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Manhas, mutretas
e o escambau
Rogério Viana
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Manhas, mutretas e o escambau
Personagens
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Manhas, mutretas e o amparado por Maria das Dores. Ela está de
uniforme de empregada doméstica. Ele usa um
escambau pijama xadrez de flanela e chinelos felpudos.
Ela conduz Francisco a uma confortável
poltrona que tem inclinação e apoio para os
ATO 1 pés. A poltrona está em frente a uma porta
janela de onde vem uma luz solar que se projeta
no chão da sala)
Sala de um apartamento de classe média, sem
luxo. À esquerda uma estante com troféus, (Francisco senta-se com dificuldade e pende
livros e fotos de futebol. Ao lado esquerdo da ligeiramente a cabeça em direção de onde vem
estante um batente com uma porta. a forte luz. Está prostrado. Tem uma aparência
de alienação e ausência. Permanece imóvel.
No fundo da sala, lado esquerdo, um batente Maria das Dores age com suavidade e
com uma porta janela. Ao lado da porta janela demonstra carinho)
uma pequena estante com livros e acima dela
um pequeno quadro com uma antiga
carteirinha de jogador de futebol no centro. Um Maria das Dores - O sol vai lhe fazer bem,
pequeno sofá, duas poltronas. Uma poltrona, seu Francisco! Volto logo com seu chá.
mais ao fundo é reclinável. Uma mesa pequena
ao lado do sofá, um abajur e porta-retratos
pequenos. (Maria das Dores sai)
No lado direito do palco, um batente com uma
porta e uma rede de futebol funciona como uma (Toque do telefone. Toca algumas vezes e pára)
cortina, também como alambrado de estádio de
futebol e, atrás dela, apenas um fundo escuro. (Maria das Dores retorna segurando uma
bandeja com xícara de chá e biscoitos)
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(pausa) Maria das Dores – Está bem... está
bem... Já tomou seu chá. Comeu dois
biscoitos. Está bem, sim.
Maria das Dores – Está bem... está bem!
Quando a Gardênia chegar ela coloca a
música que o senhor gosta! Gardênia – Que bom! Que bom! Não sei
o que seria de mim, sem você, minha
querida!
(Maria das Dores sai)
(toque da campainha)
Gardênia – Ele sabe que o Coríntias foi
(Ao toque da campainha o menino sai. Maria campeão? Será que ele percebeu?
das Dores entra em cena e vai em direção à
porta, enxugando as mãos num avental que
veste. Abre a porta e ajuda Gardênia que está Maria das Dores – Acho que sim, acho
com duas sacolas e um saquinho plástico com que sim... Ele ouviu o foguetório, ontem a
medicamentos) noite.
Maria das Dores – Bom dia, Deninha. Gardênia – Como eu gostaria que ele
Você veio rápido. Estava aqui perto? pudesse estar lá no Pacaembu, vendo o
seu Timão...
(Gardênia beija a face de Maria das Dores, que
corresponde) Maria das Dores – Mas ele não sabe que
o Botafogo perdeu para o Flamengo.
Gardênia – Obrigada, das Dores... Eu
estava pertinho. Voltava da faculdade.
Como ele está hoje? (O som da narração da vitória corintiana no
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campeonato volta a ser ouvida. Narração (Gardênia beija a testa de Francisco, abraça
eufórica e real. O locutor evoca as grandes Maria das Dores. Ambas vão até a porta e se
conquistas do Corinthians. Vozes de antigos dão beijos no rosto. Gardênia sai e Maria das
locutores. Maria das Dores sai levando as Dores sai pelo outro lado)
sacolas com compras. Gardênia fica com o
saquinho de medicamentos nas mãos. Vai até a
poltrona, beija a testa de Francisco. Deixa o (Volta a narração de gols do Corinthians.
saquinho na mesinha. Volta a beijar Francisco Mistura de alarido de meninos. Nomes são
e afaga com carinho o seu rosto, enquanto citados. Aos poucos vai desaparecendo. O
segura sua mão. O som do rádio vai sumindo) Menino volta e fica com a bola junto a rede,
não entra no espaço da sala)
Maria das Dores – Ah... ele deixou de ser (Francisco retorna bem devagar para sua
botafoguense, faz tempo... Agora é só o poltrona. A voz do locutor de rádio volta a ser
timão que ele torce. Não é seu Francisco? ouvida. Depois vai sumindo. Ao fundo, uma
Não é? valsa começa a tocar)
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CENA 2 beira do gramado. Deixe-se ouvir,
Francisco. Volte a comandar, Francisco.
