und geltung, quando propõe que

as determinações formais ou características formais do direito, isto é, as caracterís-


ticas do direito no tocante à forma explicarei no que se segue, recorrendo à relação
de complementaridade entre moral e direito. esta explicação forma parte de uma
explicação funcional, não de uma fundamentação normativa do direito. Pois a forma
jurídica não é um princípio que possa “fundamentar-se”, seja tanto em termos epis-
têmicos, quanto em termos normativos.73 (negritos nossos)

ou ainda, quando, no epílogo à quarta edição de Faktizität und geltung, afir-


ma que:

o direito positivo, com o qual, por assim dizer, nos deparamos na modernidade
como resultado de um processo de aprendizagem social, oferece-se em virtude de
suas propriedades formais, como meio adequado para a estabilização de expectativas
de comportamento; e parece que as sociedades complexas não contam com nenhum
equivalente funcional com o poder de substituí-lo. a filosofia se mete em uma tare-
fa desnecessária quando trata de demonstrar que não só resulta óbvio por razões fun-
cionais, senão também que é uma obrigação moral organizar a convivência sob a
forma de direito, isto é, o formar comunidades jurídicas. aos filósofos deveria ser
suficiente o fato de que nas sociedades complexas só no meio do direito é possível
estabelecer de maneira confiável essas relações de respeito mútuo – também entre
estranhos – moralmente obrigatórias.74 (itálicos e negrito nossos)

o que aqui pretendo voltar a enfrentar são duas questões que se fazem trans-
parentes a mim a partir do fato de que haBermaS, mais uma vez não se levando a

73 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 177.
74 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 659. Posteriormente, em 1998, haBermaS volta a tomar como não carecedora
de maiores explicações o que se pode compreender por “forma jurídica moderna”. em seu die postnationa-
le Konstellation: Politische essays, afirma, de maneira bastante sintomática, que “in the model i propose,
the starting question assumes that we can take the medium of enacted, coercible law more or less at face
value as effective and unproblematic. unlike classical contract theory, the proposed model does not treat
the creation of an association of legal persons, defined as bearers of individual rights, as a decision in need
of normative justification. a functional account suffices as justification, because complex societies, whether
asian or european, seem to have no functional equivalent for the integrative achievements of law”
(haBermaS, Jürgen. The postnational constellation: political essays. Trad. max Pensky. cambridge: The
miT Press, 2001, p. 122). existe, a meu ver, uma diferença fundamental entre comunidades políticas moder-
nas e comunidades políticas anti- (ou pré-) modernas não tomada em conta pelo autor neste trecho.
sério,75 acaba por não desenvolver conclusões que seu próprio arcabouço teórico
exigiria, quais sejam, a) o reconhecimento de uma justificação normativa à forma
jurídica moderna e b) uma dependência do direito em face da moral, para além
de uma mera afirmação de que o direito não seria “moralmente neutro”; e isto seja
por questões normativas (“direito ao maior grau possível de iguais liberdades sub-
jetivas de ação”), seja por questões funcionais (estabilização de expectativas de
comportamento). e, exatamente, a partir desses dois pontos, quais sejam, o reco-
nhecimento por parte do autor, e de sua teoria, de que temos um direito ao maior
grau possível de iguais liberdades subjetivas de ação76 e de que a função do direito
da modernidade é a de estabilizar expectativas de comportamento, vou retomar
algumas questões às quais anteriormente já havia feito menção.
de onde haBermaS tira esse “direito ao maior grau possível de iguais liberda-
des subjetivas de ação”? esta é uma dúvida não respondida, à qual eu, e o Professor
manueL JimÉnez redondo, não cansamos de chamar a atenção. Talvez eu possa
colaborar nessa discussão pontuando uma passagem de Faktizität und geltung, em
que o autor afirma que

Se se introduz o direito como a complementação que necessita a moral na tarefa de


estabilizar expectativas de comportamento, a faticidade da produção do direito e da
imposição do direito (assim como a auto-aplicação construtiva do direito) são ele-
mentos essenciais de uma determinada classe de interações que servem para exone-
rar a moral.77 (itálicos nossos)

em outro momento, diz haBermaS:

ainda quando o conceito kantiano de legalidade se revela como um fio condutor útil
para a análise das características ou determinações formais do direito, os aspectos da

