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A EDUCAÇÃO DURANTE A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NA


GUINÉ-BISSAU (1471-1973)

Lourenço Ocuni Cá

Resumo
Neste trabalho pretende-se tratar da educação pré-colonial, educação colonial e educação
durante a luta de libertação nacional da Guiné-Bissau. Antes da dominação colonial na Guiné-
Bissau, não havia instituição escolar tal como existe hoje. Portanto, a educação consistia em
aquisição de conhecimentos e normas de comportamento como em qualquer sociedade. A
ausência das instituições escolares na sociedade guineense tradicional não significava a
inexistência de ensino-aprendizagem, porque se tratava de uma cultura oral, que foi sobreposta
pela cultura escrita européia.

Palavras-Chave
Educação Pré-Colonial ; Educação Colonial ; Guiné-Bissau

Resumén
Neste trabajo pretiende si tratar de la educación pré-colonial, educación colonial e educación
duranti la lucha de libartación naciaonal de Guine-Bissau. Antes de la dominación colonial na
Guine-Bissau, no habia institución escolar como hay. Portanto, la educación consistia en
aquisición de conocimientos y normas de comportamiento como en qualquiera sociedad. La
ausencia de las institucines escolares na sociedad guineense tradicional no significaba la
inexistencia de ensino-apredizaje, porque se trataba de una cultura oral que hay sobreposta pela
cultura escrita europea.

Palabras-llave
Educación Pre-Colonial ; Educación Colonial ; Guiné-Bissau

Rev. online Bibl. Prof. Joel Martins, Campinas, SP, v.2 , n.1, out. 2000 1
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INTRODUÇÃO EDUCAÇÃO PRÉ–COLONIAL

Em 24 de setembro de 1973, a A Guiné-Bissau, como os demais países


Assembléia Nacional Popular africanos, não tem sido objetos de
(Parlamento), proclamou em Madina do grandes estudos nem de presença
Boé, no sul do país, a independência constante na mídia mundial. As
da Guiné-Bissau; um ano após o informações provenientes desses países
Acordo de Argel celebrado com só se referem, na maioria das vezes, às
Portugal em 26 de agosto de 1974, o crises política e econômica, à fome, à
Partido Africano Para a Independência instabilidade social, aos massacres.
da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) entrou Obviamente, tudo isso existe, mas as
triunfalmente em Bissau, capital e razões dessa situação nunca são
passou a controlar todo o território apresentadas e, além disso, o Continente
nacional. Estas decisivas vitórias contra Africano não é apenas um baluarte de
o colonizador português e pela conflito ou de crise.
libertação nacional coroaram décadas e
décadas de luta política e militar desde Os mais de um milhão de guineenses
a fundação do Partido em 19 de que hoje (2000) estão organizados em 8
setembro de 1956, passando pelo início Regiões (Estados) e um Setor
da luta armada em 23 de janeiro de Autônomo têm uma história que
1963. Ao longo de subseqüentes etapas começou muito antes da colonização. A
o PAIGC foi-se firmando como a força forma pré-colonial de organização,
única que unia os povos da Guiné e baseava-se na produção coletiva; ou
Cabo Verde, força essa que assumia o seja, na sociedade tradicional
destino histórico desses povos e que agrupavam-se populações rurais
incarnava as suas aspirações mais complexas no seu modo de produzir e
profundas. O combate do PAIGC foi de viver a terra era o patrimônio de uso
uma das mais sangrentas lutas de coletivo: a família, no sentido lato,
libertação de toda a história das incluindo os parentes mais distantes,
revoluções no mundo. tinha um papel fundamental; o trabalho
era dividido entre os sexos e a mulher,
Digo isto sem qualquer exacerbação e produtora agrícola e produtora da prole,
fora de qualquer intenção demagógica. era objeto de controle social. Nessa
É com muita pena que não posso tratar sociedade ela detinha o conhecimento
aqui todo esse combate heróico que sobre a natureza que a rodeava,
haveria de contribuir grandemente para extraindo o máximo proveito do que
liquidar o colonialismo português e que necessitava para a subsistência.
fez ressurgir um povo para a liberdade.
Portanto, o objetivo deste trabalho é O modo de vida era fundado
outro. Vou me debruçar, não sobre a basicamente na agricultura, mas
luta de libertação nacional, mas sobre a também no pastoril, na pesca e na caça.
educação pré-colonial , educação O sistema agrícola era baseado na
colonial e educação durante a luta de “rotação dos solos”. Nesse sentido, a
libertação nacional da Guiné-Bissau. terra era explorada apenas uma vez por
ano. O trabalho humano, apesar de ser
voltado quase todo para as atividades
agrícolas, também envolvia atividades
artesanais, como a confecção dos

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instrumentos rudimentares (catana, aumentar a produção fez com que a