Francisco – Comentarista de futebol – Tales – Faça-se ouvir, de novo...
Gabriela, mãe de Francisco
(silêncio)
Comentarista – O tempo o quer de volta,
Francisco. O tempo quer ouví-lo... O Que ataque nós temos, hein Tales? Que
futebol o quer, de novo, em campo. Ali na ataque!
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Tales – Sim, um belo ataque! Mas nossos Gabriela – Mas o Pedrinho pode chutar
gols não são suficientes para derrotarmos sua canela e ela vai ficar roxa!
o Santos, nem o Palmeiras, querido
professor!
Francisco – O Tales não vai deixar que o
Até o Juventus, vive aprontando sobre Pedrinho me machuque, mãezinha!
nós!
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Maria das Dores – Ele passou bem a sossegado, distante, não ficará mais
noite toda. Foi dormir tranqüilo. agitado, nem terá pesadelos. Vai viver
como um passarinho...
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Tales menino – (com certo receio) - O Francisco – Isso é muito bom. No meu
senhor é treinador do Coríntias, mesmo? time só joga quem for bom aluno.
(Maria das Dores passa e observa a poltrona Tales menino – (mais confiante) - Para
vazia onde estava Francisco. Vai e volta. Ao jogar no Coríntias sou capaz de só tirar
voltar vira-se para a poltrona vazia e faz uma nota dez na escola!
observação para a poltrona vazia. Sai de
cena)
Vicente – Tales... Tales... Cuidado com
suas promessas. O Francisco vai cobrar
Maria das Dores – Lembrando de alguma isso de você! E ele cobra mesmo, pode
coisa boa, seu Francisco? acreditar!
Francisco – Sim. Eu nunca abandonei Vicente – Tales... Tales... Veja bem com o
meu querido time do Parque São Jorge! que você está se comprometendo!
Tales menino – (mais ênfase na pergunta) - Tales menino – Pai, eu vou ser jogador
O time profissional ou o juvenil? titular no time do seu Francisco!
Vicente – O grande sonho dele é ser Tales menino – Mas eu vou jogar no seu
profissional no Corinthians... Daí estar tão time sim, seu Francisco! Vou estudar e
assustado com sua presença. Um misto jogar com a mesma vontade!
de medo, susto com euforia.
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Francisco – Estudar muito, também. Sem Repórter – (em off)- Mas que cochilo, deu
boas notas, nada de futebol. a defesa da Ferroviária! Um cochilo
monumental, meu caro Osmar... Um
cochilo tremendo. Tales não cruzou! Ele
Tales menino – O senhor vai ver! deu um passe perfeito, na medida, para a
cabeçada de Geraldão. Esse gol até eu
faria, meu caro Osmar...!
(Vicente e o Tales menino saem. Francisco
volta para a poltrona. Maria das Dores
retorna com copo com água e os remédios Narrador – (em off) – Um verdadeiro
para Francisco tomar) cochilo... Torcida brasileira
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Francisco – Como joga bola esse Tales! diversificar os investimentos que ganho no
Que jogador! Suas avançadas são futebol!
precisas. E seus cruzamentos são O senhor já preparou o terno para ser meu
maravilhosos. Jogando assim, vai fazer do padrinho de casamento?
Geraldão um grande artilheiro!
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Francisco – O prognóstico é... Renatinho – E a bola? Como...
Elvira – Sim, temos a Deninha... E você, Renatinho – Já disse para o senhor que
felizmente, tem alguns filhos, seus faço qualquer coisa para ser jogador
meninos do futebol, não é meu querido profissional. Jogar no Palmeiras é meu
Francisco? sonho...
Francisco – Sim, são meus filhos. Quero Décio – Então... Você precisa... precisa...
cuidar deles como se fossem mesmo
meus filhos!
Renatinho – O que eu preciso fazer?
(Francisco abraça Elvira e saem pela porta da
direita) Décio – Venha até aqui...
(Entram Décio e Renatinho, pela porta da
direita. Renatinho traz uma bola de futebol
nova. Décio vem com uma pasta de couro. Renatinho – Sim... O que o senhor quer?
Décio senta-se no sofá e Renatinho fica em pé,
segurando a bola em frente a Décio)
Décio – (com um papel velho e rasgado)
Você vai levar este papel para seu pai ler.