75 outro momento em que isso aconteceu, mais diretamente no que diz respeito a questões jurídico-normati-
vas, foi no bojo da grande Theorie des kommunicativen handelns, uma vez que a distinção entre “direito
como meio” e “direito como instituição” parecia um corpo estranho no contexto de sua obra, seja por se
socorrer em explicações meramente positivistas, seja por se valer de uma leitura moral na fundamentação
de certas normas jurídicas. Para aqueles que somente se satisfazem com o peso de argumentos de autorida-
de, aqui vão as palavras do próprio haBermaS: “Porém seria apressado descrever essa mesma estrutura como
dilemática. [Puxando nota de rodapé a partir deste ponto, afirma:] como se faz, por exemplo, em haBermaS
(Teoría de la acción comunicativa ii, pp. 508 ss); não é sustentável a distinção proposta no que diz respeito
a isso entre o direito como instituição e o direito como meio, a qual se opõem as normas jurídicas de cará-
ter sociointegrativo às formas jurídicas das quais se revestem as operações de regulação política” (haBermaS,
Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos de teoría del
discurso, cit., p. 500; cf. ainda, para maior aprofundamento da questão, chamon Junior, Lúcio antônio.
Filosofia do direito na alta modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e habermas. 3. ed. rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2009).
76 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 188.
77 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 184.
legalidade não devem ser entendidos como restrições da moral; antes tratarei de
fazê-los inteligíveis desde a relação de complementaridade entre moral e direito,
que nos vem sugerida pela Sociologia: a constituição da forma jurídica se torna
necessária para compensar os déficits que surgem com o desmoronamento da etici-
dade tradicional. Pois a moral autônoma, baseada só em fundamentos racionais, não
pode responder já por outra coisa que não seja sobre correção de juízos morais.78 (itá-
licos nossos)

Qual a relação entre essa necessidade e a forma jurídica moderna? o que está
por detrás da complementaridade e co-originalidade entre direito e moral? o que
essa necessidade teria que ver com aquele “direito ao maior grau possível de iguais
liberdades subjetivas de ação”? haveria algum desenvolvimento frutífero da rela-
ção entre essa “necessidade” do sistema moral pós-convencional e a função de
estabilização de expectativas do sistema jurídico da modernidade?
demonstrarei, a partir de questões ora negadas, ora explicitadas por haBer-
maS, como a ideia de forma jurídica moderna não só pressupõe o princípio da
integridade – aqui assumido como o princípio moderno da dignidade da pessoa –,
como também se justifica normativamente a partir dele.
Todavia, devo explicitar que não caio, como dWorKin, na tentação de dupli-
car esse conceito de integridade, fazendo crer que uma ideia de “integridade pura”
seja limitada, do ponto de vista do intérprete jurisdicional, pela dimensão institu-
cionalizada da forma jurídica moderna. não digo que haja uma “integridade pos-
sível” que se perfaz a partir das “limitações institucionais” impostas, pela forma do
direito, a uma “integridade pura”. Também não estou, com isso, justificando as
normas jurídicas a partir do princípio moral da universalização. mas, definitiva-
mente, o que estou é pretendendo explicitar que o direito da modernidade é
dependente dessa moral pós-convencional. Porém, enfrentemos primeiramente a
questão em torno da justificação normativa da forma jurídica moderna.
existe um ponto em Faktizität und geltung que aparece sem maiores expli-
cações por parte de seu autor, mas que, todavia, denuncia algo a ser tomado em
conta: haBermaS não nos dá qualquer explicação sobre por que há uma exigência
dirigida ao direito moderno de desenvolver o “direito ao maior grau possível de
iguais liberdades subjetivas de ação”. e isso já fora pontuado por mim – e por
JimÉnez redondo – anteriormente. esta é uma questão que os defensores mais
radicais de haBermaS sequer enfrentam, ou não a enfrentam adequadamente.
a partir das reconstruções teórico-políticas realizadas em (iii), e a partir do
resgate do que estava por detrás da justificação da forma do direito Penal da

