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5016/DT000617877
SAANNDDM
MAAN
N
ARARAQUARA – SP.
2010
1
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Bolsa: CAPES
ARARAQUARA – SP.
2010
Baquião, Rubens César
Sonhos e mitos: leitura semiótica de Sandman / Rubens César Baquião
– 2010
155 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa) –
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus
de Araraquara
Orientador: Renata Coelho Marchezan
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora Renata Coelho Marchezan, cujo apoio e, principalmente, confiança, foram
essenciais no desenvolvimento desse trabalho;
À minha amiga Luciane de Paula, que me iniciou nos trabalhos acadêmicos;
Ao professor Arnaldo Cortina, que possibilitou o surgimento desse trabalho em sua disciplina;
Aos meus colegas do grupo de estudos CASA (Cadernos de Semiótica Aplicada), que, de várias
maneiras, incentivaram meu trabalho;
À agência CAPES, pela bolsa fornecida para a realização da pesquisa.
5
“Raciocínio sistemático é algo sem o qual nós, seja como espécie ou como
indivíduo, não podemos passar. Mas creio que tampouco poderemos
prescindir da percepção direta – e quanto menos sistemática melhor – dos
mundos interior e exterior que nos serviram de berço, para que possamos
preservar a sanidade mental. Esta realidade objetiva possui um sentido
infinito que ultrapassa toda a compreensão e, no entanto, permite ser direta
e, de certa forma, totalmente percebida.”
RESUMO
ABSTRACT
This dissertation intends to comprehend the systems of signification of the contemporary cultural
industry about the point of view of greimasian semiotic theory. The objects selected, as corpus,
are the syncretic texts produced for the north-american cultural industry: Comic books. The
propose is to examine texts that presents the verbal plan of expression united with the visual plan
of expression (syncretic texts), the theory choosed are the French semiotic propose by A. J.
Greimas, because the studies about visual texts, realized for the greimasian theory, are in great
development. The comic books, in great part, are characterized by infantile themes, but,
nowadays, there are many comic books produced for mature readers. With the objective of to
understand the structure and the production context of the comic books produced by mature
readers, this work detaches, as corpus, the Sandman series (produced for mature readers), to the
analysis. The characters of the series are figurative creations of myths of Classical Antiquity. The
dissertation intends to study the narrative and the discursive structure of the text, and also the
figurativity and the semi-symbolic categories and the tensive semiotics concepts in the visual
plan of expression. Will be discussed the intertextuality between the Sandman series and the
literature. This work aims to understand how the ancient myths, with all their content of
meanings, are projected in passional simulacrums and reconstructed for the contemporary
cultural industry. Concerning the myths, is possible to formulate a semantic configuration of
passional nature that establishes a new mythology and influences in the cognition dimensions and
also in the affection dimensions of the reader.
LISTA DE ESQUEMAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................10
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................... 81
REFERÊNCIAS........................................................................................................................... 91
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA………………………………………….....……….......….95
ANEXOS........................................................................................................…............................96
ANEXO A – Men of Good Fortune.................................................................….........................97
ANEXO B – Perpétuos...............................................................................................................123
ANEXO C – A Midsummer Night’s Dream...............................................................................125
ANEXO D – Livros da Magia.....................................................................................................151
ANEXO E – The Wake...............................................................................................……........153
ANEXO F – Hamlet...................................................................................................….............155
10
INTRODUÇÃO
maiores editoras de quadrinhos e, ainda na década de 1930, lançaria dois dos maiores ícones já
criados para as HQs: Superman e Batman. Essas personagens, cujas histórias se desenvolveram
no decorrer da Segunda Guerra Mundial, estão carregadas de significados de caráter heróico-
nacionalista. W. Eisner, artista que participou da criação da indústria de quadrinhos na década de
1930, acreditava que os super-heróis surgiram por causa da difusão das idéias de Hitler. O livro
Mein Kampf, escrito pelo líder nazista, fora publicado nos Estados Unidos em 1935 e, em seu
conteúdo, defendia a teoria dos super-heróis. Segundo W. Eisner (1975, p. 2):
Era uma época em que todo tipo de solicitações e de idéias novas chegava de
todos os lugares ao mesmo tempo. É o que chamamos de cultura de massa: as
pessoas não percebem que diversas coisas diferentes acontecem
simultaneamente e as influenciam. [...] Era um estímulo sem igual para os
adolescentes. Achavam que também eles poderiam vencer da noite para o dia
como políticos, astros de cinema, boxeadores [...] E esse conjunto fez com que
os novos super-heróis funcionassem. O personagem estilo Superman diz: “Não
só eu te salvo a vida instantaneamente, como também vou acertar tudo que
estiver errado.” E assim uma geração inteira foi educada num clima em que as
coisas todas se resolviam de um golpe só.
Morin (1969, p. 41) vislumbrava uma diluição nas barreiras de faixa etária em relação ao
consumo popular: “Assim, uma homogeneização da produção se prolonga em homogeneização
do consumo que tende a atenuar as barreiras entre as idades.” No início do século XXI percebe-se
que a homogeneização visualizada por Morin se encontra em um estágio no qual os temas
adultos, infantis, masculinos e femininos se mesclam de forma complexa enquanto existem
subdivisões específicas para cada setor etário. Percebe-se que as HQs na década de 1960
continham, em sua maioria, temas infantis, e que hoje existem várias HQs direcionadas para o
público adulto. Essa mudança está relacionada à estruturação narrativa desse tipo de texto
sincrético. Com base nessa reflexão, esta dissertação visa analisar especificamente os quadrinhos
publicados para leitores adultos.
Existem muitos quadrinhos publicados para adultos e isso torna necessária a escolha de uma
única HQ, produzida para o público adulto, como corpus. HQs produzidas para adultos existem
desde a década de 1960, é possível citar autores como o norte-americano R. Crumb, criador de
personagens como Fritz the Cat, que se tornou um ícone da contracultura. Esse mesmo autor
influenciou quadrinhistas brasileiros, como Angeli, na criação de personagens como Rê Bordosa
e Bob Cuspe e também no uso de uma linguagem contraventora. Existem publicações essenciais
12
de HQs produzidas no Brasil e que tinham o público adulto como alvo: revistas como Chiclete
com banana e Circo, por exemplo. Destaca-se, também no cenário brasileiro, o trabalho do
quadrinhista Lourenço Mutarelli, que trata de temas profundos da condição humana em um estilo,
ao mesmo tempo, debochado e compassivo.
Há trabalhos europeus que foram essenciais no desenvolvimento estético e temático da
linguagem das HQs, como Barbarella, do francês Jean Claude Forest, e Valentina, do italiano
Guido Crepax, ambos criados na década de 1960, enfatizam principalmente o erotismo.
É preciso destacar a publicação de uma revista francesa que é reconhecida como uma das
mais importantes na história das HQs para adultos: a Métal Hurlant. Essa revista, publicada em
1975 pelos artistas Giraud, Druillet, Dionnet e Farkas, é responsável por situar a linguagem das
HQs em um patamar mais elevado de qualidade. A contribuição desses autores é percebida tanto
na produção de suas histórias e desenhos quanto no material (papel couché e formato grande) no
qual a revista, hoje extinta, era impressa. Os desenhistas Giraud (também conhecido pelo
pseudônimo de Moebius) e Druillet revolucionaram a linguagem dos quadrinhos europeus (e,
conseqüentemente, mundiais, depois da publicação em 1977 da versão norte-americana da Métal
Hurlant: a revista Heavy Metal) ao criarem histórias que tinham como base a ficção científica e a
fantasia, sempre com elementos eróticos. Moebius e Druillet produziram trabalhos de vanguarda
utilizando técnicas da pintura, serigrafia e fotografia para narrar histórias, muitas vezes
psicodélicas, ambientadas em universos alienígenas oníricos e lisérgicos. A Métal Hurlant, ao
lado da Zap Comix, revista norte-americana criada por R. Crumb na década de 1960, são HQs
responsáveis por definir a noção de quadrinhos para adultos porque inovaram em conteúdo e
expressão a estrutura desse tipo de texto.
Uma grande mudança nas HQs para adultos aconteceu durante a década de 1980, dentro do
mercado norte-americano, a partir de obras publicadas pela editora DC Comics. Os quadrinhistas
Frank Miller e Alan Moore produziram HQs para adultos sem se aterem ao estilo humorístico ou
erótico que predominava nos quadrinhos adultos até então. Miller escreve a obra Batman: The
Dark Knight Returns, uma releitura da história de Batman, na qual a personagem enfrenta a
própria decadência e encara suas psicopatias. Moore escreve Watchmen, mini-série que é
publicada na mesma época de Batman: The Dark Knight Returns e cuja narrativa é uma
desconstrução das histórias tradicionais de super-heróis. Além de fazer um uso inovador da
técnica narrativa em quadrinhos, Moore explora questões políticas de sua época, como a Guerra
13
no começo dos anos 70, nós experimentamos o mesmo fenômeno, mas ele
ocorreu muito rapidamente, pois era um mercado bem menor, com, acho eu,
menos formalidades estabelecidas dentro dele. Os EUA são um país imenso e
sinto que as pessoas lá são, geralmente, mais atenciosas com o sistema. Mas
quando elas despedaçam as coisas, elas fazem isso pra valer. Nesse dia, nós
começaremos a ver algumas coisas incríveis.
1
A série, publicada pelo selo Vertigo, divisão da editora norte-americana DC Comics, tem a seguinte frase impressa
nas capas: Suggested for mature readers (sugerido para leitores adultos – tradução nossa).
2
Em Cultura de Massas no século XX, diz Morin (1969, p. 39): “Pode-se dizer que a cultura de massa, em seu setor
infantil, leva precocemente a criança ao alcance do setor adulto, enquanto em seu setor adulto ela se coloca ao
alcance da criança. Esta cultura cria uma criança com caracteres pré-adultos ou um adulto acriançado?”
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Comics, devido em grande parte ao sucesso de Sandman, criou o selo Vertigo, que só publica
HQs de caráter adulto. O Brasil foi o primeiro país de língua não inglesa a publicar Sandman.
Hoje, a série é reeditada em aproximadamente quarenta idiomas em dez volumes encadernados
produzidos com material de luxo. Os primeiros volumes encadernados de Sandman publicados
pela editora Conrad, a partir de 2005, no Brasil, esgotaram em menos de três anos após o
lançamento. Mesmo com o preço em torno de R$65,00 a R$95,00, quantia alta para os padrões
brasileiros, os volumes encadernados já se tornaram raridade entre os colecionadores do gênero.
É curioso o fato de a série ter ganhado prêmios que antes eram específicos da literatura de
ficção, como o World Fantasy Award, por exemplo. Longe de avaliar a relevância do prêmio, o
que realmente importa é compreender a maneira como as HQs (a série Sandman em especial)
invadem outros domínios, como o da literatura. Há muitas adaptações de obras literárias para os
quadrinhos, mas o que esta dissertação pretende analisar é a forma como as HQs podem estruturar
um discurso que se relaciona a elementos da literatura universal. Resta saber quais as
conseqüências que decorrem dessa relação entre as HQs e a literatura.
Como a série completa é longa serão destacadas, como corpus, duas histórias e uma
ilustração. As histórias se chamam Men of Good Fortune e A Midsummer Night’s Dream (HQ
vencedora do prêmio literário World Fantasy Award em 1991) e foram publicadas,
respectivamente, em Sandman: The Doll’s House e em Sandman: Dream Country. Essas
histórias foram escolhidas por conterem elementos que caracterizam toda a série, que foi
publicada em 75 edições e sempre foi roteirizada por Gaiman, mas desenhada por vários artistas.
A ilustração destacada se chama The Wake e foi publicada no último volume da série.
O primeiro capítulo da dissertação contém a discussão teórica dos conceitos semióticos que
serão utilizados na análise do corpus. Serão discutidas as bases da semiótica greimasiana, de F.
Saussure a L. Hjemslev, o percurso gerativo de sentido proposto por Greimas e o atual
desenvolvimento da semiótica tensiva, proposta por C. Zillberberg e J. Fontanille. Ainda no
primeiro capítulo será exposto o conceito de figuratividade, o conceito de mito, alicerçado na
definição de Roland Barthes, o conceito de semi-simbolismo, segundo J. M. Floch, e também
será apresentada a estrutura da linguagem das HQs.
O segundo capítulo compreende a análise das HQs Men of Good Fortune e A Midsummer
Night’s Dream. Serão analisados, principalmente, os níveis narrativo e discursivo dessas histórias
e será destacada a intertextualidade que há entre as HQs de Gaiman e textos da literatura
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universal, como Hesíodo, Homero, Ovídio, Camões e Shakespeare. As análises também serão
conduzidas com base na semiótica plástica proposta por Floch. No último tópico do segundo
capítulo será analisada a ilustração The Wake, publicada no volume homônimo. A análise, além
do conceito de semi-simbolismo, será também baseada na semiótica passional e na semiótica
tensiva.
Depois da análise do corpus, será possível tirar conclusões a partir de reflexões sobre o
contexto histórico e social no qual o objeto foi produzido. As considerações que E. Hobsbawm
faz acerca das transformações na indústria cultural e na sociedade após a década de 1950, em Era
dos Extremos, ajudam a entender o impacto das HQs entre o público adulto no final do século
XX. As reflexões do sociólogo E. Morin, presentes no livro Cultura de Massas no século XX,
também são valiosas nas considerações finais.
A importância de se realizar um estudo dos sistemas de significação das HQs ocorre porque
são uma forma poderosa de veiculação de valores. Ao considerar que a cultura industrial é
constituída, em grande parte, por textos sincréticos, não se pode negligenciar o impacto
discursivo das HQs na sociedade de consumo contemporânea. Pretende-se, portanto, neste
trabalho, analisar a estrutura desses objetos textuais que surgiram no início do século XX,
caracterizados como textos infantis, e entender como se desenvolveram, no final do século XX,
as HQs produzidas para adultos.
17
O signo lingüístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma
imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a
impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o
testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegarmos a chamá-
la “material”, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da
associação, o conceito, geralmente mais abstrato. O caráter psíquico de nossas
imagens acústicas aparece claramente quando observamos nossa própria
linguagem. Sem movermos os lábios nem a língua, podemos falar conosco ou
recitar mentalmente um poema.
