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doi: http://dx.doi.org/10.

5016/DT000617877

unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA


“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP

RUBENS CÉSAR BAQUIÃO

SONHOS E MITOS: LEEIITTUURRAA SEEM


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MAAN
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ARARAQUARA – SP.
2010
1

RUBENS CÉSAR BAQUIÃO

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EM TOS: LLEEIITTUURRAA SSEEM
MIT MIIÓ
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CA DEE S
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MAAN
N

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da
Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara,
como requisito para obtenção do título de Mestre em
Lingüística.

Linha de pesquisa: Estrutura, organização e


funcionamento discursivos e textuais.

Orientadora: Profa. Doutora Renata Coelho


Marchezan.

Bolsa: CAPES

ARARAQUARA – SP.
2010
Baquião, Rubens César
Sonhos e mitos: leitura semiótica de Sandman / Rubens César Baquião
– 2010
155 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa) –
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus
de Araraquara
Orientador: Renata Coelho Marchezan

l. Mitologia. 2. Cultura popular. 3. Semi-simbolismo.


4. Semiótica tensiva. I. Título.
2

RUBENS CÉSAR BAQUIÃO

SOONHOS EE MIITOOSS: LEIITUURAA SEEM


MIÓ
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CAAD
DEE
SAANNDDMMAAN
N

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da
Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara,
como requisito para obtenção do título de Mestre em
Lingüística.

Linha de pesquisa: Estrutura, organização e


funcionamento discursivos e textuais.
Orientadora: Renata Coelho Marchezan.
Bolsa: CAPES.

Data da defesa: 26/02/2010

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:

Presidente e Orientadora: Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan


Universidade Estadual Paulista

Membro Titular: Prof. Dr. Arnaldo Cortina


Universidade Estadual Paulista

Membro Titular: Prof. Dr. Ivã Carlos Lopes


Universidade de São Paulo

Local: Universidade Estadual Paulista


Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
3

À Maria Adélia Baquião, minha “heróica” mãe, à Jane de Fátima Baquião,


minha irmã, e aos amigos que estiverem presentes no decorrer deste
trabalho.
4

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Renata Coelho Marchezan, cujo apoio e, principalmente, confiança, foram
essenciais no desenvolvimento desse trabalho;
À minha amiga Luciane de Paula, que me iniciou nos trabalhos acadêmicos;
Ao professor Arnaldo Cortina, que possibilitou o surgimento desse trabalho em sua disciplina;
Aos meus colegas do grupo de estudos CASA (Cadernos de Semiótica Aplicada), que, de várias
maneiras, incentivaram meu trabalho;
À agência CAPES, pela bolsa fornecida para a realização da pesquisa.
5

“Raciocínio sistemático é algo sem o qual nós, seja como espécie ou como
indivíduo, não podemos passar. Mas creio que tampouco poderemos
prescindir da percepção direta – e quanto menos sistemática melhor – dos
mundos interior e exterior que nos serviram de berço, para que possamos
preservar a sanidade mental. Esta realidade objetiva possui um sentido
infinito que ultrapassa toda a compreensão e, no entanto, permite ser direta
e, de certa forma, totalmente percebida.”

Aldous Huxley (1985, p. 49)


6

RESUMO

Esta dissertação visa compreender os sistemas de significação da mídia popular contemporânea.


São destacados, como corpus, textos sincréticos produzidos pela indústria cultural norte-
americana: Comic books (chamados de histórias em quadrinhos – HQs – no Brasil). Como a
proposta é examinar textos que apresentam o plano de expressão verbal conjugado ao plano de
expressão visual (textos sincréticos), o arcabouço teórico baseia-se na teoria Semiótica francesa
proposta por A. J. Greimas, uma vez que ocorrem desenvolvimentos consideráveis nos estudos
semióticos de textos visuais, realizados a partir da teoria greimasiana. Percebe-se que as HQs, em
sua maioria, continham temas infantis e que hoje existem várias HQs direcionadas para o público
adulto. Com o objetivo de entender a estrutura e o contexto de produção das HQs produzidas para
adultos destaca-se a série Sandman (que é produzida para leitores adultos) para análise. As
personagens da série são figurativizações de mitos da Antigüidade Clássica. A dissertação
pretende estudar a estrutura narrativa e discursiva do texto, e também a figuratividade e as
categorias semi-simbólicas e tensivas no plano de expressão visual. Será discutida a
intertextualidade que há entre a série Sandman e a literatura. Este trabalho também tenciona
entender como os mitos da Antigüidade, com toda sua carga de significados, são projetados em
simulacros passionais e reconstruídos pela indústria cultural contemporânea. A respeito dos
mitos, é possível formular uma configuração semântica de natureza patêmica que instaura uma
nova mitologia e influi tanto no campo cognitivo quanto no campo afetivo do leitor.

Palavras – chave: semi-simbolismo; semiótica tensiva; cultura popular; mitologia.


7

ABSTRACT

This dissertation intends to comprehend the systems of signification of the contemporary cultural
industry about the point of view of greimasian semiotic theory. The objects selected, as corpus,
are the syncretic texts produced for the north-american cultural industry: Comic books. The
propose is to examine texts that presents the verbal plan of expression united with the visual plan
of expression (syncretic texts), the theory choosed are the French semiotic propose by A. J.
Greimas, because the studies about visual texts, realized for the greimasian theory, are in great
development. The comic books, in great part, are characterized by infantile themes, but,
nowadays, there are many comic books produced for mature readers. With the objective of to
understand the structure and the production context of the comic books produced by mature
readers, this work detaches, as corpus, the Sandman series (produced for mature readers), to the
analysis. The characters of the series are figurative creations of myths of Classical Antiquity. The
dissertation intends to study the narrative and the discursive structure of the text, and also the
figurativity and the semi-symbolic categories and the tensive semiotics concepts in the visual
plan of expression. Will be discussed the intertextuality between the Sandman series and the
literature. This work aims to understand how the ancient myths, with all their content of
meanings, are projected in passional simulacrums and reconstructed for the contemporary
cultural industry. Concerning the myths, is possible to formulate a semantic configuration of
passional nature that establishes a new mythology and influences in the cognition dimensions and
also in the affection dimensions of the reader.

Key-words: semi-simbolism; tensive semiotics; pop culture; mythology.


8

LISTA DE ESQUEMAS

Esquema 1 Esquema da decadência p.29


Esquema 2 Esquema da ascendência p.30
Esquema 3 Esquema da amplificação p.30
Esquema 4 Esquema da atenuação p.31
Esquema 5 Práxis enunciativa e semiosfera p.79
9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................10

1 SIGNO, SIGNIFICAÇÃO E DISCURSO.............................................................................. 17


1.1 Figuratividade.........................................................................................................................31
1.2 Mito..........................................................................................................................................36
1.3 Semi-simbolismo.................................................................................................................... 41
1.4 A estrutura da linguagem das histórias em quadrinhos.....................................................46

2 PACTO COM O SONHO........................................................................................................ 50


2.1 Diálogo com os deuses........................................................................................................... 53
2.2 Os sonhos do bardo inglês......................................................................................................59
2.3 Fadas, poetas e uma noite de verão.......................................................................................62
2.4 Despertar.................................................................................................................................69

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................... 81

REFERÊNCIAS........................................................................................................................... 91

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA………………………………………….....……….......….95

ANEXOS........................................................................................................…............................96
ANEXO A – Men of Good Fortune.................................................................….........................97
ANEXO B – Perpétuos...............................................................................................................123
ANEXO C – A Midsummer Night’s Dream...............................................................................125
ANEXO D – Livros da Magia.....................................................................................................151
ANEXO E – The Wake...............................................................................................……........153
ANEXO F – Hamlet...................................................................................................….............155
10

INTRODUÇÃO

Esta dissertação visa analisar os sistemas de significação da mídia popular e destaca as


histórias em quadrinhos (HQs) contemporâneas como objeto. Como a proposta é examinar textos
que apresentam o plano de expressão verbal conjugado ao plano de expressão visual (textos
sincréticos), o arcabouço teórico baseia-se na teoria semiótica da significação proposta por A. J.
Greimas, uma vez que ocorrem desenvolvimentos consideráveis nos estudos semióticos de textos
visuais, realizados a partir da teoria greimasiana.
As HQs surgiram entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Nesse
período de emergência, os quadrinhos passaram a circular em jornais onde dividiram espaço com
várias notícias. Em seus primeiros anos as HQs eram caracterizadas pelo humor e não existia uma
indústria especializada nesse tipo de publicação. Mas as mudanças que ocorrem na produção e
veiculação da chamada cultura de massa são visíveis. Quando E. Morin (1969, p. 40-41) refletiu
sobre a natureza da cultura popular, na década de 1960, considerou que “[...] a grande imprensa
para adultos está impregnada de conteúdos infantis (principalmente a invasão das histórias em
quadrinhos).”
Na primeira década do século XX, foi publicada a HQ Little Nemo in Slumberland, criada e
desenhada pelo norte-americano Winsor McCay. Essa HQ, que surgiu em 1905, é considerada
como uma das mais inovadoras na história desse tipo de texto. Além de usar elementos do art-
noveau, McCay enriqueceu a linguagem das HQs com enquadramentos sofisticados e com a
utilização de ângulos e perspectivas que só surgiriam posteriormente no cinema. Little Nemo in
Slumberland foi publicada em suplementos dominicais de jornais norte-americanos. A página
dominical é a primeira forma como foram publicadas as HQs modernas: os autores dispunham de
uma página para apresentar uma HQ, que continha uma história completa ou apenas um capítulo.
Na década de 1930 surgiu, nos Estados Unidos – o primeiro grande centro produtor de
quadrinhos no mundo – a grande indústria de HQs. A partir dessa época, os quadrinhos passaram
a ser publicados em revistas especializadas, mas continuavam a dividir espaço com reportagens e
outras matérias em diversos jornais. A produção da indústria norte-americana especializada em
HQs estabelece-se com a criação, em 1935, da empresa New York Company. Essa editora é
rebatizada com o nome de National Allied Publishing e publica New Fun – The Big Comic
Magazine 1, reconhecida como a primeira revista da futura DC Comics, que viria a ser uma das
11

maiores editoras de quadrinhos e, ainda na década de 1930, lançaria dois dos maiores ícones já
criados para as HQs: Superman e Batman. Essas personagens, cujas histórias se desenvolveram
no decorrer da Segunda Guerra Mundial, estão carregadas de significados de caráter heróico-
nacionalista. W. Eisner, artista que participou da criação da indústria de quadrinhos na década de
1930, acreditava que os super-heróis surgiram por causa da difusão das idéias de Hitler. O livro
Mein Kampf, escrito pelo líder nazista, fora publicado nos Estados Unidos em 1935 e, em seu
conteúdo, defendia a teoria dos super-heróis. Segundo W. Eisner (1975, p. 2):

Era uma época em que todo tipo de solicitações e de idéias novas chegava de
todos os lugares ao mesmo tempo. É o que chamamos de cultura de massa: as
pessoas não percebem que diversas coisas diferentes acontecem
simultaneamente e as influenciam. [...] Era um estímulo sem igual para os
adolescentes. Achavam que também eles poderiam vencer da noite para o dia
como políticos, astros de cinema, boxeadores [...] E esse conjunto fez com que
os novos super-heróis funcionassem. O personagem estilo Superman diz: “Não
só eu te salvo a vida instantaneamente, como também vou acertar tudo que
estiver errado.” E assim uma geração inteira foi educada num clima em que as
coisas todas se resolviam de um golpe só.

Morin (1969, p. 41) vislumbrava uma diluição nas barreiras de faixa etária em relação ao
consumo popular: “Assim, uma homogeneização da produção se prolonga em homogeneização
do consumo que tende a atenuar as barreiras entre as idades.” No início do século XXI percebe-se
que a homogeneização visualizada por Morin se encontra em um estágio no qual os temas
adultos, infantis, masculinos e femininos se mesclam de forma complexa enquanto existem
subdivisões específicas para cada setor etário. Percebe-se que as HQs na década de 1960
continham, em sua maioria, temas infantis, e que hoje existem várias HQs direcionadas para o
público adulto. Essa mudança está relacionada à estruturação narrativa desse tipo de texto
sincrético. Com base nessa reflexão, esta dissertação visa analisar especificamente os quadrinhos
publicados para leitores adultos.
Existem muitos quadrinhos publicados para adultos e isso torna necessária a escolha de uma
única HQ, produzida para o público adulto, como corpus. HQs produzidas para adultos existem
desde a década de 1960, é possível citar autores como o norte-americano R. Crumb, criador de
personagens como Fritz the Cat, que se tornou um ícone da contracultura. Esse mesmo autor
influenciou quadrinhistas brasileiros, como Angeli, na criação de personagens como Rê Bordosa
e Bob Cuspe e também no uso de uma linguagem contraventora. Existem publicações essenciais
12

de HQs produzidas no Brasil e que tinham o público adulto como alvo: revistas como Chiclete
com banana e Circo, por exemplo. Destaca-se, também no cenário brasileiro, o trabalho do
quadrinhista Lourenço Mutarelli, que trata de temas profundos da condição humana em um estilo,
ao mesmo tempo, debochado e compassivo.
Há trabalhos europeus que foram essenciais no desenvolvimento estético e temático da
linguagem das HQs, como Barbarella, do francês Jean Claude Forest, e Valentina, do italiano
Guido Crepax, ambos criados na década de 1960, enfatizam principalmente o erotismo.
É preciso destacar a publicação de uma revista francesa que é reconhecida como uma das
mais importantes na história das HQs para adultos: a Métal Hurlant. Essa revista, publicada em
1975 pelos artistas Giraud, Druillet, Dionnet e Farkas, é responsável por situar a linguagem das
HQs em um patamar mais elevado de qualidade. A contribuição desses autores é percebida tanto
na produção de suas histórias e desenhos quanto no material (papel couché e formato grande) no
qual a revista, hoje extinta, era impressa. Os desenhistas Giraud (também conhecido pelo
pseudônimo de Moebius) e Druillet revolucionaram a linguagem dos quadrinhos europeus (e,
conseqüentemente, mundiais, depois da publicação em 1977 da versão norte-americana da Métal
Hurlant: a revista Heavy Metal) ao criarem histórias que tinham como base a ficção científica e a
fantasia, sempre com elementos eróticos. Moebius e Druillet produziram trabalhos de vanguarda
utilizando técnicas da pintura, serigrafia e fotografia para narrar histórias, muitas vezes
psicodélicas, ambientadas em universos alienígenas oníricos e lisérgicos. A Métal Hurlant, ao
lado da Zap Comix, revista norte-americana criada por R. Crumb na década de 1960, são HQs
responsáveis por definir a noção de quadrinhos para adultos porque inovaram em conteúdo e
expressão a estrutura desse tipo de texto.
Uma grande mudança nas HQs para adultos aconteceu durante a década de 1980, dentro do
mercado norte-americano, a partir de obras publicadas pela editora DC Comics. Os quadrinhistas
Frank Miller e Alan Moore produziram HQs para adultos sem se aterem ao estilo humorístico ou
erótico que predominava nos quadrinhos adultos até então. Miller escreve a obra Batman: The
Dark Knight Returns, uma releitura da história de Batman, na qual a personagem enfrenta a
própria decadência e encara suas psicopatias. Moore escreve Watchmen, mini-série que é
publicada na mesma época de Batman: The Dark Knight Returns e cuja narrativa é uma
desconstrução das histórias tradicionais de super-heróis. Além de fazer um uso inovador da
técnica narrativa em quadrinhos, Moore explora questões políticas de sua época, como a Guerra
13

Fria, e também se apóia em conceitos científicos, como a teoria matemática do caos, no


desenvolvimento de seu texto. A maneira como esses autores trabalharam com os super-heróis –
personagens amplamente consumidas na indústria cultural – é semelhante ao trabalho dos
pintores da pop art, que reproduziram ícones da sociedade de consumo norte-americana. Ao
pensar nas escolas de arte da sociedade ocidental contemporânea, o historiador E. Hobsbawm
(1999, p. 496) considera que

As imagens que se tornaram ícones de tais sociedades eram as das diversões e


consumo de massa: astros e latas. Não surpreende que na década de 1950, no
coração da democracia de consumo, a principal escola de pintores abdicasse
diante de fabricantes de imagens tão mais poderosas que a arte anacrônica. A
pop art (Warhol, Lichtenstein, Rauschenberg, Oldenburg) passava o tempo
reproduzindo, com tanta exatidão e insensibilidade quanto possível, os
badulaques visuais do comercialismo americano: latas de sopa, bandeiras,
garrafas de coca-cola, Marilyn Monroe.

Os quadrinhistas Moore e Miller se apropriaram de ícones da sociedade consumista


ocidental, como Superman e Batman, e os redefiniram a partir de uma leitura crítica. É
importante salientar que esse trabalho de releitura de super-heróis ocorreu no interior da indústria
de HQs norte-americana. A contribuição desses autores foi introduzir conceitos inovadores no
imenso mercado norte-americano de quadrinhos. Como a indústria norte-americana é uma das
mais lidas em todo o mundo, esses trabalhos tiveram enorme repercussão e influenciaram vários
outros artistas e também outras mídias, como o cinema. Os trabalhos de Miller e Moore foram
publicados em formato de luxo e com destaque para o nome do autor, mais que da personagem,
isso consolidou a produção dos quadrinhos de autor na mídia mundial. Na introdução da terceira
parte de sua obra Incal, publicada pela primeira vez em 1988, o artista francês Moebius (2006, p.
3) reflete sobre a produção das HQs autorais norte-americanas:

Acredito que muitas novidades estão acontecendo nas revistas em quadrinhos


nos Estados Unidos, mas acho que é apenas o começo. No dia em que pessoas
do calibre de, digamos, um Arthur Miller, um Charles Bukowsky ou qualquer
um com esse tipo de talento, entrarem no campo dos quadrinhos, então nós
veremos coisas incríveis. Isso ainda não aconteceu, mas acho que acontecerá.
Nós, recentemente, vimos o surgimento de uma nova geração de criadores, que
começaram a tomar consciência de que os quadrinhos, como uma mídia, podem,
realmente, sustentar um material de altíssima qualidade. Mas porque isso é um
fenômeno novo nos Estados Unidos, podemos dizer que eles ainda se sentem
desconfortáveis com relação ao assunto. [...] Na Europa, no final dos anos 60 e
14

no começo dos anos 70, nós experimentamos o mesmo fenômeno, mas ele
ocorreu muito rapidamente, pois era um mercado bem menor, com, acho eu,
menos formalidades estabelecidas dentro dele. Os EUA são um país imenso e
sinto que as pessoas lá são, geralmente, mais atenciosas com o sistema. Mas
quando elas despedaçam as coisas, elas fazem isso pra valer. Nesse dia, nós
começaremos a ver algumas coisas incríveis.

Depois do sucesso editorial e crítico do trabalho de Moore e Miller, a editora DC Comics,


cuja única grande rival era a Marvel Comics, decidiu investir nos quadrinhos para adultos e
começou a procurar escritores talentosos para produzi-los. O trabalho de quadrinhistas ingleses,
como Moore, atraiu a atenção dos editores norte-americanos no final da década de 1980. Entre
esses novos autores britânicos, um dos que mais se destacam é Neil Gaiman e sua série Sandman,
produzida e impressa para o público adulto1; ou seria aquilo que Morin chamou de “adulto
acriançado”2? Essa questão será esclarecida nas considerações finais dessa dissertação.
U. Eco analisou vários textos da indústria cultural na década de 1960, incluindo as HQs
Steve Canyon, Superman e Charlie Brown. Eco (1993, p. 19) escreveu sobre os intelectuais que
recusavam o estudo de objetos da indústria cultural (chamados de apocalípticos) e sobre aqueles
que procuravam entender os produtos culturais da indústria (chamados de integrados):

O que [...] se censura ao apocalíptico é o fato de jamais tentar, realmente, um


estudo concreto dos produtos e das maneiras pelas quais são eles, na verdade,
consumidos. O apocalíptico não só reduz os consumidores àquele fetiche
indiferenciado que é o homem-massa, mas – enquanto o acusa de reduzir todo
produto artístico, até o mais válido, a puro fetiche – reduz, ele próprio, a fetiche
o produto da massa. E ao invés de analisá-lo, caso por caso, para fazer dele
emergirem as características estruturais, nega-o em bloco. Quando o analisa, trai
então uma estranha propensão emotiva e manifesta um irresoluto complexo de
amor-ódio – fazendo nascer a suspeita de que a primeira e mais ilustre vítima do
produto de massa seja, justamente, o seu crítico virtuoso.

Compreende-se a necessidade de estudar – sem pré-concepções – textos produzidos pela


indústria cultural e, com base nessa reflexão, esta dissertação destaca a série Sandman para
análise. A série foi publicada em revistas mensais entre os anos de 1988 e 1996. A editora DC

1
A série, publicada pelo selo Vertigo, divisão da editora norte-americana DC Comics, tem a seguinte frase impressa
nas capas: Suggested for mature readers (sugerido para leitores adultos – tradução nossa).
2
Em Cultura de Massas no século XX, diz Morin (1969, p. 39): “Pode-se dizer que a cultura de massa, em seu setor
infantil, leva precocemente a criança ao alcance do setor adulto, enquanto em seu setor adulto ela se coloca ao
alcance da criança. Esta cultura cria uma criança com caracteres pré-adultos ou um adulto acriançado?”
15

Comics, devido em grande parte ao sucesso de Sandman, criou o selo Vertigo, que só publica
HQs de caráter adulto. O Brasil foi o primeiro país de língua não inglesa a publicar Sandman.
Hoje, a série é reeditada em aproximadamente quarenta idiomas em dez volumes encadernados
produzidos com material de luxo. Os primeiros volumes encadernados de Sandman publicados
pela editora Conrad, a partir de 2005, no Brasil, esgotaram em menos de três anos após o
lançamento. Mesmo com o preço em torno de R$65,00 a R$95,00, quantia alta para os padrões
brasileiros, os volumes encadernados já se tornaram raridade entre os colecionadores do gênero.
É curioso o fato de a série ter ganhado prêmios que antes eram específicos da literatura de
ficção, como o World Fantasy Award, por exemplo. Longe de avaliar a relevância do prêmio, o
que realmente importa é compreender a maneira como as HQs (a série Sandman em especial)
invadem outros domínios, como o da literatura. Há muitas adaptações de obras literárias para os
quadrinhos, mas o que esta dissertação pretende analisar é a forma como as HQs podem estruturar
um discurso que se relaciona a elementos da literatura universal. Resta saber quais as
conseqüências que decorrem dessa relação entre as HQs e a literatura.
Como a série completa é longa serão destacadas, como corpus, duas histórias e uma
ilustração. As histórias se chamam Men of Good Fortune e A Midsummer Night’s Dream (HQ
vencedora do prêmio literário World Fantasy Award em 1991) e foram publicadas,
respectivamente, em Sandman: The Doll’s House e em Sandman: Dream Country. Essas
histórias foram escolhidas por conterem elementos que caracterizam toda a série, que foi
publicada em 75 edições e sempre foi roteirizada por Gaiman, mas desenhada por vários artistas.
A ilustração destacada se chama The Wake e foi publicada no último volume da série.
O primeiro capítulo da dissertação contém a discussão teórica dos conceitos semióticos que
serão utilizados na análise do corpus. Serão discutidas as bases da semiótica greimasiana, de F.
Saussure a L. Hjemslev, o percurso gerativo de sentido proposto por Greimas e o atual
desenvolvimento da semiótica tensiva, proposta por C. Zillberberg e J. Fontanille. Ainda no
primeiro capítulo será exposto o conceito de figuratividade, o conceito de mito, alicerçado na
definição de Roland Barthes, o conceito de semi-simbolismo, segundo J. M. Floch, e também
será apresentada a estrutura da linguagem das HQs.
O segundo capítulo compreende a análise das HQs Men of Good Fortune e A Midsummer
Night’s Dream. Serão analisados, principalmente, os níveis narrativo e discursivo dessas histórias
e será destacada a intertextualidade que há entre as HQs de Gaiman e textos da literatura
16

universal, como Hesíodo, Homero, Ovídio, Camões e Shakespeare. As análises também serão
conduzidas com base na semiótica plástica proposta por Floch. No último tópico do segundo
capítulo será analisada a ilustração The Wake, publicada no volume homônimo. A análise, além
do conceito de semi-simbolismo, será também baseada na semiótica passional e na semiótica
tensiva.
Depois da análise do corpus, será possível tirar conclusões a partir de reflexões sobre o
contexto histórico e social no qual o objeto foi produzido. As considerações que E. Hobsbawm
faz acerca das transformações na indústria cultural e na sociedade após a década de 1950, em Era
dos Extremos, ajudam a entender o impacto das HQs entre o público adulto no final do século
XX. As reflexões do sociólogo E. Morin, presentes no livro Cultura de Massas no século XX,
também são valiosas nas considerações finais.
A importância de se realizar um estudo dos sistemas de significação das HQs ocorre porque
são uma forma poderosa de veiculação de valores. Ao considerar que a cultura industrial é
constituída, em grande parte, por textos sincréticos, não se pode negligenciar o impacto
discursivo das HQs na sociedade de consumo contemporânea. Pretende-se, portanto, neste
trabalho, analisar a estrutura desses objetos textuais que surgiram no início do século XX,
caracterizados como textos infantis, e entender como se desenvolveram, no final do século XX,
as HQs produzidas para adultos.
17

1 SIGNO, SIGNIFICAÇÃO E DISCURSO

F. Saussure estabeleceu os princípios teóricos que formam a base da Lingüística


contemporânea. Ele obteve sucesso na proposta de criar uma teoria científica capaz de descrever,
por meio da própria linguagem, a estrutura de todas as línguas. A obra basilar da Lingüística
moderna é o Curso de Lingüística Geral. Este livro, publicado em 1916, não foi escrito por
Saussure, que morreu em 1913, trata-se de uma compilação do pensamento do teórico feita pelos
seus discípulos. Atualmente, com a descoberta de textos escritos pelo próprio Saussure, muitas
questões são esclarecidas no que diz respeito ao trabalho do criador da Lingüística moderna,
reconhecido como o “pai do Estruturalismo”. De qualquer maneira, diversas linhas de pesquisa
que se desenvolveram no século XX (não só na Lingüística, mas também na Antropologia e na
Psicanálise) baseiam suas teorias no Curso de Lingüística Geral, e esse fato atesta sua
importância acadêmica.
Um dos conceitos teóricos fundamentais apresentados no Curso de Lingüística Geral é o
conceito de signo lingüístico. Segundo Saussure (1975, p. 80):

O signo lingüístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma
imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a
impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o
testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegarmos a chamá-
la “material”, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da
associação, o conceito, geralmente mais abstrato. O caráter psíquico de nossas
imagens acústicas aparece claramente quando observamos nossa própria
linguagem. Sem movermos os lábios nem a língua, podemos falar conosco ou
recitar mentalmente um poema.

