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Gramática e Redação FRENTE 1

MÓDULO 1 Estrutura da Dissertação e Critérios de Correção

PORTUGUÊS E
1. Introdução parágrafo final em que se podem levantar perspectivas
sobre o problema discutido (possíveis soluções). A con-
Dissertar é expor ideias a respeito de um deter- clusão pode, ainda, ser uma síntese da argumentação ou
minado assunto. É discutir essas ideias, analisá-las e uma retomada da tese, reafirmando-se o posiciona-
apresentar provas que justifiquem e convençam o leitor mento nela proposto.
da validade do ponto de vista de quem as defende.
䊏 Orientação para se
A dissertação, por isso, pressupõe:
elaborar uma dissertação
• exame crítico do assunto sobre o qual se vai
• Seu texto deve apresentar tese, desenvolvimento
escrever; • raciocínio lógico; • clareza, coerência e
(exposição/argumentação) e conclusão.
objetividade na exposição.
• Não se inclua na redação, não cite fatos de sua
Não pense que dissertar é uma prática destinada
vida particular, nem utilize o texto com fins doutri-
apenas a suprir as exigências dos vestibulares, ou ainda,
nários. Redija na terceira pessoa do singular ou do
um recurso exclusivo de grandes escritores e políticos ao
plural, ou ainda na primeira pessoa do plural.
discutir e defender seus pontos de vista. Você também,
• Seu texto pode ser expositivo ou argumentativo
no seu dia-a-dia, dispõe dos recursos que a língua ofe-
(ou ainda expositivo e argumentativo). As ideias-
rece. Dissertar é um exercício cotidiano e você o utiliza
núcleo ou tópicos frasais devem ser bem desen-
toda vez que discute com alguém, tentando fazer valer
volvidos, bem fundamentados. Evite que seu
sua opinião sobre qualquer assunto, por exemplo, fute-
texto expositivo ou argumentativo seja uma
bol. Isso porque o pensar é uma prática permanente da
sequência de afirmações vagas, sem justificativa,
nossa condição de seres sociais, cujas ideias são debati-
evidências ou exemplificação.
das e veiculadas através da comunicação linguística.
Portanto, dissertar é analisar de maneira crítica 䊏 Etapas para se elaborar uma dissertação
situações diversas, questionando a realidade e nossas 1.a) Ler atentamente o tema e refletir sobre o assunto de
posições diante dela. que trata.
2.a) Fazer um esboço mental do encadeamento que se
pretende dar às ideias.
2. Estrutura da dissertação
3.a) Elaborar o rascunho, evitando desviar-se do ponto de
vista assumido.
A dissertação, comumente, apresenta três partes:
4.a) Direcionar o texto para a conclusão desejada.
• Tese (parágrafo introdutório) – É a apresentação do
5.a) Ler o texto, submetendo-o a uma avaliação crítica.
assunto a ser discutido no desenvolvimento. Pode ser
6.a) Passá-lo a limpo, observando as regras gramaticais.
elaborada com uma afirmação, uma definição, uma cita-
7.a) Dar um título à redação, adequando-o ao texto.
ção ou uma interrogação, combinadas ou não entre si.
• Desenvolvimento (argumentação) – É a 䊏 Receita para um texto dissertativo
elaboração argumentativa da tese, uma análise crítica. • Como começar?
Deve apresentar exemplificações, justificativas, Após depreender o tema, transforme-o numa
explicações, juízos. Pode-se proceder a um confronto interrogação. A resposta a essa pergunta desencadeará
entre os pontos positivos e negativos do assunto (se as ideias. Reflita sobre o enfoque a ser dado: pense na
houver), às relações de causa e consequência, às possibilidade de concordar com o tema (total ou parcial-
comparações de natureza histórica ou geográfica, à mente), refutá-lo ou fazer uma oposição de ideias.
passagem do geral para o particular (e vice-versa) etc. Depois dessa reflexão, rascunhe livremente seu texto ou
• Conclusão (ponto de chegada da discussão) – É o planeje o conteúdo (sequência de ideias).
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• Como elaborar? preposições) entre termos, orações e períodos;


Para construir o parágrafo introdutório, considere as 4. concatenação de ideias, ou seja, ideias organizadas
abordagens mais coerentes com o seu conhecimento numa sequência lógica;
sobre o tema – uma citação, uma definição, uma 5. presença de linguagem original e criativa, isto é,
interrogação, uma trajetória histórica, uma enumeração, seleção adequada de vocabulário;
uma oposição etc., podendo combiná-las ou não.
6. obediência às normas gramaticais (pontuação,
• Como discutir?
PORTUGUÊS E

ortografia, colocação pronominal, crase, acentua-


Qualquer que seja o enfoque, selecione os
ção, concordância, regência).
argumentos (para endossar, refutar ou fazer oposições).
Anote evidências do cotidiano, fatos históricos, relacione 䊏 Aspectos negativos:
causa e consequência, pense, enfim, nos exemplos que • uso de expressões cujo sentido é inadequado ao
melhor fundamentam sua discussão. texto;
• Como argumentar? • emprego de vocabulário rebuscado e pomposo;
Observe se cada parágrafo argumentativo desenvolve • falta ou emprego incorreto de nexos gramaticais
adequadamente uma ideia-núcleo (por meio de evidên- (conjunções, preposições e advérbios);
cias, exemplos, relações de causa e consequência etc.). • construção de parágrafos isolados, sem relação
• Como concluir? entre si;
Para concluir, proceda de forma coerente com a • utilização de ideias contraditórias ao longo do
discussão: sintetize o assunto, retome o ponto de vista texto;
• falha na articulação dos argumentos: exemplos,
da tese ou lance uma perspectiva sobre o problema.
citações, análises críticas, sem relação de con-
Na correção das redações, em modalidade dis-
tinuidade;
sertativa para vestibular, serão valorizados os seguintes • retomada imprópria de ideias já discutidas,
aspectos: tornando redundante o texto;
1. correspondência entre o tema proposto e o texto • falta de posicionamento crítico em relação ao
criado pelo aluno; tema, ideias vagas;
2. obediência ao discurso (modalidade) pedido. No • uso de frases feitas, expressões esvaziadas de
sentido, que denotam ausência de espírito crítico
caso da Fuvest o discurso é dissertativo (tese,
e banalizam o texto;
argumentação e conclusão); • conclusão incoerente com o encaminhamento
3. presença de coesão (uso adequado de conjunções e dado ao texto.

