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Os arminianos tentam reformar a teologia reformada


A teologia arminiana provém do teólogo reformado holandês Jacó
Armínio, que nasceu em 1560 e morreu em 1609, aos 49 anos de idade1
Armínio e sua teologia eram polêmicos em todas as partes dos Países Baixos,
bem como na Grã-Bretanha e em outros países onde a teologia reformada
predominava ou tinha influência. A certa altura da controvérsia, irromperam
motins nas principais cidades da Holanda e de outras províncias dos Países
Baixos. Em vida, Armínio e seus ensinos provocaram uma divisão tão
profunda na comunidade reformada que o governo holandês acabou se
envolvendo. Embora exonerado de uma heresia pela mais alta autoridade
governante do país, acabou morrendo em meio a outra crise entre a igreja e o
estado, que girou em torno de sua crítica pública às doutrinas calvinistas. Seus
seguidores, chamados remonstrantes (Remonstrantia foi o seu documento de
protesto), retomaram a bandeira deixada por ele e continuaram o desafio. No
fim, foram excomungados da igreja reformada dos Países Baixos pelo Sínodo
de Dort (1618-1619) e seus líderes foram exilados pelo governo holandês. Um
deles, que trabalhou muitos anos como o principal estadista dos Países Baixos
foi preso e decapitado publicamente, em parte, pelo menos, por causa de seu
apoio intransigente à “heresia” do arminianismo.
Séculos depois da controvérsia dos remonstrantes, o arminianismo
tornou-se praticamente sinônimo de pelagianismo para os puritanos e outros
calvinistas conservadores. Jacó Armínio, no entanto, negou expressamente ser
pelagiano ou ter qualquer simpatia pela heresia da salvação sem a ajuda da
graça sobrenatural. Muitos oponentes cautelosos equiparam a teologia
arminiana com o semipelagianismo, embora o próprio Armínio tenha
afirmado que a iniciativa da salvação parte exclusivamente de Deus e que a
salvação em si se dá pela graça mediante a fé somente. Armínio considerava-
se protestante leal à Igreja reformada da Holanda que simplesmente
discordava de algumas opiniões do calvinismo. Em especial, rejeitava a versão
extrema do calvinismo chamada supralapsarismo, mas acabou rejeitando
qualquer tipo de crença na eleição divina incondicional – ou predestinação de
uma pessoa ao céu ou ao inferno. Como muitos calvinistas de sua época (e
desde então) equiparavam a doutrina protestante da justificação pela graça
mediante a fé somente com o monergismo e o sinergismo com a doutrina
católica romana, Armínio foi acusado de ser um simpatizante secreto de
Roma. Armínio e seus seguidores negavam veementemente que o

1
A maior parte das informações biográficas sobre Jacó Armínio foi tirada de Arminius: a study in the Dutch reformation,
de Carl Bangs (Grand Rapids, Zondervan, 1985).
2

monergismo é o único conceito do relacionamento entre Deus e os seres


humanos caídos e pecadores que adequadamente considera a salvação pura
dádiva gratuita. Embora rejeitassem a eleição incondicional e a graça
irresistível, defendiam os principais princípios protestantes e afirmavam que a
justiça de Cristo é imputada aos pecadores para sua salvação mediante a fé
somente.
Sem dúvida ou questionamento, Armínio é um dos teólogos mais
injustamente ignorados e grosseiramente mal interpretados da história da
teologia cristã. Tanto ele como sua teologia são “frequentemente avaliados
segundo boatos superficiais”.2 Um comentarista e crítico reformado moderno
notou que “a teologia de Jacó Armínio é desprezada tanto por admiradores
quanto por difamadores”3 e disse que Armínio, é “um dos doze ou mais
teólogos da história da igreja cristã que ofereceu um critério permanente para
a tradição teológica e, com isso, transformou seu nome em símbolo de um
ponto de vista doutrinário ou confessional específico”4, o que torna
duplamente irônico que seja “um dos principais e também mais desprezados
teólogos protestantes”.5 Para compreender Armínio e sua teologia e a
profunda divisão que ela provou na teologia protestante teremos de voltar na
história até antes do próprio Armínio e examinar a teologia reformada depois
de Calvino.

O escolasticismo reformado e o supralapsarismo


Embora os principais reformadores protestantes da primeira geração,
como Lutero, Zuínglio e Calvino, tenham reagido contra o escolasticismo e a
teologia escolástica, seus seguidores imediatos voltaram-se para um tipo de
pensamento escolástico que dava mais ênfase à filosofia e à lógica e procurava
usá-las para desenvolver sistemas altamente coerentes de doutrina
protestante. Essa tendência dos pensadores protestantes da pós-Reforma
rendeu-lhes o rótulo dúbio de “escolásticos protestantes” e sua teologia é
caracterizada com imprecisão como escolasticismo protestante. O que muitos
deles tentaram fazer foi encontrar e construir uma ortodoxia protestante rígida
que contestasse todas as heresias, inclusive os ataques de céticos e críticos
romanos. Portanto, enquanto Lutero e Calvino estavam satisfeitos com um
pouco de mistério na teologia, esses escolásticos protestantes tentaram
obliterar o mistério, a incerteza e a ambiguidade da teologia protestante ao

2
Charles M. CAMERON, Arminius: hero or heretic?, Evangelical Quarterly 64, 3: 213, 1992.
3
Richard A. MULLER, God, creation and providence in the thought of Jacob Arminius, Grand Rapids, Baker, 1991, p. 269.
4
Ibid., p. 3.
5
Ibid., p. ix.
3

imitarem o estilo de Tomás de Aquino, que procurou empregar as Escrituras,


a tradição e a razão para desenvolver um sistema abrangente de toda a
verdade. Naturalmente, a maioria dos escolásticos protestantes dos séculos
XVI e XVII não tinha consciência das semelhanças entre seus próprios
empreendimentos teológicos e os de Tomás de Aquino e de outros teólogos
católicos medievais. Apesar disso, os teólogos históricos posteriores, ao
examiná-los, não puderam deixar de perceber a semelhança.
Richard Muller, um dos principais estudiosos modernos do
escolasticismo moderno, define-o como “teologia acadêmica, identificada pela
cuidadosa divisão dos temas, e definição das partes componentes e pelo
interesse em impelir questões lógicas e metafísicas levantadas pela teologia
para respostas racionais”.6 Muller descreve com exatidão essa teologia pós-
Reforma protestante do final do século XVI (Exatamente quando Armínio
estava começa seu ministério em Amsterdã) como “ortodoxia confessional
mais rigorosamente definida em seus limites doutrinários do que a teologia
dos reformadores primitivos, mas, ao mesmo tempo, mais ampla e mais
diversificada no emprego de material de tradição cristã, particularmente do
material fornecido pelos doutores medievais [em teologia]”.7 Embora poucos
(ou talvez nenhum) desses praticantes do escolasticismo protestante
reconhecessem explicitamente sua dívida para com fontes documentais
católicas romanas, os sistemas de pensamento ortodoxo protestante que
desenvolveram dependia muito das referidas fontes e, sobretudo, de seus
métodos de dedução lógica e especulação metafísica.
Um dos exemplos mais notáveis desse escolasticismo protestante
incipiente é o sucessor de Calvino em Genebra, Teodoro Beza (1519-1605).
Quando Calvino morreu, em 1564, “toda a responsabilidade de Calvino recaiu
sobre Beza. Beza era chefe da Academia [de Genebra] e professor, presidente
do Conselho dos Pastores, uma influência poderosa sobre os magistrados de
Genebra e porta-voz e defensor da posição protestante reformada”.8 Assim
como vários outros pastores e teólogos reformados de todas as partes da Grã-
Bretanha e da Europa continental, Jacó Armínio foi aluno de Beza por algum
tempo. Posteriormente, é claro, rejeitou as conclusões de Beza, ficavam
fascinados com perguntas sobre os decretos de Deus. Tanto Zuínglio como
Calvino enfatizavam que tudo que acontece – inclusive a queda de Adão e Eva
e a eleição de alguns seres humanos para a salvação e de outros para a

