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RUI KNOPFLI

Nada tem já encanto


Tinta da China, Lisboa, 2017
António Cabrita

Alguém definiu o Philip Larkin como “o coração mais triste do mercado do pós-guerra”. Creio
que o apodo não desclassificaria Rui Knopfli (1932-1997), quase contemporâneo do inglês (dez
anos mais velho), nascido em Moçambique e aí amadurecido para o chiaroscuro de uma vida a
contrapelo, dissonante em relação às esquinas da História. Embora julgue que Knopfli
igualmente faria sua uma réplica de Larkin, que, reagindo a quem o criticava por descrever nos
poemas “uma vida irremediavelmente anódina”, comentou: “Gostaria de saber como passam
eles o tempo. Matam dragões?”(1).
Indubitável é que a poesia de Knopfli, no espaço geo-poético em que se situou, funcionou como
uma antena da raça (Pound) face à desagregação do império. Não se entenda aqui raça num
sentido literal, antes designa a índole dos que vivem mediante sensores próprios, de uma
percepção ampliada, podendo o seu trabalho poético ser lido como uma sintomatologia da
catástrofe.
Há no panorama poético português do século XX três autores em quem o encontro entre a cultura
europeia e o chão das colónias africanas foi destilado com iniludíveis ganhos expressivos: vemo-
lo em Fernando Assis Pacheco, e no seu Catalabanza Quilolo e Volta, que encenou o trágico, o
absurdo e a violência da guerra; no verdadeiro acto de sabotagem simbólica que constituiu As
Quibíricas, de Grabato Dias; e no sedimento do fatum que se lê em Ruy Knopfli.
Verificou-se, não obstante, que foi tardio o reconhecimento devido às três obras: gradual,
distanciado, em surdina, às vezes reticente, podemos inclusive ler nesse embaraço bem como no
seu posterior desenredamento um sinal das mudanças das pautas de leitura em Portugal.
Em Moçambique, na última década de colonialismo, consolidou-se uma geração de ouro - Glória
de Sant’Anna, Grabato Dias, José Craveirinha, Rui Knopfli, na crítica Eugénio Lisboa -, cujos
elementos seriam figuras de primeira linha em qualquer latitude, mas calhou-lhes coincidirem no
rincão colonial de um império em falência. E esta circunstância - se exceptuarmos o caso de
Craveirinha, moçambicano e por razões étnicas -, prejudicou o timing de recepção destas figuras,
atiradas para um certo limbo por desencaixe nas grelhas de leitura então em voga. Para que se
entenda o que estava em presença na diferença de Rui Knofpli terei de fazer uma pequena
digressão pessoal.
Há uns trinta e cinco anos, comprei o meu primeiro livro de Knopfli, num alfarrabista, O
Escriba Acocorado, atraído pelo título. Rapidamente estranhei o seu rigor discursivo e
algébrico, a sua secura ao rés do osso, posto andar encharcado na ganga imagética dos
surrealistas ou nas volutas anti-discursivas dos poetas da geração de 60. Aquela poesia habitava
outras linhagens poéticas, que viria a reconhecer em Borges ou Kavafis ou nos poetas chineses e
nos de língua inglesa, mas na época aquele gume enxuto de metáforas ressoava num timbre
distintíssimo. E, estando fresca ainda em mim a influência dos beat, parecia-me faltar a Knopfli a
leveza e “o pathos”, um certo transporte da emoção, embora por outro lado me interpelasse
aquele fluxo onde a lucidez do verbo se apoiava numa nítida construção arquitectónica – essa
“máquina de areia”, que daria título a um dos seus livros mais meditativos.
Só duas décadas e meia mais tarde, depois de ter emigrado para Moçambique e de ter conhecido
melhor a História e o terreno a partir do qual Knopfli escrevia, é que, pelo contrário, pude
detectar nos seus primeiros livros, No País dos Outros, de 59, em Reino Submarino, de 63, ou
em Mangas Verdes com Sal, de 69, uma tremenda gama emocional, e, sobretudo, de que modo
ele traduziu, melhor que quase todos os outros, a carga disfórica do fim de uma época. Eram