TEXTO NOTA DEZ – (FUVEST) danos futuros, o que prejudica o convívio pacífico entre
jovens (que recebem tais influências) e adultos.
EXPERIÊNCIA
Por terem se rebelado contra a injustiça e a corrupção,
A geração que constitui os pais e educadores dos jovens defendem a integridade moral como verdadeiro meio de
de hoje é, sem dúvida, a que mais vivenciou as transformações realização pessoal. Por terem visto a violência como resulta-
sociais, econômicas, políticas e tecnológicas sofridas pelo País do da falta de princípios, pregam e incentivam a religião. São,
e pelo mundo. Ela assistiu a guerras, embates ideológicos e muitas vezes, chamados de “caretas”, reacionários e
crises, sentiu o peso de censuras e repressões, alegrou-se com ultrapassados por essa mesma sociedade, que valoriza o
a descoberta de vacinas e tratamentos, lutou pela liberdade e lucro, o “jeitinho”, o trapace*.
pela justiça. É, certamente, a que mais encontra dificuldades É verdade que muitos desses formadores de opinião não
para formular conceitos e valores a serem transmitidos. seguem tais padrões, tranformando-se em maus exemplos,
Por terem presenciado os horrores das guerras, ensinam a maioria, contudo, tem se esforçado por transmitir esses
que não há nada melhor para conciliar divergências que o valores, mesmo oprimidos pelos interesses capitalistas de
diálogo (e, de fato, mesmo as guerras mais recentes cessam hoje. É preciso, portanto, compreender sua dificuldade em
quando tal atitude é tomada). A sociedade, entretanto, prega lidar com uma sociedade em constante transição – mas,
a competição e a violência, o que inutiliza, muitas vezes, esse certamente, os jovens que lhes seguem os ensinamentos,
ensinamento. frutos da experiência, serão pessoas íntegras e felizes.
Por terem lutado pela liberdade, garantem-na como (Eveline Oliveira de Castro, aluna do 3.o colegial da Unidade de Mogi
direito universal – mas, por experiência própria, sabem que das Cruzes, aprovada no vestibular 2002, Medicina-USP)

seu excesso pode ser nocivo. A ideologia corrente, por sua Nota: a expressão “o trapace” não está dicionarizada, o correto é a
vez, defende o prazer, o pleno divertimento, mesmo à custa de trapaça.

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MÓDULO 2 Funções da Linguagem

A classificação das funções da linguagem depende em Pan-Americanos. Adhemar Ferreira da Silva foi
das relações estabelecidas entre elas e os elementos bicampeão no salto triplo e quebrou o recorde mundial
que participam do circuito da comunicação: no Pan de 1955, no México. Vinte anos depois, também
no México e na mesma prova, João Carlos de Oliveira,

PORTUGUÊS E
o João do Pulo, deu à torcida brasileira um momento
inesquecível. Saltou incríveis 17,89 metros de distância,
45 centímetros a mais que o soviético Victor Saneyev,
até então recordista nessa prova.
(Superinteressante, julho/2007)

II) Função emotiva ou expressiva – centrada no


emissor, o eu da comunicação – é aquela que exterio-
riza o estado psíquico do emissor, traduzindo suas
opiniões e emoções. Aparece, portanto, na primeira
pessoa:

O linguista russo Roman Jakobson, baseando-se


nos seis elementos da comunicação, elaborou este A tua ausência, para que a minha dor não acha
quadro das funções da linguagem. Segundo ele, cada nome bastante triste, há de privar-me para sempre de
função é centrada em um dos seis elementos que me mirar nos teus olhos, onde eu vi tanto amor, que me
compõem o circuito da comunicação. O reconhecimento enchiam de alegria, que eram tudo para mim?
e a adequada utilização das funções são fundamentais Ai de mim! Os meus perderam a luz que os
tanto na produção quanto no entendimento de qualquer alumiava e não fazem senão chorar.
tipo de texto. (Sóror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas)

III) Função fática – centrada no canal da comunica-


I) Função referencial – centrada no contexto (a
ção – é aquela que tem por objetivo estabelecer o
referência ou o referente da mensagem) – é aquela
contato com o receptor (“Olá, como vai?”), testar o
que remete à realidade exterior; sua finalidade é
funcionamento do canal (“Alô, está me ouvindo?”)
informar o receptor. É usada principalmente em textos
ou prolongar o contato, na falta de outro conteúdo a
de caráter objetivo e teor informativo:
comunicar (“Pois é”, “É fogo”, “É” etc.):

Nas 14 edições dos Jogos Pan-Americanos, 34


marcas mundiais foram quebradas. Só no Pan de 1967,
em Winnipeg, foram 14 recordes batidos, dos quais 3 SINAL FECHADO
pelo nadador americano Mark Spitz, o maior recordista
mundial em Pan. — Olá, como vai?
O atletismo foi a modalidade que rendeu os dois — Eu vou indo, e você? Tudo bem?
únicos recordes conquistados por esportistas brasileiros (Paulinho da Viola e Chico Buarque)

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Filho de rico é boy, filho de pobre é motoboy.