78 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 178.
modernidade, em (ii), podemos perceber que a consolidação da forma jurídica
moderna esteve, sempre e desde o início, atrelada a uma questão central, qual seja,
e sobretudo, a defesa de liberdades individuais contra o poder absoluto de um
soberano. Quando monTeSQuieu e Beccaria defendiam a estrita legalidade no que
diz respeito à matéria de instituição de delitos e de suas correspondentes penas, o
faziam não de maneira injustificada, mas com base em suas particulares com-
preensões e interpretações do ideário político de então. e, como esclarecido, não
muito diferentes foram as razões de recepção legislativa dessas mesmas ideias e
princípios defendidos pelos autores; mesmo ainda no caso do “despotismo esclare-
cido” por detrás do código austríaco de 1787, como nos esclarece roXin.
outra preocupação frequente, no que diz respeito à justificação do direito
Penal desse contexto, era que a pena fosse “proporcional à gravidade do crime pra-
ticado”: sabemos que essa exigência estava teoricamente orientada ao corpo legis-
lativo, mas que no caminhar do direito Penal da modernidade não tardou a se
infiltrar, igualmente, no campo da jurisdição.
Percebo, destarte, que a defesa irrestrita da legalidade e, então, uma já certa
individualização da pena foram determinantes no debate político-penal do
iluminismo e nas construções jurídico-legislativas do estado Liberal. a coerção só
se justificaria na medida de sua legalidade e de sua proporcionalidade ao fato pra-
ticado. É nítido como o debate em torno das características formais do direito da
modernidade – sua positividade, seu caráter coercitivo e sua estruturação indivi-
dualística, além, obviamente, de sua dimensão institucional – é elemento comum
ao tenro debate moderno em torno da questão penal.
vejamos, assim, que essas questões formais não foram entendidas como “já
dadas”, como simples “fatos”, no debate teórico-político dos séculos Xviii e XiX.
muito antes pelo contrário, no campo do direito Penal, há uma defesa arraigada
dessa forma através de uma justificação normativa de que somente assim os indi-
víduos poderiam ter a segurança para gozar, e o respectivo resguardo, de suas
liberdades subjetivas, seja contra uma sempre e constante ameaça do estado, seja
pela expectativa generalizada de que os particulares respeitariam essas leis. ou
seja, podemos concluir que, em certa medida, e a partir de uma interpretação
paradigmática atrelada ao estado Liberal, von LiSzT tinha razão quando de sua
análise e, a partir da já interpretação do direito Penal alemão, afirmou que o
código Penal era como uma “magna carta do delinquente” – por lhe resguardar,
muito em razão dessa forma jurídica, do uso arbitrário do poder por parte do
estado, que, em outro momento, teve sua prática absolutista justificada por uma
filosofia de orientação teológico-cristã.
da compreensão, a partir de SKinner, das fundações de um constitucionalis-
mo moderno – enquanto buscas teóricas a justificar uma limitação do poder do
estado –, à prática revolucionária aguçadamente apresentada por FioravanTi, a
referência a textos legais, seja como elemento a buscar no passado uma justifica-
ção para o respeito a certos privilégios e compromissos firmados entre vassalos e
suseranos, seja como forma de projetar ao futuro um projeto constitucional
moderno de reconhecimento, na maior medida possível, de iguais liberdades de
ação, não se dá por acaso. aliás, quando a própria escola da exegese se atém, no
século XiX, de maneira tão veemente ao texto legal, a razão para essa atitude inter-
pretativa decorre não de um mero respeito à “forma” do direito, mas, inclusive, a
questões normativas de fundo, a questões em torno da compreensão do que impli-
cava uma aplicação e interpretação jurisdicionais legítimas do direito.
o que está por detrás da defesa desta forma é a defesa da liberdade e da igual-
dade. Se na modernidade há uma defesa da legalidade, ou do caráter positivo do
direito, esta defesa – e de maneira mais aguçada e explícita no direito Penal – se
dá em nome do resguardo, a todos, dos direitos já instituídos como tais e também
do seu desenvolvimento e contínuo processo de reconhecimento de um mutante
núcleo de liberdades subjetivas, como a nós soam os ecos da revolução Francesa.
e se essa defesa foi necessária, significa que não fora um mero fato ao qual uma
“simples explicação funcional” seria o suficiente.
e qual a relevância de toda essa questão? a importância deste ponto centra-
se em face da exigência normativa que a modernidade impõe ao direito de desen-
volver um sistema de direitos em que a tônica é reconhecer, na maior medida ou
grau possível, iguais liberdades subjetivas a todos. vejamos que não se trata de
uma exigência normativa à moral, mas ao direito; diz respeito a expectativas de
comportamento a serem generalizadas por meio de instâncias institucionalizadas.
como já explicitado no capítulo 3 (supra), ao longo do processo de modernização
da Sociedade, podemos assumir a ideia de que a razão dos sujeitos modernos, agora
livre de amarras sacrotradicionais, se enxerga e se autoconstitui como “absoluta”,
isto é, como sendo capaz de encontrar limite tão-somente na igual liberdade dos
seus pares.

isso implica dizer que somente através da mediação lingüistica é possível a compati-
bilização dessas liberdades. mas vejamos que a própria mediação lingüística é assu-
mida como medium para a viabilização dessas mesmas liberdades. isso significa dizer
que a estabilização e a generalização de expectativas de comportamento, na
modernidade, e pelas questões funcionais já elucidadas em face da moral, somente
se podem dar através da forma jurídica. inclusive porque somente essa forma jurídi-
ca é capaz de garantir, funcionalmente, não só tomadas de decisões coletivamente
vinculantes, como também a estabilização generalizada de expectativas de compor-
tamentos. e isso somente em uma democracia.79

79 cf., supra, p. 92.


