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Cecília Donnangelo Pioneira Na Construção Teórica de Um Pensamento Social em Saúde PDF
Cecília Donnangelo Pioneira Na Construção Teórica de Um Pensamento Social em Saúde PDF
ARTIGO ARTICLE
Cecília Donnangelo: pioneira na construção teórica
de um pensamento social em saúde
Abstract The present article analyzes aspects of Resumo O presente artigo analisa aspectos do
the intellectual trajectory of Maria Cecília Ferro percurso intelectual de Maria Cecília Ferro Don-
Donnangelo and her principal works. The text nangelo e seus principais trabalhos. Destaca-se
emphasizes the innovating and pioneer role her no texto o papel inovador e pioneiro da sua obra
work played in the first moments of social scienc- nos momentos iniciais das ciências sociais no
es in the field of health in the mid sixties, occur- campo da saúde, na segunda metade dos anos 1960,
ring just together with changes in medical educa- contextualizados no momento em que ocorriam
tion and medical practice in Brazil. mudanças no ensino médico e na prática da me-
Key words Social sciences and health, Cecília dicina no Brasil.
Donnangelo, Relations medicine/health/society Palavras-chave Ciências sociais e saúde, Cecília
Donnangelo, Relações medicina/saúde/sociedade
1
Departamento de Medicina
Preventiva e Social,
Faculdade de Ciências
Médicas, Unicamp. Cidade
Universitária Zeferino Vaz,
Distrito Barão Geraldo.
13083-970 Campinas SP.
evernunes@uol.com.br
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Nunes, E. D.
pesquisa empírica, a forma de narrar e a visão mente vinculadas aos contextos sociais, econô-
das possibilidades que se abriam para o campo micos e políticos. Como apontado pelos comen-
das ciências sociais na busca de compreensão da taristas de sua obra, Em seu doutorado, conseguiu
profissão e do processo de profissionalização detectar, rompendo com a ideologia liberalizante
médica. Cecília realizou esta pesquisa e escreveu do médico, uma tendência de crescente assalaria-
a sua tese no momento em que os estudos sobre mento da categoria. Sua análise tem como ponto de
profissões entravam em uma nova fase. Após a partida a atuação do Estado e do avanço do capita-
fase em que as profissões são analisadas a partir lismo no Brasil, quando se constituíram as empre-
dos atributos, na linha de Greenwood, Wilbert sas médicas e o Estado passou a assegurar-lhes mer-
Moore e Harold L. Wilensky, aparecem outros cado. Na livre-docência, realizou um trabalho es-
autores como Larson e Paul Starr, que repensam sencialmente teórico, cuja preocupação maior era
o tema sob outro olhar, usando outras categori- a delimitação do objeto de estudo e de análise do que
as como controle, relações com o mercado, tipo se poderia chamar de Sociologia da Saúde9.
de clientela, afinidade com a ideologia dominan- Voltando ao livro, no capítulo que trata d’O
te. Dentre outros críticos dos estudos sobre pro- médico no mercado de trabalho, Cecília aborda a
fissões e que lançam uma nova linha de pesqui- questão da produção de serviços de saúde e a
sas, destaca-se Elliot Freidson (1923-2005) e seu situação do médico, enquanto trabalhador indi-
trabalho seminal de 1970 – Profession of medici- retamente produtivo. Esta idéia, Cecília, confor-
ne10, que foi bastante crítico da literatura socio- me nota de pé de página4, associa ao trabalho de
lógica dos anos 1950 e 1960. Ponte11 lembra que Luiz Pereira quando este assinala que os ramos do
Freidson qualificou a sua obra como uma mo- trabalho produtivo têm necessidade de alguns ra-
desta rebelião contra o modo como a sociologia dos mos do trabalho não produtivo. Estes trabalhos em
Estados Unidos, nos anos 1950 e 1960, analisava a si não produtivos, porque necessários aos traba-
natureza e a posição das principais profissões na lhos em si produtivos, determinam-se, então, no
sociedade industrial. Ponte ainda acrescenta que plano da divisão social do trabalho, como traba-
Comentando a produção acadêmica daquele perí- lhos indiretamente produtivos [...] entretanto, o
odo, ele [Freidson] observou que grande parte dela trabalho em geral continua a determinar-se pela
carecia de qualquer tentativa de analisar as profis- acumulação do capital.