6
Ibid., p. 31.
7
Ibid., p. 32.
8
Robert SCHNUCKER, Theodore Beza, in: The new international dictionary of the Christian church, J. D. Douglas, org.,
Grand Rapids, Zondervan, 1974, p. 126.
4

perdição – é determinado por Deus. Em outras palavras, esses dois teólogos


suíços reformados afirmaram que nada acontece, nem pode acontecer, por
acidente ou mesmo por contingência. Tudo que acontece fora do próprio
Deus, acontece por decreto divino. Deus prediz o que vai acontecer, porque
tudo é predestinado por ele e ele predestina porque decreta que assim seja por
toda a eternidade.
Beza e outros teólogos reformados depois de Calvino começaram a
pensar e especular a respeito da “ordem dos decretos divinos”. Em outras
palavras, interessavam-se pelos propósitos supremos de Deus para todas as
coisas. Por que Deus criou o mundo? Seu decreto da criação do mundo é
logicamente anterior ao decreto de predestinar algumas pessoas para a
salvação e outras para a perdição eterna ou o contrário? Eles concordavam que
todos os decretos de Deus são simultâneos e eternos, porque aceitavam a
noção de Agostino da eternidade como o “momento presente eterno” no qual
todos os tempos – passado, presente e futuro – são simultâneos. Acreditavam
que, para Deus, não há nenhuma separação, nem sequer sucessão, de
momentos. Tudo é eternamente presente. Por isso, Deus não decreta algo e
depois espera para ver o que acontece para então, dependendo do resultado,
decretar outra coisa. Todos os decretos de Deus em relação ao que está fora
dele (a criação) são simultâneos e eternos. Logo, quando Beza e outros
protestantes especulavam e debatiam a respeito da “ordem dos decretos
eternos”, referiam-se à ordem lógica e não a alguma ordem cronológica.
Portanto, a pergunta era: Qual é a ordem lógica correta dos decretos de Deus
com relação à criação e à redenção? É uma questão importante, porque a
maneira de vermos os propósitos supremos de Deus para as coisas depende
de como consideramos a ordem dos decretos divinos e vice-versa.
Beza e outros calvinistas eram obcecados pela doutrina da predestinação,
muito mais do que Calvino jamais foi. Enquanto Calvino situou essa doutrina
dentro da categoria da redenção como parte da atividade graciosa de Deus e
admitia o mistério em relação aos propósitos de Deus na eleição e reprovação
divinas, Beza situou a predestinação dentro da doutrina de Deus como a
dedução direta do poder, dos conhecimentos e do governo providencial de
Deus.9 Assim, aproximava-se muito mais de Zuínglio do que de Calvino. Beza,
assim como a maioria dos calvinistas, também deduziu a doutrina da expiação
limitada – que Cristo morreu somente pelos eleitos e não pelos réprobos – a
partir da doutrina da providência e dos decretos de eleição divinos. Essa

9
Justo GONZÁLEZ, A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1987, p. 270-8. V. 3: From the
protestant reformation to the twentieth century.
5

dedução, embora lógica, não se encontra em Calvino. Para proteger a doutrina


da predestinação de qualquer desgaste pelo sinergismo. Beza e outros
calvinistas rígidos do século XVI desenvolveram o supralapsarismo. Supra
indica a prioridade lógica em relação a alguma outra coisa. Lapsarismo é uma
referência à queda da humanidade (da mesma raiz que lapso – “cair”). Por
isso, supralapsarismo significa, literalmente, “alguma coisa anterior à queda”.
Isso, porém, dificilmente explica sua relevância teológica.
Teologicamente, o supralapsarismo é uma forma de ordenar os decretos
divinos de tal maneira que a decisão e o decreto de Deus em relação à
predestinação dos seres humanos, ao céu ou ao inferno, antecede seus
decretos de criar os seres humanos e permitir sua queda. A ordem típica dos
decretos divinos, segundo o supralapsarismo, é a seguinte:
1. O decreto divino de predestinar algumas criaturas à salvação e à vida eterna
e outras à perdição e ao castigo eterno no inferno.
2. O decreto divino de criar.
3. O decreto divino de permitir que o seres humanos caiam no pecado.
4. O decreto divino de fornecer maios para a salvação (Cristo e o evangelho)
dos eleitos.
5. O decreto divino de aplicar aos eleitos a salvação (a justiça de Cristo).

A ordem supralapsária dos decretos divinos deixa claro que o primeiro e


principal propósito de Deus no seu relacionamento com o mundo é glorificar a
si mesmo (sempre o motivo principal de Deus em tudo), salvando algumas
criaturas e condenando outras. A dupla predestinação, portanto, logicamente
antecede à criação, à queda e todas as demais coisas, inclusive a encarnação de
Cristo e sua expiação, na intenção e no propósito de Deus.
Beza e os demais calvinistas supralapsários acreditavam estar apenas
esclarecendo os pormenores lógicos da doutrina da eleição ensinada pelo
próprio Calvino. Não se sabe se isso era verdade. Alguns estudiosos acreditam
que Calvino o teria aprovado. Outros acham que ele teria rejeitado o
supralapsarismo e preferido o contrário, o infralapsarismo. Infra indica
subsequência a outra coisa. Nesse caso, o infralapsarismo subordina o decreto
divino da predestinação ao decreto de permitir a queda da humanidade no
pecado. Segundo os calvinistas infralapsários, o propósito supremo de seu
plano global não é eleger alguns e reprovar outros, mas glorificar a si mesmo
pela criação do mundo. Foi somente porque os seres humanos caíram no
pecado que Deus subsequentemente (pela ordem lógica) decretou a dupla
predestinação. Portanto, a ordem típica dos decretos divinos no
infralapsarismo é o seguinte:
6

1. O decreto divino de criar o mundo e, nele, a humanidade.


2. O decreto divino de permitir a queda da humanidade.
3. O decreto divino de eleger alguns seres humanos à salvação e à vida eterna
e predestinar outros à perdição e ao castigo eterno.
4. O decreto divino de fornecer o meio de salvação (Cristo) aos eleitos.
5. O decreto divino de aplicar a salvação aos eleitos e deixar os réprobos (os
predestinados à perdição) ao seu destino merecido.