o que com isso se explicita é que o recurso à forma jurídica por parte do
direito da modernidade não é passível de uma simples e ingênua “explicação fun-
cional”, visto que a modernidade, ao exigir esse reconhecimento de iguais liber-
dades indistintamente a todos, e na maior medida ou grau possível, depende, para
a consecução dessa ambição, da forma jurídica moderna, pois é através de sua posi-
tividade, coercibilidade, estruturação dos critérios de imputação individualizados,
além do inafastável caráter institucional, que, em conjunto, torna o direito o
único meio linguisticamente orientado da modernidade a dar conta dessa compa-
tibilização recíproca da liberdade de todos mediante leis gerais e suficientemente
abstratas – ou, pelo menos, o único meio não subordinável a quaisquer outros
nesse papel.
na medida em que a forma jurídica não seja um simples “fato”, mas fruto teó-
rico-historiográfico de uma exigência normativa da modernidade, parecem-nos
ainda mais instigantes as afirmações de haBermaS no que se referem a uma
“necessidade”, por parte da moral, dessa forma jurídica para que se alcançasse essa
estabilização comunicativa das expectativas de comportamento. ora, uma vez que
os sistemas normativos da modernidade foram construídos sobre os brados nor-
mativos a exigir reconhecimento de liberdade e igualdade a todos, e a partir do
momento em que a moral, por seus déficits funcionais, não consegue eficazmen-
te universalizar seu caráter normativo, pode-se, então, entender que essa necessi-
dade a que se refere haBermaS centra-se no indispensável caráter formal do
direito para a consecução desse ideal de liberdade e igualdade. Trata-se, pois,
sobre como sua teoria pressupõe, embora ele tenha explicitado ao se referir ao
tema de maneira contrária, uma exigência normativa da forma jurídica. e, se a
satisfação dessa “necessidade” não se faz possível por qualquer outro meio, é por-
que esta forma jurídica moderna é, em si, agora já de maneira indiscutível, nor-
mativamente exigida no resguardo dos direitos conquistados e no projeto orienta-
do ao futuro de um constante desenvolvimento desse direito ao reconhecimento
indistinto e, no maior grau, de iguais liberdades subjetivas a todos.
o que haBermaS, por vezes, não consegue explicitar adequadamente, talvez
por algumas estratégias infelizes na exposição de questões que aqui se fazem rele-
vantes, é que sua Teoria mesma pressupõe, por outro lado, que essa forma jurídi-
ca somente pode ser validamente pretendida como moderna na medida em que é
operacionalizada – e resguardada – numa democracia. isto significa dizer que a
modernidade exige normativamente essa forma jurídica, condição sem a qual não
se pode falar em democracia deliberativa. Por outro lado, essa mesma democracia
é que deve garantir essa forma jurídica, pois, se não reconhecesse isso, se enten-
desse que a forma jurídica fosse algo por ela “disponível”, cairia no enorme equí-
voco de abrir mão – não democraticamente, mas de maneira antidemocrática –
daquilo que é condição dessa democracia, da única forma não subordinável a
outras de permitir o reconhecimento de iguais liberdades como a modernidade
está a exigir. uma vez mais e repetidamente:

aqui está o paradoxo do direito: o fato de que sua legitimidade depende de sua forma,
de uma forma jurídica que, na modernidade, se construiu normativa e sociologica-
mente alicerçada nos princípios de igualdade e liberdade, num processo de diferen-
ciação funcional. (...) somente podemos, na modernidade, falar em tal forma, o que
implica também dizer que tais princípios sejam assumidos pela comunidade jurídica
ainda que numa decisão simbólica de uma assembléia constituinte que, paradoxal-
mente, tem que decidir por tal juridicidade (forma jurídica) quando (ou porque) não
poderia de outra forma decidir legitimamente.80

ou seja: a forma jurídica moderna, em uma interpretação reconstrutiva da


tensão entre liberalismo e republicanismo, a um só tempo é capaz de permitir o
resguardo das liberdades subjetivas dos cidadãos de uma atuação ilegítima do
estado, ou de seus pares, e capaz de garantir a defesa das condições de participa-
ção e construção das normas jurídicas, reconhecendo-nos como concidadãos, o
que implica assumir-nos como co-autores e co-destinatários de nossas normas
democraticamente construídas e enlaçadas ao projeto do direito moderno.

v.

haBermaS, ao se referir ao entrelaçamento entre princípio do discurso e


forma jurídica moderna,81 vai afirmar que este entrelaçamento deve ser vislum-
brado como uma “gênese lógica” de direitos, em que se apresenta como um pro-
cesso circular em que o “código que é o direito” e o “mecanismo para a geração de
direito legítimo” se constituem de maneira co-originária.