IV) Função conativa ou apelativa – centrada no


Lojas Marabraz
receptor (tu ou você), a segunda pessoa da comu-
Preço melhor
nicação – é aquela que tem por objetivo influir no
Ninguém faz
comportamento do receptor, por meio de um apelo
PORTUGUÊS E

ou ordem. Emprega verbos no imperativo e voca-


(Nos casos desses exemplos, a função poética não
tivos. É utilizada principalmente em textos propagan-
predomina, como ocorre na poesia e na literatura; ela é
dísticos e outros que visam a convencer o receptor a
uma função secundária.)
adotar alguma opinião ou comportamento:

VI) Função metalinguística – centrada no código – é


Não acredites no que teus olhos te dizem, tudo o
aquela voltada para a própria linguagem e seus ele-
que eles mostram é limitação.
Olha com entendimento, descobre o que já sabes mentos (palavras, regras gramaticais, estruturas da

e verás como voar... mensagem etc.). Também corresponde à função


(Richard Bach) metalinguística o comentário ou explicação de outros
Beba coca-cola. códigos e suas mensagens (visuais, como a pintura
ou o cinema; sonoros, como a música etc.):

V) Função poética – centrada na mensagem – é


— O que significa “olhar vulpino”?
aquela em que o essencial é a organização do texto
— Significa olhar de raposa.
(a mensagem), por meio da seleção e arrumação de
palavras, dos efeitos sonoros e rítmicos, do jogo
POEMAS
com figuras de linguagem e do aproveitamento de
todo tipo de simetrias ou antis-simetrias entre pala-
Os poemas são pássaros que chegam
vras e frases. É utilizada principalmente em textos
não se sabe de onde e pousam
literários:
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Podeis aprender que o homem
Eles não têm pouso
é sempre a melhor medida;
nem porto,
Mais, que a medida do homem
alimentam-se um instante
não é a morte, mas a vida.
em cada par de mãos
(João Cabral de Melo Neto)
e partem.

A função poética ocorre também em textos em que E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
o discurso convencional recebe uma configuração nova, no maravilhado espanto de saberes
produzindo um efeito estético inesperado (humor, que o alimento deles já estava em ti...
impacto, estranheza): (Mário Quintana)

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MÓDULOS 3 e 4 Dissertação – Coeão


Uma dissertação bem redigida apresenta, necessariamente, perfeita articulação de ideias. Para obtê-la, é
necessário promover o encadeamento semântico (significado, ideias) e o encadeamento sintático (mecanismos que
ligam uma oração à outra). A coesão (elemento da frase A retomado na frase B) é obtida, principalmente, por meio dos
elementos de ligação que proporcionam as relações necessárias à integração harmoniosa de orações e parágrafos em
torno de um mesmo assunto (eixo temático).

PORTUGUÊS E
Com base em um levantamento elaborado por Othon Moacyr Garcia (Comunicação em Prosa Moderna), rela-
cionamos os elementos de coesão mais usuais, agrupados pelo sentido.

Prioridade, relevância
{ em primeiro lugar, antes de mais nada, primeiramente, acima de tudo, preci-
puamente, principalmente, primordialmente, sobretudo.

{
então, enfim, logo, logo depois, imediatamente, logo após, a princípio, pouco
Tempo (frequência, antes, pouco depois, anteriormente, posteriormente, em seguida, afinal, por fim,
duração, ordem, finalmente, agora, atualmente, hoje, frequentemente, constantemente, às vezes,
sucessão, eventualmente, por vezes, ocasionalmente, sempre, raramente, não raro, ao
anterioridade, mesmo tempo, simultaneamente, nesse ínterim, nesse meio tempo, enquanto,
posterioridade) quando, antes que, depois que, logo que, sempre que, assim que, desde que,
todas as vezes que, cada vez que, apenas, já, mal.

igualmente, da mesma forma, assim também, do mesmo modo, similarmente,


Semelhança,
comparação,
conformidade { semelhantemente, analogamente, por analogia, de maneira idêntica, de
conformidade com, de acordo com, segundo, conforme, consoante sob o mesmo
ponto de vista, tal qual, tanto quanto, como, assim como, bem como, como se.

Condição, hipótese { se, caso, salvo se, contanto que, desde que, a menos que etc.
Adição, continuação
{ além disso, (a)demais, outrossim, ainda mais, ainda por cima, por outro lado,
também e as conjunções aditivas (e, nem, não só ... mas também etc.).

Dúvida
{ talvez, provavelmente, possivelmente, quiçá, quem sabe, é provável, não é certo,
se é que.

Certeza, ênfase
{ decerto, por certo, certamente, indubitavelmente, inquestionavelmente, sem dúvi-
da, inegavelmente, com toda a certeza.

Surpresa, imprevisto
{ inesperadamente, inopinadamente, de súbito, imprevistamente, surpreendente-
mente, subitamente, de repente.

Ilustração,
esclarecimento { por exemplo, isto é, quer dizer, em outras palavras, ou por outra, a saber.

Propósito, intenção,
finalidade { com o fim de, a fim de, com o propósito de, para que, a fim de que.

Lugar, proximidade,
distância { perto de, próximo a ou de, junto a ou de, dentro, fora, mais adiante, aqui, além,
acolá, lá, ali, algumas preposições e os pronomes demonstrativos.

Resumo, recapitulação,
conclusão { em suma, em síntese, em conclusão, enfim, em resumo, portanto, assim, dessa
forma, dessa maneira, logo, pois.

{
por consequência, por conseguinte, como resultado, por isso, por causa de, em
Causa e consequência, virtude de, assim, de fato, com efeito, tão... que, tanto... que, tal... que, tamanho...
explicação que, porque, porquanto, pois, que, já que, uma vez que, visto que, como (=
porque), portanto, logo, pois (posposto ao verbo), que (= porque).