flecha, lança, potes, etc). sociedade tradicional entrasse em crise,
provocando um controle mais rigoroso
As florestas forneciam as condições das terras e inúmeras lutas étnicas na
para a prática agrícola, enquanto a caça busca de um novo arranjo técnico,
e pesca eram o vazio para ser ocupado político e social. No entanto, essa
quando houvesse aumento da história foi interrompida com a
população. Os instrumentos de trabalho ocupação européia e a implantação, em
eram de custo baixo e podiam ser todo o território da Guiné-Bissau e,
facilmente reproduzidos nas novas por todo o Continente Africano, da
aldeias. A produção agrícola era dominação colonial e da exploração
multicultural, propiciando uma voltada para as metrópoles. As
alimentação diversificada evitando, condições internas e a busca de novas
assim, a desnutrição. relações sociais de produção foram
alteradas perante a violência colonial.
A renovação da fertilidade do solo e a
utilização de quase toda força de Embora o Continente Africano fosse
trabalho para a produção de alimentos ocupado desde o início do século XV
eram a dupla debilidade dessa sociedade pela França, Inglaterra, Bélgica,
tradicional. Algumas etnias que Portugal, além da Itália, Espanha e
compõem essa sociedade tradicional Alemanha, os países só tiveram
ainda existem em algumas Regiões até fronteiras definidas na Conferência de
hoje, como, por exemplo, os bijagós na Berlim em 1885. Os europeus viviam
Região de Bolama, no sul do país, pois uma revolução industrial, e portanto,
sobreviveram ao tráfico de escravos, à necessitavam de produtos minerais
dominação colonial e aos projetos de (ferro, ouro, prata, diamante, etc.) e
modernização. O desbaste da floresta, agrícolas para abastecer suas cidades. A
fruto da introdução de técnica moderna, África detinha esses recursos e uma
dada a exigência colonial para que população para ser explorada. Não
cultivassem produtos para a exportação obstante, cada potência acabou
e o recrutamento para as minas desenvolvendo um estilo de colonização
conduziram ao desequilíbrio dessa próprio, os ritmos (à exceção de
sociedade. Portugal, mais atrasado1) e os motivos
foram parecidos: levar Deus aos
O Estado colonial não se preocupava homens não-civilizados foi a
com a organização da sociedade justificativa à consciência européia para
tradicional. Algumas etnias que se o que iriam fazer na África. Os
desenvolveram foram incentivadas por interesses eram voltados para a
atividades comerciais. O tráfico extração de produtos africanos para as
negreiro para as plantações do século metrópoles. Assim, com a
XVI ao XIX permitiu a organização administração colonial, foram
dessa sociedade, que acabou resistindo implantando no território postos e
e/ou participando do próprio tráfico. Já chefaturas, modificando a rede
quase no final do século XIX, em tradicional, a hierarquia e o mando
muitas regiões, esse sistema tradicional político. Ocupado o continente africano
estava chegando ao seu término devido militarmente e apoiados por uma etnia
à degradação e à ocupação das florestas, contra outra, instalaram-se aparatos
que não podiam mais abrigar com as burocráticos para gerenciá-la.
mesmas condições o crescimento
populacional. Assim sendo, a 1
Ver Letícia Canêdo: A Descolonização da
necessidade de nova tecnologia para Ásia e da África, 1986.

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Obrigaram as populações rurais a balanta lavrava o seu campo de cultivo,


cultivar para exportação o algodão, o mas não o podia vender, o campo
cacau, etc. E o trabalho forçado das pertencia como todos os outros campos
mesmas populações nas minas, estradas, à aldeia ou ao conjunto de aldeias ou
portos e nas obras públicas foram os então ao próprio clã dentro da tribo. A
fundamentos econômicos do produção também era basicamente
colonialismo na África. A força não foi coletiva, pois todos os processos de
instrumento menor para a “civilização,” cultivo, desde a preparação dos terrenos
os massacres coloniais foram até à colheita, eram sempre combinados
incalculáveis, assim como as pelo conjunto dos chefes de família.
resistências africanas à ocupação. Durante alguns anos, uma família
lavrava a melhor terra e depois trocava
Durante a ocupação colonial, a
com outra, para dar possibilidade a
economia baseava-se em dois sistemas
outra família de lavrar também a melhor
produtivos que coexistiram: as
terra. Quando chegava a altura de uma
empresas criadas e geridas pelos
família cultivar o campo que naquele
colonialistas (empresas agrícolas
ano lhe era destinado, convocava a
modernas e minas) que serviam aos
comunidade da aldeia para aquele
interesses das metrópoles; e a produção
trabalho, garantindo assim a
das sociedades tradicionais, que
alimentação de todos e rotativamente as
alimentavam o trabalhador nas minas e
famílias se ajudavam. Neste sistema, o
nas plantações e os recebiam quando
trabalho produtivo, sem perder a
sua força de trabalho deixasse de ser
dimensão familiar, tinha um caráter
necessária.
comunitário, o mesmo acontecendo com
Com o avanço da tecnologia no século o usufruto dos bens produzidos, que
XX, ou seja, com as novas relações eram administrados coletivamente.
comerciais que se estabeleceram após a
Com relação à educação, não havia
Segunda Guerra Mundial, mudaram os
pessoas que ensinassem na sociedade
interesses das grandes potências
africana tradicional, um ensino
mundiais na África. Os EUA, grandes
formalizado como na sociedade
vencedores, não tinham colônias e o
ocidental, nem lugar privilegiado para a
próprio capitalismo europeu precisava
transmissão do conhecimento. A forma
de mercado para os seus produtos.
de educar baseava-se no exemplo do
Assim, o sistema colonial que fornecia
comportamento e do trabalho de cada
matérias-primas já não servia, os
aprendiz. Cada adulto era, de certa
africanos precisavam acompanhar o
forma, um professor. A educação não se
avanço da tecnologia para que a eles
separava em campo e especialização de
fossem aplicados os novos valores da
atividades humanas. Ninguém se
modernidade.
educava apenas por um determinado
Como exemplo de organização período, aprendia-se com a vida e com
tradicional na Guiné-Bissau vejamos o os conhecimentos ao longo do tempo.
caso da etnia Balanta.
Esta educação espontânea e diária
possibilitava, assim, uma aprendizagem
A sociedade balanta estava em uma fase
direta da realidade social. Não obstante,
que podia considerar como
o saber adquirido não era cumulativo e
“desagregação do comunismo
aberto ao mundo. Com a exceção dos
primitivo”, era uma sociedade em que a
períodos de crise (ameaças de
terra, que era a base da vida pertencia a
degradação das relações com o meio
toda a comunidade, porque uma família
ambiente), para sobreviver, a sociedade

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tinha de se reestruturar, aprendendo mesmas, longe da vida comunitária e