a exposição [dessa gênese lógica dos direitos] procede do abstrato ao concreto; a con-
creção se produz à medida que a perspectiva que a exposição inicialmente traz de
fora vai ficando internalizada pelo próprio sistema de direitos que se expõe.82 (itáli-
cos nossos)

não entendo, do ponto de vista explicitado por haBermaS, o que se passa. na


medida em que, para o autor, o direito se justifica em um princípio do discurso

80 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 105.
81 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 187.
82 haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el estado democrático de derecho en términos
de teoría del discurso, cit., p. 188.
neutro em face do direito e da moral; na medida em que a forma jurídica é assu-
mida como tendo uma explicação meramente funcional, incapaz de ser “funda-
mentada” ou normativamente, ou em termos epistemológicos; e na medida em
que essa “gênese lógica” – o que quer que isso signifique, seja reconstrução, seja
dedução lógica – parte de algo que inicialmente traz de fora, mais interessante
ainda fica nossa indagação em torno de onde haBermaS retirou esse direito de
reconhecimento, no maior grau ou medida possível, de iguais liberdades a todos.
Posso e acredito, todavia, superar essa questão propondo e discutindo o
seguinte: o que inicialmente essa “gênese lógica” dos direitos “traz de fora” e que
acaba internalizado pelo próprio direito senão a responsabilidade, e exigência,
que a modernidade lhe impõe de garantir esse espaço de respeito recíproco às
liberdades de todos?
a questão central aqui – muito inadequadamente explicitada por haBermaS,
e isso quando o faz – é que essa justificação normativa da forma jurídica é que vai
“ficando internalizada” a partir do momento em que a operacionalização dessa
forma somente se pode dar sob a égide de um princípio do discurso. ou seja, é a
exigência de reconhecimento de iguais liberdades subjetivas a todos, na maior
medida possível – e esse “maior grau possível” está diretamente vinculado à sua
tão-somente possível exequibilidade através da forma do direito moderno –, que
vai sendo internalizada pelo direito, a partir do momento em que essa internali-
zação, através da forma jurídica e das exigências de um tal princípio do discurso,
somente se pode dar na dependência do reconhecimento de um núcleo de direi-
tos fundamentais.
Se assumirmos, no que diz respeito ao processo de criação normativa, o prin-
cípio da integridade como essa exigência de reconhecimento, na maior medida, ou
no maior grau possível, de iguais liberdades a todos, isto é, se assumirmos que essa
integridade há que ser interpretada como o princípio da dignidade da pessoa,
pode-se concluir que há um sentido normativo subjacente ao entrelaçamento
entre forma jurídica e princípio do discurso. repito:

o princípio da dignidade, pois, e como aqui propomos, surge da assunção na ótica de


uma prática interpretativa de aplicação do direito, do sentido normativo subjacente
àquilo capaz de ser remontado como o entrelaçamento entre a forma jurídica moder-
na e o princípio do discurso, e com isso afirmamos que se trata, pois, da exigência
normativa de se assumir os envolvidos em cada caso concreto como membros de uma
comunidade política que luta e os reconhece como livres e iguais.83

83 chamon Junior, Lúcio antônio. Teoria geral do direito moderno: por uma reconstrução crítico-discursi-
va na alta modernidade, cit., p. 219.
e aqui devemos entender esse “sentido normativo subjacente” como o próprio direi-
to à maior medida possível de iguais liberdades a todos. e quando nos referimos ao
“entrelaçamento entre a forma jurídica moderna e o princípio do discurso”, o faze-
mos em um sentido muito específico; no sentido de que somente discursivamente é
que se pode “operar” a forma jurídica, isto é, no sentido de que são normativamente
indissociáveis forma jurídica e princípio do discurso, em face da exigência de reco-
nhecimento de iguais liberdades subjetivas a todos na maior medida possível. isso
justifica não somente a forma jurídica desde um viés normativo, como coloca tam-
bém, aos participantes dos discursos jurídicos, no exercício de suas liberdades comu-
nicativas, uma exigência normativa.84

na medida em que o princípio do discurso pode ser melhor assumido como


a reconstrução de traços normativos do, e no, contexto moderno do agir comuni-
cativo, contexto este comum às origens do direito e da moral – uma vez que aqui
reside o sentido da co-originalidade entre ambos –, podemos avançar na direção
de que o seu desdobramento nos princípios democrático e da universalização se dá
na direção daquilo que a modernidade guardou ao direito e à moral, respectiva-
mente. o ideal de integridade, no direito, e o ideal de Justiça, na moral, são peças-
chave na elucidação do que está exigido como que por detrás dos princípios demo-
crático e da universalização.

vi.