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Contraste, oposição,
restrição, ressalva { pelo contrário, em contraste com, salvo, exceto, menos, mas, contudo, todavia,
entretanto, embora, apesar de, ainda que, mesmo que, posto que, conquanto, se
bem que, por mais que, por menos que, no entanto, não obstante.

Alternativas { ou ... ou, ora ... ora, quer ... quer, seja ... seja, já ... já, nem ... nem.
Proporcionalidade { à proporção que, à medida que, ao passo que, quanto mais, quanto menos.
PORTUGUÊS E

Segundo Celso Cunha, certas palavras têm classificação à parte, por isso convém “dizer apenas palavra ou locução
denotativa” de
a) inclusão: até, inclusive, mesmo, também etc.
b) exclusão: apenas, exceto, salvo, senão, só, somente etc.
c) designação: eis
d) realce: cá, lá, é que, só etc.
e) retificação: aliás, ou antes, isto é, ou melhor etc.
f) situação: afinal, agora, então, mas etc.

Exemplo de texto dissertativo com elementos de coesão destacados:

Viver é perigoso, mas navegar é preciso

O mundo moderno fez da segurança sua maior obsessão.


Nos países desenvolvidos tudo é calculado para reduzir a margem de risco ao
mínimo, seja nas aplicações financeiras, nos negócios, nos contratos, nas cirurgias,
nos automóveis, nos aviões, nos bancos, nas casas, nas lojas, nas ruas, no trânsito,
na conduta dos pedestres, tudo coberto e supervisionado pela informática da mais alta
precisão. E, no entanto, as bolsas despencam, arrastando consigo países inteiros, os
negócios fracassam, os aviões caem misteriosamente, os bancos, as casas, as pes-
soas são assaltadas, os circuitos de segurança falham. (...)

A preocupação exagerada com a segurança não evitou duas guerras mundiais


devastadoras, nem eliminou bolsões vergonhosos de miséria num mundo cada vez
mais rico, e muito menos impediu o surgimento dos Estados totalitários e autoritários.
(...)

A vida humana não é possível sem certa margem de segurança (o conceito, as


crenças sociais, a ciência, a lei, os paradigmas, a religião, a tecnologia etc.), mas os
instrumentos de segurança não podem abafar nem paralisar a vida em sua esponta-
neidade e em seu impulso criador. Não são feitos para substituir a vida, e sim para
assegurá-la. Em outras palavras: a segurança só tem sentido e valor como atributo
da vida em movimento, da vida em expansão, em busca de novos horizontes; e perde
o valor e o sentido quando degenera na malha de aço que cai sobre nossos ombros
e trava por completo nossa liberdade de ação. (...)

Viver é perigoso porque – como ensina o filósofo Nietzsche – a vida nos é dada,
mas não nos é dada feita. Temos nós mesmos de fazer nossa vida, a cada passo, a
cada instante, escolhendo sempre a atitude, a ideia, a ação, a palavra adequada a cada
situação, sob risco de perdição. O perigo mora dentro da vida, é intrínseco a ela, não
sobrevém de fora, como parece.
Viver é perigoso, mas navegar é preciso.

(Gilberto de Mello Kujawski, O Estado de S. Paulo, texto adaptado.)

