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ARTIGO ARTICLE
Cecília Donnangelo: pioneira na construção teórica
de um pensamento social em saúde

Cecília Donnangelo: a pioneer in the theoretical construction


of social thinking in health

Everardo Duarte Nunes 1

Abstract The present article analyzes aspects of Resumo O presente artigo analisa aspectos do
the intellectual trajectory of Maria Cecília Ferro percurso intelectual de Maria Cecília Ferro Don-
Donnangelo and her principal works. The text nangelo e seus principais trabalhos. Destaca-se
emphasizes the innovating and pioneer role her no texto o papel inovador e pioneiro da sua obra
work played in the first moments of social scienc- nos momentos iniciais das ciências sociais no
es in the field of health in the mid sixties, occur- campo da saúde, na segunda metade dos anos 1960,
ring just together with changes in medical educa- contextualizados no momento em que ocorriam
tion and medical practice in Brazil. mudanças no ensino médico e na prática da me-
Key words Social sciences and health, Cecília dicina no Brasil.
Donnangelo, Relations medicine/health/society Palavras-chave Ciências sociais e saúde, Cecília
Donnangelo, Relações medicina/saúde/sociedade

1
Departamento de Medicina
Preventiva e Social,
Faculdade de Ciências
Médicas, Unicamp. Cidade
Universitária Zeferino Vaz,
Distrito Barão Geraldo.
13083-970 Campinas SP.
evernunes@uol.com.br
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Nunes, E. D.

Creio não andar longe da objetividade ao ingressou, em 1969, no Departamento de Medi-


afirmar que, a partir dos trabalhos de Maria cina Preventiva/FM/USP, onde permaneceu até a
Cecília Ferro Donnangelo, se constituíram sua morte em 1983, vítima de acidente rodoviá-
várias “escolas” na saúde coletiva brasileira, que rio. Defendeu o doutorado em 1973 e a livre-
se foram diferenciando, amadurecendo, docência em 1976.
desdobrando e, eventualmente, desaparecendo. Voltando à segunda metade dos anos 1960,
Mendes-Gonçalves1 lembramos que esse foi um período de intensa
movimentação na área médica, motivada pela
necessidade de ampliar os domínios do ensino
Introdução exclusivamente calcado no modelo biomédico e
trazendo para o seu interior as contribuições das
O presente trabalho traça aspectos da trajetória ciências sociais. Importante ressaltar que a inclu-
e dos trabalhos de uma das pioneiras na cons- são de Cecília na graduação ocorreu quando da
trução de um pensamento social em saúde – criação do Curso de Medicina Experimental, na
Maria Cecília Ferro Donnangelo. Além de dados Faculdade de Medicina da Universidade de São
biobliográficos, são analisados dois livros de sua Paulo, paralelo ao curso convencional e que foi
autoria que constituem, junto com alguns ou- assim caracterizado por um dos seus idealizado-
tros trabalhos publicados na metade dos anos res, o Professor Isaias Raw2: Acabar com a sepa-
1970, obras fundamentais para uma análise do ração das disciplinas e tentar integrar ciência bá-
campo das ciências sociais em saúde e da saúde sica, clínica e medicina social desde o primeiro dia
coletiva – Medicina e sociedade e Saúde e socieda- do curso. As matérias do curso médico são total-
de. São apresentados alguns aspectos que procu- mente artificiais, porque cresceram além dos limi-
ram contextualizar a sua obra e atuação no cam- tes delas. Também tinha um segundo, porém, na-
po da saúde coletiva. quele tempo, 40% do curso médico era de anato-
mia descritiva, do mesmo jeito que se ensinava no
século 18. Hoje isso mudou, naturalmente. Nossa
Formação e carreira acadêmica idéia era misturar a medicina logo no primeiro
ano com as outras coisas de ciência básica. Nós, os
Inicio este artigo com uma data. Foi em 1964 que professores que davam o curso, nos reuníamos uma
Cecília Donnangelo (1940-1983) realizou a sua vez por semana para decidir o que ensinar. “Hoje
primeira atividade na área médica, quando acei- eu tenho que ensinar citologia do fígado, você fala
tou o convite para proferir palestras na Cadeira sobre mitocôndria”. Funcionou tão bem que, no
de Medicina Legal e Social da Faculdade de Medi- primeiro ano, quando abriu, os 80 melhores alu-
cina da USP, que manifestou interesse pela im- nos escolheram Experimental. Mas, assim que eu
plantação de um programa de ciências sociais saí, durou mais um ano e a faculdade acabou com
para o curso de graduação em Medicina. Assim, o curso (o curso foi extinto em 1976).