verdadeiras «paisagens arrancadas ao chão» (Herberto Helder); pude aí medir o esforço, a arte
e a dimensão pletórica da segunda fase da sua obra, com O Escriba Acocorado e de O Corpo
de Atena, escritos já em Londres, frutos diferidos de um chão que lhe fora roubado.
Eram os primeiros livros de Knopfli excelentes mas ao arrepio das linhas dominantes de então.
Apesar de inclusive lhe ter sido atribuído, em 84 - a O Corpo de Atena - o Prémio de Poesia do
Pen Clube, isso não o tornou mais lido, nem levou a que fossem reunidas em Portugal numa
edição comercial todos os Cadernos Caliban, uma das melhores revistas literárias dos idos de
70 no espaço da língua portuguesa, e que Knopfli coordenou com Grabato Dias.
Entre as razões para tal desatenção, acentuam-se as que o próprio poeta detecta numa entrevista a
Patrick Chabal: «Nós conseguimos muito cedo libertar-nos da influência de França. Portugal foi
e será, durante muitos anos, uma colónia de França. Isto é um aparte, mas é espantoso que, em
Portugal, a geração dos indivíduos que nasceram entre 1940, 1945, não se deram conta que
alguns dos poetas do século são anglo-saxónicos, do Eliot ao Yeats. Ainda é o eco de
Mallarmé… E como esta gente se formou na universidade, a universidade passou a ser, em
Portugal, o ditador da cultura. Enquanto a universidade devia, humildemente, estudar a cultura,
começou a ditar a cultura.» (2)
Acresça-se ao desabafo, o efeito causado por um dos poemas de Mangas Verdes com Sal, de
69, incluído nesta antologia. Imagine-se o incómodo de assimilar o mordaz Cântico Negro (que
começava por recuperar no título um José Régio, então secundarizado): “Cago na juventude e na
contestação/ e também me cago em Jean-Luc Godard./ Minha alma é um gabinete secreto/ e
murado à prova de som/ e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes/ nem uma só gravura de
Lichtenstein/ ou Warhol. Nas prateleiras/ entre livros bafientos e descoloridos/ não encontrareis
decerto os nomes/ de Marcuse e Cohn-Bendit. (…).» Que ousava a virulência deste manifesto
chegado da região ultramarina? Um poema que se posiciona contra o “espírito de Maio de 68”,
contra os Beatles, contra a corrente e as ilusões da época? Knopfli, para o bem e para mal, esteve
sempre out of time.
Foi preciso afirmar-se a geração de 70 e ter-se assistido a uma translação de influências do
espaço francês para a cultura anglo-saxónica para se instalar o terreno favorável à escuta do seu
timbre e da tradição que representava.
“Não se regressa/ É de lágrimas a paisagem que vejo.”(28), lavrou no poema Direcção
Proibida. E a fractura estava exposta. Uma fractura em dois sentidos, como assinala Eugénio
Lisboa no excelente prefácio desta antologia: por «expulsão definitiva do paraíso da infância»
(EL) e depois por viver a consciência lacerada de uma condição de double bind. Daí que, embora
não seja inexacto o que Francisco Noa refere, que a Knopfli, colocado «no centro da
irreverência fragorosa que caracterizaria toda uma geração, vemo-lo mergulhado no turbilhão
das irresoluções, tensões e ambiguidades provocadas pela sua condição racial e pela
ascendência europeia» (2), isso não invalida vários momentos em que o poeta toma partido: seja
quando se decidiu pelo “exílio” londrino (reproduzindo afinal o seu estar “entre”, pois partiu
para uma Europa sublimada e não para o seu destino pátrio), seja em poemas em que se alheia da
sua «perspectiva mais subjectiva e intimista» (FN) e exorta à decisão, ainda que com subtileza,
numa inteligência ímpar. Veja-se o caso do poema A Pedra no Caminho, onde sugere uma
saída para a aporia apontada pelo célebre poema de Drummond, A meio do caminho: «Toma
essa pedra em tua mão,/ Toma esse poliedro imperfeito,/ duro e poeirento. Aperta em/ tua mão
esse objecto frio,/ redondo aqui, acolá acerado.// Segura com força esse granito/ bruto. Uma