sões enquanto ocupações organizadas, dotadas de Outro ponto refere-se às relações entre a
um estatuto político e econômico especial que lhes medicina e a produção econômica, numa refe-
permitisse delinear atividades profissionais no tra- rência direta do trabalho de Claude Polack, La
balho11. Nos anos 1970, Freidson cunhou a ex- médicine du capital, quando caracteriza a aten-
pressão professional dominance, ao se referir “à ção médica como “uma mercadoria suscetível de
relação da profissão médica com outras ocupa- circular como um autêntico valor de troca”, ou
ções na divisão do trabalho no cuidado da saú- seja, “é um produto que não desaparece ao ser
de”, no sentido dela se constituir no protótipo da consumido”, mas “eleva o nível da força de traba-
mais poderosa e monopolizadora das profissões, lho ou contribui para sua manutenção, no qua-
o que concorria para o seu papel de medicaliza- dro de uma reprodução”. Assim, a saúde não
dora dos problemas das mais diversas nature- pode ser encarada “como um setor terciário qual-
zas10. Porém, a partir da segunda metade dos quer, um processo de comercialização, de publi-
anos 1970, assiste-se a uma outra tendência: as cidade, um serviço”4.
profissões estão em declínio, estão perdendo suas Neste ponto, Cecília estabelece de forma cla-
posições privilegiadas e de poder. Fala-se em des- ra a sua proposta de estudo, que toma como
profissionalização, de um lado, e, de outro, de fundamento que a integração do médico no mer-
proletarização das profissões, ou seja, os profis- cado de trabalho é a perda da sua autonomia, tra-
sionais estariam se tornando empregados assa- dicionalmente representada pelo controle indivi-
lariados, burocratizados e, com isso, perdendo a dual sobre os principais elementos da produção nesse
sua autonomia e independência econômica e cada ramo: a clientela, os instrumentos de trabalho, o
vez mais sujeitos ao controle administrativo. preço do trabalho4. Enfatiza a autora, dizendo que
Sem dúvida, o trabalho de Cecília, como o de o processo de perda da autonomia, que equivale
Freidson, inscreve-se nesse quadro de rupturas ao de assalariamento do produtor direto, é a
com o funcionalismo parsoniano, que, até então, questão central a ser desenvolvida neste momen-
tinha marcado os estudos sobre as profissões, to da tese. Em realidade, ao assentar a sua análise
retomando-as como categorias que se definem nas transformações sofridas pela prática médi-
no espaço organizacional do trabalho, estreita- ca, a autora não somente destaca os fatores es-
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trabalho reside no fato de, diferente do estudo cina Preventiva da FM/USP. Transcrevo os dados
anterior, não ser um trabalho empírico, mas de na íntegra que aparecem no trabalho já citado de
construção teórica. Destaca-se que a apreensão Mota, Silva e Schraiber e que mostram a assesso-
da relação medicina/produção capitalista é reali- ria e co-orientação prestados entre os anos de 1970
zada quando o estudo estabelece a conexão entre e início de 1980 às seguintes pessoas: Chester Luiz
prática médica e força de trabalho, que, segundo Galvão César (mestrado), Moisés Goldbaum
Luiz Pereira14 é estratégico para o “estudo das fun- (mestrado e doutorado), Joaquim Alberto Car-
ções infra-estruturais”, como também para o “es- doso de Mello (doutorado), Julio Litvoc (mes-
tudo de suas funções supra-estruturais”. trado), Eleutério Rodrigues Neto (mestrado), Ri-
Interessante recuperarmos a análise de Bur- cardo Bruno Mendes Gonçalves (mestrado), Luci
landy e Bodstein15 que, comentando a produção Moreira da Silva (doutorado), Solange L’Abate
científica sobre políticas de saúde, dizem que em (mestrado), Maria Mercês Santos (mestrado) e
textos produzidos na década de 1970, Embora a Maria Bernadete de Paula Eduardo (mestrado); e
questão da determinação econômica em última ins- orientação a Regina Maria Ferreira de Almeida
tância seja uma perspectiva comum nestas obras, (mestrado), Luiza Sterman Heimann (mestrado),
podemos identificar autores, como Donnangelo e Emerson Elias Merhy (mestrado), Ana Cecília
Luz que reforçam a prática política como potenci- Lins Silveira Sucupira (mestrado), Lilia Blima
almente transformadora das relações de produção. Schraiber (mestrado), Luiz Cordoni (mestrado),
Apenas afirmar que as políticas sociais têm o efeito Hesio de Albuquerque Cordeiro (doutorado) e
de reproduzir a estrutura vigente é restringir a aná- Ricardo Bruno Mendes Gonçalves (doutorado).