A língua é um sistema de signos, e todo signo se estrutura pela união entre um significante
(imagem acústica) e um significado (conceito). Assim, entendemos que o significado (conceito)
da palavra cavalo está ligado a diversos significantes (imagens acústicas). As palavras cavalo,
cheval ou horse (português, francês e inglês) são formas gráficas com diferentes imagens
acústicas (significantes) que remetem a um mesmo conceito (significado). De forma que existem
diferentes significantes que remetem a um significado semelhante. Percebe-se que a teoria
saussuriana de signo lingüístico se aplica a todas as línguas conhecidas, pois compreendemos que
toda língua é estruturada por meio da relação entre um significante e um significado.
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Assim, a idéia de “mar” não está ligada por relação alguma interior à seqüência
de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente
bem por outra seqüência, não importa qual; como prova, temos as diferenças
entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado da
palavra francesa boeuf (“boi”) tem por significante b-ö-f de um lado da fronteira
franco-germânica, e o-k-s (Ochus) do outro. [...] o significante é imotivado, isto
é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural
na realidade.
Entende-se que uma função é contraída por meio da relação entre os funtivos. Hjemslev
(1975, p. 53-54) desenvolve o conceito de função semiótica e o define como a relação entre dois
funtivos: expressão e conteúdo:
É a partir desses princípios que Hjemslev irá propor os dois planos da linguagem: o plano
da expressão e o plano do conteúdo, fundamentais no desenvolvimento da semiótica
greimasiana. O plano da expressão se desdobra em dois extratos: forma da expressão e
substância da expressão, assim como o plano do conteúdo também se desdobra em forma do
conteúdo e substância do conteúdo. Por exemplo:
A teoria Glossemática de Hjemslev define o signo como uma função que se contrai na relação
entre dois funtivos formais: o plano da expressão e o plano do conteúdo. É esse o conceito
lógico-matemático de função semiótica – a relação entre os funtivos expressão e conteúdo – que é
fundamental em toda significação ao constituir signos e criar efeitos de sentido.
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Entende-se que os objetos dotados de significação são percebidos pelos sentidos fisiológicos
e podem tornar-se objetos de estudo para o semioticista, desde que o pesquisador se aproprie do
objeto discreto – isto é, em seu caráter descontínuo – e o articule ao instrumental dos conceitos
teóricos estabelecidos. A proposta de trabalhar somente com fenômenos descontínuos e objetos
discretos é um princípio estruturalista que é problematizado no desenvolvimento da semiótica.
Adiante, serão expostas as propostas semióticas que buscam ocupar-se da significação em devir e
do discurso em ato.
No nível fundamental do percurso gerativo, identifica-se a oposição entre os termos mais
simples e abstratos que estruturam a significação. Uma oposição fundamental como vida versus
morte pode ser representada pela oposição entre termos lógicos como s1 versus s2, sendo que s1
se refere à vida e s2 se refere à morte. Essa oposição semântica fundamental estrutura o sentido
de um texto, de forma que o percurso gerativo de sentido pode partir de s1 (vida) passar por não-
s1 (não-vida) e afirmar s2 (morte). Nesse caso, o sentido do texto afirma a vida em s1, nega a
vida em não-s1 e conclui ao afirmar a morte em s2. Entende-se que, nesse percurso, a morte
predomina e a vida é negada.
Ao considerar o desenvolvimento das pesquisas de Propp e Lévi-Strauss sobre a
narratividade, Greimas (1675, p. 144) teoriza uma semiótica que expõe a organização das
estruturas narrativas. O teórico lituano considera que as estruturas narrativas são essenciais na
produção dos discursos, pois a articulação dos elementos que compõem o nível discursivo ocorre
no nível narrativo. Assim, para que a semiótica estabeleça o nível discursivo é preciso que ela
formalize o nível narrativo.
Greimas (1976, p. 26) considera que a notação técnica – cifras e caracteres simbólicos –,
adotada para representar as estruturas lógicas, possibilita criar um modelo formal que manipula
os conteúdos organizados sem se identificar com eles. Desse modo, torna-se possível estabelecer
uma teoria da narrativa que descreva as articulações e transformações entre elementos lógicos
como S1 e S2 (sujeitos), O (objetos) e v (valores), que podem ser relacionados por termos como
ĺ (que indica transformação), ŀ (que significa conjunção) e U (que significa disjunção). Estes
conceitos permitem examinar, de forma lógica, a organização das estruturas narrativas. Visualiza-
se uma metalinguagem que permite trabalhar a narratividade.
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Os termos S1, S2, e O são considerados unidades formais que ainda não receberam
investimento semântico e são chamados de actantes. O nível narrativo se desdobra em sintaxe
narrativa e semântica narrativa.
No nível da sintaxe narrativa os actantes relacionam-se em encadeamentos lógicos: em
determinada narrativa S1 (sujeito 1) transformará (ĺ) S2 (sujeito 2) ao tornar este conjunto (ŀ)
ou disjunto (U) de um O (objeto).
No nível da semântica narrativa os actantes relacionam-se com valores (v), que podem se
inscrever nos objetos. Por exemplo: Na história mítica de Sansão, herói dos judeus3, S1 (Sansão)
é um actante que está conjunto de um objeto (cabelos) que lhe fornece um valor (força). Este
enunciado de estado pode ser formalizado como: S1 ŀ Ov. O estado de conjunção é transformado
no momento em que Dalila (S2) seduz o herói e lhe corta os cabelos, privando-o da força. De
forma que S2 transforma (ĺ) S1 tornando-o disjunto (U) de um objeto valor (Ov).
No nível da semântica narrativa também ocorrem as modalizações, que são responsáveis
por modificar as relações entre os actantes. A existência modal do sujeito de estado e sua relação
com valores (v) como ódio, inveja, ciúme, etc. é denominada modalização do ser. A competência
modal do sujeito do fazer, sujeito dinâmico que se define pelos enunciados de ação4, é
denominada modalização do fazer. São previstas quatro modalidades que definem tanto a
modalização do ser quanto a modalização do fazer: o querer, o dever, o poder e o saber. Por
exemplo: Dalila é modalizada pelo querer-ser aquela que descobrirá a fonte da força de Sansão.
De forma que, no nível narrativo, os actantes desempenham papéis actanciais; na história de
Sansão, o papel actancial de S2 (Dalila) é definido pelo investimento modal querer-ser. Na
narrativa bíblica, os príncipes dos filisteus oferecem dinheiro a Dalila para que ela revela a fonte
da força de Sansão. De forma que ocorre uma modalização do ser pelo valor ambição. Ela se
apropria de um saber-fazer no momento em que descobre a fonte da força do herói que, seduzido,
revela que são os cabelos que lhe conferem tamanha força. O saber-fazer possibilita o poder-
fazer, que, neste caso, diz respeito ao ato de cortar os cabelos de Sansão. Devido a esta
modalização do fazer o herói é privado de sua força.
3
História bastante conhecida, que está presente, de forma verbal, no texto bíblico de Juízes – capítulo 13 –, e que
pode se manifestar em vários textos como o cinema, o teatro, a pintura, a música, etc.
4
Em que se encadeiam vários enunciados de estado e várias transformações.
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O querer-ser e o saber-fazer que modalizam Dalila, tornando-a competente para realizar sua
performance na narrativa, transformam o estado de conjunção entre Sansão e seu objeto valor em
estado de disjunção. Distingue-se um PN (programa narrativo) que pode ser formalizado como:
Neste PN a performance de Dalila (S2) predomina sobre a de Sansão (S1), de forma que
Dalila é o sujeito do fazer e Sansão é o sujeito do estado.
Compreende-se que em um texto em que se encadeiam vários PN ocorrem várias
transformações e circulam vários objetos e valores, de forma que a história se estrutura na ação e
nas modalizações do fazer. Ao contrário, um texto com poucas transformações entre sujeitos e
objetos, em que ocorre pouca ação, se organiza em torno do estado passional do ser.
O nível discursivo é a etapa mais superficial do percurso gerativo de sentido e é por meio da
enunciação que o nível narrativo se converte em nível discursivo. No nível do discurso ocorre
uma circulação de enunciados entre interlocutores, que são denominados enunciador e
enunciatário. O destinador da enunciação é denominado enunciador e o destinatário é
denominado enunciatário. Segundo Greimas e Courtés (2008, p. 171):
semiótica tensiva, que trabalha as variações de tensão entre o sensível e o inteligível. A semiótica
retoma conceitos da fenomenologia – com base principalmente nas reflexões do filósofo
Merleau-Ponty – e o estudo da atividade sensório-motora passa a ser fundamental no
conhecimento da significação. A semiótica tensiva, desenvolvida pelos trabalhos recentes de C.
Zilberberg e J. Fontanille, se concentra no estudo da interação entre o sensível e o inteligível na
produção de sentidos. O sensível é o campo das presenças sensoriais e o inteligível é o campo do
entendimento e da compreensão. A sintaxe do discurso é um encadeamento e uma sobreposição
de atos que conjuga a dimensão da intensidade (sensível) e a dimensão da extensidade
(inteligível). As tensões entre sensível e inteligível ocorrem no campo da percepção e definem o
modo como o corpo sofre a experiência da significação. Ao tratar dos dois planos da linguagem –
plano da expressão e plano do conteúdo – Fontanille (1993, p. 14 e 15) pondera:
Assim, um mesmo discurso é entendido de maneiras diferentes por vários sujeitos porque
cada um deles possui um corpo próprio que define um momento de sentido único. A
proprioceptividade é a instância em que a sensibilidade singular – individualidade corpórea – do
sujeito irá definir o sentido de um discurso.
Para que se entenda melhor o modo como a semiótica trabalha a interação entre o sensível e o
inteligível é importante discutir o conceito de presença. Segundo Fontanille (2007, p. 47):
Perceber algo – antes de conhecer esse algo como uma figura pertencente a uma
das macrossemióticas – é perceber mais ou menos intensamente uma presença.
De fato, antes de identificar uma figura do mundo natural, ou ainda uma noção
ou um sentimento, percebemos (ou “pressentimos”) sua presença, ou seja, algo
que, por um lado, ocupa uma certa posição (relativa a nossa própria posição) e
uma certa extensão e que, por outro lado, nos afeta com alguma intensidade.
Algo, em suma, que orienta nossa atenção, que a ela resiste ou a ela se oferece.
Estes são os esquemas desenvolvidos para delimitar as variações tensivas e que formam o
esquema da práxis enunciativa, que será explicado e aplicado no quarto tópico do segundo
capítulo desta dissertação.
1.1 Figuratividade
filósofo Aristóteles (1999, p.40) já refletia sobre os sentimentos suscitados pelas imagens há mais
de dois milênios, como se vê no seguinte trecho de sua obra Poética:
[...] temos prazer em contemplar imagens perfeitas das coisas cuja visão nos
repugna, como (as figuras dos) animais ferozes e dos cadáveres. O aprendizado
apraz não só os filósofos, mas também aos demais homens, embora a estes ele
seja menor. Se olhar as imagens proporciona deleite, é porque a quem contempla
sucede aprender e identificar cada uma delas; dirão, ao vê-la, “esse é Fulano”. Se
acontecer de alguém não ter visto o original, nenhum prazer despertará a
imagem como coisa imitada, mas somente pela execução, ou pelo colorido, ou
por alguma outra causa da mesma natureza.
É importante ressaltar que a semiótica entende que a língua não aponta para um referente do
mundo natural, já que compartilha da conceituação saussuriana de signo e não da concepção
aristotélica de signo, que considera o referente na língua. Na breve reflexão destacada acima,
Aristóteles faz interessantes observações sobre o universo das artes plásticas. O filósofo observa
que figuras como as de animais ferozes ou de cadáveres, que tendem a causar repulsa ao
observador, são revestidas de beleza ao serem recriadas por meio do trabalho artístico. Este
trabalho estético se concretiza em um plano de expressão visual que proporciona prazer ao
observador e não mais repulsa. Aristóteles também enfatiza que a imagem desperta efeitos de
sentido mesmo se o observador não conhecer o original representado, de forma que se
compreende que a imagem não remete diretamente a um objeto do mundo natural, mas sugere
elementos do mundo no campo da percepção. O que o filósofo enfatiza, é o caráter estético do
texto visual e a maneira pela qual o cromatismo transmite significados sem fazer referência direta
aos objetos do mundo. Na teoria semiótica, as representações de elementos do mundo natural são
tratadas no nível da figuratividade.
A teoria semiótica desenvolveu muitos conceitos emprestados de outras disciplinas. O
conceito de figuratividade é procedente da teoria estética. Sobre a figuratividade, Bertrand (2003,
p. 154) afirma:
Tal categoria descritiva é oriunda da teoria estética, que opõe, como todos
sabem, a arte figurativa e a arte “não figurativa” ou “abstrata”. Sugere
espontaneamente a semelhança, a representação, a imitação do mundo pela
disposição das formas numa superfície. Ultrapassando porém o universo
particular da expressão plástica que o viu nascer, o conceito semiótico de
figuratividade foi estendido a todas as linguagens, tanto verbais quanto não-
verbais, para designar esta propriedade que elas têm em comum de produzir e
33
A distinção entre temas e figuras já foi apresentada neste trabalho. Os temas são elementos
abstratos que se concretizam em figuras no nível discursivo. O corpo e a percepção são
entendidos como instâncias fundamentais na produção de sentidos figurativos. Segundo Teixeira
(2004, p. 231):
destacam-se os estilos Gótico e Art Noveau. A figuratividade gera a sugestão perceptiva de que
Gotham City é um lugar palpável. O universo discursivo das HQs de Batman concretiza temas e
figuras semelhantes aos do mundo cultural e a narrativa sincrética se desenvolve no espaço-
tempo de uma metrópole figurativizada.
Teixeira (2004, p. 232) escreve que o sentido não é somente instaurado pelo corte e pela
fratura com o mundo, pois o funcionamento da linguagem nos mostra que a intensidade das
manifestações lingüísticas, como a que ocorre na música, é também parte da experiência
semiótica:
na França. O impressionismo se caracteriza também pelas qualidades presentes nas pinturas que
compartilham as mesmas características e apuramento técnico que se tornaram marcas essenciais
do estilo impressionista francês. Esse estilo, assim consagrado, não é mais caracterizado por uma
nacionalidade, mas sim pela sua plasticidade específica.
Essa última reflexão nos faz pensar na forma pela qual as HQs se concretizam em
determinados estilos como os fumetti (quadrinhos produzidos em série na Itália) e os mangás
(quadrinhos produzidos pela indústria japonesa). O estilo mangá se distingue por desenhos que
expressam um intenso efeito de movimentos e também pela pouca quantidade de texto escrito.
Histórias predominantemente visuais são uma particularidade dos mangás.
