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OS HOMENS CORDIAIS NA SOCIALIZAÇÃO DOS PEDRINHOS DE


LOBATO E LOURENÇO FILHO: O NEGRO SABIDO, A EXCELENTE
NEGRA DE ESTIMAÇÃO E O VELHO CABOCLO

Raquel de Abreu
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
raqueldeabreu@gmail.com

Palavras chave: Homem cordial. Livros infantis. Lourenço Filho/Monteiro Lobato.

Em Raízes do Brasil, a partir da matriz sociológica weberiana, Sérgio Buarque


de Holanda constrói tipos ideais para instrumentalizar sua interpretação da realidade
social brasileira. O tipo ideal - Idealtypus - “consiste em enfatizar determinados traços
da realidade [...] até concebê-los na sua expressão mais pura e consequente, que jamais
se apresenta assim nas situações efetivamente observáveis” (COHN, 1999, p. 8). Sendo
assim, Holanda isola metodicamente seus tipos brasileiros ideais, infla-os para poder
observá-los com a clareza necessária em busca de respostas para questões em torno de
fenômenos construídos nas relações sociais que identificam o caráter do povo. Um dos
“tipos ideais” concebidos pelo sociólogo é o homem cordial, o que resulta do encontro
cultural entre práticas personalistas e patrimonialistas que marcam a cultura brasileira
desde a chegada do colonizador português em terras tropicais. Tais práticas desenharam
uma cordialidade simples e ingênua, em que os relacionamentos são marcados pela
pessoalidade, pela negação da padronização advinda das civilidades do mundo moderno
ocidental. Na sociedade do homem cordial, as fronteiras simbólicas entre o público e o
privado são frágeis e o Estado, uma instituição tão estranha e distante para alguns,
quanto muito próxima e benevolente para outros.
Este texto tem como objetivo discutir e analisar como o tipo ideal “homem
cordial” pode ser identificado nas representações de personagens adultos inseridos na
obra infantil de dois intelectuais brasileiros, Monteiro Lobato (1882-1948) e Lourenço
Filho (1897-1970). Para tanto, são selecionados os livros O Saci e Geografia de Dona
Benta, de Lobato, e a obra didática Série de leitura graduada Pedrinho (1953-1970), de
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Lourenço Filho. As análises específicas da série de Lourenço Filho resultam de estudos


desenvolvidos em minha dissertação de mestrado A Série de Leitura Graduada
Pedrinho (1953-1970) e a perspectiva de socialização em Lourenço Filho, defendida
em julho de 2009.
Nos livros, dois personagens-meninos, com nomes em comum – Pedrinho -, são
socializados num Brasil idealizado por cada um dos intelectuais. Esses processos de
socialização são, muitas vezes, conduzidos através dos personagens Tio Barnabé e Tia
Nastácia (de Lobato) e Chico Tião (de Lourenço Filho), que podem aqui ser
identificados como um tipo ideal de brasileiro - o homem cordial -, categoria criada por
Sérgio Buarque de Holanda.

OS PERSONAGENS

Tio Barnabé faz parte de uma única obra de Lobato,


O Saci. O personagem tem participação decisiva na
apresentação da cultura popular brasileira nos primeiros
capítulos do livro. É ele quem primeiro fala ao personagem
Pedrinho sobre a cultura oral do imaginário brasileiro, a
cultura dos seres que transitam entre humanidades,
divindades e animalidades. São seres mitológicos que nascem
nas matas e habitam livremente o ambiente doméstico de
sítios, fazendas e vilas do Brasil daqueles dias. Além de
apresentar o Saci, tio Barnabé dá seu testemunho sobre sua

Figura 1: Tio Barnabé.


