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CENTRO DE ARTES
COLEGIADO DOS CURSOS DE CINEMA
Pelotas/RS
2020
ARTHUR MORENO DE OLIVEIRA
Pelotas
2020
ARTHUR MORENO DE OLIVEIRA
Banca Examinadora:
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Prof. Dr. Roberto Ribeiro Miranda Cotta
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Profª. Drª. Cíntia Langie Araújo
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Prof. Dr. Guilherme Carvalho da Rosa
A preservação da memória nos documentários A batalha do Chile e Democracia em
vertigem
Resumo: O artigo visa estabelecer um paralelo entre a trilogia A batalha do Chile (Patricio
Guzmán, 1975-1979) e Democracia em vertigem (Petra Costa, 2019), utilizando as
semelhanças e diferenças entre as obras como forma de atestar um presente que repete
características políticas e sociais do passado. Esta análise comparativa é utilizada como base
para defender o cinema documentário como um lugar de memória (NORA, 1984),
compreendendo seu papel na preservação da memória coletiva de uma determinada
comunidade (HALBWACHS, 1990).
The preservation of memory in the documentaries The Battle of Chile and The Edge of
Democracy
Abstract: The following article aims to establish a parallel between The battle of Chile
(Patricio Guzmán, 1975-1979) trilogy and The edge of democracy (Petra Costa, 2019), using
the similarities and differences between the works as a way of attesting to a present that repeats
political and social characteristics of the past. This comparative analysis is then used as a basis
to defend documentary cinema as a place of memory (NORA, 1984), understanding its role in
preserving the collective memory of a given community (HALBWACHS, 1990).
1. Introdução………………………………………………….…….……...………….….........5
2. Passado revisitado (ou o futuro do pretérito).................……...……………………….........7
2.1. Os tempos sobrepostos em A batalha do Chile e Democracia em vertigem…………......9
2.2 As narrativas dos golpes……………………………………………………………….....11
3. O fio da memória: a coletividade em risco…………………….………….…………….....14
4. Como pretendo continuar……………………………………………………………….....17
5. Referências.......................……………………………………………………………........18
5.1. Bibliográficas....................................................................................................................18
5.2. Audiovisuais.....................................................................................................................18
5
1. INTRODUÇÃO
1
As Jornadas de Junho de 2013 correspondem ao período marcado pelas manifestações populares ocorridas por
todo o País, as quais começaram com protestos em relação ao aumento das tarifas dos transportes públicos e
depois se ampliaram reivindicando outras pautas sociais, políticas e econômicas.
6
Proteger nossa democracia exige mais do que medo ou indignação. Nós temos que
ser humildes e ousados. Precisamos aprender com a experiência de outros países a
ver os sinais anunciadores - e a reconhecer os alarmes falsos. Temos que estar
vigilantes e cientes das condutas equivocadas que arruinaram outras democracias.
(LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 22)
do contexto, se faz possível a melhor compreensão dos elementos observados nos filmes.
Fazendo esse resgate dos acontecimentos políticos podemos entender não só o que levou os
diretores a realizarem os documentários, mas também o que documentaram.
Já o capítulo seguinte se atém à memória, buscando defender como os
documentários analisados se consolidam enquanto lugares de memória e sua importância
histórica e política. É portanto estudada como essa memória se constrói através da identificação
com os ideais expressados nos filmes.
Analisar uma obra audiovisual sem levar em conta o contexto na qual foi produzida
resulta em anacronismos que podem se tornar empecilhos na compreensão da mesma. Por mais
que A batalha do Chile seja uma trilogia que se propõe a contextualizar alguns fatos ocorridos
durante a presidência de Allende e o golpe militar chileno, há detalhes importantes que podem
não ser de conhecimento geral, mas que auxiliam na interpretação dos filmes e do período que
documentam.
É infrutífero analisar o golpe militar de 1973 enquanto um evento isolado. Para
entender o que levou o Chile à ditadura, é preciso apresentar o contexto precedente, no qual
Salvador Allende presidia o país. A guinada chilena para o socialismo incomodou aqueles que
orquestraram e apoiaram o golpe e, para tanto, é preciso compreender o contexto que
possibilitou a eleição de Allende em 1971, o primeiro presidente de esquerda a governar o país
(WINN, 2010). O golpe militar orquestrado pelas elites chilenas obteve a participação das
forças armadas e o apoio da CIA (Central Intelligence Agency), a agência central de
inteligência estadunidense. Essa conjunção é resultado de uma equação envolvendo décadas
de exploração das camadas populares da sociedade chilena e a ascensão dos ideais socialistas
como resposta para enfrentar essa dominação .