Em 1983 a editora DC Comics publica a mini-série Ronin, escrita e desenhada pelo
quadrinhista norte-americano F. Miller. Essa obra foi republicada no Brasil em 2003 pela Opera
Graphica Editora com a seguinte apresentação escrita nas capas: “O primeiro mangá americano”.
O autor utilizou as mesmas técnicas visuais empregadas nos mangás para criar os desenhos e o
ritmo da narrativa em Ronin. Os mangás ultrapassaram sua origem na indústria japonesa e se
tornaram um estilo que não se restringe só ao Japão, pois se caracteriza principalmente por
técnicas singulares de narrativa visual. A instauração figurativa do estilo mangá ocorre de
maneira semelhante à forma pela qual o impressionismo na pintura transpõe sua origem francesa
e se torna identificável por meio de suas particularidades estilísticas, que são o que Teixeira
(2004, p. 232) chama de “fundo figural de base”.
Ao se compreender a recorrência de temas e figuras nas HQs, entende-se que o conceito de
figuratividade é um alicerce teórico fundamental no estudo da significação dos textos sincréticos.
O corpus escolhido, a série Sandman, caracteriza-se pela figuratividade de mitos clássicos (das
lendas gregas e medievais) mesclados com elementos contemporâneos, o que evidencia a
figuratividade no texto.
36
1.2 Mito
Naturalmente, não é uma fala qualquer. São necessárias condições especiais para
que a linguagem se transforme em mito [...] Mas o que se deve estabelecer
solidamente desde o início é que o mito é um sistema de comunicação, uma
mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito ou uma idéia:
ele é um modo de significação, uma forma. [...] Seria, portanto, totalmente
ilusório pretender fazer uma discriminação substancial entre os objetos míticos:
já que o mito é uma fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja suscetível
de ser julgado por um discurso. [...] Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que
sim, pois o universo é infinitamente sugestivo. Cada objeto do mundo pode
passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação
da sociedade, pois nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de falar das
coisas.
Barthes discute que o mito, devido a sua natureza lingüística, pode se inscrever em
qualquer objeto do mundo natural. Na Grécia Antiga, um fenômeno natural, como o relâmpago, é
destituído de sua relação com a natureza e passa a ser relacionado a Zeus, deus portador do raio.
De forma que qualquer elemento da linguagem pode se tornar um mito, desde que haja
investimento significativo nas formas físicas e biológicas do mundo natural. Assim, essas
representações figurativas de elementos do mundo (que a semiótica não considera como
referentes, mas como sugestões perceptivas) são mitificadas e adaptadas ao consumo de certa
sociedade. Mas uma sociedade cuja comunicação tecnológica está em pleno desenvolvimento
poderia gerar mitos comparáveis aos mitos da Antigüidade Clássica?
37
Esse texto explora o momento em que o rosto de uma atriz é imortalizado na idéia de
divinização plástica da mulher. O rosto de Garbo ultrapassa seu aspecto carnal e passa a fazer
parte do universo mítico, o divino supera o humano por meio da perenidade conferida pela
linguagem visual.
E. Morin escreveu sobre a cultura de massas no início da década de 60 e considerou que
reis, rainhas, artistas famosos, esportistas, etc. eram elevados à condição de “olimpianos
modernos”. Isso porque, assim como os deuses gregos que habitam o monte Olimpo, essas
vedetes habitam o espaço mítico da grande imprensa, que as diviniza:
Morin considera que os astros da cultura de massa são caracterizados por uma dupla
natureza: são astros divinos e ao mesmo tempo humanos mortais. No aspecto mortal se
assemelham aos seus consumidores e no aspecto divino os ultrapassam, possuem uma natureza
dupla semelhante à do herói cristão, que é homem e deus ao mesmo tempo.
Barthes percebeu que os filmes, as propagandas publicitárias, etc., geram mitos modernos
que são produzidos e veiculados em uma escala impensável antes da existência dos aparelhos de
38
comunicação eletrônicos. Isso fez com que o semiólogo refletisse sobre o modo como surge o
mito e sobre sua sobrevivência na história:
Barthes defende que todo objeto dotado de significação é pertinente aos estudos da
linguagem, que não se restringe somente às línguas naturais. Uma reflexão semelhante levou
Greimas (1975, p. 145), anos depois, a escrever que a semiótica, cujo campo de pesquisa é a
significação, também deve explorar objetos de significação não-verbais: “Em primeiro lugar, era
preciso admitir que as estruturas narrativas podem ser reconhecidas em manifestações do sentido
que se efetuam fora do domínio das línguas naturais: nas línguas cinematográfica e onírica, na
pintura figurativa, etc.”.
A semiótica se ocupa do estudo das mais diversas manifestações da linguagem, como
textos visuais, sincréticos, sonoros, etc. Essa preocupação dos semioticistas revela o interesse das
ciências da linguagem no estudo das formas de significação não-verbais.
Ao entender o mito como linguagem, percebe-se que o discurso mítico se faz presente no
mundo atual de diversas maneiras, sendo veiculado inclusive pelos meios de comunicação
tecnológicos mais avançados, como a Internet. A relevância do estudo desses mitos reside no fato
de que eles se tornaram parte do cotidiano e afetam o modo como a sociedade entende o mundo.
Os mitos invadem a linguagem nas mais diversas formas e imprimem novos significados, de
maneira profunda, no modo como o homem entende a própria existência.
Até mesmo os conceitos científicos podem ser atravessados pela noção mítica presente no
pensamento humano, como é o caso da teoria física do Big-Bang. Segundo a teoria do Big-Bang,
o universo surge a partir de uma “grande explosão” que origina as primeiras partículas da matéria
conhecida. Esta noção possui analogias com o mito bíblico da criação divina, segundo o qual a
origem do universo acontece no momento em que Deus cria os fenômenos naturais. Percebe-se
que o pensamento mítico está arraigado na própria maneira de pensar do homem, mesmo que se
use a razão para encontrar uma verdade o mito persiste. No caso da teoria do Big-Bang, o
pensamento científico foi atravessado pelo mito da criação divina, de modo que se produziu uma
cosmogonia a partir de conceitos lógico-matemáticos. A própria Física problematiza a noção da
origem do universo; célebres físicos como S. Hawking e L. Mlodinow (2005, p. 93-94) refletem
sobre os desenvolvimentos da Física na segunda metade do século XX5 e consideram que
A percepção humana do mundo natural produz teorias científicas que nem sempre
correspondem com o modo como a natureza atua. O próprio conceito de lógica é uma definição
humana e a natureza não se comporta segundo parâmetros humanos. Esse é um problema que
está relacionado à especificidade da linguagem humana, pois os significados que são atribuídos
ao mundo acontecem por meio da linguagem. Hobsbawm discute, em um capítulo de Era dos
Extremos, o impacto das ciências naturais no século XX. O historiador pondera sobre a tentativa
dos físicos de conciliar as novas teorias físicas do século XX7 e as teorias físicas clássicas8,
6
A física quântica ocupa-se do estudo de sistemas físicos cujas dimensões são aproximadas ou menores que as
dimensões da escala atômica. No entanto, a teoria quântica também descreve, em diversos casos, fenômenos
macroscópicos.
7
De caráter probabilista, se pautam no princípio da incerteza desenvolvido por Heinsenberg, segundo o qual não é
possível determinar, ao mesmo tempo, a velocidade e a posição de uma partícula: ao se identificar com precisão a
velocidade, a posição se torna menos conhecida e vice-versa.
8
De caráter determinista, consideram que todos os eventos naturais são determinados com precisão.
41
contraditórias, e considera que “não havia como expressar a totalidade da matéria numa descrição
única, em vista da natureza da linguagem humana.” (HOBSBAWM, 1999, p. 520).
Tais questões, destacadas de forma breve devido à natureza deste trabalho, podem ser
abordadas por meio da semiótica tensiva, pois o que se entende como verdade são concepções
que surgem a partir das experiências perceptivas: o inteligível (domínio da compreensão e do
racional) está vinculado ao sensível (domínio da afetividade e do irracional), de forma que a
razão (responsável pela produção científica) é comprometida pela intensidade afetiva presente no
corpo humano.
A noção de “verdade científica”, conquistada pela razão, pode ser um efeito de sentido
gerado pela percepção humana. O homem se apóia na lógica para descobrir uma verdade e pode
acabar afirmando um mito – como no caso da teoria do Big-Bang – pois é iludido pela sua
percepção limitada da natureza. De forma que até mesmo o raciocínio lógico pode ser
atravessado por noções míticas e simbólicas acerca do mundo natural.
O mito está enraizado, de forma profunda, na linguagem.
1.3 Semi-simbolismo
Lévi-Strauss prossegue a reflexão, contraria essa relação invertida e faz uma relação que
vincula jour ao conteúdo do dia quando considera que o vocalismo grave de jour é de aspecto
durativo. Na concepção de Lévi-Strauss o aspecto durativo se relaciona ao dia, pois o
antropólogo entende a noção de dia como algo mais duradouro que a noite; enquanto o vocalismo
agudo de nuit, de aspecto perfectivo, se relaciona à noite, devido à sua curta duração segundo
Lévi-Strauss. Essa reflexão está envolvida pelo modo particular como Lévi-Strauss entende o dia
e a noite, é um detalhe axiológico que pode comprometer a definição do conceito. Mas,
independente dos valores que o antropólogo confere ao sentido de dia e ao sentido de noite,
entende-se que ocorre uma relação entre conteúdo e expressão e esta relação homóloga entre os
dois planos da linguagem é o que realmente importa na definição do conceito.
É preciso proceder com cautela ao se propor um conceito teórico. O pesquisador precisa
habitar o texto para entender sua motivação e ser coerente no momento da análise. É pertinente o
pensamento de Merleau-Ponty (1980, p. 85) que diz que “a ciência manipula as coisas e renuncia
a habitá-las”, pois seria desonesto forçar um texto a significar algo só para confirmar uma teoria.
Fontanille (2007, p. 76), em seu livro Semiótica do Discurso, reflete sobre a necessidade de se
entender as qualidades sensíveis que orientam a manifestação de uma categoria:
C’est donc em étudiant concrètement des images prises dans leur globalité que
nous avons petit à petit reconnu et cherché à definir ce système de sens, de type
43
O discurso mítico caracteriza-se por ser, em parte, motivado. A relação entre o sentido e a
forma mítica não é totalmente arbitrária. O mito engendra um discurso que se estabiliza por meio
da analogia parcial entre o sentido e a forma.
A segunda parte do título do livro de Floch faz referência ao texto O olho e o espírito
(L’Oeil et L’Esprit, no original) escrito pelo filósofo Merleau-Ponty. Trata-se de um texto sobre
estética no qual o autor reflete, pelo viés fenomenológico, sobre as significações de pinturas,
principalmente as de Cézanne. Sobre o universo da pintura, Merleau-Ponty (1980, p. 93) reflete:
Les sémiotiques plastiques ne sont qu’un des modes de réalisation des systèmes
semi-symboliques, et ce à um double titre. Les systèmes semi-symboliques
peuvent être réalisés par des sons ou par des gestes, c’est-à-dire par d’autres
substances de l’expression (et Il s’agit alors aussi de relations sémiotiques, em
ce sens que ce sont les deux plans du langage qui sont toujours mis em relation).
O semi-simbolismo ocorre desde que exista vínculo entre duas categorias de cada um dos
planos da linguagem: conteúdo e expressão devem ser homólogos para que aconteça o semi-
simbolismo. Mas a coerência heurística dos sistemas semi-simbólicos é atestada na conexão
estabelecida pela oposição sistemática entre dois termos de cada plano. No caso de correlação
entre um termo de cada plano ocorre o simbolismo: a cruz (expressão) e a fé (conteúdo), a
balança (expressão) e a justiça (conteúdo), a pomba branca (expressão) e a paz (conteúdo), etc.
Um exemplo de relação homóloga entre dois termos da expressão e dois termos do
conteúdo, na música, ocorre no famoso concerto de Vivaldi As quatro estações. Em um dos
movimentos, chamado Verão, o plano da expressão sonoro é marcado por vários acentos
rítmicos, que causam uma aceleração na substância sonora da expressão. Outro movimento,
chamado Inverno, é caracterizado pela desaceleração, pois o plano da expressão é marcado por
poucos acentos rítmicos. No movimento Verão, a aceleração no plano da expressão concorda
com a idéia de agitação no plano do conteúdo, já que o verão é uma estação que se caracteriza
pela idéia de movimento mais que as outras estações do ano (movimento dinâmico no sentido
semântico de calor, chuva, umidade, sensualidade, etc.). No movimento Inverno, a desaceleração
no plano da expressão concorda com a idéia de repouso no plano do conteúdo, pois entende-se o
inverno como uma estação estática, imobilizada pela intensidade do frio. Assim, o plano da
expressão sonoro e o plano do conteúdo semântico estão vinculados. A categoria aceleração
versus desaceleração, do plano da expressão, concorda com a categoria agitação versus repouso,
do plano do conteúdo, de forma que ocorre uma relação semi-simbólica, já que há homologação
entre duas categorias de cada um dos planos da linguagem.
No livro Semiótica Visual: os percursos do olhar, Pietroforte (2004, p. 21) comenta o
interesse da semiótica pelo estudo do plano de expressão e explica a ocorrência do semi-
simbolismo:
São encontradas relações semi-simbólicas em textos visuais quando dois termos de uma
categoria plástica são vinculados a dois termos de uma categoria semântica. Destaca-se um
exemplo de sistema semi-simbólico que ocorre na capa feita por D. Mckean para a HQ Men of
Good Fortune (ANEXO A, p. 97), trata-se de um texto bidimensional. Uma capa de HQ é a
apresentação de uma história sincrética e se relaciona diretamente ao conteúdo dessa história.
Ressalta-se que todas as capas da série Sandman foram produzidas por Mckean, esse artista usou
técnicas de desenho, pintura e fotografia que não eram comuns nas HQs mensais publicadas pelas
grandes editoras norte-americanas.
No plano de expressão há uma relação cromática que pode ser definida pelas categorias
claridade e escuridão. No espaço da claridade estão as figuras do pergaminho carcomido e do
relógio estilhaçado. No espaço da escuridão destacam-se as figuras obscuras de esqueletos
humanos. No plano do conteúdo, os esqueletos na escuridão transmitem a idéia de mortalidade.
escrito em língua “morta” (latim), o que transmite a idéia de uma longa passagem de tempo. Ao
se opor a escuridão à claridade no plano de expressão e ao se aplicar a mesma lógica no plano do
conteúdo, cujo termo destacado é mortalidade, identifica-se outro termo semântico: imortalidade.
