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Raquel de Abreu
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
raqueldeabreu@gmail.com
OS PERSONAGENS
Não existe negro velho por aí, desses que nascem e morrem no meio
do mato, que não jure ter visto saci. Nunca vi nenhum, mas sei quem
viu. – Quem? – O Tio Barnabé. Fale com ele. Negro sabido está ali!
Entende de todas as feitiçarias, e de saci, de mula sem cabeça, de
lobisomem – de tudo. Pedrinho ficou pensativo. Tio Barnabé era um
negro de mais de 80 anos que morava no rancho coberto de sapé lá
junto da ponte. Pedrinho não disse nada a ninguém e foi vê-lo.
Encontrou-o sentado, com o pé direito num toco de pau, à porta de sua
casinha, esquentando-se ao sol (LOBATO, 2007, p. 21).
Ainda na oitava edição do livro (1941), a apresentação de Tio Barnabé é
realizada por Lobato, na voz do narrador, da seguinte forma: “Quem contou a Pedrinho
as primeiras histórias do saci foi tio Barnabé, um negro velho que morava perto da
ponte e fora escravo do pai de dona Benta. Pedrinho tinha ido visitá-lo certo dia,
expressamente para saber coisas do saci” (LOBATO, 1941, p. 14).
A teia de relações que envolvem os personagens Tio Barnabé, Tia Nastácia, e o
saci, e que vai refletir na narrativa em torno de uma variedade de mitos brasileiros -
mesmo que Lobato faça revisões e algumas modificações entre a primeira edição de
1921 e a definitiva, de 1947 -, a trama é fundamentalmente a mesma. Ao mencionar os
acréscimos que Lobato realiza na sexta edição do livro, em 1938, e a aproximação da
obra a aspectos didáticos, Camargo (2008, p. 93) registra:
Tia Nastácia conta que a mãe dela veio da África, dum lugar chamado
Angola, lembrou Narizinho. Também conta que foi escrava sua,
quando moça, vovó. – Pois foi, confirmou dona Benta. Foi minha
escrava, sim. Meu marido, que Deus haja, comprou-a por 2:500$000,
lembro-me muito bem...(LOBATO, 1935, p. 192-193).
Os personagens masculinos adultos Tio Barnabé e Chico Tião têm idades
aproximadas, da mesma maneira que seus nomes próprios, “aproximados”, na forma de
diminutivos e marcados pela pessoalidade cordial através dos tratamentos “tio” e “tia”
(em Lobato). Estas características, as das identidades sedimentadas, podem refletir a
herança marcante da sociedade brasileira, especialmente a sociedade rural dos tempos
coloniais, que teima em sobreviver, já no século XX, na literatura infantil e didática dos
dois autores.
Entre os homens cordiais que socializam os Pedrinhos é representativa a
ausência de nomes de família e a utilização de diminutivos. No caso de Chico Tião,
como se não bastasse omitir seu nome de família (sobrenome), o que não acontece com
os demais personagens adultos da Série Pedrinho, o “velho caboclo” é identificado por
dois diminutivos derivados do nome de batismo: Chico (Francisco) e Tião (Sebastião).
Num processo de “domesticação e familiarização”, a forma de identificar o personagem
é naturalizada e valorizada como privilégio para compartilhar da amizade do “velho
caboclo”. Os laços de afeto, próprios da vida familiar, são estendidos à intimidade de
tratamento autorizada entre os personagens dos livros, adultos e crianças. A
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Pois, Seu Pedrinho, saci é uma coisa que eu juro que “exeste”. Gente
da cidade não acredita – mas “exeste”. A primeira vez que vi saci eu
tinha a sua idade. Isso foi no tempo da escravidão, na Fazenda de
Passo Fundo, que era do defunto Major Teotônio, pai desse Coronel
Teodorico, compadre de sua avó, Dona Benta. Foi lá que vi o primeiro
saci. Depois disso, quantos e quantos! (LOBATO, 2007, p. 21).
Crenças e “crendices” ganham palavras e gestos nas vozes de Tio Barnabé e Tia
Nastácia. São recorrentes as descrições em que Tia Nastácia se benze, “pelo sinal”,
exclama “credo!” ou “cruzes!” e apresenta outros sinais de uma religiosidade muitas
vezes identificada como folclórica, ou simplória, a religiosidade do povo brasileiro. O
gestual e os significados do pelo sinal, credo e cruzes repetidos por Tia Nastácia podem
ser identificados com a “religiosidade de superfície” de que fala Sérgio Buarque de
Holanda (2002, p. 150) quando a identifica no povo brasileiro: “[...] o nosso culto sem
obrigações e rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com alguma
impropriedade, de „democrático‟ [...]”. O gestual característico incorporado por tia
Nastácia pode revelar uma apropriação popularizada dos rituais sofisticados do
catolicismo. Na apropriação ritualística, representada pela personagem, o gestual não
estaria relacionado diretamente ao significado conceitual da liturgia católica, mas mais
aproximado da eficácia da ação propriamente dita. Os hábitos “inocentes”, os gestos,
assim como as palavras utilizadas por tia Nastácia podem dar indicações sobre um
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quadro cultural e social bastante complexo. Portanto, os sinais repetidos pela “boa
negra” produzem sentidos específicos no grupo social a que ela pertence.