A população chilena é formada por descendentes dos espanhóis colonizadores e
de indígenas Mapuche. Essa formação cria o mito nacional chileno de um povo que descende
de “duas raças fortes e guerreiras” (WINN, 2010). No Chile, o chamado bajo pueblo era
composto pelos descendentes diretos de indígenas ou mestiços. Era justamente esse bajo
pueblo a camada mais explorada economicamente nas plantações focadas na exportação de
trigo/farinha, bem como nas minas de prata e cobre também utilizadas como matéria de
exportação.
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Essa exploração dos trabalhadores das minas foi um dos principais fatores que
resultaram no desejo da população por um governo progressista que os beneficiasse. Nas minas
ao norte do país, os trabalhadores faziam turnos de trabalho em condições insalubres do
momento em que o sol nascia até quando se punha, e seu pagamento era feito em fichas
resgatáveis apenas em lojas da própria companhia que os explorava.
Enquanto os trabalhadores eram explorados, a elite se compunha principalmente
por descendentes diretos dos colonizadores que não buscavam ostentar suas riquezas, mas
tinham como lema cultural o que consideravam progresso econômico do país e se espelhavam
na Europa como molde. Seu pensamento era conservador, e balizou a política chilena por
décadas (WINN, 2009).
As diferenças de extensão territorial e formação socioeconômica entre Chile e do
Brasil são fatores indispensáveis para analisar o contexto no qual os filmes de Guzmán e Costa
foram produzidos. Em um país pequeno como o Chile foi possível uma união das camadas
populares em busca de uma melhoria no cenário político. No Brasil, a polarização e
desinformação da população é algo incitado pela elite desde a formação do país, e isso é
refletido em Democracia em vertigem.
A já citada postagem de Petra Costa em seu Twitter é o primeiro e mais nítido
indício de aproximação entre seu filme e o trabalho de Guzmán. Tendo isso em mente, somos
levados ao próximo ponto em comum entre as obras: o timing preciso de lançamento. Ao levar
em consideração que “o tom de A Insurreição da Burguesia é o de uma denúncia à comunidade
internacional feita no calor da hora, mas ainda com alguma esperança.” (AGUIAR, 2017 p.18
), é possível estabelecer uma relação direta com a decisão de Petra Costa acerca do lançamento
de seu filme.
Voltemos a 1975, quando temos Guzmán lançando um filme com imagens de
filmes captados antes do golpe militar de Augusto Pinochet. Em O primeiro ano (El primer
año, 1972), Guzmán se propôs a documentar o início do governo de Salvador Allende com uma
linguagem mais jornalística, buscando fazer um registro que servisse como testemunho das
mudanças que o eleito presidente socialista realizava no país. Já em A resposta de outubro (La
respuesta de octubre, 1972), o diretor deteve seu foco em uma greve no setor de transportes
ocorrida em outubro de 1972. Quando as filmagens do que viria a ser seu terceiro filme sobre
o governo de Allende são interrompidas pelo bombardeio do Palácio de La Moneda em 11 de
setembro de 1973, Guzmán muda a direção de seu projeto, transformando as imagens que havia
captado na primeira parte de A Batalha de Chile, A Insurreição da Burguesia (1975).
9
Em entrevista à revista Marie Claire2, Petra Costa afirmou ter decidido prolongar
seu projeto inicial de filmar o processo de impeachment de Dilma Rousseff por acreditar que o
primeiro ciclo da crise política no Brasil, na verdade, se estendia de 2013 até as eleições de
2018. Se em A batalha do Chile, “o poder de suas imagens está justamente no sentimento de
que era necessária uma rápida reversão da situação no Chile.” (AGUIAR, 2017, p.18), em
Democracia em vertigem, a cineasta Petra Costa repete este caráter de urgência, ao passo em
que muda os rumos de sua obra. Ainda na já mencionada entrevista, a diretora sugere que
passadas as eleições de 2019, a crise por ela documentada “não acabou e entra agora na sua
segunda temporada.” (COSTA, 2019).
2
COSTA, Petra. Em "Democracia em vertigem", Petra Costa questiona os limites da democracia brasileira.
[Entrevista concedida a] Maria Laura Neves. Revista Marie Claire. 17 de junho, 2019. Disponível em:
https://glo.bo/2MRniqt. Acesso em: 12 de nov. 2020.
3
Enquanto no Brasil a direita é representada pelos partidos que apoiaram o impeachment da presidenta Dilma
Roussef (PMDB, PSL, PSDB), no Chile a ala conservadora era representada pelo Partido Nacional e pelo
Partido Democrata Cristão.
