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MARIANA BORGES ALVES DE LIMA

"COMIDA É VIDA. E ESSE É O PROBLEMA" –


A TRAJETÓRIA DE UMA JOVEM ANORÉXICA A
PARTIR DO REFERENCIAL DA ANTROPOLOGIA

Londrina
2023
MARIANA BORGES ALVES DE LIMA

"COMIDA É VIDA. E ESSE É O PROBLEMA" –


A TRAJETÓRIA DE UMA JOVEM ANORÉXICA A
PARTIR DO REFERENCIAL DA ANTROPOLOGIA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Estadual de Londrina, como
requisito parcial à obtenção do título de
especialista em Antropologia: Diferença,
Desigualdade e Poder.

Orientadora: Profa. Dra. Carla Delgado de


Souza

Londrina
2023
MARIANA BORGES ALVES DE LIMA

"COMIDA É VIDA. E ESSE É O PROBLEMA" –


A TRAJETÓRIA DE UMA JOVEM ANORÉXICA A
PARTIR DO REFERENCIAL DA ANTROPOLOGIA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Estadual de Londrina, como
requisito parcial à obtenção do título de
especialista em Antropologia: Diferença,
Desigualdade e Poder.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________
Orientadora: Profa. Dra. Carla Delgado de Souza (UEL)

____________________________________
Profa. Dra. Leila Sollberger Jeolas (UEL)

____________________________________
Profa. Dra. Maria Carolina de Araújo Antonio (UEL)

____________________________________
Prof. Dr. Flavio Braune Wiik (UEL)

Londrina, 31 de março de 2023


RESUMO

O presente ensaio toma uma obra literária como campo de pesquisa. Trata-se
do romance Garotas de Vidro (2012), de Laurie Halse Anderson, que conta
com Lia como personagem principal. No livro, encontramos Lia, uma jovem
anoréxica, e a partir de sua trajetória constrói-se um debate sobre as
concepções de corpo e processos de subjetivação a partir do referencial da
Antropologia, bem como sobre as dinâmicas relacionais observadas nas
vivências da personagem, e que são atravessadas pelo acentuado quadro de
transtorno alimentar que ela experiencia. A discussão aqui proposta caminha
através das relações entre etnografia, literatura e sociedade, e chega à
discussão sobre comportamentos de risco na juventude, num diálogo com as
ideias propostas por Le Breton.

Palavras-chaves: transtornos alimentares; corpo; literatura; juventude;


antropologia
ABSTRACT

This essay takes a literary work as a research field. This is the novel Winter
Girls (2012), by Laurie Halse Anderson, which presents Lia as the leading
character. In the book, we find Lia, a young anorexic, and throughout her
trajectory, a debate is built on the conceptions of body and subjectivity within
the framework of Anthropology, as well as on the relationships' dynamics that
can be observed in the character's relationships, and which are crossed by the
accentuated picture of eating disorder. The discussion proposed here goes
through the relationships between ethnography, literature and society, and leads
us to the discussion about risk behaviors in youth, in a dialogue with the
proposed ideas by Le Breton.

Keywords: eating disorders; body; literature; youth; anthropology


SUMÁRIO

Introdução e apresentação do tema de pesquisa 8


Antropologia e literatura – discussões metodológicas 18
Os transtornos alimentares de Lia e Cassie 25
As trajetórias em relação: 38
I - As amigas entre si 38
II - As amigas e os pais 41
III - As amigas e as equipes de cuidado 44
Juventude e comportamentos de risco 47
Considerações finais 51
REFERÊNCIAS 53
7

Introdução e apresentação do tema de pesquisa

Meu encontro com a Psicologia Analítica se deu no quarto ano da


faculdade de Psicologia, que cursei e concluí na Universidade Estadual de
Londrina, de 2007 a 2011. Naquele momento, em 2010, me vi numa profunda
crise pessoal e a análise que fazia dentro da abordagem lacaniana me
apresentava um reducionismo incômodo. Na busca por um novo tratamento, a
abordagem criada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, a Psicologia
Analítica ou Complexa, me pareceu oferecer um espaço mais generoso onde
eu sentia que podia falar abertamente sobre minhas questões e conflitos.
Assim, me vi mudando de tratamento e, consequentemente, mudando os focos
dos meus estudos.

Assim que saí da faculdade comecei a atuar na clínica a partir do


referencial junguiano, e foi pela demanda de estudos em relação ao primeiro
caso que acompanhei que adentrei na área dos transtornos alimentares.
Conforme os estudos se desenrolavam paralelamente ao tratamento da
paciente, fui me percebendo também atravessada por aquela temática. Num
dos principais estudos que tem como foco a questão dos transtornos
alimentares, a psicóloga canadense Marion Woodman realizou uma pesquisa
com 20 mulheres obesas e 20 mulheres de peso normal, que compunham um
grupo controle, objetivando “compreender a dinâmica psíquica que se acha por
trás da obesidade” (WOODMAN, 1980, p. 17). A autora pontua, ainda, que este
trabalho não é sobre aquelas mulheres que se orgulham de seus corpos e seus
volumes, apesar delas existirem; sua proposta ali é investigar as agonias da
obesidade, da anorexia e da bulimia nervosa, passando por hipóteses de suas
causas psíquicas e somáticas.

Marion Woodman segue trabalhando com a temática dos transtornos


alimentares para além de sua pesquisa inaugural, tendo-os como eixo central
de seu trabalho clínico e de sua produção bibliográfica durante toda a sua vida.
Ela mesma lidava com a anorexia desde muito jovem, e seu próprio processo
era muitas vezes presente em suas produções; a formação da autora como
analista junguiana se dá depois de uma profunda crise, quando quase morreu
devido a problemas decorrentes da anorexia, e é a partir de seu próprio
8

tratamento e formação que Marion decide atender clinicamente. Até então


Marion trabalhava como professora de literatura inglesa e o diálogo entre
literatura e psicologia analítica é bastante marcante em sua obra.

A autora aborda a gordura enquanto um símbolo que manifesta


conteúdos inconscientes, individuais e coletivos, tendo como um dos principais
eixos a questão de gênero e a angústia de mulheres que se sentem presas a
um corpo que nunca experienciam como sendo, de fato, delas (posto que
nunca é livre), e que pode estar também aprisionado num ideal de feminilidade;
o medo de encarnar na própria vida, de nomear para si os próprios desejos e
buscar meios de expressá-los e realizá-los, encarando as frustrações alheias
que podem acompanhar esse processo; os comportamentos de vícios e a
busca pela perfeição também perpassam seus trabalhos.

Foi em contato com essa pesquisa inaugural, publicada depois como o


livro A Coruja era Filha do Padeiro (1980), que me deparei com o questionário
usado pela autora na pesquisa. O questionário tinha por objetivo colher
algumas informações das participantes do grupo controle, familiarizando-as
com o tema e com algumas das questões a serem investigadas. A questão que
me atingiu de forma mais profunda interrogava: “Você ficaria tão irada com seu
corpo a ponto de puni-lo comendo em excesso coisas que ele não pudesse
digerir?” (WOODMAN, 1980, p. 18). De alguma forma tal atitude me pareceu
terrível, como algo que uma pessoa jamais faria. Fiquei realmente indignada e,
em análise, mergulhando nessa indignação que se misturava com uma
negação diante de tal possibilidade, pude reconhecer (com espanto) aquele
mesmo padrão em mim. Era um padrão automático, ainda que eu não
percebesse que ele acontecia; um padrão inconsciente. A partir disso, em
análise, pude me relacionar com o diagnóstico de transtorno de compulsão
alimentar e transtorno dismórfico corporal (também conhecido como transtorno
de imagem).

Eu busquei (e ainda busco) construir uma relação com esses


diagnósticos de forma a evitar tomá-los como uma definição única e total de
quem eu era; assim, eles se tornaram uma parte que me compõe. São uma
ferida que me intriga e atravessa, um sintoma que me faz desejar saber mais
9

sobre ele, sobre mim, sobre os corpos em geral, sobre as maneiras como esse
sintoma pode ser definido, e quais os ambientes propícios para que se
desenvolva - tanto num aspecto privado, dentro de núcleos familiares, como
num âmbito coletivo.

Para além de minha própria trajetória, a temática dos transtornos


alimentares se manteve muito presente na narrativa da maioria das mulheres
que me procuravam para iniciar o processo analítico, e esse também foi um
motivador para o início de um grupo de estudos sobre o tema, oferecido para
mulheres psicólogas que ocorreu de 2013 a 2019, tendo diversas turmas no
correr dos anos.

Os grupos tinham caráter teórico, mas acabaram mostrando-se como


terapêuticos, uma vez que as profissionais se viam convidadas a olhar para tais
questões em suas próprias vidas, para além das vidas daquelas pessoas que
acompanhavam na clínica; nos encontros discutíamos sobre a maneira como
nos relacionávamos com nosso próprio corpo e sexualidade, sobre questões de
gênero, no sentido dos ideais de corpo e imagem definidos para e cobrados de
mulheres (principalmente através da mídia), e visitávamos lembranças de como
as relações com a comida e o corpo foram se estabelecendo nos ambientes
familiares. Os aspectos contraditórios daquilo que se refere à feminilidade
ocidental contemporânea também eram abordados, quando notamos, por
exemplo, o incentivo à independência, competitividade e sucesso profissional,
ao mesmo tempo que seguem reforçados os comportamentos de sensibilidade
e cuidado e dedicação às vidas alheias (dentro e fora da família). Assim,
buscávamos discutir, dentro do referencial da psicologia analítica, como esses
discursos hegemônicos afetavam as construções das subjetividades femininas
e como estariam manifestados em nossos corpos, neuroses e vivências.

Tendo permanecido em contato com essas questões por todos esses


anos, tanto no que se refere à prática clínica e aos estudos do tema, como
naquilo que me toca, dentro do meu tratamento, me vi atravessada pelo desejo
de borrar os limites dos meus estudos na temática dos transtornos alimentares
e encontrei a Especialização em Antropologia - Diferença, Desigualdade e
Poder, oferecida pela Universidade Estadual de Londrina, no final de 2019.
10

Ingressei na turma de 2020, que teve seu percurso atravessado pela pandemia
de COVID-19, com a impossibilidade de encontros presenciais e a inviabilidade
de encontros de forma remota. Assim, reingresso em 2022, com o mesmo
projeto de antes, que buscava compreender a constituição dos transtornos
alimentares como um processo coletivo, tendo como base para o debate,
naquele momento, algumas discussões apresentadas por Silvia Federici, em
seu livro Calibã e a Bruxa (2017).

Desde a entrevista, no desenrolar das disciplinas e em conversas com


minha orientadora, houve um convite para sair do que seria o meu pensar mais
automático (a partir da psicologia analítica na clínica). Nas orientações trago o
desejo de trabalhar também com literatura e cria-se, então, a proposta de
tomar uma obra literária como campo de pesquisa, sendo o livro Garotas de
Vidro, de Laurie Halse Anderson (2012), escolhido para tal.

Em sua tese Cartografias da cultura e da violência: gangues, galeras e o


movimento hip hop (1998), Gloria Diógenes nos conta sobre o atravessamento
que o conteúdo de sua pesquisa, realizada em Fortaleza, teve sobre ela
mesma; a autora nos fala com sensível honestidade sobre como sentiu medo
diante de seu campo de pesquisa, um medo que a fazia voltar à sua própria
história e constituição subjetiva. Diógenes (1998) fala do medo do
desconhecido, e em contato com sua leitura me vi pensando sobre como o
meu próprio tema não me era desconhecido - ele me era familiar, íntimo e
doloroso, e a decisão de tomá-lo como tema de pesquisa traduzia uma
demanda simbólica minha, como se eu estivesse, também, me investigando.

Durante o desenrolar das disciplinas da especialização me vi convocada


a um novo lugar, onde precisaria estranhar aquilo que já não me era estranho,
como que reconstruindo meu objeto de pesquisa a partir de um novo campo de
saber, e o encontro com a Antropologia e seu referencial teórico, além de
ampliar minhas possibilidades de debate, me ofereceu a experiência de
produzir um estranhamento, ao tomar distância para que pudesse perceber e
reconhecer outros aspectos atuantes na temática dos transtornos alimentares.
11

Dessa forma, navegando pelo livro Garotas de Vidro (2012), que traz a
trajetória de Lia e Cassie, duas adolescentes que lidam com a problemática da
anorexia e bulimia, respectivamente (e que serão apresentadas mais
detalhadamente adiante), este trabalho apresenta a etnografia de um texto
literário onde pretende-se discutir a constituição do corpo na perspectiva
antropológica; as dinâmicas relacionais de jovens que vivenciam os transtornos
alimentares com as pessoas a sua volta e com suas próprias vidas - e também
com a assustadora proximidade da própria morte - a partir de uma
apresentação resumida da história e de uma análise relacional das
personagens, em diálogo com as ideias de Turner (1974); as condutas de risco
na juventude, a partir das discussões propostas por Le Breton (2012) e por
Jeolás (2007), pensadas como maneiras de produção de sentidos e valores
diante da vida pelos próprios jovens; bem como as contribuições de Daniela
Ferreira Araújo Silva, tanto a partir de sua dissertação Do outro lado do
espelho: anorexia e bulimia para além da imagem - um etnografia virtual
(2004), quanto a partir de sua tese Histórias de vida com transtornos
alimentares: gênero, corporalidade e a constituição de si (2011).