apenas aquilo que era necessário à vida social das populações indígenas.
e à reprodução do equilíbrio da
sociedade.
EDUCAÇÃO COLONIAL 1471-1973
Como podemos perceber, antes da
dominação colonial, na sociedade
africana tradicional, não havia Manter, reforçar e dar continuidade à
instituição escolar tal como existe hoje. dominação são apenas alguns dos
Porém, a educação consistia em verbos que rimam com os principais
aquisição de certos conhecimentos e objetivos do regime colonial em matéria
normas de comportamento como em de escolarização. Não havia, portanto, a
qualquer sociedade. Pela sua intenção de instruir ou educar as
participação na vida do grupo familiar e populações subjugadas, mas pelo
da comunidade integrando-se nos contrário, extrair do seu seio uma
trabalhos de campos, escutando minoria de homens letrados,
histórias dos velhos e assistindo às indispensáveis para o funcionamento do
cerimônias conjuntas as crianças e os sistema colonial de espoliação e reduzi-
jovens adquiriam paulatinamente, ao los a uma assimilação que devia retirar-
lhes qualquer possibilidades de
longo dos anos, os conhecimentos
desvendar o processo de docilização,
necessários à sua integração na
despersonalização a que estavam
comunidade .aprendiam as habilidades
submetidos.
de produção e como sobreviver,
adotando as regras de comportamento e
Foi Assim que a escola colonial, tanto a
os valores imprescindíveis à vida.
sua estrutura como o seu conteúdo,
refletia a filosofia colonial: era
A ausência das instituições escolares na
laboratório de desafricanização e
sociedade africana tradicional não
sujeição (TOURÉ, 1977:27).
significava a inexistência de ensino-
aprendizagem, pois se tratava de uma
Para desenvolver esse espírito do
cultura oral, que veio a ser sobreposta
sistema educacional, o regime colonial
pela cultura escrita européia.
português havia-se associado à Igreja
Obviamente, ao impor um destino
Católica no seu “dever colonizador”
preestabelecido de escravatura e de
domesticação aos africanos, o para dar a educação às populações
colonialismo foi o grande fator externo coloniais dentro dos moldes
de ruptura e de deslocamento do particulares da cultura portuguesa. Era,
equilíbrio da sociedade tradicional. então, necessário um mínimo de
Assim, não havia mais condições de europeização para impor uma ordem
uma aprendizagem ligada à social que facilitasse a exploração
comunidade, considerando que a econômica. Assim, se os africanos
vivência comunitária havia sido assimilassem a cultura e as técnicas
apropriada por uma potência externa. européias com demasiado sucesso,
poderiam constituir uma ameaça à
No entanto, com a introdução do dominação colonialista. A Igreja
sistema de ensino formalizado pelo Católica contribuiu grandemente para
colonialista português, as escolas que assegurar as vantagens de assimilação
funcionavam na Guiné no período das técnicas européias, sem que fossem
colonial, segundo o modelo europeu, corridos os riscos da exploração
eram instituições à parte, fechadas em si econômicas. A igreja colaborava em
uma aculturação estritamente limitada e

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controlada. Os “indígenas” recebiam da Porém, mesmo a “generosidade” de


“cultura branca” e dos princípios permitir aos africanos que se tornassem
cristãos o suficiente para se tornaram “mais civilizados” e assim, pelo menos
hábeis, com um espírito independente e teoricamente, gozassem dos mesmos
ativo. direitos que os outros portugueses, era
de um alcance muito restrito, tendo em
Com essa filosofia de permitir que os conta os obstáculos que impediam os
indígenas recebessem o suficiente da africanos de atingir essa condição. Por
cultura branca é que o colonizdor conseguinte, poucos africanos tinham
português tentou desenvolver uma possibilidades materiais para atingir a
política de assimilação. Essa política educação formal necessária, condição
baseava-se na pretensão de Portugal de sine qua non para a assimilação. Esta
não ser racista: qualquer pessoa das situação pode ser mostrada com dados
colônias podia absorver a civilização estatísticos na Guiné: em uma
portuguesa e ser considerada igual aos população de 1500 para 503.000 em
portugueses de nascimento, sem 1950 (FERREIRA, 1977: 142).
distinção de cor ou ascendência, isto é,
os africanos podiam tornar-se Os outros africanos “não civilizados”
portugueses através da Igreja Católica não tinham direitos civis. Com abolição
(FERREIRA, 1977: 140). formal do Estatuto do Indígena, em
1960, isto é, nas vésperas do
Contudo, a pretensão de “não-racista” desencadeamento da luta armada) não
era negada pelo próprio fundamento da houve praticamente nenhuma mudança
política de assimilação. Ser significativa. Todos os africanos das
“assimilado” quer dizer ser considerado colônias foram declarados cidadãos
como pertencente à população portugueses contudo, foram emitidos
“civilizada”, restringindo-se bilhetes de identidade diferentes
originalmente esse critério aos brancos. (FERREIRA, 1977: 142).
Como a distinção entre “civilizado” e
“não civilizado” era feita em termos A política de assimilação mostrava que
raciais, era difícil não considerar esta Portugal não havia conseguido aniquilar
atitude racista. Tentou-se mascarar o a resistência dos povos dominados e
racismo dando-lhe um aspecto cultural: assim sequer enfraquecido
essencialmente a cultura dos africanos.
“o africano era aceite como Transmitindo oralmente a sua literatura,
civilizado e integrado na sociedade e também através de canções
portuguesa se atingisse um certo populares, os africanos conseguiram
nível cultural que incluía a preservar as suas línguas e continuar a
capacidade de ler e escrever em falá-las. A sua cultura não se manteve
português. Considerando a elevada totalmente intacta, mas sobreviveu, sem
percentagem de analfabetos entre
dúvida, a muitas das atrocidades
os colonos portugueses em África,
era difícil perceber por que é que cometidas pela colonização portuguesa.
estes não eram também incluídos
entre os “não civilizados” a menos Contudo, a cultura dos povos africanos
que se admitisse que a distinção foi profundamente afetada pelo impacto
era de fato feita em termos de raça do colonialismo português.
e não de cultura” (FERREIRA,
1977:141). O colonialismo português provocou um
desmantelamento profundo dos modos
de vida e de subsistência tradicionais:

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e mais intimamente ligados com as


“o emprego intensivo do trabalho populações. Existia freqüentemente
africano fora da economia rural uma mistura de motivos cristãos e
africana; e a imposição, em tal africanos na música, nas canções e na
economia, de culturas arte, etc.
comercializadas, e os seus efeitos
no empobrecimento dos Africanos; Com a dominação colonialista na
a abolição de qualquer forma de Guiné, a cultura européia cristã-
governo indígena por mais modesta ocidental tentava penetrar na população
que fosse; as práticas abusivas dos por meio dos missionários, conforme os
colonos pobres, que, também eles, princípios de assimilação. A condição
dificilmente viviam acima do nível necessária para ter um cartão de
de subsistência; e as práticas ainda
identidade era saber ler em português e
mais abusivas dos colonos ricos,
cujas plantações necessitavam de
comportar-se como um civilizado. O
trabalho forçado em número crioulo, língua veicular do povo
sempre crescentes, porque a ruína guineense era proibida nas escolas e
era cada vez maior” (FERREIRA, desprezada pelos portugueses. As
1977: 145). tradições eram consideradas como
manifestações selvagens.
As influências profundas eram as cristãs
porque os missionários católicos
representavam os elementos mais ativos

QUADRO 1
Analfabetismo na Guiné em 1958

População Número de Percentagem de


total analfabetos analfabetismo

510.777 504.928 98,85

Fontes: Anuário Estatístico do Ultramar e Instituto Nacional de Estatística, Lisboa,


1958, In: Ferreira, 1977.