existência e a possibilidade de serem vistos por alguns
Ilustração de J.U. Campos
Fonte: O Saci. 1941, p.15.
homens: “- Eu, por exemplo, já vi muitos. Ainda no mês
passado andou por aqui um saci mexendo comigo – por sinal
que lhe dei uma lição de mestre...” (LOBATO, 1941, p. 15).
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Assim como tio Barnabé, a personagem tia Nastácia, que já


fora escrava, é a cozinheira do sítio, descrita muitas vezes como
“amiga” de dona Benta. Ela tem idade aproximada à da patroa e faz
parte da maior parte dos livros infantis de Lobato. Além de
excelente quituteira, tem papel importante na socialização dos
personagens-crianças; em muitas ocasiões é apresentada como o
adulto que protege e orienta as crianças-personagens dos livros. Tia
Nastácia é marcada por uma religiosidade ingênua, supersticiosa e
caricata. Um exemplo está em Geografia de Dona Benta, quando
ela se surpreende com as edificações da cidade de Nova Iorque: “-
Nossa Senhora! Exclamava ela. Aquilo é arte do diabo, sinhá! Pois
onde é que já se viu casas desse tamanho? [...] – Arranha-céu? Pois
então é mesmo o que eu disse – arte do diabo. Onde já se viu andar
Figura 2: Tia Nastácia.
Detalhe da ilustração de arranhando o céu de Nosso Senhor? Credo!...” (LOBATO, 1935, p.
J.U. Campos
Fonte: Geografia de Dona 107).
Benta, 1935, p.118.

Já Chico Tião, de Lourenço Filho, é apresentado


como um agregado de uma fazenda de um familiar de
Pedrinho. O personagem é um “caboclo”, resultado da
miscigenação entre a matriz indígena e a portuguesa. Chico
Tião é alegre, conversador, bem-humorado e tem toda a
confiança dos adultos quando se trata de orientar os
meninos personagens nas aventuras empreendidas pelo
grupo. O autor, na voz do personagem tio Damião, descreve
o velho caboclo no volume 2 da Série de leitura graduada Figura 3 – Chico Tião. Detalhe
da ilustração de Oswaldo Storni
Pedrinho: “Era um homem idoso, alegre e conversador. [...] Fonte: Aventuras de Pedrinho.
1961, p. 37.
O Chico Tião é um bom amigo que eu tenho, disse tio
Damião. Sabe mil coisas. Histórias, então, nem se fala! Diz
que ele já andou pelas terras do Brasil todo, e que é descendente de um bandeirante”
(LOURENÇO FILHO, 1955, p. 58). Sua personalidade é construída em meio a
hospitalidade, generosidade e emotividade.
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O Pedrinho, de Monteiro Lobato, “nasce” no livro O


Saci, que tem sua primeira edição publicada em 1921. O
personagem é primo de Narizinho, filho de Tonica, uma
filha de Dona Benta. Pedrinho reside no Rio de Janeiro e
passa as férias escolares no sítio da avó, o Sítio do Pica-Pau
Amarelo. O personagem tem entre oito e dez anos de idade;
é corajoso, responsável, honesto, gentil, ativo, curioso,
criativo, gosta de ler, é interessado por temas históricos e Figura4: Pedrinho.
Ilustração de J.U Campos
científicos, como também por conteúdos informativos de Fonte: O Saci. 1941, p. 24.

jornais e revistas. Conforme Penteado (1997, p. 211), “o que


se encaixa de certa forma no estereótipo contemporâneo de Lobato para um „menino‟ e
o aproxima, provavelmente, do que teria sido o próprio Lobato em garoto [...]”.
O personagem-menino de Lourenço Filho é
protagonista da série didática destinada à escola
primária brasileira, publicada entre 1953 e 1970, a
Série de leitura graduada Pedrinho. O personagem
faz parte de uma família representada por pai, mãe,
irmãos, avó e tio. Pedrinho apresenta um perfil de
personalidade muito aproximado ao do personagem-
menino de Monteiro Lobato: é corajoso, responsável,
honesto, gentil, aprecia a leitura de jornais e revistas e
Figura5: Pedrinho. Ilustração de J.U
Fonte: Pedrinho e seus amigos. 1955, é interessado por assuntos “sérios” e científicos.
p. 20.
Pedrinho tem entre sete e onze anos - a idade
indicada pelo autor para utilização da série graduada.
O personagem de Lourenço Filho apresenta uma relação estreita e valorizada
com os ideais de uma educação escolar por ele pensados. No volume 1 – Pedrinho -, as
lições iniciais elegem família, amigos, casa e escola como temas centrais:

O Pedrinho gosta muito da casa dele. Mas também gosta muito da


escola onde estuda. Todos os dias ele aí aprende muitas coisas. E
diverte-se com os colegas na hora do recreio. E ouve bons conselhos
da sua professora, a Dona Amélia. Assim ele vai conhecendo o que é
certo e o que é errado, o que é bom e o que é mau, o que deve fazer e
o que não deve. Em outros tempos, a avó de Pedrinho também foi
professora (LOURENÇO FILHO, 1961, p. 30).
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Sob esse aspecto, os meninos-personagens se distanciam nas narrativas de cada


um dos autores. Mesmo com características de personalidades quase idênticas e a
mesma valorização dos interesses intelectuais de cada um, a perspectiva educacional se
distancia quando os dois autores abordam as relações entre a criança e as instituições
que a cercam. Cabe ressaltar que o personagem de Lobato desenvolve seu aprendizado
durante as férias escolares, enquanto que o personagem de Lourenço Filho adquire
conhecimentos tanto nas férias como no período letivo.

NOS LIVROS, OS MENINOS E OS HOMENS CORDIAIS

Na versão definitiva de O Saci de Lobato, o personagem que dará detalhes sobre


os sacis (seres encantados que habitam o imaginário dos brasileiros), é Tio Barnabé,
apresentado inicialmente na voz de Tia Nastácia da seguinte forma:

Não existe negro velho por aí, desses que nascem e morrem no meio
do mato, que não jure ter visto saci. Nunca vi nenhum, mas sei quem
viu. – Quem? – O Tio Barnabé. Fale com ele. Negro sabido está ali!
Entende de todas as feitiçarias, e de saci, de mula sem cabeça, de
lobisomem – de tudo. Pedrinho ficou pensativo. Tio Barnabé era um
negro de mais de 80 anos que morava no rancho coberto de sapé lá
junto da ponte. Pedrinho não disse nada a ninguém e foi vê-lo.
Encontrou-o sentado, com o pé direito num toco de pau, à porta de sua
casinha, esquentando-se ao sol (LOBATO, 2007, p. 21).
Ainda na oitava edição do livro (1941), a apresentação de Tio Barnabé é
realizada por Lobato, na voz do narrador, da seguinte forma: “Quem contou a Pedrinho
as primeiras histórias do saci foi tio Barnabé, um negro velho que morava perto da
ponte e fora escravo do pai de dona Benta. Pedrinho tinha ido visitá-lo certo dia,
expressamente para saber coisas do saci” (LOBATO, 1941, p. 14).
A teia de relações que envolvem os personagens Tio Barnabé, Tia Nastácia, e o
saci, e que vai refletir na narrativa em torno de uma variedade de mitos brasileiros -
mesmo que Lobato faça revisões e algumas modificações entre a primeira edição de
1921 e a definitiva, de 1947 -, a trama é fundamentalmente a mesma. Ao mencionar os
acréscimos que Lobato realiza na sexta edição do livro, em 1938, e a aproximação da
obra a aspectos didáticos, Camargo (2008, p. 93) registra:

[...] valendo-se do Saci como „professor‟, Lobato inclui, de maneira


didática, quase enciclopédica, animais típicos de nossa fauna – a onça,
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a sucuri, a muçurana, a cascavel -, alguns insetos e espécies vegetais,


além de „discussões filosóficas‟ entre o Saci e Pedrinho .