Em sua dissertação, Silva (2004) investiga os chamados transtornos


alimentares em uma etnografia virtual, a partir do material produzido por
pessoas que se entendem como portadoras dos transtornos; dentro da
perspectiva antropológica, a autora privilegia as relações existentes entre os
chamados transtornos e as noções de pessoa, corpo, corporalidade e gênero.

Com a continuação da pesquisa, Silva (2011) aprofunda, em sua tese,


alguns aspectos da complexa relação entre corporificação, gênero e
assujeitamento, ainda a partir da análise do conjunto de perturbações
denominadas “transtornos alimentares”, tendo como fio condutor as histórias de
vida de três colaboradoras. As histórias de vida são, neste caso, propostas
numa leitura como sendo contraversões, como “possibilidades de
contradiscursos, geradas por e em relação aos próprios dispositivos de poder
que produzem os discursos hegemônicos” (SILVA, 2011, p. 7). Dessa forma, a
autora pontua que
12

As histórias de como os sujeitos se constituem em meio à experiência


de transtorno alimentar podem revelar, portanto, elementos
fundamentais dos processos contemporâneos da produção de
sujeitos no seio de relações sociais atravessadas por múltiplos
dispositivos de poder, e no contexto específico em que o corpo
adquire especial relevância, não apenas por sua centralidade na
problemática dos transtornos alimentares, como também por
configurar uma interface privilegiada nos processos contemporâneos
de assujeitamento. (SILVA, 2011, p. 7).

Neste ponto considero importante conhecermos as noções biomédicas


de nomenclatura e categorias diagnósticas dos chamados transtornos
alimentares, uma vez que esse saber também opera enquanto dispositivo de
poder nos processos de subjetivação (SILVA, 2011). De uma perspectiva
histórica, os primeiros diagnósticos de anorexia nervosa apareceram em 1873,
na Inglaterra e na França.

De acordo com Showalter (1985), a anorexia nervosa foi considerada


por alguns médicos da época como uma variante da histeria. Já a
bulimia foi somente descrita em 1979 por G. Russel, como uma
variante da anorexia, e só posteriormente ganhou status de transtorno
diferenciado. (SILVA, 2004, p. 2)

Assim, os transtornos alimentares são encontrados dentro da categoria


dos chamados transtornos do comportamento alimentar e são caracterizados
como doenças que levam a grandes prejuízos sociais e psicológicos, afetando
particularmente adolescentes e adultos jovens do sexo feminino (CORDÁS,
2004). No entanto, Silva (2004) contra argumenta, lembrando que

Os transtornos alimentares foram, a princípio, identificados como


típicos de mulheres brancas jovens de classe média (DANIELS,
2000). Atualmente reconhece-se que a incidência dos transtornos não
está tão restrita a fatores étnicos ou de classe social. Estudos
recentes nos EUA mostram que mulheres latinas e afro-americanas
são muito mais afetadas do que anteriormente, e que a quantidade de
homens acometidos pode ser maior do que a estimada. (SILVA, 2004,
p. 2).

Numa descrição geral, a anorexia nervosa é caracterizada pela


acentuada perda de peso de maneira proposital, conquistada a partir de dietas
bastante rígidas em uma busca radical pela magreza extrema, acompanhada
de sérias distorções da imagem corporal e de alterações no ciclo menstrual;
além da prática intensa de exercícios, pode haver o uso de laxantes e
diuréticos. Já a bulimia nervosa se configura como uma sensação de perda de
13

controle que leva à ingestão de uma grande quantidade de comida, seguidas


de práticas compensatórias inadequadas, como os vômitos auto-induzidos e
também o uso de medicamentos; são os chamados “episódios bulímicos”
(CORDÁS, 2004). O autor pontua, ainda, que

O termo anorexia sabidamente não é o mais adequado do ponto de


vista psicopatológico na medida que não ocorre uma perda real do
apetite, ao menos nos estágios iniciais da doença. A negação do
apetite e o controle obsessivo do corpo tornam o termo alemão
pubertaetsmagersucht, isso é, “busca da magreza por adolescentes”,
bem mais adequado (CORDÁS, 2004, p. 155).

Cabe ressaltar que o presente trabalho não pretende se colocar contra


ou a favor dessas categorias diagnósticas ou discutir a validade das mesmas,
mas pretende enfatizar que essa não é a única visão possível dos fenômenos
aqui abordados. A discussão acerca da noção de pessoa e dos processos de
subjetivação dentro dos referenciais da Antropologia nos convida a considerar,
no entanto, que a visão médica não resolve essas questões e nos faz lembrar
que cada assunto encontrará “um certo horizonte teórico” (FOUCAULT, apud
SILVA, 2004, p. 4) quando abordado por diferentes tradições disciplinares.

Desde seus primórdios, a Antropologia tem a noção de pessoa como


importante objeto. O ensaio inaugural deste debate foi escrito por Marcel
Mauss, em 1938. Nele, o autor argumenta que há uma pluralidade de
concepções de pessoa, perpassadas por construções históricas e culturais
distintas. Com isso, Mauss (2003) já evidenciava que a noção de indivíduo, tão
desenvolvida nas sociedades cristãs do ocidente, deveria ser entendida como
uma particularidade e não como a regra a ser seguida por várias civilizações.
Neste trabalho, utilizo a definição proposta por Anthony Seeger, Roberto da
Matta e Eduardo B. Viveiros de Castro, no artigo intitulado A construção da
pessoa nas sociedades indígenas brasileiras (1986). Neste trabalho, os autores
recusam uma transposição etnocêntrica de pré-concepções advindas da
moderna noção de indivíduo para as sociedades indígenas. Para estes autores,
a noção de pessoa

assume radicalmente o papel formador que as categorias coletivas de


uma sociedade exercem sobre a organização e prática concretas
desta sociedade. Assume, ainda, a impossibilidade de se tomarem
noções particulares, como a de Indivíduo, na compreensão de outros
14

universos sócio-culturais (SEEGER et al, 1986, p. 15).

Os autores ainda defendem que a noção de pessoa está atrelada a


determinadas corporalidades, de forma que os corpos e suas expressões
dialogam diretamente com os processos de construção do “eu”. Nesse sentido,
Eduardo Viveiros de Castro (1979) argumenta que os corpos são construídos
culturalmente por meio da instituição de tabus, da ingestão de substâncias
(inclusive alimentos) e também das atividades exercidas.

Desta forma, entendemos aqui essa definição como uma importante


ferramenta conceitual no estudo dos transtornos alimentares, pois evita que a
categoria de indivíduo seja tomada como explicação exclusiva, mesmo no
campo ocidental, onde tal noção se faz presente (SILVA, 2004). Da mesma
forma, atentamos aos processos culturais e societários envolvidos na
construção dos corpos e, consequentemente, das pessoas.

Sendo classificados dentro das síndromes comportamentais associadas


a transtornos fisiológicos, os transtornos alimentares situam-se “exatamente na
fronteira entre corpo e mente, entre físico e moral, entre psicológico e
fisiológico” (SILVA, 2004, p. 7) e a partir dessa noção de pessoa que se define
em uma pluralidade de níveis, podemos observar as complexas relações entre
tais esferas, de forma a evidenciar que o espaço da corporalidade pode ser, a
um só tempo, individual e coletivo, social e natural (SEEGER et al, 1986).

Sustentando “radicalmente” a influência formadora que as categorias


coletivas impõem às práticas de uma sociedade podemos, agora, pensar o
comer e a comida. Em Comida e Antropologia - uma breve revisão, Mintz
(2001) pontua logo de início que “o comportamento relativo à comida liga-se
diretamente ao sentido de nós mesmos e à nossa identidade social” (p. 31). O
autor pontua que nenhum outro comportamento não automático vincula-se
tanto a nossa sobrevivência quanto o ato de comer, uma vez que necessitamos
dele para viver, e ressalta que o comportamento de comer carrega um forte
poder sentimental, pois nos é inculcado muito cedo por adultos poderosos do
ponto de vista afetivo. Assim, o comer e a comida ocupam lugar de destaque
“no aprendizado social por sua natureza vital e essencial, embora rotineira. O
15

comportamento relativo à comida revela repetidamente a cultura em que cada


um está inserido” (MINTZ, 2011, p. 32). Ainda de acordo com o autor

Comer é uma atividade humana central não só por sua frequência,


constante e necessária, mas também porque cedo se torna a esfera
onde se permite alguma escolha. Para cada indivíduo representa uma
base que liga o mundo das coisas ao mundo das idéias por meio de
nossos atos. Assim, é também a base para nos relacionarmos com a
realidade. A comida “entra” em cada ser humano. A intuição de que
se é de alguma maneira substanciado – “encarnado” – a partir da
comida que se ingere pode, portanto, carregar consigo uma espécie
de carga moral. Nossos corpos podem ser considerados o resultado,
o produto, de nosso caráter que, por sua vez, é revelado pela maneira
como comemos. (MINTZ, 2001, p. 32)

Quando pensamos a anorexia como um quadro em que não há,


exatamente, a ausência da fome, mas a negação diante dessa urgência
corporal, podemos considerar o lugar de escolha reivindicado por aqueles que
a vivenciam. Silva (2004) pontua que há duas posições opostas quando o tema
é transtornos alimentares, pois há um grupo que considera que os transtornos
são doenças que afetam a percepção dos sujeitos e os fazem subjugados pela
patologia, e há um outro grupo que defende essa condição como uma escolha
e modo de vida - que, inclusive, não destoaria muito do que é entendido, em
termos gerais, como saúde e beleza e a importância da magreza para uma vida
feliz.

Como poderemos observar mais adiante, nossa personagem, Lia, passa


boa parte de sua história entendendo sua condição como uma escolha que
deveria ser respeitada, mas que não era compreendida por ninguém mais além
de sua amiga, Cassie. A magreza extrema é vista por ela como o melhor lugar
a se estar, como um grande objetivo que lhe traria algum destaque, pois “não
consigo atuar, nem jogar futebol, e a maioria delas têm notas melhores que as
minhas. Mas eu sou a garota mais magra da sala, sem dúvidas” (Lia apud
ANDERSON, 2012, p. 78). De alguma forma, sua guerra contra a comida e as
calorias garantiam a ela um lugar possível no mundo.
Ainda pensando em nossa personagem, seu nojo e sua repulsa em
relação a tudo o que se relaciona com a comida e o comer nos leva às
questões trabalhadas por Mary Douglas, em seu livro Pureza e perigo (2012). A
autora traz as noções de sujeira e poluição a partir da pesquisa com brâmanes
16

e questiona o quanto nossas ideias sobre sujeira seriam apenas vinculadas à


higiene e ao saber que delimita a existência e atuação de bactérias (e seus
perigos), ou se são também permeadas por simbologias, assim como
observadas nas chamadas poluições rituais em sociedades primitivas, ao que
ela mesma responde:

Nada disso: passarei a sustentar que nossas ideias de sujeira


também expressam sistemas simbólicos e que a diferença entre o
comportamento da poluição em uma parte do mundo e em outra é
somente uma questão de detalhe. (DOUGLAS, 2012, p. 49).

Douglas (2012) aborda as noções de sujeira e sistema evidenciando o


controle da sujeira como uma tentativa de organizar o caos. Em nossa história,
Lia e as formas como vai se relacionando com a comida (que pra ela é o que
suja seu corpo, bem como o próprio desejo do corpo por comida a torna suja)
podem se referir a uma tentativa de controlar a vida, de construir uma noção de
si onde ela se sinta minimamente segura e no controle das situações. É
interessante notar o conflito que emerge do entendimento dessas atitudes, uma
vez que aquilo que para Lia está funcionando e fazendo-a sentir mais poderosa
e mais capaz, para os observadores externos é apenas um comportamento de
“distúrbio”.
17

Antropologia e literatura – discussões metodológicas

A íntima relação entre literatura e ciências sociais é longa, como já


advertia Wolf Lepenies (1996), que analisou a disputa emergente no século
XIX, entre literatos e sociólogos, acerca da legitimidade de cada grupo de
intelectuais sobre a análise de problemas sociais. Embora o livro de Lepenies
analise a criação e a consolidação de um campo intelectual específico capaz
de analisar o social, a sociologia, é sabido que a literatura continua a trabalhar
com as experiências humanas tanto no campo individual como coletivo,
proporcionando análises ricas sobre questões de cunho social.