O sentido de mortalidade é determinado pela idéia de passagem do tempo e o sentido de
imortalidade é reforçado pela destruição da passagem do tempo na figura do relógio estilhaçado.
A imortalidade é afirmada pela claridade, pois tanto a idéia de imortalidade quanto a idéia de
claridade são axiologias eufóricas na cultura ocidental – a cultura na qual o discurso foi
produzido fornece os valores específicos selecionados na análise – enquanto a mortalidade e a
escuridão são axiologias disfóricas. A claridade se relaciona à imortalidade e a escuridão se
relaciona à mortalidade. Assim, identifica-se a categoria claridade versus escuridão, no plano da
expressão, que é homóloga à categoria imortalidade versus mortalidade, no plano do conteúdo.
Essa é uma relação semi-simbólica já que dois termos de uma categoria plástica são vinculados a
dois termos de uma categoria semântica. A capa de Mckean caracteriza-se pela relação entre os
elementos figurativos e plásticos organizados no plano de expressão visual, que engendram uma
categoria no plano da expressão que é homóloga à categoria destacada no plano do conteúdo.
46
O semi-simbolismo tem sido usado em semiótica como um dos métodos mais eficientes
para se explorar a significação de textos visuais.
A utilização repetitiva dos elementos que estruturam a linguagem das HQs possibilita
estudar cada elemento como um componente estável de uma forma singular de texto. E. S.
Franco define os principais elementos da linguagem dos quadrinhos no livro HQtrônicas: Do
Suporte Papel à Rede Internet. Alguns desses principais elementos são:
Os quadrinhos são a única forma narrativa em que temos uma consciência visual
simultânea de passado, presente e futuro, pois enquanto nossa fóvea está
concentrada no quadrinho que estamos lendo (momento presente da narrativa) a
visão periférica está varrendo os quadrinhos anteriores (o passado da narrativa) e
os posteriores (o futuro da narrativa) da página ou tira.
A Elipse: Entre os quadrinhos que compõem uma página de HQ ocorre a omissão de trechos da
história que precisam ser completados mentalmente pelo leitor. Franco (2008, p. 44) considera que
Para que a leitura das HQs se efetue, é preciso que o leitor complete mentalmente os
espaços vagos entre os quadrinhos. Esse efeito elíptico exige uma participação mais efetiva do
leitor durante o ato de leitura de uma HQ.
Nas HQs temos a ação decomposta em vários quadrinhos que de acordo com seu
formato ajudarão a definir o tempo transcorrido na narrativa: quadrinhos
menores serão obervados mais rapidamente pelo leitor devido à sua dimensão
reduzida (além de geralmente conterem menos elementos visuais) e quadrinhos
48
maiores serão visualizados por mais tempo, definindo dessa forma padrões
temporais narrativos menores ou maiores.
O Enquadramento: O enquadramento não é responsável somente por definir o tempo nas HQs.
É no interior do quadrinho que são inseridas as personagens, os cenários e o texto, por isso o
enquadramento é um recurso fundamental na composição da linguagem das HQs. O modo como
o quadrinho é desenhado também servirá para expressar diferentes tipos de ações e emoções:
Compreende-se que o quadrinho serve tanto para conter a ação e as imagens da história
quanto para sugerir diversos tipos de efeitos dramáticos. Caberá ao artista a tarefa de definir a
perspectiva das imagens e das personagens contidas nos quadrinhos. O artista também é
responsável pela seleção das cenas no fluxo da ação.
O Balão de fala: O balão é um elemento utilizado para conter as falas e pensamentos das
personagens. Trata-se de uma linha que envolve textos ou imagens e que se estende em uma seta
na direção da personagem emissora da fala. Sobre as possibilidades de representar os balões,
Franco (2008, p. 49) diz que
Essa linha que compõe a silhueta do balão pode tomar as mais diversas formas:
oblonga, circular, rebuscada etc. muitas vezes ela também é usada como
elemento reforçador das matizes psicológicas ou fonéticas da mensagem, como,
por exemplo, um balão formado por uma silhueta repleta de pontas em ângulos
agudos pode representar um grito lancinante e um balão com a silhueta em
49
Na série Sandman, os balões que contêm as falas da personagem título, o senhor dos
sonhos, são pintados de preto e traçados com linhas trêmulas. Este trabalho com o cromatismo no
plano de expressão sugere um conteúdo sombrio, que relaciona os sonhos a elementos
misteriosos e desconhecidos no plano do conteúdo. O traçado trêmulo (plano da expressão) dos
balões de fala do senhor dos sonhos sugere a idéia de instabilidade (plano do conteúdo): os
sonhos são uma região em constante mutação, uma terra nebulosa cujas formas se transformam
constantemente.
Sobre o modo de estudar textos sincréticos, Floch (1997, p. 6) afirma que
[...] est vain d’étudier séparément le texte et l’image sous le prétexte qu’ils
relèveraient de codes différents, mais encore et surtout ils m’ont convaincu qu’il
faut toujours commencer par considerer une oeuvre dans sa totalité, qu’il faut
en comprendre d’abord les grandes masses, pour parler comme les peintres ou
les sculpteurs.
Floch considera que os textos que se estruturam por meio da união entre o verbal e o
visual devem ser compreendidos como uma totalidade. Separar a imagem do texto verbal no
momento da análise pode descaracterizar a estrutura da obra sincrética, pois esse tipo de texto é
organizado pela união desses dois códigos e deve ser entendido como tal. Nossa análise de
Sandman será conduzida com o intuito de compreender a totalidade do texto sincrético.
A estrutura das HQs apresenta elementos estáveis e é uma linguagem que se estabeleceu
com o desenvolvimento da produção industrial da cultura de massas. Foi a expansão do alcance
da imprensa no mundo, no final do século XIX e início do século XX, que possibilitou a fixação
da estrutura da linguagem das HQs. Os elementos que compõem as HQs se estabilizaram por
meio do uso e passaram a caracterizar este tipo de texto sincrético como uma linguagem
específica. A convenção na representação desses caracteres os integra na linguagem da mídia
popular e possibilita o reconhecimento imediato das idéias que transmitem no ato de leitura.
50
9
A personagem é chamada de vários nomes, Morpheus é um dos principais. Morfeu é o nome de um mito greco-
romano citado pelo poeta latino Ovídio em sua obra As Metamorfoses, no trecho em que é descrito o reino mítico do
deus dos sonhos. Esse nome diz respeito à capacidade que o senhor dos sonhos tem de moldar os elementos oníricos
conforme sua vontade.
10
Uma personificação antropomórfica de sonhos (tradução nossa).
51
Em Men of Good Fortune, Sandman, o senhor dos sonhos, entra em uma taverna
acompanhado de Morte, que diz ao irmão que ele precisa enxergar os mortais em seu próprio
território, em vez de somente vê-los a partir de sua ótica imortal. Os irmãos entram na taverna e
se interessam por um soldado chamado Hob Gadling, que diz aos seus companheiros de bebida
que não está disposto a morrer. Enquanto os amigos de Hob o escarnecem, Sandman, em conluio
com a irmã, propõe ao soldado um acordo segundo o qual fica combinado que os dois, Sandman
e Hob, encontrar-se-ão naquela mesma taverna em cem anos. Hob aceita a oferta de Sandman e
também concorda que só morrerá se desejar a morte. A taverna é situada na Inglaterra. Esse país
pode ser identificado nas citações a fatos da história inglesa, como a guerra entre as famílias York
e Lancaster11 (o conflito é citado no segundo quadro da p. 106, na fala de Hob Gadling). A
presença figurativa da personagem W. Shakespeare (p. 109 a 111), nome do mais famoso
dramaturgo da Inglaterra, também ajuda a criar o efeito de sentido que situa a taverna em solo
inglês. A data em que se encontram pela primeira vez é o ano de 1389, pois, quando concorda
com o pacto, Hob Gadling diz para Sandman (p. 103): “A hundred years’ time. On this day. I will
see you in the year of our lord fourteen hundred and eighty nine, then.” (GAIMAN, 1995, p.
119). A fixação desse espaço e tempo, e os posteriores encontros que ocorrem a cada cem anos,
possibilitam a definição espaço-temporal e também a inter-relação das personagens com fatos
históricos, como o surgimento da imprensa (citada no quarto quadro da página 106) e o
desenvolvimento do comércio marítimo do Império Britânico (mencionado no primeiro quadro
da página 115).
A história Men of Good Fortune trata, basicamente, da questão da imortalidade e de sua
conseqüência na vida de um homem mortal. Assim, é possível destacar, no nível fundamental, a
oposição semântica imortalidade versus mortalidade. Essa é a oposição básica sobre a qual se
estrutura a narrativa dessa HQ. Percebe-se, também, que essa categoria semântica corresponde à
que foi destacada na análise da capa de Men of Good Fortune.
Para que se compreenda como é organizada a narrativa de Men of Good Fortune, é
importante que se examine o papel das personagens. Na teoria semiótica, a narrativa de estados e
a narrativa de transformações dos participantes da história são estudadas pela sintaxe narrativa.
Segundo Barros (2003, p. 16):
11
Famílias nobres que, no século XV, disputaram o trono da Inglaterra.
52
A sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetáculo que simula o fazer do
homem que transforma o mundo. Para entender a organização narrativa de um
texto, é preciso, portanto, descrever o espetáculo, determinar seus participantes e
o papel que representam na historiazinha simulada.
No nível da sintaxe narrativa, serão traçados alguns dos principais programas narrativos da
história Men of Good Fortune para que se compreenda a produção de sentidos desse texto
sincrético:
PN1: Na primeira página, Morte convence Sandman de que ele precisa entrar na taverna e se
aproximar dos mortais (página 99, segundo quadro). Morte é o sujeito do fazer, a transformação é
a de entrar na taverna, o sujeito do estado é Sandman, o objeto é a taverna e o valor é a
socialização.
PN2: Sandman oferece a Hob Gadling a imortalidade (página 103, segundo quadro). Sandman é
o sujeito do fazer, a transformação é a de doar a imortalidade, o sujeito do estado é Hob Gadling
e o valor é a imortalidade.
PN3: No penúltimo encontro narrado na história, Hob Gadling fala para Sandman que se ele
voltar ao mesmo lugar onde se encontram há séculos, significa que o senhor dos sonhos é
solitário e está em busca de amizade. Sandman se enfurece e se afasta de Hob Gadling, mas
retorna após cem anos (páginas 121 e 122). Hob Gadling é o sujeito do fazer, a transformação é a
de retornar, o sujeito do estado é Sandman e o valor é a amizade.
A partir dos três programas narrativos apresentados, é possível traçar um quarto programa
narrativo.
PN4: O objetivo de Morte, quando entra com Sandman na taverna, é que o irmão se sensibilize
em relação aos mortais. Ela realiza seu intento quando Sandman aceita a oferta de amizade
proposta pelo mortal Hob Gadling. Morte é o sujeito do fazer, a transformação é a de sensibilizar,
o sujeito do estado é Sandman e o valor é a amizade.
Percebe-se, no percurso narrativo, que a Morte é o destinador manipulador que faz com que
Sandman entre em conjunção com o objeto taverna e com os valores socialização e amizade. O
mestre dos sonhos é a personagem que dá nome à série Sandman, e, na maioria das HQs norte-
americanas, a personagem título é o sujeito do fazer (a personagem Superman derrota todos os
seus inimigos e desafios por meio de superpoderes). Nos programas narrativos 1, 3 e 4, Sandman,
apesar de sua competência sobre-humana, é o sujeito do estado. A história Men of Good Fortune
apresenta uma sintaxe narrativa diferente da narrativa tradicional das HQs norte-americanas
publicadas em grandes editoras, pois apresenta uma personagem-título que não é caracterizada
somente como sujeito do fazer, mas, principalmente, como sujeito do estado.
Nota-se que os temas referentes aos filhos da Noite caracterizam-se pela isotopia do funéreo.
As Sortes, mencionadas nos versos acima, também chamadas de “Deusas da terrível cólera”, são
as Eumênides, sempre representadas por três mulheres – donzela (Filandeira), mãe (Distributriz)
e velha (Inflexível) – que são capazes de punir tanto homens quanto deuses. O papel das
Eumênides, fundamental na série Sandman, será discutido no quarto tópico deste capítulo.
Na série Sandman, o senhor dos sonhos é irmão da Morte, assim como na mitologia grega
Sono também é irmão da Morte. No poema épico Ilíada, um dos textos basilares da literatura
ocidental, os irmãos Sono e Morte, a pedido do deus Febo Apolo, retiram do campo de batalha o
corpo do herói lício Sarpédone, filho de Zeus, deus dos deuses. Esse episódio é descrito nos
seguintes versos do canto XVI da epopéia de Homero (1962, p. 338):
Assim como o deus Sono é irmão da Morte na mitologia grega, o senhor dos sonhos da
série Sandman também é irmão da morte. O enunciador da série Sandman se apropria dos temas e
figuras da Antigüidade grega que personificam o sonho e a morte e os re-constrói, na narrativa
sincrética contemporânea, com os mesmos temas de sonho e de morte. A mitologia clássica
fornece os temas para a criação das personagens de Sandman e a narrativa sincrética remodela
55
Os versos acima, do livro XI de Metamorfoses, descrevem, com ênfase na cor escura, o deus
dos sonhos em seu reino. O leito é de ébano e o deus repousa “em negras plumas”, com o corpo
envolvido por um “véu negro”. O tema sombrio dos sonhos é concretizado nas figuras “negras
plumas” e “véu negro”. Essa caracterização sombria é também a forma como a figura de
Sandman é materializada nas HQs. Os balões que contêm as falas do senhor dos sonhos são
pintados com a cor negra e a personagem é um ser pálido, sisudo, e que sempre usa vestes negras.
A cor escura caracteriza tanto a figura do deus dos sonhos descrito no poema latino quanto a
figura do senhor dos sonhos representado nas HQs norte-americanas. No poema de Ovídio há
uma metáfora que é significativa para este trabalho e que se encontra nos versos que tratam sobre
a quantidade incontável dos sonhos, que são descritos como “[...] os grãos de areia nas equóreas
praias”. Essa relação poética entre os sonhos e os grãos de areia é a idéia básica do nome
Sandman (em inglês, sand-areia e man-homem). A personagem Sandman das HQs, assim como a
personagem Sandman do conto de Andersen (já mencionado), sopra grãos de areia mágica no
rosto das pessoas (como pode ser visto no último quadro da página 117) para que elas sejam
dominadas pelos sonhos. A figuratividade dos sonhos como grãos de areia ocorre na poesia
romana, nos contos infantis dinamarqueses e também nas HQs norte-americanas. Percebe-se, por
56
meio da figuratividade dos sonhos como grãos de areia, que os sistemas de significação fixam a
mesma figura em contextos históricos distantes e em estilos textuais diferentes. Mesmo após
várias materializações em textos de diversos estilos é possível que a figura preserve seu tema
primário, como no caso da figura dos grãos de areia, que preserva o tema do sonho.