A língua é um sistema de signos, e todo signo se estrutura pela união entre um significante
(imagem acústica) e um significado (conceito). Assim, entendemos que o significado (conceito)
da palavra cavalo está ligado a diversos significantes (imagens acústicas). As palavras cavalo,
cheval ou horse (português, francês e inglês) são formas gráficas com diferentes imagens
acústicas (significantes) que remetem a um mesmo conceito (significado). De forma que existem
diferentes significantes que remetem a um significado semelhante. Percebe-se que a teoria
saussuriana de signo lingüístico se aplica a todas as línguas conhecidas, pois compreendemos que
toda língua é estruturada por meio da relação entre um significante e um significado.
18

Saussure (1975, p. 82-83) também chama a atenção para o princípio de arbitrariedade do


signo lingüístico. Segundo o teórico, não existe motivação que una o significante ao significado:

Assim, a idéia de “mar” não está ligada por relação alguma interior à seqüência
de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente
bem por outra seqüência, não importa qual; como prova, temos as diferenças
entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado da
palavra francesa boeuf (“boi”) tem por significante b-ö-f de um lado da fronteira
franco-germânica, e o-k-s (Ochus) do outro. [...] o significante é imotivado, isto
é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural
na realidade.

Compreende-se que as duas faces do signo, o significante e o significado, não se


relacionam por analogia. O conceito não está vinculado à imagem acústica na formação de um
signo lingüístico. O princípio de arbitrariedade do signo é problematizado no desenvolvimento
das ciências da linguagem. As conseqüências acerca da arbitrariedade do signo serão discutidas
adiante.
Um dos principais lingüistas a dar continuidade ao trabalho de Saussure é o dinamarquês
L. Hjemslev. Sua obra Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem, publicada em 1943,
estabelece os princípios fundamentais da Glossemática (da palavra grega glossa – língua), teoria
lingüística elaborada por Hjemslev e por seu amigo H. Uldall. Hjemslev fez uso da lógica-
matemática para estabelecer uma teoria da linguagem de caráter universal, que compreende a
Lingüística como uma espécie de álgebra. Desse modo, o que importa é compreender as relações
formais entre os elementos lingüísticos no interior da estrutura da linguagem.
Entre os conceitos desenvolvidos por Hjemslev destaca-se o de função, proposto em seu
sentido lógico-matemático. Segundo o lingüista dinamarquês, uma função é a inter-relação entre
os termos que constituem todo sistema de significação, ou seja, toda semiótica. A função é
estabelecida por meio da relação entre termos chamados funtivos:

Ao mesmo tempo que adotamos o termo técnico função, desejamos evitar a


ambigüidade do uso tradicional no qual ele designa tanto a relação entre dois
termos e um ou mesmo ambos esses termos no caso em que se diz que um termo
é “função” do outro. É para eliminar essa ambigüidade que propusemos o termo
técnico funtivo e que tentamos evitar dizer, como normalmente se faz, que um
funtivo é “função” do outro, preferindo a seguinte formulação: um funtivo tem
uma função com o outro. (HJEMSLEV, 1975, p. 40)
19

Entende-se que uma função é contraída por meio da relação entre os funtivos. Hjemslev
(1975, p. 53-54) desenvolve o conceito de função semiótica e o define como a relação entre dois
funtivos: expressão e conteúdo:

Adotamos os termos expressão e conteúdo para designar os funtivos que


contraem a função em questão, a função semiótica; esta é uma concepção
puramente operacional e formal e, nesta ordem de idéias, nenhum outro
significado é atribuído aos termos expressão e conteúdo.

É a partir desses princípios que Hjemslev irá propor os dois planos da linguagem: o plano
da expressão e o plano do conteúdo, fundamentais no desenvolvimento da semiótica
greimasiana. O plano da expressão se desdobra em dois extratos: forma da expressão e
substância da expressão, assim como o plano do conteúdo também se desdobra em forma do
conteúdo e substância do conteúdo. Por exemplo:

A) O plano da expressão da palavra avião:


1) A forma da expressão é o conjunto de seus fonemas. É o recorte sonoro compreendido
pelos fonemas, que, por sua vez, fazem parte do sistema fonológico da língua.
2) A substância da expressão é o som, que se manifesta na pronúncia dos fonemas da palavra
avião. É a manifestação do som já organizado fonologicamente.

B) O plano do conteúdo da palavra avião:


1)A forma do conteúdo é a noção de avião (jato, planador, boeing, etc), que também é
transmitida pelas formas da expressão avion (francês) e airplane (inglês).
2) A substância do conteúdo é o conceito, que é materializado pelo sistema lingüístico. No
caso de avião, a substância é o conceito de “meio de transporte aéreo”, que se organiza na
forma do conteúdo.

A teoria Glossemática de Hjemslev define o signo como uma função que se contrai na relação
entre dois funtivos formais: o plano da expressão e o plano do conteúdo. É esse o conceito
lógico-matemático de função semiótica – a relação entre os funtivos expressão e conteúdo – que é
fundamental em toda significação ao constituir signos e criar efeitos de sentido.
20

Na Glossemática, as unidades da língua são os termos formais que estruturam a significação,


e não os sons e os conceitos, que são elementos extralingüísticos. É o estabelecimento dessa
metalinguagem, a idéia de que é possível compreender a linguagem por meio de um método
estrutural lógico-matemático, que preparou o caminho para o surgimento da semiótica francesa.
Greimas, lingüista lituano, se encarregou do trabalho de criar uma teoria semiótica cuja
eficácia analítica abrangesse todos os sistemas de significação. Entende-se significação como a
apreensão das relações entre os elementos da linguagem: é o ato por meio do qual o mundo faz
sentido, significa. De modo que a significação é um conceito primordial na relação entre homem
e mundo. Assim, a semiótica conceitua o texto como um conjunto formal de significação que se
manifesta em diversas substâncias da expressão: verbais, visuais, áudio-visuais, esculturais,
arquitetônicas, etc...
Como pesquisador do folclore lituano, Greimas percebeu que, subjacente às narrativas, havia
uma estrutura lógica que organizava a manifestação dos textos. Caberia à semiótica francesa
formalizar o percurso gerativo de sentido em níveis:

- Nível fundamental: no qual se situam as relações lógicas – representadas por


caracteres simbólicos – com investimento semântico mínimo;
- Nível narrativo: no qual ocorre a organização e o desenvolvimento semântico dos
elementos lógicos que estruturam a narrativa;
- Nível discursivo: no qual os níveis anteriores se manifestam temática e
figurativamente, nele se examinam os investimentos mais concretos, que são
manifestados em diversos textos: verbais, visuais, sincréticos etc. Neste nível, o
sujeito da enunciação – produtor do discurso – organiza as estruturas narrativas em
categorias discursivas de pessoa, tempo e espaço.

Segundo Greimas (1975, p. 12):

É através de uma via estreita, entre duas competências indiscutíveis – a


filosófica e a lógico-matemática –, que o estudioso de semiótica é obrigado a
conduzir sua pesquisa sobre o sentido. [...] É preciso, para satisfazer às reais
necessidades da semiótica, dispor de um mínimo de conceitos epistemológicos
explicitados que permitam ao estudioso de semiótica apreciar, quando se trata da
análise das significações, a adequação dos modelos que lhe são propostos ou que
ele constrói para si.
21

O semioticista, ao se aventurar em um terreno tão vasto, que é o da significação, deve se


orientar por meio da filosofia e da lógica-matemática para efetuar seu trabalho. O conhecimento
dos princípios científicos já estabelecidos também é fundamental para que se entenda em que
medida o modelo teórico proposto é adequado à análise de certo objeto.
Ao tomar para si a significação como campo de estudo, a semiótica precisa definir em qual
domínio epistemológico se situam os objetos a serem analisados. Em Semântica Estrutural, obra
fundamental da semiótica européia, publicada em 1966, Greimas (1976, p. 27) afirma:

A única forma de focalizar, atualmente, o problema da significação, consiste em


afirmar a existência de descontinuidades, no plano da percepção, e dos espaços
diferenciais (como o fez Lévi-Strauss), criadores de significação, sem se
preocupar com a natureza das diferenças percebidas.

Greimas salienta que, para trabalhar a significação, é preciso apreender as descontinuidades


que podem ser identificadas no campo da percepção. Entende-se por descontinuidade o momento
em que ocorre a ruptura na continuidade entre uma unidade significativa e outras unidades
relacionadas: um fenômeno é recortado do universo contínuo no qual está diretamente
relacionado a outros fenômenos. De modo que os objetos semióticos são identificados por meio
dos sentidos fisiológicos no campo da percepção, no sentido filosófico que lhe atribui a
fenomenologia. A corrente filosófica fenomenológica é fundamental no desenvolvimento da
semiótica greimasiana e é no plano da percepção que os objetos semióticos são situados.
A semiótica compreende as formas físicas, químicas e biológicas como objetos que são
percebidos pelo homem por meio de suas qualidades sensíveis. Esses objetos são compreendidos
como partes constituintes do mundo natural (Em semiótica, opõem-se línguas naturais e mundo
natural para ressaltar a anterioridade deste último em relação às línguas e aos indivíduos. Tanto
as línguas naturais quanto o mundo natural são considerados macrossemióticas). O mundo
natural interessa ao semioticista no momento em que seus objetos significam algo no universo da
linguagem, de maneira que esses objetos deixam de ser simples elementos do mundo natural e
passam a ser considerados textos. Assim, uma rocha – elemento do mundo natural – torna-se um
texto quando um escultor a trabalha e lhe concede significado, mas a própria ação da natureza
pode tornar uma rocha semelhante a uma figura cultural, o que justifica considerar esse objeto
natural como um texto.
22

Entende-se que os objetos dotados de significação são percebidos pelos sentidos fisiológicos
e podem tornar-se objetos de estudo para o semioticista, desde que o pesquisador se aproprie do
objeto discreto – isto é, em seu caráter descontínuo – e o articule ao instrumental dos conceitos
teóricos estabelecidos. A proposta de trabalhar somente com fenômenos descontínuos e objetos
discretos é um princípio estruturalista que é problematizado no desenvolvimento da semiótica.
Adiante, serão expostas as propostas semióticas que buscam ocupar-se da significação em devir e
do discurso em ato.
No nível fundamental do percurso gerativo, identifica-se a oposição entre os termos mais
simples e abstratos que estruturam a significação. Uma oposição fundamental como vida versus
morte pode ser representada pela oposição entre termos lógicos como s1 versus s2, sendo que s1
se refere à vida e s2 se refere à morte. Essa oposição semântica fundamental estrutura o sentido
de um texto, de forma que o percurso gerativo de sentido pode partir de s1 (vida) passar por não-
s1 (não-vida) e afirmar s2 (morte). Nesse caso, o sentido do texto afirma a vida em s1, nega a
vida em não-s1 e conclui ao afirmar a morte em s2. Entende-se que, nesse percurso, a morte
predomina e a vida é negada.
Ao considerar o desenvolvimento das pesquisas de Propp e Lévi-Strauss sobre a
narratividade, Greimas (1675, p. 144) teoriza uma semiótica que expõe a organização das
estruturas narrativas. O teórico lituano considera que as estruturas narrativas são essenciais na
produção dos discursos, pois a articulação dos elementos que compõem o nível discursivo ocorre
no nível narrativo. Assim, para que a semiótica estabeleça o nível discursivo é preciso que ela
formalize o nível narrativo.
Greimas (1976, p. 26) considera que a notação técnica – cifras e caracteres simbólicos –,
adotada para representar as estruturas lógicas, possibilita criar um modelo formal que manipula
os conteúdos organizados sem se identificar com eles. Desse modo, torna-se possível estabelecer
uma teoria da narrativa que descreva as articulações e transformações entre elementos lógicos
como S1 e S2 (sujeitos), O (objetos) e v (valores), que podem ser relacionados por termos como
ĺ (que indica transformação), ŀ (que significa conjunção) e U (que significa disjunção). Estes
conceitos permitem examinar, de forma lógica, a organização das estruturas narrativas. Visualiza-
se uma metalinguagem que permite trabalhar a narratividade.
23

Os termos S1, S2, e O são considerados unidades formais que ainda não receberam
investimento semântico e são chamados de actantes. O nível narrativo se desdobra em sintaxe
narrativa e semântica narrativa.
No nível da sintaxe narrativa os actantes relacionam-se em encadeamentos lógicos: em
determinada narrativa S1 (sujeito 1) transformará (ĺ) S2 (sujeito 2) ao tornar este conjunto (ŀ)
ou disjunto (U) de um O (objeto).
No nível da semântica narrativa os actantes relacionam-se com valores (v), que podem se
inscrever nos objetos. Por exemplo: Na história mítica de Sansão, herói dos judeus3, S1 (Sansão)
é um actante que está conjunto de um objeto (cabelos) que lhe fornece um valor (força). Este
enunciado de estado pode ser formalizado como: S1 ŀ Ov. O estado de conjunção é transformado
no momento em que Dalila (S2) seduz o herói e lhe corta os cabelos, privando-o da força. De
forma que S2 transforma (ĺ) S1 tornando-o disjunto (U) de um objeto valor (Ov).
No nível da semântica narrativa também ocorrem as modalizações, que são responsáveis
por modificar as relações entre os actantes. A existência modal do sujeito de estado e sua relação
com valores (v) como ódio, inveja, ciúme, etc. é denominada modalização do ser. A competência
modal do sujeito do fazer, sujeito dinâmico que se define pelos enunciados de ação4, é
denominada modalização do fazer. São previstas quatro modalidades que definem tanto a
modalização do ser quanto a modalização do fazer: o querer, o dever, o poder e o saber. Por
exemplo: Dalila é modalizada pelo querer-ser aquela que descobrirá a fonte da força de Sansão.
De forma que, no nível narrativo, os actantes desempenham papéis actanciais; na história de
Sansão, o papel actancial de S2 (Dalila) é definido pelo investimento modal querer-ser. Na
narrativa bíblica, os príncipes dos filisteus oferecem dinheiro a Dalila para que ela revela a fonte
da força de Sansão. De forma que ocorre uma modalização do ser pelo valor ambição. Ela se
apropria de um saber-fazer no momento em que descobre a fonte da força do herói que, seduzido,
revela que são os cabelos que lhe conferem tamanha força. O saber-fazer possibilita o poder-
fazer, que, neste caso, diz respeito ao ato de cortar os cabelos de Sansão. Devido a esta
modalização do fazer o herói é privado de sua força.

3
História bastante conhecida, que está presente, de forma verbal, no texto bíblico de Juízes – capítulo 13 –, e que
pode se manifestar em vários textos como o cinema, o teatro, a pintura, a música, etc.
4
Em que se encadeiam vários enunciados de estado e várias transformações.
24

O querer-ser e o saber-fazer que modalizam Dalila, tornando-a competente para realizar sua
performance na narrativa, transformam o estado de conjunção entre Sansão e seu objeto valor em
estado de disjunção. Distingue-se um PN (programa narrativo) que pode ser formalizado como:

- PN = F (função) [S2 ĺ (S1 U Ov)]

Neste PN a performance de Dalila (S2) predomina sobre a de Sansão (S1), de forma que
Dalila é o sujeito do fazer e Sansão é o sujeito do estado.
Compreende-se que em um texto em que se encadeiam vários PN ocorrem várias
transformações e circulam vários objetos e valores, de forma que a história se estrutura na ação e
nas modalizações do fazer. Ao contrário, um texto com poucas transformações entre sujeitos e
objetos, em que ocorre pouca ação, se organiza em torno do estado passional do ser.
O nível discursivo é a etapa mais superficial do percurso gerativo de sentido e é por meio da
enunciação que o nível narrativo se converte em nível discursivo. No nível do discurso ocorre
uma circulação de enunciados entre interlocutores, que são denominados enunciador e
enunciatário. O destinador da enunciação é denominado enunciador e o destinatário é
denominado enunciatário. Segundo Greimas e Courtés (2008, p. 171):

[...] o enunciatário não é apenas destinatário da comunicação, mas também


sujeito produtor do discurso, por ser a “leitura” um ato de linguagem (um ato de
significar) da mesma maneira que a produção do discurso propriamente dito. O
termo “sujeito da enunciação”, empregado freqüentemente como sinônimo de
enunciador, cobre de fato as duas posições actanciais de enunciador e de
enunciatário.

O sujeito da enunciação produz o discurso ao organizar as estruturas narrativas em categorias


de pessoa, tempo e espaço. De forma que o discurso estabelece a comunicação entre enunciador e
enunciatário. Entende-se que o sujeito da enunciação se projeta no texto e deixa marcas
lingüísticas que permitem reconstruir a enunciação. A história mítica de Sansão é compreendida
como o discurso de uma civilização do antigo oriente próximo e as categorias de pessoa, tempo e
espaço do enunciado estruturam-se segundo a linguagem de determinado sujeito da enunciação.
O discurso do mito de Sansão é enunciado, originalmente, conforme a estrutura da antiga língua
hebraica.
25

O nível discursivo compreende a manifestação temática e figurativa das estruturas narrativas.


Os temas são revestidos por figuras, elementos que tornam os temas concretos no discurso. As
figuras sugerem elementos do mundo natural, no campo da percepção, o que produz efeitos de
sentido e ilusões de realidade no discurso. Os temas não sugerem elementos do mundo natural,
pois são mais abstratos que as figuras. Por exemplo: Nas HQs do Superman percebe-se o tema do
nacionalismo norte-americano concretizado na figura do herói, cujo uniforme é colorido por duas
cores que se destacam na bandeira dos E.U.A. (azul e vermelho). O Superman é modalizado por
uma competência extraordinária, pois seus superpoderes o qualificam com um quase ilimitado
poder-fazer. O super-herói usa seus superpoderes para salvar a humanidade, o que pode ser
entendido como um discurso do poder político norte-americano de policiamento do mundo.
Segundo a teoria semiótica, o actante que acumula um papel actancial, no nível narrativo, e um
papel temático, no nível discursivo, passa a ser classificado como ator. Na história do Superman,
no nível narrativo, o actante desempenha um papel actancial no momento em que é modalizado
pelo poder-fazer e, no nível discursivo, o actante assume o papel temático do heroísmo e torna-se
um ator.
Chama-se a atenção para a importância do contexto histórico em que o discurso é produzido.
Compreende-se que tanto a estrutura narrativa da história de Sansão quanto a estrutura narrativa
da história do Superman manifestam-se em discursos heróicos, mas com diferentes percursos
temáticos e figurativos. O mito de Sansão está relacionado aos elementos discursivos específicos
do povo judeu e o herói recebe poderes do deus dessa cultura. A semiótica denomina a axiologia
positiva do discurso de euforia e nomeia a axiologia negativa de disforia. O discurso judeu
euforiza Sansão como um herói com poderes divinos e disforiza os filisteus ao retratar esse povo
como traiçoeiro e dissimulado. A história do Superman é produzida por uma sociedade industrial
capitalista e é a indústria de entretenimento norte-americana que veicula os textos sincréticos que
contam esta história. O discurso norte-americano euforiza o Superman ao investi-lo de valores
como a ética do homem do campo (o super-herói é criado por um casal de idosos em uma
fazenda no interior dos E.U.A.), de modo que um valor específico da cultura norte-americana
busca se afirmar como valor universal de um salvador da humanidade. A supremacia do poder
bélico e o valor universal da moral norte-americana são efeitos de sentido do discurso heróico em
Superman.
26

O desenvolvimento tecnológico das condições de produção de textos na contemporaneidade


possibilita uma relação entre enunciador e enunciatário de alcance cultural muito mais amplo
que na Antigüidade. A história de Sansão foi recontada em versões cinematográficas pela
indústria cultural norte-americana e circulou na mídia mundial, mas, na antiga sociedade judaica
em que surgiu, sua veiculação era restrita porque a produção material de textos era rudimentar. A
história do Superman foi produzida na primeira metade do século XX e, neste mesmo período,
circulou na mídia mundial. Mas os mitos bíblicos, como o de Sansão, são uma base cultural
muito forte e moldaram diferentes culturas, enquanto a história do Superman ainda é um
elemento cultural muito recente. Compreende-se que a passagem do tempo, juntamente com
fatores sociais e políticos, estabiliza o mito na cultura.
Esse breve apanhado do percurso gerativo de sentido mostra a semiótica em sua fase
estrutural. A semiótica estrutural faz uso de um sistema formal, sob a forma de caracteres
simbólicos, para tratar a significação em sua forma descontínua, mais fixa. No entanto, a
formalização não leva em conta as propriedades sensíveis e afetivas dos sujeitos e objetos
semióticos. Greimas e Fontanille consideram que a semiótica deve trabalhar não só objetos
discretos, mas deve também dar conta da significação em devir e do discurso em ato. No livro
Semiótica das Paixões – dos estados de coisas aos estados de alma, de 1991, Greimas e
Fontanille (1993, p. 14 e 15) ponderam:

[...] a semiótica da ação, atribuindo o status formal aos conceitos de actante e de


transformação, condição para a instauração de sua sintaxe, não fez outra coisa
senão deslocar a problemática dos investimentos semânticos, descarregando-se
sobre a noção de estado. Ora, o estado, na perspectiva do sujeito que age, é ou o
resultado da ação, ou seu ponto de partida: haveria, portanto, “estado” e
“estado”, e as mesmas dificuldades ressurgem; o estado é antes de mais nada um
“estado de coisas” do mundo que se acha transformado pelo sujeito, mas é
também o “estado de alma” do sujeito competente em vista da ação e a própria
competência modal, que sofre ao mesmo tempo transformações. Com base
nessas duas concepções do “estado”, reaparece o dualismo sujeito/mundo.
Apenas a afirmação de uma existência semiótica homogênea – tornada tal pela
mediação do “corpo que sente” – permite enfrentar essa aporia: graças a essa
transmutação, o mundo enquanto “estado de coisas” vê-se rebaixado ao “estado
do sujeito”, isto é, reintegrado no espaço interior uniforme do sujeito.

Os semioticistas consideram que os dois estados – o estado de coisas do mundo e o estado


de alma do sujeito – são unidos por meio da mediação do corpo que sente. O conceito
fenomenológico de corpo é fundamental no desenvolvimento da semiótica das paixões e da
27

semiótica tensiva, que trabalha as variações de tensão entre o sensível e o inteligível. A semiótica
retoma conceitos da fenomenologia – com base principalmente nas reflexões do filósofo
Merleau-Ponty – e o estudo da atividade sensório-motora passa a ser fundamental no
conhecimento da significação. A semiótica tensiva, desenvolvida pelos trabalhos recentes de C.
Zilberberg e J. Fontanille, se concentra no estudo da interação entre o sensível e o inteligível na
produção de sentidos. O sensível é o campo das presenças sensoriais e o inteligível é o campo do
entendimento e da compreensão. A sintaxe do discurso é um encadeamento e uma sobreposição
de atos que conjuga a dimensão da intensidade (sensível) e a dimensão da extensidade
(inteligível). As tensões entre sensível e inteligível ocorrem no campo da percepção e definem o
modo como o corpo sofre a experiência da significação. Ao tratar dos dois planos da linguagem –
plano da expressão e plano do conteúdo – Fontanille (1993, p. 14 e 15) pondera:

Os dois planos da linguagem substituem, a partir de agora, as duas faces do


signo. Sejam quais forem os nomes que se lhes dê, os dois planos da linguagem
são separados por um corpo perceptivo que toma posição no mundo do sentido,
que define, graças a essa tomada de posição, a fronteira entre o que será da
ordem da expressão (o mundo exterior) e o que será da ordem do conteúdo (o
mundo interior). É também esse corpo que reúne esses dois planos em uma
mesma linguagem. Portanto, o sensível e o inteligível estão irremediavelmente
ligados no ato que reúne os dois planos da linguagem.