Outra ciência social que emerge no século XIX, a Antropologia,


estabelece uma relação mais amistosa com as produções literárias.
Observamos, desde o início, o impacto que relatos de viagens e de
experiências desempenham no próprio pensamento antropológico, seja
reforçando estereótipos, seja provendo um certo tipo de retórica autoral que a
Antropologia utiliza como uma marca de seus discursos (GEERTZ, 2002).
Mesmo em momentos em que a disciplina procurou se afirmar como um
discurso científico, com a defesa de metodologias de pesquisa próprias, a partir
de uma miríade conceitual específica, a autoria continuou sendo fundamental
para a sustentação de seus argumentos. Isso ocorre de tal forma que muitas
vezes é possível identificar as autorias de textos sem que tenhamos acesso à
assinatura dos mesmos.

De acordo com Antonio Candido (2023), não é possível entender o


discurso literário como completamente apartado da sociedade que o inspira e
que também habita o texto proposto. Todo texto literário traz para o seu interior
reflexões sobre relações sociais, bem como sobre modelos sociais vigentes.
Da mesma forma, todo texto literário é recebido pelo público leitor e crítico de
sua época, de forma que suas ideias reverberam e também inspiram ações
sociais específicas. Com isso, diz o autor, as relações entre literatura e
sociedade são dialéticas:

Como se vê, não convém separar a repercussão da obra da sua


feitura, pois, sociologicamente ao menos, ela só está acabada no
momento em que repercute e atua, porque, sociologicamente, a arte
18

é um sistema simbólico de comunicação inter-humana, e como tal


interessa ao sociólogo. (CANDIDO, 2023, p. 20).

Logo, a proposição do autor é que há uma estrutura literária, composta


de elementos vistos como internos e externos, que dialoga intimamente com a
estrutura social. Embora trabalhando com outros aspectos, Anthony Giddens
(2003) argumenta sobre a importância dos romances românticos para que
tenham ocorrido as transformações da intimidade que ele identifica e investiga
nas sociedades modernas. Concordando ou não com as proposições do
sociólogo, o que queremos ressaltar é a existência de um certo tipo de agência
nos livros sobre aqueles que os lêem, da mesma forma que o social age
colorindo, dentro de um campo de possibilidades, os imaginários e as
imaginações das pessoas que escrevem (CRAPANZANO, 2005).

Desde meados dos anos 1980, com o surgimento da antropologia


pós-moderna, as etnografias são também analisadas acerca de sua
apresentação textual. Assim, para antropólogos como James Clifford e Vincent
Crapanzano o ato de escrever sobre “o outro” e suas formas societárias não é
isento. A escrita etnográfica define os modos pelos quais construímos
discursos sobre a alteridade, que são vistos como verdades absolutas, embora
se constituam sempre como verdades parciais (CLIFFORD, 2021). Junta-se a
isso o fato de que as ficções persuasivas da antropologia sejam também
artifícios, trabalhados retoricamente por meio de recursos como figuras de
linguagem e edições do texto.

Por outro lado, sabe-se de romancistas que empreendem pesquisas


com determinados grupos sociais para que possam escrever suas histórias de
ficção. São notáveis alguns casos de pesquisa artística para a elaboração de
narrativas literárias. Um caso exemplar é o do escritor russo Alexander
Soljenítsin e de sua obra Arquipélago Gulag, publicada originalmente em Paris
no ano de 1973. A escrita do texto foi longa e demorada. Contou com a
experiência de Soljenítsin em campos de trabalhos forçados, bem como com a
feitura de mais de 200 entrevistas com pessoas aprisionadas nos gulags.

Em seu texto “Laços de parentesco: ficção e antropologia”, o escritor


Milton Hatoum versa sobre a importância da realização das viagens para o
19

conhecimento do outro a ser retratado, quer na pesquisa literária ou


antropológica. Entendendo a íntima relação entre antropologia e texto de
ficção, ele afirma que:

Muitas obras de ficção mantêm laços de parentesco com a


antropologia, e é provável que um romancista seja, em vários casos,
um antropólogo imaginoso, livre de amarras teóricas e estudos de
campo. Esse grau de parentesco é variado, mas alguma coisa
essencial une o estudo antropológico ao texto de ficção: ambos falam
do Outro e elaboram um discurso sobre a alteridade (HATOUM, 2004,
p. 135).

O autor manauense ainda reflete sobre a importância das viagens que


fez ao Rio Negro para a criação de uma de suas personagens, Domingas, que
ganha vida em seu livro “Dois irmãos”. Nesse sentido, é possível apreender
questões existenciais, identitárias e sociais a partir de discursos literários.

A antropóloga Débora Diniz argumenta justamente isso quando se


dispõe a tomar o romance Possessing the Secret of Joy (1992), de Alice
Walker, como campo de pesquisa, e nos apresenta o dilema moral de Tashi, ao
procurar se estabelecer como uma mulher Olinka e ao viver como uma mulher
estadunidense. A análise de Débora Diniz do livro de Alice Walker aborda como
a experiência de Tashi era movida pela tragicidade, que nem uma abordagem
antropológica, nem as políticas de direitos humanos seriam capazes de
elucidar, quando pensadas em separado. O desafio do texto proposto por Alice
Walker ao relatar a vida de Tashi é justamente pensar como as discussões de
antropologia e direitos humanos deve ser abordada de forma relacional. Ao
fazer isso, Débora Diniz compreende que tomar o romance de Walker como
campo de pesquisa pontua “um certo distanciamento cínico, porém saudável”
(DINIZ, 1999, p. 29) que o uso da ficção possibilita, pressupondo “uma certa
flexibilidade desrespeitosa no trato do sofrimento, impossível de ser executada
pelo estilo antropológico de aproximação da alteridade” (DINIZ, 1999, p. 30).

Seguindo os passos trilhados por Débora Diniz (1999) eu busco abordar


a problemática dos transtornos alimentares a partir de um texto ficcional e
literário infanto-juvenil chamado “Garotas de vidro”. Logo, como a antropóloga,
decidi tomar uma obra literária como campo de pesquisa capaz de me informar
sobre o tema dos transtornos alimentares, que é bastante amplo, e ganhou
20

novos contornos e limites, como se o próprio objeto de pesquisa fosse


apontando o caminho das questões a serem investigadas e os limites
encontrados. Mergulhando nas histórias de Lia e Cassie, nos vemos dentro de
um contexto específico, com acontecimentos e relações delimitados pelo que
nos é narrado, e de onde partimos para debates e reflexões em relação aos
aspectos culturais e relacionais deste tema.

Tomar a literatura como campo de pesquisa é tomar as personagens da


ficção e os desdobramentos de suas histórias como propostas de realidade.
Todavia, não se trata, aqui, de buscar se Lia e Cassie realmente existiram ou
se a trama do livro constitui-se como "verdade", pois isso é o que menos
importa. O que interessa aqui é pensar que essa trama poderia ser verdade e,
nesse sentido, ilumina os mesmos aspectos que desejamos abordar para a
discussão sobre os transtornos alimentares que nos interessa. As angústias,
dores e riscos de Lia, por exemplo, podem facilmente ser substituídos pelas
narrativas de outras pessoas que também apontam para a realidade dos
transtornos alimentares. Nesse sentido, quando o campo é a literatura
podemos notar a habilidade de sensibilizar e comover que a ficção oferece,
trazendo para perto da realidade de quem lê histórias que não são reais, mas
também o são, por traduzir uma realidade (DINIZ, 1999). Le Breton, em um
entrevista concedida a Alexandre Zarias em 2019, também nos faz lembrar que

Existem inúmeros romances e ficções extremamente importantes


para compreender melhor o corpo, pois os escritores têm a vantagem
de descrever situações precisas, exprimindo as emoções, as
percepções e as atitudes das personagens. Pode-se dizer que o
escritor é alguém que coloca a lupa em toda uma série de atividades
do cotidiano de uma maneira que as tornam mais compreensíveis.
(LE BRETON, 2019).

É interessante notar que, ao mesmo tempo que a literatura nos permite


esse distanciamento, o contato com personagens ficcionais pode oferecer uma
experiência de proximidade maior e mais intensa do que quando olhamos para
histórias de pessoas reais; Tashi, assim como Lia, afeta os leitores de maneira
íntima e singular, o que também ocorre com as experiências dos antropólogos
em seus campos usuais de pesquisa. Assim, tomaremos os transtornos
alimentares de Lia e Cassie como experiências, narradas pela própria
21

personagem, observando cautelosamente aquilo que é posto em questão pelas


personagens. Nesse sentido, tanto Débora Diniz quanto eu entendemos os
dilemas e percursos de novas personagens como narrativas de si sobre suas
experiências sociais. Silva (2011) pontua que a proposta de debruçar-se sobre
histórias de vida é também a proposta de

(...) levar a sério, pois, o que os sujeitos têm a dizer sobre si e sua
trajetória, de considerar que as formas pelas quais interpretam o
mundo estão intimamente relacionadas a seus modos de viver e agir
sobre ele, sendo, portanto, não apenas um objeto pertinente à
investigação antropológica, como também um de seus fundamentos
heurísticos, umas das condições da produção do próprio
conhecimento”. (SILVA, 2011, p. 3).

Podemos, então, dialogar tal proposta de Silva (2011), que destaca a


importância daquilo que cada pessoa produz enquanto conhecimento de si e
da própria vida, com as idéias de Turner (1984), quando nos diz que ele
mesmo

não vê as dinâmicas sociais como um conjunto de “performances”


produzidas por um “programa”/ “sistema” (...). A ação viva, para a
espécie humana, nunca pode ser a consequência lógica de algum
grande projeto. E isso (...) se dá por conta da estrutura processual da
própria ação social. (TURNER, 1984, p. 13, tradução nossa).

Turner (1984) segue, então, discorrendo sobre o drama social a partir de


sua pesquisa com os Ndembu da província de Zâmbia, e relata que apesar de
não supor que o que constatava ali fosse de ordem universal, estudos
posteriores o convenceram de que “dramas sociais, com muito da mesma
estrutura temporal ou processual que detectei no caso dos Ndembu, podem ser
isolados para o estudo de sociedades em todos os níveis de escala e
complexidade” (TURNER, 1984, p. 33, tradução nossa).
Os dramas sociais são, portanto, unidades de um processo
desarmônico, que surgem em situações de conflito e, de certa forma, ritualizam
transformações sociais. Turner (1984) explica que eles são compostos,
principalmente, de quatro fases: a quebra do padrão estabelecido
anteriormente; a crise; a ação corretiva; e, por fim, a reintegração do grupo ou
fator social perturbado, ou a reintegração do reconhecimento e legitimação de
irreparável cisão entre as duas partes.
22

Assim, a história de Lia, da maneira como ela nos conta sobre si, será
aqui lida e sentida como um drama social no qual a própria personagem marca
sua experiência do transtorno como um momento em que ela deixa de ser
“uma garota de verdade” como era antes, e passa a ser uma “garota de vidro”;
as crises subsequentes reforçam e ampliam essa quebra da vivência, nos
momentos em que “as ações simbólicas atingem sua expressão máxima”
(TURNER, 1984, p. 41, tradução nossa) e em que Lia se vê praticamente
afogada num vórtex de novas verdades, de novas maneiras de se defender da
vida, sendo a magreza extrema o principal eixo; a ação corretiva se desenrola
em mais de um momento, conforme observamos as dinâmicas de cuidado e
controle que vão se fazendo necessárias e possíveis; e a reintegração do fator
perturbado, aqui personificado pelo transtorno, no final de sua história, quando
a personagem consegue, a partir de uma relação com a própria realidade, tecer
um caminho de retorno à uma vida enquanto “uma garota de verdade”, sendo
capaz de construir um próprio sentido para sua existência (mesmo que isso
exigisse lidar com o que não faz sentido), não mais recorrendo aos
comportamentos de risco para que pudesse sentir-se viva.

Aquém ou para além da literatura emprestada como campo de pesquisa


etnográfico, é preciso olhar também para a própria etnografia e para como a
escrita a atravessa. Em A escrita da cultura: poética e política da etnografia,
publicado originalmente em 1986, James Clifford nos diz que “a escrita não é
mais uma dimensão marginal, ou oculta, mas vem surgindo como central para
aquilo que os antropólogos fazem, tanto no campo quanto no que a ele se
segue” (CLIFFORD, 2021, p. 32) e que para alguns é nova a ideia, dentro da
Antropologia, de que o fazer literário atravesse qualquer trabalho que se
proponha a representar uma cultura.