Na versão definitiva do livro, podem-se identificar também aspectos que


retratam a diversidade linguística brasileira para nomear brinquedos infantis do período,
como no exemplo do capítulo 2, quando Lobato amplia significativamente o texto com
que descreve minuciosamente o sítio e, no intervalo de duas páginas, registra nomes
diferentes para o mesmo objeto: “bodoque” e “estilingue”, a arma-brinquedo que
Pedrinho utilizou para quebrar a cabeça de uma cegonha de louça que decora o jardim
do sítio. O que pode revelar uma estratégia editorial do autor, para compreensão dos
conteúdos de uma obra infantil com público leitor em todo o território nacional.
A Série de leitura graduada Pedrinho é uma coleção composta por cinco livros
didáticos infantis, quatro dos quais para leitura graduada e uma cartilha, aliados aos
respectivos Guias do Mestre, manuais endereçados aos professores para orientação e
aplicação dos conteúdos em sala de aula. A série foi publicada pela Edições
Melhoramentos e editada na seguinte ordem: volume 1 - Pedrinho; volume 2 - Pedrinho
e seus amigos; volume 3 - Aventuras de Pedrinho: volume 4 - Leituras de Pedrinho e
Maria Clara e, por último, a cartilha Upa, cavalinho!.
No caso do personagem Chico Tião, no terceiro volume da série didática,
Aventuras de Pedrinho, o autor aprofunda a descrição do personagem:

Chico Tião era um homem fora do comum. Ninguém conhecia, por


exemplo, qual era sua idade. Nem ele próprio! [...] A verdade é que
devia ter pouco mais de sessenta anos. Mas, como era forte! Fazia
inveja a muitos moços: trabalhava de sol a sol, sem mostrar cansaço.
Sabia ler e escrever. Lá isso sabia muito bem. Contava que havia
aprendido com um frade que, há muito tempo, andara pelas matas
civilizando índios (LOURENÇO FILHO, 1969, p. 10).
O destaque ao processo de alfabetização de Chico Tião, que não frequentou uma
escola - instituição concebida no mundo civilizado, republicano e moderno como locus
destinado ao ensino e à aprendizagem do “ler, escrever e contar” (como no caso do
personagem Pedrinho, da criança leitora e do professor que ministra as lições de
Lourenço Filho) – pode ilustrar aspectos contraditórios e uma naturalização toda
particular do que é aceitável e permitido a alguns brasileiros velhos, não-brancos e
moradores do Brasil rural.
De acordo com Darcy Ribeiro (2009, p. 405), “essa massa de mulatos e
caboclos, lusitanizados pela língua portuguesa que falavam, pela visão do mundo, foi
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plasmando a etnia brasileira e promovendo, simultaneamente, sua integração na forma


de Estado-Nação.” Com base nesse processo, o personagem Chico Tião pode reproduzir
a face positivada e aprimorada dessa massa de caboclos que, por séculos, já dominava a
língua portuguesa falada, mas que no Brasil moderno, pensado por Lourenço Filho,
também domina os códigos escritos de uma pretendida modernidade.
Na primeira edição de A menina do narizinho arrebitado (1920), Monteiro
Lobato, na voz do narrador, faz a apresentação da personagem Tia Anastácia que, nas
edições e demais obras, tem suprimido o “A” do nome, ganhando, assim, características
mais aproximadas a uma alcunha. “Além de Lucia, existe na casa a tia Anastácia, uma
excelente negra de estimação [...]” (LOBATO, 1920, p. 3-4). Tudo indica que a
personagem foi inspirada numa antiga babá dos filhos de Monteiro Lobato. Em
Geografia de Dona Benta, o autor aprofunda as explicações sobre a origem da
“excelente negra de estimação” no sítio de dona Benta:

Tia Nastácia conta que a mãe dela veio da África, dum lugar chamado
Angola, lembrou Narizinho. Também conta que foi escrava sua,
quando moça, vovó. – Pois foi, confirmou dona Benta. Foi minha
escrava, sim. Meu marido, que Deus haja, comprou-a por 2:500$000,
lembro-me muito bem...(LOBATO, 1935, p. 192-193).
Os personagens masculinos adultos Tio Barnabé e Chico Tião têm idades
aproximadas, da mesma maneira que seus nomes próprios, “aproximados”, na forma de
diminutivos e marcados pela pessoalidade cordial através dos tratamentos “tio” e “tia”
(em Lobato). Estas características, as das identidades sedimentadas, podem refletir a
herança marcante da sociedade brasileira, especialmente a sociedade rural dos tempos
coloniais, que teima em sobreviver, já no século XX, na literatura infantil e didática dos
dois autores.
Entre os homens cordiais que socializam os Pedrinhos é representativa a
ausência de nomes de família e a utilização de diminutivos. No caso de Chico Tião,
como se não bastasse omitir seu nome de família (sobrenome), o que não acontece com
os demais personagens adultos da Série Pedrinho, o “velho caboclo” é identificado por
dois diminutivos derivados do nome de batismo: Chico (Francisco) e Tião (Sebastião).
Num processo de “domesticação e familiarização”, a forma de identificar o personagem
é naturalizada e valorizada como privilégio para compartilhar da amizade do “velho
caboclo”. Os laços de afeto, próprios da vida familiar, são estendidos à intimidade de
tratamento autorizada entre os personagens dos livros, adultos e crianças. A
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modernidade pensada para o Brasil de Lourenço Filho, uma sociedade industrializada,


desenvolvida, capitalista, em que as iniciativas individuais são incentivadas, apresenta
elementos da família patriarcal, com as “crias da casa”, os “velhos amigos”, que
prestam favores e onde as vontades particulares e as generosidades se espraiam por
todos os espaços. Lourenço Filho não poupa o velho caboclo das “gostosas
gargalhadas”, da galhofa e das brincadeiras tão características do humor dos brasileiros,
que não fazem questão de controlar pulsões e emoções. É ele, Chico Tião, o
personagem que socializa a criança brasileira de Lourenço Filho por 39 lições dos
volumes 2 e 3 da Série Pedrinho.
Nos três personagens, as marcas de uma determinada cordialidade são
valorizadas, tanto por Monteiro Lobato como por Lourenço Filho. Aos três personagens
é outorgada uma autorização, pela legitimidade de origem, para falar desse país de
relações pessoalizadas, de traços arcaicos que convivem com o Brasil moderno pensado
pelos dois autores.
Em Lourenço Filho, uma marca da valorização da cordialidade está registrada,
de forma significativa, na sétima lição do 3º volume da Série Pedrinho: “Compadre pra
lá e compadre pra cá...”:

O velho caboclo gostava de que o tratassem assim, de compadre. E era


assim também que ele respondia aos meninos, salvo quando estivesse
aborrecido com algum deles. Nesse caso, separando muito as sílabas,
e engrossando a voz, dizia: Se-nhor Pe-dro dos San-tos Pe-rei-ra...Se-
nhor Al-ber-to... E-me-ren-ci-a-no de Vas-con-ce-los...Fora disso,
era compadre pra cá e compadre pra lá... (LOURENÇO FILHO, 1969,
p. 19-20. Grifos do autor).
O destaque ao compadrio num livro didático – material que divulga e reproduz
valores culturais, sociais e ideológicos - sugere que, entre os brasileiros, os processos
civilizatórios representados pela racionalização, polimento e impessoalidade nas
relações sociais só são necessários e imprescindíveis em ocasiões singulares e adversas.
A lição, em que o exercício de “separar em sílabas” está objetivado, as referências às
intimidades pessoalizadas, com origem nas relações de amizade e compadrio, estão
subjetivadas no conteúdo do texto. A racionalização dos nomes acompanhados por
sobrenomes, que muda a ordem identitária do brasileiro, é algo penoso, imposto por
uma lógica da modernidade. Ordem imposta e importada, necessária nos momentos
extremos. Conforme Martins, “a modernidade (e não o moderno) é um fenômeno
historicamente recente, marcado, sobretudo, pela diluição das identidades, como as
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identidades nacionais, pela composição heterogênea do cultural e do social”