10
- consciente ou inconsciente - de não apenas ser pobre no sentido econômico, mas também de
não ter ‘espírito’, sendo exemplo, portanto, de uma forma degradada de existência humana.”
(SOUZA. 2016, pp. 70-71). No filme, este preconceito se traduz em expressões agressivas de
repúdio não a esta maioria sem acesso aos privilégios, mas àqueles que possibilitaram
condições de vida um pouco menos desiguais para as classes populares.
A batalha do Chile parte 1: a insurreição da burguesia (1975) traz imagens de
manifestantes nas ruas em época de eleição. Podemos ver estudantes, donas de casa e operários
declarando seu apoio à Unidade Popular, partido socialista de Allende. Destes, poucos são
brancos e a maioria pertence à classe popular. Aos 4’50”, uma mulher afirma que antes residia
em condições precárias e no governo de Allende passa a ter melhores condições de renda e
moradia digna. Voltemos à Democracia em vertigem, onde uma mulher afirma ter dependido
do Bolsa Família, e que graças ao governo de Lula (2003-2010) pôde ascender
economicamente e ter membros de sua família com acesso à educação superior.
Na cena seguinte de Democracia em vertigem, uma mulher branca utilizando
vestimentas com a bandeira do Brasil alega que o governo criou “cotas racistas contra os
brancos”. Este estereótipo associado à classe média branca se repete mais algumas vezes, tanto
no filme de Petra Costa quanto no de Patricio Guzmán. Nesse último, ainda no momento em
que o cineasta se dedica a sair às ruas para registrar opiniões populares sobre as eleições
parlamentares, temos uma imagem de quem vota na direita muito bem delimitada: pessoas
brancas e pertencentes à classes sociais mais altas.
Vemos em Insurreição da burguesia os eleitores da direita se manifestando em
carros, celebrando com garrafas de uísque e repetindo o mesmo discurso polarizado “marxismo
ou liberdade”, ou ainda: “vitória da direita em busca de paz, liberdade e democracia para o
Chile”. Em entrevista, uma eleitora do Partido Nacional fala em “reconstruir o Chile”. Este
discurso se assemelha ao que Petra Costa registra em Democracia em vertigem ao filmar uma
manifestação a favor da prisão de Lula. “Primeiro impeachment. Segundo, cadeia. E aí a gente
recomeça o Brasil.”, declara uma manifestante seguida por gritos de “Lula na cadeia” vindos
dos manifestantes.
Dos filmes pertencentes à trilogia de Guzmán, Insurreição da burguesia é o que
mais se aproxima de Democracia em vertigem, ao passo em que há um distanciamento em
relação a O Golpe de Estado e O Poder Popular. Esta disparidade se dá pois apesar dos
prenúncios serem semelhantes, a própria maneira com que os golpes se efetivaram difere entre
si.
11
O retrocesso democrático hoje começa nas urnas. A via eleitoral para o colapso é
perigosamente enganosa. Com um golpe de Estado clássico, como no Chile de
Pinochet, a morte da democracia é imediata e evidente para todos. O palácio
presidencial arde em chamas. O presidente é morto, aprisionado ou exilado. A
Constituição é suspensa ou abandonada. Na via eleitoral, nenhuma dessas coisas
acontece. Não há tanques nas ruas. (LEVITSKY e ZIBLATT, 2018, p. 17)
4
Disponível em: https://theintercept.com/2020/07/07/bolsonaro-populista-fascismo-entrevista-federico-
finchelstein/. Acesso em 08 nov 2020
12
De acordo com Pierre Nora, “os lugares de memória nascem e vivem do sentimento
de que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos.” (1984, p. 13). Há uma
preocupação em registrar a memória tanto no trabalho de Petra Costa quanto no de Guzmán,
nos quais temos obras que se sustentam enquanto lugares de memória.
Essa necessidade de registrar esse momento específico parte de uma busca para
evitar o esquecimento. Tanto Guzmán quanto Costa percebem a importância histórica, política
e social dos períodos que viveram e portanto decidiram documentar. A percepção dos diretores
acerca de seus filmes enquanto documentos históricos vai ao encontro do pensamento
defendido por Levitsky e Ziblatt (2018). Assim como os autores, os diretores acreditam que:
Proteger nossa democracia exige mais do que medo ou indignação. Nós temos que
ser humildes e ousados. Precisamos aprender com a experiência de outros países a
ver os sinais anunciadores - e a reconhecer os alarmes falsos. Temos que estar
vigilantes e cientes das condutas equivocadas que arruinaram outras democracias.