Fontanille (2007, p. 44) retoma e desenvolve os conceitos de exteroceptividade,


interoceptividade e proprioceptividade a partir da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty.
A exteroceptividade é a percepção do mundo exterior, é o modo como o corpo percebe as formas
físicas e biológicas do mundo natural (plano da expressão) e a interoceptivade é o momento em
que o corpo percebe seu mundo interior: afetos, conceitos e sensações (plano do conteúdo). A
proprioceptividade é a posição do sujeito da percepção, que experimenta a significação a partir de
seu corpo próprio, que é um invólucro sensível, uma fronteira entre o domínio interior e o
domínio exterior. O corpo próprio é mais que um mediador entre a exteroceptividade e a
interoceptividade e sua atividade sensório-motora interfere na significação. O corpo percebe o
ambiente que o interpela e converte as figuras do mundo (exteroceptivas) em figuras interiores
(interoceptivas), que são equivalentes às figuras exteriores, mas que estão contaminadas pela
dimensão patêmica (proprioceptiva) do corpo sensível. Além do corpo exterior (exteroceptivo) e
do corpo interior (interoceptivo) o conceito de corpo próprio (proprioceptivo) define o momento
em que o sujeito experimenta a significação em uma instância de legítima individualidade.
28

Assim, um mesmo discurso é entendido de maneiras diferentes por vários sujeitos porque
cada um deles possui um corpo próprio que define um momento de sentido único. A
proprioceptividade é a instância em que a sensibilidade singular – individualidade corpórea – do
sujeito irá definir o sentido de um discurso.
Para que se entenda melhor o modo como a semiótica trabalha a interação entre o sensível e o
inteligível é importante discutir o conceito de presença. Segundo Fontanille (2007, p. 47):

Perceber algo – antes de conhecer esse algo como uma figura pertencente a uma
das macrossemióticas – é perceber mais ou menos intensamente uma presença.
De fato, antes de identificar uma figura do mundo natural, ou ainda uma noção
ou um sentimento, percebemos (ou “pressentimos”) sua presença, ou seja, algo
que, por um lado, ocupa uma certa posição (relativa a nossa própria posição) e
uma certa extensão e que, por outro lado, nos afeta com alguma intensidade.
Algo, em suma, que orienta nossa atenção, que a ela resiste ou a ela se oferece.

Assim, a presença é compreendida como uma articulação semiótica da percepção. A


intensidade sensorial que nos coloca em relação com o mundo, de natureza tensa, se situa no
domínio da visada. A compreensão inteligível dos fenômenos, de qualidade extensa, se
caracteriza pelo relaxamento cognitivo e se situa no domínio da apreensão. De modo que a
presença suscita duas operações semióticas no plano da percepção: a visada (intensa) e a
apreensão (extensa). Nesse sentido, os conceitos de visada e apreensão são compreendidos a
partir de um ponto de vista fenomenológico:

Como é uma tomada de posição sensível, destinada a instalar uma área de


referência, ela consiste também em uma tomada de posição sobre as grandes
dimensões da sensibilidade perceptiva: a intensidade e a extensão. No caso da
intensidade, dir-se-á que a tomada de posição é uma visada; no caso da
extensão, uma apreensão. A visada opera sobre o modo da intensidade: o corpo
próprio vai, então, em direção àquilo que nele suscita uma intensidade sensível
(perceptiva, afetiva). A apreensão opera, em contrapartida, sobre o modo da
extensão: o corpo próprio percebe as posições, as distâncias, as dimensões e as
quantidades. (FONTANILLE, 2007, p. 98)

Zilberberg e Fontanille desenvolveram esquemas que possibilitam analisar a interação


enunciativa entre a sensibilidade e a inteligibilidade, estes esquemas são uma das bases da
semiótica tensiva. Os esquemas tensivos representam as variações de tensão no campo de
presença da percepção, de forma que a significação é gerada a partir de tensões na atividade
29

sensório-motora. O domínio sensorial-afetivo (sensível) é identificado na evolução do eixo da


intensidade e o domínio racional-quantitativo (inteligível) é reconhecido no desdobramento do
eixo da extensão (este eixo também representa o desdobramento espaço-temporal). As variações
de equilíbrio entre o sensível e o inteligível podem conduzir ao aumento da tensão afetiva ou ao
relaxamento cognitivo. São teorizados quatro esquemas elementares para observar a interação
tensiva entre sensível e inteligível:

1º movimento – Esquema da decadência: Orienta-se a partir do eixo da intensidade na direção


do eixo da extensão, parte do sensível para o inteligível. Pode-se compreender esse esquema na
edição de um filme que enquadra o rosto de um ator em um close-up, para destacar um estado
emocional, e que depois amplia o campo para enquadrar o cenário e outros atores em um plano
panorâmico. Essa edição parte da intensidade, do sensível, e se desdobra na extensão, no
inteligível.

Esquema 1 – Esquema da decadência


Fonte: Fontanille (2007, p. 111)

2º movimento – Esquema da ascendência: Orienta-se a partir do eixo da extensão na direção do


eixo da intensidade, parte do inteligível para o sensível. É o contrário do exemplo anterior: seria
uma edição de filme que parte de um plano amplo, extenso, que enquadra uma paisagem e vários
atores, e se aproxima do rosto de um único ator para enquadrar um estado emocional intenso.
30

Esquema 2 – Esquema da ascendência


Fonte: FONTANILLE (2007, p. 111)

3º movimento – Esquema da amplificação: O sensível e o inteligível crescem em conjunto.


Esse movimento parte de um mínimo de intensidade e de uma extensão fraca e se desenvolve em
uma tensão máxima juntamente com o desdobramento da extensão. É o que acontece em várias
sinfonias, que se iniciam com um solo tocado de forma suave por um único instrumento e se
desenvolvem até a explosão do conjunto intenso de todos os instrumentos.

Esquema 3 – Esquema da amplificação


Fonte: FONTANILLE (2007, p. 112)
31

4º movimento – Esquema da atenuação: É o declínio geral da intensidade-sensível e da


extensão-inteligível. Tanto o sensível quanto o inteligível estão no grau mais baixo, na zona mais
tênue, esta seria a zona do apagamento das figuras, mas onde é possível surgirem novas formas
semióticas. É o caso da filosofia zen-budista, que busca a atenuação do sensível, o apagamento
dos sentidos, e também o apagamento do inteligível por meio do “não-pensar”. É também nesta
zona de apagamento que o zen-budista pode alcançar a iluminação, que seria uma nova forma
semiótica.

Esquema 4: Esquema da atenuação


Fonte: FONTANILLE (2007, p. 112)

Estes são os esquemas desenvolvidos para delimitar as variações tensivas e que formam o
esquema da práxis enunciativa, que será explicado e aplicado no quarto tópico do segundo
capítulo desta dissertação.

1.1 Figuratividade

O homem sempre representou os objetos do mundo de forma figurativa. A comunicação


escrita se desenvolveu a partir de representações em imagens de elementos do mundo natural. A
relação entre o homem e as imagens provoca reflexões filosóficas desde a Antigüidade. O
32

filósofo Aristóteles (1999, p.40) já refletia sobre os sentimentos suscitados pelas imagens há mais
de dois milênios, como se vê no seguinte trecho de sua obra Poética:

[...] temos prazer em contemplar imagens perfeitas das coisas cuja visão nos
repugna, como (as figuras dos) animais ferozes e dos cadáveres. O aprendizado
apraz não só os filósofos, mas também aos demais homens, embora a estes ele
seja menor. Se olhar as imagens proporciona deleite, é porque a quem contempla
sucede aprender e identificar cada uma delas; dirão, ao vê-la, “esse é Fulano”. Se
acontecer de alguém não ter visto o original, nenhum prazer despertará a
imagem como coisa imitada, mas somente pela execução, ou pelo colorido, ou
por alguma outra causa da mesma natureza.

É importante ressaltar que a semiótica entende que a língua não aponta para um referente do
mundo natural, já que compartilha da conceituação saussuriana de signo e não da concepção
aristotélica de signo, que considera o referente na língua. Na breve reflexão destacada acima,
Aristóteles faz interessantes observações sobre o universo das artes plásticas. O filósofo observa
que figuras como as de animais ferozes ou de cadáveres, que tendem a causar repulsa ao
observador, são revestidas de beleza ao serem recriadas por meio do trabalho artístico. Este
trabalho estético se concretiza em um plano de expressão visual que proporciona prazer ao
observador e não mais repulsa. Aristóteles também enfatiza que a imagem desperta efeitos de
sentido mesmo se o observador não conhecer o original representado, de forma que se
compreende que a imagem não remete diretamente a um objeto do mundo natural, mas sugere
elementos do mundo no campo da percepção. O que o filósofo enfatiza, é o caráter estético do
texto visual e a maneira pela qual o cromatismo transmite significados sem fazer referência direta
aos objetos do mundo. Na teoria semiótica, as representações de elementos do mundo natural são
tratadas no nível da figuratividade.
A teoria semiótica desenvolveu muitos conceitos emprestados de outras disciplinas. O
conceito de figuratividade é procedente da teoria estética. Sobre a figuratividade, Bertrand (2003,
p. 154) afirma:

Tal categoria descritiva é oriunda da teoria estética, que opõe, como todos
sabem, a arte figurativa e a arte “não figurativa” ou “abstrata”. Sugere
espontaneamente a semelhança, a representação, a imitação do mundo pela
disposição das formas numa superfície. Ultrapassando porém o universo
particular da expressão plástica que o viu nascer, o conceito semiótico de
figuratividade foi estendido a todas as linguagens, tanto verbais quanto não-
verbais, para designar esta propriedade que elas têm em comum de produzir e
33

restituir parcialmente significações análogas às de nossas experiências


perceptivas mais concretas.

O conceito de figuratividade em semiótica é estendido a todas as linguagens e não só às


linguagens com motivação estética e plástica. Ocorre figuratividade quando a linguagem (verbal
ou não-verbal) sugere elementos do mundo natural no campo da percepção.
Na teoria semiótica surge primeiro o conceito de figura para, só depois, ser desenvolvido o
de figuratividade. Segundo Teixeira (2004, p. 230):

Considerando o percurso gerativo e, no nível discursivo, o componente


semântico, a teoria desenvolveu a distinção entre temas e figuras. Os temas
dizem respeito a categorias abstratas de organização do mundo, enquanto as
figuras referem-se às sensações, a elementos concretos.

A distinção entre temas e figuras já foi apresentada neste trabalho. Os temas são elementos
abstratos que se concretizam em figuras no nível discursivo. O corpo e a percepção são
entendidos como instâncias fundamentais na produção de sentidos figurativos. Segundo Teixeira
(2004, p. 231):

A figuratividade, assim, instaura a fratura do contínuo, põe em cena um corpo


em relação de disjunção com o mundo: ‘É pela mediação do corpo que percebe
que o mundo transforma-se em sentido’ (GREIMAS; FONTANILLE, 1993,
p.13). Esse corpo que percebe e começa a dar sentido ao espaço que habita
identificando algumas oposições fundadoras é também um corpo que se atribui
um lugar, um modo de estar no mundo.

O corpo percebe o vínculo entre a figura e o elemento do mundo e também percebe a


oposição entre a representação figurativa e o elemento natural, essas relações são sensoriais e não
remetem ao referente do mundo natural. O sentido é instaurado nessa relação intermediária entre
mundo natural e corpo que percebe. O corpo se reconhece como um elemento do mundo e
também identifica o modo como os efeitos de sentido do mundo estabilizam-se na linguagem. A
figuratividade instaura um rompimento entre os elementos do mundo natural e suas
representações.
Percebe-se a figuratividade nas HQs de super-heróis na medida em que o mundo fictício no
qual se passam as histórias (como a cidade de Gotham City nas histórias de Batman) é
estruturado por meio de vínculos com o mundo sócio-cultural. Na arquitetura de Gotham City
34

destacam-se os estilos Gótico e Art Noveau. A figuratividade gera a sugestão perceptiva de que
Gotham City é um lugar palpável. O universo discursivo das HQs de Batman concretiza temas e
figuras semelhantes aos do mundo cultural e a narrativa sincrética se desenvolve no espaço-
tempo de uma metrópole figurativizada.
Teixeira (2004, p. 232) escreve que o sentido não é somente instaurado pelo corte e pela
fratura com o mundo, pois o funcionamento da linguagem nos mostra que a intensidade das
manifestações lingüísticas, como a que ocorre na música, é também parte da experiência
semiótica:

A continuidade, o acúmulo, a repetição, por exemplo, conferem intensidade à


atuação do pianista, que pode atingir o ouvinte com mais impacto e portanto,
chamá-lo para novos sentidos do mundo, quanto mais puder apurar a emoção e o
refinamento técnico de sua execução. [...] É também a intensidade da reiteração
que congrega em torno de um estilo obras produzidas numa determinada
circunstância histórica. Tome-se, por exemplo, o conjunto de pinturas que
inauguram o impressionismo. Ainda que preservando a figuração da paisagem e
das pessoas, o novo modo de pintar, a pincelada aparente, a luminosidade, o
cromatismo que clareia a paleta, a gestualidade que dilui contornos para ressaltar
o movimento e a cor – todos esses procedimentos se expandem em telas de
diferentes assinaturas, em diversos lugares, para constituir um estilo, uma outra
maneira de dar sentido ao mundo da pintura. Cria-se uma figuratividade
impressionista que ultrapassa, então, sua origem francesa e seu período de
aparição e maior exuberância, para ser atribuída a qualquer pintura que retome
suas qualidades essenciais, digamos, seu fundo figural de base.

Quanto mais emoção e apuramento técnico forem empregados na execução de um


enunciado, mais significados são instaurados e a rede figurativa adquire maior riqueza de
sentidos. A personagem Superman é estruturada por meio do acúmulo de traços mítico-
figurativos: a repetição de temas como o heroísmo e o nacionalismo norte-americanos se
manifesta tanto nas cores do uniforme da personagem quanto no seu papel de salvador da
humanidade. A composição gráfica das HQs é baseada na conjugação entre texto verbal e texto
visual. A articulação desses dois tipos de linguagens – a verbal e a visual – é uma manifestação
de intensidade lingüística, pois o plano de expressão verbal exprime vários sentidos que são
reunidos ao conjunto de significados presentes no plano de expressão visual. Esse é um dos
princípios básicos do processo de criação de textos sincréticos.
Teixeira também destaca como o movimento impressionista na pintura ultrapassa sua
origem francesa e se torna um estilo que não é caracterizado somente pelo período em que surge
35

na França. O impressionismo se caracteriza também pelas qualidades presentes nas pinturas que
compartilham as mesmas características e apuramento técnico que se tornaram marcas essenciais
do estilo impressionista francês. Esse estilo, assim consagrado, não é mais caracterizado por uma
nacionalidade, mas sim pela sua plasticidade específica.
Essa última reflexão nos faz pensar na forma pela qual as HQs se concretizam em
determinados estilos como os fumetti (quadrinhos produzidos em série na Itália) e os mangás
(quadrinhos produzidos pela indústria japonesa). O estilo mangá se distingue por desenhos que
expressam um intenso efeito de movimentos e também pela pouca quantidade de texto escrito.
Histórias predominantemente visuais são uma particularidade dos mangás.
Em 1983 a editora DC Comics publica a mini-série Ronin, escrita e desenhada pelo
quadrinhista norte-americano F. Miller. Essa obra foi republicada no Brasil em 2003 pela Opera
Graphica Editora com a seguinte apresentação escrita nas capas: “O primeiro mangá americano”.
O autor utilizou as mesmas técnicas visuais empregadas nos mangás para criar os desenhos e o
ritmo da narrativa em Ronin. Os mangás ultrapassaram sua origem na indústria japonesa e se
tornaram um estilo que não se restringe só ao Japão, pois se caracteriza principalmente por
técnicas singulares de narrativa visual. A instauração figurativa do estilo mangá ocorre de
maneira semelhante à forma pela qual o impressionismo na pintura transpõe sua origem francesa
e se torna identificável por meio de suas particularidades estilísticas, que são o que Teixeira
(2004, p. 232) chama de “fundo figural de base”.
Ao se compreender a recorrência de temas e figuras nas HQs, entende-se que o conceito de
figuratividade é um alicerce teórico fundamental no estudo da significação dos textos sincréticos.
O corpus escolhido, a série Sandman, caracteriza-se pela figuratividade de mitos clássicos (das
lendas gregas e medievais) mesclados com elementos contemporâneos, o que evidencia a
figuratividade no texto.
36

1.2 Mito

Com o desenvolvimento cada vez mais avançado da comunicação visual, principalmente


por meio da Internet, o discurso mítico se perpetua em vários planos de expressão. Na sociedade
contemporânea, caracterizada por um grande desenvolvimento tecnológico, como o mito se faz
presente? Qual a importância de se estudar o mito no mundo atual? A mitologia foi explorada por
vários campos do conhecimento (como a Antropologia e a Psicanálise) e essa conceituação de
mito se baseia em definições das ciências da linguagem. Entre os teóricos que trabalharam o
conceito de mito destaca-se R. Barthes, responsável por desenvolver uma semiologia – e
demonstrar sua aplicação em vários textos visuais e sincréticos – a partir do trabalho de Saussure.
No momento em que se entende o mito como linguagem, concorda-se com a definição de Barthes
(2004, p. 232), que conceitua o mito como fala:

Naturalmente, não é uma fala qualquer. São necessárias condições especiais para
que a linguagem se transforme em mito [...] Mas o que se deve estabelecer
solidamente desde o início é que o mito é um sistema de comunicação, uma
mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito ou uma idéia:
ele é um modo de significação, uma forma. [...] Seria, portanto, totalmente
ilusório pretender fazer uma discriminação substancial entre os objetos míticos:
já que o mito é uma fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja suscetível
de ser julgado por um discurso. [...] Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que
sim, pois o universo é infinitamente sugestivo. Cada objeto do mundo pode
passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação
da sociedade, pois nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de falar das
coisas.

Barthes discute que o mito, devido a sua natureza lingüística, pode se inscrever em
qualquer objeto do mundo natural. Na Grécia Antiga, um fenômeno natural, como o relâmpago, é
destituído de sua relação com a natureza e passa a ser relacionado a Zeus, deus portador do raio.
De forma que qualquer elemento da linguagem pode se tornar um mito, desde que haja
investimento significativo nas formas físicas e biológicas do mundo natural. Assim, essas
representações figurativas de elementos do mundo (que a semiótica não considera como
referentes, mas como sugestões perceptivas) são mitificadas e adaptadas ao consumo de certa
sociedade. Mas uma sociedade cuja comunicação tecnológica está em pleno desenvolvimento
poderia gerar mitos comparáveis aos mitos da Antigüidade Clássica?
37

O livro Mitologias, de Barthes, surge em 1957, época em que a televisão e a indústria


cinematográfica já haviam se estabelecido e faziam circular, mundialmente, uma grande
quantidade de imagens. Em um dos capítulos de Mitologias, cujo título é O rosto de Garbo,
Barthes (2003, p. 72) analisa o rosto da atriz Greta Garbo:

O rosto de Garbo representa o momento frágil em que o cinema está prestes a


extrair uma beleza existencial de uma beleza essencial, em que o arquétipo está
se dirigindo ao fascínio pelos rostos perecíveis, em que a clareza das essências
carnais cederá o seu lugar a uma lírica da mulher.

Esse texto explora o momento em que o rosto de uma atriz é imortalizado na idéia de
divinização plástica da mulher. O rosto de Garbo ultrapassa seu aspecto carnal e passa a fazer
parte do universo mítico, o divino supera o humano por meio da perenidade conferida pela
linguagem visual.
E. Morin escreveu sobre a cultura de massas no início da década de 60 e considerou que
reis, rainhas, artistas famosos, esportistas, etc. eram elevados à condição de “olimpianos
modernos”. Isso porque, assim como os deuses gregos que habitam o monte Olimpo, essas
vedetes habitam o espaço mítico da grande imprensa, que as diviniza:

A informação transforma esses olimpos em vedetes da atualidade. Ela eleva à


dignidade de acontecimentos históricos acontecimentos destituídos de qualquer
significação política [...] Esse novo Olimpo é, de fato, o produto mais original do
novo curso da cultura de massa. As estrelas de cinema já haviam sido
anteriormente promovidas a divindades. O novo curso as humanizou. [...] Os
novos olimpianos são, simultaneamente, magnetizados no imaginário e no real,
simultaneamente, ideais inimitáveis e modelos imitáveis; sua dupla natureza é
análoga à dupla natureza teológica do herói-deus da religião cristã: olimpianas e
olimpianos são sobre-humanos no papel que eles encarnam , humanos na
existência privada que eles levam. (MORIN, 1969, p. 105-106)

Morin considera que os astros da cultura de massa são caracterizados por uma dupla
natureza: são astros divinos e ao mesmo tempo humanos mortais. No aspecto mortal se
assemelham aos seus consumidores e no aspecto divino os ultrapassam, possuem uma natureza
dupla semelhante à do herói cristão, que é homem e deus ao mesmo tempo.
Barthes percebeu que os filmes, as propagandas publicitárias, etc., geram mitos modernos
que são produzidos e veiculados em uma escala impensável antes da existência dos aparelhos de
38

comunicação eletrônicos. Isso fez com que o semiólogo refletisse sobre o modo como surge o
mito e sobre sua sobrevivência na história:

Não existe, evidentemente, uma manifestação simultânea de todos os mitos:


certos objetos permanecem cativos da linguagem mítica durante um certo tempo,
depois desaparecem, outros substituem-no, sendo elevado ao mito. [...] pode se
conceber que haja mitos antiqüíssimos, mas não eternos; pois é a História que
transforma o real em discurso; é ela e só ela que comanda a vida e a morte da
linguagem mítica. Longínqua ou não, a mitologia só pode ter um fundamento
histórico, visto que o mito é uma fala escolhida pela História: não poderia de
modo algum surgir da “natureza” das coisas. Esta fala é uma mensagem. Pode,
portanto, não ser oral; pode ser formada por escritas ou representações: o
discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os
espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica.
(BARTHES, 2003, p. 200)

Barthes compreende o poder sugestivo de textos sincréticos, como a fotografia e o


cinema, e entende que todas essas formas de comunicação podem comportar a fala mítica. Em
1970, em seu livro Shazam!, A. Moya (1977, p. 91) cita um texto da pesquisadora francesa de
bandes dessinées E. Sullerot, no qual ela destaca a circulação de mitos na grande mídia: “Evelyne
Sullerot escreve em Bandes dessinées et culture: [...] ‘A imprensa escrita, o cinema, as histórias
em quadrinhos e as telenovelas são os reservatórios mitológicos da nossa sociedade.’”. Percebe-
se que vários pesquisadores já reconhecem, há décadas, os veículos midiáticos como meios de
circulação de mitos contemporâneos. Constata-se que a fala mítica está presente nas mais
diversas manifestações da linguagem.
A discussão acadêmica sobre a veiculação da fala mítica nos meios de comunicação
eletrônicos era uma novidade na época de Barthes e ele foi um dos pioneiros no estudo da
imagem no interior das ciências da linguagem. Para situar o objeto visual como algo pertinente
aos estudos lingüísticos, Barthes (2003, p. 201) considera que

A imagem é certamente mais imperativa do que a escrita, impondo a


significação de uma só vez, sem analisá-la e dispersá-la. Mas isso já não é uma
diferença constitutiva. A imagem se transforma numa escrita, a partir do
momento em que é significativa: como a escrita, ela exige uma lexis. Entender-
se-á, portanto, daqui para a frente, por linguagem, discurso, fala, etc. toda
unidade ou toda síntese significativa, quer seja verbal, quer visual: uma
fotografia será, por nós, considerada fala, exatamente como um artigo de jornal;
os próprios objetos poderão transformar-se em fala se significarem alguma
coisa.
39

Barthes defende que todo objeto dotado de significação é pertinente aos estudos da
linguagem, que não se restringe somente às línguas naturais. Uma reflexão semelhante levou
Greimas (1975, p. 145), anos depois, a escrever que a semiótica, cujo campo de pesquisa é a
significação, também deve explorar objetos de significação não-verbais: “Em primeiro lugar, era
preciso admitir que as estruturas narrativas podem ser reconhecidas em manifestações do sentido
que se efetuam fora do domínio das línguas naturais: nas línguas cinematográfica e onírica, na
pintura figurativa, etc.”.
A semiótica se ocupa do estudo das mais diversas manifestações da linguagem, como
textos visuais, sincréticos, sonoros, etc. Essa preocupação dos semioticistas revela o interesse das
ciências da linguagem no estudo das formas de significação não-verbais.
Ao entender o mito como linguagem, percebe-se que o discurso mítico se faz presente no
mundo atual de diversas maneiras, sendo veiculado inclusive pelos meios de comunicação
tecnológicos mais avançados, como a Internet. A relevância do estudo desses mitos reside no fato
de que eles se tornaram parte do cotidiano e afetam o modo como a sociedade entende o mundo.
Os mitos invadem a linguagem nas mais diversas formas e imprimem novos significados, de
maneira profunda, no modo como o homem entende a própria existência.
Até mesmo os conceitos científicos podem ser atravessados pela noção mítica presente no
pensamento humano, como é o caso da teoria física do Big-Bang. Segundo a teoria do Big-Bang,
o universo surge a partir de uma “grande explosão” que origina as primeiras partículas da matéria
conhecida. Esta noção possui analogias com o mito bíblico da criação divina, segundo o qual a
origem do universo acontece no momento em que Deus cria os fenômenos naturais. Percebe-se
que o pensamento mítico está arraigado na própria maneira de pensar do homem, mesmo que se
use a razão para encontrar uma verdade o mito persiste. No caso da teoria do Big-Bang, o
pensamento científico foi atravessado pelo mito da criação divina, de modo que se produziu uma
cosmogonia a partir de conceitos lógico-matemáticos. A própria Física problematiza a noção da
origem do universo; célebres físicos como S. Hawking e L. Mlodinow (2005, p. 93-94) refletem
sobre os desenvolvimentos da Física na segunda metade do século XX5 e consideram que

[...] a matemática não consegue realmente manusear números infinitos, ao


predizer que o universo começou com o big bang, um momento em que a
densidade do universo e a curvatura do espaço-tempo teriam sido
5
Especialmente conceitos desenvolvidos a partir da teoria da relatividade geral, proposta por A. Einstein.
40

infinitos, a teoria da relatividade geral prediz que existe um ponto no


universo no qual a própria teoria se despedaça. Ou falha. Esse ponto é um
exemplo daquilo que os matemáticos chamam de singularidade. Quando
uma teoria prediz singularidades, tais como densidade e curvatura
infinitas, isso é um sinal de que a teoria deve ser de alguma forma
modificada. A relatividade geral é uma teoria incompleta porque não é
capaz de nos informar como o universo principiou.