este ideal de integridade, assumido como o princípio moderno – no sentido


afeto, reconstrutivamente, ao direito por questões, inclusive, funcionais da
modernidade – da dignidade da pessoa, tomado sob a ótica de justificação do
direito, é aquilo a demonstrar mais que uma mera “abertura e não neutralidade
do direito em face da moral, mas a dependência daquele em face desta. esta é, tal-
vez, a novidade apresentada nesse Pós-escrito e que no corpo deste livro ficara
desenhada de maneira mais tímida.
no capítulo 3, afirmei outrora que:

a forma jurídica moderna somente se desenvolve e se mantém como tal quando a


própria geração do direito seja sempre alimentada por razões morais em seu discurso
de justificação normativa, não se perdendo, assim, em uma simples disputa e imposi-
ção de um ethos. o fato de conteúdos morais serem juridicamente irradiados pelo
direito não transforma a justificação deste em uma justificação moral. (...) mas, como
a prática legislativa do direito se desnatura quando a discussão acaba se transforman-

84 cf. supra, capítulo 3.


do em uma disputa pela imposição de um ethos sobre todos, em razão da própria des-
truição da forma jurídica – e todas as questões normativas co-implicadas –, nos torna
claro que a não-neutralidade moral do direito em razão de sua abertura a razões
morais quando do discurso de justificação da norma, cobra do direito não o reconhe-
cimento de direitos subjetivos no igual interesse de todos, mas, antes, cobra legislati-
vamente o reconhecimento, na maior medida possível, de iguais liberdades a todos.85

aqui devo explicitar o que já subliminarmente está contido nessas palavras,


e por todo o livro, e algo do qual a Teoria do discurso de haBermaS, ao menos no
contexto de Faktizität und geltung, não tem como fugir. Quando afirmo que o
direito e a moral são complementares de um ponto de vista funcional, no que aco-
lho e sigo a proposta de haBermaS, estou assumindo que existem, pois, diferenças
funcionais a partir das quais o direito supera os déficits da moral, bem como
igualmente assumo que a função do direito é a de estabilizar, na comunicação,
expectativas de comportamento.
Todavia, a questão é que, do emaranhado entre forma jurídica e princípio do
discurso, subjaz uma justificação normativa àquela, qual seja, a exigência genuína
de que se tem que “reconhecer iguais direitos a todos no maior grau possível”. e
toda vez que a forma jurídica for sistemática e/ou institucionalmente usada de
maneira parasitária, isto é, sem contínua e efetivamente assumir essa sua justifica-
ção normativa, estaremos diante de algo incapaz de ser reconhecido como direito
moderno – ou mesmo capaz de ser reconhecido como dotado de uma forma jurí-
dica moderna.
isto porque, e é a própria Teoria de haBermaS que nos ensina, não há estado
moderno, isto é, não há estado democrático de direito sem o consequente reco-
nhecimento do núcleo de direitos fundamentais, de uma constituição e de uma
prática democrática. aliás, quaisquer desses quatro ideais (estado de direito,
constituição, direitos fundamentais e democracia modernos) não sobrevivem sem
os demais porque vivem em uma relação de profunda e completa co-dependência.
a modernidade exige que assim o seja; do contrário, os ideais de liberdade e igual-
dade, como ela nos cobra, estariam fracassados.
ao que chamo atenção, agora, é o fato de que a função do direito somente se
mantém quando ele se curva à exigência normativa que justifica sua forma jurídi-
ca. e essa reverência que o direito presta a essa exigência, à integridade – cujo
sentido em alguns pontos são diferentes da, e em muitos devedor à, proposta de
dWorKin –, ao sentido normativo de se ter que reconhecer, no maior grau possí-
vel, iguais liberdades subjetivas a todos os concidadãos, somente se dá quando
interpretamos que o direito é mais que não “moralmente neutro” – como outrora