(MARTINS, 2008, p. 29).
No livro O Saci, o “negro velho” descreve os sacis por suas características: usa
uma carapuça vermelha, tem uma perna só e, como costume, traz um pito sempre aceso.
Lobato, na voz de tio Barnabé, afirma que os diabretes devem ser escravizados.
Curiosamente, a descrição inicial não registra a origem étnica ou cor de pele do
diabrete; porém, nas ilustrações, o saci é representado com características físicas que
marcam os descendentes dos escravos africanos - cabelos encaracolados, pele escura e
lábios grossos. Tudo indica que há uma naturalização na negritude do ser que deve ser
caçado, aprisionado e posteriormente escravizado pelo menino personagem. Na oitava
edição de 1941, as representações do saci são aproximadas ao padrão caricatural
registrado nas ilustrações do negro adulto, tio Barnabé, do mesmo livro de Lobato.
O pequeno ser transita entre as coisas dos mundos do concreto e do abstrato e
tem permissão para explicar o que Pedrinho precisa saber para sobreviver num Brasil
natureza, o Brasil das matas e mitos. O saci, descrito inicialmente como um ente
maligno, caraterizado por um caráter negativo, ao longo da narrativa demonstra ser um
bom companheiro que conquista a confiança de
Pedrinho. O saci cumpre suas promessas, auxilia
Pedrinho na resolução de problemas inesperados,
cozinha para o menino e o protege dos perigos enquanto
estão perdidos na mata. As gentilezas exercitadas pelos
dois personagens são estabelecidas a partir de um pacto
de confiança entre o menino e o diabrete, que o liberta,
na esperança de ser protegido dos perigos da mata. O
fato narrado pode revelar a intenção do autor, mesmo
Figura 6: O Saci. Ilustrações de que subjetiva, de educar a criança valorizando a
J.U. Campos
Fonte: Saci. 1941, p. 30. construção de alianças entre indivíduos e/ou grupos
sociais. Quanto às travessuras - as pequenas maldades
exercidas pelo Saci - pode-se estimar que fossem aceitas e toleradas por Pedrinho por
serem travessuras aceitas, toleradas e muitas vezes até valorizadas como pilhérias
recorrentes entre os brasileiros.
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Uma marca emblemática nos homens cordiais de


Lobato, Tia Nastácia e Tio Barnabé é a explícita
manifestação, em ambos, de uma crença religiosa popular.
Tio Barnabé acredita em seres invisíveis que povoam
todos os espaços. Tia Nastácia acredita em sacis e lembra
que essas são crenças partilhadas somente por “negros” e
que os “brancos da cidade” negam. Mesmo que os
“brancos da cidade neguem”, Pedrinho quer conhecer os
pormenores das crenças que só os negros dominam e que
só os velhos podem partilhar com meninos curiosos, como
ele. Na alegoria do Sítio do Pica-Pau Amarelo, a crença
Figura 8: O Saci. Ilustrações de
em sacis é narrada por Tio Barnabé: J.U. Campos
Fonte: O Saci. 1941, p. 31.

Pois, Seu Pedrinho, saci é uma coisa que eu juro que “exeste”. Gente
da cidade não acredita – mas “exeste”. A primeira vez que vi saci eu
tinha a sua idade. Isso foi no tempo da escravidão, na Fazenda de
Passo Fundo, que era do defunto Major Teotônio, pai desse Coronel
Teodorico, compadre de sua avó, Dona Benta. Foi lá que vi o primeiro
saci. Depois disso, quantos e quantos! (LOBATO, 2007, p. 21).