Com o desenvolvimento da Física no século XX, surge a proposta da teoria quântica6,


que, entre outros conceitos, considera que o universo é autocontido; esta noção redefine a questão
do estado inicial do universo:

Na teoria quântica, é possível o espaço-tempo ser finito em extensão e,


ainda assim, não ter singularidades que tenham formado um contorno ou
beirada. [...] Portanto, se viermos a constatar que é esse o caso, então a
teoria quântica da gravidade terá exposto uma nova possibilidade na qual
não haveria singularidades nas quais as leis da ciência deixariam de ser
válidas. Se não existirem limites no espaço-tempo, não haverá
necessidade de especificar o comportamento no contorno – não haverá
necessidade de conhecer o estado inicial do universo. Não existe beirada
do espaço-tempo, na qual teríamos de apelar para Deus ou alguma nova
lei para definir as condições de contorno para o espaço-tempo.
Poderíamos dizer: “A condição de contorno do universo é que ele não tem
contorno.” O universo seria inteiramente autocontido e não afetado por
nada fora dele. Não seria criado nem destruído. Apenas SERIA.
(HAWKING; MLODINOW, 2005, p. 112-113)

A percepção humana do mundo natural produz teorias científicas que nem sempre
correspondem com o modo como a natureza atua. O próprio conceito de lógica é uma definição
humana e a natureza não se comporta segundo parâmetros humanos. Esse é um problema que
está relacionado à especificidade da linguagem humana, pois os significados que são atribuídos
ao mundo acontecem por meio da linguagem. Hobsbawm discute, em um capítulo de Era dos
Extremos, o impacto das ciências naturais no século XX. O historiador pondera sobre a tentativa
dos físicos de conciliar as novas teorias físicas do século XX7 e as teorias físicas clássicas8,

6
A física quântica ocupa-se do estudo de sistemas físicos cujas dimensões são aproximadas ou menores que as
dimensões da escala atômica. No entanto, a teoria quântica também descreve, em diversos casos, fenômenos
macroscópicos.
7
De caráter probabilista, se pautam no princípio da incerteza desenvolvido por Heinsenberg, segundo o qual não é
possível determinar, ao mesmo tempo, a velocidade e a posição de uma partícula: ao se identificar com precisão a
velocidade, a posição se torna menos conhecida e vice-versa.
8
De caráter determinista, consideram que todos os eventos naturais são determinados com precisão.
41

contraditórias, e considera que “não havia como expressar a totalidade da matéria numa descrição
única, em vista da natureza da linguagem humana.” (HOBSBAWM, 1999, p. 520).
Tais questões, destacadas de forma breve devido à natureza deste trabalho, podem ser
abordadas por meio da semiótica tensiva, pois o que se entende como verdade são concepções
que surgem a partir das experiências perceptivas: o inteligível (domínio da compreensão e do
racional) está vinculado ao sensível (domínio da afetividade e do irracional), de forma que a
razão (responsável pela produção científica) é comprometida pela intensidade afetiva presente no
corpo humano.
A noção de “verdade científica”, conquistada pela razão, pode ser um efeito de sentido
gerado pela percepção humana. O homem se apóia na lógica para descobrir uma verdade e pode
acabar afirmando um mito – como no caso da teoria do Big-Bang – pois é iludido pela sua
percepção limitada da natureza. De forma que até mesmo o raciocínio lógico pode ser
atravessado por noções míticas e simbólicas acerca do mundo natural.
O mito está enraizado, de forma profunda, na linguagem.

1.3 Semi-simbolismo

A semiótica de textos visuais foi explorada em vários trabalhos de J. M. Floch, um dos


principais responsáveis pelo desenvolvimento da semiótica plástica. Uma das principais obras de
Floch é o livro Petites Mythologie de L’Oeil et de L’Esprit (Pequenas Mitologias do Olho e do
Espírito – tradução nossa), publicado em 1985, no qual é trabalhado o conceito de semi-
simbolismo. A idéia de pequenas mitologias, que forma a primeira parte do título do livro, tem
origem em uma reflexão de Lévi-Strauss, na qual o antropólogo pensa a relação entre as palavras
jour e nuit (respectivamente dia e noite em francês). Segundo Lévi-Strauss, o vocalismo grave de
jour remete ao sentido de noite, já que o tom grave tem um conteúdo sombrio, escuro; enquanto o
vocalismo agudo de nuit remete ao dia, pois o tom agudo sugere claridade, alegria. Ocorre uma
inversão entre expressão e conteúdo, já que o significante de dia (jour) se relaciona ao conteúdo
da escuridão e o significante de noite (nuit) se relaciona ao conteúdo da claridade. Nesse tipo de
relação o plano da expressão e o plano do conteúdo estão vinculados.
42

Lévi-Strauss prossegue a reflexão, contraria essa relação invertida e faz uma relação que
vincula jour ao conteúdo do dia quando considera que o vocalismo grave de jour é de aspecto
durativo. Na concepção de Lévi-Strauss o aspecto durativo se relaciona ao dia, pois o
antropólogo entende a noção de dia como algo mais duradouro que a noite; enquanto o vocalismo
agudo de nuit, de aspecto perfectivo, se relaciona à noite, devido à sua curta duração segundo
Lévi-Strauss. Essa reflexão está envolvida pelo modo particular como Lévi-Strauss entende o dia
e a noite, é um detalhe axiológico que pode comprometer a definição do conceito. Mas,
independente dos valores que o antropólogo confere ao sentido de dia e ao sentido de noite,
entende-se que ocorre uma relação entre conteúdo e expressão e esta relação homóloga entre os
dois planos da linguagem é o que realmente importa na definição do conceito.
É preciso proceder com cautela ao se propor um conceito teórico. O pesquisador precisa
habitar o texto para entender sua motivação e ser coerente no momento da análise. É pertinente o
pensamento de Merleau-Ponty (1980, p. 85) que diz que “a ciência manipula as coisas e renuncia
a habitá-las”, pois seria desonesto forçar um texto a significar algo só para confirmar uma teoria.
Fontanille (2007, p. 76), em seu livro Semiótica do Discurso, reflete sobre a necessidade de se
entender as qualidades sensíveis que orientam a manifestação de uma categoria:

Quando se adota o ponto de vista do discurso, se é conduzido a buscar


primeiramente – antes de se perguntar se os termos de uma categoria têm um
valor universal qualquer – as qualidades sensíveis que determinam e orientam a
manifestação da categoria.

O pesquisador deve encontrar as qualidades sensíveis particulares de certo objeto, para


descrever suas categorias específicas, antes de tentar extrair-lhe categorias universais. É na
análise discursiva que o pesquisador identifica se há vínculo entre significante e significado ou
não, pois as categorias que surgem a partir do objeto podem ser tanto arbitrárias quanto não-
arbitrárias.
Lévi-Strauss chama a relação homóloga entre significante e significado de pequena
mitologia, pelo fato de esta ser não-arbitrária, pois contraria o conceito saussuriano de
arbitrariedade do signo. Nesse sentido, significante e significado são não-arbitrários, são
homólogos. Segundo Floch (1985, p. 14):

C’est donc em étudiant concrètement des images prises dans leur globalité que
nous avons petit à petit reconnu et cherché à definir ce système de sens, de type
43

semi-symbolique, qu’est la sémiotique plastique, où les deux termes d’une


catégorie du signifiant peuvent être homologues à ceux d’une catégorie du
signifié.

Ocorre semi-simbolismo no momento em que dois termos de uma categoria do


significante são vinculados a dois termos de uma categoria do significado, isso será
exemplificado no decorrer deste texto.
Como uma das propostas desse trabalho é entender a natureza dos mitos contemporâneos,
enfatiza-se que o princípio de não-arbitrariedade do conceito de semi-simbolismo é uma das
principais características da fala mítica, segundo Barthes (2003, p. 217-218):

Quanto à significação mítica, nunca é completamente arbitrária, sendo sempre


em parte motivada e contendo fatalmente uma parte de analogia. [...] A
motivação é necessária à própria duplicidade do mito; o mito joga com a
analogia do sentido e da forma: não existe mito sem uma forma motivada.

O discurso mítico caracteriza-se por ser, em parte, motivado. A relação entre o sentido e a
forma mítica não é totalmente arbitrária. O mito engendra um discurso que se estabiliza por meio
da analogia parcial entre o sentido e a forma.
A segunda parte do título do livro de Floch faz referência ao texto O olho e o espírito
(L’Oeil et L’Esprit, no original) escrito pelo filósofo Merleau-Ponty. Trata-se de um texto sobre
estética no qual o autor reflete, pelo viés fenomenológico, sobre as significações de pinturas,
principalmente as de Cézanne. Sobre o universo da pintura, Merleau-Ponty (1980, p. 93) reflete:

Essência e existência, imaginário e real, visível e invisível, a pintura baralha


todas as nossas categorias ao desdobrar o seu universo onírico de essências
carnais, de semelhanças eficazes, de mudas significações.

O filósofo reflete sobre o desdobramento do sentido visual da pintura em um universo de


“mudas significações”. Estas são entendidas como significações de textos não-verbais,
justamente o tipo de texto que Floch explora. Assim, compreende-se que a obra Petites
Mythologies de L’Oeil et de L’Esprit incorpora reflexões da antropologia de Lévi-Strauss e da
filosofia de Merleau-Ponty.
Floch (1985, p. 79) esclarece que os textos visuais são apenas um dos modos de realização
dos sistemas semi-simbólicos:
44

Les sémiotiques plastiques ne sont qu’un des modes de réalisation des systèmes
semi-symboliques, et ce à um double titre. Les systèmes semi-symboliques
peuvent être réalisés par des sons ou par des gestes, c’est-à-dire par d’autres
substances de l’expression (et Il s’agit alors aussi de relations sémiotiques, em
ce sens que ce sont les deux plans du langage qui sont toujours mis em relation).

O semi-simbolismo ocorre desde que exista vínculo entre duas categorias de cada um dos
planos da linguagem: conteúdo e expressão devem ser homólogos para que aconteça o semi-
simbolismo. Mas a coerência heurística dos sistemas semi-simbólicos é atestada na conexão
estabelecida pela oposição sistemática entre dois termos de cada plano. No caso de correlação
entre um termo de cada plano ocorre o simbolismo: a cruz (expressão) e a fé (conteúdo), a
balança (expressão) e a justiça (conteúdo), a pomba branca (expressão) e a paz (conteúdo), etc.
Um exemplo de relação homóloga entre dois termos da expressão e dois termos do
conteúdo, na música, ocorre no famoso concerto de Vivaldi As quatro estações. Em um dos
movimentos, chamado Verão, o plano da expressão sonoro é marcado por vários acentos
rítmicos, que causam uma aceleração na substância sonora da expressão. Outro movimento,
chamado Inverno, é caracterizado pela desaceleração, pois o plano da expressão é marcado por
poucos acentos rítmicos. No movimento Verão, a aceleração no plano da expressão concorda
com a idéia de agitação no plano do conteúdo, já que o verão é uma estação que se caracteriza
pela idéia de movimento mais que as outras estações do ano (movimento dinâmico no sentido
semântico de calor, chuva, umidade, sensualidade, etc.). No movimento Inverno, a desaceleração
no plano da expressão concorda com a idéia de repouso no plano do conteúdo, pois entende-se o
inverno como uma estação estática, imobilizada pela intensidade do frio. Assim, o plano da
expressão sonoro e o plano do conteúdo semântico estão vinculados. A categoria aceleração
versus desaceleração, do plano da expressão, concorda com a categoria agitação versus repouso,
do plano do conteúdo, de forma que ocorre uma relação semi-simbólica, já que há homologação
entre duas categorias de cada um dos planos da linguagem.
No livro Semiótica Visual: os percursos do olhar, Pietroforte (2004, p. 21) comenta o
interesse da semiótica pelo estudo do plano de expressão e explica a ocorrência do semi-
simbolismo:

Deixado de lado pela semiótica em um primeiro momento teórico, o plano da


expressão passa a ser estudado na teoria dos sistemas semi-simbólicos. Em
muitos textos o plano da expressão funciona apenas para veiculação do
conteúdo, como na conversação, por exemplo. No entanto, em muitos outros, ele
45

passa a “fazer sentido”. Quando isso acontece, uma forma da expressão é


articulada com uma forma do conteúdo, e essa relação é chamada semi-
simbólica. Uma pintura em que o conteúdo é articulado de acordo com a
categoria semântica vida vs. morte, por exemplo, pode ter sua expressão formada
de acordo com uma categoria plástica luz vs. sombra, de modo que a sombra
refira-se à morte e a luz, à vida.

São encontradas relações semi-simbólicas em textos visuais quando dois termos de uma
categoria plástica são vinculados a dois termos de uma categoria semântica. Destaca-se um
exemplo de sistema semi-simbólico que ocorre na capa feita por D. Mckean para a HQ Men of
Good Fortune (ANEXO A, p. 97), trata-se de um texto bidimensional. Uma capa de HQ é a
apresentação de uma história sincrética e se relaciona diretamente ao conteúdo dessa história.
Ressalta-se que todas as capas da série Sandman foram produzidas por Mckean, esse artista usou
técnicas de desenho, pintura e fotografia que não eram comuns nas HQs mensais publicadas pelas
grandes editoras norte-americanas.
No plano de expressão há uma relação cromática que pode ser definida pelas categorias
claridade e escuridão. No espaço da claridade estão as figuras do pergaminho carcomido e do
relógio estilhaçado. No espaço da escuridão destacam-se as figuras obscuras de esqueletos
humanos. No plano do conteúdo, os esqueletos na escuridão transmitem a idéia de mortalidade.
escrito em língua “morta” (latim), o que transmite a idéia de uma longa passagem de tempo. Ao
se opor a escuridão à claridade no plano de expressão e ao se aplicar a mesma lógica no plano do
conteúdo, cujo termo destacado é mortalidade, identifica-se outro termo semântico: imortalidade.
O sentido de mortalidade é determinado pela idéia de passagem do tempo e o sentido de
imortalidade é reforçado pela destruição da passagem do tempo na figura do relógio estilhaçado.
A imortalidade é afirmada pela claridade, pois tanto a idéia de imortalidade quanto a idéia de
claridade são axiologias eufóricas na cultura ocidental – a cultura na qual o discurso foi
produzido fornece os valores específicos selecionados na análise – enquanto a mortalidade e a
escuridão são axiologias disfóricas. A claridade se relaciona à imortalidade e a escuridão se
relaciona à mortalidade. Assim, identifica-se a categoria claridade versus escuridão, no plano da
expressão, que é homóloga à categoria imortalidade versus mortalidade, no plano do conteúdo.
Essa é uma relação semi-simbólica já que dois termos de uma categoria plástica são vinculados a
dois termos de uma categoria semântica. A capa de Mckean caracteriza-se pela relação entre os
elementos figurativos e plásticos organizados no plano de expressão visual, que engendram uma
categoria no plano da expressão que é homóloga à categoria destacada no plano do conteúdo.
46

O semi-simbolismo tem sido usado em semiótica como um dos métodos mais eficientes
para se explorar a significação de textos visuais.

1.4 A estrutura da linguagem das histórias em quadrinhos

As HQs, no decorrer de sua produção no século XX, se estabilizaram como uma


linguagem estruturada por elementos muito específicos. A sobreposição de palavras e imagens
caracteriza as HQs de uma forma geral. A estrutura gramática e sintática do texto verbal se alia à
composição de traços e perspectiva dos desenhos para configurar a linguagem deste tipo de texto
sincrético. No caso de Sandman, o escritor N. Gaiman cria os roteiros em prosa que são ilustrados
pelos artistas regulares da série. Essa é uma das características dos quadrinhos produzidos pelas
grandes editoras norte-americanas: as HQs são feitas a partir de um trabalho conjunto entre
roteirista, desenhista, arte-finalista, colorista e letrista, cada artista responsável pela criação de um
elemento distinto. Mas tanto as HQs produzidas em equipe quanto as criadas por um único artista
(que faz o roteiro, os desenhos e toda a finalização artística) se caracterizam por uma estrutura de
linguagem singular. Um dos trabalhos teóricos mais importantes sobre a linguagem das HQs é o
livro Quadrinhos e Arte Seqüencial, escrito por W. Eisner. Segundo Eisner (2001, p. 8):

Em sua forma mais simples, os quadrinhos empregam uma série de imagens


repetitivas e símbolos reconhecíveis. Quando são usados vezes e vezes para
expressar idéias similares, tornam-se uma linguagem – uma forma literária, se
quiserem. E é essa aplicação disciplinada que cria a “gramática” da Arte
Seqüencial.

A utilização repetitiva dos elementos que estruturam a linguagem das HQs possibilita
estudar cada elemento como um componente estável de uma forma singular de texto. E. S.
Franco define os principais elementos da linguagem dos quadrinhos no livro HQtrônicas: Do
Suporte Papel à Rede Internet. Alguns desses principais elementos são:

A Percepção Visual Global: A percepção simultânea de passado, presente e futuro distingue os


quadrinhos de outras linguagens como a cinematográfica, pois no cinema ocorre uma sucessão de
47

imagens em movimento, de forma que só é possível ao espectador visualizar o tempo presente da


projeção. Segundo Franco (2008, p. 43-44):

Os quadrinhos são a única forma narrativa em que temos uma consciência visual
simultânea de passado, presente e futuro, pois enquanto nossa fóvea está
concentrada no quadrinho que estamos lendo (momento presente da narrativa) a
visão periférica está varrendo os quadrinhos anteriores (o passado da narrativa) e
os posteriores (o futuro da narrativa) da página ou tira.

A percepção visual simultânea de passado, presente e futuro é um elemento exclusivo das


HQs, que as define como uma linguagem singular.

A Elipse: Entre os quadrinhos que compõem uma página de HQ ocorre a omissão de trechos da
história que precisam ser completados mentalmente pelo leitor. Franco (2008, p. 44) considera que

Em línguas entendemos por “elipse” a figura de linguagem que consiste na


omissão de uma ou mais palavras na oração, cujo sentido é subentendido;
portanto à semelhança da linguagem escrita, nos quadrinhos temos a estrutura
elíptica narrativa que é composta pelas imagens (constituintes da continuidade
espaciotemporal) que são omitidas entre um quadrinho e outro, levando-nos a
completar mentalmente esses espaços narrativos que estão subentendidos,
gerando uma leitura elíptica permanente de toda a narrativa quadrinhizada.

Para que a leitura das HQs se efetue, é preciso que o leitor complete mentalmente os
espaços vagos entre os quadrinhos. Esse efeito elíptico exige uma participação mais efetiva do
leitor durante o ato de leitura de uma HQ.

O Tempo: O tempo e o espaço são indissociáveis na linguagem das histórias em quadrinhos. É o


espaço que o quadrinho ocupa na página que irá comunicar a noção de tempo no ato de leitura. O
modo como a ação é colocada em imagens no interior do quadrinho separa a seqüência de cenas
nas HQs. Esse recurso do quadrinho de separar a ação da história em imagens é semelhante ao
modo como a pontuação separa as frases em um texto verbal. Sobre o tempo nos quadrinhos,
Franco (2008, p. 45) observa:

Nas HQs temos a ação decomposta em vários quadrinhos que de acordo com seu
formato ajudarão a definir o tempo transcorrido na narrativa: quadrinhos
menores serão obervados mais rapidamente pelo leitor devido à sua dimensão
reduzida (além de geralmente conterem menos elementos visuais) e quadrinhos
48

maiores serão visualizados por mais tempo, definindo dessa forma padrões
temporais narrativos menores ou maiores.

Quadrinhos que ocupam um espaço amplo na diagramação da página apresentam um


padrão temporal narrativo maior e os quadrinhos menores apresentam um padrão temporal
narrativo reduzido. Este efeito ocorre devido ao tempo que o leitor leva para visualizar o espaço
de cada quadrinho que compõe uma história.

O Enquadramento: O enquadramento não é responsável somente por definir o tempo nas HQs.
É no interior do quadrinho que são inseridas as personagens, os cenários e o texto, por isso o
enquadramento é um recurso fundamental na composição da linguagem das HQs. O modo como
o quadrinho é desenhado também servirá para expressar diferentes tipos de ações e emoções:

O requadro (moldura do quadrinho) é muitas vezes usado como um importante


elemento narrativo, assim podemos ter um requadro traçado com pontas em
ângulos agudos para representar uma ação explosiva, requadros retangulares
desenhados fora do esquadro em seqüências aleatórias para definir uma sensação
de caoticidade, ou mesmo a ausência de requadro que pode acentuar a sensação
de liberdade de uma personagem ou a vastidão de um cenário. (FRANCO, 2008,
p. 47)

Compreende-se que o quadrinho serve tanto para conter a ação e as imagens da história
quanto para sugerir diversos tipos de efeitos dramáticos. Caberá ao artista a tarefa de definir a
perspectiva das imagens e das personagens contidas nos quadrinhos. O artista também é
responsável pela seleção das cenas no fluxo da ação.

O Balão de fala: O balão é um elemento utilizado para conter as falas e pensamentos das
personagens. Trata-se de uma linha que envolve textos ou imagens e que se estende em uma seta
na direção da personagem emissora da fala. Sobre as possibilidades de representar os balões,
Franco (2008, p. 49) diz que

Essa linha que compõe a silhueta do balão pode tomar as mais diversas formas:
oblonga, circular, rebuscada etc. muitas vezes ela também é usada como
elemento reforçador das matizes psicológicas ou fonéticas da mensagem, como,
por exemplo, um balão formado por uma silhueta repleta de pontas em ângulos
agudos pode representar um grito lancinante e um balão com a silhueta em
49

forma de gotas descendentes pode significar que a personagem está chorando ou


suplicando algo.

Na série Sandman, os balões que contêm as falas da personagem título, o senhor dos
sonhos, são pintados de preto e traçados com linhas trêmulas. Este trabalho com o cromatismo no
plano de expressão sugere um conteúdo sombrio, que relaciona os sonhos a elementos
misteriosos e desconhecidos no plano do conteúdo. O traçado trêmulo (plano da expressão) dos
balões de fala do senhor dos sonhos sugere a idéia de instabilidade (plano do conteúdo): os
sonhos são uma região em constante mutação, uma terra nebulosa cujas formas se transformam
constantemente.
Sobre o modo de estudar textos sincréticos, Floch (1997, p. 6) afirma que

[...] est vain d’étudier séparément le texte et l’image sous le prétexte qu’ils
relèveraient de codes différents, mais encore et surtout ils m’ont convaincu qu’il
faut toujours commencer par considerer une oeuvre dans sa totalité, qu’il faut
en comprendre d’abord les grandes masses, pour parler comme les peintres ou
les sculpteurs.

