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indivíduo realiza podem ser hierarquizadas conforme as noções de bem e


de justo compartilhadas por um grupo de pessoas, em determinado mo-
mento histórico. Em outras palavras, o ser humano é um ser moral: um
ser capaz de avaliar sua conduta a partir de valores morais.
ÉTICA E MORAL
Distinção entre moral e ética

O problema da ação O que é moral? E qual a diferença entre moral e ética?


Embora os termos ética e moral por vezes sejam usados como sinô-
e dos valores nimos, é possível fazer uma distinção entre eles.
A palavra moral vem do latim mos, mor-, “costumes”, e refere-se ao
conjunto de normas que orientam o comportamento humano tendo como
base os valores próprios a uma comunidade ou cultura.
Gilberto Cotrim
Como as comunidades humanas são distintas entre si, tanto no es-
Mirna Fernandes
paço quanto no tempo, os valores também podem ser distintos de uma
comunidade para outra, o que origina códigos morais diferentes.
Em nosso dia a dia, frequentemente nos deparamos com situações Pertence ao vasto campo da moral a definição sobre questões fun-
em que temos de fazer escolhas e tomar decisões. Muitas vezes elas de- damentais, como:
pendem daquilo que consideramos bom, justo ou correto. Toda vez que Justo é aquilo que está em
isso ocorre, estamos diante de uma decisão que envolve um julgamento conformidade com o que é correto
• O que devo fazer para ser
moral, a partir do qual vamos orientar nossa ação ou a ação de outras ou direito. Portanto, o sentido de
justo?
pessoas. Como afirmou o filósofo grego Aristóteles: justiça está baseado em valores es-
• Quais valores devo esco-
tabelecidos, como os de poder e
lher para guiar minha vida?
A característica específica do homem em compa- paz, cooperação e solidariedade. As
• Há uma hierarquia de va- normas jurídicas deveriam tender
ração com os outros animais é que somente ele
lores que deve ser seguida? à realização dos ideais de justiça,
tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do
injusto e de outras qualidades morais. (Política, p. • Que tipo de ser humano embora nem sempre isso ocorra.
15.) devo ser nas relações co-
migo mesmo, com meus semelhantes e com a natureza?
Assim, o ser humano age no mundo de acordo com valores, isto é, a • Que tipo de atitudes devo praticar como pessoa e como cidadão?
partir daquilo que tem maior importância ou é prioridade para ele segun-
do certos códigos morais. Isso significa que as coisas e as ações que um
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A palavra ética, por sua vez, vem do grego ethikos, “modo de ser”, • apresentam-se como imperativos, ou seja, normas que devem
“comportamento”. Portanto, etimologicamente, os dois termos querem ser seguidas por todos;
dizer quase a mesma coisa. • buscam propor, por meio de normas, uma convivência melhor
No entanto, ética designa mais especificamente a disciplina filosó- entre os indivíduos;
fica que investiga o que é a moral, como ela se fundamenta e se aplica. • orientam-se pelos valores culturais próprios de determinada so-
Ou seja, a ética – ou filosofia moral – estuda os diversos sistemas morais ciedade;
elaborados pelos seres humanos, buscando compreender a fundamenta-
• têm um caráter histórico, isto é, mudam de acordo com as trans-
ção das normas e interdições (proibições) próprias a cada um e explicitar
formações histórico-sociais.
seus pressupostos, isto é, as concepções sobre o ser humano e a existên-
cia humana que os sustentam.
Nesse sentido, a ética é uma disciplina teórica que trata da prática No entanto, a despeito dessas semelhanças, há diferenças funda-
humana – isto é, do comportamento moral. No entanto, as reflexões mentais entre a moral e o direito:
éticas não se restringem à busca de conhecimento teórico sobre as ações
e os valores humanos, cuja origem e desenvolvimento levantam questões • as normas morais são seguidas a partir das convicções de cada
de caráter sociológico, antropológico, religioso etc. pessoa e do grupo social ao qual ela pertence, enquanto as normas
Como filosofia prática, isto é, disciplina teórica com preocupações jurídicas devem ser cumpridas sob pena de punição do Estado em
práticas, a ética orienta-se também pelo desejo de unir o saber ao fazer, caso de desobediência;
ou seja, busca aplicar o conhecimento sobre o ser para construir aquilo • a punição, no campo do direito, está prevista na legislação, ao