Para um número cada vez maior, contudo, a “natureza literária” da


antropologia - e, particularmente, da etnografia - parece ser muito
mais do que uma questão de escrever bem ou de ter um estilo
particular. Os processos literários - metáfora, figuração, narrativa -
afetam as formas como fenômenos culturais são registrados, desde
as primeiras “observações” rabiscadas até a versão final do livro, até
chegar à forma como essas configurações “fazem sentido” em atos
de leitura específicos. (CLIFFORD, 2021, p. 35).
23

Clifford (2021) segue na discussão pontuando que, em certa medida, há


um desconforto quando se aproxima etnografia de literatura ou ficção do ponto
de vista daqueles que supõe uma transparência total do texto etnográfico,
como se houvesse ali (ou devesse haver) nada mais do que a transcrição de
uma realidade observada. O autor desenvolve seu pensamento reforçando a
impossibilidade de não haver uma artesania da etnografia, que é intimamente
ligada ao trabalho da escrita e pontua que a escrita etnográfica e suas
verdades são intrinsecamente parciais, “engajadas e incompletas” (CLIFFORD,
2021, p. 38). Com tal ideia Clifford (2021) coloca em questão uma crítica aos
discursos mais típicos e enraizados no Ocidente e abala as pretensas bases a
partir das quais se assegurava que tanto pessoas como grupos poderiam, com
segurança, representar outros.
24

Os transtornos alimentares de Lia e Cassie

A ficção com a qual trabalho neste artigo é baseada no livro "As garotas
de vidro", de Laurie Halse Anderson1. Trata-se de uma literatura juvenil e
tornou-se rapidamente um best seller nos Estados Unidos da América, local
onde mora a autora. Publicado em 2009 com o título "Wintergirls", foi
rapidamente traduzido para língua portuguesa, sendo publicado pela editora
Novo Conceito em 2012. A recepção estadunidense ao livro foi impressionante,
recebendo reconhecimentos públicos da ALA (American Library Association) e
da YALSA (Young Adult Library Services Association) e sendo listado como um
best seller por jornais como New York Times, Chicago Tribune e The Guardian.
É conhecido como um dos trabalhos mais impactantes da autora,
especialmente por suas qualidades narrativas.

O livro é todo escrito como se fosse o diário de Lia, com numerações a


cada vez que ela faz uma inscrição ali. Nesse ambiente de diário, íntimo e
secreto, é como se estivéssemos um pouco dentro e um pouco fora da
personagem; "vemos" o que se passa à sua volta, mas não como se um
narrador onisciente nos contasse e contextualizasse sobre pessoas e
acontecimentos. Tudo o que é percebido é percebido a partir de como Lia vê e
sente o mundo.

Há um impacto peculiar em perceber a realidade dela a partir dela


mesma, com trancos (espantos, acontecimentos, eventos e afetos) que a
fazem voltar e contar algo do passado, envolvendo situações, e reações de Lia
que nos mostram que há algo mais ali, ainda que ela não retome a história
inteira para nos contar. É como se aqueles aspectos ou acontecimentos que
ela tentasse esconder dela mesma, ela também escondesse de quem a lê.
Assim, a angústia é sentida a todo o momento conforme acompanhamos o que
Lia pensa, o que dizem a ela, o que ela responde e, também, o que gostaria de
ter respondido (mas cala) e o que realmente pensa e deseja (mas não aceita)
em trechos que são rasurados, como que pensados e reprimidos:
1
Laurie Halse Anderson (1961) é uma premiada escritora americana conhecida por sua obra
dedicada ao público infantil e jovem. Publicou vários livros, todos com temáticas infanto-juvenis,
e é militante em prol da liberdade intelectual e pelo fim da violência sexual. Entre seus livros de
maior sucesso estão Seeds of America (trilogia publicada entre 2008 e 2016) e Wintergirls
(2009).
25

Ligo o aquecedor no “máximo” e enfio o nariz onde sai o ar quente.


(...)
Estou com fome preciso comer.
Odeio comer.
Preciso comer.
Odeio comer.
Preciso comer.
Adoro não comer. (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 142).

O tempo da narrativa é bastante específico, justamente por estarmos


sentindo o mundo a partir do que a personagem principal sente. É como se
houvesse uma pressa, algo que corre, mas não é captado; algo que ainda não
pode ser nomeado. Quando pensamos que o livro todo acompanha sua
jornada de elaboração de luto (e um período em que tenta, a todo custo, fugir
desse luto), fica ainda mais evidente o tempo não-linear desse processo e a
oscilação de Lia entre querer entender o que aconteceu com sua amiga e
querer apenas seguir com sua vida, como se nada tivesse acontecido.

Essa garota aqui treme e engatinha para debaixo das cobertas ainda
totalmente vestida, e cai sobre um livro que está devendo para a
biblioteca, um conta de fadas com ratos e tutano e maldições
terríveis. As frases constroem uma cerca ao seu redor, uma barricada
de Times Roman corpo 10, para evitar que as vozes espinhosas em
sua cabeça cheguem perto demais. (Lia apud ANDERSON, 2012, p.
36).

O título do livro, Garotas de Vidro, [e no original, Wintergirls] tem relação


com esse desejo e essa tendência de se blindar da realidade que causa medo.
Ao mesmo tempo, podemos perceber e pensar que o transtorno alimentar
captura Lia e a afasta da vida, sem que ela deseje explicitamente por isso,
numa espécie de sedução-feitiço. Além de sentir frio constantemente por conta
dos déficits calóricos, Lia também cultiva o desejo de conseguir manter-se fria
diante dos acontecimentos, ou de estar protegida da vida (e de certa forma
soterrada) num caixão de vidro. Na contrapartida dessas imagens e desejos,
há as lembranças de Lia de quando era “uma garota de verdade”, no período
que antecede o desenvolvimento do quadro de anorexia.

O livro abre na manhã de segunda-feira com Lia recebendo a notícia de


que Cassie faleceu na madrugada de sábado para domingo. É sua madrasta,
Jennifer, quem lhe conta, durante o café da manhã. Lia percebe onde aquele
26

relato vai chegar e tenta, de alguma forma, não ouvir e se fechar, mas percebe
que já é tarde demais. Ainda assim tenta se blindar o máximo que consegue,
pois entende que a madrasta não vai perceber que ela "nem está ali" e que vai
achar que estão, de fato, se comunicando. Jennifer está preocupada, diz que
conversou com Chloe, a mãe de Lia, e as duas pensam ser uma boa ideia
antecipar sua consulta com a Dra. Parker, a psicóloga, para que possa falar
sobre isso, já que as duas eram melhores amigas. Lia mente e insiste em dizer
que está bem, pontuando que já nem eram mais tão amigas assim e que pode
deixar sua consulta para o dia normal.

Já nas primeiras cenas podemos perceber o incômodo de Lia em


relação à comida e ao ato de comer. Conforme Jennifer lhe dá a trágica notícia,
Lia fica como que fixada no que a madrasta está comendo e em como ela
come e como ajeita as comidas em potes, em como aquele parece ser um ato
sujo e bagunçado, em como a madrasta "entulha" (Lia apud ANDERSON,
2012, p. 6) as comidas na própria boca. Há uma espécie de nojo naquilo que
observa, que se mistura com a dor da notícia que recebe.
Depois de dar a notícia, Jennifer sai de casa com Emma e
acompanhamos Lia até seu quarto, onde pega o telefone que registrou as 33
chamadas não atendidas e algumas mensagens de voz de Cassie, todas da
madrugada de sábado para domingo, quando morreu. As primeiras notícias
sobre a morte da amiga deixam o acontecido envolto num certo mistério, com a
causa da morte ainda não divulgada, mas as pessoas que conviviam com
Cassie se antecipam e suspeitam de suicídio.
Entendemos, então, que Lia, que completou dezoito anos recentemente,
está morando na casa do pai com a madrasta e a filha dela, Emma, que tem 9
anos, há seis meses, desde que saiu de sua última internação depois de um
acidente de carro com Cassie. O acidente acontece porque Lia desmaia na
direção e, depois dela passar por alguns exames no hospital, seus pais são
informados que o corpo da jovem estava colapsando, e que os exames
realizados denunciavam que ela ficava sem comer por longos períodos de
tempo. Assim, é levada para a clínica New Seasons, para tratamento
especializado em transtornos alimentares, conforme rememora no trecho
abaixo:
27

Eu estava com a pressão sanguínea de uma cobra gelada. Meu


coração estava cansado. Meus pulmões queriam tirar uma soneca.
Eles colocaram uma agulha em mim, me inflaram como se eu fosse
um balão de festa junina, e me mandaram para um hospital com
enfermeiras de olhos de aço que anotaram cada número terrível. À
caneta. Fui descoberta. Minha mãe e meu pai chegaram correndo,
lado a lado para variar, felizes por eu não estar morta. Uma
enfermeira passou a ficha médica para minha mãe. Ela leu tudo e
explicou o desastre para o meu pai, e então eles brigaram; uma
discussão que mais parecia uma avalanche que se espalhou por
entre os lençóis esterilizados em direção ao corredor. Eu estava
estressada/sobrecarregada/maníaca/não - deprimida/não -
precisando de atenção/não - precisando de disciplina/precisando de
descanso/precisando/a culpa é sua/a culpa é sua/culpa/culpa. Eles
deixaram a marca de sua guerra nesse fiapo de garota.
Telefonemas foram feitos. Meus pais me forçaram a ir marchando
para o inferno na terra a clínica New Seasons… (Lia apud
ANDERSON, 2012, p. 12).

A partir desse evento se estabelece uma preocupação geral com Lia,


orientada pelo que os pais e madrasta puderam apreender de seu quadro de
anorexia. Eles se preocupam com o que e quanto ela deveria comer e quanto,
de fato, come; com como mexe com a comida em seu prato, e se seguram
para não repreender os chamados “comportamentos de distúrbio”. O mais
evidenciado no livro é o que se caracteriza por cortar a já pouca quantidade de
comida em vários pedacinhos menores, como que para controlar ainda mais a
quantidade de calorias ingeridas; se preocupam com o que ela está pensando
e com como lida com os pensamentos negativos e repetitivos; e com quanto
está pesando (Jennifer é responsável pela pesagem que depois percebemos
estar sendo burlada por Lia).

Notamos, no entanto, que todas essas preocupações se tornaram uma


espécie de tabu para a família, diante do qual eles receiam nomear o que vêem
e demonstrar preocupação e isso, de alguma forma, deflagrar uma nova crise.
Há um medo geral diante do estado de Lia e todos querem evitar a “culpa” e o
risco de fazê-la piorar. Assim, todos se preocupam, mas ninguém fala sobre o
problema ou se calam quando percebem que terão falas consideradas
problemáticas pela equipe médica, como a tentação de dizer que ela “tem que”
comer.

Há uma ansiedade dos números tanto no processo de desenvolvimento


da anorexia, em que Lia estabelece metas sucessivas em relação ao número
28

(cada vez menor) que quer ver na balança, quanto no movimento de aparentar
uma melhora, quando manipula os números que Jennifer anota toda vez que a
pesa. Notamos também que ela conta as calorias, de forma praticamente
automática, de tudo o que come e do que vê os outros comendo, e de tudo o
que gostaria de comer, mas não come porque quer ficar limpa por dentro, pois
"o vazio é bom. O vazio é forte" (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 11).

É em decorrência desse acidente de carro que as duas amigas se


distanciam. Cassie corta relações com Lia pois entendeu (a partir do que Lia
define como conversas com seus pais e seu médico) que a amiga era a origem
de todo o mal e culpada por todas as dificuldades que Cassie também
enfrentava em relação à alimentação e seu próprio corpo, tendo tido episódios
recorrentes de bulimia desde os 13 anos.
Lia escuta, então, as mensagens que Cassie deixou para ela na fatídica
madrugada de sábado para domingo. Ela sabe que não atendeu nenhuma
daquelas chamadas porque o distanciamento da amiga ainda doía muito e
imaginou que ela estivesse ligando bêbada, ou para “tirar uma” com sua cara.
Fica assombrada com a quantidade de ligações e atormentada com o fato de
ter achado que era brincadeira algo que, na verdade, se mostrou trágico. Nas
mensagens Cassie dizia que precisava conversar, pedia desculpas, dizia que
estava muito mal e ficando confusa, que precisava muito falar com Lia.

Desde o momento em que recebe a notícia, Lia começa a ter memórias


de bons momentos com Cassie (e estes são geralmente momentos em que
estavam comendo algo gostoso, e quase chega a sentir saudade, tristeza, dor
e carinho pela amiga). Ela bloqueia todas as vezes em que esse tipo de
lembrança vem à tona, e tenta se manter distante dos sentimentos em relação
à vida e à morte da amiga também. O foco no quanto decide comer, na
quantidade de calorias que queima com exercícios e em como se mantém
firme diante de tentações parece funcionar como uma barreira diante dos
afetos e do próprio processo do luto.