Os supralapsários e os infralapsários concordavam em muitos assuntos.


Concordavam que Calvino tinha a visão básica correta do plano e propósito
de Deus em relação à criação: glorificar a si mesmo através de tudo.
Concordavam que Deus controla tudo que acontece, tanto na criação quanto
na redenção, e que nada acontece sem que ele o decrete e faça acontecer.
Concordavam que a queda da humanidade e o destino final de cada ser
humano no céu ou no inferno é predestinados por Deus, e não apenas
previstos ou prenunciados. Concordavam que Deus não é responsável pelo
pecado nem pelo mal, no sentido de carregar algum fardo de culpa por isso,
pois ele está acima das leis e das noções humanos de equidade. Tudo o que
Deus faz é correto, porque glorifica a ele e, conforme Beza supostamente
declarou: “Os que sofrem eternamente no inferno podem pelo menos se
consolar com o fato de estarem ali para a maior glória de Deus”.
A discórdia entre os supralapsários e os infralapsários girava em torno de
o primeiro propósito (supremo) de Deus ser o de se glorificar pela
predestinação ou pela criação. Outra maneira de expressar a questão é que os
supralapsários consideravam que o decreto divino da predestinação se
aplicava aos seres humanos como criaturas, sem levar em conto o fato de
também serem pecadores, ao passo que os infralapsários consideravam que o
decreto divino da predestinação se aplicava aos seres humanos como
pecadores caídos. De qualquer forma, porém, tanto os salvos quanto os
perdidos são o que são porque Deus assim decidiu desde a eternidade.

O consenso doutrinário calvinista


Na segunda metade do século XVI, os escolásticos protestantes
reformados pertencentes às duas escolas de pensamento, supralapsária e
infralapsária, desenvolveram gradualmente um sistema de doutrina calvinista
que, posteriormente, foi sintetizado de acordo com o acrônico TULIP. Os cinco
pontos do calvinismo nunca tinham sido expostos exatamente dessa maneira
antes da grande controvérsia arminiana e da sua conclusão no Sínodo de Dort
em 1618-1619. Nesse sínodo calvinista na Holanda, eles foram declarados e
7

reconhecidos como doutrina oficial, pelo menos para as igrejas holandesas


reformadas. Depois desse acontecimento, protestantes reformados de todos os
lugares começaram a aceitá-los. O acrônimo foi adotado e os cinco pontos são
corretamente entendidos como válidos pela maioria dos escolásticos
reformados, tanto supralapsários quanto infralapsários, mesmo antes de Dort
os ter canonizado. Os cinco pontos são o que Armínio questionava e seus
seguidores, os remonstrantes, rejeitavam e, por esse motivo, os últimos foram
excomungados e exilados da Holanda. É quase certo que o próprio Armínio
receberia o mesmo tratamento se tivesse vivido tempo suficiente. Em poucas
palavras, os cinco pontos são:
I. Depravação Total (Total depravation). Os seres humanos estão mortos
em seus delitos e pecados antes de Deus os regenerar soberanamente e
lhes outorgar a dádiva da salvação (o que, em geral, implica na
negação do livre-arbítrio).
II. Eleição incondicional (Unconditional election). Deus escolhe alguns seres
humanos para serem salvos, antes e independentemente de qualquer
coisa que façam por conta própria (com isso, fica em aberto a questão
se Deus ativamente predestina alguns para a perdição ou
simplesmente os deixa em sua perdição merecida).
III. Expiação limitada (Limited atonement). Cristo morreu somente para
salvar os eleitos e sua morte expiatória não é universal, para a
humanidade toda.
IV. Graça irresistível (Irresistible grace). Não é possível resistir à graça de
Deus. Os eleitos a receberão e serão salvos por ela. Os réprobos nunca
a receberão.
V. Perseverança dos santos (Perseverance of the saints). Os eleitos
perseveram inevitavelmente para a salvação final (eterna segurança).

Esse é um quadro parcial da teologia reformada calvinista de


aproximadamente 1600, embora o acrônico TULIP fosse cunhado
posteriormente. Para onde quer que se fosse na Grã-Bretanha ou na Europa
continental, os que se consideravam reformados e seguidores de João Calvino
concordavam, no mínimo, quanto a esses cinco axiomas de doutrina, além do
Credo niceno. É discutível se Calvino teria concordado com todos os cinco. Os
teólogos e pregadores reformados também concordavam, de modo geral, que
fazia parte do sistema a crença na providência meticulosa de Deus sobre tudo
– que tudo o que acontece na natureza e na história é decretado por Deus.
Qualquer outra crença, como sinergismo, era equiparada pela maioria dos
8

calvinistas com a doutrina católica romana. Os supralapsários toleravam os


infralapsários, mas achavam que a interpretação que estes davam à teologia
calvinista, na melhor das hipóteses era fraca e, na pior, era abertura para o
sinergismo. Beza tolerou o infralapsarismo em Genebra e até mesmo entre o
corpo docente da Academia de Genebra.

Jacó Armínio e a controvérsia dos remonstrantes


A Holanda na qual Jacó Armínio nasceu e foi criado estava lutando contra
a tradição católica romana e contra o domínio da Espanha católica. Um
pequeno grupo de rebeldes uniu várias províncias contra o domínio espanhol
e estabeleceu uma aliança instável conhecida como Províncias Unidas (dos
Países Baixos). A Holanda era a maior e a mais influente das províncias. Ao
mesmo tempo em que os holandeses se libertaram da Espanha, estabeleceram
sua igreja nacional protestante. A igreja reformada de Amsterdã foi fundada
em 1566 e seus principais ministros e leigos mantiveram os três princípios
protestantes fundamentais, sem se aliarem a nenhum ramo específico do
protestantismo. O protestantismo holandês primitivo era um tipo de sui
generis que não seguia rigidamente o luteranismo ou o calvinismo.10
Armínio foi criado como protestante na cidadezinha de Oudewater, entre
Utrecht e Roterdã, mas sua formação cristã na juventude não foi pesadamente
calvinista. Aos quinze anos de idade, foi enviado a Marburgo, na Alemanha,
para obter sua educação. Enquanto estava lá, sua cidade natal foi invadida por
soldados católicos leais à Espanha e muitos habitantes foram massacrados. A
família inteira de Armínio foi exterminada em um único dia. O jovem
estudante ficou sob os cuidados de um respeitado ministro holandês de
Amsterdã e acabou se tornando um dos primeiros alunos a se matricular na
recém-estabelecida universidade protestante de Leiden. A igreja reformada de
Amsterdã considerava Armínio um dos jovens candidatos mais promissores
ao ministério e por isso custeou seu estudo superior em Leiden e, depois, na
Suíça. Lá, estudou por algum tempo na “Meca” da teologia reformada, a
Academia de Genebra, dirigida por Beza.
Em 1588, Armínio iniciou o ministério na igreja reformada de Amsterdã,
aos 29 anos de idade. Todos os relatos contam que seu pastorado foi ilustre.
Conforme observa certo biógrafo: “Armínio se tornou o primeiro pastor
holandês da igreja reformada holandesa da maior cidade da Holanda,
exatamente quando ela estava emergindo de seu passado medieval e