Décio – Renatinho, gostou do presente? É um contrato de gaveta. Leve este
contrato para seu pai assinar.
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Renatinho – Ah! Sim... sim... e a bola? Você não quer ser um jogador famoso?
Como vou explicar para o pai?
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ATO 2 novo casal)
César – Acertei o contrato, Glorinha. Vai
dar para a gente comprar um novo
Mesmo cenário. Sai de cena a poltrona apartamento.
reclinável. Entra uma velha cadeira de rodas.
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estar com você todos os dias... Para
sempre... Glorinha - Estou? Dá para perceber?
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pior mesmo. Cada dia pior, não é,
Toninho – Eu durmo agorinha mesmo. Toninho?
Depois, o senhor manda aplicar aquele
Gluconergam ni mim, antes do jogo. Fico Toninho – Professor... e a galera? E meu
novinho, tinindo, prontinho para fazer uns amigo radialista? O que eles vão dizer?
golaços!
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Quer acabar com nosso time? O time favor dela mesma. Não há torcida que
precisa do goleador, velho burro! jogue a favor da verdade. Tudo é paixão.
Não existe razão. A paixão prevalece e
não há razão. Não se explica a paixão,
Todos – Fora, fora... Burro, burro, burro! esse falso amor do torcedor por seu time.
Fora, burro... fora, burro! Um antigo ídolo, se transforma em vilão,
da noite para o dia. Um ex adversário
antes xingado, se vem para jogar no novo
Torcedor 2 – Treinador filho da puta! Seu time, é recebido com aplausos.
velho burro! Chame sua mãe para fazer
gols, agora! São tantas histórias que eu sei e que não
posso revelar...
A torcida só sabe jogar a favor dela
Torcedora 1 – Sua mãe tá na zona... É mesma. A torcida não joga pela verdade.
por isso que ela não entra em campo! Todos querem viver na ilusão.
A paixão ofusca a razão. E a verdade não
Torcedora 2 – Seu pai é corno, filho da existe, nem prevalece.
puta! (pausa)
Eu também vivi a ilusão de não deixar-me
Torcedor 3 – Velho burro, burro, burro, vender, de querer que meus jogadores
burro! fizessem melhores investimentos. Mas eu,
indiretamente, sendo omisso, acabava me
vendendo.
Todos – Fora Francisco, fora Francisco,
fora Francisco...
(Entram pela rede, Repórter 1, Repórter 2 e
Repórter 3 com gravadores, como jornalistas.
Todos – Burro, burro, burro... Vão entrevistar Francisco que volta a sentar
no sofá. Levam antigos gravadores, portáteis,
mas grandes. Estão agitados, falam rápido.
Todos – Um dois, três, quatro, cinco mil... Francisco responde com ironia. Ao fundo, som
queremos que o Francisco vá pra puta de torcida protestando)
que o pariu! Um dois, três, quatro, cinco
mil... queremos que o Francisco vá pra
puta que o pariu! Repórter 1 –A torcida não gostou do
Um dois, três, quatro, cinco mil... senhor não ter colocado o Toninho nem no
queremos que o Francisco vá pra puta banco de reservas...
que o pariu!
Francisco – Ele está com uma entorse no
(Francisco se levanta da cadeira de rodas, tornozelo. Preferí poupá-lo para o jogo
caminha devagar enquanto os torcedores o contra o Santos.
xingam e vai sentar-se no sofá. Caminha
olhando para quem o xinga. Começa a falar
Repórter 2 – Há comentários de que ele
sentado, aos poucos vai se levantando, fica em
estaria com problemas familiares. O
pé e encara a platéia no centro do palco, num
senhor confirma?
tipo de desabafo e provocação)
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existe, pois o problema dele é de chuteiras...
contusão.
Só isso! Repórter 2 – Como vai ser seu ataque?
Repórter 3 – O próprio Toninho disse que Francisco – Vai ser agressivo... Vai jogar
a problema não era no pé e sim, na lá na frente, na área do adversário...
cabeça...
Repórter 1 – E a defesa?
Francisco – Mas que pergunta mais sem
pé, nem cabeça, meu filho...!
Francisco – Espero que esteja segura...
Todos atrás, defendendo!
Repórter 3 – Ele está contundido ou não?
Ou o problema é outro?
Repórter 3 – E o goleiro?
Repórter 2 – O problema dele é mesmo
familiar? Francisco – Não quero que leve nenhum
gol... Vai pegar todas as bolas...