que deve ser. E, para isso, é indispensável boa parcela de conhecimento passo que, no campo da moral, a eventual sanção pode variar bas-
teórico. tante, pois depende fundamentalmente da consciência moral do
Veremos a seguir algumas concepções fundamentais no campo da sujeito que infringe a norma e dos códigos morais vigentes na soci-
ética, bem como as discussões que despertam. edade em que ele vive;
• a esfera da moral é mais ampla, abrangendo diversos aspectos da
Moral e direito vida humana, enquanto a esfera do direito restringe-se a questões
específicas nascidas da interferência de condutas sociais. O direito
Eis uma pergunta que talvez você esteja se fazendo: “Normas mo- costuma ser regido pelo princípio de que tudo é permitido, exceto
rais e normas jurídicas são a mesma coisa? Há diferença entre elas?”. aquilo que a lei expressamente proíbe;
Sabemos que as normas morais e as normas jurídicas são • a moral não se traduz em um código formal, enquanto o direito
estabelecidas pelos membros da sociedade e que ambas se destinam a sim;
regulamentar as relações nesse grupo de pessoas. Há, então, vários as- • o direito mantém uma relação estreita com o Estado, enquanto a
pectos comuns entre normas morais e jurídicas. moral não apresenta necessariamente essa vinculação.
Por exemplo:
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De todas essas diferenças entre moral e direito, talvez uma mereça Liberdade e responsabilidade
maior destaque: a coercibilidade da norma jurídica, que conta com a for-
ça e a repressão potencial do Estado (através da ação da justiça e da
polícia) para ser obedecida pelas pessoas. A norma moral, por sua vez, Assim, se consciência moral e liberdade estão intimamente relacio-
não é sustentada pela coerção do Estado, o que quer dizer que necessita, nadas, só tem sentido julgar moralmente a ação de uma pessoa se essa
de certo modo, da aceitação de cada indivíduo ou grupo social para ser ação foi praticada em liberdade. Quando não se tem escolha (ou liberda-
cumprida. Por isso, como depende da escolha de cada um, a norma moral de), quando se é coagido a praticar uma ação, é impossível decidir entre
costuma ser vinculada, por alguns filósofos, à ideia de liberdade. o bem e o mal (que é o que faz a consciência moral). A decisão, nesse
caso, é imposta pelas forças coativas, isto é, que determinam uma condu-
ta. Exemplo: tendo o filho sequestrado, o pai cumpre ordens do
Moral e liberdade sequestrador; portanto, sua ação é determinada pela coação do crimino-
so.
Pode parecer estranho vincular a ideia de norma moral à ideia de Quando, porém, estamos livres para escolher entre esta ou aquela
liberdade, você não acha? Mas podemos explicar essa relação. Preste ação e fazemos uma escolha, tornamo-nos responsáveis pelo que prati-
atenção. camos e podemos ser julgados moralmente por isso.
A consciência talvez seja a melhor característica que distingue o Observemos que o termo responsabilidade vem do latim respondere,
ser humano dos outros animais. Ela permite o desenvolvimento do saber “responder”, e significa estar em condições de responder pelos atos pra-
e da racionalidade, que se empenha em separar o falso do verdadeiro. ticados, isto é, de justificá-los e assumi-los. É essa responsabilidade, en-
fim, que pode ser julgada pela consciência moral do próprio indivíduo ou
Além dessa consciência racional, lógica, o ser humano possui tam-
do seu grupo social.
bém consciência moral, isto é, a faculdade de observar a própria conduta
e julgar (isto é, formular juízos) sobre os atos passados, presentes e as
intenções futuras. Observe que a palavra julgar vem do latim judicare, Virtude e vício
“avaliar”, “ponderar” – ou seja, julgar é atribuir um valor, um peso para
cada coisa que se apresenta.
Uma propriedade comumente atribuída à consciência moral é a de
Note também que é somente depois de julgar que a pessoa tem que ela nos fala como uma voz interior, geralmente nos inclinando para o
condições de escolher, entre as circunstâncias possíveis, suas ações e caminho da virtude. Mas o que é virtude?
seu próprio caminho na vida. E é justamente essa possibilidade que cada
indivíduo tem de escolher seu caminho, de construir sua maneira de ser e A palavra virtude deriva do latim virtus – “força ou qualidade es-
sua história que chamamos liberdade. sencial” – e significa, no contexto da moral, a qualidade ou a ação que
dignifica o ser humano. E qual é essa qualidade ou ação?
Há muitas interpretações sobre esse tema, mas podemos dizer, ba-