a partir da segunda metade dos anos 1960, ini- Numa época de efervescentes reformas cur-
cia-se uma carreira que em menos de uma déca- riculares, outras faculdades, como a Faculdade
da iria produzir trabalhos que se tornariam clás- de Ciências Médicas da Unicamp, a Faculdade de
sicos das ciências sociais em saúde. Um rápido Medicina da Universidade Federal de Minas Ge-
corte nesta narrativa é necessário para traçar- rais e a Faculdade de Ciências Médicas da Santa
mos o perfil biográfico desta autora. Casa de São Paulo, dentre outras, procuraram
Maria Cecília Ferro Donnangelo nasceu em estruturar os seus cursos dando espaços a disci-
Araraquara, SP, em 19 de agosto de 1940, onde plinas que até então não faziam parte de seus
cursou o primário, ginasial e normal, de 1948 a planos de estudos como as Ciências Sociais, Epi-
1958, no Colégio Progresso, e o científico, de 1956 demiologia, História da Medicina, Administra-
a 1858, no Colégio Duque de Caxias; prestou o ção e Planejamento em Saúde. Essa incorpora-
vestibular na Faculdade de Filosofia, Ciências e ção dos conhecimentos sociomédicos aos bio-
Letras de Araraquara, em 1959, para a área de médicos encontraria, nos anos 1970, uma for-
Pedagogia, que concluiu em 1962. Exerceu o ma- mação de expressão mais sistematizada e elabo-
gistério secundário (Psicologia e Sociologia) em rada do ponto de vista das investigações nos cur-
Escola Normal; iniciou as atividades na FM/USP sos de pós-graduação, mas, sem dúvida, a gra-
em 1964, interrompeu, durante um ano, em 1965, duação em medicina e depois na enfermagem
quando trabalhou em Sociologia Rural (Escola foram as portas de entrada das ciências sociais.
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/USP) e
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A produção científica como segmento do sistema social global e urbano
da metade da década de 1970 industrial que se configurava no Brasil a partir da
segunda metade do século XX e, no caso específico
Praticamente, é a partir de 1975 que começam a de São Paulo, procurou identificar as relações esta-
aparecer alguns trabalhos que se tornariam clás- belecidas entre a profissão e a sociedade em questão.
sicos da saúde coletiva: Sérgio Arouca3 e seu es- Assim, circunscreveu a pesquisa à região da Gran-
tudo sobre o dilema preventivista, Cecília e as de São Paulo, abrangendo 905 profissionais da
relações medicina/saúde/sociedade4,5, Madel Luz6 área em atividade, utilizando-se dos cadastros do
sobre as instituições médicas no Brasil, Roberto Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Machado e colaboradores7 sobre a emergência (IBGE) e alargando seu campo de amostragem
da medicina social no Brasil, e muitos outros. para 5.381 médicos diplomados até 1968. Desse
A produção científica de Cecília, apresentada total, foi selecionada uma amostra de 1.166 mé-
no Anexo 1, estende-se por dezesseis anos e o dicos, correspondente a 20% da população. A
destaque é dado pelas duas teses, a de doutorado pesquisa de campo foi realizada no ano de 1971,
defendida em 1973 e publicada em 1975 e a de sendo que não foram entrevistados 261 casos, e
livre-docência, publicada em 1976. Em ambas, dentre os motivos, citam-se: mudanças de domi-
Cecília propõe, de um modo geral, dois cami- cílio para fora da área, falecimentos, aposentado-
nhos: o estudo das práticas médicas, na primei- rias, abandono da profissão, domicílios não lo-
ra, e a reflexão ampliada sobre a saúde, na se- calizados, recusas e viagem prolongada ao exteri-
gunda. Nas duas teses, a vertente sociológica que or. Assim, foram entrevistados 905 profissionais.