Repórter 1 – O senhor pode dizer o que
anda acontecendo? Repórter 2 – O senhor pode dar o time?
Francisco – Vocês vivem querendo achar Francisco – Não posso! Não posso,
chifre na cabeça de cavalo, não é? Cavalo mesmo!
não tem chifre. Cavalo não tem chifre.
Disse e repito: cavalo não tem chifre...
Repórter 2 – Como não?
Repórter 2 – Então...
Francisco – Se eu der a diretoria me
manda embora...
Repórter 3 – Então...
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não faz nenhum sentido.
Gabriela – Você não vai brincar de bola,
Francisco – Então... Digo e repito: o time Francisco? O Zião já está aqui!
não é meu, não posso dar o time para
vocês... O time não me pertence. O time é Menino – Vem, Francisco... Vem logo...
do clube, da torcida. Não posso dá-lo Sem você vamos perder para o time do
para vocês... Não posso dar o time para Pedrinho! Acorda, venha logo...!
vocês, não posso dar o time para vocês...
Não posso...!
(Gabriela e o Menino saem de mãos dadas.
Francisco caminha bem devagar até a cadeira
(Saem pela rede, Repórter 1, Repórter 2 e de rodas. Menino repete a frase ao sair,
Repórter 3. Entram Gabriela e o Menino, que olhando para Francisco)
traz uma bola)
Menino – Vem, Francisco... Vem logo... Maria das Dores – Bom dia, Deninha.
Você veio rápido. Estava aqui perto?
Gabriela – Você não vai brincar,
Francisco? O Zião já está aqui! (Gardênia beija a face de Maria das Dores, que
corresponde)
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toalha que está no colo de Francisco, limpa
com delicadeza sua boca que está semi-aberta.
Gardênia – Que bom! Que bom! Não sei Faz esforço para colocar Francisco numa
o que seria de mim, sem você, minha posição mais confortável sentado. Gardênia
querida! entra em cena)
(Toca o telefone. As atrizes ficam estáticas em Maria das Dores – Bom dia, Deninha.
cena. O telefone toca duas vezes. Pára) Você veio rápido. Estava aqui perto?
Maria das Dores – Você volta amanhã? (Gardênia beija a face de Maria das Dores, que
corresponde)
Gardênia – Sim, passarei, novamente.
Sempre correndo... Você sabe... Mas Gardênia – Obrigado, das Dores... Eu
passo, sim. estava pertinho. Voltava da faculdade.
Como ele está hoje?
Maria das Dores – No mesmo horário?
Maria das Dores – Está bem... está
bem... Já tomou seu chá. Comeu dois
Gardênia – Não, virei mais cedo, antes
biscoitos. Está bem, sim.
de ir para a Faculdade.
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Gardênia – Obrigado, das Dores... Eu Maria das Dores – Está bem... está
estava pertinho. Voltava da faculdade. bem... Já tomou seu chá. Comeu dois
Como ele está hoje? biscoitos. Está bem, sim.
Maria das Dores – Está bem... está Gardênia – Obrigado, das Dores... Eu
bem... Já tomou seu chá. Comeu dois estava pertinho. Voltava da faculdade.
biscoitos. Está bem, sim. Como ele está hoje?
Gardênia – Que bom! Que bom! Não sei Maria das Dores – Bom dia, Deninha.
o que seria de mim, sem você, minha Você veio rápido. Estava aqui perto?
querida!
(Gardênia e Maria das Dores viram a cadeira
(Toca o telefone. As atrizes ficam estáticas em de rodas e saem com Francisco)
cena. O telefone toca cinco vezes. Pára)
CENA 4
Maria das Dores – Bom dia, Deninha. Francisco – Elvira – Gardênia - Menino
Você veio rápido. Estava aqui perto?
Gardênia – Que bom! Que bom! Não sei (Gardênia entra em cena empurrando bem
o que seria de mim, sem você, minha devagar a cadeira de rodas de Francisco. Ele
querida! agora veste um pijama com a blusa de cor
preta e a calça de cor de vinho com detalhes
em branco. O chinelo felpudo também é verde.
(Gardênia beija a face de Maria das Dores, Francisco está apoiado mais para o lado
que corresponde) direito da cadeira. Coloca a cadeira de rodas
em frente da porta janela onde tem uma forte
Maria das Dores – Bom dia, Deninha.
luz. Gardênia pega uma pequena toalha que
Você veio rápido. Estava aqui perto?
está no colo de Francisco, limpa com
delicadeza sua boca que está semi-aberta. Faz
Gardênia – Que bom! Que bom! Não sei esforço para colocar Francisco numa posição
o que seria de mim, sem você, minha mais confortável sentado)
querida!