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Literatura FRENTE 2

MÓDULO 1 Classicismo (I): Camões lírico

PORTUGUÊS E
Sob o reinado de D. Manuel, o 2. A escola clássica
CONCEITO E ÂMBITO
Venturoso, Portugal gozou de mo- renascentista (1527-1580)
A MEDIDA NOVA
mentânea mas intensa euforia, gra-
LUÍS DE CAMÕES
ças a grandes cometimentos: desco- Ainda que, já no fim da Idade Mé-
berta do caminho marítimo para as dia, os autores da Antiguidade Clássica
1. O Renascimento Índias, empreendida por Vasco da fossem conhecidos em Portugal, só
䊏 Conceito e âmbito Gama em 1498; descobrimento do se pode falar na existência de um
O Renascimento foi um dos perío- Brasil em 1500; conquista de Goa e estilo renascentista expressivo a
dos mais férteis da cultura ocidental: de regiões da África entre 1507 e partir de 1527, quando o poeta Sá de
Dante, Camões, Petrarca, 1513; viagem de circum-navegação Miranda regressa da Itália, local em
Shakespeare, Rabelais, Ronsard, realizada por Fernão de Magalhães que viveu, entre 1520 e 1527, e onde
Cervantes, Tasso, Ariosto, Da Vinci, entre 1519 e 1520. esteve em contato com a literatura da
Michelângelo alinharam-se como as Desses fatos sobreveio uma ex- Renascença italiana, o dolce stil
mais portentosas figuras da arte em traordinária prosperidade econômica: nuovo, iniciando a divulgação, em Por-
todos os tempos. Foi um período Lisboa transformou-se num importante tugal, das modalidades poéticas clás-
marcado pela supervalorização do centro comercial; na corte imperava o sicas. Esse conjunto de procedimen-
homem, pelo antropocentrismo, luxo desmedido, na certeza de que a tos artísticos, que, em território luso,
pelo hedonismo, em oposição ao Pátria havia chegado a uma inalterável chamou-se medida nova, consistia:
teocentrismo, misticismo e ascetismo • na utilização do verso decassíla-
riqueza material. Este ufanismo,
medievais. bo, em lugar dos redondilhos tradicionais;
contudo, foi declinando até a der-
O interesse pelo homem e pelo • na predileção pelas formas fi-
que ele poderia realizar de alto, rocada final em Alcácer-Quibir, em
1578, com a destruição do exército xas, inspiradas nos modelos latinos e
profundo e glorioso (Humanismo) italianos: o soneto, o terceto, a sexti-
inspirou o conceito de homem in- português e morte de D. Sebastião. A
literatura começou a refletir a co- na, a oitava, a ode, a elegia, a canção,
tegral, senhor do mundo, sequioso a écloga, a epístola, o epigrama, o
para conhecê-lo totalmente. moção épica gerada pelo progresso
nas primeiras décadas do século XVI, epitalâmio; além do teatro clássico,
䊏 Características centrais mas refletiu também, vez por outra, o com a tragédia grega e a comédia
do Renascimento desalento e a advertência, lúcidos latina, regidas pela “lei das três uni-
• Equilíbrio e harmonia de dades” (de tempo, de lugar e de ação);
perante a dúbia e provisória supe-
forma e fundo. Clareza, mentalidade • na assimilação da influência
rioridade.
aberta, intensidade vital, ímpeto temática e formal de autores como
O Renascimento português não
progressista, euforia, ânsia de glória e Horácio, Virgílio, Ovídio, Plauto,
representou, como nos países protes-
perenidade, apreço pelo humano. Terêncio, Homero, Píndaro,
tantes, uma revolução cultural tão
• Universalismo, apego aos Anacreonte, Sannazzaro, Boccaccio,
extensa e profunda. Na facção pro-
valores transcendentais (o Belo, o Boiardo, Torquato Tasso, Ariosto,
testante, as condições foram mais
Bem, a Verdade, a Perfeição) e aos Dante Alighieri e Petrarca, além da
favoráveis à liberdade de pensa-
sistemas racionais; simplificação por releitura dos filósofos gregos Platão e
mento e à difusão popular da cultura,
lucidez técnica, simetria. Aristóteles, filtrados pelo pensamento
graças à propagação da imprensa,
• Culto da Antiguidade greco- cristão de São Tomás de Aquino e
veículo privilegiado pela Reforma
-latina. Deuses pagãos usados como Santo Agostinho.
Luterana. Em Portugal, como na Contudo, o espírito medieval não
figuras literárias e claras alegorias.
Espanha e Itália, a Contrarreforma foi completamente abandonado. Por
Católica inaugurou, precocemente,
䊏 O Renascimento português isso, o Quinhentismo luso constituiu
O Renascimento em Portugal um período de recalque ideológico e uma época bifronte, pela coexistência
correspondeu ao período de apogeu de repressão. Em 1547, o Santo e, não raro, a interinfluência das duas
da Nação, cujo império, à semelhan- Ofício visitou ca sas e livrarias à formas de cultura: a medieval,
ça do império inglês do século XIX, procura de livros heréticos. Gil Vicente, popular, tradicional, materializada na
abrangia do Oriente (China, Índia) ao Camões, Sá de Miranda, Antônio medida velha, e a clássica, erudita,
Ocidente (Brasil), e marcou, com Ferreira, entre outros, foram consi- renascentista, que se expressou por
Camões, a plena maturação da lín- derados “agentes contra a Fé e os meio da medida nova. Esse
gua portuguesa. Costumes”. bifrontismo foi lugar-comum entre os
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autores portugueses da época renas- aos domínios da Espanha. Poucos dias mões, marcada pelo tom reflexivo,
centista, cujas aparentes contradições antes de morrer, em carta a um pela dialética cerrada e pela reflexão
só podem ser explicadas quando se amigo, D. Francisco de Almeida, dizia: densa sobre o tema lírico-amoroso,
tem em vista a ambivalência cultural “Enfim acabarei a vida e verão todos sobre os transes existenciais do poe-
da época. que fui tão afeiçoado à minha pátria, ta e sobre o desconcerto do mundo.
No caso português, acresce não que não me contentei em morrer Em ambas as vertentes, Camões
ter havido um Renascimento típico, nela, mas com ela”. foi o maior poeta de seu tempo. Sua
pois, dada a prevalência do catoli- obra abrange as diversas correntes
PORTUGUÊS E