as informam teve a forte influência de Luiz Perei- Como Cecília assinala na apresentação do li-
ra (1933-1985), sociólogo da USP, seu orienta- vro Medicina e sociedade, o estudo incide, sobre-
dor do doutorado e que escreveria uma longa tudo, em aspectos diretamente relevantes às moda-
análise sobre o seu trabalho de livre-docência, lidades do trabalho médico, entendidas aqui como
Saúde e sociedade5. as formas pelas quais o médico, enquanto traba-
É interessante fazermos uma breve digressão lhador especializado, participa do mercado e se re-
para situarmos algumas características dos tra- laciona com o conjunto de meios de produção de
balhos de Luiz Pereira, dado o seu papel como serviços de saúde4. Daí decorre maior ênfase na
intelectual que introduziu Cecília no campo das heterogeneidade da categoria ocupacional, em
ciências sociais desde o seu ingresso no curso de termos dos tipos de oportunidade de trabalho a
Filosofia, Ciências e Letras, em Araraquara. que têm acesso os profissionais, do que em sua
Segundo Celso Beisieguel, citado por Gonza- homogeneidade, resultante da sujeição a proces-
lez8, a obra de Luiz Pereira pode ser organizada a sos comuns de formação nos aspectos técnico-
partir de sua recorrência a três temas: (1) dimen- científicos e éticos que compõem o núcleo da
são educacional dos processos sociais; (2) pro- medicina como profissão. E foi nessa direção que
cesso de desenvolvimento; (3) diversas faces do se investigou a organização do setor de produção
modo de produção capitalista no Brasil. Clara- de serviços de saúde em suas dimensões legal, histó-
mente, podemos perceber nos textos de Cecília rica e sociológica, permitindo uma interpretação
essa perspectiva analítica do seu futuro orienta- de certos aspectos dessa organização como decor-
dor, que no seu caso será voltada para a educa- rências das dinâmicas das relações de classe na área
ção e para o estudo da profissão médica como urbano-industrial da sociedade brasileira4.
processos que se interligavam às transformações Composto de três capítulos, o livro inicia-se
da sociedade brasileira. com uma análise das relações entre Estado e as-
Como analisam Mota, Silva e Schraiber9, em sistência médica; o segundo capítulo dedica-se
Medicina e sociedade4, Cecília ampliou a pesqui- ao estudo do médico no mercado de trabalho e o
sa que havia realizado anteriormente, em 1968, terceiro capítulo versa sobre a profissão médica
junto ao Hospital das Clínicas da FMUSP, quan- e mercado de trabalho – as ideologias ocupacio-
do entrevistou 150 médicos selecionados e, com nais. Como afirma Cecília, O estudo das relações
dados de dois terços desse total, procurou entender entre estado e assistência médica no Brasil pode-se
a caracterização profissional e social da categoria processar, em um primeiro momento, através do
em sua estrutura hospitalar e as modificações in- estudo do significado histórico da previdência so-
ternas à profissão em função do binômio medicina cial4, tema que é desenvolvido pela autora em
liberal-medicina socializada. toda a primeira parte do livro.
Como decorrência desta primeira pesquisa, Muitos são os destaques que podem ser da-
irá realizar o seu estudo sobre a profissão médica dos ao livro de Cecília; a abordagem teórica, a
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Nunes, E. D.