(Gardênia beija a face de Maria das Dores, (Toque do telefone. Toca algumas vezes e
que corresponde) pára)
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(O Menino pega Francisco pela mão e o
(Toca a campainha) conduz até a estante à direita da porta janela.
Retira o quadro que tem uma carteirinha)
Elvira – Mais um problema e você aqui... Francisco – Os troféus que ganhei nunca
foram importantes para mim...
Elvira – Sim... meu câncer voltou, Menino – Ah, sonhos não! Sonhos são
Deninha! Voltou!!! eternos!
(As duas se abraçam e choram. Em seguida Francisco – A carteirinha foi meu primeiro
saem de cena) e grande sonho...
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e perder... desgasta muito. É ilusório o
Menino – Os sonhos nos embalam em mundo do futebol!
momentos tristes... (pausa)
Zião, Zião... você também vai querer ser
Francisco – Os sonhos nos inspiram em jogador de futebol?
momentos difíceis, nos dão coragem em
momentos de desespero e nos levam a Menino – Não, Francisco...
correr mesmo quando nossas pernas e
nossos pensamentos teimam em não mais Quem sonha com o futebol é você.
sair do lugar... Eu sonho somente é com a bola...
Menino – Acorda,Francisco! Levanta seu (Menino bate a bola algumas vezes no chão.
zé preguiça! Vamos jogar bola... Venha, Pega Francisco pela mão e o faz sentar na
vamos jogar... Acorda, Francisco... cadeira de rodas. Vai batendo a bola, e em
Francisco – Os sonhos são eternos... e passos lentos sai de cena)
devem ser tratados com enorme carinho e
atenção. Trato meus sonhos com muito
carinho e respeito... Respeito meus CENA 5
sonhos... brigo por eles... Sonhar é viver... Francisco – Kruger – Tales - Menino
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amigos competentes, dos amigos treinador do Coxa, lá no Alto da Glória!
competentes e éticos como você, (pausa)
Francisco!
Aquela igreja de Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro é um pedaço do céu
Francisco – Você nem imagina o quanto aqui na terra! Vou me sentir amparado
eu fico feliz em ser convidado para dirigir neste novo trabalho estando perto
o Coxa. Além do mais, eu adoro Curitiba. daquele lugar de fé e de esperança.
Adoro o Paraná, adoro os paranaenses.
Adoro o povo que vive no Paraná, meu (Kruger sai quando Tales se aproxima)
querido Kruger!
(pausa)
Tales – Eu sei, foi difícil entender isso.
Mas aprendi...
A sombra dos pinheirais do Paraná
abraça-me com o mesmo formato dos
raios do sol. Francisco – Para quem tem trinta anos
de bola, como eu, são trinta anos
comendo despacho no almoço que
(Francisco abraça Kruger) antecede o jogo ou mesmo no jantar. Não
é mole!
E a comida é sempre a mesma coisa:
Kruger – Vamos voltar ao Paraná, salada de tomate, bife, purê de batatas e
Francisco? Você vai gostar de ser arroz.
treinador do Coxa!
Que cardápio duro de engolir, não é
Tales?
Francisco – Que bom poder voltar a Tales – Mas a gente engole isso pela
Curitiba, meu amigo Kruger. Que bom ser escolha que fizemos. O futebol tem gosto
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de arroz com feijão. Mas o espetáculo companheiras. Até as amantes de muitos,
pode proporcionar outros sabores, não é? sabem como é o sofrimento de quem
perde um jogo.
Você sabe, meu querido Tales, como Olho vivo! Gente esperta e aproveitadeira
sofrem nossas mulheres, nossas é o que não falta neste mundo.
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Mas você tem o espírito puro! Fique de interferência - começa a se mover e ouve-se
atento e aprenda a rezar! flashes de música, notícias, discursos. Pára e
lances de jogos de futebol são narrados. De
vários locutores diferentes, equipes diferentes.
Menino – Pai, o senhor vai me ensinar a Em pequenos flashes. As narrações acabam
jogar futebol? sempre em gol, uma após outra. Locutores
eufóricos fazem as narrações.)
Francisco – Eu queria que você existisse, (Francisco começa a movimentar sua cadeira
meu querido filho. de rodas, lentamente. Ameaça andar, para.
