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ERIKSON, Philippe e LENAERTS, Marc grupos Amahuaca, Yawanawa, Shipi-


(orgs.). 2002. Idées à bouturer. Ethno- bo, Yaminahua, Chacobo, Yora, Chito-
écologie amazonienne. Nanterre: Com- naua e Ashaninka. Não obstante, tal-
mission Européenne, Université Libre vez o mais interessante do volume seja
de Bruxelles e Laboratoire d’Ethno- a incorporação na “amostra” de popu-
logie et de Sociologie Comparative. lações mestiças do Peru e de seringuei-
306 pp. ros brasileiros. Com freqüência igno-
rados, as práticas e os conhecimentos
mestiços são protagonistas principais
Diego Villar da circulação e fluidez dos saberes ta-
CONICET, Argentina xonômicos e xamânicos; não somente
no diálogo entre grupos étnicos distin-
As mais de trezentas páginas de Idées tos, mas também diacronicamente no
à bouturer. Ethno-écologie amazonien- interior do grupo, entre as distintas ge-
ne reúnem os resultados finais do pro- rações. O fluxo instável mas contínuo
jeto científico TSEMIM (Transmission de influências e negociações recíprocas
et Transformation des Savoirs sur l’ En- constitui, pois, o circuito no qual deve
vironnement en Milieux Indigènes et ser contextualizada qualquer reconstru-
Métis). Este empreendimento, levado a ção do caudaloso tráfico amazônico de
cabo entre 1997 e 2001 na região de alucinógenos e plantas medicinais.
fronteira entre Peru e Brasil, procurou Tanto a amplitude quanto a coerên-
apreender os diversos modos culturais cia da temática são impressionantes.
de transmissão e transformação do sa- Idées à bouturer contém textos sobre fi-
ber sobre o meio ambiente amazônico. tossociologia (Valencia-Chacón e Bal-
O TSEMIM pode ser acusado de qual- deón), narrativa (Baldeón, Malpartida
quer coisa, menos de não ser pluralis- e Beltrán) e etnobotânica comparativa
ta. Participaram investigadores belgas, (Albán Castillo e Salas-Zuluaga). Wig-
brasileiros, espanhóis, franceses e pe- dorowitz, de sua parte, descreve o con-
ruanos. Ademais, etnólogos, botânicos, texto político do xamanismo e traça uma
fitossociólogos e especialistas em geo- vívida resenha histórica dos Amahuaca,
processamento esforçaram-se para su- com seus contatos interétnicos, sua po-
perar oposições antigas e artificiais en- sição dentro do chamado “macrocon-
tre as ciências duras e as ciências hu- junto pano”, suas turbulentas relações
manas, procurando combinar a identifi- com os brancos e seus vários etnólogos.
cação precisa das espécies botânicas Carid Naveira e Pérez Gil apresentam-
com a sensibilidade antropológica para nos aos perigos do xamanismo yamina-
o exame da vida social. hua, à sua utilização de plantas e aluci-
Os escritos apresentados, com efei- nógenos e à transmissão de suas doutri-
to, procuram contextualizar as práti- nas. Tello Abanto compõe variações so-
cas produtivas e as representações so- bre o tema da variabilidade e legitimi-
bre o meio ambiente no quadro das cos- dade sociológicas do conhecimento. Le-
movisões e estruturas cognitivas que clerc, por sua vez, analisa os usos shi-
as acompanham. Fazem-no, é preciso pibo das plantas rituais, situando suas
destacar, documentando suas imensas taxonomias em casos concretos de xa-
variações intra e intergrupais. A sele- manismo. Um dos organizadores do vo-
ção de casos etnográficos é tão ampla lume, Philippe Erikson, utiliza uma a-
quanto diversificada, compreendendo nedota de campo para ilustrar a lógica
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das relações “sociais” que os Chacobo alto e esotérico de conhecimento; ou se