Floch considera que os textos que se estruturam por meio da união entre o verbal e o
visual devem ser compreendidos como uma totalidade. Separar a imagem do texto verbal no
momento da análise pode descaracterizar a estrutura da obra sincrética, pois esse tipo de texto é
organizado pela união desses dois códigos e deve ser entendido como tal. Nossa análise de
Sandman será conduzida com o intuito de compreender a totalidade do texto sincrético.
A estrutura das HQs apresenta elementos estáveis e é uma linguagem que se estabeleceu
com o desenvolvimento da produção industrial da cultura de massas. Foi a expansão do alcance
da imprensa no mundo, no final do século XIX e início do século XX, que possibilitou a fixação
da estrutura da linguagem das HQs. Os elementos que compõem as HQs se estabilizaram por
meio do uso e passaram a caracterizar este tipo de texto sincrético como uma linguagem
específica. A convenção na representação desses caracteres os integra na linguagem da mídia
popular e possibilita o reconhecimento imediato das idéias que transmitem no ato de leitura.
50

2 PACTO COM O SONHO

A série Sandman conta a história de lorde Morpheus9 e suas responsabilidades como


monarca do reino dos sonhos. O senhor dos sonhos é um dos Perpétuos (Endless, no original),
entidades que compõem os elementos basilares da existência humana. Os Perpétuos (ANEXO B,
p. 123) são, por ordem de surgimento: Destiny (Destino), Death (Morte), Dream (Sonho),
Destruction (Destruição), Desire (Desejo), Despair (Desespero) e Delirium (Delírio). Os
Perpétuos existem desde antes do aparecimento do primeiro deus e, ao contrário destes, não
precisam de adoradores para continuar a existir. O escritor N. Gaiman, criador da personagem, a
define como “an anthropomorphic personification of dreams”10 (GAIMAN apud. GILMORE,
1997, p. 10). Entende-se que lorde Morpheus é concebido como uma personificação do sonho
materializado em formas de natureza humana. O mesmo pode ser dito dos outros membros de sua
família, pois cada Perpétuo é a manifestação antropomórfica do elemento básico que representa.
Um dos Perpétuos que mais se destacam na série é Death, irmã mais velha de Morpheus e
soberana do domínio dos mortos. Ela é representada como uma jovem simpática e charmosa em
contraste ao caráter do seu irmão sempre soturno.
Segundo o conceito semiótico de figuratividade entende-se que, em Sandman, o tema da
morte é representado na figura de uma jovem bela e agradável e o tema do sonho é concretizado
na figura de um homem sombrio e apático. De forma que as personagens da série se manifestam
por meio da figuratividade de conceitos culturais básicos, como sonho e morte. É curioso o modo
como é tratado o tema da morte em Sandman: a morte deixa de ser concretizada por figuras que
sugerem horror e violência e passa a ser representada por figuras que sugerem jovialidade e
sensualidade. A HQ atribui novos efeitos de sentido ao conceito tradicional de morte. A
reformulação de noções culturais é uma das particularidades do discurso da série Sandman.
O título da série é inspirado no nome da personagem criada no século XIX pelo escritor
dinamarquês de contos infantis H. C. Andersen. O Sandman de Andersen também é um ser
sobrenatural que exerce poder sobre os sonhos dos seres humanos.

9
A personagem é chamada de vários nomes, Morpheus é um dos principais. Morfeu é o nome de um mito greco-
romano citado pelo poeta latino Ovídio em sua obra As Metamorfoses, no trecho em que é descrito o reino mítico do
deus dos sonhos. Esse nome diz respeito à capacidade que o senhor dos sonhos tem de moldar os elementos oníricos
conforme sua vontade.
10
Uma personificação antropomórfica de sonhos (tradução nossa).
51

Em Men of Good Fortune, Sandman, o senhor dos sonhos, entra em uma taverna
acompanhado de Morte, que diz ao irmão que ele precisa enxergar os mortais em seu próprio
território, em vez de somente vê-los a partir de sua ótica imortal. Os irmãos entram na taverna e
se interessam por um soldado chamado Hob Gadling, que diz aos seus companheiros de bebida
que não está disposto a morrer. Enquanto os amigos de Hob o escarnecem, Sandman, em conluio
com a irmã, propõe ao soldado um acordo segundo o qual fica combinado que os dois, Sandman
e Hob, encontrar-se-ão naquela mesma taverna em cem anos. Hob aceita a oferta de Sandman e
também concorda que só morrerá se desejar a morte. A taverna é situada na Inglaterra. Esse país
pode ser identificado nas citações a fatos da história inglesa, como a guerra entre as famílias York
e Lancaster11 (o conflito é citado no segundo quadro da p. 106, na fala de Hob Gadling). A
presença figurativa da personagem W. Shakespeare (p. 109 a 111), nome do mais famoso
dramaturgo da Inglaterra, também ajuda a criar o efeito de sentido que situa a taverna em solo
inglês. A data em que se encontram pela primeira vez é o ano de 1389, pois, quando concorda
com o pacto, Hob Gadling diz para Sandman (p. 103): “A hundred years’ time. On this day. I will
see you in the year of our lord fourteen hundred and eighty nine, then.” (GAIMAN, 1995, p.
119). A fixação desse espaço e tempo, e os posteriores encontros que ocorrem a cada cem anos,
possibilitam a definição espaço-temporal e também a inter-relação das personagens com fatos
históricos, como o surgimento da imprensa (citada no quarto quadro da página 106) e o
desenvolvimento do comércio marítimo do Império Britânico (mencionado no primeiro quadro
da página 115).
A história Men of Good Fortune trata, basicamente, da questão da imortalidade e de sua
conseqüência na vida de um homem mortal. Assim, é possível destacar, no nível fundamental, a
oposição semântica imortalidade versus mortalidade. Essa é a oposição básica sobre a qual se
estrutura a narrativa dessa HQ. Percebe-se, também, que essa categoria semântica corresponde à
que foi destacada na análise da capa de Men of Good Fortune.
Para que se compreenda como é organizada a narrativa de Men of Good Fortune, é
importante que se examine o papel das personagens. Na teoria semiótica, a narrativa de estados e
a narrativa de transformações dos participantes da história são estudadas pela sintaxe narrativa.
Segundo Barros (2003, p. 16):

11
Famílias nobres que, no século XV, disputaram o trono da Inglaterra.
52

A sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetáculo que simula o fazer do
homem que transforma o mundo. Para entender a organização narrativa de um
texto, é preciso, portanto, descrever o espetáculo, determinar seus participantes e
o papel que representam na historiazinha simulada.

No nível da sintaxe narrativa, serão traçados alguns dos principais programas narrativos da
história Men of Good Fortune para que se compreenda a produção de sentidos desse texto
sincrético:

PN1: Na primeira página, Morte convence Sandman de que ele precisa entrar na taverna e se
aproximar dos mortais (página 99, segundo quadro). Morte é o sujeito do fazer, a transformação é
a de entrar na taverna, o sujeito do estado é Sandman, o objeto é a taverna e o valor é a
socialização.

F (ingressar) [S1 (Morte) ĺ (S2 (Sandman) ŀ O (taverna) v (socialização)]

PN2: Sandman oferece a Hob Gadling a imortalidade (página 103, segundo quadro). Sandman é
o sujeito do fazer, a transformação é a de doar a imortalidade, o sujeito do estado é Hob Gadling
e o valor é a imortalidade.

F (doação) [S1 (Sandman) ĺ (S2 (Hob Gadling) ŀ v (imortalidade)]

PN3: No penúltimo encontro narrado na história, Hob Gadling fala para Sandman que se ele
voltar ao mesmo lugar onde se encontram há séculos, significa que o senhor dos sonhos é
solitário e está em busca de amizade. Sandman se enfurece e se afasta de Hob Gadling, mas
retorna após cem anos (páginas 121 e 122). Hob Gadling é o sujeito do fazer, a transformação é a
de retornar, o sujeito do estado é Sandman e o valor é a amizade.

F (retornar) [S1 (Hob Gadling) ĺ (S2 (Sandman) ŀ v (amizade)]


53

A partir dos três programas narrativos apresentados, é possível traçar um quarto programa
narrativo.

PN4: O objetivo de Morte, quando entra com Sandman na taverna, é que o irmão se sensibilize
em relação aos mortais. Ela realiza seu intento quando Sandman aceita a oferta de amizade
proposta pelo mortal Hob Gadling. Morte é o sujeito do fazer, a transformação é a de sensibilizar,
o sujeito do estado é Sandman e o valor é a amizade.

F (sensibilizar) [S1 (Morte) ĺ (S2 (Sandman) ŀ v (amizade)]

Percebe-se, no percurso narrativo, que a Morte é o destinador manipulador que faz com que
Sandman entre em conjunção com o objeto taverna e com os valores socialização e amizade. O
mestre dos sonhos é a personagem que dá nome à série Sandman, e, na maioria das HQs norte-
americanas, a personagem título é o sujeito do fazer (a personagem Superman derrota todos os
seus inimigos e desafios por meio de superpoderes). Nos programas narrativos 1, 3 e 4, Sandman,
apesar de sua competência sobre-humana, é o sujeito do estado. A história Men of Good Fortune
apresenta uma sintaxe narrativa diferente da narrativa tradicional das HQs norte-americanas
publicadas em grandes editoras, pois apresenta uma personagem-título que não é caracterizada
somente como sujeito do fazer, mas, principalmente, como sujeito do estado.

2.1 Diálogo com os deuses

A relação com temas e figuras da Antigüidade Clássica é fundamental na caracterização da


personagem Sandman e também na organização narrativa de toda a série. Os conceitos de sonho
e morte estão vinculados em várias culturas. Segundo a origem dos deuses da Grécia Antiga, o
Sono e a Morte são filhos da Noite, como se pode ver no seguinte trecho da Teogonia, de
Hesíodo (2007, p. 113-115):

Noite pariu hedionto Lote, Sorte negra


54

e Morte, pariu Sono e pariu a grei de Sonhos.


A seguir Escárnio e Miséria cheia de dor.
Com nenhum conúbio divina pariu-os Noite trevosa.
As Hespérides que vigiam além do ínclito Oceano
belas maçãs de ouro e as árvores frutiferantes
pariu e as Partes e as Sortes que punem sem dó:
Filandeira, Distributriz e Inflexível que aos mortais
tão logo nascidos dão os haveres de bem e de mal,
elas perseguem transgressões de homens e Deuses
e jamais repousam as Deusas da terrível cólera
até que dêem com o olho maligno daquele que erra.
Pariu ainda Nêmesis ruína dos perecíveis mortais
a Noite funérea. Depois pariu Engano e Amor
e Velhice funesta e pariu Éris de ânimo cruel.

Nota-se que os temas referentes aos filhos da Noite caracterizam-se pela isotopia do funéreo.
As Sortes, mencionadas nos versos acima, também chamadas de “Deusas da terrível cólera”, são
as Eumênides, sempre representadas por três mulheres – donzela (Filandeira), mãe (Distributriz)
e velha (Inflexível) – que são capazes de punir tanto homens quanto deuses. O papel das
Eumênides, fundamental na série Sandman, será discutido no quarto tópico deste capítulo.
Na série Sandman, o senhor dos sonhos é irmão da Morte, assim como na mitologia grega
Sono também é irmão da Morte. No poema épico Ilíada, um dos textos basilares da literatura
ocidental, os irmãos Sono e Morte, a pedido do deus Febo Apolo, retiram do campo de batalha o
corpo do herói lício Sarpédone, filho de Zeus, deus dos deuses. Esse episódio é descrito nos
seguintes versos do canto XVI da epopéia de Homero (1962, p. 338):

Febo mostrou-se obediente ao mandado de Zeus poderoso;


Do cimo do Ida, depressa, baixou para a fera batalha,
Tira do alcance dos dardos o corpo do divo Sarpédone,
limpa-o na clara corrente de um rio distante da clade,
unge-o com óleo divino, com roupa imortal o reveste
e aos condutores velozes, depois, incumbiu que o levassem,
o Sono e a Morte, irmãos gêmeos, que, logo, da pugna o tiraram
e o depuseram no solo fecundo da Lícia sagrada.

Assim como o deus Sono é irmão da Morte na mitologia grega, o senhor dos sonhos da
série Sandman também é irmão da morte. O enunciador da série Sandman se apropria dos temas e
figuras da Antigüidade grega que personificam o sonho e a morte e os re-constrói, na narrativa
sincrética contemporânea, com os mesmos temas de sonho e de morte. A mitologia clássica
fornece os temas para a criação das personagens de Sandman e a narrativa sincrética remodela
55

esses mitos antigos representando-os em figuras contemporâneas. Os mitos deixam de ser


narrados em versos de poemas épicos e passam a ser transmitidos por modernas técnicas de
narrativa visual, mas conservam-se suas características primárias de senhores do sonho e da
morte. A mídia contemporânea concretiza essa releitura de mitos na série Sandman e a produz
para um público em escala mundial. Ocorre uma figuratividade de mitos contemporâneos que se
relacionam aos mitos da Antigüidade Clássica.
No poema Metamorfoses, do poeta latino Ovídio (2004, p. 96), há uma descrição do lúgubre
reino do deus dos sonhos:

De ébano um alto leito está no meio,


E em negras plumas, que véu negro envolve,
Repousa o deus côa lânguida Indolência.
Em torno, várias formas imitando,
Jazem os Sonhos vãos: são tantos quantas
Na loura messe as trêmulas espigas,
Quantas na selva umbrosa as móveis folhas,
E os grãos de areia nas equóreas praias.

Os versos acima, do livro XI de Metamorfoses, descrevem, com ênfase na cor escura, o deus
dos sonhos em seu reino. O leito é de ébano e o deus repousa “em negras plumas”, com o corpo
envolvido por um “véu negro”. O tema sombrio dos sonhos é concretizado nas figuras “negras
plumas” e “véu negro”. Essa caracterização sombria é também a forma como a figura de
Sandman é materializada nas HQs. Os balões que contêm as falas do senhor dos sonhos são
pintados com a cor negra e a personagem é um ser pálido, sisudo, e que sempre usa vestes negras.
A cor escura caracteriza tanto a figura do deus dos sonhos descrito no poema latino quanto a
figura do senhor dos sonhos representado nas HQs norte-americanas. No poema de Ovídio há
uma metáfora que é significativa para este trabalho e que se encontra nos versos que tratam sobre
a quantidade incontável dos sonhos, que são descritos como “[...] os grãos de areia nas equóreas
praias”. Essa relação poética entre os sonhos e os grãos de areia é a idéia básica do nome
Sandman (em inglês, sand-areia e man-homem). A personagem Sandman das HQs, assim como a
personagem Sandman do conto de Andersen (já mencionado), sopra grãos de areia mágica no
rosto das pessoas (como pode ser visto no último quadro da página 117) para que elas sejam
dominadas pelos sonhos. A figuratividade dos sonhos como grãos de areia ocorre na poesia
romana, nos contos infantis dinamarqueses e também nas HQs norte-americanas. Percebe-se, por
56

meio da figuratividade dos sonhos como grãos de areia, que os sistemas de significação fixam a
mesma figura em contextos históricos distantes e em estilos textuais diferentes. Mesmo após
várias materializações em textos de diversos estilos é possível que a figura preserve seu tema
primário, como no caso da figura dos grãos de areia, que preserva o tema do sonho.
O deus dos sonhos também se manifesta na epopéia portuguesa Os Lusíadas, na cena do
sonho de D. Manuel:

Estando já deitado no áureo leito,


Onde imaginações mais certas são,
Revolvendo contínuo no conceito
De seu ofício e sangue a obrigação,
Os olhos lhe ocupou o sono aceito,
Sem lhe desocupar o coração;
Porque, tanto que lasso se adormece,
Morfeu em várias formas lhe aparece. (CAMÕES, 1998, p. 130)

Nos versos do canto IV do épico de Camões, o sonho surge para o rei D. Manuel na figura
de Morfeu. Esse nome, no poema latino Metamorfoses, designa um dos ministros do deus dos
sonhos:

O Sono em tantos mil não tem ministro


Mais destro que Morfeu, que melhor finja
O rosto, o modo, a voz, o traje, o passo
A própria locução; porém somente
Este afigura os homens; (OVÍDIO, 2004, p. 96)

No poema de Ovídio, Morfeu é o único ministro do deus do Sono que pode assumir variadas
formas humanas, assim como, no poema de Camões, D. Manuel é dominado pelo sono e Morfeu
“em várias formas lhe aparece”. A personagem Sandman das HQs norte-americanas também é
chamada pelo nome de Morpheus em vários episódios da série. O terceiro verso do poema de
Ovídio, destacado acima, enfatiza a capacidade que Morfeu tem de afigurar o traje dos seres
humanos, assim como, na história Men of Good Fortune, o senhor dos sonhos se materializa com
diversos estilos de trajes na narrativa visual. A personagem usa vestimentas variadas e cada
modelo de traje está relacionado a um período histórico específico. Nas primeiras páginas da
história, Sandman e Morte entram na taverna vestidos como nobres do período medieval. Essa
técnica de representação visual possibilita a definição espaço-temporal da narrativa, pois na
57

história Men of Good Fortune não há caixas de texto com a voz explicativa de um narrador, como
acontece em várias HQs12. Em Men of Good Fortune o plano de expressão verbal é materializado
apenas nos balões de vozes das personagens. O contexto pode ser identificado por meio do texto
visual, que representa, nos desenhos, o período sócio-histórico no qual as personagens estão
inseridas. O texto verbal concretiza, no nível da sintaxe discursiva, referências de espaço e tempo
nas falas das personagens. A simulação da taverna na Inglaterra, assim como a simulação de
trajes no estilo medieval, é uma representação figurativa que torna verossímil a fixação da
história no ano de 1389, exatamente durante a Idade Média. Como Sandman e Hob Gadling se
encontram na mesma taverna de cem em cem anos, também é preciso que se represente a
passagem do tempo no texto. No plano de expressão visual, a passagem do tempo se manifesta
por meio da simulação de transformações arquitetônicas na taverna e também por meio de
mudanças estilísticas nas vestimentas das personagens. No plano de expressão verbal, a passagem
do tempo é perceptível nas referências aos nomes de personagens históricas e nas citações de
fatos antigos, concretizados nas falas das personagens. Quando Sandman propõe o pacto de
imortalidade a Hob Gadling, os companheiros de bebida do soldado o escarnecem porque não
acreditam que ele conseguirá retornar à taverna cem anos após o combinado. Duas personagens,
figurativizadas como fanfarrões ébrios no terceiro quadro da página 103, riem da situação e uma
diz ser o papa Urbano, enquanto a outra se nomeia o papa Clemente. O sujeito da enunciação se
projeta nas falas das personagens para situar a história no período do grande cisma da Igreja
Católica13, que aconteceu durante a Idade Média. Essa é uma das técnicas que possibilitam a
ancoragem do texto no período histórico representado por meio dos desenhos. Quando ocorre o
último encontro entre Sandman e Hob Gadling, narrado na última página de Men of Good
Fortune, o cenário onde acontece a história não é mais uma taverna medieval, mas sim um pub
contemporâneo, e Sandman veste um sobretudo moderno, em vez de trajes medievais; no entanto,
a cor escura da vestimenta é preservada. Ao considerarmos que o pacto foi firmado no ano de
1389 e que, após esse primeiro encontro, Sandman e Hob Gadling se encontraram no mesmo
lugar uma vez a cada cem anos, por seis vezes, concluímos que o último encontro ocorre no ano
de 1989. Essa data é afirmada na página 122 em um texto dentro do primeiro balão no primeiro
quadro, que menciona um imposto de Margareth Thatcher. Trata-se da primeira-ministra

12
Nas caixas de texto, o narrador conta, geralmente na 3ª pessoa, detalhes como a época em que ocorre a narrativa;
como se pode ver no primeiro quadro da HQ A Midsummer Night’s Dream (Anexo).
13
A Igreja estava dividida e o papado foi disputado por Urbano VI e Clemente VII.
58

britânica que recebeu a alcunha de “dama de ferro” e que governou a Inglaterra no período fixado
pelo texto, o ano de 1989. É por meio da simulação de transformações no cenário e também nas
citações a fatos históricos que se cria o efeito de sentido de passagem do tempo. Assim, uma
taverna medieval do ano de 1389 se torna, no decorrer do espaço-tempo, um bar contemporâneo
do ano de 1989. A capacidade que a personagem Sandman tem de se metamorfosear e que lhe
permite assumir diferentes formas, por meio da variedade de trajes com os quais é representada
na HQ, pode ser comparada à da personagem mitológica Morfeu, que se apresenta, “em várias
formas”, ao rei D. Manuel, no poema Os Lusíadas. Tanto o Morpheus das HQs norte-americanas
quanto o Morfeu do poema épico português são senhores dos sonhos e podem assumir formas
variadas.
Constatamos que a composição discursiva da personagem Sandman se baseia em traços
figurativos de várias personagens mitológicas da literatura universal. No poema grego Teogonia,
de Hesíodo, os Sonhos e a Morte são filhos da Noite. Os temas do sono e da morte são
materializados, na epopéia grega Ilíada, na figura dos deuses irmãos Sono e Morte. A partir da
mesma idéia, o narrador da HQ norte-americana representa esses temas nas figuras dos irmãos
Sandman e Morte. O tema dos sonhos é representado, na série Sandman, na figura de um ser de
vestes sombrias, assim como o deus Sono é caracterizado (com um “véu negro”) no poema latino
Metamorfoses, de Ovídio. A capacidade que permite que o senhor dos sonhos da série Sandman
assuma múltiplas formas também diz respeito às várias formas por meio das quais a personagem
Morfeu se apresenta no poema épico Os Lusíadas. Por meio da relação com o universo figurativo
da mitologia clássica, a série Sandman torna os temas e figuras dos mitos antigos parte da
composição narrativa de um novo sistema de significação. Essa técnica de construção narrativa
mítico-figurativa torna possível a representação dos mitos clássicos nas HQs modernas. A grande
indústria norte-americana de HQs produz uma figuratividade de mitos que são contemporâneos e
ao mesmo tempo estão carregados de significados relativos aos mitos da Antigüidade clássica. As
personagens contemporâneas preservam os caracteres das personagens clássicas por meio de
representações figurativas, que estabilizam o discurso mitológico em sua manifestação. Percebe-
se que o mito se fixa no discurso por meio da figuratividade e pode ser reconhecido como
intertexto. Greimas e Courtés (2008, p. 272) consideram que

A partir de Saussure e Hjemslev, sabe-se que o problema das línguas indo-


européias, por exemplo, não é uma questão de “famílias”, mas depende de
59

sistemas de correlações formais; do mesmo modo, C. Lévi-Strauss mostrou


muito bem que o mito é um objeto intertextual.

Em Sandman, a intertextualidade do mito é identificada na co-relação entre temas e figuras –


manifestados por meio da linguagem verbal e da linguagem não-verbal –, que se encontram tanto
nos mitos clássicos quanto nos mitos contemporâneos. Esse conjunto de padrões míticos gera
efeitos de sentido que vinculam o universo onírico da série Sandman ao discurso mitológico
presente na literatura de vários povos. A figura do senhor dos sonhos das HQs se manifesta por
meio da relação intertextual com mitos que representam o sonho em várias culturas no decorrer
da história.

2.2 Os sonhos do bardo inglês

Na mesma taverna onde se realiza o pacto entre Sandman e Hob Gadling, também se firma
um acordo entre o senhor dos sonhos e um jovem ator que aspira tornar-se um grande
dramaturgo. A personagem representa o poeta inglês Shakespeare. O pacto entre o senhor dos
sonhos e o ator inglês ocorre durante a narrativa do terceiro encontro secular entre Sandman e
Hob Gadling. Já que o primeiro encontro é narrado no ano de 1389, conclui-se que o terceiro
ocorre no ano de 1589. Nessa época, segundo as pesquisas cronológicas das peças de
Shakespeare14, o poeta ainda não havia produzido suas principais obras teatrais (na HQ Sandman
chama o dramaturgo de Will Shaxberd, uma forma irônica de o narrador mostrar como o nome do
artista, que se tornou mundialmente famoso, era desconhecido na época). Na história Men of
Good Fortune, o bardo inglês é retratado como um artista frustrado diante do talento de seu
amigo Christopher Marlowe (dramaturgo inglês contemporâneo de Shakespeare, que o chama, de
forma amigável, de Kit na HQ). No terceiro quadro da página 110, a personagem Shakespeare
fala para a personagem Kit: “I would give anything to have your gifts. Or more than anything to
give men dreams, that would live on long after I am dead. I bargain, like your Faustus, for that

14
Um Quadro Cronológico das Peças Teatrais de Shakespeare foi estabelecido por E. K. Chambers
(SHAKESPEARE, 1997, p. 27).
60

boon.” (GAIMAN, 1995, p. 126). O tema da lenda do Dr. Fausto15, personagem re-construída na
versão de Marlowe, está inter-relacionado ao tema da história Men of Good Fortune, pois na HQ
também são narrados pactos firmados entre mortais e seres sobrenaturais. No segundo quadro da
página 104, Hob Gadling fala para Sandman: “Have I unwitting made a bargain with the devil?”
(GAIMAN, 1995, p. 120). A idéia de pacto com o demônio surge no texto verbal nessa fala da
personagem. No quadro seguinte, dois homens jogando cartas estão em primeiro plano e a carta
que um dos jogadores apresenta tem a figura do demônio – que é representado como um bode no
baralho. De forma que o texto verbal – contido no balão de fala de Hob Gadling – faz surgir o
motivo do pacto com o demônio, que é prolongado pelo quadro seguinte no desenho da carta com
a figura do bode. O tema do pacto com o demônio se manifesta nessa página com aspecto
durativo, pois se prolonga de um quadro para outro por meio da relação entre o plano de
expressão verbal (no balão de fala de Hob Gadling) e o plano de expressão visual (a figura do
bode na carta de baralho).
A frustração de Shakespeare será solucionada por meio de um acordo: Sandman pergunta
ao poeta se ele gostaria de escrever peças instigantes e oníricas e ele responde que é o que
realmente deseja (segundo quadro da página 111). Entre as peças de Shakespeare que fazem
referência aos sonhos a mais evidente é A Midsummer Night’s Dream16, cujo título é, por si, uma
referência aos sonhos. Segundo o quadro cronológico das peças de Shakespeare, estabelecido por
Chambers, a primeira apresentação da peça A Midsummer Night’s Dream ocorreu entre os anos
de 1595 e 1596. Os anos são posteriores à data simulada na história Men of Good Fortune, pois,
na narrativa em quadrinhos, o encontro entre o senhor dos sonhos e o ator ocorre durante o ano de
1589. O narrador da HQ simula a realização de um pacto entre Shakespeare e Sandman e, assim,
atribui a criação das principais peças do teatro inglês à capacidade criativa que foi concedida pelo
senhor dos sonhos ao dramaturgo, já que este, no ano de 1589, ainda não havia produzido grandes
trabalhos. O bardo inglês barganha com poderes sobrenaturais, assim como o Dr. Fausto, em
troca de talento artístico, e Sandman lhe concede a capacidade de criar peças que, em retribuição
ao dom concedido, mencionem os sonhos, como A Midsummer Night’s Dream. Uma das últimas

15
Nas lendas européias, Fausto é um mago alemão erudito que faz um pacto com o demônio em troca de juventude,
sabedoria e poderes mágicos.
16
Sonho de uma Noite de Verão (tradução mais freqüente do título da peça em português).
61

peças escritas pelo dramaturgo Shakespeare (1948, p. 312-313), The Tempest17, também faz
significativas alusões aos sonhos:

Sometimes a thousand twangling instruments


Will hum about mine ears; and sometime voices,
That, if I then had waked after long sleep,
Will make me sleep again: and then, in dreaming,
The clouds methought would open, and show riches
Ready to drop upon me; that, when I waked,
I cried to dream again.

