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Resulta cada vez mais premente imaginar como será ou deveria ser o mundo
pós-pandêmico, construir um projeto de futuro que começaria assim que possamos sair
às ruas. Contudo, a própria ideia de um mundo pós-pandêmico pode ser uma mera
ilusão. A pandemia veio para ficar e se tornou tão planetária quanto o capitalismo. Não
se trata de uma guerra, nem de uma crise econômica, das quais se tenta sair com novos
arranjos institucionais, como o tão lembrado Estado de bem-estar social depois da
Segunda Guerra Mundial. A crise hoje é de outra natureza.
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*Texto publicado no Livro “Pandemias e Pandemônio no Brasil, Augusto Brandão, C. e Dultra
dos Santos, R. (org.), Ed. Tirant lo blanch, Instituto defensa da classe trabalhadora, Rio de
Janeiro, 2020.
Sociólogo, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Membro da Letra
Freudiana do Rio de Janeiro.
perturbadora. Um “inimigo” que não se vê e que é representado nas mídias como um
minúsculo colorido que paira no ar.
Trata-se do Real, de um resto, que tem efeitos profundos sobre os sujeitos, como
observam psicanalistas. Só para indicar um direcionamento, digamos que o real é aquilo
que nos faz desabar, o que nos deixa sem palavras, o que nos faz ficar sem chão porque
não está sujeito a lei nenhuma, como agora o vírus mutante. O real como uma ideia
limite, que implica que no mundo dos viventes sempre há algo que escapa à ordem
simbólica.
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Que Jacques Lacan definiu como “o sujeito do individual”.
Neste texto, discutiremos se o avanço de biopolíticas está inevitavelmente associado ao
controle autoritário sobre a vida de sujeitos e comunidades.
Biopolítica e destino
O mais importante que aprendemos com Foucault, de acordo com Paul Preciado
(2020), é que o corpo é objeto central de toda política e a atual pandemia traz isso à
tona. Entretanto, para Preciado já não se trataria, como na visão de Foucault, da
implementação de técnicas moleculares, e sim de poderes especializados que agora
penetram nos corpos a partir de técnicas endocorporais e de biovigilância.
Como todo discurso, esse também tem seu fantasma neste caso de que o “Estado
policial digital ao estilo chinês” penetre, também no Ocidente. A possibilidade de uma
biopolítica autoritária na Europa, que permaneça após a pandemia, pautada na vigilância
digital como situação normal:
O autor estima que essa política de exceção poderá se estender no tempo após a
pandemia. Chega inclusive a fazer uma homologia entre o atual primeiro ministro da
Itália com o Führer, por causa da prerrogativa de ditar decretos com valor de lei.
Também considera que o distanciamento social poderia se impor como princípio de
comportamento e de organização da sociedade, abalando fundamentos constitucionais e
morais. Dessa maneira, prevê sociedades que teriam sacrificado a liberdade pela
segurança, se obrigando a viver em situação de sobrevida e precariedade moral.
Biopolíticas e democracia
Portanto, não é pelo excesso de biopolíticas que nós deveríamos nos preocupar,
e sim pela falta delas. O que o fascismo neoliberal defende é que o Estado não exerça o
dever constitucional de proteger a vida dos cidadãos e de cuidados da população. Que
não haja testes, que não se contabilize os afetados pela pandemia; questionar dados de
organizações internacionais e abrir covas em lugares invisíveis (Safatle, 2020). Assim,
no lugar de biopolíticas democráticas, há o abandono de parte da população que mais
precisa e isso não se chama Estado suicidário, e sim genocídio.
Biopolíticas e abismo
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