cismo e do poder eclesiástico, o ra- 䊏 Camões lírico artísticas e ideológicas do século XVI
cionalismo e a ideologia burguesa não O tema central da lírica camo- e reflete uma experiência pessoal
vingaram de modo tão expressivo niana é o amor, concebido não sim- múltipla.
como ocorreu em outros países. plesmente como um sentimento,
3. Luís de Camões mas como uma força vital, uma força 䊏 As redondilhas de Camões
cósmica que pode elevar o espírito. Sem muita rigidez, pode-se dizer
A biografia de Camões apresenta Camões celebrou amores, a beleza que a grande maioria das composições
problemas insolúveis por falta de feminina, o prazer sensual (os versos na medida velha, em versos redondilhos,
dados seguros. Lisboa, Coimbra, em que descreve o encanto da es- ao gosto do público palaciano, e à
Alenquer e Santarém disputam o seu crava negra, a menina dos olhos ver- maneira do Cancioneiro Geral de Garcia
nascimento. Mais provável Lisboa ou des, a moça que vai buscar água na de Resende, data da mocidade de
Coimbra, por volta de 1525. Morreu fonte); mas celebrou também o amor Camões. Em geral, as redondilhas são
em 1580, em Lisboa. espiritual (o amor dito “platônico” e leves, brincalhonas, madrigalescas e
Em 1552, num dia de Corpus que mais propriamente se deve destinam-se à recitação na corte.
Christi, numa rixa com um funcionário considerar um sinal do neoplato- Revelam a habilidade formal do poeta,
do paço, Gonçalo Borges, foi ferido nismo camoniano). Neste último que usa imagens, trocadilhos e
com um golpe de espada, tendo sido caso, o amor é visto como força que ambiguidades mais voltados para a
recolhido à prisão do Tronco. No ano pode libertar o espírito do mundo da
magia verbal, para a demonstração da
seguinte, como aventureiro, tomou matéria e elevá-lo a um plano material
habilidade na manipulação de palavras e
parte em várias expedições, superior.
conceitos, do que para a expressão
refazendo assim toda a rota de Vasco Outros temas da obra lírica camo-
pessoal e individualizada.
da Gama, na viagem do descobri- niana são a mudança constante de
mento do caminho marítimo para as tudo, ou seja, a instabilidade da vida
Índias, que mais tarde se converteu humana, e o desconcerto do TEXTOS
na ação central de Os Lusíadas. mundo, ou seja, a desordem e a
Em 1555, envolveu-se em traba- desrazão que governam tudo. Dessas DESCALÇA VAI PARA A FONTE
lhos de guerra em Goa, cujo gover- características, também decorre a
nador era Afonso de Albuquerque. Por necessidade de um mundo superior, MOTE
volta de 1558, esteve em Macau liberto deste mundo de aparências
(China), primeiro estabelecimento enganosas, no qual o próprio amor Descalça vai para a fonte
europeu no Extremo Oriente. Aí foi não passa de fonte de desenganos e Lianor pela verdura;1
Provedor-Mor de Bens de Defuntos e sofrimentos. vai formosa, e não segura.
Ausentes, importante cargo adminis- Os livros didáticos, sem muito
trativo. Acusado de irregularidades, rigor, abordam duas vertentes da lírica VOLTAS
voltou preso a Goa, para justificar-se. de Camões:
Durante a viagem (1559), naufragou às • a primeira, tradicional, popular, Leva na cabeça o pote,
margens do Rio Mekong, no Camboja. de inspiração medieval, vazada em o testo2 nas mãos de prata,
Em Os Lusíadas há uma alusão a este trovas, vilancetes, cantigas e es- cinta de fina escarlata,
fato e ao seu salvamento com o parsas, composta em versos redondi- sainho de chamalote3;
manuscrito de Os Lusíadas, o que faz lhos, na medida velha, com utiliza- traz a vasquinha4 de cote5,
ver que a obra devesse estar quase ção frequente de motes e glosas. É mais branca que a neve pura;
completa (Canto X, 127-128). É da uma poesia leve, galante, madriga- vai formosa, e não segura.
tradição que tenha perdido neste lesca, como as composições do Can-
naufrágio seu grande amor oriental cioneiro Geral de Garcia de Resende; Descobre a touca a garganta,
(Dinamene), em memória de quem • a segunda, clássica, erudita, de cabelos de ouro o trançado,
fez o soneto “AIma minha gentil que inspiração italiana, vazada em fita de cor de encarnado6,
te partiste”, além de outros. sonetos, canções, odes, oitavas, éclo- tão linda que o mundo espanta!
Morreu miserável em 1580, após gas, tercetos, sextinas e elegias, Chove nela graça tanta,
o desastre militar de Alcácer-Quibir, composta em decassílabos, na que dá graça à formosura;
que antevia a anexação de Portugal medida nova. É a maturidade de Ca- vai formosa, e não segura.

8–
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Vocabulário e Notas Amor é fogo que arde sem se ver; Continuamente vemos novidades,
1 – Verdura: vegetação. é ferida que dói e não se sente; diferentes em tudo da esperança;
2 – Testo: tampa do pote. do mal ficam as mágoas na lembrança,
é um contentamento descontente;
3 – Chamalote: tecido de lã e seda. e do bem (se algum houve) as saudades.
4 – Vasquinha: saia de vestir por cima de toda é dor que desatina sem doer.
a roupa, com muitas pregas na cintura.
O tempo cobre o chão de verde manto,
5 – De cote: de uso diário. É um não querer mais que bem querer; que já coberto foi de neve fria,
6 – Encarnado: vermelho.

PORTUGUÊS E
é um andar solitário entre a gente; e, enfim, converte em choro o doce

Comentários é nunca contentar-se de contente; [canto.


Trata-se de um vilancete, com mote e é um cuidar que ganha em se perder.
glosa, na medida velha (redondilha). Faz parte E, afora este mudar-se cada dia,
de um ciclo de redondilhas em torno do tema outra mudança faz de mor espanto:
É querer estar preso por vontade;
da donzela que caminha descalça para algum que não se muda mais como soía.
é servir a quem vence, o vencedor;
lugar (para a fonte, pela neve etc.)
De inspiração medieval e popular (pela é ter com quem nos mata lealdade.
***
forma, pela protagonista e pelo sentimento
amoroso expresso), a redondilha acentua a ten- Mas como causar pode seu favor Quando da bela vista e doce riso,
dência para a elaboração engenhosa de
nos corações humanos amizade, tomando estão meus olhos mantimento,
conceitos, para o jogo de ideias e para a cons-
trução antitética e paradoxal, pressagiando a se tão contrário a si é o mesmo Amor? tão enlevado sinto o pensamento
vertente conceptista da poesia barroca. que me faz ver na terra o Paraíso.
À maneira das cantigas de amigo, a
protagonista, Leonor, é uma mulher do povo, *** Tanto do bem humano estou diviso,
de hábitos simples. O poeta oscila entre a des- que qualquer outro bem julgo por vento;
contração e o realismo das cantigas, a expres- assi, que em caso tal, segundo sento,
são direta do sentimento amoroso e a ex- Alma minha gentil, que te partiste assaz de pouco faz quem perde o siso.
pressão elevada e conceitual do amor, que irá
tão cedo desta vida, descontente,
marcar a lírica clássica dos sonetos.
repousa lá no Céu eternamente, Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDO porque quem vossas cousas claro sente,
e viva eu cá na Terra sempre triste.
sentirá que não pode merecê-las.
Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos; Se lá no assento etéreo, onde subiste, Que de tanta estranheza sois ao mundo,
e, para mais me espantar, memória desta vida se consente, que não é d’estranhar, Dama excelente,
os maus vi sempre nadar
não te esqueças daquele amor ardente que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim que já nos olhos meus tão puro viste.
o bem tão mal ordenado, ***
fui mau, mas fui castigado.
E se vires que pode merecer-te
Assim que só para mim Cara minha inimiga, em cuja mão
alguma coisa a dor que me ficou
anda o mundo concertado. pôs meus contentamentos a ventura,
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
faltou-te a ti na terra sepultura,
䊏 A lírica clássica camoniana por que me falte a mim consolação.
Sob influência da escola renas- roga a Deus, que teus anos encurtou,
centista italiana, ou escola petrarquis- que tão cedo de cá me leve a ver-te, Eternamente as águas lograrão
ta, Camões realizou a parcela mais quão cedo de meus olhos te levou. a tua peregrina formosura;