Os versos acima citam os sonhos em construções poéticas como after long sleep (embora
despertado tenha de um longo sono), Will make me sleep again (me fazem dormir de novo), in
dreaming (em sonhos) e I cried to dream again (choro porque desejo prosseguir a sonhar)18.
Muitas das obras de Shakespeare, assim como o trabalho de Marlowe, são releituras de lendas
populares. Na peça A Midsummer Night’s Dream, a personagem mítica Titânia19 assume um
papel importante. Titânia é representada, tanto na peça de Shakespeare quanto nos contos
medievais, como a soberana das fadas. Ocorre o rompimento com a narrativa folclórica, em
forma de conto, e o mito de Titânia é recontado nos palcos ingleses, em forma de peça teatral. A
personagem Titânia também é retomada por Gaiman na série Sandman, na HQ A Midsummer
Night’s Dream, que será analisada no próximo tópico. Essa técnica de representar os mitos em
outro estilo de texto é uma das características da série Sandman, que, como vimos no tópico
anterior, se apropria de mitos presentes nos poemas clássicos e os reconta, por meio da
figuratividade, na forma de textos sincréticos.
Há outra analogia importante entre as peças de Shakespeare e a HQ Men of Good Fortune.
Na encenação teatral, a simulação de espaço se realiza por meio da projeção do cenário no palco.
As cenas da peça A Midsummer Night’s Dream são apresentadas em ambientes, criados por
técnicas cenográficas, que simulam aposentos de palácios e bosques. Nas HQs a simulação de
espaço se manifesta na construção gráfica dos desenhos. A história Men of Good Fortune é
narrada em “cenários” criados por técnicas de descrição visual que simulam tavernas e bares. O
narrador da HQ introduz as personagens nas cenas estabelecidas por meio do plano de expressão

17
A Tempestade (tradução mais freqüente do título da peça em português).
18
As traduções entre parênteses são de Carlos Alberto Nunes (1997, p. 77).
19
Rainha das fadas na mitologia medieval norte-européia, citada em contos populares.
62

visual e essa representação de ambiente é semelhante à das técnicas cenográficas usadas nas
peças teatrais. A passagem do tempo no teatro é simulada por meio da mudança de cenas, de
modo que o dia pode ser figurativizado pela pintura do sol, assim como a noite pode ser
reproduzida pela figura da lua no fundo do palco. Em Men of Good Fortune, a simulação de
transformações na arquitetura da taverna cria o efeito de sentido de passagem do tempo, assim
como nas peças teatrais as técnicas visuais empregadas para alterar os cenários também
representam o decurso temporal. A analogia entre a história da HQ e a encenação teatral é um
recurso que cria mais relações semióticas entre a história Men of Good Fortune e as peças de
Shakespeare.
A manifestação da personagem Shakespeare na série Sandman ocorre por meio da
simulação de referências ao período histórico no qual viveu o dramaturgo, o ano de 1589, e
também por meio das citações de obras compostas por artistas conhecidos do poeta, como a
adaptação da lenda do Dr. Fausto feita por Marlowe. Para compreender os efeitos de sentido do
pacto firmado entre a personagem Shakespeare e a personagem Sandman, é preciso conhecer as
peças produzidas pelo dramaturgo inglês homônimo e também a forma como as peças fazem
referência aos sonhos. Além disso, é preciso entender o modo como a HQ sugere que o talento
criativo de Shakespeare é fornecido pelo poder de inspiração onírica ofertado por Sandman.

2.3 Fadas, poetas e uma noite de verão

A HQ A Midsummer Night’s Dream (ANEXO C, p. 125) mostra a realização do pacto


firmado entre o senhor dos sonhos e Shakespeare. Trata-se da primeira apresentação fictícia da
peça A Midsummer Night’s Dream. Morpheus concede a Shakespeare o dom de um grande
dramaturgo em troca de duas peças, A Midsummer Night’s Dream é uma delas. Segundo o pacto
firmado, Shakespeare deve apresentar a peça nos campos de Sussex, na véspera do verão. Na
história Men of Good Fortune, segundo quadro da página 101, o senhor dos sonhos fala para sua
irmã que o povo do reino das fadas quer abandonar a realidade dos homens. Então Morpheus
convida Auberon, rei dos elfos, e Titânia, rainha das fadas, para assistirem a peça de
Shakespeare. A platéia é composta por vários seres míticos: fadas, elfos e trolls. Assim, o senhor
63

dos sonhos espera proporcionar uma homenagem agradável ao povo das fadas antes que eles
abandonem totalmente o mundo dos homens.
No primeiro quadro da página 137, é desenhada uma cena da peça homônima de
Shakespeare em que Titânia e Oberon discutem sobre a posse de uma criança indiana. Na peça de
Shakespeare (1948, p. 29), Oberon pede que Titânia lhe dê a criança para fazer dela um pajem,
Titânia responde:

The fairy land buys not the child of me.


His mother was a votaress of my order:
And, in the spiced Indian air, by night,
Full often hath she gossip’d by my side;
And sat with me on Neptune’s yellow sands,
Marking the embarked traders on the flood;
When we have laugh’d to see the sails conceive
And grow big-bellied with the wanton wind;
Which she, with pretty and with swimming gait
Following, - her womb then rich with my young squire, -
Would imitate, and sail upon the land,
To fetch me trifles, and return again,
As from a voyage, rich with merchandise.
But she, being mortal, of that boy did die;
And for her sake do I rear up her boy;
And for her sake I will not part with him.

Os três últimos versos do trecho da peça citado acima estão inseridos no balão de fala do
primeiro quadro da página 137. Nos dois quadros seguintes da mesma página, Titânia fala para
Morpheus que ela deseja conhecer o garoto que interpreta o menino indiano na peça. O senhor
dos sonhos explica que o garoto é filho de Shakespeare e que a rainha das fadas poderá conhecê-
lo no intervalo da apresentação da peça.
No terceiro quadro da página 139, o filho de Shakespeare fala sobre o caráter distante de
seu pai: “Mother says he’s changed in the last five years, but I don’t remember him any other
way. Judith – she’s my twin sister – she once joked that if I died, he’d just write a play about it.
‘Hamnet.’” (GAIMAN, 1995, p. 75). O rosto do garoto é desenhado com uma expressão
melancólica enquanto ele fala sobre o modo como o pai parece se importar mais com as peças
que escreve do que com sua família. A relação entre o nome do menino – Hamnet – e o nome de
uma das peças mais famosas de Shakespeare – Hamlet – será explorada no próximo tópico.
Na página 142, acontece o intervalo da peça e Titânia aproveita esse tempo para conversar
com o filho de Shakespeare. No primeiro quadro desta página, Titânia e Hamnet se conhecem em
64

segundo plano, enquanto Morpheus e Shakespeare conversam em primeiro plano. No terceiro


quadro, Sandman anuncia a Shakespeare a morte de Marlowe. Nesse quadro, o balão de fala
pintado em negro e o foco aproximado no olho do senhor dos sonhos, no qual uma estrela pisca,
figurativizam o sentido sombrio do tema da morte. O plano da expressão (o balão pintado de
preto e o olhar sombrio em foco) e o plano do conteúdo (descrição da morte violenta de Marlowe
no texto verbal) se mesclam para transmitir a tensão da notícia da morte. O sentimento de dor
acerca da morte de Marlowe é preservado nos quadros seguintes nas falas e na expressão da
personagem Shakespeare, que se ressente bastante da morte do amigo. Shakespeare é desenhado
com a expressão contraída de dor do terceiro ao último quadro da página, de modo que o texto
sincrético prolonga, por meio da linguagem verbo-visual, a representação tensa da idéia de morte
na estrutura espaço-temporal inerente à linguagem das HQs.
No último quadro da página 142, Hamnet come um fruto (em segundo plano) que foi
oferecido por Titânia no quadro anterior (em primeiro plano). No último quadro, Titânia descreve
o reino das fadas para Hamnet enquanto seu braço segura o do menino e conduz o fruto até sua
boca. A rainha das fadas manipula o filho de Shakespeare e o seduz com uma bela e convidativa
descrição do reino das fadas. Na página 150, no quinto quadro, Hamnet fala para seu pai:
“Father! I had such a strange dream. There was a great lady, who wanted me to go with her to a
distant land…” (GAIMAN, 1995, p. 86). Também na página 150, no último quadro, está escrito
que “Hamnet Shakespeare died in 1596, aged eleven.” (GAIMAN, 1995, p. 86). De forma que se
percebe que o filho de Shakespeare morre cerca de três anos depois dos eventos que acontecem
na HQ A Midsummer Night’s Dream. O destino de Hamnet é esclarecido em outra HQ escrita por
Gaiman: a mini-série Os Livros da Magia. No terceiro livro da mini-série, há uma cena (Anexo
D, p. 151) em que Hamnet aparece como pajem da rainha Titânia. Assim como a Titânia da peça
de Shakespeare, que gosta de possuir garotos mortais, como o menino indiano, a Titânia das HQs
de Gaiman também seduz o garoto Hamnet e o leva, após a morte, para o reino das fadas.
Hamnet cai sobre o encanto de Titânia no momento em que come o fruto oferecido por
ela. É interessante lembrar que o fruto é uma figura cujo sentido está marcado pelo tema da
sedução: no mito bíblico do pecado original, a serpente oferece um fruto da árvore do
conhecimento do bem e do mal para Eva. Na mitologia grega, um pomo de ouro é concedido por
Páris a Afrodite causando o início da guerra de Tróia.
65

Na mitologia norte-européia, é perigoso aceitar algo oferecido por um ente mágico, como
no caso da lenda norueguesa O cavaleiro Byrting e a Rainha dos Elfos:

A rainha dos elfos chegou ao castelo do cavaleiro Byrting. Na porta, fechada,


bateu.
- Quem bate? – perguntou o cavaleiro.
Ela respondeu:
- Levanta-te Byrting, e deixa-me entrar!
Ele não quis abrir a porta de noite, temendo os espíritos, e a Rainha, com as
mãos brancas e os dedos finos, a abriu então.
Entrou, sentando-se à beira do leito, afagando os macios cabelos do jovem. Ele,
porém, levantando-se imediatamente, apoiou-se contra a parede.
A rainha disse:
- Escuta, Byrting, amanhã virás ao reino dos elfos.
Na madrugada do outro dia Byrting montou a cavalo, saindo do castelo.
Passando pela ponte dos elfos, o cavalo em que montava, ferrado a ouro,
empinou-se, caindo com o cavaleiro na correnteza. O animal nadou, alcançando
a margem, mas Byrting foi retido: a rainha dos elfos o havia tomado pela mão.
Ela conduziu-o a um maravilhoso palácio, e assentou-o num trono de ouro.
Depois, disse a uma serva que por ali passava:
- Traze-me uma taça de vinho.
A serva trouxe uma taça de hidromel do esquecimento.
- Em que país nasceste? Em qual corte desejas viver? – inquiriu docemente a
rainha ao cavaleiro.
- Nasci em Beialand. Na corte desta cidade vivi; e lá quero morrer, pois minha
amada me espera.
A rainha deu-lhe, então, de beber da taça.
Apenas ingerido o primeiro gole, imediatamente esqueceu-se de tudo. Bebeu,
em seguida o restante, de uma só vez e esqueceu-se até do próprio Deus Criador.
- Em que país nasceste? Onde queres viver? – perguntou novamente a rainha.
- No reino dos elfos nasci, nele quero viver e morrer. No país dos elfos está o
meu amor! (ENCICLOPÉDIA, 1957, p. 311-313)

A rainha Titânia, assim como a rainha dos elfos da lenda norueguesa, é uma personagem
das lendas norte-européias e, como tal, costuma enfeitiçar seres humanos com presentes
encantados. No nível narrativo, a rainha Titânia manipula Hamnet, por sedução, tornando-o
conjunto a um objeto, o fruto, que o priva da própria vontade. É possível traçar o seguinte
programa narrativo:

F (seduzir) [S1 (Titânia) ĺ (S2 (Hamnet) ŀ O (fruto) v (encantamento)]

Nesse programa, Titânia tem por função seduzir Hamnet e torná-lo conjunto de um
objeto, o fruto, que está relacionado ao valor do encantamento. A transformação de Hamnet
66

ocorre no momento em que o garoto aceita o fruto e é enfeitiçado pelo poder da rainha das fadas.
A estrutura da série Sandman se relaciona com a estrutura de vários mitos e lendas. A HQ Men of
Good Fortune conta a história do pacto entre um homem e um ser sobrenatural, de forma
semelhante à lenda do Doutor Fausto, como já foi mencionado no tópico anterior. A HQ A
Midsummer Night’s Dream, além de mostrar a concretização de parte do acordo firmado entre o
senhor dos sonhos e Shakespeare, também aproxima a estrutura da série da estrutura das lendas
norte-européias (como a lenda O cavaleiro Byrting e a rainha dos elfos) na cena da sedução de
Hamnet pela rainha Titânia. Destaca-se, mais uma vez, a ocorrência da intertextualidade com
mitos e lendas na série Sandman.
Na página 146, os balões de fala dos quadros 4 e 5 contêm os seguintes versos da peça A
Midsummer Night’s Dream:

The poet’s eye, in a fine frenzy rolling,


Doth glance from heaven to earth, from earth to heaven;
And as imagination bodies forth
The forms of things unknown, the poet’s pen
Turn them to shapes, and gives to airy nothing
A local habitation and a name. (SHAKESPEARE, 1948, p. 66)

O desenho do quarto quadro descreve o espaço natural, a planície e o sopé do monte, onde
a platéia assiste aos atores interpretarem a peça. Nesse quadro, o enunciatário tem a sensação de
estar em um ponto alto de onde observa a cena, devido ao trabalho de perspectiva do desenho.
Assim, o texto visual – a paisagem e os atores no interior do quadro – concorda com o texto
verbal – texto de Shakespeare inserido no balão de fala – da seguinte maneira: o texto verbal diz
que o olho do poeta percorre, de modo frenético, o céu e a terra, e essa idéia é representada no
texto visual, cujo trabalho com a perspectiva consiste em apresentar a paisagem (terra) a partir de
uma posição elevada (céu). A idéia de que o olho do poeta percorre o céu e a terra, presente no
texto verbal, está vinculada à representação espacial do texto visual, que mostra o espaço da terra
(baixo) a partir do espaço do céu (alto). Nota-se uma relação semi-simbólica na representação
topológica alto versus baixo (plano da expressão) que remete aos conceitos céu versus terra
(plano do conteúdo).
O desenho do quinto quadro da página 146 apresenta o perfil do senhor dos sonhos, com
semblante meditativo, enquanto o texto no balão de fala trata de como o poeta, ao escrever,
concede nome e lugar ao nada, isto é, ao que é “impalpável”. Os sonhos podem ser entendidos
67

como um universo instável que ganha nome e substância por meio do trabalho do poeta, que dá
voz a esse “mundo imaginário” em sua poesia material. Nesse quadro, a figura do senhor dos
sonhos, de perfil, representa o tema do sonho e, no contexto da história, os sonhos são
materializados na peça de Shakespeare. A intenção do senhor dos sonhos, ao selar o pacto com
Shakespeare, é tornar o reino dos sonhos presente de forma material na peça de teatro. É dessa
maneira que o universo instável dos sonhos ganha substância material na cultura dos homens.
Assim, tanto o senhor dos sonhos quanto Shakespeare conseguem realizar seus objetivos.
Na página 149, os últimos versos da peça homônima de Shakespeare estão inseridos nos
balões de fala da personagem Robin Goodfellow, também chamada de Puck. Essa página é
composta por seis quadros e há uma progressão cromática da sombra do primeiro ao último
quadro. Na peça teatral, os últimos versos da personagem Robin Goodfellow são sucedidos pelas
cortinas que se fecham no arco do proscênio. A HQ simula o fechamento das cortinas teatrais por
meio do plano de expressão visual, em que a sombra progride até o total escurecimento do último
quadro da página. De modo que se pode fazer uma analogia entre o encerramento da peça teatral
e o encerramento da HQ, na relação entre as cortinas que se fecham no teatro e a progressão da
sombra nos quadros. No primeiro quadro da página 149, Robin está agachado segurando a
máscara que roubou do ator que o interpreta na peça. No segundo quadro, deixa a máscara cair, o
que representa o fim da farsa, o fim da peça. Nota-se que, na seqüência de quadros, a personagem
Robin é representada cada vez mais próxima e esse efeito de perspectiva se desenvolve junto com
a progressão da sombra nos quadros. O último quadro da página 149 é totalmente negro,
totalmente tomado pela sombra. No primeiro quadro da página seguinte, Shakespeare e seu grupo
de atores acordam na relva. Percebe-se que, no primeiro quadro da página 149, enquanto Robin
está de posse da máscara, a luz domina a maior parte do quadro. A partir do momento em que
Robin solta a máscara, no segundo quadro, a sombra passa a dominar os quadros na seqüência. A
luz, a máscara e o sonho estão relacionados, de modo que a máscara representa a peça teatral, que
surge como conseqüência do pacto firmado entre Shakespeare e o senhor dos sonhos. A queda da
máscara no segundo quadro da página 149 representa o encerramento da peça e o fim do sonho,
juntamente com a diluição da luz e o aumento da sombra no plano de expressão visual. A
progressão da sombra representa a passagem do estado onírico para o estado desperto, de modo
que o último quadro da página, totalmente negro, com todas as figuras oníricas apagadas, é
sucedido, na página seguinte, pelo quadro em que as personagens despertam. É possível
68

estabelecer, no plano de expressão visual da página 149, uma categoria cromática luz versus
sombra, que está relacionada à categoria semântica sonhar versus despertar. A luz está
relacionada ao sonhar – e também à encenação teatral, representada pela máscara – e a sombra ao
despertar – todas as figuras são consumidas pela sombra no último quadro, que antecede o
despertar das personagens na página seguinte. Essa relação semi-simbólica organizada na
linguagem da HQ é outra forma por meio da qual a série Sandman simula relações com as peças
teatrais de Shakespeare. Nesse caso, o enunciador utiliza os versos finais da peça de Shakespeare
no texto sincrético e simula o encerramento teatral (cortinas que se fecham) por meio da estrutura
dos quadros em seqüência (progressão da sombra).
Percebe-se que esse texto, a HQ A Midsummer Night’s Dream, é organizado a partir de
elementos literários da peça homônima de Shakespeare. A relação com motivos de lendas norte-
européias, como no caso da sedução de Hamnet pela rainha Titânia, reforça o tom mitológico da
série Sandman. O enunciador da série sempre relaciona a HQ a textos consagrados da literatura, o
que intensifica a intertextualidade no texto sincrético. Embora a série Sandman tenha sido
classificada como literária em várias mídias20, enfatiza-se que a linguagem das HQs é uma
linguagem distinta que não pode ser comparada à da literatura. As HQs são uma forma de texto
que se estrutura por meio da união verbo-visual e a literatura é uma forma de linguagem verbal.
De qualquer forma, a relação da série Sandman com elementos da literatura foi responsável por
consolidar os quadrinhos norte-americanos publicados por grandes editoras como um tipo de
texto mais sério do que havia sido considerado até então.

20
A CNN divulgou que “Sandman foi o título-chave para que [...] os quadrinhos pudessem ser considerados
literatura.”. A Forbes explicitou o teor literário da série: “Em Sandman, Neil Gaiman criou uma paisagem tão
detalhada e cheia de nuances quanto os mitos coletivos da Grécia antiga ou os contos de cavaleiros errantes de
69

2.4 Despertar

To die, to sleep;
To sleep: perchance to dream21
(SHAKESPEARE, 1948, p. 267)

Lorde Morpheus escolhe como sucessor um garoto chamado Daniel, cuja mãe é Hippolyta
Hall, uma mulher mortal. O último volume da série, intitulado The Wake, narra como Daniel se
torna o novo senhor do reino dos sonhos após a morte do antigo. Neste tópico será analisada a
ilustração The Wake, desenhada pelo artista M. Zulli (que também desenhou a HQ Men of Good
Fortune) para o arco de histórias homônimo. O conceito de semi-simbolismo será aplicado na
ilustração, que destaca a personagem Dream of the Endless (Sonho dos Perpétuos), ou seja, o
garoto Daniel transfigurado no novo senhor dos sonhos (Anexo E, p. 153). A partir da análise da
imagem serão abordados conceitos da semiótica passional e da semiótica tensiva.
Distingue-se, na ilustração The Wake, uma categoria plástica luz vs. sombra. A luz ilumina o
senhor dos sonhos e, ao fundo, atinge a parte superior do plano de expressão visual, enquanto a
sombra permeia a parte inferior do mesmo. Há um conjunto de figuras que remetem à vida (a
vegetação), à morte (as estátuas que seguram crânios descarnados) e figuras que estão em um
estado intermediário entre a vida e a morte. São as figuras do senhor dos sonhos (cuja expressão
pálida e olheiras profundas figurativizam um estado de não-vida, mas que banhado pela luz
pressupõe um estado de não-morte) e do ramalhete de flores (que, desenraizadas, se encontram
em um estado de não-vida, mas como ainda não estão decompostas pressupõem um estado de
não-morte).
Na parte inferior da ilustração, a vegetação (vida) se mistura, de forma emaranhada, às
estátuas (morte). A figura melancólica e iluminada (não-vida / não-morte) do senhor dos sonhos
segura, e fita com ar pensativo, um ramalhete de flores, ambos estão representados em um estado
de não-vida / não-morte. Percebe-se uma relação semi-simbólica entre a categoria plástica luz vs.

Chaucer.” (Textos extraídos da última capa do volume Sandman, Noites sem Fim. 3ª edição brasileira, escrito por
Gaiman e publicado pela editora Conrad em 2006). Estes são apenas dois exemplos entre muitos outros.
21
Morrer, dormir;
Dormir: talvez sonhar (tradução nossa).
70

sombra e a categoria semântica vida vs. morte, sendo a vida representada pela luz e a morte
representada pela sombra.
Tanto as estátuas quanto o senhor dos sonhos estão na clássica posição na qual a
personagem Hamlet, do dramaturgo inglês Shakespeare, é representada. Entre as inúmeras
ilustrações de Hamlet destaca-se a que foi criada no século XIX pelo artista John Gilbert (Anexo
F, p. 155).
As figuras do senhor dos sonhos e das estátuas em The Wake se relacionam à figura de
Hamlet e esse efeito de semelhança que há entre elas é estabilizado pela iconicidade. O tema da
iconicidade é mais discutido na semiótica peirciana, e pouco trabalhado na semiótica
greimasiana. O semioticista greimasiano Fontanille (2005, p. 99-100), em seu livro Significação e
Visualidade: exercícios práticos, discute o conceito de iconicidade e pondera que a semiótica
greimasiana não o trabalha muito porque

Essa disparidade se deve, em grande parte, à interpretação corrente, e fortemente


discutível, que se confere à iconicidade: uma figura (no sentido de segmento
pertinente no plano da expressão ou do conteúdo) seria icônica, segundo essa
interpretação, se ela apresentasse uma certa semelhança com um elemento do
mundo natural. [...] Essa interpretação resulta de uma simplificação excessiva e
errônea da definição que se pode ler em Peirce ou em Eco, definição que, como
se verá, não repousa sobre a noção de semelhança. No entanto, ela é suficiente
para explicar o descrédito ao qual a iconicidade foi relegada nas semióticas
greimasianas: do ponto de vista de uma semiótica dos conjuntos significantes e
dos discursos, a semelhança, se ela existe, é um efeito produzido pelo
dispositivo semiótico e uma propriedade construída, reconhecível a posteriori,
da relação entre a figura e um eventual referente.

O problema está na definição do conceito de iconicidade, que não ocorre simplesmente


quando uma figura apresenta semelhança com um elemento do mundo natural. Fontanille destaca
três etapas em um processo complexo no qual ocorre a produção de um signo icônico. A etapa a
ser considerada na análise das ilustrações em destaque é a da seleção dos traços pertinentes de
uma figura. Segundo Fontanille (2005, p. 105),

Quando se reconhece um rosto, não se utiliza a totalidade dos traços que o


compõem. Quanto mais esse reconhecimento é rápido, menos são utilizados os
traços: a situação é paradoxal, porque o reconhecimento mais rápido e mais
eficaz é aquele que utiliza menos os traços do objeto representado e, em
conseqüência, é o menos parecido com esse objeto. No entanto, o paradoxo é
apenas aparente: se há semelhança no ícone, essa não pode ser entre o objeto do
71

mundo e sua representação, mas entre, de um lado, a experiência perceptiva que


se tem desse objeto e, de outro, a experiência perceptiva que sugere sua
representação. Desde então, se a primeira experiência perceptiva só reteve um
pequeno número de traços, o reconhecimento posterior se contenta com essa
seleção esquemática.