As alterações políticas e econômicas Para os pressupostos do novo tipo de


ocorridas na Europa Ocidental após a ensino, foram criados com a abolição do
Segunda Guerra Mundial, o próprio "Estatuto Indígena", logo depois do
desenvolvimento do capitalismo desencadeamento da luta armada em
português e a pressão exercida pelos Angola em 1961.
movimentos de libertação obrigaram
Portugal a tomar um novo rumo na sua A reforma destituía as missões das suas
política colonial, no que diz respeito ao atribuições específicas no setor do
desenvolvimento acelerado da ensino colonial. As escolas que estavam
economia, principalmente nas colônias sob o controle das missões não foram
e uma política de assimilação intensiva. abolidas, mas perderam a posição
privilegiada.

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A nova política educacional portuguesa número de escolas, estudantes e pessoal


(desde o desencadeamento das lutas docente. No início dos anos 60,
armadas na década de 60) trouxe o contudo, o nível do ensino era
melhoramento na expansão do ensino extremamente baixo. Esse aumento
em todos os graus, sobretudo, nas tornou-se difícil de determinar, porque
colônias de maior extensão e desde a abolição do estatuto indígena,
economicamente mais importantes: na década 60, as estatísticas oficias
Angola e Moçambique. deixaram de fazer distinção entre as
raças.
A expansão, porém, era essencialmente
quantitativa, consistindo
freqüentemente em um aumento de

QUADRO 2
Educação Colonial: 1962 a 1973

Anos Ensino Pessoal Ensino Pessoal


primário docente secundário docente

Alunos Alunos

1962/1963 11827 162 987 46

1963/1964 11877 164 874 44

1964/1965 12210 163 1095 45

1965/1966 22489 192 1293 42

1966/1967 24099 204 1039 43

1967/1968 24603 244 1152 40

1968/1969 25213 315 1773 111

1969/1970 25854 363 1919 147

1970/1971 32051 601 2765 110

1971/1971 40843 803 3188 158

1972/1973 47626 974 4033 171

Fonte: Repartição Provincial dos Serviços da Educação, província da Guiné, 1973.

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educacional permaneceu exatamente na


Dar educação, para os portugueses, era
mesma. As leis que regulavam o
o mesmo que “desafricanizar”. Pois isto
trabalho forçado foram melhoradas, mas
conduzia à criação de pessoas divididas,
as condições reais dos trabalhadores não
desenraizadas africanos que
sofreram qualquer alteração.
pensavam como brancos. Uma
pedagogia autoritária reforçava a Nesse caso, podemos compreender
submissão ao colonizador e incitava à claramente as características de base do
sua imitação como único critério de sistema educacional colonial ,
sucesso, que só podia ser individual. começando pela sua difícil integração
dos estudantes na sociedade em que
Segundo OLIVEIRA (1977:21), o
viviam e que, além disso, favorecia a
conteúdo do ensino era a realidade da
arrogância intelectual e o
metrópole porque a África não tinha
individualismo.
história; ela não existia antes que o
colonizador a tivesse descoberto e Segundo OLIVEIRA (1977:39), a
habitado. Até mesmo nos anos de 1970, distorção principal desse sistema residia
no liceu de Bissau, as mulheres dos na sua estrutura elitista. O ensino dos
oficiais que serviam no exército portugueses baseado exclusivamente na
colonial continuavam a ensinar aos escola organizava-se em
jovens guineenses a epopéia dos compartimentos estanques. O primeiro
navegadores portugueses que haviam compartimento, chamado ensino
levado Deus e a civilização aos povos primário, servia apenas para preparar os
selvagens de três continentes. alunos para o ingresso na etapa
seguinte : o ensino secundário, que, por
Para DAVIDSON (1975:26), a estrutura
sua vez, conduzia ao ensino superior.
educacional montada pelos portugueses
não foi mesmo criada para os Na Guiné-Bissau, como em quase todos
guineenses terem acesso. Quando os países africanos que seguiram este
muito, 1% de toda população podia modelo educativo introduzido pelo
contentar-se em possuir alguma colonialismo, somente uma pequena
educação elementar; porém, só 0,3% percentagem, em torno de 10% a 15%
tinha chegado à situação de assimilado dos alunos que começavam a escola
e podia esperar ir um pouco mais além. primária, conseguiam chegar ao
Havia apenas uma escola secundária secundário. A despeito da evasão da
oficial, mas cerca de 60% dos alunos grande maioria, o ensino primário não
que aí estudavam eram europeus. Não constituía em si um verdadeiro
existia qualquer tipo de educação processo de aprendizagem, na medida
superior. Até 1960, apenas 11 em que não era mais que uma etapa
guineenses haviam atingido uma preparatória para algo que viria depois.
licenciatura universitáriae todos eles Isto implicava uma dupla conseqüência
como “portugueses assimilados”, em negativa:
Portugal. Contudo, tais condições,
talvez, pudessem ter sido aceitáveis se a) a grande maioria que não chegava ao
houvesse quaisquer perspectivas de secundário voltava ao meio rural com
melhoria. Porém, não havia nenhuma. É um sentimento de inferioridade devido
verdade que o regime de Salazar, sob ao fracasso escolar e, sobretudo, não
pressão internacional, tentou produzir tendo aprendido nada de realmente útil
em 1961 algumas reformas estruturais, à sua integração na produção e na vida
mas foram apenas reformas no plano comunitária;
das idéias: na prática, a eqüidade