10
BANGS, op. cit., p. 96.
9

irrompendo na Idade de Ouro”.11 Era notadamente benquisto e respeitado,


tanto como pastor quanto como pregador, e rapidamente se tornou um dos
homens mais influentes de toda a Holanda. Casou-se com a filha de um dos
principais cidadãos de Amsterdã e entrou para o grupo de privilegiados e
poderosos. Nem por isso demonstrou qualquer indício de arrogância ou
ambição. Nem sequer seus críticos ousaram acusá-lo de abusar de seu cargo
pastoral ou de qualquer outra falha pessoal ou espiritual. Acabaram
acusando-no de heresia somente porque, como pastor de uma das igrejas mais
influentes da Holanda, começou a criticar abertamente o supralapsarismo que
entrou em ascensão conforme cada vez mais ministros holandeses retornaram
de seus estudos em Genebra sob a direção de Beza. Armínio era da “escola
antiga” do protestantismo holandês de mentalidade independente, que se
recusava a declarar como ortodoxo qualquer ramo específico da teologia
protestante. Alguns, no entanto, insistiam cada vez mais que o
supralapsarismo era a única teologia protestante ortodoxa e que qualquer
outra opinião significava, de alguma forma, uma acomodação à teologia
católica romana e, portanto, era uma aliada em potencial da Espanha, inimiga
política dos Países Baixos.
Na década 1590, o conflito entre Armínio e os calvinistas rígidos da
Holanda se tornou cada vez pior. Alguns sugerem que Armínio mudou de
opinião nesse período. Acreditam que tinha sido um “hipercalvinista” ou
mesmo um supralapsário. Essa suposição parece ter se fundamentado
simplesmente no fato de ele ter sido aluno de Beza. O principal intérprete
moderno de Armínio contradiz a ideia da alegada mudança de opinião de
Armínio: “Todas as evidências levam a uma só conclusão: Armínio não
concordava com a doutrina de Beza sobre a predestinação, quando assumiu o
seu ministério em Amsterdã; na realidade, é provável que nunca tenha
concordado com ela”.12 Na série de sermões sobre a Epístola de Paulo aos
romanos, o jovem pregador começou a negar abertamente não somente o
supralapsarismo, nas também a eleição incondicional e a graça irresistível.
Interpretou Romanos 9, por exemplo, como uma referência não a indivíduos,
mas a classes – crentes e incrédulos – conforme predestinadas por Deus.
Afirmou que o livre-arbítrio dos indivíduos os incluía nas classes de “eleitos”
e de “réprobos” e explicou a predestinação como a presciência divina acerca
da livre escolha dos indivíduos. Para apoiar essa ideia, Armínio apelou a
Romanos 8.29. Conforme observa o biógrafo e intérprete de Armínio, Carl
Bangs, o teólogo holandês demonstrou, em seus sermões da década de 1590, o
11
Ibid., p. 19.
12
Ibid., p. 144.
10

desejo de encontrar o equilíbrio entre a graça soberana e o livre-arbítrio


humano: “o objetivo era uma teologia da graça, que não deixasse o homem
„entre a cruz e o punhal‟”.13
Os rígidos oponentes calvinistas de Armínio em Amsterdã e outros
lugares não tardaram em farejar o pavoroso erro de sinergismo em sua
pregação e ensino e, publicamente, acusaram-no de heresia para os oficiais da
igreja e da cidade, que examinaram a questão e inocentaram Armínio das
acusações. Armínio apelou à tradição protestante holandesa da independência
dos sistemas teológicos específicos e à tolerância de diversidade nos
pormenores da doutrina. Os oficiais concordaram. Os oponentes
supralapsários de Armínio ressentiram-se e decidiram que o arruinariam de
qualquer maneira. Sofreram uma derrota fragosa quando Armínio foi
nomeado para ocupar a prestigiosa cátedra de teologia na Universidade de
Leiden em 1603. O outro catedrático de teologia daquele período era Francisco
Gomaro, que talvez tenha sido o calvinista supralapsário mais franco e rígido
de toda a Europa. Gomaro, além de considerar todas as outras opiniões,
inclusive o infralapsarismo, falhas ou até heréticas, “tinha, segundo quase
todos os relatos a seu respeito, um temperamento extremamente irascível”.14
Quase que imediatamente, Gomaro iniciou uma campanha de acusações
contra Armínio. Algumas delas eram verídicas. Por exemplo, Armínio não
escondia a rejeição não somente do supralapsarismo, mas também da doutrina
clássica calvinista da predestinação como um todo. Gomaro distorceu esse fato
e, publicamente e por trás das costas de Armínio, insinuou que ele era um
simpatizante secreto dos jesuítas – uma ordem de sacerdotes católicos
romanos especialmente temida que era chamada “tropa de choque da Contra
Reforma”. Essa alegação de Gomaro, assim como outras, era claramente falsa.
Por exemplo, Gomaro acusou Armínio de socinianismo, que era uma negação
da Trindade e de quase todas as demais doutrinas cristãs clássicas. Não
importa o que Armínio escrevesse ou dissesse em sua defesa, via-se
constantemente atacado por boatos e sob suspeita. “Quando a controvérsia
ultrapassou os limites das salas acadêmicas e chegou aos púlpitos e às ruas,
suas defesas perderam o efeito. Era mais fácil chegar à conclusão de que „onde
há fumaça, há fogo‟”.15 A controvérsia cresceu a ponto de provocar uma
guerra civil entre as províncias dos Países Baixos. Algumas apoiavam
Armínio, outras apoiavam Gomaro. O conflito eclodiu em 1604, quando
Gomaro, pela primeira vez, acusou Armínio abertamente de heresia e durou
13
Ibid., p. 195.
14
Ibid., p. 248.
15
Ibid., p. 282.
11

até a morte de Armínio por causa de tuberculose em 1609. Quando morreu,


sua teologia estava sob a inquisição pública de líderes religiosos e políticos.
Em seu enterro, um de seus amigos mais íntimos fez o discurso fúnebre diante
do corpo de Armínio: “Viveu na Holanda um homem que só não era
conhecido por quem não estimava suficientemente e só não o estimava quem
não o conhecia suficientemente”.16
Depois da morte de Armínio, quarenta e seis ministros e leigos
holandeses respeitados redigiram um documento chamado “Remonstrância”
que resumia a rejeição, por Armínio e por eles mesmos, do calvinismo rígido
em cinco pontos. Graças ao título do documento, os arminianos passaram a
ser chamados de remonstrantes. Entre eles, estavam os estadistas e líderes
políticos holandeses que tinham ajudado a libertar os Países Baixos da
Espanha. Seus inimigos acusavam-nos de apoiar secretamente os jesuítas e a
teologia católica romana, e de simpatizar com a Espanha, só porque
concordavam com a oposição de Armínio a respeito das doutrinas da
predestinação! Não existe nenhuma evidência de que qualquer um deles
realmente tivesse alguma culpa em relação às acusações políticas feitas contra
eles. Mesmo assim, acorreram tumultos em várias cidades holandesas, nos
quais foram pregados sermões contra os remonstrantes e distribuídos
panfletos que os difamavam como hereges e traidores. Finalmente, o grande
poder político dos Países Baixos, o príncipe Maurício de Nassau, entrou na
luta em favor dos calvinistas. Em 1618, ordenou a detenção e o
encarceramento dos principais arminianos, para aguardar o resultado do
sínodo nacional de teólogos e pregadores. O Sínodo de Dort entrou em sessão
em novembro de 1618 e foi encerrado em janeiro de 1619, contando com a
presença de mais de cem delegados, inclusive alguns da Inglaterra, da Escócia,
da França e da Suíça. “João Bogerman, um pregador calvinista com opiniões
extremadas, que havia defendido em um documento a pena de morte por
heresia, foi escolhido como presidente”.17
Como esperado, a despeito das eloquentes defesas do arminianismo feitas
pelos principais remonstrantes, na conclusão do sínodo, todos os líderes
remonstrantes foram condenados como hereges. Pelo menos duzentos foram
depostos do ministério da igreja e do estado e cerca de oitenta foram exilados
ou presos. Um deles, o presbítero, estadista e filósofo Hugo Grotius (1583-
1645), foi confinado em uma masmorra da qual posteriormente escapou.
Outro estadista foi publicamente decapitado. Um historiador moderno da