Assim, Lia está em constante sacrifício, pois sente fome e deseja


comidas gostosas; como uma espécie de ferramenta contra tal desejo, a
personagem imagina logo em seguida que aquilo que desejou comer está, na
29

realidade, estragado e sujo, mofado, ou que a pessoa comendo aquilo que ela
também gostaria de comer vai passar mal, pois aquilo é ruim. Há uma espécie
de deslocamento da atenção, como se ao controlar tudo o que come e se
sacrificar, não comendo o que quer, Lia nem se afetasse pelos acontecidos em
sua própria vida.

A adrenalina entra em ação com tudo quando você está morrendo de


fome. É isso que ninguém entende. Exceto por sentir frio e fome, na
maior parte do tempo sinto que sou capaz de fazer qualquer coisa.
Isso me dá poderes super-humanos de olfato e audição. Consigo
enxergar o que as pessoas estão pensando, e estou sempre à frente
deles. Faço lição de casa o suficiente para ficar fora do radar. Toda
noite eu subo mil degraus [na máquina de step que fica no porão] até
o céu para ficar exausta. (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 184)

Um dia depois de dar a notícia da morte de Cassie, Jennifer realiza a


pesagem semanal em Lia, para acompanhar e registrar seu peso no caderno e
enviar os números ao médico. Assim que ela retornou da internação, a
pesagem era diária e depois começou a se espaçar: “a pesagem de todo dia
acabou virando a pesagem de dia sim, dia não, e então a pesagem de toda
terça porque ninguém queria fazer aquilo para começo de conversa” (Lia apud
ANDERSON, 2012, p. 48). O que a madrasta não sabe é que Lia costurou
moedas na parte de dentro de seu roupão esfarrapado (que usa em todas as
pesagens), para que pudesse ir emagrecendo ao mesmo tempo em que os
adultos pensem que não têm com quem se preocupar, uma vez que o número
que a balança mostra ainda está dentro do limite estipulado pela equipe
médica. Lia considera um absurdo toda essa movimentação e a ideia de que
um tratamento seja necessário: “Quem quer se recuperar? Levei anos para
ficar magra daquele jeito. Eu não estava doente; eu era forte” (Lia apud
ANDERSON, 2012, p. 31).

Em seu quarto, Lia tem uma outra balança escondida (que é muito mais
precisa), a partir da qual consegue acompanhar seu progresso diante de seus
três objetivos:

Abro os olhos. Quarenta e cinco quilos. Estou oficialmente de pé


sobre o Objetivo Número Um. Há! (...) Com 45 quilos meus
pensamentos estão mais claros, eu pareço melhor, me sinto mais
forte. Quando eu atingir o próximo objetivo, vai ser tudo isso e mais.
O Objetivo Número Dois é 43 quilos, o ponto perfeito de equilíbrio.
30

Com 43 quilos, vou ser pura. (...) Com 40 quilos, vou planar. Esse é o
Objetivo Número Três. (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 54)

Tendo alcançado seu primeiro objetivo e se sentindo forte e com a


mente limpa, Lia é surpreendida com um recado na secretária eletrônica. Um
rapaz, do Motel Gateway, deixa um recado procurando por ela, dizendo que
tem um recado de Cassie – e a máquina corta sua mensagem. Com isso, Lia
passa esses primeiros dias de seu luto tentando decidir como vai ao velório e
ao enterro, já que seus pais não acham uma boa ideia que ela vá, e inicia uma
espécie de jornada investigativa sobre a morte de Cassie.

Lia vai até o motel onde a amiga morreu e conhece Elijah, que foi a
pessoa que encontrou o corpo de Cassie e que deixou o recado em sua
secretária eletrônica. O que também acontece e fortalece esse movimento de
investigação é que ela começou a ver o fantasma da amiga, que aparece à
noite em seu quarto ou enquanto ela está se pesando com a "balança
verdadeira". Nessas aparições, Cassie parece querer desencorajar Lia de
seguir vivendo e convencê-la a desistir, como se quisesse que a amiga fosse
lhe fazer companhia, encorajando Lia a seguir nesse caminho em busca de
uma magreza cada vez mais acentuada. Percebemos que o desejo de Lia de ir
ao velório e ao enterro é também fortalecido pelo desejo de ver o corpo da
amiga sendo enterrado para que tenha certeza de que ela estará plantada na
terra, e não esperando por ela em seu quarto escuro.

O fantasma de Cassie não desiste, mesmo depois do velório e do


enterro, e é acompanhado de percepções sensoriais: "o cheiro de gengibre e
cravos-da-índia e açúcar queimado (...), o cheiro do sabonete líquido e do
xampu e do perfume dela" (Lia, apud ANDERSON, 2012, p. 45), assim como
as lembranças de Lia de antes do desenvolvimento da anorexia também são
permeadas por memórias afetivas positivas em relação à comida:

…Quando eu era uma garota de verdade, com um pai, uma mãe e


uma casa, e sem lâminas brilhantes, o café da manhã era granola
com morangos frescos, que eu sempre comia lendo um livro apoiado
na fruteira. Na casa de Cassie, a gente comia waffles com uma calda
fina que vinha das árvores de bordo de verdade, e não aquela calda
de xarope de milho falsa, e lia os quadrinhos do jornal…
Não. Não posso. Não vou mais pensar nisso. Não vou olhar.
Não vou poluir meu corpo com Blueberryqualquercoisa, nem muffins,
31

nem cacos de torrada que fazem barulho quando passo manteiga


sobre eles. O lixo e os erros de ontem já passaram por mim. Sou
brilhante e cor-de-rosa por dentro, limpa. (Lia apud ANDERSON,
2012, p. 11).

Durante todo o desenrolar da história a imagem (o fantasma) de Cassie


vem fortemente acompanhado de sensações corporais, sendo o olfato a mais
forte delas. O cheiro das comidas que comiam juntas, antes que isso se
tornasse um problema, se mistura ao cheiro e aos perfumes da amiga. Ao
mesmo tempo, o mesmo fantasma vai personificando o desejo de morte de Lia,
e também o medo que acompanha esse desejo. Ali estava, visto como algo
fora dela, todo o incentivo e impulso para colocar um fim ao sofrimento, para
calar aquilo que nunca se acalma do lado de dentro, para chegar num estado
de perfeição, finalmente. Lia segue por semanas nesse perigoso flerte, se
cortando superficialmente nos quadris enquanto vai ao cinema no período em
que deveria estar na escola, comendo o mínimo possível e passando
madrugadas no porão de sua casa, fazendo exercícios de alta intensidade.

Lia também preenche suas noites visitando blogs na internet onde


outras garotas partilham suas dores e conquistas, dicas para comer menos ou
para se purgar, em casos de bulimia, e palavras de coragem para que tivessem
força: “preciso de uma amiga para trocar mensagens no celular amanhã,
quando estiver em jejum. Por favor, me ajudem!”, “Boa sorte hoje, lindinhas,
vocês são fortes e vão fazer de hoje um dia incrível”, “Se eu comer isso vou ter
que correr para me livrar de tudo, mas estou cansada demais para correr. já se
sentiu assim?” (ANDERSON, 2012, p. 171).

As semanas seguem e nos trazem uma Lia que entra em conflito com
seu processo de luto, pois ela quer entender o que aconteceu com a amiga, o
que Cassie sentiu naquela noite e se sofreu, mas já é machucada o suficiente
para saber que perguntar "por que?" é perguntar errado. Lia sabe que "por que
não?" é a pergunta mais profunda e mais difícil quando nos deparamos com a
ideia de abrir mão da própria vida - ou com o flerte com a morte, mas ela ainda
não consegue acreditar que a amiga tenha ficado sem respostas antes que ela.
De alguma forma, a competitividade entre as duas está presente também
quando o assunto é deixar de viver.
32

Ela se questiona o tempo todo sobre o que a amiga pode ter sentido,
num misto de curiosidade de quem também deseja a morte, mas tem medo de
perder o controle. As duas eram "irmãs secretas" (Lia apud ANDERSON, 2012,
p. 12) que partilhavam angústias e crises, conseguiam se ouvir e conseguiam
falar sobre como seus pais não entendiam nada e sobre como as batalhas que
enfrentavam com seus corpos e com as comidas faziam delas mais fortes.
Dentro de Lia havia um turbilhão:

Por quê? Você quer saber por quê? Entre em uma cama de
bronzeamento artificial e fique fritando lá por dois ou três dias. Depois
que a sua pele está coberta de bolhas e começa a descascar, role em
sal grosso, e então coloque uma peça única que cubra o corpo todo,
trançada com fibra de vidro e arame farpado. Por cima de tudo isso
vão suas roupas normais, contanto que sejam justas.
Fume pólvora e vá para a escola para pular por dentro de aros, pedir
e fingir de morta quando mandam. Escute os sussurros que se
enrolam na sua cabeça à noite, te chamando de feia e gorda e vaca e
biscate e o pior de tudo: “uma decepção”. Vomite e passe fome e se
corte e beba porque você não quer sentir nada disso. Vomite e passe
fome e se corte e beba porque você precisa de um anestésico, e
funciona. Por um tempo. Mas então o anestésico vira veneno e a
essas alturas é tarde demais porque você está seguindo essa estrada
diretamente para a sua alma. Você está apodrecendo e não consegue
parar. (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 157).

Nesse ponto da narrativa, Lia já conhece o resultado da autópsia


realizada em Cassie; é sua mãe, que é médica, quem explica para ela, num
momento em que negociam que, caso Lia jantasse, a mãe falaria sobre os
detalhes da morte da amiga. Há bastante medo por parte de Chloe, a mãe de
Lia, de falar sobre a morte de Cassie em detalhes e engatilhar algum tipo de
crise na filha.

Assim, ficamos sabendo que Cassie morreu em decorrência de um


rompimento do esôfago, já exausto pelas práticas de purgação; trata-se de
uma condição chamada Síndrome de Boerhaave, que se caracteriza pela
ruptura espontânea do esôfago, e a mãe de Lia explica que tal síndrome é mais
comumente encontrada em pacientes alcoolistas, uma vez que a prática
frequente de vômitos está entre as possíveis causas. O corpo de Cassie
também apresentava problemas no estômago e no fígado e no exame não
constava o uso de substâncias ilícitas, apenas alta ingestão de álcool:
33

A Cassandra teve uma briga terrível com os pais dela na quinta,


durante o jantar de Ação de Graças. Ela se levantou para vomitar no
meio da refeição. Cindy [sua mãe] disse que até o Jerry [seu pai]
pôde perceber que ela tinha retomado os velhos hábitos. Eles
disseram que ela precisava ser internada. Ela se recusou. Já tinha 19
anos e eles não podiam forçá-la. Jerry perdeu a paciência e disse que
não pagaria a universidade até que ela ficasse saudável de novo.
Cassie saiu de casa. Ela ligou para Cindy dizendo que voltaria no
sábado, e que estava na casa de uma amiga. Ela estava no motel.
Ela bebeu, comeu muito e vomitou por dois dias. (Chloe apud
ANDERSON, 2012, p. 155).

Lia segue enganando Jennifer nas pesagens, apesar de ter precisado


fazer uma alteração na balança, para que de fato acusasse que ela havia
perdido peso, pois sua aparência estava começando a gerar suspeitas na
madrasta, em sua mãe e em seu pai. Sua condição chega a um momento
muito crítico quando já está muito magra, naquilo que os médicos de sua
primeira internação nomearam de “perigolândia” (um vocabulário que todos da
família adotaram), que é quando Lia está muito próxima ou abaixo dos 40 kg.
Nesse ponto, Lia começa a duvidar daquilo que supõe ser maravilhoso nessa
jornada em busca dos três objetivos e se questiona: “Do que é que eu tenho
medo? Por que não consigo nem querer ficar melhor? Quando sou eu e como
sei o que e quem eu seria se fizesse o que eles querem?” (Lia apud
ANDERSON, 2012, p. 208), ao mesmo tempo que reconhece para si mesma
que está conseguindo emagrecer, atingindo os objetivos secretos que ela
mesma estipulou e consegue perceber que

eu poderia dizer que estou animada, mas seria mentira. O número


não importa. Se eu chegasse a 32, iria querer 29. Se eu pesasse 4,5
quilos, não ficaria feliz até chegar aos 2,25. O único número que seria
suficiente é 0. Zero quilos, zero vida, tamanho zero, zero duplo, zero
e pronto. Zerado é sinônimo de estar pronto para tudo. Agora eu
entendo.” (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 213).