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b) a pequena minoria que chegava ao mais o conceito de que o conhecimento


secundário graças a um melhor e o saber só podiam ser transmitidos por
resultado intelectual medido por aqueles que tiveram uma educação
critérios individuais duvidosos dentro de quatro paredes, muito
constituía já um grupo de privilegiados. avançada e especializada: os
Considerando-se diferentes e professores. Este saber adquirido
superiores à massa da população, exclusivamente na escola tornou-se
colhiam os louros de um processo necessariamente livresco e sem
escolar ascendendo aos melhores embasamento na realidade. Nesse tipo
empregos, na capital. (OLIVEIRA, de ensino, não era mais a realidade, a
1977: 39-40). experiência de vida, porém, a
experiência transmitida que era
“A conseqüência deste valorizada. Essa concepção de ensino
mecanismo, que leva à não levava em conta a experiência dos
selecção de uma minoria e anciãos, que acabavam, eles próprios,
à exclusão da maioria, só
por considerar-se ignorantes.
pode conduzir à recriação
de uma estrutura de classe,
A separação entre estudo e trabalho,
ao ressurgimento de uma
nova elite, pois todo o imposto pela escola colonial,
sistema educativo é representou, durante a colonização, a
concebido em função desta pretensão da escola ideológica do
ínfima minoria que chega a colonialismo e o distanciamento do
atingir os “níveis trabalho produtivo durante todo o
superiores” da educação, período em que a formação se
em detrimento dos prolongava. Como os alunos não
interesses da maioria desenvolviam nenhuma tarefa durante o
esmagadora que é período em que estudavam, eram
eliminada” assegurados pelo conjunto da
(OLIVEIRA,1 977: 40). população, isto é, pelos camponeses,
cujos filhos eram afetados pelos
Segundo OLIVEIRA (1977:40), as
mecanismos de seleção em curso. De
escolas que funcionavam na Guiné,
fato, na medida em que o ensino se
segundo o modelo europeu, eram
distanciava da realidade, as crianças
instituições à parte, fechadas em si
saídas da pequena burguesia urbana
mesmas, longe da vida comunitária e
(com acesso aos livros, jornais, rádios,
social. Essas escolas situavam-se nos
discotecas e cinema) já estavam
centros urbanos. Os alunos que ali
munidas de uma vantagem considerável
estudavam se distanciavam cada vez
em relação às crianças oriundas do meio
mais da massa camponesa, que por sua
rural, muito menos atingido pela mídia
vez só fazia trabalhar. O sucesso
e pelas manifestações culturais formais.
individual nos estudos representava
(OLIVEIRA, 1977:40-41)
para o jovem o distanciamento
progressivo da sua realidade de onde ele Esse sistema de ensino herdado do
era originário a comunidade rural e a colonialismo conduzia à formação de
sua integração gradual em um universo uma pequena elite, não só com uma
antagônico, o mundo urbano, em que mentalidade individualista, como
trabalho intelectual e manual não se também distante da realidade do país
misturavam. onde a maioria da população era
camponesa. É nesse sentido que, nos
Portanto, a escola separada da vida e da
primeiros anos da independência, o
atividade produtiva reforçava ainda
governo da Guiné-Bissau iniciou a

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transformação do sistema educacional professor era avisado que


herdado do colonialismo, tinha de abrir uma escola
implementando um outro que em Morés, no sul do país,
coadunasse com a realidade do país. por exemplo, ou em
Não se tratava de dar uma educação Cachungo, no norte. Ele
imediatamente carregava a
inferior à anterior, mas que atendesse
sua mochila, chegava à
às necessidades da conquista almejada, região, matriculava os
na medida em que seu objetivo era o de alunos e deslocava uma
desenvolver os conhecimentos, as missão para as fronteiras a
qualificações e valores que permitissem fim de ir buscar os livros e
ao aluno inserir-se na sua comunidade e outros materiais escolares.
contribuir para a sua permanente Dessa missão faziam parte
melhoria. crianças e adultos. Eram
construídas as escolas em
EDUCAÇÃO NAS ZONAS barracas, as carteiras eram
LIBERTADAS 1963-1973 de tara ou palmeira. Assim
ficavam prontas as escolas
A base para a compreensão da luta de sem problemas. O
libertação nacional da Guiné e Cabo professor passava a comer
juntamente com os
Verde, desencadeada pelo Partido
combatentes e fazia o seu
Africano para a Independência da Guiné trabalho com toda a
e Cabo Vede (PAIGC) foi dedicação” (PEREIRA,
magnificamente sintetizada pelo 1977: 104-105).
fundador do PAIGC, Amílcar Cabral ao
afirmar: " a luta de libertação é, acima Era o que se poderia chamar de uma
de tudo, um acto de cultura" educação militante, uma educação que
(PEREIRA, 1977: 103). fazia parte integrante do combate
libertador. Ao criar a escola autônoma
Só um povo que preserva a sua cultura é nas zonas libertadas, o PAIGC desferiu
capaz de se mobilizar para a luta e uma forte foiçada no colonialismo
esta, por sua vez, torna-se um fator de português, estabelecendo um ensino
cultura à medida em que o dinamismo alternativo que se opunha ao do invasor.
social se desencadeia. É neste contexto
que se deve situar o fato de o PAIGC ter O movimento de libertação, tendo sido
dado a melhor atenção às tarefas a resposta à política do colonialismo
educacionais logo que começaram a ser português ao projeto domesticador, deu
libertadas as primeiras regiões da florescimento a uma nova realidade
Guiné-Bissau. Nesta altura, a educação educativa. Desde o início da luta, as
estava estreitamente integrada em todas crianças reuniam-se em torno de um
as demais atividades e era sentida como representante do Partido para
um aspecto da luta global, de acordo aprenderem como fugir dos aviões
com o depoimento de um dirigente: portugueses. Nas zonas libertadas do
país, uma “escola” nova florescia, onde
“Nos momentos da luta, um as primeiras lições eram aprender a
professor que conseguisse
reconhecer o barulho dos aviões e fugir
fazer uma escola ficava
muito contente porque a a tempo dos bombardeios mortíferos do
escola era um aspecto da inimigo. As primeiras lições consistiam
luta. O professor era um em reconhecimento da presença do
combatente como qualquer agressor e demonstravam que a maioria
outro combatente das
forças armadas. Dantes um