pedra, uma arma/ em tua mão. Uma coisa inócua,/todavia poderosa, tensa,/ em sua coesão
molecular,/em suas linhas irregulares.// Ao meio-dia em ponto, na avenida/ ensolarada, tu és
um homem/ um pouco diferente. Ao meio-dia/ na avenida tu és um homem/ segurando uma
pedra. Segurando-a/ com amor e raiva. (57, sublinhado meu)». Quem é esse homem um pouco
diferente? O negro, na cidade segregacionista de Lourenço Marques, o negro expelido para o
subúrbio e que necessita da assinatura de um branco numa caderneta para poder permanecer na
«cidade de pedra», depois das vinte e uma. Este poema indica que Knopfli sempre se posicionou
no campo justo, contra o acomodamento colonial.
Curioso, por outro lado, é que seja quando Knopfli corta com a terra que ama que encontra a sua
forma, aquela que não mais abandonará, como se nela se vincasse uma fidelidade extraterritorial:
a quintilha. Já alguém deu conta de que as quintilhas, nos versos largos que ele pratica, parecem
desenhar lajes tumulares?
Os seus três livros como “astronauta”, ou tão-somente como nauta da memória – O Escriba
Acocorado, 1978, O corpo de Atena, 1984, e O Monhé das Cobras, 1997 – apuram na barca
da quintilha a rota de uma poesia cinzelada, meditativa, e que pretere os “jogos de linguagem” e
os brilhos estilísticos em nome do rigor da memória. Como ele próprio adiantará em Notas para
a regulamentação do Discurso Próprio: «Na exactidão vocabular se articula o discurso./
Tenho só este exíguo e perplexo pecúlio/ de palavras à beira do silêncio» (186).
Ergue-se a partir daí, nesta poesia que se abstém de aventuras formalistas, um memorial. A sua
obsessão, antes que se tornem «as imagens quebradas», será a de repor, cerzir os tecidos da
memória, cartografar um perímetro para a fidelidade – só aí o homem entronizará um sentido,
um elo: «(…)Gaivota surpreendida/ no cerne da tormenta, tenteias hesitante/ vagarosamente, a
frágil ponte lançada/ através da bruma» (164).
Esta segunda fase em Knopfli processar-se-á segundo o signo de Atenas, e lembramos que a
evolução da figura da deusa Atena, no sentido da espiritualidade, é representada por dois
atributos nos termos da sua metamorfose: a passagem da serpente para a ave (3). Aquele que
chegou a Londres no rastejo das feridas, aprenderá, sem escamotear o rasto da dor, a
espiritualizar a memória, a usar-se do mito sem se alienar nele: «Foragido/ da memória irei por
esse mundo além» (168), lê-se no poema VIII. O Cão do Nilo.
O desafio é não esquecer, mas cartografando de modo aéreo, i. é, separando do perímetro do
vivido a sombra da dor pessoal, ou universalizando-a.
Quando no fim, Knopfli volta à tangibilidade do território da infância com O Monhé das
Cobras o círculo volveu espiral e a serpente (no caso a cobra-capelo) tem asas: no seu livro final
o poeta é já um guardião da memória, não aquele que sofre com o seu destino. Cumpriu assim o
seu dever, o de não deixar laquear a imaginação que se nutria de uma lembrança continuamente
apresentada como «um tempo parado, intervalar», suspenso no trauma. Sendo este, em rigor, o
ethos do poeta: «Caminhar, prosseguir, levar por diante/ a escura lâmpada de Guernica,/ o
pergaminho cobrado no deserto./ Lume indispensável a outros lumes,/ reacender no topo a voz
intacta.» (179).
Em boa hora nos chegou esta magnífica antologia deste poeta cimeiro.

(1), ambas as informações sobre Larkin foram colhidas em Marcelo Cohen, no seu prefácio à tradução castelhana
para High Windows: Ventanas altas, Barcelona, Editoral Lumen, 1989
(2), in Chabal, Patrick, Vozes moçambicanas/ Literatura e Nacionalidade, Lisboa, Vega, 1994; pág. 189
(3), Noa, Francisco, Perto do Fragmento, A Totalidade/ Olhares sobre a literatura e o mundo, S.Paulo, Kapulana,
2015, pág. 106
(4), cf. Chevalier, Jean, e Gheerbrant, Alain, Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Teorema, 1982

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