Num momento de profunda angústia, em que está vendo e ouvindo o


fantasma de Cassie, Lia faz cortes muito profundos em seu corpo usando uma
faca de prata da avó materna, no banheiro da casa de seu pai; um corte vai do
pescoço até entre os seios e os outros dois ficam cada um de um lado, sob as
costelas. Lia desmaia e é Emma quem a encontra caída no chão, e assim ela é
levada para o hospital mais uma vez.
34

Lia retorna para casa da mãe dois dias antes do Natal, pois já está num
quadro estável e também porque a clínica de tratamento de transtornos
alimentares, a New Seasons, onde ela já ficou internada, só terá vaga na
próxima semana. Nesse meio tempo vai a uma consulta com sua psicóloga e
consegue contar tudo - o que pensa de si, as vozes em sua cabeça que a
humilham e proíbem de comer, as interações que tem com o fantasma Cassie
e o medo de morrer, pois recentemente vem percebendo que quer viver, mas a
amiga parece não deixar.

A Dra. Parker aponta que ela fez muitos avanços ali, ao conseguir
relatar com honestidade o que vem passando, e sugere que a estadia numa
clínica psiquiátrica seria um caminho de tratamento mais adequado para este
momento. A Dra. Parker explica a Lia que ela criou uma realidade metafórica
paralela para lidar com os últimos acontecimentos e, conforme os delírios e
alucinações estiverem sob controle, ela conseguirá lidar melhor com as
questões de corpo e comida.

Eu acredito que você criou um universo metafórico no qual você pode


expressar seus maiores medos. Por um lado, eu acredito em
fantasmas, mas eles são criados por nós. Nós nos assombramos, e
às vezes somos tão bons nisso que perdemos a noção da realidade.
(Dra. Parker apud ANDERSON, 2012, p. 243).

Lia se apavora com a ideia de ficar presa no que considera um hospício


e não espera para que sua madrasta venha lhe buscar quando sai da sessão.
Ela se sente traída pois finalmente consegue contar tudo o que vem
acontecendo e considera que Dra. Parker simplesmente a considera louca e
que o melhor a fazer é jogá-la num lugar para loucos e esquecê-la por lá.

A cidade está sob uma forte tempestade de neve e ela pede um táxi e
vai ao motel onde Cassie morreu, pedindo refúgio a Elijah, que planeja sair
viajando pelo país dali a poucos dias; Lia quer que ele a leve junto na viagem.
Em outras ocasiões, Elijah já havia lhe contado mais sobre Cassie, dizendo
que o recado era sobre Lia ter ganhado algum tipo de aposta. Elijah e Lia se
encontraram algumas vezes e Lia sempre levava comida para ele; ela queria
saber mais sobre tudo o que Cassie havia dito e também ficava em sua
dinâmica de observar alguém comendo e se sacrificar ao não se entregar
35

àquele desejo. Em contrapartida, esses encontros parecem ecoar de forma


saudável em Lia, fazendo-a sentir-se bem e segura, mesmo estando diante de
um estranho.
Lia rememora, então, que há alguns anos as duas amigas haviam feito
um pacto de ano novo de que seriam as garotas mais magras, mas podemos
perceber que cada uma delas sustentava uma aposta em particular, de quem
seria a mais magra também entre as duas.

Quando Lia chega ao hotel depois da sessão com a Dra. Parker, Elijah
se assusta com seu estado físico quando ela mostra os pontos que levou nos
cortes e o quão magra está debaixo de todas as roupas largas que usa, e se
nega a levá-la com ele na viagem pois considera que ela está correndo riscos e
que isso poderia se tornar um problema para ele.

Enquanto ela dorme (dopada com calmantes, que tomou para tentar
relaxar), ele foge com o dinheiro e o cartão de crédito dela. Conforme acorda e
percebe estar abandonada no motel vazio, Lia entende que, se quisesse
mesmo, poderia morrer ali, totalmente sozinha, exatamente como a amiga. Ela
fica nesse sono induzido por remédios por dois dias.

Ainda cambaleante sob o efeito dos remédios, e muito fraca por não se
alimentar desde que chegou ali, Lia vaga pelo motel e chega no quarto em que
Cassie morreu; vê o fantasma da amiga sentado na cama. As duas têm uma
conversa bastante angustiante, na qual Cassie tenta acalmá-la dizendo que já
está acontecendo, que ela estará morta em breve e tudo será bom.

Lia se dá conta de que pode escolher entre viver e morrer, justamente


por ainda estar viva, e reconhece que tem boas memórias com a amiga,
começando, junto com ela, a falar daquilo de que Cassie tem saudades e
também de como Lia sente saudade da amiga. Conforme vão nomeando essas
memórias, o fantasma de Cassie vai se tornando cada vez mais transparente; é
como se naquele momento as duas reconhecessem a morte da Cassie, e
começassem a poder aceitar e elaborar esse fato. As duas se desculpam - uma
por não ter atendido o celular, a outra por não ter ligado pedindo ajuda antes.
36

Lia sai do quarto e chega ao escritório, conseguindo ligar para sua mãe
dizendo que está "finalmente viva, mas que ela deveria vir rápido" (Lia apud
ANDERSON, 2012, p. 265). Lia é socorrida e passa dez dias no hospital
dormindo, mas sem sonhar. Depois, é transferida pela terceira vez para New
Seasons, e nesse momento, pela primeira vez em sua terceira internação ali,
Lia não tenta sair de lá o mais rápido possível, como se fosse uma maratona,
ficando internada até meados de abril, quando iniciam um plano de transição
"para que possa passar da Lia do hospital para a Lia de verdade" (Lia apud
ANDERSON, 2012, p. 268). Pela primeira vez Lia encara sua condição como
algo que precisava de e merecia cuidados, e não mais como uma habilidade
refinada de ser poderosa e de deter o controle, que é como se sentia quando
se comprometia a ser a garota mais magra.

Comer era difícil. Respirar era difícil. Viver era o mais difícil. Eu queria
engolir as sementes amargas do esquecimento. Cassie também. Nós
nos apoiamos uma na outra, perdidas no escuro e vagando em
círculos sem fim. Ela ficou cansada demais e dormiu. De alguma
maneira, eu me arrastei para longe do escuro e pedi ajuda. (Lia apud
ANDERSON, 2012, p. 269).

Nesse ponto da trajetória, Lia consegue olhar com honestidade para a


dinâmica de seu comportamento alimentar e reconhece que as “vozes
malvadas” (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 266) estão sempre por perto,
tentando fazê-la sentir-se mal, e que os números aparecem “de repente”
quando ela está mastigando algo. Seu ritmo desacelera conforme percebe que
este não será um processo rápido:

Minha mãe e meu pai e a Jennifer vêm me visitar. A gente conversa e


conversa até as represas arrebentarem e as lágrimas fluírem com um
pouco de sangue, porque estamos todos com raiva. (...) Nós nos
revezamos ao cavar entre anos e anos de sujeira. Às vezes acho que
minha pele vai pegar fogo. Estou brava com eles. Estou brava com a
gente. Estou brava porque deixei meu cérebro passar fome e porque
fiquei tremendo na cama em vez de dançar ou ler poesia ou tomar
sorvete ou beijar um garoto ou talvez uma garota com lábios suaves e
mãos fortes. Estou aprendendo a ficar com raiva, triste e solitária e
alegre e animada e com medo e feliz. Estou aprendendo a provar
tudo. (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 267).

Assim, Lia finaliza sua trajetória contada no livro descobrindo-se viva e


descobrindo ser possível viver. Conforme veremos adiante, podemos dizer que
37

Lia passa a viver sem que continue sendo necessário o contrabando de


sentidos e limites (LE BRETON, 2012) a partir de experiências que a
colocavam tão próxima da morte.

As trajetórias em relação:

I - As amigas entre si

Lia e Cassie iniciam sua amizade quando Cassie se muda com os pais
para a casa em frente à que a família de Lia morava; nesse momento as duas
garotas têm entre nove e dez anos. No desenrolar da história podemos notar
como a preocupação com o que se come, o medo do corpo e do engordar vão
gradualmente se tornando parte do cotidiano das meninas conforme vão
adentrando a adolescência. Diferente de Lia, Cassie era uma garota bastante
expansiva e extrovertida, e se envolvia na comunidade escolar, onde
participava das equipes de esportes, clubes de debate e do grupo de teatro
(ANDERSON, 2012).

No verão em que as duas completam 13 anos, Cassie retorna do


acampamento do grupo de teatro tendo descoberto várias ferramentas para
controlar o próprio peso: “ela me disse que todas as garotas no acampamento
da turma de teatro dela também vomitavam. Quando perguntei por que, ela
disse que era porque todas elas eram gordas-balofas-baleias e tinham que
fazer alguma coisa” (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 144). Assim, Lia é
apresentada a essa “necessidade” que vem com gosto de novidade, e que
inclui remédios para controle de ansiedade, laxantes e a prática recorrente de
vômitos, imediatamente após as refeições. As duas amigas ficam obcecadas
com a nova temática e se tornam aliadas diante dessa longa batalha contra os
números que a balança denuncia. Silva (2004) aponta que existe

Uma postura ideológica que se difundiu pela internet nos últimos anos
e que, de maneira geral, questiona o caráter patológico da anorexia e
da bulimia, considerando-as como estilos de vida que podem ser
voluntariamente adotados. O argumento principal dessa postura é o
de que a magreza é o elemento essencial de uma boa aparência
física e, que por sua vez, a boa aparência física é determinante na
obtenção da felicidade e do sucesso. Assim, valeria à pena procurar a
magreza a qualquer custo, mesmo colocando a saúde em risco. (...)
38

[e] os comportamentos que os profissionais de saúde classificam


como patológicos e sintomáticos de um transtorno alimentar são
apenas medidas extremas adotadas para a obtenção de um fim
maior. (SILVA, 2004, p. 12).

Assim, podemos perceber que a postura ideológica identificada e


apontada pela autora nos grupos e blogs de apoio aos transtornos alimentares
existentes na internet, também compõe uma realidade fora do mundo virtual.
As práticas de cuidado e controle com o peso e com a ingestão de calorias se
apresentam como uma escolha, ainda que com a pressão de ser uma escolha
necessária, a partir de um entendimento de que não se pode ser gorda.

Silva (2004) pontua que nos diversos sites e blogs pró-anorexia/bulimia


o estímulo mais conhecido para que as pessoas sigam com seus propósitos de
emagrecer cada vez mais, ou de parecer cada vez mais magras, é a “Carta da
Ana”. Ao mesmo tempo em que Lia recorre a esses blogs para se inspirar e
perceber que não está sozinha em sua busca por atingir seus três objetivos, o
fantasma de Cassie parece também começar a representar “a voz da
anorexia”, conforme tenta se misturar a Lia, orientar seus pensamentos e
estimulá-la a chegar ao fim daquela busca.
A anorexia, na carta, é como que personificada numa mulher chamada
Ana (enquanto no que diz respeito à bulimia, temos a carta da Mia). A carta
tem um tom incentivador e, ao mesmo tempo, ameaçador; Ana se posiciona
dizendo que sabe que quem a lê conseguirá atingir seus objetivos, ao mesmo
tempo que humilha quem tem recaídas, e exige um maior comprometimento, a
fim de “se limpar” depois de ter cedido à comida. (SILVA, 2004, p. 33).

Diferentemente de Cassie, Lia nunca conseguia forçar vômitos e, em


alguns momentos, se enfurece por isso, porque sente fome e se imagina
comendo com frequência, mas sabe que não conseguiria resolver esse
problema no depois, então precisava se controlar para nem chegar à comida;
em contrapartida, começa a entender que está ganhando essa batalha e que é
mais forte do que Cassie, pois a partir de seus métodos (que se constituem,
basicamente, numa ingestão mínima de calorias diárias, sendo o melhor
cenário quando ingere “800 calorias por dia, de preferência no máximo 500”
(Lia apud ANDERSON, 2012, p. 103), e a prática diária de exercícios de alta
39

intensidade) Lia consegue se manter mais magra do que a amiga e por


maiores períodos de tempo.

Silva (2004) explica que mesmo nos grupos de apoio à anorexia e à


bulimia as práticas de purgação não são bem vistas, e pode-se notar que existe
uma hierarquia que valoriza mais a anorexia do que a bulimia, pois a primeira
tem mais sucesso no que diz respeito a evitar a comida.

A obsessão com o corpo e com a magreza vai se tornando uma fatia


cada vez maior da amizade das duas garotas conforme se apoiam
mutuamente, trocam dicas e traçam metas em relação aos objetivos que
desejam atingir. As duas juntas fazem um pacto de sangue, definindo que
seriam as mais magras juntas, mas notamos que cada uma toma para si
aquele pacto como mais um desafio, num desejo de se tornar mais magra do
que a outra e assim comprovar quem é que tem mais poder, quem é mais leve,
mais pura, mais limpa (ANDERSON, 2012).