sicamente, que é a prática constante do bem de forma consciente, livre e
responsável. Assim, por exemplo, são consideradas virtudes a polidez, a
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lealdade, a prudência, a justiça, a coragem, a generosidade. Ênfase no determinismo
À ideia de virtude opõe-se a de vício, que consiste na prática do
mal, correspondendo ao uso da liberdade sem responsabilidade moral. De acordo com essa via de interpretação, a liberdade não existe,
Assim, são considerados vícios a violência, a deslealdade, a insensatez, a pois o ser humano seria sempre determinado, seja por sua natureza bioló-
injustiça, a covardia, a mesquinhez etc. gica (necessidades e instintos), seja por sua natureza histórico-social (leis,
Analisando essa relação entre responsabilidade e virtude, o filóso- normas, costumes). Em outras palavras, as ações individuais seriam cau-
fo alemão Erich Fromm concluiu que a responsabilidade primordial do ser sadas e determinadas por fatores naturais ou constrangimentos sociais,
humano está relacionada com a própria condição humana, isto é, com a e a liberdade seria apenas uma ilusão.
realização de suas potencialidades de vida. Assim: Essa concepção encontra-se presente no pensamento de filósofos
materialistas do século XVIII, tais como os franceses Helvetius (1715-
O bem é a afirmação da vida, o desenvolvimento 1771) e Holbach (1723-1789), ambos influenciados pela concepção
das capacidades do homem. A virtude consiste em determinista de liberdade proposta por Thomas Hobbes.
assumir a responsabilidade por sua própria exis-
tência. O mal constitui a mutilação das capacida-
des do homem; o vício reside na irresponsabilidade
Ênfase na liberdade
perante si mesmo. (Análise do homem, p. 30.)
Para essa via de interpretação, o ser humano é sempre livre. Embo-
ra os defensores dessa posição admitam a existência das determinações
Liberdade versus determinismo de origem externa – sociais – e interna – como desejos, impulsos etc. –,
eles sustentam a tese de que o indivíduo possui uma liberdade moral que
Agora que explicamos por que alguns filósofos vinculam moral e está acima dessas determinações. Assim, apesar de todos os fatores so-
liberdade, bem como liberdade e responsabilidade, talvez você se per- ciais e subjetivos que atuam sobre cada indivíduo, ele sempre possui uma
gunte: “Mas somos realmente livres para decidir?”, “E, se somos, que possibilidade de escolha e pode estabelecer por si mesmo sua ação (li-
liberdade é essa?”. berdade autodeterminada).
Do ponto de vista da discussão filosófica, podemos sintetizar três A maior expressão dessa concepção filosófica acerca da liberdade
respostas diferentes para esses problemas: uma que enfatizou o é encontrada no pensamento do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-
determinismo, outra que destacou o papel da liberdade e uma terceira 1980), que afirmou que “o homem está condenado a ser livre” (O
que procurou estabelecer uma dialética entre os dois termos. Vejamos existencialismo é um humanismo, p. 9).
cada uma.
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Dialética entre liberdade e determinismo

Segundo essa via de interpretação, o ser humano é determinado e


livre ao mesmo tempo. Determinismo e liberdade não se excluem, mas se
complementam. Nessa perspectiva, não faz sentido pensar em uma liber-
dade absoluta nem em uma negação absoluta da liberdade. Vejamos por
quê.
A liberdade é sempre uma liberdade concreta. Isso quer dizer que
ela ocorre em cada indivíduo, que desenvolve sua vida sob a influência de
um conjunto de fatores objetivos, os quais podem compreender desde
suas necessidades naturais como ser humano até os costumes e as nor-
mas estabelecidos na sociedade em que vive, por meio da educação e da
cultura em geral. Sua liberdade, portanto, é restringida por fatores objeti-
COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de filo-
vos que cercam sua existência factual. No entanto, todo indivíduo sempre sofia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 327-330.
poderá atuar no sentido de alargar as possibilidades dessa liberdade, e
isso será tanto mais eficiente quanto maior for sua consciência a respeito
desses fatores.
Essa concepção é encontrada no pensador holandês Espinosa e nos
filósofos alemães Hegel e Marx. Apesar das muitas diferenças entre seus
pensamentos, o ponto em comum é a ideia de que a liberdade é a com-
preensão da necessidade (dos determinismos).

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