densa e perfeita de sua lírica. Com os mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minh’alma te acharão.
decassílabos da medida nova e com
as formas fixas do Classicismo ***
E se meus rudos versos podem tanto
(sonetos, canções, odes, elegias,
que possam prometer-te longa história
éclogas, oitavas e sextinas), o poeta daquele amor tão puro e verdadeiro,
conseguiu o mais alto equilíbrio entre Mudam-se os tempos, mudam-se as
a disciplina, o virtuosismo formal e a [vontades, celebrada serás sempre em meu canto,
reflexão profunda sobre o sentido do muda-se o ser; muda-se a confiança; porque enquanto no mundo houver
amor e da vida. Leia a seguir alguns todo o mundo é composto de mudança, [memória
de seus sonetos: tomando sempre novas qualidades. será minha escritura teu letreiro.

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MÓDULO 2 Classicismo (II): Camões épico – Os Lusíadas


1. Epopeia camoniana: Os Lusíadas Datadas do ano de 1572, há duas 3. As partes do poema
edições de Os Lusíadas, praticamente
Epopeia é um poema do gênero A proposição (estrofes 1 e 2) é
idênticas. Não se sabe se as duas
épico, poesia de tom elevado, heroica, parte obrigatória do poema épico. É a
foram feitas pelo poeta naquele ano
PORTUGUÊS E

que conta uma história e celebra um apresentação do assunto. O núcleo da


ou se uma delas (não se saberia qual)
herói, em aventuras geralmente proposição está nos versos 15 e 16
é falsificação posterior, feita para iludir
guerreiras, cujo sentido grandioso se (“Cantando espalharei por toda parte /
a Inquisição (que fora tolerante quando
liga à vida da sociedade a que pertence. Se a tanto me ajudar o engenho e arte”):
da primeira edição do poema, mas
Depois das grandes epopeias da exigiu alterações em edição posterior).
As armas e os barões1 assinalados,
Antiguidade (a Ilíada e a Odisseia, de Além de Os Lusíadas, Camões não Que, da Ocidental praia Lusitana2,
Homero, do século VIII a.C.), a poesia publicou nenhum outro livro. Por mares nunca dantes navegados3,
épica raras vezes atingiu a altura a Passaram ainda além da Taprobana4,
que se elevam Os Lusíadas. Nesse Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
poema, os grandes ingredientes do
E entre gente remota5 edificaram
gênero épico estiveram presentes:
Novo Reino, que tanto sublimaram6.
um momento grandioso, um
assunto grandioso e um poeta E também as memórias gloriosas
grandioso. Daqueles Reis que foram dilatando7
A Fé, o Império, e as terras viciosas8
O momento foi o Renascimento,
De África e de Ásia andaram devastando,
uma época fervilhante, de expansão
E aqueles que por obras valorosas
das fronteiras do mundo conhecido Se vão da lei da Morte libertando9:
— expansão no espaço (descobriu-se Cantando espalharei10 por toda parte,
grande parte do planeta), no tempo Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
(redescobriu-se toda a Antiguidade) e
Vocabulário e Notas
no espírito (ampliou-se enormemente
1 – Armas: guerras; barões: varões.
o conhecimento e iniciou-se a 2 – Portugal é o país mais ocidental da Europa.
investigação científica do mundo). 3 – Verso célebre, muito repetido.
(Hoje, procura-se lembrar que a ex- Rosto da primeira edição (em 1572) de 4 – Taprobana: Ceilão (hoje Sri Lanka), ponto-
Os Lusíadas. A edição princeps tem, na
pansão geográfica custou caro para -limite primeiro ultrapassado pelos portugueses.
moldura superior, o desenho de um pelicano
5 – Gente remota: povos distantes.
os outros, os povos das terras “des- com o bico voltado para a esquerda.
6 – Sublimar: elevar, enaltecer.
cobertas”, para os quais a chegada
7 – Dilatar: ampliar, ou seja, espalhar pelo
dos europeus significou, na maioria 2. Divisões formais: mundo.
dos casos, dominação, destruição cul- cantos e estrofes 8 – A Fé, o Império: O Cristianismo e o Império
tural, escravidão e morte.) português; terras viciosas: países não cristãos.
O assunto é um grande episódio • O poema divide-se em dez 9 – Se vão da lei da Morte libertando: Vão-se
cantos (cantos são as principais divi- tornando imortais, porque serão sempre
da conquista dos mares e avanço
lembrados.
sobre terras distantes e desconhe- sões materiais ou partes de um poe-
10 – Cantando espalharei: nessa expressão es-
cidas: o descobrimento do caminho ma, correspondendo, na prosa, aos
tá o verbo principal, do qual tudo o que veio
marítimo para as Índias, realizado no capítulos). Cada canto contém em antes é objeto.
fim do século XV por um português, média 110 estrofes ou estâncias. O
Vasco da Gama, numa época em que Canto VII é o mais curto, com 87 Depois dessa proposição — espa-
Portugal vivia seu apogeu e estava na estrofes; o Canto X é o mais longo, lhar pelo mundo, com seu poema, os
vanguarda da aventura conquistadora com 156 estrofes. grandes feitos dos portugueses —, o
da Europa. • O poema compõe-se de 1.102 poeta faz a invocação, não das
É com Os Lusíadas que a língua estrofes, com 8 versos em cada uma, Musas (deusas que presidiam às
portuguesa adquire, definitivamente, dispostos em oitava-rima (esquema artes), mas das Tágides, ou ninfas do
sua maioridade. ABABABCC). Rio Tejo, para que o inspirem:
10 –
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E vós, Tágides minhas, pois criado O início da ação (I, 19) dá-se, não Vocabulário e Notas
Tendes em mim um novo engenho 1 – Escuma: espuma.
no início da viagem de Vasco da
[ardente1, 2 – Consagrado: sagrado, santificado.
Gama, mas quando os navegadores já 3 – Próteu: deus marinho, guardador do gado
Se sempre, em verso humilde, celebrado
estão em pleno Oceano Índico, na de Netuno. Tinha o dom de tomar todas as for-
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado, costa leste da África, à altura da Ilha mas possíveis.
de Madagáscar. Só mais tarde é que 4 – Consílio: conselho, assembleia.
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas Febo2 ordene se irão narrar o início da viagem, a