O deus dos sonhos também se manifesta na epopéia portuguesa Os Lusíadas, na cena do
sonho de D. Manuel:
Nos versos do canto IV do épico de Camões, o sonho surge para o rei D. Manuel na figura
de Morfeu. Esse nome, no poema latino Metamorfoses, designa um dos ministros do deus dos
sonhos:
No poema de Ovídio, Morfeu é o único ministro do deus do Sono que pode assumir variadas
formas humanas, assim como, no poema de Camões, D. Manuel é dominado pelo sono e Morfeu
“em várias formas lhe aparece”. A personagem Sandman das HQs norte-americanas também é
chamada pelo nome de Morpheus em vários episódios da série. O terceiro verso do poema de
Ovídio, destacado acima, enfatiza a capacidade que Morfeu tem de afigurar o traje dos seres
humanos, assim como, na história Men of Good Fortune, o senhor dos sonhos se materializa com
diversos estilos de trajes na narrativa visual. A personagem usa vestimentas variadas e cada
modelo de traje está relacionado a um período histórico específico. Nas primeiras páginas da
história, Sandman e Morte entram na taverna vestidos como nobres do período medieval. Essa
técnica de representação visual possibilita a definição espaço-temporal da narrativa, pois na
57
história Men of Good Fortune não há caixas de texto com a voz explicativa de um narrador, como
acontece em várias HQs12. Em Men of Good Fortune o plano de expressão verbal é materializado
apenas nos balões de vozes das personagens. O contexto pode ser identificado por meio do texto
visual, que representa, nos desenhos, o período sócio-histórico no qual as personagens estão
inseridas. O texto verbal concretiza, no nível da sintaxe discursiva, referências de espaço e tempo
nas falas das personagens. A simulação da taverna na Inglaterra, assim como a simulação de
trajes no estilo medieval, é uma representação figurativa que torna verossímil a fixação da
história no ano de 1389, exatamente durante a Idade Média. Como Sandman e Hob Gadling se
encontram na mesma taverna de cem em cem anos, também é preciso que se represente a
passagem do tempo no texto. No plano de expressão visual, a passagem do tempo se manifesta
por meio da simulação de transformações arquitetônicas na taverna e também por meio de
mudanças estilísticas nas vestimentas das personagens. No plano de expressão verbal, a passagem
do tempo é perceptível nas referências aos nomes de personagens históricas e nas citações de
fatos antigos, concretizados nas falas das personagens. Quando Sandman propõe o pacto de
imortalidade a Hob Gadling, os companheiros de bebida do soldado o escarnecem porque não
acreditam que ele conseguirá retornar à taverna cem anos após o combinado. Duas personagens,
figurativizadas como fanfarrões ébrios no terceiro quadro da página 103, riem da situação e uma
diz ser o papa Urbano, enquanto a outra se nomeia o papa Clemente. O sujeito da enunciação se
projeta nas falas das personagens para situar a história no período do grande cisma da Igreja
Católica13, que aconteceu durante a Idade Média. Essa é uma das técnicas que possibilitam a
ancoragem do texto no período histórico representado por meio dos desenhos. Quando ocorre o
último encontro entre Sandman e Hob Gadling, narrado na última página de Men of Good
Fortune, o cenário onde acontece a história não é mais uma taverna medieval, mas sim um pub
contemporâneo, e Sandman veste um sobretudo moderno, em vez de trajes medievais; no entanto,
a cor escura da vestimenta é preservada. Ao considerarmos que o pacto foi firmado no ano de
1389 e que, após esse primeiro encontro, Sandman e Hob Gadling se encontraram no mesmo
lugar uma vez a cada cem anos, por seis vezes, concluímos que o último encontro ocorre no ano
de 1989. Essa data é afirmada na página 122 em um texto dentro do primeiro balão no primeiro
quadro, que menciona um imposto de Margareth Thatcher. Trata-se da primeira-ministra
12
Nas caixas de texto, o narrador conta, geralmente na 3ª pessoa, detalhes como a época em que ocorre a narrativa;
como se pode ver no primeiro quadro da HQ A Midsummer Night’s Dream (Anexo).
13
A Igreja estava dividida e o papado foi disputado por Urbano VI e Clemente VII.
58
britânica que recebeu a alcunha de “dama de ferro” e que governou a Inglaterra no período fixado
pelo texto, o ano de 1989. É por meio da simulação de transformações no cenário e também nas
citações a fatos históricos que se cria o efeito de sentido de passagem do tempo. Assim, uma
taverna medieval do ano de 1389 se torna, no decorrer do espaço-tempo, um bar contemporâneo
do ano de 1989. A capacidade que a personagem Sandman tem de se metamorfosear e que lhe
permite assumir diferentes formas, por meio da variedade de trajes com os quais é representada
na HQ, pode ser comparada à da personagem mitológica Morfeu, que se apresenta, “em várias
formas”, ao rei D. Manuel, no poema Os Lusíadas. Tanto o Morpheus das HQs norte-americanas
quanto o Morfeu do poema épico português são senhores dos sonhos e podem assumir formas
variadas.
Constatamos que a composição discursiva da personagem Sandman se baseia em traços
figurativos de várias personagens mitológicas da literatura universal. No poema grego Teogonia,
de Hesíodo, os Sonhos e a Morte são filhos da Noite. Os temas do sono e da morte são
materializados, na epopéia grega Ilíada, na figura dos deuses irmãos Sono e Morte. A partir da
mesma idéia, o narrador da HQ norte-americana representa esses temas nas figuras dos irmãos
Sandman e Morte. O tema dos sonhos é representado, na série Sandman, na figura de um ser de
vestes sombrias, assim como o deus Sono é caracterizado (com um “véu negro”) no poema latino
Metamorfoses, de Ovídio. A capacidade que permite que o senhor dos sonhos da série Sandman
assuma múltiplas formas também diz respeito às várias formas por meio das quais a personagem
Morfeu se apresenta no poema épico Os Lusíadas. Por meio da relação com o universo figurativo
da mitologia clássica, a série Sandman torna os temas e figuras dos mitos antigos parte da
composição narrativa de um novo sistema de significação. Essa técnica de construção narrativa
mítico-figurativa torna possível a representação dos mitos clássicos nas HQs modernas. A grande
indústria norte-americana de HQs produz uma figuratividade de mitos que são contemporâneos e
ao mesmo tempo estão carregados de significados relativos aos mitos da Antigüidade clássica. As
personagens contemporâneas preservam os caracteres das personagens clássicas por meio de
representações figurativas, que estabilizam o discurso mitológico em sua manifestação. Percebe-
se que o mito se fixa no discurso por meio da figuratividade e pode ser reconhecido como
intertexto. Greimas e Courtés (2008, p. 272) consideram que
Na mesma taverna onde se realiza o pacto entre Sandman e Hob Gadling, também se firma
um acordo entre o senhor dos sonhos e um jovem ator que aspira tornar-se um grande
dramaturgo. A personagem representa o poeta inglês Shakespeare. O pacto entre o senhor dos
sonhos e o ator inglês ocorre durante a narrativa do terceiro encontro secular entre Sandman e
Hob Gadling. Já que o primeiro encontro é narrado no ano de 1389, conclui-se que o terceiro
ocorre no ano de 1589. Nessa época, segundo as pesquisas cronológicas das peças de
Shakespeare14, o poeta ainda não havia produzido suas principais obras teatrais (na HQ Sandman
chama o dramaturgo de Will Shaxberd, uma forma irônica de o narrador mostrar como o nome do
artista, que se tornou mundialmente famoso, era desconhecido na época). Na história Men of
Good Fortune, o bardo inglês é retratado como um artista frustrado diante do talento de seu
amigo Christopher Marlowe (dramaturgo inglês contemporâneo de Shakespeare, que o chama, de
forma amigável, de Kit na HQ). No terceiro quadro da página 110, a personagem Shakespeare
fala para a personagem Kit: “I would give anything to have your gifts. Or more than anything to
give men dreams, that would live on long after I am dead. I bargain, like your Faustus, for that
14
Um Quadro Cronológico das Peças Teatrais de Shakespeare foi estabelecido por E. K. Chambers
(SHAKESPEARE, 1997, p. 27).
60
boon.” (GAIMAN, 1995, p. 126). O tema da lenda do Dr. Fausto15, personagem re-construída na
versão de Marlowe, está inter-relacionado ao tema da história Men of Good Fortune, pois na HQ
também são narrados pactos firmados entre mortais e seres sobrenaturais. No segundo quadro da
página 104, Hob Gadling fala para Sandman: “Have I unwitting made a bargain with the devil?”
(GAIMAN, 1995, p. 120). A idéia de pacto com o demônio surge no texto verbal nessa fala da
personagem. No quadro seguinte, dois homens jogando cartas estão em primeiro plano e a carta
que um dos jogadores apresenta tem a figura do demônio – que é representado como um bode no
baralho. De forma que o texto verbal – contido no balão de fala de Hob Gadling – faz surgir o
motivo do pacto com o demônio, que é prolongado pelo quadro seguinte no desenho da carta com
a figura do bode. O tema do pacto com o demônio se manifesta nessa página com aspecto
durativo, pois se prolonga de um quadro para outro por meio da relação entre o plano de
expressão verbal (no balão de fala de Hob Gadling) e o plano de expressão visual (a figura do
bode na carta de baralho).
A frustração de Shakespeare será solucionada por meio de um acordo: Sandman pergunta
ao poeta se ele gostaria de escrever peças instigantes e oníricas e ele responde que é o que
realmente deseja (segundo quadro da página 111). Entre as peças de Shakespeare que fazem
referência aos sonhos a mais evidente é A Midsummer Night’s Dream16, cujo título é, por si, uma
referência aos sonhos. Segundo o quadro cronológico das peças de Shakespeare, estabelecido por
Chambers, a primeira apresentação da peça A Midsummer Night’s Dream ocorreu entre os anos
de 1595 e 1596. Os anos são posteriores à data simulada na história Men of Good Fortune, pois,
na narrativa em quadrinhos, o encontro entre o senhor dos sonhos e o ator ocorre durante o ano de
1589. O narrador da HQ simula a realização de um pacto entre Shakespeare e Sandman e, assim,
atribui a criação das principais peças do teatro inglês à capacidade criativa que foi concedida pelo
senhor dos sonhos ao dramaturgo, já que este, no ano de 1589, ainda não havia produzido grandes
trabalhos. O bardo inglês barganha com poderes sobrenaturais, assim como o Dr. Fausto, em
troca de talento artístico, e Sandman lhe concede a capacidade de criar peças que, em retribuição
ao dom concedido, mencionem os sonhos, como A Midsummer Night’s Dream. Uma das últimas
15
Nas lendas européias, Fausto é um mago alemão erudito que faz um pacto com o demônio em troca de juventude,
sabedoria e poderes mágicos.
16
Sonho de uma Noite de Verão (tradução mais freqüente do título da peça em português).
61
peças escritas pelo dramaturgo Shakespeare (1948, p. 312-313), The Tempest17, também faz
significativas alusões aos sonhos:
Os versos acima citam os sonhos em construções poéticas como after long sleep (embora
despertado tenha de um longo sono), Will make me sleep again (me fazem dormir de novo), in
dreaming (em sonhos) e I cried to dream again (choro porque desejo prosseguir a sonhar)18.
Muitas das obras de Shakespeare, assim como o trabalho de Marlowe, são releituras de lendas
populares. Na peça A Midsummer Night’s Dream, a personagem mítica Titânia19 assume um
papel importante. Titânia é representada, tanto na peça de Shakespeare quanto nos contos
medievais, como a soberana das fadas. Ocorre o rompimento com a narrativa folclórica, em
forma de conto, e o mito de Titânia é recontado nos palcos ingleses, em forma de peça teatral. A
personagem Titânia também é retomada por Gaiman na série Sandman, na HQ A Midsummer
Night’s Dream, que será analisada no próximo tópico. Essa técnica de representar os mitos em
outro estilo de texto é uma das características da série Sandman, que, como vimos no tópico
anterior, se apropria de mitos presentes nos poemas clássicos e os reconta, por meio da
figuratividade, na forma de textos sincréticos.
Há outra analogia importante entre as peças de Shakespeare e a HQ Men of Good Fortune.
Na encenação teatral, a simulação de espaço se realiza por meio da projeção do cenário no palco.
As cenas da peça A Midsummer Night’s Dream são apresentadas em ambientes, criados por
técnicas cenográficas, que simulam aposentos de palácios e bosques. Nas HQs a simulação de
espaço se manifesta na construção gráfica dos desenhos. A história Men of Good Fortune é
narrada em “cenários” criados por técnicas de descrição visual que simulam tavernas e bares. O
narrador da HQ introduz as personagens nas cenas estabelecidas por meio do plano de expressão
17
A Tempestade (tradução mais freqüente do título da peça em português).
18
As traduções entre parênteses são de Carlos Alberto Nunes (1997, p. 77).
19
Rainha das fadas na mitologia medieval norte-européia, citada em contos populares.
62
visual e essa representação de ambiente é semelhante à das técnicas cenográficas usadas nas
peças teatrais. A passagem do tempo no teatro é simulada por meio da mudança de cenas, de
modo que o dia pode ser figurativizado pela pintura do sol, assim como a noite pode ser
reproduzida pela figura da lua no fundo do palco. Em Men of Good Fortune, a simulação de
transformações na arquitetura da taverna cria o efeito de sentido de passagem do tempo, assim
como nas peças teatrais as técnicas visuais empregadas para alterar os cenários também
representam o decurso temporal. A analogia entre a história da HQ e a encenação teatral é um
recurso que cria mais relações semióticas entre a história Men of Good Fortune e as peças de
Shakespeare.
A manifestação da personagem Shakespeare na série Sandman ocorre por meio da
simulação de referências ao período histórico no qual viveu o dramaturgo, o ano de 1589, e
também por meio das citações de obras compostas por artistas conhecidos do poeta, como a
adaptação da lenda do Dr. Fausto feita por Marlowe. Para compreender os efeitos de sentido do
pacto firmado entre a personagem Shakespeare e a personagem Sandman, é preciso conhecer as
peças produzidas pelo dramaturgo inglês homônimo e também a forma como as peças fazem
referência aos sonhos. Além disso, é preciso entender o modo como a HQ sugere que o talento
criativo de Shakespeare é fornecido pelo poder de inspiração onírica ofertado por Sandman.
dos sonhos espera proporcionar uma homenagem agradável ao povo das fadas antes que eles
abandonem totalmente o mundo dos homens.