A semelhança entre as figuras de The Wake e a figura de Hamlet não se baseia na totalidade
dos traços de composição que há entre elas, mas sim nos poucos traços que representam o
príncipe dinamarquês ao segurar e observar a caveira. A semelhança não acontece entre as figuras
e um objeto do mundo natural, mas entre a experiência perceptiva que se tem da tradicional
posição na qual Hamlet é representado e a experiência perceptiva que associa essa posição aos
traços nos quais as figuras de The Wake são representadas. Os poucos traços retidos na primeira
experiência perceptiva são suficientes para que, depois, se reconheçam os mesmos traços
selecionados na representação. Fontanille (2005, p. 110) define que “o ícone é o momento da
estabilização de uma figura reconhecida enquanto tal”. Ocorre a estabilização da figura de
Hamlet e esta assume um caráter icônico, de modo que é possível reconhecer a seleção dos
mesmos traços que caracterizam a personagem teatral nas figuras da ilustração The Wake.
Um dos trechos mais famosos da peça Hamlet é o monólogo “To be, or not to be”
(SHAKESPEARE, 1948, p. 266), no qual Hamlet reflete sobre o modo como os homens
suportam os males da vida por temerem o que pode existir após a morte. Costuma-se representar
a personagem com a caveira na mão ao declamar esse monólogo, mas a cena na qual a
personagem segura a caveira acontece no quinto ato da peça, enquanto o monólogo faz parte do
terceiro ato. A primeira cena do quinto ato acontece em um cemitério, onde um coveiro
desenterra a caveira de Yorick, o bobo da corte do reino de Elsinor. Hamlet segura a caveira e
fala para seu amigo Horatio:

Alas, poor Yorick! I knew him, Horatio: a fellow of infinite jest, of most excellent
fancy: he hath borne me on his back a thousand times; and now how abhorred
in my imagination it is! My gorge rises at it. Here hung those lips that I have
kissed I know not how oft. Where be your gibes now? your gambols? your
songs? your flashes of merriment, that were wont go set the table on a roar? Not
one now, to mock your own grinning? Quite chop-fallen? (SHAKESPEARE,
1948, p. 315-316)

Hamlet observa o crânio de Yorick, lembra-se o quanto o bobo era dinâmico e alegre e fica
chocado ao ver que a morte tolhera todo aquele entusiasmo, o que resta é só um crânio
72

descarnado. No momento em que se considera o efeito icônico – que relaciona a ilustração The
Wake à cena de Hamlet com a caveira – e que se lê a fala da personagem teatral, mais uma vez
destacam-se os temas da vida e da morte.
Como foi dito no tópico anterior, existe uma relação entre o nome do filho de Shakespeare –
Hamnet – e o título da peça Hamlet. O garoto fala (no terceiro quadro da página 139) sobre uma
brincadeira da irmã, que dizia que se ele morresse o pai escreveria uma peça chamada “Hamnet”.
No tópico anterior foi destacado o modo como o garoto é seduzido por Titânia e levado para o
reino das fadas após sua desencarnação no mundo dos homens. O texto no último quadro da
página 150 informa que Hamnet morre em 1596, anos antes da publicação da peça Hamlet
(segundo o quadro cronológico estabelecido por Chambers, Hamlet é publicada entre 1600 e
1601). De forma que a peça Hamlet surge após a morte de Hamnet, o que confirma a brincadeira
que a filha de Shakespeare fazia em relação ao irmão (apesar de Hamlet não ser uma peça sobre
Hamnet, o filho de Shakespeare, tanto a representação ortográfica quanto a fonética dos nomes
são semelhantes). A morte de Hamnet pode ser entendida como inspiração para que Shakespeare
escrevesse a peça Hamlet. No terceiro quadro da página 145, o senhor dos sonhos fala para
Titânia que os mortais não entendem o preço dos acordos firmados com ele, pois só enxergam o
desejo dos seus corações. No caso do acordo com Shakespeare, o preço pela inspiração do poeta
é tão alto quanto a vida de seus entes queridos.
Durante sua era como monarca do reino dos sonhos, Morpheus percebe a instabilidade de
tudo que existe e testemunha o desaparecimento de reis e deuses poderosos. A passagem do
tempo altera tudo. Em determinado momento de sua existência o senhor dos sonhos percebe que,
embora ele próprio não esteja isento de ser tocado pela morte, a sua era como senhor dos sonhos
pode ser perpétua. Eis o que motiva Morpheus a encomendar a Shakespeare peças que façam
referência à sua experiência como regente dos sonhos. Em peças como A Midsummer Night’s
Dream e The Tempest, o mundo de Morpheus e os seres com os quais ele se relacionou existirão
enquanto a humanidade tiver contato com seu conteúdo. O senhor dos sonhos é eternizado na
linguagem.
Morpheus é envolvido em uma intriga familiar, arquitetada pela sua eterna rival e
irmã/irmão Desire (o desejo é figurativizado como um hermafrodita), e passa a ser perseguido
pelas Eumênides (chamadas de “Deusas da terrível cólera” nos versos de Hesíodo, citados no
primeiro tópico deste capítulo) da mitologia grega, também chamadas de Fúrias pelos romanos.
73

Elas são invocadas por Hippolyta Hall, mãe de Daniel, que lhes pede a morte do senhor dos
sonhos em represália, pois Morpheus tomou dela o próprio filho. As Eumênides não podem ser
paradas no curso de seu ato de vingança e Morpheus vai para o reino de sua irmã Morte, mas é
substituído no reino dos sonhos por uma nova manifestação do garoto Daniel, que se torna o novo
Sonho dos Perpétuos. A vegetação presente na ilustração The Wake pode ser compreendida como
um símbolo da ressurreição, já que em várias mitologias o ciclo da vegetação está relacionado ao
culto da ressurreição, como o culto a Osíris, no Egito (Osíris, o deus do mundo dos mortos,
ressurge após sua morte e seu culto está relacionado à fertilidade das margens do rio Nilo). Em
The Wake, o texto representa a ressurreição do senhor dos sonhos na figura de Sonho dos
Perpétuos, que está em contato com figuras vegetais que remetem à vida (a vegetação que se
emaranha nas estátuas) e que também significam não-vida e não-morte (o ramalhete de flores).
Como já foi considerado acima, o senhor dos sonhos, na ilustração The Wake, está
representado em um estado intermediário entre a vida e a morte. No momento em que se observa
a ilustração e que se visualiza a cabeça do senhor dos sonhos, percebe-se que ela ocupa o centro
do plano de expressão visual. Há uma categoria plástica central vs. marginal que destaca a
cabeça do senhor dos sonhos no centro da ilustração e que identifica o estado intermediário do
sonho (representado por Sonho dos Perpétuos) como o tema central do texto. O senhor dos
sonhos (não-vida e não-morte) é a figura central e as figuras marginais são as estátuas (morte) e a
vegetação (vida). Sonhar é, portanto, estar em um estado intermediário entre a vida (representada
pela vegetação) e a morte (representada pelas estátuas). Percebe-se, novamente, que desde as
antigas epopéias gregas até as ilustrações da indústria cultural contemporânea os temas e figuras
do sonho e da morte estão vinculados.
No primeiro tópico do segundo capítulo, discutiu-se que o nome Sandman (sand – areia,
man – homem) relaciona a figura da areia ao tema dos sonhos, o que também acontece na poesia
romana de Virgílio e nos contos dinamarqueses de Andersen. Mas a figura da areia não remete
somente ao tema dos sonhos, a areia também está ligada ao tempo, como se percebe na
tradicional figura da ampulheta, que é um objeto usado para se medir o tempo por meio do
escoamento de grãos de areia. O sonho não se situa no domínio da vida e nem no domínio da
morte, o sonho está vinculado ao tempo. Os sonhos são filhos da Noite na teogonia grega, de
modo que, desde as primeiras manifestações na cultura ocidental, os Sonhos estão relacionados
ao tempo; isso se evidencia porque a noção de noite marca o decurso temporal.
74

O tempo é um dos principais temas da série Sandman: na história Men of Good Fortune, a
passagem do tempo na taverna e a idéia de imortalidade (que é um rompimento com a passagem
do tempo) são elementos essenciais e o pacto com Shakespeare permite que Morpheus se
perpetue no tempo além de sua era como senhor dos sonhos. A morte transmite a idéia de fim, é
uma noção terminativa, o sentido de sonho se situa em um tempo-espaço que difere do tempo e
do espaço em que se situam os sentidos de vida e morte. O sonho integra um domínio instável e
diáfano.
Para melhor compreensão do conceito semiótico de sonho é pertinente analisá-lo no âmbito
da semiótica das paixões. A semiótica passional reflete sobre a conceituação – concebida no nível
narrativo – de sujeito de estado e sujeito de fazer e considera que o sujeito passional é
caracterizado pelo ser. Ao considerar-se o sujeito modal do ser em relação ao sonho, entende-se
que é possível ao sujeito sonhador (compreendido como sujeito somático) ser o que não pode ser
quando está desperto. No sonho, o saber não poder ser do sujeito consciente desaparece e ele
acredita poder ser, o que anula o estado racional mantido pelo saber não poder ser. Assim, os
sonhos são entendidos como um estado de alma (característico do ser do sujeito) e não como um
estado de coisas (característico do fazer do sujeito). “A paixão concerne (...) qualquer que seja o
sujeito de primeira categoria envolvido, sujeito de estado e sujeito de fazer, a um sujeito de
segunda categoria, o sujeito modal que dele decorre.” (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p. 51-
52). O sujeito sonhador é um sujeito modal do ser, de segunda categoria, e não um sujeito do
fazer, de primeira categoria. É um sujeito caracterizado por uma dimensão passional e que não
pode ser compreendido só por meio das modalizações de competência do poder-fazer. Segundo
Greimas e Fontanille (1993, p. 54):

[...] a performance não deixa de ter certo efeito modal, pois o fazer pode ser
captado no segundo grau como ser do fazer; seria, intuitivamente, toda a
diferença entre um sujeito “agente”, sujeito do fazer, captado no primeiro grau, e
um sujeito “ativo”, sujeito do ser do fazer, captado no segundo grau; em outras
palavras, o sujeito dito “ativo” é caracterizado em seu ser pela realização da
própria performance, caracterização que não comporta nenhuma consideração
sobre a “competência modal” propriamente dita. Essas poucas observações
fazem pensar que os sujeitos passionais não podem ser definidos unicamente
graças às quatro modalizações geralmente identificadas, em particular no quadro
da competência, em vista do fazer. Falar-se-á, por exemplo, de “hiperatividade”
para designar um estado modalizado que não deve nada especificamente ao
querer, ao saber, ao poder, ao dever ou ao crer, mas nem por isso está menos
sensibilizado e convocado, por exemplo, como critério de identificação de certa
75

forma de ansiedade. Independentemente das cargas modais definidas em termos


de categorias (querer, poder etc.), o sujeito apaixonado é de fato suscetível de ser
“modalizado” pelos modos de existência, o que equivale a dizer que a junção
enquanto tal é uma primeira modalização.

O sujeito sonhador não é um sujeito “agente”, sujeito do fazer, porque é um sujeito “ativo”,
sujeito do ser do fazer, que desconsidera a competência de realizar a própria performance, pois se
define pelo ser, o que implica que o fazer é desnecessário. O sonhador está imerso em atividades
patêmicas variadas e o que o define é seu estado de alma e não sua competência em relação ao
querer, ao saber, ao poder, ao dever, etc. É um sujeito modalizado pelos modos de existência, de
modo que se considera a junção com o estado de alma onírico como uma primeira modalização.
O que legitima o sonhador não é o fato de estar conjunto ou disjunto de objetos no processo
de sonhar. O sonhador não se define só por meio dos programas em que está conjunto de objetos
desejáveis (sonhos agradáveis) ou temíveis (pesadelos). O sonhador se define, principalmente,
por estar desvinculado de um estado consciente que o impede de poder ser, uma vez que a
consciência o faz saber não poder ser. Trata-se de um sujeito que se encontra em um estado
virtual e supõe que este é um estado real. Segundo Greimas e Fontanille (1993, p. 55),
“reservando a expressão ‘modos de existência’ àquilo para o que ela serviu em semiótica até o
presente, denominaremos ‘simulacros existenciais’ essas projeções do sujeito num imaginário
passional”. Entende-se que o sonhador se projeta em um imaginário passional e que essa projeção
é um simulacro existencial. O sonho simula o estado de alma do sujeito sonhador.
Ao refletir sobre a instância da enunciação no texto The Wake, compreende-se que o sonho é
representado, figurativizado no enunciado. Identifica-se o enunciador como aquele que, dotado
de competência, organiza e estrutura o texto plástico e o enunciatário como aquele que, ao
visualizar o texto, capta-lhe o sentido. Tanto o semblante do senhor dos sonhos quanto a forma
das outras figuras organizadas pelo enunciador sugerem um estado de melancolia, que se
impregna na enunciação e afeta o enunciatário. Percebe-se que o plano de expressão visual possui
uma dimensão patêmica e é capaz de simular um estado de alma. Para esclarecer essa constatação
destaca-se o conceito dos simulacros passionais. Ao abordar a questão da enunciação passional,
Bertrand (2003, p.379) considera que

A projeção dos simulacros é a característica central da enunciação passional. Ela


consiste em uma espécie de desdobramento imaginário do discurso. Nela o
sujeito elabora objetos repentinamente dotados de qualidades sintáxicas e
76

semânticas inéditas: assim o afeto, elevado à condição de objeto, tende a tornar-


se o parceiro-sujeito do sujeito apaixonado. A comunicação se estabelece então
nesse segundo plano do funcionamento discursivo: na troca passional, cada um
dos interlocutores dirige seus simulacros aos simulacros do outro.

Em The Wake, o enunciado simula uma dimensão patêmica que afeta a enunciação. Assim,
toda a comunicação é afetada já que ela ocorre em uma troca passional de simulacros que se
realiza entre os interlocutores. É por isso que Greimas e Fontanille (1993, p. 58), ao escreverem
sobre os simulacros passionais, consideraram que “tal concepção não deixa de acarretar
conseqüências para a teoria da comunicação e da interação em seu conjunto”.
Em The Wake, o enunciador tem competência para projetar um simulacro que comporta uma
dimensão patêmica e se relaciona a temas míticos e literários. O enunciatário precisa ser capaz de
reconhecer essa relação com outros textos, como a peça Hamlet, por exemplo, para entender
todos os temas que são abrangidos pelo texto visual. Essa é uma questão que diz respeito ao
campo do conhecimento, da cultura. Os simulacros passionais se estendem à dimensão cultural,
pois “cada um dirige seu simulacro ao simulacro de outrem, simulacros que todos os
interactantes, bem como as culturas às quais eles pertencem, ajudaram a construir.” (GREIMAS;
FONTANILLE, 1993, p. 59). Acontece que, se o enunciatário não reconhecer o modo como o
texto se relaciona a outros textos, a troca passional não estará comprometida, pois, segundo
Greimas e Fontanille (1993, p. 59)

[...] toda comunicação seria virtualmente passional, nem que seja porque basta
que um dos simulacros modais, utilizados por ocasião da interação, seja
sensibilizado – na cultura de pelo menos um dos interlocutores – para que a
totalidade da interação veja-se afetada. Essa versão estendida dos simulacros,
designados então como “simulacros passionais”, integra a totalidade do
equipamento modal (exterior ao próprio simulacro) que abre o espaço
imaginário do sujeito apaixonado; na versão estendida, é a comunicação toda
que repousa na circulação dos simulacros.

A ilustração The Wake é sensibilizada pelo modo como o enunciador figurativiza o sonho no
discurso (estado de melancolia entre a vida e a morte). Esse simulacro passional, manifestado em
uma organização discursiva plástica, afeta toda a interação e sensibiliza os leitores. A troca
passional ocorre no momento em que o leitor trava contato visual com o texto plástico. Nesse
sentido, a troca passional está ligada à questão do ato de leitura. Sobre a semiótica da leitura,
Bertrand (2003, p. 24) reflete:
77

Trata-se, com efeito, de procurar a conexão entre uma semiótica sistêmica e uma
semiótica da leitura: para a primeira, todas as relações são internas ao
dispositivo da língua. [...] A segunda reintroduz o sujeito do discurso e a
dimensão intersubjetiva da interlocução no ato de leitura. Ela reencontra, por
conseguinte, as questões colocadas especificamente, no domínio literário, pelas
discussões clássicas sobre a interpretação e seus limites, sobre a polissemia nos
textos, sobre a pluralidade das leituras. [...] Nessa perspectiva, o leitor não é
mais aquela instância abstrata e universal, simplesmente pressuposta pelo
advento de uma significação textual já existente, que se costuma chamar
“receptor” ou “destinatário” da comunicação: ele é também e sobretudo um
“centro do discurso”, que constrói, interpreta, avalia, aprecia, compartilha ou
rejeita as significações.

A semiótica da leitura redefine o estatuto do leitor conceituando-o como aquele que


participa diretamente do processo de significação. O leitor é dotado de competência para
interpretar, compartilhar ou rejeitar as significações. Ao ponderar sobre as conseqüências dos
simulacros passionais na enunciação, entende-se que o leitor é sensibilizado durante o ato de
leitura; mesmo que, em um momento posterior, ele queira rejeitar essa sensibilização. O conjunto
de significados míticos e literários organizados em The Wake, aliados ao caráter patêmico da
ilustração, interferem tanto no campo cognitivo quanto no campo afetivo do leitor.
O esquema da práxis enunciativa ajudará a compreender a variação tensiva e também a
organização dos elementos culturais que compõem a ilustração The Wake. A práxis enunciativa é
um conceito introduzido em semiótica por Greimas no final da década de 1980 e desenvolvido
por outros semioticistas como Bertrand, Fontanille e Zilberberg. Fontanille (2007, p. 109) define
a práxis enunciativa como um “conjunto aberto de enunciações encadeadas e sobrepostas no
interior do qual se introduz cada enunciação singular.”. Entende-se que toda enunciação integra
elementos de outras enunciações, mas cada enunciação se caracteriza por uma particularidade que
a diferencia das enunciações com as quais se relaciona. Segundo Fontanille (2007, p. 271-272):

A práxis enunciativa administra essa presença de grandezas discursivas no


campo do discurso: ela convoca ou invoca no discurso os enunciados que
compõem o campo. Ela os assume mais ou menos, ela lhes atribui graus de
intensidade e uma certa quantidade. Ela recupera formas esquematizadas pelo
uso ou, ainda, estereótipos e estruturas cristalizadas. Ela as reproduz tais como
são ou as desvirtua e lhes fornece novas significações. Ela também apresenta
outras formas e estruturas, inovando de forma explosiva, assumindo-as como
irredutivelmente singulares ou propondo-as para um uso mais amplamente
difundido.
78

É na instância da práxis enunciativa que ocorrem as mudanças nos enunciados que


compõem os discursos, mudanças dinâmicas que acontecem na linguagem. É a práxis que
remodela os elementos discursivos ao recuperar formas e estruturas já conhecidas ou ao
apresentar novas formas e estruturas. A práxis apresenta os enunciados do modo como já são
conhecidos em seu uso ou os altera para que adquiram novas significações. É assim que figuras
amplamente conhecidas (como a da cruz, que é um instrumento de tortura antigo) adquirem
novas significações ao serem representadas com elementos discursivos diferentes (a cruz também
é uma figura que remete ao tema da salvação no discurso da religião cristã). A práxis recupera
essas figuras e as remodela fornecendo-lhes elementos novos que se manifestam em discursos
originais.
Fontanille se apropria do conceito de semiosfera, desenvolvido pela semiótica russa, e o
conjuga ao conceito de práxis enunciativa. A práxis seria o domínio no qual um discurso
particular se sobrepõe a outros discursos com os quais se relaciona e a semiosfera seria o campo
no qual ocorre o diálogo entre diferentes concepções culturais.

A semiosfera é o domínio no qual os sujeitos de uma cultura experenciam a


significação. A experiência semiótica na semiosfera antecede, segundo Lotman,
a produção dos discursos, pois ela é uma de suas condições. A semiosfera é,
antes de tudo, o domínio que permite a uma cultura definir-se e situar-se para
poder dialogar com outras culturas. É também um campo cujo funcionamento
dialógico tem por principal tarefa regular e resolver as heterogeneidades
semioculturais. (FONTANILLE, 2007, p. 282 e 283)

A semiosfera é a instância na qual as diferenças culturais se integram de forma


harmoniosa no discurso. As diferenças entre elementos contraditórios de culturas distintas são
resolvidas na semiosfera. Assim, na enunciação, determinada cultura recebe em seu interior uma
cultura exterior que lhe é estranha. A contribuição exterior é percebida de forma intensa e a
cultura hospedeira irá modificá-la – no campo de presença espaço-temporal – de forma que o
estranho passe a ser difundido como algo familiar. A cultura hospedeira assimila a cultura
estrangeira modificando suas especificidades exteriores (que são percebidas na intensidade
sensível) e atenuando – no desdobramento da extensidade espaço-temporal – o impacto do
estranho. A contribuição exterior é modificada e se torna um signo de caráter universal.
Fontanille desenvolve um esquema que une o conceito de práxis enunciativa ao conceito de
semiosfera:
79

Conseqüentemente, a práxis atua em duas dimensões essenciais: a intensidade,


de um lado, e a quantidade, de outro. Portanto, seu campo de exercício, a
semiosfera, acolhe as contribuições e transforma-as em quatro fases definidas
como: (1) tipos A e B: a intensidade e a extensão evoluem em razão inversa uma
da outra. Em A, a irrupção explosiva da contribuição exterior engendra um afeto
intenso, mas sem extensão. Em B, a difusão compre seu papel, e a contribuição
exterior é, ao mesmo tempo, domesticada, negociada, diluída e integrada: o
campo inteiro é afetado por ela, mas fracamente; (2) tipos C e D: a intensidade e
a extensão evoluem na mesma direção, conjuntamente. Em C, tanto a extensão
como a intensidade estão no grau mais baixo. Em D, a amplificação – enfática,
conquistadora e normativa – cumpre seu papel e tange ao mesmo tempo a
intensidade (do reconhecimento) e a extensão (da difusão). O esquema da
semiosfera toma, então, a seguinte forma:

Esquema 5 – Práxis enunciativa e semiosfera


Fonte: Fontanille (2007, p. 285)

A aplicação desse esquema na ilustração The Wake: as figuras das estátuas sugerem a
idéia de morte como um elemento intenso (em A) enquanto a vegetação sugere a vida e dilui (em
C) a ênfase na morte, de forma que a morte é difundida com brandura (em B). A palidez do
senhor dos sonhos também sugere morte (em A), que é diluída pela luz vívida que o toca (em C),
de forma que os elementos que remetem à morte são difundidos de forma atenuada (em B).
Todos esses elementos que sugerem vida e morte no campo da cultura se desdobram (em D) com
ênfase tanto na intensidade (do reconhecimento do estranho) quanto na extensidade (da difusão
do familiar) e instauram um discurso que se caracteriza pela integração dos elementos culturais
que sugerem vida e morte. Mas qual seria o domínio no qual a vida e a morte são integradas? Que
dimensão envolve vida e morte de forma harmoniosa? O tempo é um domínio que existe de
80

forma independente dos conceitos de vida e morte. É o tempo que reúne a vida e a morte em uma
única dimensão, pois o tempo se perpetua em um espaço que abarca as noções transitórias de vida
e morte. Na ilustração The Wake, o tempo está relacionado ao amanhecer: o tempo é representado
pelo período em que a luz do sol nascente (despertar – wake) tinge as nuvens na parte superior do
plano de expressão visual.
Neste mesmo tópico, discutiu-se a relação entre o sonho e o tempo e também se refletiu
sobre o conceito de sonho como um estado intermediário entre a vida e a morte. Assim como o
tempo é a dimensão em que a vida e a morte são envolvidas, o sonho, como elemento cultural, é
um estado de alma que se situa entre a vida e a morte. De modo que sonho e tempo, entendidos
como conceitos semióticos, integram o mesmo domínio. Na aplicação do esquema da práxis
enunciativa – conjugado ao conceito de semiosfera – na ilustração The Wake, percebe-se que a
zona do “Desdobramento do universal”, em que as noções de vida e morte são integradas, é a
zona em que se situa o elemento sonho-tempo. O sonho (tempo) integra vida e morte em D.
Segundo Fontanille e Zilberberg (2001, p. 196):

A universalização de uma forma poderia até mesmo [...] ser definida como o
descarte da práxis que a produziu. A zona crítica do “desdobramento universal”
é, na verdade, o local onde se introduz um metadiscurso que redefine até o
próprio referente do discurso e da cultura. Nesse sentido, é em tal zona que se
realizam e estabilizam os remanejamentos do campo discursivo, para formar
novos “universos”.