pesquisa empírica, a forma de narrar e a visão mente vinculadas aos contextos sociais, econô-
das possibilidades que se abriam para o campo micos e políticos. Como apontado pelos comen-
das ciências sociais na busca de compreensão da taristas de sua obra, Em seu doutorado, conseguiu
profissão e do processo de profissionalização detectar, rompendo com a ideologia liberalizante
médica. Cecília realizou esta pesquisa e escreveu do médico, uma tendência de crescente assalaria-
a sua tese no momento em que os estudos sobre mento da categoria. Sua análise tem como ponto de
profissões entravam em uma nova fase. Após a partida a atuação do Estado e do avanço do capita-
fase em que as profissões são analisadas a partir lismo no Brasil, quando se constituíram as empre-
dos atributos, na linha de Greenwood, Wilbert sas médicas e o Estado passou a assegurar-lhes mer-
Moore e Harold L. Wilensky, aparecem outros cado. Na livre-docência, realizou um trabalho es-
autores como Larson e Paul Starr, que repensam sencialmente teórico, cuja preocupação maior era
o tema sob outro olhar, usando outras categori- a delimitação do objeto de estudo e de análise do que
as como controle, relações com o mercado, tipo se poderia chamar de Sociologia da Saúde9.
de clientela, afinidade com a ideologia dominan- Voltando ao livro, no capítulo que trata d’O
te. Dentre outros críticos dos estudos sobre pro- médico no mercado de trabalho, Cecília aborda a
fissões e que lançam uma nova linha de pesqui- questão da produção de serviços de saúde e a
sas, destaca-se Elliot Freidson (1923-2005) e seu situação do médico, enquanto trabalhador indi-
trabalho seminal de 1970 – Profession of medici- retamente produtivo. Esta idéia, Cecília, confor-
ne10, que foi bastante crítico da literatura socio- me nota de pé de página4, associa ao trabalho de
lógica dos anos 1950 e 1960. Ponte11 lembra que Luiz Pereira quando este assinala que os ramos do
Freidson qualificou a sua obra como uma mo- trabalho produtivo têm necessidade de alguns ra-
desta rebelião contra o modo como a sociologia dos mos do trabalho não produtivo. Estes trabalhos em
Estados Unidos, nos anos 1950 e 1960, analisava a si não produtivos, porque necessários aos traba-
natureza e a posição das principais profissões na lhos em si produtivos, determinam-se, então, no
sociedade industrial. Ponte ainda acrescenta que plano da divisão social do trabalho, como traba-
Comentando a produção acadêmica daquele perí- lhos indiretamente produtivos [...] entretanto, o
odo, ele [Freidson] observou que grande parte dela trabalho em geral continua a determinar-se pela
carecia de qualquer tentativa de analisar as profis- acumulação do capital.
sões enquanto ocupações organizadas, dotadas de Outro ponto refere-se às relações entre a
um estatuto político e econômico especial que lhes medicina e a produção econômica, numa refe-
permitisse delinear atividades profissionais no tra- rência direta do trabalho de Claude Polack, La
balho11. Nos anos 1970, Freidson cunhou a ex- médicine du capital, quando caracteriza a aten-
pressão professional dominance, ao se referir “à ção médica como “uma mercadoria suscetível de
relação da profissão médica com outras ocupa- circular como um autêntico valor de troca”, ou
ções na divisão do trabalho no cuidado da saú- seja, “é um produto que não desaparece ao ser
de”, no sentido dela se constituir no protótipo da consumido”, mas “eleva o nível da força de traba-
mais poderosa e monopolizadora das profissões, lho ou contribui para sua manutenção, no qua-
o que concorria para o seu papel de medicaliza- dro de uma reprodução”. Assim, a saúde não
dora dos problemas das mais diversas nature- pode ser encarada “como um setor terciário qual-
zas10. Porém, a partir da segunda metade dos quer, um processo de comercialização, de publi-
anos 1970, assiste-se a uma outra tendência: as cidade, um serviço”4.
