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All content following this page was uploaded by Luciana Corts Mendes on 27 January 2020.
1 INTRODUÇÃO
Muitos são os aspectos que poderiam ser explorados do texto Qu’est-ce que la
documentation?, de Suzanne Briet (1894-1989). Neste trabalho, procuraremos refletir
sobre a forma como Briet utiliza o conceito de documento e de técnica cultural e como
eles têm implicações na delimitação do fazer profissional do documentalista. Para realizar
a discussão tomamos como ponto de partida sua definição de documento e, em seguida,
procuramos explorar a caracterização que ela faz da atividade, cujos traços delimitam um
novo tipo de trabalho que tem no documento seu objeto principal. Por último, discutimos
o perfil do profissional documentalista.
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2 O QUE É DOCUMENTO?
1[...] « tout indice concret ou symbolique, conservé ou enregistré, aux fins de représenter, de reconstituer
ou de prouver un phénomène ou physique ou intellectuel » (BRIET, 1951, p. 7).
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discursivos documentos são signos indiciais” (DAY, 2006, p. 48). Essa perspectiva que
permite caracterizar o documento como signo tem forte relação com a semiótica
peirciana, segundo a qual o signo, ou representamen, representa um objeto e produz
interpretantes cujas diferentes manifestações dependem de contextos, experiência
colateral e situações comunicativas, caracterizando um processo de semiose (PEIRCE,
1977). Segundo Fayet-Scribe (2012), a definição de Briet não é fixa, não classifica, antes
migra ou projeta o documento para ser interpretado em diferentes contextos de recepção.
“É uma indexação que cria uma permanência documentária” (FAYET-SCRIBE, 2016, p.
60), provavelmente no sentido de que cria, com o registro, um ponto de partida para a
interpretação. Na condição de signo, o documento é passível de ser lido sob diferentes
chaves, acrescentaríamos.
O fato de que um determinado documento foi criado, conservado ou registrado
para representar, reconstituir ou provar poderia ingenuamente levar à ideia de que essa
espécie de permanência documentária, aludida por Fayet-Scribe, incluiria a possibilidade
de recuperar uma ideia inicial veiculada intencionalmente no documento. Não é esse seu
entendimento, porque a condição sígnica dispara necessariamente um processo
semiótico, a semiose, mostrando que a informação da linguagem não é semelhante à
informação da mensagem.
Ideia semelhante é defendida por Day, para quem a noção de prova que Briet traz
para o conceito de documento “começa com constelações de referências em vez do ‘fato’
auto-enunciador” (DAY, 2006, p. 48). Segundo o autor, “entender signos como índices em
vez de representações diretas ou essenciais é um passo importante para nos ajudar a
entender documentos não como sendo sobre fatos, mas sobre a possibilidade de fatos,
mesmo em sua ausência” (DAY, 2016, p. 59). Mais que isso, “a definição de documentos
como sendo prova ou evidência é imediatamente problematizada por ela como sendo
incompleta”, uma vez que Briet modifica a definição “com a qualificação adicional de que
o documento é um índice (um signo indicial)” (DAY, 2016, p. 58). Para o autor
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2[...] une industrialisation inevitable du travail intellectuel a mis en place la machinerie (organismes et
outillage) que rendait nécessaire l’évolution d’une technique culturelle nouvelle qui sera socialement
decisive d’ici peu de temps [...].(BRIET, 1954, p. 44).
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O termo técnica cultural ganhou nova significação nos anos 1970 no contexto da
academia alemã, onde passou a ser “relacionado à crescente consciência da mídia
moderna – isto é, análoga e crescentemente digital – como os dúbios modeladores da
sociedade”, ou seja, “falar de técnicas culturais neste contexto é reconhecer as habilidades
e aptidões necessárias para dominar a nova ecologia da mídia” (WINTHROP-YOUNG,
2013, p. 5). Em pouco tempo, entretanto, o conceito é expandido retrospectivamente a
habilidades tais como contar e escrever e foi se desenvolvendo ao longo do século XX e
início do século XXI com o sentido de “cadeias de operações que ligam humanos, coisas e
mídia” (WINTHROP-YOUNG, 2013, p. 16).
Na detalhada definição de Krämer e Bredekamp, as técnicas culturais:
Briet utiliza o termo técnica cultural na década de 1950 com a conotação que ele
viria a desenvolver no futuro, mas ela própria desenvolve o conceito ao longo do texto.
Comparando as atividades documentárias a práticas de cultivo da terra e à
industrialização, Briet extrapola o conceito de técnicas culturais ligado diretamente à
terra e o utiliza metaforicamente em relação à área do trabalho intelectual, fazendo uso
de imagens comuns na modernidade europeia, da qual o movimento da Documentação
faz parte:
Day (2006) acredita que Briet quer dizer que a Documentação é mais do que uma
técnica cultural no sentido de se adequar a modos culturais específicos de produção, pois
ela seria uma técnica cultural exemplar e necessária da modernidade como um todo, uma
vez que ela é um sintoma do próprio desenvolvimento social da modernidade ocidental.
O fato de a Documentação nascer em meio a condições culturais específicas da
modernidade industrial mostra a inserção de Briet no modo cultural da época. Harvey
(1992), ao caracterizar a visão de mundo do modernismo universal, cita a revista de
arquitetura PRECIS 6 (1987, p. 7-24):
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Vê-se, portanto, que o que está em jogo, na expressão ‘técnica cultural’ é o uso de
ferramentas e métodos (técnicas) específicos cujo resultado é a produção de um novo
documento: o documento secundário como o instrumento sui generis que deverá servir
para responder às demandas criadas pela modernidade industrial. A produção do
documento secundário é o resultado dessa nova técnica cultural, ou melhor, é
especificamente uma técnica cultural. Ao propor a figura do documento secundário, Briet
define o núcleo da atividade documentária ao mesmo tempo que a estende a outros
dispositivos além do livro, de onde é pertinente falar em documentação museológica,
documentação arquivística e etc. Todas essas atividades partem de um objeto que, por
processos de seleção e registro e organização, permitem documentar o acervo de uma
instituição.
Podemos, então, reescrever o que afirmamos anteriormente. A centralidade do
documento inaugura a Documentação, uma técnica cultural e uma nova área de reflexão
e de trabalho concreto já proposta por Paul Otlet, em seu Traité du Documentation, em
1934. Essa técnica cultural é uma consequência do reconhecimento da importância das
novas mídias além do livro tradicional, bem como da necessidade de métodos e
ferramentas específicos voltados para a produção do documento secundário como meio
de responder às demandas colocadas pela modernidade industrial. Assim, pode-se
afirmar que o documento secundário é o produto de uma técnica cultural datada e peça
central da atividade da Documentação, qualquer que seja seu ambiente institucional.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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