No primeiro quadro da página 137, é desenhada uma cena da peça homônima de
Shakespeare em que Titânia e Oberon discutem sobre a posse de uma criança indiana. Na peça de
Shakespeare (1948, p. 29), Oberon pede que Titânia lhe dê a criança para fazer dela um pajem,
Titânia responde:
Os três últimos versos do trecho da peça citado acima estão inseridos no balão de fala do
primeiro quadro da página 137. Nos dois quadros seguintes da mesma página, Titânia fala para
Morpheus que ela deseja conhecer o garoto que interpreta o menino indiano na peça. O senhor
dos sonhos explica que o garoto é filho de Shakespeare e que a rainha das fadas poderá conhecê-
lo no intervalo da apresentação da peça.
No terceiro quadro da página 139, o filho de Shakespeare fala sobre o caráter distante de
seu pai: “Mother says he’s changed in the last five years, but I don’t remember him any other
way. Judith – she’s my twin sister – she once joked that if I died, he’d just write a play about it.
‘Hamnet.’” (GAIMAN, 1995, p. 75). O rosto do garoto é desenhado com uma expressão
melancólica enquanto ele fala sobre o modo como o pai parece se importar mais com as peças
que escreve do que com sua família. A relação entre o nome do menino – Hamnet – e o nome de
uma das peças mais famosas de Shakespeare – Hamlet – será explorada no próximo tópico.
Na página 142, acontece o intervalo da peça e Titânia aproveita esse tempo para conversar
com o filho de Shakespeare. No primeiro quadro desta página, Titânia e Hamnet se conhecem em
64
Na mitologia norte-européia, é perigoso aceitar algo oferecido por um ente mágico, como
no caso da lenda norueguesa O cavaleiro Byrting e a Rainha dos Elfos:
A rainha Titânia, assim como a rainha dos elfos da lenda norueguesa, é uma personagem
das lendas norte-européias e, como tal, costuma enfeitiçar seres humanos com presentes
encantados. No nível narrativo, a rainha Titânia manipula Hamnet, por sedução, tornando-o
conjunto a um objeto, o fruto, que o priva da própria vontade. É possível traçar o seguinte
programa narrativo:
Nesse programa, Titânia tem por função seduzir Hamnet e torná-lo conjunto de um
objeto, o fruto, que está relacionado ao valor do encantamento. A transformação de Hamnet
66
ocorre no momento em que o garoto aceita o fruto e é enfeitiçado pelo poder da rainha das fadas.
A estrutura da série Sandman se relaciona com a estrutura de vários mitos e lendas. A HQ Men of
Good Fortune conta a história do pacto entre um homem e um ser sobrenatural, de forma
semelhante à lenda do Doutor Fausto, como já foi mencionado no tópico anterior. A HQ A
Midsummer Night’s Dream, além de mostrar a concretização de parte do acordo firmado entre o
senhor dos sonhos e Shakespeare, também aproxima a estrutura da série da estrutura das lendas
norte-européias (como a lenda O cavaleiro Byrting e a rainha dos elfos) na cena da sedução de
Hamnet pela rainha Titânia. Destaca-se, mais uma vez, a ocorrência da intertextualidade com
mitos e lendas na série Sandman.
Na página 146, os balões de fala dos quadros 4 e 5 contêm os seguintes versos da peça A
Midsummer Night’s Dream:
O desenho do quarto quadro descreve o espaço natural, a planície e o sopé do monte, onde
a platéia assiste aos atores interpretarem a peça. Nesse quadro, o enunciatário tem a sensação de
estar em um ponto alto de onde observa a cena, devido ao trabalho de perspectiva do desenho.
Assim, o texto visual – a paisagem e os atores no interior do quadro – concorda com o texto
verbal – texto de Shakespeare inserido no balão de fala – da seguinte maneira: o texto verbal diz
que o olho do poeta percorre, de modo frenético, o céu e a terra, e essa idéia é representada no
texto visual, cujo trabalho com a perspectiva consiste em apresentar a paisagem (terra) a partir de
uma posição elevada (céu). A idéia de que o olho do poeta percorre o céu e a terra, presente no
texto verbal, está vinculada à representação espacial do texto visual, que mostra o espaço da terra
(baixo) a partir do espaço do céu (alto). Nota-se uma relação semi-simbólica na representação
topológica alto versus baixo (plano da expressão) que remete aos conceitos céu versus terra
(plano do conteúdo).
O desenho do quinto quadro da página 146 apresenta o perfil do senhor dos sonhos, com
semblante meditativo, enquanto o texto no balão de fala trata de como o poeta, ao escrever,
concede nome e lugar ao nada, isto é, ao que é “impalpável”. Os sonhos podem ser entendidos
67
como um universo instável que ganha nome e substância por meio do trabalho do poeta, que dá
voz a esse “mundo imaginário” em sua poesia material. Nesse quadro, a figura do senhor dos
sonhos, de perfil, representa o tema do sonho e, no contexto da história, os sonhos são
materializados na peça de Shakespeare. A intenção do senhor dos sonhos, ao selar o pacto com
Shakespeare, é tornar o reino dos sonhos presente de forma material na peça de teatro. É dessa
maneira que o universo instável dos sonhos ganha substância material na cultura dos homens.
Assim, tanto o senhor dos sonhos quanto Shakespeare conseguem realizar seus objetivos.
Na página 149, os últimos versos da peça homônima de Shakespeare estão inseridos nos
balões de fala da personagem Robin Goodfellow, também chamada de Puck. Essa página é
composta por seis quadros e há uma progressão cromática da sombra do primeiro ao último
quadro. Na peça teatral, os últimos versos da personagem Robin Goodfellow são sucedidos pelas
cortinas que se fecham no arco do proscênio. A HQ simula o fechamento das cortinas teatrais por
meio do plano de expressão visual, em que a sombra progride até o total escurecimento do último
quadro da página. De modo que se pode fazer uma analogia entre o encerramento da peça teatral
e o encerramento da HQ, na relação entre as cortinas que se fecham no teatro e a progressão da
sombra nos quadros. No primeiro quadro da página 149, Robin está agachado segurando a
máscara que roubou do ator que o interpreta na peça. No segundo quadro, deixa a máscara cair, o
que representa o fim da farsa, o fim da peça. Nota-se que, na seqüência de quadros, a personagem
Robin é representada cada vez mais próxima e esse efeito de perspectiva se desenvolve junto com
a progressão da sombra nos quadros. O último quadro da página 149 é totalmente negro,
totalmente tomado pela sombra. No primeiro quadro da página seguinte, Shakespeare e seu grupo
de atores acordam na relva. Percebe-se que, no primeiro quadro da página 149, enquanto Robin
está de posse da máscara, a luz domina a maior parte do quadro. A partir do momento em que
Robin solta a máscara, no segundo quadro, a sombra passa a dominar os quadros na seqüência. A
luz, a máscara e o sonho estão relacionados, de modo que a máscara representa a peça teatral, que
surge como conseqüência do pacto firmado entre Shakespeare e o senhor dos sonhos. A queda da
máscara no segundo quadro da página 149 representa o encerramento da peça e o fim do sonho,
juntamente com a diluição da luz e o aumento da sombra no plano de expressão visual. A
progressão da sombra representa a passagem do estado onírico para o estado desperto, de modo
que o último quadro da página, totalmente negro, com todas as figuras oníricas apagadas, é
sucedido, na página seguinte, pelo quadro em que as personagens despertam. É possível
68
estabelecer, no plano de expressão visual da página 149, uma categoria cromática luz versus
sombra, que está relacionada à categoria semântica sonhar versus despertar. A luz está
relacionada ao sonhar – e também à encenação teatral, representada pela máscara – e a sombra ao
despertar – todas as figuras são consumidas pela sombra no último quadro, que antecede o
despertar das personagens na página seguinte. Essa relação semi-simbólica organizada na
linguagem da HQ é outra forma por meio da qual a série Sandman simula relações com as peças
teatrais de Shakespeare. Nesse caso, o enunciador utiliza os versos finais da peça de Shakespeare
no texto sincrético e simula o encerramento teatral (cortinas que se fecham) por meio da estrutura
dos quadros em seqüência (progressão da sombra).
Percebe-se que esse texto, a HQ A Midsummer Night’s Dream, é organizado a partir de
elementos literários da peça homônima de Shakespeare. A relação com motivos de lendas norte-
européias, como no caso da sedução de Hamnet pela rainha Titânia, reforça o tom mitológico da
série Sandman. O enunciador da série sempre relaciona a HQ a textos consagrados da literatura, o
que intensifica a intertextualidade no texto sincrético. Embora a série Sandman tenha sido
classificada como literária em várias mídias20, enfatiza-se que a linguagem das HQs é uma
linguagem distinta que não pode ser comparada à da literatura. As HQs são uma forma de texto
que se estrutura por meio da união verbo-visual e a literatura é uma forma de linguagem verbal.
De qualquer forma, a relação da série Sandman com elementos da literatura foi responsável por
consolidar os quadrinhos norte-americanos publicados por grandes editoras como um tipo de
texto mais sério do que havia sido considerado até então.
20
A CNN divulgou que “Sandman foi o título-chave para que [...] os quadrinhos pudessem ser considerados
literatura.”. A Forbes explicitou o teor literário da série: “Em Sandman, Neil Gaiman criou uma paisagem tão
detalhada e cheia de nuances quanto os mitos coletivos da Grécia antiga ou os contos de cavaleiros errantes de
69
2.4 Despertar
To die, to sleep;
To sleep: perchance to dream21
(SHAKESPEARE, 1948, p. 267)
Lorde Morpheus escolhe como sucessor um garoto chamado Daniel, cuja mãe é Hippolyta
Hall, uma mulher mortal. O último volume da série, intitulado The Wake, narra como Daniel se
torna o novo senhor do reino dos sonhos após a morte do antigo. Neste tópico será analisada a
ilustração The Wake, desenhada pelo artista M. Zulli (que também desenhou a HQ Men of Good
Fortune) para o arco de histórias homônimo. O conceito de semi-simbolismo será aplicado na
ilustração, que destaca a personagem Dream of the Endless (Sonho dos Perpétuos), ou seja, o
garoto Daniel transfigurado no novo senhor dos sonhos (Anexo E, p. 153). A partir da análise da
imagem serão abordados conceitos da semiótica passional e da semiótica tensiva.
Distingue-se, na ilustração The Wake, uma categoria plástica luz vs. sombra. A luz ilumina o
senhor dos sonhos e, ao fundo, atinge a parte superior do plano de expressão visual, enquanto a
sombra permeia a parte inferior do mesmo. Há um conjunto de figuras que remetem à vida (a
vegetação), à morte (as estátuas que seguram crânios descarnados) e figuras que estão em um
estado intermediário entre a vida e a morte. São as figuras do senhor dos sonhos (cuja expressão
pálida e olheiras profundas figurativizam um estado de não-vida, mas que banhado pela luz
pressupõe um estado de não-morte) e do ramalhete de flores (que, desenraizadas, se encontram
em um estado de não-vida, mas como ainda não estão decompostas pressupõem um estado de
não-morte).
Na parte inferior da ilustração, a vegetação (vida) se mistura, de forma emaranhada, às
estátuas (morte). A figura melancólica e iluminada (não-vida / não-morte) do senhor dos sonhos
segura, e fita com ar pensativo, um ramalhete de flores, ambos estão representados em um estado
de não-vida / não-morte. Percebe-se uma relação semi-simbólica entre a categoria plástica luz vs.
Chaucer.” (Textos extraídos da última capa do volume Sandman, Noites sem Fim. 3ª edição brasileira, escrito por
Gaiman e publicado pela editora Conrad em 2006). Estes são apenas dois exemplos entre muitos outros.
21
Morrer, dormir;
Dormir: talvez sonhar (tradução nossa).
70
sombra e a categoria semântica vida vs. morte, sendo a vida representada pela luz e a morte
representada pela sombra.
Tanto as estátuas quanto o senhor dos sonhos estão na clássica posição na qual a
personagem Hamlet, do dramaturgo inglês Shakespeare, é representada. Entre as inúmeras
ilustrações de Hamlet destaca-se a que foi criada no século XIX pelo artista John Gilbert (Anexo
F, p. 155).
As figuras do senhor dos sonhos e das estátuas em The Wake se relacionam à figura de
Hamlet e esse efeito de semelhança que há entre elas é estabilizado pela iconicidade. O tema da
iconicidade é mais discutido na semiótica peirciana, e pouco trabalhado na semiótica
greimasiana. O semioticista greimasiano Fontanille (2005, p. 99-100), em seu livro Significação e
Visualidade: exercícios práticos, discute o conceito de iconicidade e pondera que a semiótica
greimasiana não o trabalha muito porque
A semelhança entre as figuras de The Wake e a figura de Hamlet não se baseia na totalidade
dos traços de composição que há entre elas, mas sim nos poucos traços que representam o
príncipe dinamarquês ao segurar e observar a caveira. A semelhança não acontece entre as figuras
e um objeto do mundo natural, mas entre a experiência perceptiva que se tem da tradicional
posição na qual Hamlet é representado e a experiência perceptiva que associa essa posição aos
traços nos quais as figuras de The Wake são representadas. Os poucos traços retidos na primeira
experiência perceptiva são suficientes para que, depois, se reconheçam os mesmos traços
selecionados na representação. Fontanille (2005, p. 110) define que “o ícone é o momento da
estabilização de uma figura reconhecida enquanto tal”. Ocorre a estabilização da figura de
Hamlet e esta assume um caráter icônico, de modo que é possível reconhecer a seleção dos
mesmos traços que caracterizam a personagem teatral nas figuras da ilustração The Wake.