16
Ibid., p. 331.
17
W. HARRISON, Arminianism, Londres, Duckworth, 1937, p. 84.
12

controvérsia concluiu que “o modo de [o príncipe] Maurício tratar os


estadistas arminianos só pode ser considerado um dos grandes crimes da
História”.18
O Sínodo de Dort promulgou um conjunto de doutrinas padronizadas
para a igreja reformada holandesa, que se tornou a base do acrônimo TULIP.
Cada cânon, conforme eram chamadas as doutrinas, baseava-se em um dos
cinco pontos da “Remonstrância”. As coisas que os arminianos negavam Dort
canonizou como doutrina oficial, obrigatória para todos os crentes
protestantes reformados. Não arbitrou, no entanto, sobre o supralapsarismo e
o infralapsarismo e, desde então, as duas teorias continuaram dentro do
consenso calvinista expresso pelo Sínodo de Dort. Após a morte do príncipe
Maurício em 1625, o arminianismo gradualmente voltou a fazer parte da vida
holandesa. Já em 1634, muitos exilados voltaram e organizaram a Fraternidade
Remonstrante, que cresceu e formou a Igreja Reformada Remonstrante, que
ainda existe. Não foi nos Países Baixos, no entanto, que a teologia arminiana
causou maior impacto. Isso aconteceu na Inglaterra e na América do Norte
pela influência de destacados ministros anglicanos, batistas gerais, metodistas
e ministros de outras seitas e denominações que surgiram nos séculos XVII e
XVIII. John Wesley (1703-1791) tornou-se o arminiano mais influente de todos
os tempos. Seu movimento metodista adotou o arminianismo como teologia
oficial e, através dele, tornou-se parte da tendência prevalecente na vida
protestante da Grã-Bretanha e da América do Norte.

A crítica de Armínio contra a teologia reformada


Armínio expressou sua teologia em vários tratados publicados, os quais,
juntos, formam três grandes volumes.19 Sua principais obras doutrinárias
sobre questões relacionadas à controvérsia arminiana (os decretos, a
providência, e a predestinação) são: Exame do panfleto do dr. Perkins sobre a
predestinação (1602), Declaração de sentimentos (1608), Carta endereçada a Hipólito
A. Collibus (1608) e Artigos que devem ser diligentemente examinados e ponderados
(data desconhecida) . Naturalmente, Armínio escreveu várias outras obras de
importância, inclusive comentários sobre Romanos 7 e Romanos 9, mas os
quatro tratados resumem e expressam de forma adequada e clara suas ideias
básicas a respeito de Deus, da humanidade, do pecado e da salvação.

18
Ibid., p. 81-2.
19
Todas as citações dos tratados de Armínio foram extraídas de The Works of James Arminius, edição de Londres, trad.
James Nichols e William Nichols (Grand Rapids, Baker, 1986)
13

Uma das acusações feitas com frequência contra Armínio e seus


seguidores é a de terem se desviado da teologia protestante clássica. Eles
foram acusados de rejeitar as crenças fundamentais da Reforma protestante.
Ainda hoje, é possível ouvir ou ler essa alegação, especialmente da parte de
calvinistas tradicionais. O próprio Armínio não poupou esforços para
comprovar seu compromisso e suas credenciais teológicas protestantes. Por
exemplo, sobre a sola scriptura, Armínio afirmava a autoridade suprema das
Sagradas Escrituras acima de todas as demais fontes e normas. Rejeitava
explicitamente a equivalência entre a tradição ou a razão e as Escrituras e
apelava por um novo exame de todas as formulações teológicas humanas à luz
da Bíblia.
A regra da verdade teológica não deve ser dividida em primária e
secundária; é una e simples, as Sagradas Escrituras. [...] As Escrituras são a
regra de toda a verdade divina, de si, em si e por si mesmas. [...] Nenhum
escrito composto por homens, seja um, alguns ou muitos indivíduos, à
exceção das Sagradas Escrituras [...] está [...] isento de um exame a ser
instituído pelas Escrituras. [...] É tirania e papismo controlar a mente dos
homens com escritos humanos e impedir que sejam legitimamente
examinados, seja qual for o pretexto adotado para tal conduta tirânica.20

Além de declarações explícitas como essa, outra prova da lealdade de


Armínio ao princípio protestante das Escrituras reside no fato de ele nunca ter
contestado as Escrituras nem apelado a uma tradição extra bíblica ou ideia
filosófica contrária a elas. Discordava abertamente de algumas interpretações
tradicionais das Escrituras, mas nunca discordou dos ensinos das Escrituras,
conforme os entendia. De fato, acusou seus oponentes calvinistas de violar o
princípio bíblico ao tratarem certas declarações confessionais reformadas
como equivalente à Bíblia em dignidade e autoridade e se recusarem a
reconsiderá-las ou revisá-las.
Assim como no princípio bíblico, Armínio nunca se cansou de afirmar a
lealdade ao princípio básico protestante sola gratia et fides – a salvação pela
graça, mediante a fé somente. Alan Sell, teólogo reformado contemporâneo,
declara que “quanto à questão da justificação, Armínio está em harmonia com
todas as igrejas reformadas e protestantes”.21 Naturalmente, se partirmos do
fato de que qualquer forma de sinergismo é incompatível com a doutrina
protestante da justificação pela fé somente, a doutrina da salvação adotada por
Armínio será excluída a priori. Mas Armínio contestava essa suposição e
insistia em afirmar que, embora negasse a teologia monergista de Agostinho,
20
Certain articles to be diligently examined and weighed, in: Works of James Arminius, 2.706.
21
Alan P. F. SELL, The grear debate: Calvinism, Arminianism and salvation, Gran Rapids, Baker, 1983, p. 12.
14

Zuínglio e Calvino, podia aderir à doutrina protestante clássica da salvação.