profissões estão em declínio, estão perdendo suas Neste ponto, Cecília estabelece de forma cla-
posições privilegiadas e de poder. Fala-se em des- ra a sua proposta de estudo, que toma como
profissionalização, de um lado, e, de outro, de fundamento que a integração do médico no mer-
proletarização das profissões, ou seja, os profis- cado de trabalho é a perda da sua autonomia, tra-
sionais estariam se tornando empregados assa- dicionalmente representada pelo controle indivi-
lariados, burocratizados e, com isso, perdendo a dual sobre os principais elementos da produção nesse
sua autonomia e independência econômica e cada ramo: a clientela, os instrumentos de trabalho, o
vez mais sujeitos ao controle administrativo. preço do trabalho4. Enfatiza a autora, dizendo que
Sem dúvida, o trabalho de Cecília, como o de o processo de perda da autonomia, que equivale
Freidson, inscreve-se nesse quadro de rupturas ao de assalariamento do produtor direto, é a
com o funcionalismo parsoniano, que, até então, questão central a ser desenvolvida neste momen-
tinha marcado os estudos sobre as profissões, to da tese. Em realidade, ao assentar a sua análise
retomando-as como categorias que se definem nas transformações sofridas pela prática médi-
no espaço organizacional do trabalho, estreita- ca, a autora não somente destaca os fatores es-
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truturais advindos das relações capitalistas na gração docente assistencial: Programa de Medi-
organização do trabalho – passagem do padrão cina Comunitária de Londrina-Paraná. Patroci-
artesanal para as novas modalidades – mas sali- nado pela Universidade de Londrina, em convê-
enta o papel dos avanços técnicos na estrutura- nio com a Prefeitura Municipal - 1969; Projeto de
ção das especialidades; nesse sentido, as dimen- Saúde Comunitária da Unicamp (Campinas-SP),
sões técnicas e sociais do trabalho irão gerar no- conhecido como Projeto Paulínia, financiado pela
vos arranjos organizacionais. Nesses arranjos, a Fundação Kellogs, e que teve início entre 1971 e
medicina liberal perde terreno e na progressiva 1972; Programa de Saúde Comunitária - Projeto
reorganização do processo de produção, num Vitória - realizado pela Universidade Federal de
quadro de acentuada burocratização, e mesmo Pernambuco em Vitória de Santo Antão, PE; Pro-
conservando alguma autonomia, é nítida a tran- jeto de Atuação Médica Simplificada, para uma
sição para o assalariamento. Como diz Cecília, área periurbana do estado do Rio de Janeiro,
O sentido dessa transição só se define inteiramente patrocinado pelo Instituto de Medicina Social da
por referência a duas modalidades alternativas de UERJ, em Nova Iguaçu-RJ; Projeto de Área Pro-
organização daqueles fatores, geradas na dinâmica gramática para Serviços Integrados de Saúde -
das relações sociais na fase urbano-industrial ca- USP/DMP e Secretaria de Saúde de São Paulo12.
pitalista do desenvolvimento da sociedade brasi- Ao escrever sua tese de livre-docência, José
leira: a produção estatal de serviços e a produção Carlos Pereira13 iria dedicar especial atenção a este
privada tendo como núcleo a empresa, e não mais texto de Cecília. Comenta que, ao tomar a medi-
o produtor individual4. cina comunitária como prática alternativa, Cecí-
Após um ano da publicação do livro Medici- lia acentua a ligação desta prática aos processos
na e sociedade, Cecília publicou Saúde e socieda- de manutenção da estrutura social na qual está
de5, originalmente a tese denominada Medicina e inserida, constituindo-se como um projeto polí-
estrutura social: o campo da emergência da medi- tico. Nesse sentido, seria um projeto de interven-
cina comunitária. Nesse trabalho, procurou de- ção junto às populações carentes, manipuladora
senvolver um quadro teórico mais preciso sobre das contradições sociais em uma sociedade de
a medicina comunitária, que deveria ser entendi- classes, e que teria na prática médica uma forma
da como: projeto de organização da prática mé- de participação na reprodução dessas estruturas
dica, para uma modalidade particular de articu- e controle da força de trabalho.