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dos integrantes do movimento era confiantes. Foi promulgada uma


iletrada. diretiva geral para criar escolas e
difundir a educação em todas as regiões
Um povo quase completamente libertadas. As citações a seguir são de
analfabeto conseguiu transformar-se em Amílcar Cabral e constam no livro de
uma organização política e militar bem Davidson.
integrada, apesar de existirem diferentes
etnias. Este povo conseguiu ir "Escolham jovens entre 14
melhorando, com regularidade, suas e os 20 anos, de entre os
possibilidades de êxito que pareciam que completaram pelo
um sonho. Aprendeu a dotar-se de uma menos a 4a.classe, para os
disciplina auto-controlada, de serviços mandar prosseguir a sua
educação. Oponham-se
sociais autoguarnecidos, com meios de
sem violência, a todos os
sobreviver econômicos auto-regulados. costumes preconceituosos,
De uma forma ou de outra, foi a todos os aspectos
superando as suas dificuldades de meios negativos das crenças e
estruturais totalmente limitados, mas tradições do nosso povo.
minimamente suficientes e que não Obriguem todos os
paravam de crescer. membros responsáveis e
dedicados do nosso Partido
O que vale destacar neste momento é a trabalhar diariamente no
que a revolta estava inteiramente ligada, aperfeiçoamento da sua
desde seu pontapé inicial, à obrigação formação cultural,
de construir paulatinamente essas novas conforme a diretiva do
Partido.
estruturas socioeconômicas. Sem esta
aparente aceitação da obrigação de Eduquemo-nos, eduquemos
construir a revolução no decorrer da outras pessoas, eduquemos
luta, não se poderiam ter encontrado os a população em geral, para
meios para transformar um movimento combater o medo e a
desse porte pequeníssimo em um ignorância, para eliminar
movimento de massas e para garantir, a pouco e pouco a sujeição
desta forma, que a revolta viria a à natureza e às forças
significar algo de maior e de muitíssimo naturais que a nossa
mais valioso que a mera substituição de economia ainda não
dirigentes portugueses por dirigentes conseguiu controlar.Lute-
se sem recorrer à violência
guineenses.
inútil, contra todos os
aspectos negativos,
As circunstâncias apresentavam prejudiciais à humanidade,
dificuldades quase insuperáveis, pois que ainda impregnam
uma população na sua maior parte muitas das crenças e
iletrada não dispunha de reservas de tradições do nosso povo.
quadros educados. Porém, jamais lhes Convençamos a pouco e
passou pela cabeça pôr em dúvida que pouco, muito especialmente
era essa a tarefa prioritária que havia de os militantes do nosso
ser levada a cabo; de início, treinando Partido, de que
os pioneiros da melhor forma que era acabaremos por dominar o
possível em Conakry, República da medo da natureza, e de que
o homem é mais forte das
Guiné ou em outros lugares, depois,
forças da natureza.
pouco a pouco, as escolas rurais foram Exija-se dos membros do
sendo abertas nas zonas libertadas. A Partido que se dediquem
prática e a experiência tornaram-se mais

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seriamente ao estudo, que conjunto de forma a encontrar para eles


se interessem pelas coisas as melhores soluções; queria dizer
e problemas da nossa luta tomar decisões em conjunto; isto
quotidianas[...] significava aproveitar a experiência e a
Aprendamos da vida, inteligência de cada membro do grupo
aprendamos dos outros,
e, assim, de todos os membros, de uma
aprendamos dos livros,
aprendamos da experiência forma a melhor dirigir, instruir e
dos outros. Nunca paremos comandar. Tudo isto contava nos
de aprender” processos utilizados pelo PAIGC na
(DAVIDSON,1975: 153- dura tarefa de construir o Partido
155). durante a luta (DAVIDSON,1975:157).

Nestas diretivas, a ênfase era nos níveis O sistema educativo implementado pelo
da crítica e autocrítica, controle PAIGC nas zonas libertadas procurava
coletivo, centralismo democrático, retomar o que havia de relevância na
democracia revolucionária. Mas o que é experiência da sociedade tradicional
que tudo isso significa para um leitor guineense. A informalidade educativa e
desavisado? sua espontaneidade tradicional eram
revalorizadas, assim como o recurso à
Eis a resposta: experiência dos anciãos. Também
procurava-se, principalmente, aprender
“Em todos os aspectos da na e pela prática. Considerando a
nossa vida partidária, grande dificuldade com que se deparava
devemos praticar uma face aos recursos materiais, tentava-se,
democracia revolucionária.
à medida do possível, associar a
Todo o membro
responsável deve ter a
aprendizagem à produção e nas tarefas
coragem de assumir as das comunidades. Sobretudo nos
suas responsabilidades, internatos organizados pelo Partido, o
exigindo dos outros o estudo estava ligado ao trabalho
devido respeito pelo seu produtivo e os alunos participavam na
trabalho e respeitando gestão da escola e de sua preservação
como deve o trabalho dos material. Com essas experiências
outros. Não esconder nada práticas de integrar a educação ao
às massas do nosso povo. trabalho e à participação política,
Não dizer mentiras. tentava-se desenvolver nos alunos uma
Denunciar as mentiras nova mentalidade, isenta de
onde quer que estas sejam
preconceitos e dos aspectos
ditas. Não mascarar as
dificuldades, os erros, os considerados negativos pelos
fracassos. Não apregoar portugueses na sociedade tradicional.
vitórias
fáceis...”(DAVIDSON,19 Esta forma de educação em
75: 156). florescimento era mais aberta e mais
dinâmica em relação ao mundo exterior.
O controle coletivo era entendido nessas A educação não tinha mais como
diretivas como controle exercido por objetivo produzir uma situação de
um grupo de pessoas constituído como equilíbrio e de estagnação, mas
tal, e não por uma ou algumas pessoas procurava favorecer o processo geral da
desse grupo. Controlar coletivamente, luta de libertação em que se inseria. De
em um dado grupo, queria dizer, nesse fato, para fazer avançar a luta e lançar
contexto, estudar problemas em as bases de um Estado independente,
era preciso que os jovens