Na Declaração dos sentimentos, escreveu: “acredito não ter ensinado ou nutrido
sentimentos a respeito da justificação do homem diante de Deus que não fossem
unanimemente mantidos pelas igrejas reformadas e protestantes e estivessem
de total acordo com suas opiniões expressas”.22 Por ter sido publicamente
acusado de negar a justificação pela graça mediante a fé somente, Armínio
incluiu uma declaração confessional sobre essa doutrina em Sentimentos, que
entregou ao governo holandês na controvérsia imediatamente anterior à sua
morte:
Pelo presente, abreviadamente, direi que “creio que os pecadores são
considerados justos unicamente pela obediência de Cristo e que a justiça de
Cristo é a única meritória pela qual Deus perdoa os pecados dos que creem
e os considera tão justos como se tivessem cumprido com perfeição a lei”.
Mas como Deus não imputa a justiça de Cristo a ninguém, a não ser aos que
creem, concluo que, já que se pode dizer com segurança, àquele que crê, a fé é
imputada pela graça como justiça – porque Deus apresentou seu Filho Jesus
Cristo para ser uma propiciação, um trono de graça [ou misericórdia] pela
fé em seu sangue –, seja qual for a interpretação aplicada a essas
expressões, nenhum de nossos ministros culpa Calvino nem o considera
heterodoxo nessa questão; a minha opinião, porém, não diverge tanto da
dele a ponto de me impedir de colocar de próprio punho minha assinatura
em tudo o que ele ensinou a respeito do assunto, no terceiro livro de suas
Institutas; isso estou disposto a fazer a qualquer momento, além de
expressar a minha aprovação total.23

Em muitos lugares e de muitas maneiras, Armínio afirmou a crença de


que a salvação se dá pela graça de Deus mediante a fé somente. A calúnia de
que negava tal coisa, tão comum em sua época e frequente desde então, é uma
das maiores injustiças da história da teologia cristã.
Por que, então, os oponentes e inimigos de Armínio o acusavam bem
como seus seguidores de negar o princípio da salvação pela graça mediante a
fé somente? Só pode ser porque se opunha abertamente às doutrinas de
calvinismo que eram extremamente associadas a esse princípio. Acreditavam
que a salvação é pura dádiva – imerecida – quando a pessoa é totalmente
passiva na regeneração, na conversão e na justificação. Ou seja, a salvação
acontece realmente pela graça somente quando a aceitação dela pelos
pecadores não é um ato de livre escolha, mas se dá de forma incondicional e
irresistível. E isso só é verdade se estiver predestinado e eternamente
decretado. Portanto, dizer que o pecador que está sendo salvo participa da
22
In: Works of the Arminius, 1.695.
23
Ibid., p. 700.
15

própria salvação é dar lugar à jactância, porque subentende que a pessoa que
livremente toma a decisão de aceitar a graça para a salvação a está, de certa
forma, conquistando por merecimento. Segundo a crença calvinista
tradicional, isso também despojaria Deus de sua soberania e tornaria a decisão
divina, a respeito de quem deve ser salvo, dependente das decisões e ações
das criaturas. Armínio rejeitava totalmente essa linha de raciocínio e
interpretava a passagem bíblica crucial de Romanos 9 de modo diferente dos
calvinistas.
Armínio não rejeitava a predestinação. Na realidade, afirmou a crença na
predestinação. Rejeitava, isto sim, o supralapsarismo, que considerava
doutrina muito perniciosa. Resumiu a versão supralapsária do calvinismo
apresentada por Gomaro da seguinte forma:
Deus, por decreto eterno e imutável, predestinou, dentre os homens (que
nem sequer considerava criados e muitos menos caídos), certos indivíduos à
vida eterna e outros à destruição eterna, sem levar em conta a justiça ou o
pecado, a obediência ou a desobediência, mas unicamente seu próprio
aprazimento, para demonstrar a glória de sua justiça e misericórdia ou,
como outros afirmam, para demonstrar sua graça salvífica, sua sabedoria e
seu poder livre e inexorável.24

Na Declaração de sentimentos, Armínio levantou vinte objeções ao


supralapsarismo. Algumas se aplicam a qualquer versão da crença calvinista
na predestinação, incluindo o infralapsarismo. Argumentou que o
supralapsarismo é contrário à própria natureza do evangelho, pois entende
que as pessoas salvas ou não independentemente de serem pecadoras ou
crentes. Primeiro (no primeiro decreto de Deus), são salvas ou condenadas e,
somente então, se tornam crentes ou pecadoras. Argumentou, também, que
essa doutrina é uma novidade na história da teologia, porque nunca foi
apresentada antes de Gomaro e de seus antecessores imediatos (por exemplo,
Beza). Além disso, é contrário à natureza amorosa de Deus e à liberdade da
natureza humana. Talvez a objeção mais forte de Armínio tenha sido a de que
o supralapsarismo (e, por extensão, qualquer doutrina da eleição
incondicional) é “injurioso à glória de Deus” porque “a partir dessas
premissas, deduzimos, além disso, que Deus realmente peca [...], que Deus é o
único pecador [...], que o pecado não é pecado”.25 Armínio nunca se cansou de
dizer que a forte doutrina do calvinismo não pode negar que coloca Deus
como autor do pecado e, se Deus é o autor do pecado, logo, o pecado não é de

24
Ibid., p. 614.
25
Ibid., p. 630.
16

fato pecado porque tudo o que ele cria é bom. Armínio era um realista
metafísico.
Quando passou a examinar o infralapsarismo, Armínio não foi mais
generoso. Embora não coloque o decreto divino da eleição e da reprovação
antes da criação e da queda, o infralapsarismo não deixa de considerar
necessária a queda da humanidade e Deus seu autor.26 Em última análise,
segundo Armínio, qualquer doutrina monergista da salvação torna Deus o
autor do pecado e, portanto, hipócrita, “porque imputa hipocrisia a Deus ao
supor que, em sua exortação às pessoas, exige que creiam em Cristo, mas não
o apresenta como seu Salvador”.27 Armínio apelou a João 3.16 e argumentou
em seus escritos que a universalidade da vontade de Deus de salvar deve ser
levada a serio e que a predestinação deve ser entendida de forma compatível
com o amo e bondade de Deus e com o livre-arbítrio humano.

A doutrina da predestinação segundo Armínio


Armínio não se recusava a discutir os decretos de Deus. Apenas se
opunha à ordem específica em que os decretos divinos eram colocados nos
dois principais ramos do calvinismo. Segundo ele, ambos eram passíveis de
críticas devastadoras da mesma espécie. Por exemplo, nenhum colocava em
primeiro lugar o decreto divino no sentido de enviar Jesus Cristo para ser o
Salvador do mundo, enquanto o evangelho é essencialmente Jesus Cristo. Na
Declaração dos sentimentos, Armínio propôs um esquema alternativo de
quatro decretos divinos a respeito da salvação intitulado “Meus próprios
sentimentos a respeito da predestinação”.
I. O primeiro decreto absoluto de Deus sobre a salvação do pecador é
aquele pelo qual decretou que nomeava seu Filho Jesus Cristo
mediador, redentor, salvador, sacerdote e rei [...]
II. O Segundo decreto exato e absoluto de Deus é aquele pelo qual
decretou que receberia em favor aqueles que se arrependessem e
cressem e que, em Cristo [...] se cumpriria a salvação dos penitentes e
crentes que perseverassem até o fim; mas que deixaria em pecado e
sob a ira todos os impenitentes e incrédulos e os condenaria pela
alienação a Cristo.
III. O terceiro decreto divino é aquele pelo qual Deus decretou que
administraria de modo suficiente e eficaz os meios que eram
necessários ao arrependimento e à fé [...]

