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1.

Personalidade Jurídica e seu desvirtuamento

Através da ficção legal da personalidade jurídica das empresas, se tornou possível


que as pessoas jurídicas tivessem vida autônoma face aos seus sócios e instituidores,
possuindo seu próprio patrimônio e sendo capaz, outrossim, de possuir tanto direitos,
quanto deveres, trata-se, de qualquer sorte, de uma das invenções mais importantes
da humanidade e que proporcionou a evolução do ser humano em variados aspectos.

Quando se fala em personalidade jurídica das empresas, nota-se que através dessa
ficção humana, tornou-se possível que um grande número de pessoas, que podem
ser desconhecidas umas às outras, se unisse em torno de uma sociedade para a
realização de determinada atividade empresarial, interessante exemplo traz Harari
(2020), ao comentar sobre a personalidade jurídica da Peugeot, que emprega cerca
de 200 mil pessoas em todos o mundo, maioria delas estranhas umas às outras, mas
que cooperam de maneira tão eficaz que em 2008 a Peugeot mais de 1, 5 milhão de
automóveis, gerando uma receita de aproximadamente 55 bilhões de euros.

Somada a isso, observa-se que em momento anterior ao surgimento da Personalidade


Jurídica das empresas, a pessoa que praticava a atividade econômica era totalmente
responsável e de maneira ilimitada, por todas as obrigações assumidas pela a sua
atividade econômica, oque, com efeito, desencorajava o empreendedorismo e a
exploração da atividade econômica, tendo vista que não seria possível que uma
pessoa que desejasse exercer alguma atividade empresarial, destacasse
determinado capital para essa atividade, sem correr riscos, contudo, que o seu
patrimônio pessoal, não reservado para a atividade empresarial, fosse atingido.

Não obstante, a personalidade jurídica, originalmente concebida para fins nobres, teve
seus instituto desvirtuado, sendo utilizada para a prática de abusos, golpes, fraudes
ou, até mesmo, atos ilegais, compreende-se que não raro, apesar de a sociedade ou
empresa ir à bancarrota, os sócios ou administradores, de maneira peculiar,
multiplicam seu patrimônio.

2. Desconsideração da personalidade jurídica

Como uma forma de evitar o uso irregular da personalidade jurídica das empresas,
foi concebida a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica que é o meio
pelo qual o “se levanta o véu da pessoa jurídica” para que suas obrigações sejam
suportadas pelo seus sócios e administradores, em casos de utilização da pessoa
jurídica para fins condenáveis ou irregulares, atente-se para o fato de que não se
destrói a pessoa jurídica, mas apenas, com o fim de evitar irregularidades, torna-se
sem eficácia a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e os seus membros em
determinado caso concreto.

No ordenamento jurídico brasileiro, a teoria da desconsideração da personalidade


jurídica é representada, em sede consumerista, pelo art. 28, caput e em seu §5º do
CDC, especificamente em seu §5º é adotada a Teoria Menor da desconsideração da
personalidade jurídica, onde a personalidade jurídica será desconsiderada sempre
que ela for um óbice ao consumidor receber seu crédito, vejamos tais dispositivos:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade


quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de
poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato
social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência,
estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica
provocados por má administração.

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua


personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados aos consumidores.

Pereira (2020) explica, ainda, que a justiça trabalhista tem se utilizado da analogia
com a vulnerabilidade do empregado na mesma proporção do consumidor para
aplicar, outrossim, a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica,
sempre que a personalidade jurídica for obstáculo ao pagamento de créditos
trabalhistas aos seus funcionários.

O Código Civil, em seu art. 50, trata da desconsideração da personalidade jurídica,


que dispunha, anteriormente à lei 13. 874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), que
em casos de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade
ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do
Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certa e
determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos
administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Percebe-se que pela redação anterior, para que houvesse a desconsideração da


personalidade jurídica era necessário que houvesse o abuso da personalidade
jurídica, que poderia se dar pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial,
obtempera-se, contudo, que a lei anterior não dispunha sobre os conceitos de desvio
de finalidade ou confusão patrimonial, usando-se o incidente em tela de maneira
descriteriosa, aumentando a insegurança jurídica sobre o tema, bem como se passou
a utilizar exageradamente a desconsideração da personalidade jurídica, tome como
exemplo julgado do TJRJ (0037844-28.2013.8.19.0000), onde restou consignado que
basta a prova da insolvência da pessoa jurídica para que possa haver a
desconsideração da personalidade.

3. Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica a Lei da Liberdade


Econômica

A lei 874/2019, também conhecida como a Lei da Liberdade Econômica, trouxe


critérios objetivos para a instauração do incidente da desconsideração da
personalidade jurídica, como a conceituação do que vem a ser desvio de finalidade
(art. 50, §1º) e confusão patrimonial (art. 50, §2º), bem como trouxe contornos mais
claros e precisos sobre a desconsideração da personalidade jurídica, como, por
exemplo, quem é atingido pela desconsideração (art. 50, caput) e a confirmação legal
da existência da chamada desconsideração inversa da personalidade jurídica (art. 50,
§3º), concebida pela doutrina e jurisprudência, vejamos a nova redação do art. 50:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio


de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da
parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo,
desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de
sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo
abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização


da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos
ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato


entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do


administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações,


exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº
13.874, de 2019)

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela


Lei nº 13.874, de 2019)
§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à
extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa
jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de


que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da


finalidade original da atividade econômica específica da pessoa
jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

De acordo com a novel redação, serão atingidos pela desconsideração da


personalidade jurídica somente os administradores ou sócios da pessoa jurídica que
foram beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso, Neves (2020) explica que não
se deve permitir a desconsideração de bens dos sócios minoritários que não tiveram
qualquer ingerência sobre o ato irregular, nem dele colheram alguma vantagem direta
ou indireta.

Ademais, no que refere-se aos atos irregulares é necessário diferenciá-los da decisão


comercial ruim, que pode acarretar em ausência de fluxo de caixa para o pagamento
de determinadas obrigações e por conseguinte no não cumprimento da obrigação
avençada, é preciso ter em tela que a atividade comercial possui certo riscos inerentes
à ela (business judgment rule), não se devendo confundir o cometimento de
determinados erros negociais com atos que possam configurar fraude ou abusos
contra credores, capazes de afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica.

No tocante ao desvio de finalidade, de acordo com o art. 50, §1º do Código Civil, ele
irá ocorrer quando houver a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar
credores ou para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

Aponta-se para o fato de que, em havendo a utilização da Pessoa Jurídica para lesar
credores, haverá a sua desconsideração, independente de culpa do sócio ou do
administrador, o enunciado 37 da I Jornada De Direito Civil do Conselho da Justiça
Federal diz que a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de
culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.

Com efeito, é necessário se ater, ainda, ao art. 50, §5º, que diz que a mera alteração
da atividade originalmente desempenhada pela pessoa jurídica, por si só, não acarreta
desvio de finalidade, mas é preciso ter cuidado, pois, isso não significa que sócios e
administradores possam modificar sua atividade, gerar danos aos seu credores e não
serem responsabilizados por isso.

Constitui desvio de finalidade, outrossim, a utilização da PJ para a prática de atos


ilícitos de qualquer natureza, tendo em vista que o ordenamento jurídico não pode dar
guarida a quem se propõe a atuar em desconformidade com o ordenamento legal.

No que se refere à confusão patrimonial, que é configurada pela ausência de


separação de fato entre o patrimônio da pessoa jurídica e o de seus sócios, o art. 50,
§2º, traz em seus incisos as seguintes hipóteses de confusão patrimonial:

 cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou


vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
 transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor
proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
 outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874,
de 2019)

Aponta-se para o fato de que o inciso III do dispositivo em comento, traz regra geral
para a configuração da confusão patrimonial ao mencionar que qualquer ato de
descumprimento da autonomia de bens é capaz de conformar a mencionada confusão
patrimonial, tratando-se, dessa maneira, de rol não taxativo, numerus apertus.

Outra novidade oriunda da Lei da Liberdade Econômica é a previsão da


desconsideração inversa da personalidade jurídica, art. 50, §3º, conceito que já se
encontrava presente no ambiente jurídico brasileiro, basta observar o enunciado n.
283 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal que diz ser cabível
a desconsideração da personalidade jurídica denominada "inversa" para alcançar
bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais,
com prejuízo a terceiros.

Neves (2020) profere interessante caso de incidência da desconsideração inversa,


que se dá quando os sócios ou administradores esvaziam seus respectivos
patrimônios, desviando-os para a pessoa jurídica, frustrando, por consequência, seus
credores e praticando atos fraudulentos.

Por fim, em seu art. 50, §4º, o Código Civil diz que a mera existência de grupo
econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput do artigo 50 não
autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, em evidente
contraposição ao Código de Defesa do Consumidor, onde as sociedades
integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente
responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código e as sociedades
consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste
código.

4. Conclusão

A desconsideração da personalidade surge como um remédio ao uso irregular das


pessoas jurídicas, com o fim de frustrar credores ou cometer abusos e fraudes, com
o advento da lei 13. 784 de 2019, Lei da Liberdade Econômica, passou-se a ter
critérios objetivos para a decretação desse incidente, com a conceituação do que vem
a ser Desvio de Finalidade (art. 50, §1º) e Confusão Patrimonial (art. 50, §2º).

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