O livro Geografia de Dona Benta teve sua primeira edição publicada pela
Companhia Editora Nacional em 1935. O livro é direcionado ao público infantil, é
estruturado em trinta capítulos, em que a turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo viaja num
navio faz-de-conta por mares e continentes do planeta Terra. Dentre os trinta capítulos,
seis são dedicados a uma Geografia do Brasil, em que os conteúdos são não só
geográficos, mas históricos e culturais. Por ocasião da “visita” do grupo à cidade de
Nova Iorque, Tia Nastácia associa o idioma falado por ela à cor da sua pele e, quando
avista pessoas negras, puxa conversa na língua por ela dominada, o português. Quando
chega à conclusão de que não é compreendida, assim se expressa:
E esses negros que só falam inglês? É outra coisa que parece arte do
diabo. Ontem criei coragem e saí e cheguei até a esquina. Estava
olhando aquelas casas que somem na altura quando passou por mim
uma negra tal e qual a Liduina, cozinheira do seu compadre
Teodorico. Eu arreganhei uma risada de gosto. Uma negra! Uma
patrícia minha! E me dirigi a ela dizendo: “Como vai?” Pois há de crer
que a diaba não entendeu? Olhou para mim, como quem olha bicho do
mato, e disse uma palavra que seu Pedrinho depois me ensinou: Ai
donte anderstande que é como quem diz que não está entendendo
nada. Já se viu uma coisa assim? Fiquei desapontada, porque nunca
imaginei que negro falasse inglês. Desde que nasci só vi negro falando
brasileiro [...] (LOBATO, 1935, p. 114).
classificação dos seres vivos que habitam as matas brasileiras. Suas explicações são
simples e diretas:
CONSIDERAÇÕES
Com base nessas observações, é possível pensar nos personagens tio Barnabé,
tia Nastácia e Chico Tião, das obras infantis de Monteiro Lobato e Lourenço Filho,
como emblemáticos nos processos de socialização aos quais os demais personagens são
submetidos. Sem deixar de destacar que tal processo se estende, especialmente, à da
criança leitora dos livros em tela. Nos três personagens, Tia Nastácia, Tio Barnabé e
Chico Tião, algumas características são comuns, como:
As marcas das personalidades registradas por cada um dos autores, nos três
adultos socializadores, estão impregnadas por características de uma determinada
personalidade coletiva de parte da população brasileira. São marcas destacadas e
valorizadas em ocasiões diversas pelo grupo, especialmente quando relacionadas ao
universo conhecido por esses “homens cordiais”: os espaços do Brasil rural e arcaico.
Tais marcas só são desvalorizadas quando as relações sociais se estabelecem num
ambiente estranho, como no exemplo do comportamento de tia Nastácia nas ruas de
uma cidade do mundo moderno e desenvolvido, representado pela cidade de Nova
Iorque.
Algumas características aproximam os três personagens, como as identificações
nominais, as atividades profissionais, as idades aproximadas, a ausência de familiares e
o local de moradia. Assim, a forma como os três são descritos e tratados pelos autores
pode revelar quem tem autoridade para falar sobre determinadas temáticas e qual o
lugar apropriado para discussão dessas temáticas.
Os tratamentos íntimos e afetivos identificados entre criança e adulto, como, no
caso, tio, tia e compadre, podem revelar a valorização das pessoalidades quando se trata
de alguns adultos. Assim, as referências à intimidade e ao favorecimento, advindas das
relações de amizade e compadrio, são bem-vindas e devem ser partilhadas entre os
brasileiros, crianças e adultos. É importante destacar que os autores, através dos
personagens, podem indicar que o processo de racionalização e modernidade
demonstrado nas impessoalidades não apresenta solo fértil nas relações sociais entre os
brasileiros.
Sem deixar de considerar a tensão homem cordial versus racionalidade, na
promoção das aventuras em cada livro - como também na promoção de projetos de
modernidade para a nação, impressos no conjunto da obra de cada um dos autores -, o
que se pode perceber nas representações dos “homens cordiais” são processos que
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REFERÊNCIAS
BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.
COHN, Gabriel (Org.). Weber. 7. ed. São Paulo: Editora Ática, 1999.
LOURENÇO FILHO. Pedrinho. 11. ed. Ilustrações: Maria Böes. São Paulo: Edições
Melhoramentos: 1961. (Série de Leitura Graduada Pedrinho, v. 2).
______. Pedrinho e seus amigos. 2. ed. Ilustrações: Oswaldo Storni. São Paulo:
Edições Melhoramentos: 1955. (Série de Leitura Graduada Pedrinho, v. 2).
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______. Pedrinho e seus amigos. 8. ed. Ilustrações: Oswaldo Storni. São Paulo:
Edições Melhoramentos: 1961. (Série de Leitura Graduada Pedrinho, v. 2).
______. Aventuras de Pedrinho. 12. ed. Ilustrações: Oswaldo Storni . São Paulo:
Edições Melhoramentos, 1969. (Série de leitura graduada Pedrinho, v. 3).
_____. Guia do Mestre (vol.2). São Paulo: Edições Melhoramentos, 1968. (Série de
Leitura Graduada Pedrinho).