Silva (2011) fala sobre o perigo existente na convivência de pacientes


com transtornos alimentares, e em como pode haver uma piora no quadro
dessas pessoas, ao observarem aqueles que estão em condições mais graves.
Aqui existe tanto o espanto diante do quão perigoso pode ser um transtorno
alimentar, levando a pessoa para cada vez mais longe da vida, como também
uma admiração que inveja aquela pessoa que conseguiu ir mais longe,
mantendo-se mais fiel e disciplinada em relação aos ideais de magreza e
poder.

A partir do conhecimento do pacto feito entre as duas, é possível


reconhecer o comportamento competitivo e que busca poder por parte de Lia
no momento em que ela se lembra de quando Cassie lhe pediu ajuda. Lia
rememora a amiga dizendo que precisava parar com aquilo, principalmente
porque já não percebia efeitos nos atos de purgação e, ao invés de emagrecer,
só se sentia mais fraca e não estava mais conseguindo jogar no time como
gostaria, assim como a professora de teatro dizia que ela não aparentava
energia suficiente para os principais papéis das peças: “Eu dei o maior apoio.
(...) E sabotei cada passo” (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 98).
40

Nesses momentos em que a amiga lhe pedia ajuda para parar com os
comportamentos bulímicos, Lia tecia comentários sobre o próprio corpo, sobre
como estava gorda (mesmo em momentos em que não se sentia assim ou que
sabia que estava mais magra do que Cassie) ou sobre como aguentava ficar
várias horas sem comer e depois fazer bastante exercício físico. Lia se lembra
de acompanhar Cassie nos momentos de compulsão e de, depois,
acompanhá-la até o banheiro, para que pudesse se libertar daquilo tudo,
confessando que “nós nos transformamos nas garotas geladas e, quando ela
tentou ir embora, eu a puxei de volta para a neve porque estava com medo de
ficar sozinha”. (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 99).

As amigas também partilhavam a angústia de nunca se sentirem vistas


pelos pais, ao mesmo tempo em que duelavam com aquilo que supunham ser
a expectativa e desejo deles em relação à suas vidas e aquilo que de fato
desejavam - ainda que não soubessem nomear.

II - As amigas e os pais

As relações das personagens com os pais ficam mais intensas e


turbulentas conforme elas vão se tornando adolescentes. As duas partilham do
sentimento de terem pais que não as enxergam nem mesmo quando estão
bem diante deles (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 15).

Depois do acidente de carro rememorado no início do livro, sabemos


que as duas garotas se afastam. Seis meses separam o acidente da morte de
Cassie, e Lia conta que ficou tentando contato com a amiga logo quando saiu
do hospital pela primeira vez, mas não conseguia. Alguns dias depois, Cassie
retorna a ligação

Ela me pediu para escutar e disse que aquilo não ia demorar.


Eu era a raiz do mal, Cassie disse. Uma influência negativa, uma
sombra tóxica. Enquanto eu estava internada, os pais dela tinham-na
arrastado para um médico que fez uma lavagem cerebral nela e a fez
engolir comprimidos e palavras vazias. Ela precisava tocar a vida em
frente, redefinir seus limites, ela disse. Por minha causa ela matava
aula e repetiu de ano em francês, eu era responsável por tudo que
era ruim e perigoso. Errado. Errado. Errado. Por minha causa, ela não
fugiu da escola no primeiro ano do ensino médio. Por minha causa,
ela não engoliu um vidro inteiro de remédio para dormir quando o
41

namorado a traiu. Eu a ouvi por horas quando os pais dela berravam


e tentavam enfiar a garota em uma carapaça de manequim que não
servia para ela. Entendi o que provocava os terremotos dela, pelo
menos a maioria. Eu sabia como machucava ser filha de pessoas que
não conseguem te enxergar, nem se você estiver na frente deles,
pisando em seus pés. (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 15)

É interessante notar que, ainda que se percebam em lugares


semelhantes, diante de pais que não as enxergam como realmente se sentem
e são, Lia e Cassie trilham caminhos bastante distintos ao lidar com essa
frustração - ainda que ambos estejam dentro do espectro dos fenômenos
chamados transtornos alimentares.

Lia fala de como percebe tê-los decepcionado, e é como se ocupasse


agora um lugar de quem desistiu de fazer o que gostariam que ela fizesse;
desistiu de tudo, adoraria se proteger e se afastar da vida e apenas encara um
único objetivo: ser a mais magra das garotas, custasse o que fosse.

Ela age como se tivesse entendido e “aceitado” que jamais seria aquela
garota que os pais desejavam que fosse, e seu duelo com a comida e a fome
se torna mais um duelo diante de algo que é exigido dela: o corpo dói e padece
de fome, e ela se sente mais forte cada vez que não satisfaz essas sujas
necessidades. A guerra contra a comida se torna um importante lugar onde Lia
consegue ativamente dizer não e se afirma a partir de suas próprias vontades,
ainda que esse seja um comportamento que a coloca em risco. A jovem não é
e não quer ser o que esperam dela e estende esse “não” a tudo - até mesmo à
própria vida, afinal “‘Comida é vida’. E esse é o problema.” (Lia apud
ANDERSON, 2012, p. 267) e assim pune seu corpo nas tentativas de, em meio
a tantos nãos, construir e entender quem se é. Le Breton comenta que

O adolescente sente-se enredado em um corpo que não é seu,


mesmo que pertença a ele, preso em um corpo rebelde que fracassa
incorporar como o seu próprio. Ele se sente errado, desajeitado,
ridículo, feio, sente-se outro, sem conseguir esclarecer quem é. Em
completa metamorfose, não reconhece mais o que fora outrora, na
relativa euforia da infância, quando seus pais ainda tinham resposta
para tudo e quando ele não tinha nenhuma dúvida assustadora para
enfrentar. Ele ainda não se reconhece em seu rosto de homem ou de
mulher, e esse momento de passagem é lacerado por dúvidas,
desconforto, assombrado pelo medo do jovem de nunca se encontrar,
nunca preencher de sentido o abismo, entre ele e ele mesmo, que se
abriu bruscamente. Esse corpo-despojo do adolescente é o lugar
onde se cristalizam todos os males. Ataques ao corpo são antes de
42

tudo um ataque contra os significados que lhes são ine­rentes. (LE


BRETON, 2010, p. 26).

Cassie se vê numa batalha um tanto diferente, como se o tempo todo


ainda estivesse tentando, como se estivesse o tempo todo tentando caber
naquilo que supõe ser o ideal que paira sobre ela e que orienta a vida que seus
pais desejam que ela viva. Tanto no número de atividades escolares que
realiza, como na maneira expansiva como se envolve com as pessoas, ou em
como se apresenta ao mundo, percebemos uma adolescente que deseja caber
em qualquer e todo lugar, sendo tudo aquilo que se pode esperar e demandar
dela. Ela também sofre por não ser a boneca de porcelana que os pais
esperavam que fosse, mas é como se continuasse tentando, indo e voltando,
comendo e vomitando, aceitando a demanda e a comida, e depois negando,
colocando tudo aquilo para fora.

Tanto os pais e a madrasta de Lia quanto os pais de Cassie enxergam a


amizade das duas como problemática, como se uma ficasse trazendo mais
problemas para a outra. As duas mães se mostram ambíguas quando
começam a notar e a reconhecer que há um problema, e acabam trazendo os
sintomas de transtorno alimentar para um lugar mais trivial, como algo comum
que acontece com todas as garotas nessa idade. É apenas com o desenrolar
dos anos que as duas famílias conseguem apreender que aquilo é sério e
perigoso, e se vêem, muitas vezes, impotentes diante dos problemas das
filhas, principalmente depois que completam dezoito anos.
Nesse sentido, Le Breton (2012) aponta que os sofrimentos e angústias
dos jovens, vividos de forma muito mais intensa que os dos adultos, que já têm
mais experiências capazes de relativizar o que se encara, são com frequência
definidos como fútil ou um drama exagerado, em função de um
adultocentrismo, que falha numa melhor compreensão das dores da juventude.

É interessante notar que, depois da morte de Cassie, Cindy, a mãe dela,


tenta se aproximar de Lia, pedindo para conversar, pois entende que somente
Lia poderia ajudá-la a entender o que aconteceu, numa busca por motivos para
a morte da filha, pois entende que a filha “tinha tudo: uma família que a amava,
43

amigos, atividades” (Chloe apud ANDERSON, 2012, p. 157) e jogou tudo isso
fora.

Lia fica furiosa com essas tentativas de aproximação, e seus pais


também não se sentem à vontade com isso, pois temem que a filha fique muito
mal diante dessa conversa. Os questionamentos de Cindy e sua postura depois
da morte da filha ecoam com as questões trabalhadas por Silva (2011), quando
pontua - a partir das histórias de vida que compõe parte de sua pesquisa - o
grande impacto que parece existir a partir dos discursos das mães em relação
às pacientes com transtornos alimentares e em como se mantém ambígua
essa relação, com a proposta biomédica hegemônica enfatizando a importância
de um afastamento da mãe, para que os filhos pudessem se desenvolver de
maneira mais autônoma, ainda que convocando-as a participar das refeições e
a delatar comportamentos de distúrbio à equipe médica responsável.

III - As amigas e as equipes de cuidado

A Dra. Parker é nomeada logo nas primeiras páginas da história como


psicóloga de Lia, ainda que nosso primeiro encontro com ela aconteça apenas
dias depois. Podemos notar que a família de Lia considera importante o
ambiente que ela representa, onde Lia pode falar sobre o que acontece e se
entender melhor. Tanto Jennifer quanto Chloe, mãe de Lia, insistem que é uma
boa ideia que ela faça mais sessões logo após a morte da amiga. Lia tenta
desviar disso, alegando não ter necessidade ou, quando se vê obrigada a ir na
primeira sessão depois da morte de Cassie, fala o mínimo possível, pois
demonstra não gostar dos efeitos práticos da psicoterapia.
Lia se ressente por ter sido sincera com Dra. Parker logo que a
conheceu, depois de sua primeira internação e reclama que depois daquilo
tudo ficou mais confuso e bagunçado. Dra. Parker é especialista em
adolescentes, e foi uma recomendação feita pelos médicos da clínica New
Seasons.

Abri minha boca durante as primeiras visitas e dei a ela uma chave
para abrir minha cabeça. Que erro gigante. Ela trouxe sua lanterna e
um capacete e um monte de corda para se aventurar por minhas
44

cavernas. Ela colocou minas terrestres no meu crânio que detonaram


semanas depois. (...) Ela plantou uma armadilha explosiva em mim e
assim, toda vez que eu pensava em alguma coisa (...), a
pergunta-irritante-do-inferno aparecia: ‘Por que você acha isso, Lia?’
(...) Nada que eu dissesse a deixava brava. Eu não conseguia nem
fazê-la piscar. Ela só me pedia para ficar naquele sentimento e
continuar falando. Então eu calei a boca. (Lia apud ANDERSON,
2012, pp.113-114).

Durante suas duas primeiras estadias em New Seasons, Lia


compreendeu rapidamente o que a equipe médica da clínica queria ouvir dela,
e quais comportamentos estavam buscando observar para que pudessem dizer
que ela estava melhorando e já se encontrava apta a ir pra casa; assim,
quando relembra os momentos em que esteve internada, podemos
acompanhar aquilo que sentia e pensava e guardava pra si, e o que dizia aos
médicos e terapeutas, recebendo em resposta balanços afirmativos de cabeça
e sorrisos conforme estruturava uma nova narrativa sobre si - embora não
fosse aquilo o que sentia e pensava. São relatos cindidos, onde enxergamos
Lia fazendo de tudo para sair da clínica, que nomeia como “o inferno na terra”
(Lia apud ANDERSON, 2012, p. 13), e secretamente seguindo sua própria
batalha, já pensando em novas metas e maneiras de perder o peso que
ganhava enquanto estava internada e se via obrigada a comer e a manter-se
hidratada.

É apenas em sua última internação, depois de dialogar com o fantasma


de Cassie no quarto em que ela morreu no motel e colapsar depois de ligar
para a mãe dizendo que precisava de ajuda, que Lia consegue enxergar na
equipe médica algum tipo de acolhimento, e permite que o tratamento aconteça
de forma mais honesta e integral. Lia continua não concordando com o que os
médicos dizem, e neste momento de sua história consegue devolver perguntas
a eles, consegue ela mesma falar da própria situação:

Dessa vez não minto para as enfermeiras. Não discuto com elas, nem
jogo nada, nem grito. Discuto com os médicos porque não acredito na
marca da mágica deles, não cem por cento, e é algo sobre o qual
preciso falar. Eles escutam. Fazem anotações. Sugerem que eu anote
o que acho de tudo isso. Pelo menos eles não acham que sou louca
porque vejo fantasmas. (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 268).