26
Ibid., p. 650-1.
27
Ibid., p. 313.
17

IV. Depois desses, segue-se o quarto decreto pelo qual Deus decretou a
salvação ou a perdição das pessoas. Esse decreto se fundamenta na
presciência de Deus, pela qual desde a eternidade ele sempre soube
quais os indivíduos que, pela graça [preveniente], creriam e, pela
graça subsequente, perseverariam.28
Para Armínio, portanto, a predestinação era, antes, de Jesus Cristo e não
de indivíduos sem ele.
É importante lembrar que Armínio insistia que toda a questão da
predestinação estava relacionada à condição caída dos seres humanos carentes
de redenção. Para Armínio, o decreto divino de permitir a queda, em outras
palavras, não dizia respeito à salvação. Os decretos de Deus a respeito da
salvação vêm depois (são logicamente posteriores) da permissão divina da
queda de Adão e Eva. Como Armínio concebia a queda? Deixou isso claro em
seu tratado Certos artigos a ser diligentemente examinados e ponderados: “Adão
não caiu por decreto de Deus, nem por estar destinado a cair, nem por ter sido
desertado por Deus, mas por mera permissão de Deus, que não está
subordinada a nenhuma predestinação, nem à salvação ou à morte, mas que
pertence à providencia, que é distinta e oposta à predestinação.”29 Em outras
palavras, a providência divina compreende certo decretos e a predestinação
divina, outros. As duas não devem ser confundidas. Na providência, Deus
decretou que permitiria a queda de Adão e de Eva e de toda a raça humana
junto com eles. No Exame do panfleto do dr. Perkins, Armínio disse claramente
que Deus não poderia evitar a queda depois de criar seres humanos e dar-lhes
o dom do livre-arbítrio. Armínio acreditava na autolimitação e restrição de
Deus e também na liberdade humana genuína no relacionamento abrangente
estabelecido pela aliança.30 Portanto, os decretos de Deus quanto à
predestinação dizem respeito aos seres humanos apenas como pecadores
depois da queda e, de modo algum, à própria queda. Deus sabia previamente
que os seres humanos cairiam, mas não decretou nem predestinou, de
nenhuma forma, tal coisa.
Depois que os seres humanos caíram, argumentava Armínio, o primeiro
decreto de Deus em relação a eles foi providenciar para que Jesus Cristo fosse
seu Salvador. Então, depois disso, decretou que salvaria, por meio de Cristo,
todos aqueles que se arrependessem e cressem e que deixaria à sua merecida
28
Ibid., p. 653-4.
29
Certain articles to be diligently examined and weighed, 2.716.
30
Examination of Dr. Perkins’s Pamphlet, in: Works of James Arminius, 3.284. Muller, com toda a razão, atribui muito
valor à crença de Armínio na autolimitação divina da aliança como uma diferença básica entre ele e os teólogos
reformados de sua época. Veja God, creation and providence, de Muller (p. 235-45).
18

perdição aqueles que recusassem a salvação. A partir daí, Armínio começa a


analisar a predestinação dos seres humanos caídos. Em primeiro lugar, trata-
se de classes e grupos e não de indivíduos. Isto é, Deus decreta que salvará os
que creem, todos eles. O objeto da condenação para a perdição também é um
grupo indefinido de pessoas: os incrédulos. Foi assim que Armínio interpretou
os textos de Paulo em Romanos 9: tratando-se de classes ou grupos e não de
indivíduos. “Armínio entende Romanos 9 em termos de „predestinação de
classes‟: „os que buscam a justiça pelas obras e os que a buscam pela fé‟; Esaú é
exemplo dos que buscam a justiça pelas obras e Jacó, dos que buscam pela
fé.”31 Mas Armínio também tinha uma explicação para a predestinação
condicional dos indivíduos. Em sua presciência absoluta, Deus sabe quem terá
fé e quem não terá.32 Como Paulo disse em Romanos 8.29: “Pois aqueles que
de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem
de seu Filho; a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos”. A
predestinação de grupos, portanto, é incondicional. A predestinação de
indivíduos é condicional e se baseia na presciência de Deus daquilo que farão
livremente com a liberdade que Deus lhes dá. Essa é a essência do segundo e
do quarto decreto de Armínio mencionados anteriormente.

O sinergismo evangélico de Armínio


E quanto à graça? Enquanto os calvinistas clássicos argumentavam que a
graça salvífica é sempre irresistível, Armínio acreditava que a graça
significava que a salvação é resistível e que muitos, inclusive nas Escrituras,
resistiram à graça de Deus. Mas como a salvação pode acontecer “unicamente
pela graça” se os seres humanos são livres para aceitá-la ou rejeitá-la? Se
alguém não achar essa pergunta razoável, é provável que seja arminiano! Os
calvinistas e outros monergista acreditam que, para se dar completamente
pela graça, conforme Paulo afirmou em Efésios 2, a salvação não podia ser
uma dádiva recebida “livremente” no que se refere à contingência. Em outras
palavras, se a pessoa que recebe a graça para a salvação pudesse recusá-la,
então, ao aceitá-la, estaria praticando uma “boa obra” e mereceria uma parte
da salvação, podendo assim jactar-se. Isso também sugere uma capacidade
como a do pelagianismo em que a pessoa contribui para sua própria salvação,
declaram os monergistas. A solução de Armínio para esse problema delicado é
o conceito chave de “graça preveniente”. Armínio sempre foi cuidadoso ao
atribuir toda a salvação à graça e nada às boas obras. Um exemplo típico desse

31
Skevington WOOD, The declaration of sentiments: the theological testament of Arminius, Evangelical Quarterly 65,
2:219, 1993.
32
A declaration of sentiments, 1.279.
19

cuidado está na seção sobre a graça e o livre-arbítrio da Carta endereçada a


Hipólito A. Collibus: “O mestre [de teologia] que atribui o máximo possível à
graça divina tem a minha mais alta aprovação, contanto que pleiteie a causa
da graça de tal maneira que não provoque danos à justiça de Deus e não
remova o livre-arbítrio para praticar o mal”.33 Mas como isso é possível? Armínio
explicou:
A respeito da graça e do livre-arbítrio, ensino conforme as Escrituras e o
consentimento ortodoxo: o livre-arbítrio não tem a capacidade de fazer ou
de aperfeiçoar qualquer bem espiritual genuíno sem a graça. Para que não
se diga que eu, assim como Pelágio, cometo uma falácia em relação à
palavra “graça”, esclareço que com ela me refiro à graça de Cristo que
pertence à regeneração: afirmo, portanto, que a graça é simples e
absolutamente necessária para a iluminação da vontade ao que é bom. É a
graça que [...] força a vontade a colocar em prática boas ideias e os bons
desejos. Essa graça [...] antecede, acompanha e segue; ela nos desperta,
assiste, opera para queiramos o bem, coopera para que não o queiramos em
vão. Ela afasta as tentações, ajuda e oferece socorro em meio às tentações,
sustenta o homem contra a carne, o mundo e Satanás, e nessa grande luta
concede ao homem a satisfação da vitória. [...] A graça é o principio da
salvação; é o que a promove, aperfeiçoa e consuma. Confesso que a mente
[...] do homem natural e carnal é obscura e escura, que suas afeições são
corruptas e imoderadas, que sua vontade é obstinada e desobediente e que
o próprio homem está morto em pecados.34