Um discurso, embora esteja encadeado a outros discursos, possui uma singularidade que o
diferencia como uma práxis particular. Essa singularidade que define um discurso, mesmo ligado
a outros, ocorre na zona que Fontanille e Zilberberg (2001, p. 196) chamam de “desdobramento
universal”. Essa é a delimitação espacial esquemática em que se identifica a unidade singular de
um discurso. É na aplicação do esquema da práxis enunciativa, complementado pela semiosfera,
que se destaca a zona na qual um novo discurso se estabiliza de forma única: no caso de The
Wake, a particularidade do discurso é a integração de vida e morte na dimensão do sonho
(tempo).
81

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise feita no segundo capítulo evidenciou a intertextualidade que há entre a série
Sandman e textos da literatura universal (obras de Hesíodo, Homero, Ovídio, Camões e
Shakespeare). A intertextualidade é perceptível por meio da relação entre temas e figuras que
ocorrem na literatura (textos verbais) e nas HQs (textos sincréticos). Os conceitos da semiótica –
figuratividade e semi-simbolismo – possibilitaram explorar tanto o texto verbal quanto o texto
visual que compõem a estrutura das HQs. A semiótica passional mostrou a dimensão afetiva da
ilustração The Wake e tornou compreensível que o sonho é representado em um estado
intermediário entre a vida e a morte em vários textos da cultura ocidental. O esquema da práxis
enunciativa, complementado pela semiosfera, explorou as relações tensivas na ilustração The
Wake e situou o sonho como um conceito cultural relacionado à noção de tempo. Esses
resultados, obtidos a partir da análise, possibilitarão desenvolver considerações sobre o contexto
sócio-histórico no qual o corpus foi produzido.
Percebe-se, em uma leitura semiótica da série Sandman, que os mitos da literatura clássica
são re-estruturados em textos sincréticos produzidos pela indústria cultural de massa e
consumidos por leitores contemporâneos. Os temas e figuras da Antigüidade e os da
contemporaneidade inter-relacionam-se por meio de um discurso verbo-visual que atinge leitores
em todo o mundo. Temas lendários exercem uma atração muito grande sobre os leitores, como
reflete Morin (1969, p. 47), “um homem pode mais facilmente participar das lendas de uma outra
civilização do que se adaptar à vida desta civilização”. Os leitores de Sandman são atraídos pelo
fantástico, assim como a personagem mortal Hob Gadling é seduzida pela imortalidade oferecida
pelo senhor dos sonhos. Essa relação entre o imaginário e o real caracteriza outras produções da
indústria cultural contemporânea, como afirma Cortina (2004, p. 181) sobre os livros escritos por
J. K. Rowling: “Do ponto de vista discursivo, portanto, podemos observar que as histórias de
Harry Potter constroem-se por meio da associação entre o mundo mágico/imaginário dos
feiticeiros e o mundo real/concreto do leitor contemporâneo.”. As histórias da série Sandman
também são construídas por meio da relação entre o mundo fantástico (seres imortais e pactos
sobrenaturais) e o mundo real (guerras e problemas sociais)22. Os temas fantásticos propagam-se

22
As citações entre parênteses referem-se à história Men of Good Fortune.
82

no mercado mundial porque a indústria cultural reconhece que esse tipo de produção é
consumido em grande quantidade pelo público. A produção da indústria cultural está ligada à
questão da leitura.
Segundo pesquisas recentes, o número de HQs vendidas em bancas de jornais tem
diminuído (Conforme o texto “Livrarias em alta; bancas em baixa”, de Gonçalo Jr., publicado na
revista Cult nº 111). Em compensação, há um aumento das vendas de quadrinhos em livrarias. As
HQs são publicadas em álbuns de luxo e vendidas em livrarias para um público formado, em sua
maioria, por adultos. Esse fato faz surgir uma questão sobre o futuro dos leitores de quadrinhos,
pois o que acontece é que os leitores desse gênero, em sua maioria, aprendem a ler quadrinhos
quando crianças e preservam o hábito quando se tornam adultos. Se a quantidade dos quadrinhos
nas bancas continuar a diminuir, como se formará o futuro leitor de quadrinhos de livrarias?
É possível que os quadrinhos publicados para adultos deixem de ser relacionados a outras
HQs e passem a ser classificados em outros gêneros artísticos, como a pintura ou a literatura?
Existe uma grande quantidade de obras literárias sendo adaptadas para as HQs. São produzidas,
em álbuns com acabamento gráfico de luxo, adaptações em quadrinhos de obras literárias como
O Alienista, de Machado de Assis, Em Busca do Tempo Perdido, de Proust e a essencial versão
ilustrada do livro hebraico do Gênesis, segundo o subversivo quadrinhista Crumb, entre muitas
outras. A forma como esse tipo de trabalho é impresso eleva o preço da HQ, o que torna o
produto consumível apenas por leitores que tenham o poder aquisitivo necessário para comprá-lo.
As HQs publicadas para leitores adultos, portanto, não são classificadas somente pelo “conteúdo
intelectual”, mas, também, pelo alto custo no mercado.
As formas de leitura são afetadas pelas mudanças que ocorrem no contexto histórico e
social, pois, segundo Cortina (2004, p.163): “[...] o contexto pode implicar uma mudança no
critério tipológico de um texto.”. Em 1978, o quadrinhista Eisner publicou a HQ A Contract with
God, que foi classificada como Graphic Novel (romance gráfico). O termo Graphic Novel passou
a ser usado para classificar as HQs autorais publicadas pela indústria norte-americana, como é o
caso das famosas Graphic Novels Watchmen, de Moore e The Dark Knight Returns, de Miller. A
mudança tipológica das HQs afetou a produção da indústria e alterou a relação entre autores de
quadrinhos e público consumidor de forma radical. A indústria de HQs passou a publicar
trabalhos mais elaborados, com interferência em outros gêneros discursivos (como a literatura).
83

Todas essas transformações na produção de sentidos simulam também transformações no


contexto histórico e social no qual as HQs são produzidas.
É muito importante ressaltar a relevância do contexto histórico nas produções culturais
contemporâneas. O historiador E. Hobsbawm (1999, p. 483), ao refletir sobre as artes após a
década de 1950, considera não ser mais possível estudar uma produção cultural separada de seu
contexto:

É prática dos historiadores – incluindo este – tratar os fatos das artes, por mais
óbvias e profundas que sejam suas raízes na sociedade, como de algum modo
separáveis de seu contexto contemporâneo, como um ramo ou tipo de atividade
humana sujeito às suas próprias regras, e capaz de ser julgado como tal.
Contudo, na era das mais extraordinárias transformações da vida humana até
hoje registradas, mesmo esse antigo e conveniente princípio de estruturar um
estudo histórico se torna cada vez mais irreal. Não apenas porque as fronteiras
entre o que é e o que não é classificável como “arte”, “criação” ou artifício se
tornaram cada vez mais difusas, ou mesmo desapareceram completamente, ou
porque uma escola influente de críticos literários no fin-de-siècle julgou
impossível, irrelevante e não democrático decidir se Macbeth, de Shakespeare, é
melhor ou pior que Batman, mas também porque as forças que determinavam o
que acontecia com as artes, ou o que os observadores anacrônicos teriam
chamado por esse nome, eram esmagadoramente exógenas. Como seria de
esperar numa era de extraordinária revolução tecnocientífica, eram
predominantemente tecnológicas.

Compreende-se que a conceituação de arte, a partir da década de 1950, é determinada pelo


contexto histórico contemporâneo, marcado por um grande desenvolvimento tecnológico. É nesse
sentido que as produções da indústria cultural (rock’n’roll, cinema, quadrinhos, etc.) interferem
na compreensão sobre o que é arte na contemporaneidade. A série Sandman trabalha referências
literárias shakespearianas (como foi analisado no segundo capítulo desta dissertação) na estrutura
sincrética de um texto da indústria cultural. Apesar de esta relação entre HQ e literatura
emprestar um tom “literário” à série, isto não pode ser considerado um fator que caracteriza
Sandman como uma “HQ literária” (como se pode ler na nota 20, várias mídias tratam a série
Sandman como literatura). Isso não significa que a série carece de qualidade e complexidade,
mas que o próprio conceito de literatura, na contemporaneidade, é exógeno (o contexto histórico
é tão relevante para determinar se um texto é literário quanto a estrutura interna da obra) e,
justamente por isso, não se classifica um texto como literário apenas pela intertextualidade com
elementos da literatura universal. Um dos fatores que mais definem Sandman como um texto não
84

literário é sua própria estrutura verbo-visual, que a difere da estrutura verbal dos textos literários,
como já foi dito no terceiro tópico do segundo capítulo. É preciso entender que as HQs se
definem por uma estrutura sincrética e, se possuem um “valor artístico”, é devido à organização
dos elementos específicos de sua linguagem e não à sua relação com a literatura. A comparação
entre HQ e literatura é injusta porque supõe que os quadrinhos precisam estar relacionados a
elementos literários para adquirirem estatuto de “arte”, mas é a própria linguagem sincrética das
HQs que as distingue como um tipo singular de texto.
Qual seria o fator determinante na classificação de Sandman como uma HQ produzida para
adultos? Como se define a noção de adulto na sociedade contemporânea?
A noção de adulto, na primeira metade do século XX, era determinada pela predominância
da família tradicional na sociedade ocidental. Na família tradicional, cujos valores eram
patriarcais, o estilo de vida dos mais velhos predominava, segundo Hobsbawm (1999, 319):

[...] até a década de 1970 o mundo do pós-guerra era na verdade governado por
uma gerontocracia, em maior medida do que na maioria dos períodos anteriores,
sobretudo por homens – dificilmente por mulheres ainda – que já eram adultos
no fim, ou mesmo no começo, da Primeira Guerra Mundial.

Mas a família tradicional entra em crise. Entre os fatores que determinam o


desmoronamento da família tradicional destaca-se o desenvolvimento tecnológico da sociedade
de consumo. A juventude se torna uma classe cujos valores são predominantes na segunda
metade do século XX. Ao escrever sobre a revolução jovem após a década de 1950, Hobsbawm
(1999, p. 320) considera que a juventude

[...] tornou-se dominante nas “economias de mercado desenvolvidas”, em parte


porque representava agora uma massa concentrada de poder de compra, em parte
porque cada nova geração de adultos fora socializada como integrante de uma
cultura juvenil autoconsciente, e trazia as marcas dessa experiência, e não menos
porque a espantosa rapidez da mudança tecnológica na verdade dava à juventude
uma vantagem mensurável sobre grupos etários mais conservadores, ou pelo
menos inadaptáveis. Qualquer que fosse a estrutura de idade da administração da
IBM ou da Hitachi, os novos computadores eram projetados e os novos
programas criados por pessoas na casa dos vinte anos. Mesmo quando essas
máquinas e programas eram, esperava-se, à prova de erro, a geração que não
crescera com eles tinha uma aguda consciência de sua inferioridade em relação
às gerações que o haviam feito. O que os filhos podiam aprender com os pais
tornou-se menos óbvio do que o que os pais não sabiam e os filhos sim.
85

Inverteram-se os papéis das gerações. [...] Passou a existir uma cultura jovem
global.

Com a descentralização da família tradicional e com a ascensão da juventude como uma


cultura global, ocorre a transformação da noção de adulto. A juventude oblitera a geração anterior
ao agir de forma radicalmente oposta aos atos e aos valores de seus pais. A Guerra do Vietnã,
empreendida pela geração norte-americana criada no período da família tradicional, era criticada
pela juventude da década de 1960 por meio de atitudes extremamente opostas ao militarismo:

[...] o uso de drogas era por definição uma atividade proscrita, e o próprio fato
de a droga mais popular entre os jovens ocidentais, a maconha, ser
provavelmente menos prejudicial que o álcool e o tabaco tornava o fumá-la
(tipicamente uma atividade social) não apenas um ato de desafio, mas de
superioridade em relação aos que a proibiam. Nas loucas praias dos anos 60
americanos, onde se reuniam os fãs de rock e estudantes radicais, o limite entre
ficar drogado e erguer barricadas muitas vezes parecia difuso. (HOBSBAWM,
1999, p. 327)

As revoluções culturais da década de 1960 – tanto a revolução hippie nos Estados Unidos
quanto o movimento estudantil de Maio de 1968 na França – marcam o período em que ser jovem
não é mais uma fase em que o indivíduo se prepara para ser adulto, pois a juventude passa a ser o
momento crucial do desenvolvimento humano. Os mitos da cultura jovem (James Dean, Jimi
Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, etc.) morreram antes dos trinta anos de idade, pois, de
acordo com os valores emergentes da revolução cultural, nega-se “[...] humanidade plena a
qualquer geração acima dos trinta anos de idade [...]” (HOBSBAWM, 1999, p. 318). Nesse
contexto, os produtos culturais amplamente consumidos pela juventude – HQs, rock’n’roll,
cinema, etc. – passam por transformações em expressão e conteúdo. É na década de 1960 que R.
Crumb produz a HQ Zap Comix, com histórias que criticam os valores tradicionais da família
norte-americana, esta revista é consumida pela juventude hippie de Haight-Ashbury Street, em
San Francisco. O quadrinhista europeu Gotlib, nesse mesmo período, submete suas personagens a
cenas de exposição sexual caricaturadas, para chocar os valores tradicionais. I. Nahoum, ao tratar
da questão da revolução cultural, no segundo volume de Cultura de Massas no Século XX, de
Morin (2006 p. 132 e 134), considera que

Uma cronologia circunstancial específica se abre, com efeito, com a


metamorfose da cultura de massas; citemos incompletamente o nascimento do
movimento underground norte-americano com suas múltiplas filiações até a
86

mutação da história em quadrinhos, do cinema de autor (nouvelle vague


francesa, etc.), a odisséia dos grupos pop, as revoltas estudantis [...] Ver um
filme “underground” ou de um “autor jovem”, ler uma história em quadrinhos de
Crumb ou de Gotlib, comprar Charlie Hebdo, vestir-se freaks ou fora de moda,
assistir a um concerto de música pop não são atos anódinos; significam uma
tomada de posição política e existencial “mínima”. [...] A moda freaks no trajar
não se contenta em desprezar os valores burgueses de elegância e de bom gosto
(fundados na harmonia das cores e na sobriedade das formas): significa a
dissonância, o barulho e a fúria do nosso mundo. O ou a freak não quer ser
reconhecido, mas designado como “outro”. Um “outro” discordante,
sarapintado, bárbaro, não policiado, que navega nos canais subterrâneos da
cultura de massas.

Ao ir contra os valores da família tradicional, a juventude institui suas produções culturais,


criadas a partir dos valores contraculturais em emergência, não apenas como formas de
entretenimento, mas como meios de se posicionar como o “outro”, como aquele que discorda dos
valores vigentes. O desmoronamento da família tradicional e de seus valores é também o
desmoronamento da noção de adulto tradicional. Entende-se que, após a revolução cultural, surge
a noção de que a integração na cultura opositora (ou underground) é uma atitude mais “digna” do
que a simples aceitação dos valores sociais em vigor. Isso torna disfórico o caráter do adulto
tradicional.
A personagem Sandman é representada com elementos característicos da cultura jovem do
final da década de 1980, período em que foi produzida a série: no último quadro da página 122, a
figura de Lorde Morpheus, ao usar um penteado punk e vestir um sobretudo preto, assume traços
característicos do underground, do “outro” que discorda da moda e dos valores tradicionais
(percebe-se que Hob Gadling e as outras personagens presentes no bar vestem-se de acordo com
padrões comportamentais tradicionais). De forma que o perfil do adulto tradicional nas figuras
das personagens títulos de HQs norte-americanas – como o milionário Bruce Wayne (Batman) e
o repórter Clark Kent (Superman) – é substituído por elementos contraculturais na figura da
personagem Sandman. Isso é muito significativo ao se considerar que Sandman é uma
personagem de poderes extraordinários, mais antiga que os deuses, e se apresenta aos olhos
humanos, nas HQs Men of Good Fortune e A Midsummer Night’s Dream, sempre com trajes da
nobreza (no sentido aristocrático de um “monarca dos sonhos”). Percebe-se que a figura
manifestada do senhor dos sonhos – nos tempos contemporâneos – integra a estética que a
revolução cultural imprimiu na sociedade:
87

Muito rapidamente, a partir dos anos 60 nos países ocidentais, depois


atravessando de maneira mais ou menos tolerada, mais ou menos clandestina, as
fronteiras dos países do Leste e implantando-se nas grandes cidades do Terceiro
Mundo, constitui-se uma cultura que dispõe, não apenas das suas emissões de
rádio e dos seus jornais, mas dos seus lugares de reunião, dos seus trajes.
Carnaby Street e Greenwich Village são novos pólos de desenvolvimento da
cultura juvenil: ali reinam a fantasia, o desejo de liberdade e de autenticidade; ali
se constituem núcleos semiparasitários, semi-emancipados com relação à
sociedade adulta, nos quais a gente se esforça por viver no desabrochar do ego e
da comunidade. Assim se cultivam, se protegem, se propagam os fermentos de
uma segregação e de uma autonomia cultural. Esta cultura adolescente-juvenil é
ambivalente. Ela participa da cultura de massas que é a do conjunto da
sociedade, e, ao mesmo tempo procura diferençar-se. (MORIN, 2006, p. 139)

Assim, os elementos da contracultura tornam-se elementos culturais no momento em que


deixam de ser um estranhamento (impacto intenso) e integram-se, no decorrer do tempo, na
cultura de forma familiar (desdobramento extenso). O senhor dos sonhos das HQs manifesta-se
por meio da relação com vários mitos da literatura clássica. Esses mitos clássicos, que também
são senhores dos sonhos, ocupam um lugar no panteão de muitas culturas pagãs. O Sandman das
HQs reúne os temas e as figuras míticas de deuses do sonho na concretização de temas e figuras
característicos da revolução cultural pós década de 1950. Elementos míticos remetem ao sentido
do fantástico e do lendário. O texto de Morin, citado acima, chama a atenção para a “fantasia”
presente nas aspirações do movimento contracultural. Isso é perceptível na famosa frase que foi
dita após a morte de John Lenon, um dos maiores líderes da contracultura: “The dream is over”
(O sonho acabou). O período da revolução cultural é marcado pela idéia de sonho e fantasia.
Compreende-se que durante um período de grandes mudanças sócio-culturais os leitores sentem a
necessidade de entender os novos acontecimentos: os elementos fantasiosos e oníricos que
caracterizam vários discursos produzidos no período da revolução cultural – e também no período
posterior – revelam a presença da idealização, de uma atribuição de sentido – muitas vezes
fantástica – aos valores que se delineiam. Morin (1969, p. 47) considerou que o homem “[...]
pode mais facilmente participar das lendas de uma outra civilização do que se adaptar à vida
desta civilização.”23; no caso da revolução cultural, a civilização anterior estava sendo negada e
havia o desejo de criar uma outra forma de civilização, que, difícil de ser visualizada, estava
imersa em conceitos fantasiosos e sonhadores.

23
Esse texto foi citado no início das considerações finais e é usado novamente para retomar o raciocínio.
88

Ao considerar que a revolução cultural ocorreu há décadas, entende-se que esse é um


período histórico curto. As marcas da contracultura (intensas) ainda irrompem na cultura
(extensa). Mesmo que o impacto dos elementos contraculturais tenha se atenuado, a sociedade
ainda não os assimilou completamente, pois pouco tempo se passou; é por isso que elementos da
contracultura ainda compõem discursos originais no final do século XX e no início do século
XXI. As transformações culturais são assimiladas por relações perceptivas sensíveis (impacto do
estranho) e cognoscíveis (desdobramento e difusão). O impacto do estranho (intensidade) ainda
está se integrando no desdobramento espaço-temporal (extensidade).
A figura do senhor dos sonhos nos tempos contemporâneos (último quadro da página 122)
remete à estética – corte de cabelo e roupas – contracultural (punck rock inglês) do final da
década de 1980. A série Sandman, que apresenta um senhor dos sonhos aristocrático, apático e
fabulosamente poderoso, consagra e representa em expressão e conteúdo a geração que cresceu
no período da revolução cultural na segunda metade do século XX. A inter-relação de Sandman
com a mitologia clássica em sua figura contracultural representa o modo como as gerações
contemporâneas se relacionam com os mitos, que passaram a ser difundidos pela indústria
cultural (Superman, Batman, Elvis Presley, John Lenon, Marilyn Monroe, etc.). A série Sandman
elabora, nos temas e figuras dos Perpétuos, um panteão de divindades da cultura contemporânea.
Essa representação de ícones da cultura popular é uma característica fundamental da pop art,
como já foi dito na introdução desta dissertação. A pop art possibilitou a difusão do pós-
modernismo:

Com o surgimento da pop art, mesmo o grande baluarte do modernismo nas


artes visuais, a abstração, perdeu sua hegemonia. A representação se tornou cada
vez mais legítima. O “pós-modernismo”, assim, atacou estilos autoconfiantes e
exaustos, ou antes os meios de realizar tanto atividades que tinham de prosseguir
num estilo ou noutro, como prédios e obras públicas, quanto as que não eram em
si indispensáveis, como a produção artesanal de pinturas de cavalete para serem
vendidas individualmente. Daí o engano de analisá-lo basicamente como uma
tendência dentro das artes, semelhante ao desenvolvimento das vanguardas. Na
verdade, sabemos que o termo pós-modernismo se espalhou para todo tipo de
campos que nada têm a ver com as artes. Na década de 1990, havia filósofos,
cientistas sociais, antropólogos e historiadores “pós-modernos”, além de outros
praticantes de disciplinas que antes não tendiam a tomar sua terminologia
emprestada às artes de vanguarda, mesmo quando por acaso se associavam com
elas. A crítica literária, claro, adotou-o com entusiasmo. Na verdade, modas
“pós-modernas”, iniciadas sob vários nomes (“desconstrução”, “pós-
estruturalismo” etc.) entre a intelligentsia de fala francesa, chegaram aos
departamentos de literatura americanos, e daí ao resto das humanidades e
89

ciências sociais. [...] O pós-modernismo, portanto, não se limitou às artes.


Apesar disso, provavelmente houve bons motivos para o termo surgir primeiro
no cenário artístico. Pois a essência mesma das artes de vanguarda era uma
busca de meios de expressar o que não podia ser expresso nos termos do
passado, ou seja, a realidade do século XX. Esse foi um dos dois ramos do
grande sonho desse século, sendo o outro a busca da transformação radical da
realidade. (HOBSBAWM, 1999, ps. 499-500)

O pós-modernismo, que transcendeu o mundo das artes, é um movimento artístico que se


caracteriza, basicamente, pela representação, pelo desejo de expressar a realidade contemporânea
da segunda metade do século XX. A série Sandman apresenta a estética contemporânea na figura
da personagem título – que é uma versão pós-moderna do mito do senhor dos sonhos – e também
faz menção à realidade política do final do século XX (como se percebe na referência a um
descontentamento popular em relação ao governo de Margareth Thatcher, no primeiro balão do
primeiro quadro da página 122. A AIDS, síndrome surgida no final do século XX, também é
mencionada em um dos balões deste mesmo quadro). Os elementos referentes à realidade sócio-
histórica do contexto de produção de Sandman são envolvidos no universo onírico da série. Essa
sobreposição de elementos fantasiosos e realistas no estilo de Gaiman talvez seja um dos motivos
pelos quais o escritor é citado no Dicionário de Biografia Literária entre os dez maiores escritores
pós-modernos vivos (Conforme o site E:\Neil Gaiman FLIP2008.htm).
O século XX foi marcado por uma grande evolução tecnológica, que dinamizou a
propagação da imagem nos meios de comunicação. As HQs desenvolveram-se e integraram-se na
indústria cultural justamente por serem textos verbo-visuais, com toda a dinamicidade de leitura
que caracteriza os objetos textuais contemporâneos. Compreende-se que, em um século marcado
por transformações culturais, os meios acadêmicos também se preocuparam em desenvolver
teorias que possibilitam analisar os novos tipos de textos em emergência. A incorporação de
termos lógico-matemáticos nos conceitos da semiótica denota o impacto do desenvolvimento das
ciências exatas no interior das ciências humanas. O que não é de se espantar em um período de
intenso desenvolvimento tecnológico, no qual as “ciências duras” (física, química, etc.) tiveram
um papel fundamental. Com base na lingüística, a semiótica procura, por um caminho entre a
filosofia e a lógica-matemática, entender o vasto domínio da significação, ou seja, o modo como
o mundo adquire sentido na linguagem.
A aplicação da teoria semiótica na série Sandman possibilitou o entendimento da estrutura
do objeto e, a partir da análise do texto, foi possível tirar conclusões acerca do período sócio-
90

histórico no qual a HQ surgiu. A cultura do final do século XX e início do século XXI é uma
cultura que emerge de uma época de grandes transformações. A irrupção de novidades culturais
requer o desenvolvimento de novas técnicas analíticas para a compreensão da realidade histórica
e cultural. É a partir dessa reflexão que se procuram examinar novos tipos de textos e novos
acontecimentos, que precisam ser explicados. É necessário analisar a linguagem sob diversas
perspectivas e entender que há muitos objetos que ainda não foram esclarecidos.
Compreende-se, ao tratar-se da significação, que a realidade é estabelecida pelo sentido que
é atribuído ao mundo por meio da linguagem.
91

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ANEXOS
97

ANEXO A – Men of Good Fortune


98
99
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ANEXO B – Perpétuos
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Da esquerda para a direita, de pé: Morte, Destino, Sonho, Destruição e Desejo.


Da esquerda para a direita, abaixadas: Desespero e Delírio.
125

ANEXO C – A Midsummer Night’s Dream


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150
151

ANEXO D – Livros da Magia


152
153

ANEXO E – The Wake


154
155

ANEXO F - Hamlet

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