lise a uma constatação bastante generalizante e pou- Certamente, as influências de Cecília foram
co enriquecedora. distribuídas e apreendidas pelos seus seguidores
Nesse percurso que medeia a publicação das dentro de uma perspectiva que garantiu a eles
teses e os dias atuais, mais de três décadas, foi avanços e inovações, dentro do espírito que nor-
grande a influência dos trabalhos de Cecília. teou a sua presença intelectual – contribuir para a
Além dos dois livros aqui analisados, deve-se reflexão crítica e elaboração teórica. E ao falar-
fazer referência ao último trabalho de Cecília, A mos em “escola de pensamento”, temos presente
pesquisa na área da saúde coletiva no Brasil – déca- as idéias defendidas por um dos seus discípulos
da de 7016. Nele, além de apresentar o “estado da que, ao escrever sobre o livro de José Ricardo Ayres
arte” das pesquisas em saúde pública/saúde cole- – Epidemiologia e emancipação, assim se expres-
tiva, propõem uma conceituação de saúde coleti- sou: Uma “escola” de pensamento, investigação e
va, lembrando que a delimitação do campo, com prática educacional não se sustenta, como tantas
uma multiplicidade de objetos e áreas de saber, “igrejas” acadêmicas, na devoção a um referencial
que iam da ciência natural à ciência social, Não é téorico-metodológico, nem na obsessão por um qual-
indiferente à permeabilidade aparentemente mais quer desenho de pesquisa, nem na restrição a um
imediata desse campo a inflexões econômicas e particular objeto de interesse, nem tampouco ao
político-ideológicas. O compromisso, ainda que ge- que é evidente em qualquer delas: um certo jargão e
nérico e impreciso, com a noção de coletivo, impli- uma certa forma tendencial de encadeamento lógi-
ca a possibilidade de compromissos com manifesta- co entre as proposições isoladas de um discurso e
ções particulares, histórico-concretas desse mesmo sua estrutura mais geral. Será sempre um certo
coletivo, dos quais a medicina “do indivíduo” tem número, menor ou maior, de construções concei-
tentado se resguardar através do específico estatuto tuais, organizadas ao redor e por dentro de certos
da cientificidade dos campos de conhecimento que valores históricos que dará, ao conjunto dos traba-
a fundamentam16. lhos que interagem a partir da adesão operativa
Como assinala Schraiber, ao examinar a me- àqueles valores e conceitos, o caráter de “escola”,
dicina como prática técnica e social, Donnangelo aquela quase inefável marca registrada que permite
abriu oportunidades para a construção de um qua- ao observador treinado a identificação da origem e
dro teórico específico – a teoria do trabalho em do pertencimento de um trabalho isolado qualquer
saúde, voltado para o “processo de trabalho em que lhe caia em mãos. Menos do que um paradig-
medicina”, constituindo uma verdadeira escola de ma, portanto: mais do que uma vocação institucio-
pensamento, investigação e prática, com base nesse nal, por outro lado1.
referencial teórico9. Esta influência esteve presente Para Mendes-Gonçalves, essa escola pautou-
durante os anos em que Cecília desenvolveu as se por uma tradição “escolar” cujas marcas estão
suas atividades no Curso de Pós-Graduação em impressas na produção científica e nas formas
Medicina Preventiva, do Departamento de Medi- que muitos de seus discípulos trabalharam suas
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Aprovado em 14/05/2007
Versão final apresentada em 06/06/2007