A graça descrita por Armínio nessa declaração um tanto longa é a graça


preveniente. É a graça que Deus oferece e concede a todas as pessoas de
alguma forma e é absolutamente necessária para que os pecadores caídos –
mortos em pecados e escravos da vontade – creiam se sejam salvos. É a graça
sobrenatural, auxiliadora e outorgante de Jesus Cristo. Mas por ser
preveniente (acontece antes), pode ser resistida. Se a pessoa não resistir à
graça preveniente e permitir que ela opere em sua vida pela fé, ela se tornará
justificadora. A mudança é a “conversão”, não uma boa obra, mas a simples
aceitação. É aqui que aparece o sinergismo de Armínio. A vontade humana,
livre pela graça preveniente (a operação do Espírito Santo dentro da pessoa),
precisa cooperar simplesmente aceitando a necessidade da salvação e
permitindo que Deus outorgue a dádiva da fé. Ela não será imposta por Deus
e o pecador não pode merecê-la. Ela deve ser aceita livremente, mas até
mesmo a capacidade de desejá-la e de aceitá-la se torna possível pela graça. O
conceito da graça preveniente permite que a soteriologia de Armínio seja
sinergista (envolvendo as vontades e atuações divina e humana) sem cair no
33
A letter addressed to Hippolytus A. Collibus, in: Works of James Arminius, 2.701.
34
Ibid., p. 700-1.
20

pelagianismo ou no semipelagianismo. Diferentemente deste último, o


sinergismo de Armínio coloca toda a iniciativa e capacidade de salvação a
favor de Deus e reconhece a total incapacidade do ser humano de contribuir
para a própria salvação sem a graça auxiliadora sobrenatural de Cristo.
Está claro, portanto, que Armínio rejeitava não somente o
supralapsarismo, como também qualquer conceito monergista da salvação.
No mínimo, negava a eleição incondicional, a expiação limitada e a graça
irresistível. Não se pode afirmar que negava a depravação total. A citação
apresentada da Carta a Hipólito indica que de fato acreditava nela. Alguns
remonstrantes claramente não acreditavam e isso se tornou uma questão
delicada e controversa depois da morte de Armínio. Este não negava a
perseverança (a segurança eterna dos santos), mas argumentava que a questão
não estava encerrada e advertia contra a falsa segurança e certeza. Assim
como no caso da depravação total, muitos arminianos posteriormente
rejeitaram a perseverança incondicional e ensinaram que a pessoa pode perder
a salvação por indiferença e também pela rejeição consciente da graça. Muitos
outros arminianos passaram a crer na segurança eterna dos genuinamente
regenerados e justificados pela graça.

O legado do arminianismo
Uma questão ainda debatida pelos estudiosos de Armínio é se a sua
teologia era uma alternativa à teologia reformada ou uma adaptação dela.
Richard Muller sustenta que era uma alternativa e, como prova, indica a forte
ênfase de Armínio à autolimitação de Deus. Os teólogos reformados
posteriores a Calvino reconheciam a condescendência de Deus na revelação,
mas negavam unanimemente qualquer autolimitação de Deus na providência
ou predestinação.35 Carl Bangs sustenta a opinião de que a teologia de
Armínio representa uma adaptação e desenvolvimento da teologia
reformada.36 Embora o próprio Armínio quase certamente entendesse dessa
forma sua teologia, Muller está mais próximo da verdade. A teologia de
Armínio é totalmente protestante, mas não reformada. O teólogo holandês se
propôs reformar a teologia reformada, mas acabou criando um paradigma
protestante totalmente diferente. Os anabatistas argumentariam, com razão,
que se tratava de um paradigma que Baltasar Hubmaier e outros pensadores
anabatistas começaram a desenvolver quase um século antes. Ele poderia ser
chamado de “sinergismo evangélico”.

35
V. God, creation and providence, de Muller (p. 281).
36
BANGS, op., p. 348-9.
21

O arminianismo, embora politicamente reprimido e posteriormente


marginalizado no país de origem, radicou-se e floresceu em solo inglês no fim
do século XVI. Muitos líderes da Igreja da Inglaterra foram simpáticos a ele no
inicio e, posteriormente, adotaram-no abertamente. Embora Os trinta e nove
artigos da religião da Igreja da Inglaterra incluíssem a afirmação da
predestinação, o arminianismo tornou-se opção permanente da tradição
anglicana. No século XVII, uma era de racionalismo e avivamento na Inglaterra
e Nova Inglaterra, os arminianos dividiram-se em dois grupos: arminianos de
mente e arminianos de coração. Os primeiros pendiam para o deísmo e a
religião natural e os últimos, para o pietismo e o avivamento. A história desses
movimentos será contada nos capítulos posteriores. Basta dizer que, no
cristianismo da era moderna de língua inglesa, é possível ser arminiano liberal
ou arminiano evangélico. O movimento metodista primitivo, fundado por
John e Charles Wesley, bem como muitos batistas primitivos representavam o
segundo tipo de arminianismo, enquanto os deístas e os pensadores
protestantes liberais dos séculos XVIII e XIX representavam o primeiro. Com
esses movimentos, a teologia arminiana paulatinamente tornou-se parte das
grandes tendências do pensamento protestante na Inglaterra e nos Estados
Unidos – para desgosto dos protestantes reformados mais tradicionais.
Como vimos, depois da morte dos primeiros reformadores, seus
herdeiros ortodoxos e escolásticos elevaram à importância primordial as
questões da exatidão doutrinária e litúrgica. Alguns críticos diriam que as
igrejas nacionais protestantes magisteriais da Europa e da Grã-Bretanha
declinaram até se tornarem “ortodoxia morta” que crê na regeneração
batismal, no clericalismo e no constantinismo. Essa situação provocou a reação
dos ministros das igrejas estatais chamada pietismo. Entre outras coisas, ela
tentava vincular a justificação à conversão, e a regeneração ao começo de uma
vida de santificação verdadeira. Também censurava a ênfase exagerada à
ortodoxia doutrinária e a indiferença diante da experiência espiritual como
sinal autêntico do cristianismo e criava lemas como: “melhor uma heresia viva
do que uma ortodoxia morta!”. É para a história do pietismo e de sua tentativa
de reforma a teologia protestante nos séculos XVI e XVII que agora dirigiremos
nossa atenção.

História da Teologia Cristã: 2000 anos de tradição e reformas/ Roger E


Olson; p. 465-483. Tradução Gordon Chown – São Paulo: Editora Vida, 2001.

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