Um dos trechos mais famosos da peça Hamlet é o monólogo “To be, or not to be”
(SHAKESPEARE, 1948, p. 266), no qual Hamlet reflete sobre o modo como os homens
suportam os males da vida por temerem o que pode existir após a morte. Costuma-se representar
a personagem com a caveira na mão ao declamar esse monólogo, mas a cena na qual a
personagem segura a caveira acontece no quinto ato da peça, enquanto o monólogo faz parte do
terceiro ato. A primeira cena do quinto ato acontece em um cemitério, onde um coveiro
desenterra a caveira de Yorick, o bobo da corte do reino de Elsinor. Hamlet segura a caveira e
fala para seu amigo Horatio:
Alas, poor Yorick! I knew him, Horatio: a fellow of infinite jest, of most excellent
fancy: he hath borne me on his back a thousand times; and now how abhorred
in my imagination it is! My gorge rises at it. Here hung those lips that I have
kissed I know not how oft. Where be your gibes now? your gambols? your
songs? your flashes of merriment, that were wont go set the table on a roar? Not
one now, to mock your own grinning? Quite chop-fallen? (SHAKESPEARE,
1948, p. 315-316)
Hamlet observa o crânio de Yorick, lembra-se o quanto o bobo era dinâmico e alegre e fica
chocado ao ver que a morte tolhera todo aquele entusiasmo, o que resta é só um crânio
72
descarnado. No momento em que se considera o efeito icônico – que relaciona a ilustração The
Wake à cena de Hamlet com a caveira – e que se lê a fala da personagem teatral, mais uma vez
destacam-se os temas da vida e da morte.
Como foi dito no tópico anterior, existe uma relação entre o nome do filho de Shakespeare –
Hamnet – e o título da peça Hamlet. O garoto fala (no terceiro quadro da página 139) sobre uma
brincadeira da irmã, que dizia que se ele morresse o pai escreveria uma peça chamada “Hamnet”.
No tópico anterior foi destacado o modo como o garoto é seduzido por Titânia e levado para o
reino das fadas após sua desencarnação no mundo dos homens. O texto no último quadro da
página 150 informa que Hamnet morre em 1596, anos antes da publicação da peça Hamlet
(segundo o quadro cronológico estabelecido por Chambers, Hamlet é publicada entre 1600 e
1601). De forma que a peça Hamlet surge após a morte de Hamnet, o que confirma a brincadeira
que a filha de Shakespeare fazia em relação ao irmão (apesar de Hamlet não ser uma peça sobre
Hamnet, o filho de Shakespeare, tanto a representação ortográfica quanto a fonética dos nomes
são semelhantes). A morte de Hamnet pode ser entendida como inspiração para que Shakespeare
escrevesse a peça Hamlet. No terceiro quadro da página 145, o senhor dos sonhos fala para
Titânia que os mortais não entendem o preço dos acordos firmados com ele, pois só enxergam o
desejo dos seus corações. No caso do acordo com Shakespeare, o preço pela inspiração do poeta
é tão alto quanto a vida de seus entes queridos.
Durante sua era como monarca do reino dos sonhos, Morpheus percebe a instabilidade de
tudo que existe e testemunha o desaparecimento de reis e deuses poderosos. A passagem do
tempo altera tudo. Em determinado momento de sua existência o senhor dos sonhos percebe que,
embora ele próprio não esteja isento de ser tocado pela morte, a sua era como senhor dos sonhos
pode ser perpétua. Eis o que motiva Morpheus a encomendar a Shakespeare peças que façam
referência à sua experiência como regente dos sonhos. Em peças como A Midsummer Night’s
Dream e The Tempest, o mundo de Morpheus e os seres com os quais ele se relacionou existirão
enquanto a humanidade tiver contato com seu conteúdo. O senhor dos sonhos é eternizado na
linguagem.
Morpheus é envolvido em uma intriga familiar, arquitetada pela sua eterna rival e
irmã/irmão Desire (o desejo é figurativizado como um hermafrodita), e passa a ser perseguido
pelas Eumênides (chamadas de “Deusas da terrível cólera” nos versos de Hesíodo, citados no
primeiro tópico deste capítulo) da mitologia grega, também chamadas de Fúrias pelos romanos.
73
Elas são invocadas por Hippolyta Hall, mãe de Daniel, que lhes pede a morte do senhor dos
sonhos em represália, pois Morpheus tomou dela o próprio filho. As Eumênides não podem ser
paradas no curso de seu ato de vingança e Morpheus vai para o reino de sua irmã Morte, mas é
substituído no reino dos sonhos por uma nova manifestação do garoto Daniel, que se torna o novo
Sonho dos Perpétuos. A vegetação presente na ilustração The Wake pode ser compreendida como
um símbolo da ressurreição, já que em várias mitologias o ciclo da vegetação está relacionado ao
culto da ressurreição, como o culto a Osíris, no Egito (Osíris, o deus do mundo dos mortos,
ressurge após sua morte e seu culto está relacionado à fertilidade das margens do rio Nilo). Em
The Wake, o texto representa a ressurreição do senhor dos sonhos na figura de Sonho dos
Perpétuos, que está em contato com figuras vegetais que remetem à vida (a vegetação que se
emaranha nas estátuas) e que também significam não-vida e não-morte (o ramalhete de flores).
Como já foi considerado acima, o senhor dos sonhos, na ilustração The Wake, está
representado em um estado intermediário entre a vida e a morte. No momento em que se observa
a ilustração e que se visualiza a cabeça do senhor dos sonhos, percebe-se que ela ocupa o centro
do plano de expressão visual. Há uma categoria plástica central vs. marginal que destaca a
cabeça do senhor dos sonhos no centro da ilustração e que identifica o estado intermediário do
sonho (representado por Sonho dos Perpétuos) como o tema central do texto. O senhor dos
sonhos (não-vida e não-morte) é a figura central e as figuras marginais são as estátuas (morte) e a
vegetação (vida). Sonhar é, portanto, estar em um estado intermediário entre a vida (representada
pela vegetação) e a morte (representada pelas estátuas). Percebe-se, novamente, que desde as
antigas epopéias gregas até as ilustrações da indústria cultural contemporânea os temas e figuras
do sonho e da morte estão vinculados.
No primeiro tópico do segundo capítulo, discutiu-se que o nome Sandman (sand – areia,
man – homem) relaciona a figura da areia ao tema dos sonhos, o que também acontece na poesia
romana de Virgílio e nos contos dinamarqueses de Andersen. Mas a figura da areia não remete
somente ao tema dos sonhos, a areia também está ligada ao tempo, como se percebe na
tradicional figura da ampulheta, que é um objeto usado para se medir o tempo por meio do
escoamento de grãos de areia. O sonho não se situa no domínio da vida e nem no domínio da
morte, o sonho está vinculado ao tempo. Os sonhos são filhos da Noite na teogonia grega, de
modo que, desde as primeiras manifestações na cultura ocidental, os Sonhos estão relacionados
ao tempo; isso se evidencia porque a noção de noite marca o decurso temporal.
74
O tempo é um dos principais temas da série Sandman: na história Men of Good Fortune, a
passagem do tempo na taverna e a idéia de imortalidade (que é um rompimento com a passagem
do tempo) são elementos essenciais e o pacto com Shakespeare permite que Morpheus se
perpetue no tempo além de sua era como senhor dos sonhos. A morte transmite a idéia de fim, é
uma noção terminativa, o sentido de sonho se situa em um tempo-espaço que difere do tempo e
do espaço em que se situam os sentidos de vida e morte. O sonho integra um domínio instável e
diáfano.
Para melhor compreensão do conceito semiótico de sonho é pertinente analisá-lo no âmbito
da semiótica das paixões. A semiótica passional reflete sobre a conceituação – concebida no nível
narrativo – de sujeito de estado e sujeito de fazer e considera que o sujeito passional é
caracterizado pelo ser. Ao considerar-se o sujeito modal do ser em relação ao sonho, entende-se
que é possível ao sujeito sonhador (compreendido como sujeito somático) ser o que não pode ser
quando está desperto. No sonho, o saber não poder ser do sujeito consciente desaparece e ele
acredita poder ser, o que anula o estado racional mantido pelo saber não poder ser. Assim, os
sonhos são entendidos como um estado de alma (característico do ser do sujeito) e não como um
estado de coisas (característico do fazer do sujeito). “A paixão concerne (...) qualquer que seja o
sujeito de primeira categoria envolvido, sujeito de estado e sujeito de fazer, a um sujeito de
segunda categoria, o sujeito modal que dele decorre.” (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p. 51-
52). O sujeito sonhador é um sujeito modal do ser, de segunda categoria, e não um sujeito do
fazer, de primeira categoria. É um sujeito caracterizado por uma dimensão passional e que não
pode ser compreendido só por meio das modalizações de competência do poder-fazer. Segundo
Greimas e Fontanille (1993, p. 54):
[...] a performance não deixa de ter certo efeito modal, pois o fazer pode ser
captado no segundo grau como ser do fazer; seria, intuitivamente, toda a
diferença entre um sujeito “agente”, sujeito do fazer, captado no primeiro grau, e
um sujeito “ativo”, sujeito do ser do fazer, captado no segundo grau; em outras
palavras, o sujeito dito “ativo” é caracterizado em seu ser pela realização da
própria performance, caracterização que não comporta nenhuma consideração
sobre a “competência modal” propriamente dita. Essas poucas observações
fazem pensar que os sujeitos passionais não podem ser definidos unicamente
graças às quatro modalizações geralmente identificadas, em particular no quadro
da competência, em vista do fazer. Falar-se-á, por exemplo, de “hiperatividade”
para designar um estado modalizado que não deve nada especificamente ao
querer, ao saber, ao poder, ao dever ou ao crer, mas nem por isso está menos
sensibilizado e convocado, por exemplo, como critério de identificação de certa
75
O sujeito sonhador não é um sujeito “agente”, sujeito do fazer, porque é um sujeito “ativo”,
sujeito do ser do fazer, que desconsidera a competência de realizar a própria performance, pois se
define pelo ser, o que implica que o fazer é desnecessário. O sonhador está imerso em atividades
patêmicas variadas e o que o define é seu estado de alma e não sua competência em relação ao
querer, ao saber, ao poder, ao dever, etc. É um sujeito modalizado pelos modos de existência, de
modo que se considera a junção com o estado de alma onírico como uma primeira modalização.
O que legitima o sonhador não é o fato de estar conjunto ou disjunto de objetos no processo
de sonhar. O sonhador não se define só por meio dos programas em que está conjunto de objetos
desejáveis (sonhos agradáveis) ou temíveis (pesadelos). O sonhador se define, principalmente,
por estar desvinculado de um estado consciente que o impede de poder ser, uma vez que a
consciência o faz saber não poder ser. Trata-se de um sujeito que se encontra em um estado
virtual e supõe que este é um estado real. Segundo Greimas e Fontanille (1993, p. 55),
“reservando a expressão ‘modos de existência’ àquilo para o que ela serviu em semiótica até o
presente, denominaremos ‘simulacros existenciais’ essas projeções do sujeito num imaginário
passional”. Entende-se que o sonhador se projeta em um imaginário passional e que essa projeção
é um simulacro existencial. O sonho simula o estado de alma do sujeito sonhador.
Ao refletir sobre a instância da enunciação no texto The Wake, compreende-se que o sonho é
representado, figurativizado no enunciado. Identifica-se o enunciador como aquele que, dotado
de competência, organiza e estrutura o texto plástico e o enunciatário como aquele que, ao
visualizar o texto, capta-lhe o sentido. Tanto o semblante do senhor dos sonhos quanto a forma
das outras figuras organizadas pelo enunciador sugerem um estado de melancolia, que se
impregna na enunciação e afeta o enunciatário. Percebe-se que o plano de expressão visual possui
uma dimensão patêmica e é capaz de simular um estado de alma. Para esclarecer essa constatação
destaca-se o conceito dos simulacros passionais. Ao abordar a questão da enunciação passional,
Bertrand (2003, p.379) considera que
Em The Wake, o enunciado simula uma dimensão patêmica que afeta a enunciação. Assim,
toda a comunicação é afetada já que ela ocorre em uma troca passional de simulacros que se
realiza entre os interlocutores. É por isso que Greimas e Fontanille (1993, p. 58), ao escreverem
sobre os simulacros passionais, consideraram que “tal concepção não deixa de acarretar
conseqüências para a teoria da comunicação e da interação em seu conjunto”.
Em The Wake, o enunciador tem competência para projetar um simulacro que comporta uma
dimensão patêmica e se relaciona a temas míticos e literários. O enunciatário precisa ser capaz de
reconhecer essa relação com outros textos, como a peça Hamlet, por exemplo, para entender
todos os temas que são abrangidos pelo texto visual. Essa é uma questão que diz respeito ao
campo do conhecimento, da cultura. Os simulacros passionais se estendem à dimensão cultural,
pois “cada um dirige seu simulacro ao simulacro de outrem, simulacros que todos os
interactantes, bem como as culturas às quais eles pertencem, ajudaram a construir.” (GREIMAS;
FONTANILLE, 1993, p. 59). Acontece que, se o enunciatário não reconhecer o modo como o
texto se relaciona a outros textos, a troca passional não estará comprometida, pois, segundo
Greimas e Fontanille (1993, p. 59)
[...] toda comunicação seria virtualmente passional, nem que seja porque basta
que um dos simulacros modais, utilizados por ocasião da interação, seja
sensibilizado – na cultura de pelo menos um dos interlocutores – para que a
totalidade da interação veja-se afetada. Essa versão estendida dos simulacros,
designados então como “simulacros passionais”, integra a totalidade do
equipamento modal (exterior ao próprio simulacro) que abre o espaço
imaginário do sujeito apaixonado; na versão estendida, é a comunicação toda
que repousa na circulação dos simulacros.
A ilustração The Wake é sensibilizada pelo modo como o enunciador figurativiza o sonho no
discurso (estado de melancolia entre a vida e a morte). Esse simulacro passional, manifestado em
uma organização discursiva plástica, afeta toda a interação e sensibiliza os leitores. A troca
passional ocorre no momento em que o leitor trava contato visual com o texto plástico. Nesse
sentido, a troca passional está ligada à questão do ato de leitura. Sobre a semiótica da leitura,
Bertrand (2003, p. 24) reflete:
77
Trata-se, com efeito, de procurar a conexão entre uma semiótica sistêmica e uma
semiótica da leitura: para a primeira, todas as relações são internas ao
dispositivo da língua. [...] A segunda reintroduz o sujeito do discurso e a
dimensão intersubjetiva da interlocução no ato de leitura. Ela reencontra, por
conseguinte, as questões colocadas especificamente, no domínio literário, pelas
discussões clássicas sobre a interpretação e seus limites, sobre a polissemia nos
textos, sobre a pluralidade das leituras. [...] Nessa perspectiva, o leitor não é
mais aquela instância abstrata e universal, simplesmente pressuposta pelo
advento de uma significação textual já existente, que se costuma chamar
“receptor” ou “destinatário” da comunicação: ele é também e sobretudo um
“centro do discurso”, que constrói, interpreta, avalia, aprecia, compartilha ou
rejeita as significações.