lação entre as diferentes agências e instituições Como escreve a própria autora, o estudo as-
encarregadas das práticas de saúde, bem como sume mais propriamente a forma de um ensaio, no
com os grupos sociais aos quais as práticas de sentido de que se optou pela elaboração de uma
saúde são destinadas. O livro compõe-se das se- gama variada de informações passíveis de ampliar
guintes partes: Medicina e estrutura social, com- a compreensão do campo da prática médica, em
posta dos capítulos: Medicina: prática técnica- lugar do desenvolvimento de uma tese delimitada
prática social, Medicina na sociedade de classes, com vistas à elucidação, em profundidade, de um
subdividido em A medicalização da sociedade e objeto de análise5. De um modo geral, a análise
Raízes da medicalização; Medicina Comunitária, desdobra-se em dois momentos: a medicina
com o capítulo Medicina comunitária: política como prática social articulada a outras práticas,
médica – política social, subdividido em Medici- em uma específica estrutura social e a constitui-
na comunitária e reforma médica e Um novo ção do campo da medicina comunitária como
objeto e uma nova estratégia. Completando o prática assumida por determinadas sociedades,
livro, os comentários feitos por Luiz Pereira, com pela produção de serviços de saúde em suas rela-
o título de Capitalismo e saúde. ções com a política do bem-estar social.
À época em que escreveu seu livro, a medicina Calcado no materialismo histórico, que no
comunitária era prática adotada por diversas comentário de Luiz Pereira14 está “mais refinad o
escolas médicas e programas foram organiza- ou mais amadurecido nesta tese do que quando
dos, contando com financiamentos inclusive in- utilizado na produção anterior”, problematiza a
ternacionais, o que demonstra a oportunidade saúde relacionando-a às formações sociais capi-
teórica do trabalho de Cecília, embora não sejam talistas, sendo que em Medicina e sociedade a ên-
analisadas as experiências em desenvolvimento. fase estaria no modo de produção capitalista. Sem
A primeira experiência foi realizada no Vale do dúvida, este texto lança questões que seriam nu-
Jequitinhonha, em Minas Gerais, ponto de parti- cleares para os futuros estudos da medicina/saú-
da do Projeto Montes Claros no mesmo estado; de como prática social e sobre o processo de me-
destacam-se ainda os seguintes projetos de inte- dicalização da sociedade. Certamente, a força do
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Nunes, E. D.

trabalho reside no fato de, diferente do estudo cina Preventiva da FM/USP. Transcrevo os dados
anterior, não ser um trabalho empírico, mas de na íntegra que aparecem no trabalho já citado de
construção teórica. Destaca-se que a apreensão Mota, Silva e Schraiber e que mostram a assesso-
da relação medicina/produção capitalista é reali- ria e co-orientação prestados entre os anos de 1970
zada quando o estudo estabelece a conexão entre e início de 1980 às seguintes pessoas: Chester Luiz
prática médica e força de trabalho, que, segundo Galvão César (mestrado), Moisés Goldbaum
Luiz Pereira14 é estratégico para o “estudo das fun- (mestrado e doutorado), Joaquim Alberto Car-
ções infra-estruturais”, como também para o “es- doso de Mello (doutorado), Julio Litvoc (mes-
tudo de suas funções supra-estruturais”. trado), Eleutério Rodrigues Neto (mestrado), Ri-
Interessante recuperarmos a análise de Bur- cardo Bruno Mendes Gonçalves (mestrado), Luci
landy e Bodstein15 que, comentando a produção Moreira da Silva (doutorado), Solange L’Abate
científica sobre políticas de saúde, dizem que em (mestrado), Maria Mercês Santos (mestrado) e
textos produzidos na década de 1970, Embora a Maria Bernadete de Paula Eduardo (mestrado); e
questão da determinação econômica em última ins- orientação a Regina Maria Ferreira de Almeida
tância seja uma perspectiva comum nestas obras, (mestrado), Luiza Sterman Heimann (mestrado),
podemos identificar autores, como Donnangelo e Emerson Elias Merhy (mestrado), Ana Cecília
Luz que reforçam a prática política como potenci- Lins Silveira Sucupira (mestrado), Lilia Blima
almente transformadora das relações de produção. Schraiber (mestrado), Luiz Cordoni (mestrado),
Apenas afirmar que as políticas sociais têm o efeito Hesio de Albuquerque Cordeiro (doutorado) e
de reproduzir a estrutura vigente é restringir a aná- Ricardo Bruno Mendes Gonçalves (doutorado).