85 cf., supra.
haBermaS defendeu –, isto é, somente quando damos um passo mais além e assu-
mimos em nossa compreensão do direito, e em sua praxis, a dependência deste em
face do sistema da moral.
o que pontuo e trago melhor elaborado aqui, é que, embora o direito não se
justifique na moral – mas em um princípio neutro, capaz de reconstruir, em um
nível de abstração suficientemente adequado, as exigências linguístico-modernas
para a legitimidade da justificação moral ou jurídico-normativa –, isso não só não
o isenta de irradiar conteúdos morais, inclusive no campo de sistemas autonomi-
zados, como a economia, como também o faz dependente da moral. dizer que o
direito não é “moralmente neutro”, ou que a moral “necessita”, de um ponto de
vista funcional, do direito, é muito pouco para o que aqui explicitamos.
na medida em que a forma jurídica moderna e a função que lhe é incumbi-
da, qual seja, a de estabilizar expectativas de comportamento, são dependentes de
uma prática democrática sem a qual não se poderia generalizar de maneira válida
qualquer expectativa contrafatual, sou levado a igualmente reconhecer que
somente quando os processos de justificação do direito se valem, constante e
recorrentemente, de razões morais no processo de decisão e criação de normas
abstratas e gerais é que se lhe é permitido manter sua função. embora o direito
não se justifique na moral, a moral é algo indispensável, e do qual o direito
depende, para manter sua função e não se desnaturar em um simples uso arbitrá-
rio e parasitário de sua “forma jurídica”, então, e todavia, não mais moderna.
Pois, se não houvesse essa dependência do direito em face da moral, se as
razões morais – que nos levam a tomar decisões no igual interesse de todos os afe-
tados por essas mesmas decisões, ainda que em prejuízo de interesses particulares
– não fossem enxergadas sob esse ângulo, correríamos o perigo ainda mais prová-
vel de o direito e sua forma serem usados para fins tão-somente particulares,
como um instrumento de imposição de um ethos em detrimento de todos.
aqui se completa o raciocínio: a exigência do princípio moderno da dignida-
de da pessoa, ou da integridade, no contexto de justificação do direito nos cobra
o reconhecimento de iguais liberdades subjetivas a todos. Porém, essa exigência
não será satisfeita somente quando, ou só se, decisões morais forem as únicas
determinantes da justificação normativa do direito. não se trata de um princípio
moral introduzido na justificação do direito. o que se exige, inclusive por tomar
em consideração essa forma jurídica moderna, é que esse ideal de reconhecimen-
to se dê no maior grau ou medida possível: o fato de o direito depender da moral
não significa dizer que somente razões morais possam ser assumidas como deter-
minantes em um processo de justificação normativa; igualmente os são razões éti-
cas e pragmatistas, além de jurídicas, fazendo com que esse processo de “reconhe-
cimento de iguais liberdades subjetivas a todos” fique também vulnerável a ques-
tões que não sejam somente morais no que tange à instituição e construção legis-
lativa do direito – este é o sentido da não justificação do direito na moral.
com isso, não afirmo que a dependência do direito em face da moral seja
uma dependência normativa – no sentido de um núcleo normativo da moral que
supostamente o direito “teria que assumir” –, mas que, sim, trata-se definitiva-
mente de uma dependência, no campo da manutenção de sua função, se se pre-
tende sustentar sua operacionalização enquanto uma prática social merecedora de
ser reconhecida como direito da modernidade. Por isso, não duplico o conceito
de integridade, como outrora o fez dWorKin, ao pensar uma “integridade pura”
capaz de ser limitada por questões institucionais; sobretudo porque dWorKin foca,
nesse momento de seu trabalho, como seu hÉrcuLeS deveria, em determinados
casos, abrir mão de uma “perfeita coerência interpretativa” em nome do respeito
aos “princípios mais processuais”. não estou justificando o direito na moral, nem
estabelecendo qualquer dependência específica de cunho material-normativo na
justificação dos processos fáticos de criação jurídico-normativos.
um direito que, radical e hipoteticamente, se nutrisse, em seus processos
legislativos, tão-somente de argumentos morais como forma de buscar a compati-
bilização das esferas de liberdades de todos, não teria qualquer problema do ponto
de vista do alcance e cumprimento de sua função. mas, se pensarmos essa hipóte-
se a partir de modelos radicais a assumirem de maneira avassaladora argumentos
éticos (referentes ao bom) ou pragmatistas (em torno do conveniente e do incon-
veniente), não poderíamos mais falar de “direito moderno” porque sua função, de
estabilizar expectativas de comportamento, teria passado a ser parasitariamente
colonizada pela imposição de uma maioria sobre uma minoria desprotegida e sem
voz, pela imposição de um ethos, que, por sua violência, não permite estabilizar o
que quer que seja – muito menos expectativas de comportamentos, uma vez que
estes não mais se orientam pelo código do direito, mas passam a ser dependentes
da lógica conveniência/inconveniência sempre instável, incerta e exacerbada-
mente imprevisível.
a expressão “na maior medida possível”, e no que tange ao reconhecimento
indistinto de iguais liberdades subjetivas a todos, é bem diferente do que seja “em
qualquer medida possível”. a exigência de uma maior medida não duplica o con-
ceito de direito – como as teses jusnaturalistas o faziam ou como certas funda-
mentações morais ainda o fazem –, muito menos se adere a uma perspectiva em
que um ideal aproximativo bastaria – como o faz a Teoria da argumentação
Jurídica proposta por roBerT aLeXy, porém não tanto na sua explicação sobre a
justificação do direito, mas, sobretudo, no que diz respeito à sua aplicação.
a manutenção da função do direito – e igualmente a manutenção “da
modernidade” em seu amálgama “estado de direito, constituição, direitos funda-
mentais e democracia” –, do qual a moral necessita, inclusive, para conseguir se
fazer irradiar, está vinculada a uma dependência (“maior medida possível” – inclu-
sive funcionalmente possível) daquele em relação a esta e não a uma mera e even-
tual irritação86 possível do sistema do direito pelo sistema da moral (“qualquer
medida possível”).
aqui, e da maneira a que me propus, está o contributo de que uma “Filosofia
do direito Penal” e uma reconstrução de traços do ideário político da moderni-
dade, aliadas a um resgate de traços historiográficos, permitem, a partir da reto-
mada de algumas questões pontuadas por Jürgen haBermaS, demonstrar que a
Teoria do discurso é maior que seu próprio autor, podendo nos dizer muito mais
coisas que certas passagens, por vezes contraditórias ou incoerentes, porém outro-
ra defendidas e explicitadas por ele mesmo.