mantêm com o meio ambiente, concei- supõe existirem intermediários nativos
tualizadas em termos de reciprocida- entre cada grupo indígena e os brancos.
de; já o outro organizador, Marc Le- Pelo contrário, se há algo que este livro
naerts, examina as relações da fauna e demonstra amplamente, é a necessida-
da flora com a mitografia, a cosmologia, de de uma leitura mais atenta do que
a consangüinidade e a lógica da clas- realmente ocorre na prática cotidiana
sificação. Moore e Pariamanu discrimi- se se deseja contribuir para a conser-
nam, em um caso concreto, os compo- vação ativa da biodiversidade. Essa lei-
nentes êmicos e éticos da biodiversi- tura se revela imprescindível, de fato,
dade. Bilhaut ocupa-se do conhecimen- para o desenvolvimento de ferramentas
to da corporalidade e sugere vínculos conceituais e metodológicas que possi-
inéditos com o uso de certos minerais. bilitem uma maior participação das co-
Por último, o estudo de Lienard ocupa- munidades aborígines ou mestiças nas
se – de uma maneira que não desgosta- políticas de gestão e administração dos
ria os fãs do Année Sociologique – dos recursos naturais. Nesse sentido, pois,
mestiços brasileiros e sua administra- os conhecimentos etnográficos “de ba-
ção da territorialidade, da memória lo- se” fornecem o ponto de partida inelu-
calizada, da topografia e das variações dível para as reivindicações dos direitos
sazonais, todos componentes do con- indígenas de propriedade coletiva.
texto em que devem enquadrar-se suas Outro ensinamento de Idées à bou-
taxas etnobotânicas e etnozoológicas. turer… é que o olhar antropológico, a
Um dos principais méritos deste vo- despeito de uma familiaridade às ve-
lume está em sua contribuição para o zes imperfeita com a língua indígena e
combate a dois tipos de preconceito com a lógica taxonômica nativa, deve
muito difundidos, que poderíamos qua- permanecer muito atento ao contexto
lificar quase que como complementares. de enunciação do dado. Metodologi-
O primeiro é a imagem do mestiço ávi- camente, é preciso “situar” o conheci-
do e inescrupuloso, que se apodera de mento de cada informante em seu subs-
conhecimentos indígenas tão esquivos trato social correspondente, compreen-
quanto esotéricos. Mostra-se, ao contrá- dendo sua representatividade, seu va-
rio, que o saber mestiço se estrutura em lor, seu prestígio relativo. É necessário
torno de uma lógica própria; lógica que discriminar matizes sutis, variações,
é preciso documentar e que, seja dito graus, diferenças entre o saber dos in-
de passagem, se revela mais sistemáti- formantes comuns e o dos – quando os
ca no plano da etnozoologia e ecologia há – “especialistas”. A etnografia, em
animal do que no da etnobotânica. suma, deveria situar em seu contexto
O segundo preconceito consiste na correspondente de representativida-
idealização cândida da vida indígena. de o valor epistemológico da informa-
Sem maior fundamentação, pressupõe- ção. Ao mesmo tempo, deve ajudar o
se freqüentemente uma espécie de con- observador naturalista a não recortar
comitância ou correlação inversamen- arbitrariamente seu objeto de estudo,
te proporcional entre a intensidade do limitando sua investigação às “plantas
contato com o mundo urbano e a sofisti- medicinais” ou ainda à “Flora” consi-
cação do conhecimento etnológico, et- derada como um todo, espécie de mô-
nobotânico ou etnomedicinal; ou se sus- nada auto-suficiente, discreta e homo-
peita que o xamã ostenta o grau mais gênea. Pelo contrário, devem ser inte-
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grados à análise os dados relativos aos fato de que o estranho e o estrangeiro


discursos simbólicos, às práticas de pro- são “bons para pensar”: figuras atrati-
dução e às relações sociais, que em não vas e maleáveis em termos simbólicos,
poucos casos fornecem as chaves inter- mas ao mesmo tempo mantidas a dis-
pretativas das lógicas taxonômicas. tância dada a sua natureza inquietante,
Mas não é só a etnobotânica que se muitas vezes opaca e sempre ambiva-
beneficia do contato com outras disci- lente.
plinas. Vários trabalhos neste volume
nos mostram como as relações “assimé-
tricas” de transmissão de conhecimento FRADIQUE, Teresa. 2003. Fixar o movi-
– por exemplo, de “mestre” a “discípu- mento: representações da música rap
lo” – não se fundam em diferenças ob- em Portugal. Lisboa: D. Quixote. 225 pp.
jetivas nos níveis de conhecimento. En-
tre o dado antropológico, proveniente
do imaginário ou de uma representação Ruy Llera Blanes
social mais “subjetiva” das coisas, e o Instituto de Ciências Sociais
da Universidade de Lisboa
dado etnobotânico rigoroso, existem
contradições, dissonâncias e tensões.
Trata-se de desajustes – algumas vezes Fixar o movimento, de Teresa Fradi-
sutis, outras clamorosos – entre a auto- que, é o resultado de uma pesquisa rea-
percepção simbólica e a realidade cog- lizada no âmbito do Mestrado em An-
nitiva que apenas uma perspectiva tropologia: Patrimónios e Identidades,
realmente interdisciplinar pode eluci- do ISCTE. Realizada entre 1994 e 1998,
dar adequadamente. teve como objetivo uma análise apro-
No terreno propriamente etnológi- fundada das representações e discursos
co, para finalizar, esta obra corrobora construídos à volta da música rap e do
certas proposições de numerosos pes- “movimento” hip-hop durante aquele
quisadores, os quais, com o correr dos período em Portugal.
anos, se cristalizaram em torno de uma Prefaciada por Gilberto Velho, esta
espécie de dogma da antropologia a- obra representa não só um passo em
mazonista: que o Eu se define não ape- frente no que diz respeito à análise de
sar mas por meio do Outro. Para além contextos e expressões musicais e cul-
dos tumultuados processos históricos, turais urbanas em Portugal – e um ex-
desde os ocasionais empréstimos tec- celente ponto de comparação para aná-
nológicos até os resultados desiguais lises de outros contextos musicais e ur-
obtidos pelo trabalho missionário ao banos –, mas também um desafio aos
longo dos anos, o estudo do imaginá- processos de construção epistemológi-
rio e os simbolismos sobre o meio am- ca das ciências sociais, às suas metodo-
biente revelam uma trama fascinante e logias e conceitualizações. Reconhecen-
complexa, em que muitas vezes sobres- do a multiplicação de discursos e inter-
sai o papel desempenhado pelo Outro, pretações publicitados, veiculados pelo
o estrangeiro, o afim ou o branco. Sím- fluxo crescente de canais de comuni-
bolos de alteridade, fontes de dádivas e cação e intercâmbio (media), a autora
também de perigo, o Inca dos Shipibo, obriga-nos a refletir sobre o papel do
os sacacaras dos Piro, os nawa dos pa- antropólogo na construção e partilha de
no ou o pishtaco de reminiscências an- conhecimentos sobre os fenômenos cul-
dinas evidenciam dramaticamente o turais da contemporaneidade (urbana,

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