Crenças e “crendices” ganham palavras e gestos nas vozes de Tio Barnabé e Tia
Nastácia. São recorrentes as descrições em que Tia Nastácia se benze, “pelo sinal”,
exclama “credo!” ou “cruzes!” e apresenta outros sinais de uma religiosidade muitas
vezes identificada como folclórica, ou simplória, a religiosidade do povo brasileiro. O
gestual e os significados do pelo sinal, credo e cruzes repetidos por Tia Nastácia podem
ser identificados com a “religiosidade de superfície” de que fala Sérgio Buarque de
Holanda (2002, p. 150) quando a identifica no povo brasileiro: “[...] o nosso culto sem
obrigações e rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com alguma
impropriedade, de „democrático‟ [...]”. O gestual característico incorporado por tia
Nastácia pode revelar uma apropriação popularizada dos rituais sofisticados do
catolicismo. Na apropriação ritualística, representada pela personagem, o gestual não
estaria relacionado diretamente ao significado conceitual da liturgia católica, mas mais
aproximado da eficácia da ação propriamente dita. Os hábitos “inocentes”, os gestos,
assim como as palavras utilizadas por tia Nastácia podem dar indicações sobre um
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quadro cultural e social bastante complexo. Portanto, os sinais repetidos pela “boa
negra” produzem sentidos específicos no grupo social a que ela pertence.
O livro Geografia de Dona Benta teve sua primeira edição publicada pela
Companhia Editora Nacional em 1935. O livro é direcionado ao público infantil, é
estruturado em trinta capítulos, em que a turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo viaja num
navio faz-de-conta por mares e continentes do planeta Terra. Dentre os trinta capítulos,
seis são dedicados a uma Geografia do Brasil, em que os conteúdos são não só
geográficos, mas históricos e culturais. Por ocasião da “visita” do grupo à cidade de
Nova Iorque, Tia Nastácia associa o idioma falado por ela à cor da sua pele e, quando
avista pessoas negras, puxa conversa na língua por ela dominada, o português. Quando
chega à conclusão de que não é compreendida, assim se expressa:

E esses negros que só falam inglês? É outra coisa que parece arte do
diabo. Ontem criei coragem e saí e cheguei até a esquina. Estava
olhando aquelas casas que somem na altura quando passou por mim
uma negra tal e qual a Liduina, cozinheira do seu compadre
Teodorico. Eu arreganhei uma risada de gosto. Uma negra! Uma
patrícia minha! E me dirigi a ela dizendo: “Como vai?” Pois há de crer
que a diaba não entendeu? Olhou para mim, como quem olha bicho do
mato, e disse uma palavra que seu Pedrinho depois me ensinou: Ai
donte anderstande que é como quem diz que não está entendendo
nada. Já se viu uma coisa assim? Fiquei desapontada, porque nunca
imaginei que negro falasse inglês. Desde que nasci só vi negro falando
brasileiro [...] (LOBATO, 1935, p. 114).

Em muitos trechos do livro, como no exemplo acima, a atuação de tia Nastácia é


associada ao humor ingênuo, à incapacidade de aprendizado e à incompreensão do
mundo civilizado que é apresentado à personagem. Tia Nastácia é necessária ao grupo,
pois é ela quem garante a transformação de farinhas, ovos, feijões e peixes em “quitutes
deliciosos” e sua participação mais característica é marcada pelo servilismo e os
conhecimentos, relacionados a um determinado mundo Brasil do passado, agrário,
povoado por crenças desvalorizadas pelo grupo naquele empreendimento específico: um
texto de Lobato, em que os conteúdos escolares são valorizados.
Já Chico Tião de Lourenço Filho, além de dominar os segredos de um Brasil
rural e antigo, tem certa familiaridade com alguns “saberes científicos”. Para socializar
a criança nos mistérios das matas brasileiras, ele lança mão da improvisação para a
solução de problemas, “prega peças” nas crianças e, ao mesmo tempo, demonstra
conhecimentos sobre História do Brasil, e conteúdos com base científica, relacionados à
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classificação dos seres vivos que habitam as matas brasileiras. Suas explicações são
simples e diretas:

[...] Vocês sabem que todos os animais grandes ou pequenos,


domésticos ou selvagens, podem ser primeiramente separados em dois
grandes grupos: o dos animais que têm ossos e o dos animais que não
têm ossos. [...] por sua vez, os animais de cada um desses grupos
podem ser separados em diferentes classes [...] (LOURENÇO FILHO,
1969, p. 21).
O relativo distanciamento entre Chico Tião e os dois personagens de Monteiro
Lobato pode estar relacionado à especificidade original de cada obra, pois a Série
Pedrinho, de Lourenço Filho, mesmo valorizando o imaginário infantil, é
exclusivamente didática, com objetivos científicos e enciclopédicos. Enquanto a obra de
Lobato, mesmo que utilizada no espaço escolar, apresenta um compromisso artístico
maior com a literatura infantil.