Mexe nas rodas e conduz lentamente a cadeira
até o centro do palco)
Menino – Pai, o senhor vai me levar aos (o som do rádio aos poucos vai
estádios? desaparecendo. Ouve-se um vozerio. Pessoas
conversando, rindo, uns poucos gritos de
alegria. Silêncio)
Francisco – Eu queria que você existisse,
meu querido menino.
Francisco – O futebol é minha vida.
Comecei quando criança a amar o futebol,
Menino – Pai, o senhor vai querer que eu
esta minha paixão, meu vício! Senti, como
seja jogador de futebol?
jogador, o amargor das derrotas, mas o
intenso prazer de participar de um jogo, a
Francisco – Eu queria que você existisse, alegria de entrar em campo vestindo um
filho que não tive. uniforme. Não importava se a camisa era
velha, surrada ou se era uma camisa
nova, de um grande time.
Menino – Pai, o senhor quer jogar futebol
com todos nós?
(pausa)
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de tanto jogador de talento. Foi a alegria É ser criticado justa e injustamente.
de meninos que apenas queriam, um dia, É ser uma pessoa incompreendida.
receber um aplauso quando pisavam pela
primeira vez um campo de futebol É ser pai dos filhos ausentes.
vestindo a camisa daquele time, seu É ter uma família e não conviver com ela.
inesquecível time.
É ser respeitado.
É ser humilhado também, quando somos
(pausa) demitidos.
É ser vaiado, chamado de burro.
O futebol é minha vida. E o futebol é a É ser visto como filho da puta.
vida de milhões de pessoas. Umas bem
intencionadas, outras que querem do É ser um retirante de uma terra que nunca
futebol o poder. Fazem de tudo pelo poder foi sua.
e se corrompem por ninharias ou grandes É ser um mendigo querendo apenas uma
boladas. A corrupção no futebol eu sei nova oportunidade.
como é. Mas há corrupção no mundo e
É saber conviver com manhas, mutretas e
onde existe dinheiro e poder, há corrupção
o escambau!
e onde há poder e dinheiro, há futebol.
E a doce alegria dos vencedores, dos
títulos, dos gols, dos golaços, dos gols de (pausa)
placa, dos gols inesquecíveis.
(Francisco levanta-se da cadeira e a empurra
(pausa) para o lado)
Sou um treinador de futebol. Tive muitas (As vozes se misturam, gritos de torcidas,
alegrias e tristezas como treinador de aplausos. A voz do locutor narrando gols)
futebol.
(pausa) O futebol é minha vida!
É a minha vida!
Você sabe o que é ser treinador de A vida que tive!
futebol?
É morrer antes da hora. É ser chaminé
que trabalha aos domingos. E como treinador de futebol tenho que
aceitar que ser técnico é ser dono de
É ser amigo dos gatos que não distinguem quatro ou cinco pijamas.
o seu posto.
É ser o único freguês do bar ambulante.
É ser dono de quatro ou cinco pijamas.
É ser aquele fantasma, um verdadeiro Sim, pijamas.
Gasparzinho dos vizinhos.
Ser treinador de futebol é...
É ser o elogio do microfone, das letras
impressas em jornais e revistas.
É ser o destaque numa matéria de (Francisco caminha devagar e vai em direção
televisão. à rede. Começam a entrar atrás da rede,
Vicente, Maria das Dores, Menino, Tales,
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Gardênia. Cada um veste uma camisa de um Rogério Viana (C)
time de futebol diferente. Eles seguram com as (Todos os direitos reservados)
mãos a rede)
Curitiba – PR – 6 de maio de 2009.
Segunda versão em 10 de julho de 2009.
Francisco – Ser treinador de futebol é ser
prisioneiro dos chinelos nas horas tristes... Revisão com Roberto Alvim em 25 de agosto
de 2009.
Ser prisioneiro dos chinelos nas horas
tristes... Última revisão com Roberto Alvim em 13 de
outubro de 2009.
Original entregue nesta data.
(Francisco começa a tirar os chinelos, tira a
blusa do pijama. Jogam para ele uma camisa
de futebol por cima da rede. Ele tira a calça
do pijama. Está de calção. Jogam para ele um
par de meias e um par de chuteiras. Ele veste
as meias e calça as chuteiras. Coloca a
camisa por dentro do calção. Ajeita sua
camisa. Jogam uma bola de futebol, colorida,
novinha para Francisco.
FIM
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