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ultrapassassem, paulatinamente, os nas aldeias, nas florestas e


particularismos de cada etnia e os no espírito das gerações
limites de cada região. A educação vítimas da dominação, a
contribuía grandemente para a cultura sobreviveu a todas
emergência de uma cultura as tempestades, para
retomar graças à luta de
verdadeiramente nacional que extraía as
libertação, toda a sua
suas raízes dos aspectos positivos das faculdade de
diferentes culturas tradicionais, mas que desenvolvimento” .
era possível incorporar, adaptando-as (OLIVEIRA,1977:33).
dentro das necessidades do país, às
aquisições da cultura científico- Para o fundador do PAIGC, as massas
universal. populares constituíam, portanto, a
“única entidade verdadeiramente capaz
Um sistema educativo implementado de preservar e criar a culturade fazer
pela luta de libertação e, ao mesmo histórias”. Portanto, esta passagem de
tempo, propiciando o desenvolvimento resistência cultural a novas formas de
desta luta, expandia-se nas zonas luta (política, econômica, armada) só
libertadas do país. Todavia, continuava pode ser compreendida se consideramos
a coexistir, em abril de 1974, com o o papel desempenhado pela pequena
sistema português, implementado nos burguesia. (OLIVEIRA,1977:33).
centros urbanos ainda na época do
domínio do exército colonial. Esta pequena burguesia autóctone,
nascida com o desenvolvimento do
Amílcar Cabral sempre enfatizou o Estado colonial, formada na escola
papel da luta pela independência, portuguesa, desafricanizada, tentava a
explicando como o PAIGC nasceu de todo custo em um primeiro momento
uma confluência de duas esferas: a europeizar-se pela imitação do branco,
resistência cultural das massas procurando a aprovação e aceitação
populares guineenses e a recusa por deste mesmo branco. Porém, tal
parte da pequena burguesia urbana em aceitação nunca foi efetuada, pois o
desempenhar o papel de intermediário sistema colonial era por demais rígido,
que lhe era proposto pelos colonialistas o sentimento de superioridade racial do
portugueses. colonizador por demais profundo para
que fossem feitas concessões aos
O território sobre o qual cresceu o
“assimilados”. O resultado desta
movimento de libertação não foi para
rejeição era o aparecimento de homens
Cabral mais que uma cultura do povo
divididospeles negras, máscara
dominado. Para ele, as grandes massas
rurais, submetidas à dominação política brancaque, havendo deixado de ser
e à exploração econômica, encontravam africanos, não conseguiriam tornar-se
europeus.
na sua própria culturacompreendida
como modo de vida, maneira de Segundo Oliveira (1977:35), esta
produzir, valores e crençaso único situação de frustração constituía o
apoio que lhes permitissem preservar a drama sócio-cultural cotidiano da
sua identidade. pequena burguesia nativa, drama esse
que foi sempre vivido no plano
“Reprimida, perseguida,
humilhada, traída por um
individual e não coletivo.
certo número de categorias Progressivamente acumularam-se as
sociais comprometida com discriminações e as humilhações
o estrangeiro, refugiada impostas pelo colonizador. Alguns

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desses pequenos-burgueses influenciada por esta. Os


experimentaram uma necessidade de dirigentes do movimento de
fazer face a esta situação de dualidade e libertação, na sua maioria
de marginalidade, na procura de originários dos centros
redescobrir uma identidade para urbanos(pequena
burguesia e trabalhadores
reencontrar a sua dignidade, voltando-
assalariados), tal como as
se, então, para o seu povo. massas populares (cuja
Reaproximaram-se das massas maioria esmagadora era
camponesas tomando consciência de composta de camponeses),
todas as injustiças a que estavam melhoraram o seu nível
expostas as massas populares, assim cultural: maior
como da sua resistência e do seu conhecimento da realidade
espírito de rebeldia. do país, libertação dos
complexos e dos
A incessante busca de uma identidade e preconceitos de classe,
de uma dignidade novas se prolongava alargamento do universo
em atos concretos de identificação com em que eles se
desenvolviam, destruição
as aspirações das massas populares.
das barreiras étnicas,
Produziu-se, então, uma espécie de reforço da consciência
síntese entre o intelectual e as massas política, integração no país
populares, da qual nasceu o movimento e no mundo, etc
de libertação.
A luta exigia a mobilização
O eclodir da luta de libertação supunha, e a organização de uma
no entanto, duas condições: em maioria significativa da
primeiro lugar, contra a ação destrutiva população, unidade
da dominação imperialista, as massas política e moral das
populares teriam que conseguir diversas categorias sociais,
preservar a sua identidade, guardando a liquidação progressiva
dos resquícios da
intacto o sentimento de dignidade
mentalidade tribal e feudal,
individual e coletiva. Em segundo lugar, a recusa às regras e aos
a resistência latente ativada pela ação tabus sociais e religiosos
destes elementos saídos da pequena incompatíveis com o
burguesia teria que se inserir no povo, caráter racional e nacional
procurando mobilizá-lo e organizá-lo do movimento de
para a luta global contra o colonizador. libertação.

A resistência pela luta de libertação foi A dinâmica da luta exigia


assim ela própria um ato de cultura, um também a prática da
fator cultural, tendo em conta o seu democracia, da crítica e da
prosseguimento e exprimia no mais alto autocrítica, a
responsabilidade crescente
grau este longo processo de resistência
da população na gestão da
do povo contra a dominação colonial. sua vida, alfabetização, a
Mas na medida em que progredia o criação de escolas e de
movimento de libertação, explica assistência sanitária, a
Amílcar Cabral, uma interação se formação de quadros
desenvolvia entre a cultura e a luta. oriundos dos meios rurais
e operários, assim como
“A cultura, fundamento e tantas outras realizações
inspiração da luta, que implicassem uma
começava a ser verdadeira marcha forçada