CONSIDERAÇÕES

Com base nessas observações, é possível pensar nos personagens tio Barnabé,
tia Nastácia e Chico Tião, das obras infantis de Monteiro Lobato e Lourenço Filho,
como emblemáticos nos processos de socialização aos quais os demais personagens são
submetidos. Sem deixar de destacar que tal processo se estende, especialmente, à da
criança leitora dos livros em tela. Nos três personagens, Tia Nastácia, Tio Barnabé e
Chico Tião, algumas características são comuns, como:

1) Os três são personagens sem nome de família e, para sua identificação,


são utilizados alcunhas ou diminutivos dos nomes próprios.
2) Os três são personagens idosos e somente Tia Nastácia tem a idade
definida na versão definitiva de O Saci (66 anos). Tio Barnabé “tem mais
de 80 anos”. No caso do personagem Chico Tião, de Lourenço Filho, está
relatado que nem o próprio personagem conhece sua verdadeira idade.
3) Nenhum deles possui uma família consanguínea e nenhum deles tem
descendentes. Tia Nastácia é filha de uma africana angolana. Chico Tião,
descendente de “bandeirantes”. Tio Barnabé é um agregado que “fora
escravo do pai de dona Benta”.
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4) Nenhum deles é branco. Tio Barnabé é negro; Tia Nastácia é negra e


Chico Tião é caboclo, resultado da confluência étnica entre o indígena –
o negro da terra - e o colonizador português.
5) Tio Barnabé, tia Nastácia e Chico Tião estão vinculados ao Brasil das
grandes propriedades rurais; são apresentados como empregados ou
agregados de sítio ou fazenda.

As marcas das personalidades registradas por cada um dos autores, nos três
adultos socializadores, estão impregnadas por características de uma determinada
personalidade coletiva de parte da população brasileira. São marcas destacadas e
valorizadas em ocasiões diversas pelo grupo, especialmente quando relacionadas ao
universo conhecido por esses “homens cordiais”: os espaços do Brasil rural e arcaico.
Tais marcas só são desvalorizadas quando as relações sociais se estabelecem num
ambiente estranho, como no exemplo do comportamento de tia Nastácia nas ruas de
uma cidade do mundo moderno e desenvolvido, representado pela cidade de Nova
Iorque.
Algumas características aproximam os três personagens, como as identificações
nominais, as atividades profissionais, as idades aproximadas, a ausência de familiares e
o local de moradia. Assim, a forma como os três são descritos e tratados pelos autores
pode revelar quem tem autoridade para falar sobre determinadas temáticas e qual o
lugar apropriado para discussão dessas temáticas.
Os tratamentos íntimos e afetivos identificados entre criança e adulto, como, no
caso, tio, tia e compadre, podem revelar a valorização das pessoalidades quando se trata
de alguns adultos. Assim, as referências à intimidade e ao favorecimento, advindas das
relações de amizade e compadrio, são bem-vindas e devem ser partilhadas entre os
brasileiros, crianças e adultos. É importante destacar que os autores, através dos
personagens, podem indicar que o processo de racionalização e modernidade
demonstrado nas impessoalidades não apresenta solo fértil nas relações sociais entre os
brasileiros.
Sem deixar de considerar a tensão homem cordial versus racionalidade, na
promoção das aventuras em cada livro - como também na promoção de projetos de
modernidade para a nação, impressos no conjunto da obra de cada um dos autores -, o
que se pode perceber nas representações dos “homens cordiais” são processos que
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hibridizam o novo e o velho, valorizados ou desvalorizados em algumas ocasiões nas


relações informais narradas nos livros.
Pode-se também considerar que nos projetos educacionais modernos, pensados
por Monteiro Lobato e Lourenço Filho - alicerçados nas ideias de educação ampla de
toda a população para o ingresso do país num mundo moderno e desenvolvido -, são
permitidas “brasilidades” como as que tia Nastácia, tio Barnabé e Chico Tião
representam: a cultura de uma cordialidade, herdada dos antepassados e o saber popular
que podem ou não estar aliados ao saber enciclopédico e científico.

REFERÊNCIAS

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perspectiva de socialização em Lourenço Filho. 258 p. Dissertação (Mestrado em
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