lise a uma constatação bastante generalizante e pou- Certamente, as influências de Cecília foram
co enriquecedora. distribuídas e apreendidas pelos seus seguidores
Nesse percurso que medeia a publicação das dentro de uma perspectiva que garantiu a eles
teses e os dias atuais, mais de três décadas, foi avanços e inovações, dentro do espírito que nor-
grande a influência dos trabalhos de Cecília. teou a sua presença intelectual – contribuir para a
Além dos dois livros aqui analisados, deve-se reflexão crítica e elaboração teórica. E ao falar-
fazer referência ao último trabalho de Cecília, A mos em “escola de pensamento”, temos presente
pesquisa na área da saúde coletiva no Brasil – déca- as idéias defendidas por um dos seus discípulos
da de 7016. Nele, além de apresentar o “estado da que, ao escrever sobre o livro de José Ricardo Ayres
arte” das pesquisas em saúde pública/saúde cole- – Epidemiologia e emancipação, assim se expres-
tiva, propõem uma conceituação de saúde coleti- sou: Uma “escola” de pensamento, investigação e
va, lembrando que a delimitação do campo, com prática educacional não se sustenta, como tantas
uma multiplicidade de objetos e áreas de saber, “igrejas” acadêmicas, na devoção a um referencial
que iam da ciência natural à ciência social, Não é téorico-metodológico, nem na obsessão por um qual-
indiferente à permeabilidade aparentemente mais quer desenho de pesquisa, nem na restrição a um
imediata desse campo a inflexões econômicas e particular objeto de interesse, nem tampouco ao
político-ideológicas. O compromisso, ainda que ge- que é evidente em qualquer delas: um certo jargão e
nérico e impreciso, com a noção de coletivo, impli- uma certa forma tendencial de encadeamento lógi-
ca a possibilidade de compromissos com manifesta- co entre as proposições isoladas de um discurso e
ções particulares, histórico-concretas desse mesmo sua estrutura mais geral. Será sempre um certo
coletivo, dos quais a medicina “do indivíduo” tem número, menor ou maior, de construções concei-
tentado se resguardar através do específico estatuto tuais, organizadas ao redor e por dentro de certos
da cientificidade dos campos de conhecimento que valores históricos que dará, ao conjunto dos traba-
a fundamentam16. lhos que interagem a partir da adesão operativa
Como assinala Schraiber, ao examinar a me- àqueles valores e conceitos, o caráter de “escola”,
dicina como prática técnica e social, Donnangelo aquela quase inefável marca registrada que permite
abriu oportunidades para a construção de um qua- ao observador treinado a identificação da origem e
dro teórico específico – a teoria do trabalho em do pertencimento de um trabalho isolado qualquer
saúde, voltado para o “processo de trabalho em que lhe caia em mãos. Menos do que um paradig-
medicina”, constituindo uma verdadeira escola de ma, portanto: mais do que uma vocação institucio-
pensamento, investigação e prática, com base nesse nal, por outro lado1.