No último diálogo que podemos acompanhar entre ela e a Dra. Parker,


45

quando esta vai visitá-la depois de alguns meses, ainda na clínica, a psicóloga
diz a Lia que não importa muito o nome que queiram dar para o que aconteceu;
“você está conversando. Você está desabrochando. Isso é que importa” (Dra.
Parker apud ANDERSON, 2012, p. 268). A história não traz grandes detalhes
acerca das relações de Cassie com aqueles que compuseram, no passar dos
anos, sua equipe de cuidados. Lia rememora somente que foi um de seus
médicos que fortaleceu a crença de que a amizade das duas era um problema,
e que deveriam se afastar.
46

Juventude e comportamentos de risco

Quando pensamos na solidão que Lia tentava evitar diante de seu


transtorno alimentar (Lia apud ANDERSON, 2012, p. 98) e que acabou tendo
de encarar com o afastamento de Cassie e, posteriormente, com sua morte,
podemos pensar que as investigações que Lia faz a respeito da morte da
amiga se configuram, também, como uma forma de se relacionar com seu
próprio desejo de morte experienciado em suas condutas de risco. Aqui é
interessante que pensemos nas figuras antropológicas que se fazem presentes
em comportamentos de risco. Nesta temática encontramos um importante
diálogo com as ideias que Leila Sollberger Jeolás apresenta em seu livro Risco
e Prazer: os jovens e o imaginário da Aids, de 2007. A autora nos diz que

Correr qualquer tipo de risco é quase sempre inconsciente (...). A


atração pelas figuras inumeráveis do risco é irracional, inconsciente e
ambígua, pois o risco é o imaginário de uma relação com a morte e a
relação do homem com a morte caracteriza-se por sua ambiguidade.
(JEOLÁS, 2007, p. 214).

Assim, mesmo depois da morte de Cassie, podemos observar que a


relação das duas amigas permanece viva e permeada pela ambiguidade com
que Lia consegue se relacionar com a ideia da própria morte e com os flertes
mantidos com ela, em suas condutas de risco.

Le Breton (2012) distingue quatro figuras antropológicas dentro das


condutas de risco, a saber: ordálio, sacrifício, ausência e confronto. São figuras
não excludentes, e que se relacionam entre si. O termo ordálio, que traz em
seu significado uma ideia de provação extrema, diz daquilo que, de alguma
forma, se faz presente em todas as atitudes de risco dos jovens. A
característica ordálica está na exposição ao perigo e na busca pelo encontro
com a morte que, quando vencida, permite o retorno a uma vida radicalmente
transformada, no que o autor chama de contrabando de sentido. Le Breton
(2012) explica que se não há um enraizamento na própria existência que seja
fortalecido pelo gosto de estar vivo, o sujeito pode colocar-se em perigo para
testar sua legitimidade pessoal ao "encontrar finalmente os limites que faltam"
(LE BRETON, 2012, p. 35).
47

A figura do sacrifício (LE BRETON, 2012) trará a noção de que o jovem


sacrifica uma parte de si para salvar apenas aquilo que considera essencial,
perceptível nos momentos em que Lia se obriga a passar fome, mesmo
percebendo as demandas fisiológicas, pois "ser vazia é ser forte e invencível"
(Lia apud ANDERSON, 2012, p. 119).

A terceira figura trazida pelo autor, a ausência, vai dizer do apagamento


de si, da vontade de deixar de ser quem se é. Jeolás (2007) pontua que na
ausência podemos observar um

sentimento de abandono à embriaguez dos sentidos e relaxamento


das instâncias de controle do eu que leva a um transtorno integral e
intenso de si próprio. Tipo de anestesiamento frente à realidade, de
espasmo em que a estabilidade cede à desordem temporária, ao
caos provisório. (JEOLÁS, 2007, p. 215).

O confronto tratará "da violência, de incivilidades e de delinqüências"


(LE BRETON, 2012, p. 35), mas também é a figura que exige “disciplina,
aplicação, força, bravura, coragem e capacidade de resistência" (JEOLÁS,
2007, p. 217). Aqui podemos pensar nos desafios em relação à natureza e na
vitória possível sobre ela, que evocará uma intensidade adicional à vida
cotidiana, bem como poderá representar, simbolicamente, um limite que foi
superado, como quando Lia se sente muito forte (apesar de estar fisicamente
bastante frágil) conforme atinge seus objetivos.

Quando observamos a história de Lia, percebemos que o cortar-se se


faz muito presente, ainda que tais episódios tenham diminuído de frequência
depois que foi morar na casa de seu pai, até que voltam com força quase total
antes de sua penúltima internação, quando se corta no banheiro:

A faca esculpe um caminho na carne entre duas costelas, e então


entre as duas costelas abaixo delas. Gotas gordas de sangue
derramam sobre a pia, sementes vermelhas maduras. Eu sou tão, tão
forte, meus ossos são de ferro, e sou tão mágica que a faca desenha
uma terceira linha entre duas costelas, reta e verdadeira. O sangue
se empoça nas tigelas dos meus quadris e pinga sobre o chão de
azulejos. Buracos negros se abrem em frente aos meus olhos e o
pássaro selvagem preso no meu coração bate suas asas
freneticamente. Estou suando, e finalmente me sinto quente. (Lia
apud ANDERSON, 2012, p. 216).
48

Sobre o cortar-se e as possíveis lógicas atuantes nessas atitudes, Le


Breton (2010) pontua que

Entalhando seu corpo e fazendo sair aquilo que o sufoca, ele [o


jovem] recupera sua respiração, e encontra entre si e o mundo um
espaço de simbolização que restaura sua posição como ator. O
invólucro do sofrimento é perfurado por uma agressão voltada contra
si mesmo, porque apenas ela é controlável. A incisão corporal é um
freio para o colapso. O choque de realidade que ela introduz, a dor
con­sentida, o sangue que corre, reconectam os fragmentos de si
mesmo. Ela per­mite juntar seus pedaços. Ela alimenta a sensação de
estar vivo e restaura os próprios limites. A incisão permite uma auto
representação, uma individuação que permite romper o sentimento de
queda, de vertigem. A despersonalização é cortada rente pelo ato.
(LE BRETON, 2010, p. 29)

Dessa maneira, ainda que entendamos o risco a que a jovem se expõe,


é interessante notar que “há uma (antropo)lógica da ação, uma coerência, uma
busca de conciliação e não de destruição pessoal” (LE BRETON, 2010, p. 28),
afinal Lia estava se machucando, mas também estava buscando por maneiras
e ferramentas a partir das quais se relacionar com o que acontecia em sua
vida, e com o que sentia diante de tudo aquilo, pois a jovem tenta se machucar
para, assim, ter menos dor.

Ainda de acordo com o mesmo autor, lembramos que ao invés de uma


atitude vazia e que busca apenas pelo fim, pode-se perceber nas atitudes de
risco um processo de desenvolvimento da subjetividade da jovem, onde ele
consegue lidar com outras ferramentas com o fato de estar viva "e elabora uma
identidade própria, sendo que a turbulência vivida se transforma, então, em um
recurso para viver com uma consciência de que a existência é um privilégio"
(LE BRETON, 2012, p. 43).

É interessante notar que, por mais que a cultura ocidental articule-se


numa espécie de adultocentrismo, que tende a minimizar e ridicularizar a
intensidade com que a juventude geralmente lida com e processa suas
experiências, as atitudes de risco tendem a levar para a vida, numa espécie de
passagem possível (e ritualizada) à vida adulta. Isso não significa, ainda
segundo o autor, ignorar e simplesmente deixar que o adolescente se
machuque; ao contrário, é um convite para um olhar mais minucioso para com
a lógica possível em tais atitudes (LE BRETON, 2012).
49

Na trajetória de Lia podemos também perceber isso, uma vez que sua
travessia pelos caminhos da anorexia e das condutas de risco acaba por
levá-la até a construção de uma vida em que ela gosta de viver, chegando mais
perto de uma vida como que feita à mão:

Eu entrelaço e teço e tricoto minhas palavras e visões até uma vida


nova começar a tomar forma. Não existe cura mágica, nem como
fazer tudo desaparecer para sempre. Existem apenas pequenos
passos adiante; um dia mais fácil, uma risada inesperada, um espelho
que não importa mais. Estou descongelando. (Lia apud ANDERSON,
2012, p. 269).

Podemos notar, também, como o drama social que se desenrola com a


saída da crise e a reintegração do fator perturbado, o transtorno alimentar, não
é vivido num sentido em que o transtorno é entendido como algo que foi
deixado para trás, mas como componente de um processo de retorno a uma
vida normal, que nossa personagem nomeia como um processo de
descongelar (ANDERSON, 2012); de alguma forma Lia vai construindo novas e
diferentes maneiras de se relacionar com a comida, com seu corpo e com sua
imagem, ao entender que não haverá uma cura mágica, nem uma maneira de
fazer desaparecer aquilo tudo que foi vivido.
50

Considerações finais

Tomando a história de Lia e suas relações como campo de pesquisa, o


presente trabalho tornou possível observarmos o drama social que se
desenrolava, a partir de como é proposto por Turner (1984) e que, no romance
estudado, apresenta a reintegração do elemento perturbado conforme a
adolescente passa a tecer um sentido às suas vivências sem a necessidade de
recorrer às condutas de risco que, anteriormente, lhe contrabandeavam força e
sentido, como proposto por Le Breton (2012).
É importante ressaltar que o drama chegaria à sua conclusão mesmo se
o desfecho fosse distinto, com a morte da personagem, por exemplo, pois a
última fase do drama social pode apontar tanto para a reintegração do fator
social perturbado ou para a integração do reconhecimento e legitimação de
irreparável cisão entre as partes. A questão não seria a de um final “bom”,
como um juízo de valor, mas a da ritualização de um processo de
transformação social (TURNER, 1984).
Pudemos notar, também, como esse contexto delimitado pelo romance,
de duas jovens norte-americanas, conta de um fenômeno muito mais amplo e
não restrito, apenas, à realidade que viviam, conforme entendemos a formação
da noção de pessoa como atravessada e construída pela influência que as
categorias coletivas impõe às práticas de uma sociedade, como apresentado
por Seeger et al (1986), tendo uma profunda comunicação com as pesquisas
de Daniela Silva, realizadas no contexto brasileiro, tanto em 2004 como em
2011.
A literatura tomada como campo de pesquisa evidenciou a realidade
possível de ser emprestada e analisada, indo além do simples questionamento
sobre se o que foi narrado aconteceu verdadeiramente ou não, e possibilitando
a investigação de variáveis que recortam o tema, como as tentativas de
controle corporal e do que se ingere (que podem ser entendidas como
tentativas de controle da vida) e as condutas de risco.
Em Um Artista da Fome, um conto de realismo fantástico publicado pela
primeira vez em 1922, Kafka nos apresenta o decadente caminho de um
jejuador profissional que já havia recebido muita atenção pelo fato de negar a
comida, mas que vai caindo numa certa impopularidade com o passar do
51

tempo e acaba desaparecendo em função da inanição. Tal como o artista da


fome do autor tcheco, Lia nos apresenta uma trajetória em que também se
obriga a jejuar e nos provoca, sugerindo que talvez, a questão não seja
somente sobre comida, mas que também envolva uma insatisfação consigo
mesma e com a vida, que só ela pode acessar.
Nos momentos em que era coagido a interromper o jejum, depois de 40
dias, o conto de Kafka nos apresenta o personagem indignado diante dessa
obrigação. Assim como Lia, o jejuador de Kafka parece enxergar a beleza e a
potência em suas atitudes, que ninguém mais percebe, ao mesmo tempo que
parecem diminuir o risco a que se entregam. Tal como discutido por Le Breton,
entendemos, então, que não estamos diante de um risco vivido gratuitamente e
que há uma grande importância em atentarmos às lógicas desses
comportamentos de risco que configuram, em geral, a construção da identidade
na juventude, e também para como os ideais de magreza como sinônimos de
sucesso e liberdade participam da construção dos chamados distúrbios, como
aponta Silva (2004).
Por fim, os estudos e diálogos possibilitados por esse percurso de
pesquisa a partir do campo da Antropologia, me fazem atentar para a
importância da relação entre os diversos aspectos que podem ser enxergados
atravessando e compondo os fenômenos dos chamados transtornos
alimentares; não devem ser reduzidos, por exemplo, a um olhar biomédico que
enxerga ali apenas uma doença a ser tratada, ao mesmo tempo que a
suposição de uma construção individual de sujeito, com suas questões e
conflitos, não nos traria um diálogo satisfatório.
52

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