vii.

agora, passarei a responder direta e sucintamente, uma a uma, as críticas que


recebi em torno dos elementos centrais sustentados por mim neste livro e apro-
fundados neste Pós-escrito:

a) pelas diferentes questões aqui trazidas, e por suas conclusões apresentadas,


embora partindo do arsenal teórico elaborado por haBermaS, não acredito
ser adequado afirmar que se trata de um mero e simples “falso-problema”:
definitivamente haBermaS foi incapaz de sustentar explicitamente pontos
como o da justificação normativa da forma jurídica e da relação que sua
Teoria nos força a perceber entre direito e moral para além de uma “não
neutralidade daquele em face desta”;
b) vimos que, portanto, e por todas as razões aqui explicitadas, uma explica-
ção funcional da forma jurídica, em detrimento de uma justificação nor-
mativa, se faz insuficiente;
c) o que desenvolvemos não foi uma interpretação retrospectiva do sentido
da forma jurídica moderna, mas realizamos um esforço reconstrutivo. e
isso, sobretudo aqui, a partir do que se pode aprender tanto com uma
“Filosofia do direito Penal”, quanto com traços das fundações do pensa-
mento político moderno e com aspectos da teoria constitucional, aliadas a
uma retomada de questões e momentos históricos para nosso propósito
relevantes;

86 o termo irritação, da forma aqui empregada, é bastante devedor à sua origem em niKLaS Luhmann, embo-
ra não apropriadamente coincidente, seja pela temática em discussão, seja porque não se pode adequada-
mente sustentar um “sistema moral” em sua Teoria dos Sistemas.
d) não compreendo, definitivamente, que a “gênese lógica dos direitos” possa
ser assumida como uma “dedução lógica” dos conteúdos por haBermaS
explicitados. Todavia, é haBermaS quem deixa sem solução articulada e
adequada, nessa tal “gênese lógica” – que, para os críticos, seria um resga-
te reconstrutivo –, o papel, a justificação e a explicação em torno do que
ele mesmo assume como “direito a iguais liberdades subjetivas na maior
medida possível”;
e) como pontuei, não acredito ser correto afirmar que a teoria de haBermaS
não pressuponha uma justificação normativa da forma jurídica moderna;
os críticos deveriam tomar em consideração a diferença entre o que diz e
assume o autor explicitamente e o que sua teoria, em muitos traços, pres-
supõe implicitamente;
f) de que haBermaS se socorre, em sua diferenciação entre direito e moral,
a aspectos e elementos funcionais, não há qualquer dúvida. afinal, as dife-
renças funcionais entre o sistema jurídico e a moral pós-convencional são
peças-chave para entender sua teoria e para compreender, efetivamente, o
processo de modernização desses sistemas normativos. Todavia, afirmar
que eu não compreendi – quando do capítulo iii de Faktizität und
geltung,87 sob o argumento de que se trata da “estratégia argumentativa do
autor” – que, ao se referir a “questões funcionais”, estaria fazendo menção
às diferenças entre direito e moral, e não à satisfação da explicação de uma
forma jurídica, trata-se de um duplo equívoco: primeiro, não assumir o que
haBermaS, em definitivo, explicitou em seu texto – “Pois a forma jurídica
não é um princípio que possa ‘fundamentar-se’, seja tanto em termos epis-
têmicos, quanto em termos normativos” – e, segundo, não perceber que
não foi só nesse momento, como visto, que o autor faz referência a essa
infeliz, e contraditória, colocação no seio de seus escritos.

de Luzern, para minas gerais,


27 de fevereiro de 2009

87 uma vez mais: “as determinações formais ou características formais do direito, isto é, as características do
direito no tocante à forma explicarei no que se segue, recorrendo à relação de complementaridade entre
moral e direito. esta explicação forma parte de uma explicação funcional, não de uma fundamentação nor-
mativa do direito. Pois a forma jurídica não é um princípio que possa “fundamentar-se”, seja tanto em ter-
mos epistêmicos, quanto em termos normativos” (haBermaS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho
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