referencial teórico9. Esta influência esteve presente Para Mendes-Gonçalves, essa escola pautou-
durante os anos em que Cecília desenvolveu as se por uma tradição “escolar” cujas marcas estão
suas atividades no Curso de Pós-Graduação em impressas na produção científica e nas formas
Medicina Preventiva, do Departamento de Medi- que muitos de seus discípulos trabalharam suas
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pesquisas e que se assentam em quatro concei- dependente de querer explicar uma opção indivi-
tos: historicidade, socialidade, estrutura, totali- dual, podemos dizer que o tema da medicina e
dade, e dois valores: a dignidade e a prioridade da saúde aflora com grande força na metade dos
humana dos valores. anos 1960 em nível internacional e a OMS/OPS
Além disso, como Mendes-Gonçalves chama irão promover inúmeras discussões a fim de in-
a atenção, a “escola” fundada por Cecília Don- troduzir um modelo de ensino que fosse além da
nangelo sempre se manteve distante de todo prag- centralidade biomédica. Assim, as ciências soci-
matismo imediatista, o que não impediu que se ais aparecem no cenário da medicina e os pri-
desdobrasse em linhas de investigação aplicadas, meiros sociólogos são contratados1. De outro
especialmente na área de organização tecnológica lado, a partir dos anos 1960, inicia-se uma mu-
das práticas de saúde, mas sempre com dificuldades dança na estrutura dos serviços de saúde (ex-
para oferecer como seu produto privilegiado res- pansão da cobertura, unificação dos institutos
postas operacionais imediatas às demandas que lhe de aposentadoria e pensões – IAPs), assim como
foram dirigidas. dos padrões de morbimortalidade, trazendo es-
Pioneira nos estudos sociológicos da saúde, tas temáticas para o campo de pesquisa. Em seu
muitos se perguntaram por que teria Cecília opta- levantamento sobre a produção científica, con-
do pela área da medicina e da saúde. Luiz Perei- forme citado, há trabalhos de diferentes nature-
ra13 acredita que foram as dificuldades para en- zas – demográficos, epidemiológicos, indústria
trar na USP, e que seus estudos até esse momento farmacêutica, assistência médica, medicina co-
voltavam-se para outros campos; nessa linha de munitária, aspectos históricos das práticas mé-
opinião, Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves17 es- dicas – que serão fundamentais para se conhecer
creve: Acho que Cecília se voltou para o trabalho a realidade de saúde dos anos 1960/1970. Assim,
na área de Saúde como quem dá um passo distraí- iniciava-se o movimento que ao longo dessas dé-
do em sua vida, talvez até por oportunidade de cadas procurou diagnosticar, analisar e compre-
trabalho. Acrescenta que a sua passagem da Me- ender a saúde sob o prisma das ciências sociais.
dicina Legal para a Preventiva tem muito a ver Mais uma vez, a presença de Cecília será sempre
com a época, 1968, quando a reforma do ensino lembrada pelo seu pioneirismo na construção do
médico esteve na pauta dos movimentos univer- campo das ciências sociais em saúde.
sitários, e a Medicina Preventiva, como já referi- Certamente, há outros pontos que este artigo
mos anteriormente, foi fundamental no encami- não abordou, mas procurou comentar alguns
nhamento das mudanças curriculares. Acrescen- aspectos da sua obra e suas principais caracterís-
te-se que o Professor Guilherme Rodrigues da ticas que concretizam um trabalho meticuloso de
Silva18, coordenador do Departamento de Medi- investigação e análise teórica, do qual não se pode
cina Preventiva desde o ingresso de Cecília, escre- dissociar uma “personalidade extremamente
veu em seu depoimento, “Mas mesmo com toda marcante e combativa”, mas muito afetiva e per-
a nossa convivência, uma coisa que nunca ficou manentemente disponível, como escreve Amélia
clara para mim é porque ela escolheu trabalhar Cohn, que com ela trabalhou no Departamento
com Medicina, especificamente”. Sem dúvida, in- de Medicina Preventiva, por cerca de doze anos19.
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Nunes, E. D.

Anexo 1. Produção científica de Cecília Donnangelo.

Donnangelo MCF. Contribuição ao estudo de uma cate- Donnangelo MCF. Relatório do Seminário Nacional
goria ocupacional: a profissão médica. São Paulo: Fa- de Pesquisa em Enfermagem. CNPq/ABEM/CEPEN;
culdade de Medicina – USP, 1969. [Mimeo] 1979 Nov 20-22; Ribeirão Preto. p. 82-97.
Donnangelo MCF. Caracterização socioeconômica dos Donnangelo MCF. Prefácio. In: Giovanni G. A ques-
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Fonte: adaptado de Mota, Silva e Schraiber9.

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Aprovado em 14/05/2007
Versão final apresentada em 06/06/2007

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