A aplicação desse esquema na ilustração The Wake: as figuras das estátuas sugerem a
idéia de morte como um elemento intenso (em A) enquanto a vegetação sugere a vida e dilui (em
C) a ênfase na morte, de forma que a morte é difundida com brandura (em B). A palidez do
senhor dos sonhos também sugere morte (em A), que é diluída pela luz vívida que o toca (em C),
de forma que os elementos que remetem à morte são difundidos de forma atenuada (em B).
Todos esses elementos que sugerem vida e morte no campo da cultura se desdobram (em D) com
ênfase tanto na intensidade (do reconhecimento do estranho) quanto na extensidade (da difusão
do familiar) e instauram um discurso que se caracteriza pela integração dos elementos culturais
que sugerem vida e morte. Mas qual seria o domínio no qual a vida e a morte são integradas? Que
dimensão envolve vida e morte de forma harmoniosa? O tempo é um domínio que existe de
80
forma independente dos conceitos de vida e morte. É o tempo que reúne a vida e a morte em uma
única dimensão, pois o tempo se perpetua em um espaço que abarca as noções transitórias de vida
e morte. Na ilustração The Wake, o tempo está relacionado ao amanhecer: o tempo é representado
pelo período em que a luz do sol nascente (despertar – wake) tinge as nuvens na parte superior do
plano de expressão visual.
Neste mesmo tópico, discutiu-se a relação entre o sonho e o tempo e também se refletiu
sobre o conceito de sonho como um estado intermediário entre a vida e a morte. Assim como o
tempo é a dimensão em que a vida e a morte são envolvidas, o sonho, como elemento cultural, é
um estado de alma que se situa entre a vida e a morte. De modo que sonho e tempo, entendidos
como conceitos semióticos, integram o mesmo domínio. Na aplicação do esquema da práxis
enunciativa – conjugado ao conceito de semiosfera – na ilustração The Wake, percebe-se que a
zona do “Desdobramento do universal”, em que as noções de vida e morte são integradas, é a
zona em que se situa o elemento sonho-tempo. O sonho (tempo) integra vida e morte em D.
Segundo Fontanille e Zilberberg (2001, p. 196):
A universalização de uma forma poderia até mesmo [...] ser definida como o
descarte da práxis que a produziu. A zona crítica do “desdobramento universal”
é, na verdade, o local onde se introduz um metadiscurso que redefine até o
próprio referente do discurso e da cultura. Nesse sentido, é em tal zona que se
realizam e estabilizam os remanejamentos do campo discursivo, para formar
novos “universos”.
Um discurso, embora esteja encadeado a outros discursos, possui uma singularidade que o
diferencia como uma práxis particular. Essa singularidade que define um discurso, mesmo ligado
a outros, ocorre na zona que Fontanille e Zilberberg (2001, p. 196) chamam de “desdobramento
universal”. Essa é a delimitação espacial esquemática em que se identifica a unidade singular de
um discurso. É na aplicação do esquema da práxis enunciativa, complementado pela semiosfera,
que se destaca a zona na qual um novo discurso se estabiliza de forma única: no caso de The
Wake, a particularidade do discurso é a integração de vida e morte na dimensão do sonho
(tempo).
81
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise feita no segundo capítulo evidenciou a intertextualidade que há entre a série
Sandman e textos da literatura universal (obras de Hesíodo, Homero, Ovídio, Camões e
Shakespeare). A intertextualidade é perceptível por meio da relação entre temas e figuras que
ocorrem na literatura (textos verbais) e nas HQs (textos sincréticos). Os conceitos da semiótica –
figuratividade e semi-simbolismo – possibilitaram explorar tanto o texto verbal quanto o texto
visual que compõem a estrutura das HQs. A semiótica passional mostrou a dimensão afetiva da
ilustração The Wake e tornou compreensível que o sonho é representado em um estado
intermediário entre a vida e a morte em vários textos da cultura ocidental. O esquema da práxis
enunciativa, complementado pela semiosfera, explorou as relações tensivas na ilustração The
Wake e situou o sonho como um conceito cultural relacionado à noção de tempo. Esses
resultados, obtidos a partir da análise, possibilitarão desenvolver considerações sobre o contexto
sócio-histórico no qual o corpus foi produzido.
Percebe-se, em uma leitura semiótica da série Sandman, que os mitos da literatura clássica
são re-estruturados em textos sincréticos produzidos pela indústria cultural de massa e
consumidos por leitores contemporâneos. Os temas e figuras da Antigüidade e os da
contemporaneidade inter-relacionam-se por meio de um discurso verbo-visual que atinge leitores
em todo o mundo. Temas lendários exercem uma atração muito grande sobre os leitores, como
reflete Morin (1969, p. 47), “um homem pode mais facilmente participar das lendas de uma outra
civilização do que se adaptar à vida desta civilização”. Os leitores de Sandman são atraídos pelo
fantástico, assim como a personagem mortal Hob Gadling é seduzida pela imortalidade oferecida
pelo senhor dos sonhos. Essa relação entre o imaginário e o real caracteriza outras produções da
indústria cultural contemporânea, como afirma Cortina (2004, p. 181) sobre os livros escritos por
J. K. Rowling: “Do ponto de vista discursivo, portanto, podemos observar que as histórias de
Harry Potter constroem-se por meio da associação entre o mundo mágico/imaginário dos
feiticeiros e o mundo real/concreto do leitor contemporâneo.”. As histórias da série Sandman
também são construídas por meio da relação entre o mundo fantástico (seres imortais e pactos
sobrenaturais) e o mundo real (guerras e problemas sociais)22. Os temas fantásticos propagam-se
22
As citações entre parênteses referem-se à história Men of Good Fortune.
82
no mercado mundial porque a indústria cultural reconhece que esse tipo de produção é
consumido em grande quantidade pelo público. A produção da indústria cultural está ligada à
questão da leitura.
Segundo pesquisas recentes, o número de HQs vendidas em bancas de jornais tem
diminuído (Conforme o texto “Livrarias em alta; bancas em baixa”, de Gonçalo Jr., publicado na
revista Cult nº 111). Em compensação, há um aumento das vendas de quadrinhos em livrarias. As
HQs são publicadas em álbuns de luxo e vendidas em livrarias para um público formado, em sua
maioria, por adultos. Esse fato faz surgir uma questão sobre o futuro dos leitores de quadrinhos,
pois o que acontece é que os leitores desse gênero, em sua maioria, aprendem a ler quadrinhos
quando crianças e preservam o hábito quando se tornam adultos. Se a quantidade dos quadrinhos
nas bancas continuar a diminuir, como se formará o futuro leitor de quadrinhos de livrarias?
É possível que os quadrinhos publicados para adultos deixem de ser relacionados a outras
HQs e passem a ser classificados em outros gêneros artísticos, como a pintura ou a literatura?
Existe uma grande quantidade de obras literárias sendo adaptadas para as HQs. São produzidas,
em álbuns com acabamento gráfico de luxo, adaptações em quadrinhos de obras literárias como
O Alienista, de Machado de Assis, Em Busca do Tempo Perdido, de Proust e a essencial versão
ilustrada do livro hebraico do Gênesis, segundo o subversivo quadrinhista Crumb, entre muitas
outras. A forma como esse tipo de trabalho é impresso eleva o preço da HQ, o que torna o
produto consumível apenas por leitores que tenham o poder aquisitivo necessário para comprá-lo.
As HQs publicadas para leitores adultos, portanto, não são classificadas somente pelo “conteúdo
intelectual”, mas, também, pelo alto custo no mercado.
As formas de leitura são afetadas pelas mudanças que ocorrem no contexto histórico e
social, pois, segundo Cortina (2004, p.163): “[...] o contexto pode implicar uma mudança no
critério tipológico de um texto.”. Em 1978, o quadrinhista Eisner publicou a HQ A Contract with
God, que foi classificada como Graphic Novel (romance gráfico). O termo Graphic Novel passou
a ser usado para classificar as HQs autorais publicadas pela indústria norte-americana, como é o
caso das famosas Graphic Novels Watchmen, de Moore e The Dark Knight Returns, de Miller. A
mudança tipológica das HQs afetou a produção da indústria e alterou a relação entre autores de
quadrinhos e público consumidor de forma radical. A indústria de HQs passou a publicar
trabalhos mais elaborados, com interferência em outros gêneros discursivos (como a literatura).
83
É prática dos historiadores – incluindo este – tratar os fatos das artes, por mais
óbvias e profundas que sejam suas raízes na sociedade, como de algum modo
separáveis de seu contexto contemporâneo, como um ramo ou tipo de atividade
humana sujeito às suas próprias regras, e capaz de ser julgado como tal.
Contudo, na era das mais extraordinárias transformações da vida humana até
hoje registradas, mesmo esse antigo e conveniente princípio de estruturar um
estudo histórico se torna cada vez mais irreal. Não apenas porque as fronteiras
entre o que é e o que não é classificável como “arte”, “criação” ou artifício se
tornaram cada vez mais difusas, ou mesmo desapareceram completamente, ou
porque uma escola influente de críticos literários no fin-de-siècle julgou
impossível, irrelevante e não democrático decidir se Macbeth, de Shakespeare, é
melhor ou pior que Batman, mas também porque as forças que determinavam o
que acontecia com as artes, ou o que os observadores anacrônicos teriam
chamado por esse nome, eram esmagadoramente exógenas. Como seria de
esperar numa era de extraordinária revolução tecnocientífica, eram
predominantemente tecnológicas.
literário é sua própria estrutura verbo-visual, que a difere da estrutura verbal dos textos literários,
como já foi dito no terceiro tópico do segundo capítulo. É preciso entender que as HQs se
definem por uma estrutura sincrética e, se possuem um “valor artístico”, é devido à organização
dos elementos específicos de sua linguagem e não à sua relação com a literatura. A comparação
entre HQ e literatura é injusta porque supõe que os quadrinhos precisam estar relacionados a
elementos literários para adquirirem estatuto de “arte”, mas é a própria linguagem sincrética das
HQs que as distingue como um tipo singular de texto.
Qual seria o fator determinante na classificação de Sandman como uma HQ produzida para
adultos? Como se define a noção de adulto na sociedade contemporânea?
A noção de adulto, na primeira metade do século XX, era determinada pela predominância
da família tradicional na sociedade ocidental. Na família tradicional, cujos valores eram
patriarcais, o estilo de vida dos mais velhos predominava, segundo Hobsbawm (1999, 319):
[...] até a década de 1970 o mundo do pós-guerra era na verdade governado por
uma gerontocracia, em maior medida do que na maioria dos períodos anteriores,
sobretudo por homens – dificilmente por mulheres ainda – que já eram adultos
no fim, ou mesmo no começo, da Primeira Guerra Mundial.
Inverteram-se os papéis das gerações. [...] Passou a existir uma cultura jovem
global.
[...] o uso de drogas era por definição uma atividade proscrita, e o próprio fato
de a droga mais popular entre os jovens ocidentais, a maconha, ser
provavelmente menos prejudicial que o álcool e o tabaco tornava o fumá-la
(tipicamente uma atividade social) não apenas um ato de desafio, mas de
superioridade em relação aos que a proibiam. Nas loucas praias dos anos 60
americanos, onde se reuniam os fãs de rock e estudantes radicais, o limite entre
ficar drogado e erguer barricadas muitas vezes parecia difuso. (HOBSBAWM,
1999, p. 327)
As revoluções culturais da década de 1960 – tanto a revolução hippie nos Estados Unidos
quanto o movimento estudantil de Maio de 1968 na França – marcam o período em que ser jovem
não é mais uma fase em que o indivíduo se prepara para ser adulto, pois a juventude passa a ser o
momento crucial do desenvolvimento humano. Os mitos da cultura jovem (James Dean, Jimi
Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, etc.) morreram antes dos trinta anos de idade, pois, de
acordo com os valores emergentes da revolução cultural, nega-se “[...] humanidade plena a
qualquer geração acima dos trinta anos de idade [...]” (HOBSBAWM, 1999, p. 318). Nesse
contexto, os produtos culturais amplamente consumidos pela juventude – HQs, rock’n’roll,
cinema, etc. – passam por transformações em expressão e conteúdo. É na década de 1960 que R.
Crumb produz a HQ Zap Comix, com histórias que criticam os valores tradicionais da família
norte-americana, esta revista é consumida pela juventude hippie de Haight-Ashbury Street, em
San Francisco. O quadrinhista europeu Gotlib, nesse mesmo período, submete suas personagens a
cenas de exposição sexual caricaturadas, para chocar os valores tradicionais. I. Nahoum, ao tratar
da questão da revolução cultural, no segundo volume de Cultura de Massas no Século XX, de
Morin (2006 p. 132 e 134), considera que
23
Esse texto foi citado no início das considerações finais e é usado novamente para retomar o raciocínio.
88
histórico no qual a HQ surgiu. A cultura do final do século XX e início do século XXI é uma
cultura que emerge de uma época de grandes transformações. A irrupção de novidades culturais
requer o desenvolvimento de novas técnicas analíticas para a compreensão da realidade histórica
e cultural. É a partir dessa reflexão que se procuram examinar novos tipos de textos e novos
acontecimentos, que precisam ser explicados. É necessário analisar a linguagem sob diversas
perspectivas e entender que há muitos objetos que ainda não foram esclarecidos.
Compreende-se, ao tratar-se da significação, que a realidade é estabelecida pelo sentido que
é atribuído ao mundo por meio da linguagem.
91
REFERÊNCIAS
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FLOCH, Jean-Marie. Une Lecture de Tintin au Tibet. Paris: Presses Universitaires de France,
1997.
FRANCO, E. HQtrônicas: do suporte papel à rede internet. São Paulo: Anablume, 2008.
GREIMAS, A. J.; FONTANILLE, J. Semiótica das Paixões. Dos estados de coisas aos estados de
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HOBSBAWM, E. Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
93
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MORIN, E. Cultura de massas no século XX. O Espírito do Tempo– volume 2: Necrose. Rio de
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PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica Visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto,
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TEIXEIRA, L. Station Bourse: o que os olhos não viram. In: CORTINA, A.; MARCHEZAN, R.
C. Razões e sensibilidades: a semiótica em foco. Araraquara: FCL-UNESP Laboratório Editorial;
São Paulo: Cultura Acadêmica, 2004.
95
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BAYARD, J. P. História das lendas. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1957.
GONÇALO JUNIOR. Livrarias em alta; bancas em baixa. Cult, São Paulo: Bregantini, n.111, p.
44-45, 2007.
PATATI, C.; BRAGA, F. Almanaque dos quadrinhos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
96
ANEXOS
97
ANEXO B – Perpétuos
124
ANEXO F - Hamlet