(Ibid., p. 22)
Certamente, se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança,
mas também sobre a dos outros, nossa confiança na exatidão de nossa evocação será
maior, como se uma mesma experiência fosse recomeçada, não somente pela mesma
pessoa, mas por várias. (HALBWACHS, 1990, p. 25).
Estes lugares de memória em conjunto com todo o restante dos elementos que
compõem o arsenal de lembranças de suas respectivas populações servem para firmar e
materializar o que Halbwachs define como memória coletiva. A população chilena como um
todo sentiu e sofreu os efeitos do que Guzmán registra em A batalha do Chile, e isso implica
que um grupo possui memórias semelhantes sobre esse período. A memória deles se constrói
a partir desses pontos de vista que se aproximam e afastam conforme o condicionamento de
cada cidadão. Fato é que a memória coletiva dos eleitores da Unidade Popular se constrói de
maneira diferente dos que apoiavam a ditadura de Pinochet, uma vez que a diferença entre suas
posições políticas afeta a maneira como encaram o golpe; o que para uns era golpe militar, para
outros parecia a salvação do país.
É preciso lembrar, contudo, que apesar dos esforços dos diretores em tentar
estabelecer um panorama geral das situações apresentadas em seus respectivos filmes, pode ser
que estes não despertem em todos os espectadores uma epifania acerca dos momentos
históricos ali registrados.
que assiste até que este decida o que é verdade para si. É preciso que se estabeleça um senso
de pertença entre o espectador e aquele lugar de memória que habita quando assiste ao filme
pois “para que a memória dos outros venha assim reforçar e completar a nossa, é preciso
também, dizíamos, que as lembranças desses grupos não estejam absolutamente sem relação
com os eventos que constituem o meu passado.” (HALBWACHS, 1990, p. 78). Dessa maneira,
os documentários aqui analisados só se consolidam enquanto lugares de memória coletiva
quando quem assiste se identificar com o que assiste.
Se os filmes são lugares de memória, esta memória é portanto subjetiva, tem seu
ponto de vista e é construída baseada nas vivências de quem o faz. Petra Costa, com seu
discurso em primeira pessoa do singular se coloca como representante única do povo brasileiro,
construindo seu discurso no filme em cima de “eus”. Eu e a democracia. Eu votando. Eu
manifestando. Eu criando memória. Portanto se o discurso é construído em cima de “eus”, a
identificação acaba por ser mais efetiva em pessoas que tenham experiências ou vivências
semelhantes ao “eu” que lhes fala no filme.
Levando em consideração que a maioria dos cineastas age como representante das
pessoas que são filmadas ou da instituição patrocinadora, e não como membro da
comunidade, frequentemente surgem tensões entre o desejo do cineasta de fazer um
filme marcante e o desejo dos indivíduos de ter respeitados seus direitos sociais e sua
dignidade pessoal. (NICHOLS, 2005, p. 38)
5. REFERÊNCIAS
5.1. Bibliográficas
AGUIAR, Carolina Amaral de. A História objeto do filme, o filme objeto da História. In:
LUDMER, Luis. Paixão de memória: Patricio Guzmán. São Paulo: Instituto Vladimir
Herzog, 2017.
GUZMÁN, Patricio. Filmar o que não se vê: um modo de fazer documentários. São Paulo:
Sesc. 2017.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. SP: Vértice, 1990. Disponível em:
http://bit.ly/2OWEkWw; Último acesso em: 11 de out. de 2019.
JOLY, Martine. Introdução a análise da imagem. Lisboa: Edições 70. 2007. Disponível em:
http://bit.ly/2MndPbk; Último acesso em: 11 de out. de 2019.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. 5. ed. SP: Papirus, 2005. Disponível em:
http://bit.ly/32qLshQ; Último acesso em: 13 de out. de 2019.
NORA, Pierre. “Entre memória e história: A problemática dos lugares”. In: Les lieux de
mémoire, I La République. Tradução autorizada pelo editor. Paris, Gallimard, 1984.
Disponível em: http://bit.ly/35Ed0Cp. Último acesso em: 13 de out. de 2019.
SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. RJ:
LeYa, 2016.
COSTA, Petra. Texto da mensagem. Brasil, 25 jun 2019. Twitter: @petracostal. Disponível
em: http://bit.ly/2IYvJPt. Último acesso em: 07 nov. 2020.
5.2. Audiovisuais
RETRATO Nº1 O POVO ACORDADO E SUAS 1000 BANDEIRAS. Edu Yatri Ioschpe.
Brasil, 2014, digital.