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da sociedade na estrada do perspectivas individualistas dos que


progresso cultural” esperavam sempre as instruções
(OLIVEIRA,1977:35). oriundas de cima. Tendo em conta a
carência de recursos materiais do país,
À luz de todo este processo de essa política de mobilização do povo
dinamização da sociedade tradicional para que ele assumisse o máximo de
pelo movimento de libertação, Cabral responsabilidades na melhoria de sua
concluiu que a luta de libertação não foi vida do dia-a-dia era o único imperativo
apenas um fato cultural, ela foi também possível.
um fator de cultura. Vale sublinhar que
este texto de Cabral supracitado foi um A educação nas zonas libertadas obteve
projeto realizado. Ele exprimiu resultados importantes. Escolarizou
fielmente o que foi a experiência grande número de crianças a partir dos
histórica: na Guiné, o PAIGC e a luta de 10 anos (dadas as condições de guerra,
libertação que ele pôs em marcha, era esta a idade com que as crianças
foram os grandes formadores, os iniciavam a instrução primária).
educadores do povo guineense. Este Segundo Pereira, no ano letivo de
partido, saído deste encontro entre as 1971/1972, o PAIGC tinha nas zonas
massas populares com a sua identidade libertadas um total de 164 escolas, onde
cultural e os intelectuais na procura de 258 professores ensinavam a 14.531
uma identidade nova soube, no decurso alunos. Posteriormente, os melhores
da luta, transformar aqueles que alunos eram selecionados para
lutavam e esqueceram a cultura freqüentarem os internatos do Partido,
guineense, dando florescimento a uma instalados nos países limítrofes, no
dimensão nova - a consciência nacional. âmbito do Instituto da Amizade. Além
disso, o PAIGC, tendo em conta a
Sempre com intuito de compreender as exigência da reconstrução nacional e
linhas de força do projeto educacional não obstante as condições da luta
do PAIGC, era imprescindível ver em armada que obrigava a dedicar muitos
pormenor o que o movimento de jovens à preparação militar, cuidou,
libertação promoveu e sustentou no particularmente, da formação de
curso da luta. No plano dos valores, o quadros em nível médio e superior. Para
PAIGC tentou valorizar o que havia de isso, contou com o apoio de países
positivo na sociedade linhageira amigos de tal maneira que, durante os
guineense, combatendo os seus aspectos anos de luta, um número muito maior
negativosa situação de de guineenses atingiu os cursos
marginalização da mulher, o sentimento superiores em comparação com o
de impotência e/ou de paralisia face aos período de ocupação portuguesa.
fatores da natureza, a submissão à
autoridade freqüentemente opressiva
dos chefes étnicos. Foram, portanto,
questionados todos os preconceitos que
pudessem recobrir ou favorecer a
manutenção de relações de exploração e
de dominação entre as pessoas.

No plano da participação política, como


no da organização da produção, o
Partido favoreceu o desenvolvimento de
uma mentalidade cooperativa e
solidária. Assim, foram combatidas as

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QUADRO 3
Educação nas Zonas Libertadas: 1965 a 1973

Ano Escolas Professores Alunos

1965/1966 127 191 13.361

1966/1967 159 220 14.386

1967/1968 158 284 9.384

1968/1969 134 243 8.130

1969/1970 149 248 8.559

1970/1971 157 251 8.574

1971/1972 164 258 14.531

1972/1973 156 251 15.000

Fonte: Documento do Comissariado de Estado da Educação Nacional e cultura da


Guiné-Bissau, julho de 1976.

A diminuição de 6.256 alunos entre o quartéis), 36.898 alunos e 963


ano letivo de 1966/1967 e 1968/1969, professores.
se deve ao envio de candidatos para
uma formação técnica média no
estrangeiro e integração maciça de
alunos nas diversas atividades do
Partido: forças Armadas, marinha,
Telecomunicações, Organização
Política, Segurança, Milícia, Saúde,
Ensino, Produção etc. Também a
diminuição foi devido, de certo modo,
ao encerramento de 25 escolas que se
tornaram inviáveis devido aos
condicionamentos da guerra, conforme
os dados dos "Mapas de Síntese
Nacional".

Nas áreas ocupadas pelo colonialista


português e no ano letivo de 1971/1972,
as estatísticas globais para os graus de
ensino—primário, técnico, liceal e
normal—davam os seguintes números:
352 escolas (das quais 155 ligadas a

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QUADRO 4
Comparativo da Formação no Período Colonial entre Zonas Não Libertadas e
Libertadas, Segundo o Nível de Ensino

Período NÍVEL
Colonial

Superior Médio Profissionalizante e Formação de Quadros


Técnico de Especialização Políticos e Sindicais

Zonas Não
Libertadas
1471-1961 14 11 – –

Zonas
Libertadas
1963/1973 36 46 241 174

Fonte: PEREIRA, 1977: 107.

Em 10 anos, o PAIGC formou muito a educação da Guiné-Bissau e


mais quadros que o colonialismo em 5 constituem o objeto de estudo da
séculos. Em 10 anos, de 1963 a 1973, perspectiva histórica de organização
foram formados os seguintes quadros do educacional no período que vai de 1975
PAIGC: 36 com curso superior, 46 com a 1997.
curso técnico médio, 241 com cursos
profissionalizantes e de especialização e
174 quadros políticos e sindicais. Em
contrapartida, desde 1471 até 1961,
apenas se formaram 14 guineenses com
curso superior e 11 ao nível do ensino
técnico (PEREIRA,1977: 106-107).

Estas breves informações mostra-nos o


valor da experiência do Partido em
termos educacionais durante a luta de
libertação nacional, mas sobretudo,
exprimem a necessidade de aprofundar
esse passado logo que o país estivesse
independente do jugo colonial. As
lições da prática, então, desenvolvida
nas zonas Libertadas, são alicerces para

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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processo de ocupação colonial-
transformações sociais nas colônias-
os movimentos de libertação.
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DAVIDSON, Basil. A libertação da


Guiné : aspectos de uma Revolução
Africana. Lisboa : Sá da Costa,
1975.

FERREIRA, Eduardo de Sousa. O fim


de uma era : o colonialismo
português em África. Lisboa : Sá
da Costa, 1977.

MONTEIRO, João José Silva. Exame


longitudinal do comportamento dos
indicadores do sistema educativo
durante o Programa de Ajustamento
Estrutural. In: OS EFEITOS sócio-
econômicos do Programa de
Ajustamento Estrutural na Guiné-
Bissau. Brasília, DF : INEP, 1993.

OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. Guiné-


Bissau : reinventara educação.
Lisboa : Sá da Costa, 1977.

PEREIRA, Luísa Teótonio. Guiné-


Bissau : 3 anos de Independência.
Lisboa : Cidac, 1977.

TOURÉ, Ahmed Sékou. África : ensino


e revolução. Lisboa : Via Editora
LDA, 1977.
Lourenço Ocuni Cá
Doutorando de Pós-Graduação em
Educação da FE/UNICAMP
Estagiário do PED (Programa de
Estágio Docente)
e-mail:
ocuni@iel.unicamp.br
nanque@hotmail.com

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