PORTUGUÊS E
No Canto X, a narrativa encerra-se
Que não tenham inveja às de Hipocrene3. partida das naus e os incidentes da
e o poema termina com um epílogo
navegação no Atlântico.
Vocabulário e Notas desalentado, em que o poeta lamenta
Camões, na estrofe 19 do primeiro
1 – Engenho ardente: refere-se à inspiração a situação presente de seu país e
épica (heroica).
canto, apresenta rapidamente os dirige-se de novo a D. Sebastião,
2 – Febo: Apolo, deus do sol e aquele que presi- navegadores já no Índico, para, a se- retomando a exortação que a ele
de as musas. guir, apresentar a primeira ação mito- fizera na dedicatória do poema.
3 – Hipocrene: fonte que o cavalo alado Pé- lógica, a primeira intervenção do Contrapondo-se ao tom vibrante
gaso fez brotar no Hélicon. Quem bebesse de “maravilhoso pagão”, no episódio do e ufanista do início do poema, o des-
suas águas se tornaria poeta.
“Consílio dos Deuses no Olimpo”: fecho contém uma dolorosa crítica à
decadência do país, corroído pela
Em seguida, propõe uma inflama-
Já no largo Oceano navegavam, ambição desmedida de conquista e
da dedicatória a D. Sebastião, esti- As inquietas ondas apartando;
de riqueza. É uma clara premonição
mulando-o a uma grande empresa de Os ventos brandamente respiravam,
da derrocada do país, submetido à
conquista que o elevasse à altura de Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma1 os mares se mostravam
Espanha, e de seu Império Oriental:
seus ilustres antepassados (sabe-se
Cobertos, onde as proas vão cortando
do desastre em que terminaria, pou- Não mais, Musa1, não mais, que a Lira tenho
As marítimas águas consagradas2,
cos anos depois, a aventura de D. Se- Destemperada2 e a voz enrouquecida,
Que do gado de Próteu3 são cortadas, E não do canto, mas de ver que venho
bastião na África):
Cantar a gente surda e endurecida3.
Quando os Deuses no Olimpo luminoso, O favor com que mais se acende o engenho
E, enquanto eu estes canto, e a vós não Onde o governo está da humana gente, Não no dá a pátria, não, que está metida
Se ajuntam em consílio4 glorioso, No gosto da cobiça e na rudeza
[posso,
D’uma austera, apagada e vil tristeza.
Sublime Rei, que não me atrevo a tanto, Sobre as coisas futuras do Oriente.
Tomai as rédeas vós do Reino vosso: (...)
Dareis matéria a nunca ouvido canto. Vocabulário e Notas
1 – Musa: Camões dirige-se novamente a suas
Comecem a sentir o peso grosso
inspiradoras, as Tágides, para informá-las de
(Que pelo mundo todo faça espanto) que vai parar o poema, não porque tivesse se
De exércitos e feitos singulares cansado do canto, mas porque sente falta do
De África as terras e do Oriente os mares. maior estímulo à sua poesia: o reconhecimento
do povo, da pátria.
2 – Destemperado: desafinado.
Na estrofe 19, inicia-se a nar- 3 – Gente surda e endurecida: o povo portu-
ração de Os Lusíadas, a qual com- guês. Para alguns críticos, Camões refere-se
apenas àquela parcela corroída pela ganância e
preende três ações principais: a via-
pelo individualismo. Para outros, o sentido da
gem de Vasco da Gama, a história crítica é mais amplo e atinge toda a Nação,
de Portugal e a luta dos deuses do entregue ao obscurantismo religioso (a
Olimpo (Baco x Vênus); são, Contrarreforma), ao autoritarismo político (o
Absolutismo), à decadência econômica e à
portanto, duas ações históricas e retórica pedante e esterilizante da ignorância e
uma ação mitológica. Essas ações do medo.
são entremeadas de digressões
(dissertações) poéticas de Camões
sobre a moral, sobre a desconside-
Padrão dos Descobrimentos,
ração de seus contemporâneos pela
marco comemorativo da epopeia marítima
poesia, sobre o verdadeiro valor da portuguesa, construído em 1960, em
glória, sobre a onipotência do ouro e comemoração dos 500 anos do
sobre o destino de Portugal. Infante D. Henrique, o Navegador.

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4. A narração do poema • a segunda ação histórica, o


relato da história de Portugal, com
Já vimos, na aula anterior, que a dois narradores: Vasco da Gama e seu
narração da viagem de Vasco da irmão, Paulo da Gama. Vasco da
Gama se inicia na estrofe 19 do Can- Gama conta ao rei de Melinde a
to I, com os navegadores já no meio fundação do País; os feitos dos reis e
da viagem, em pleno Oceano Índico.
PORTUGUÊS E

heróis portugueses, as principais


Vimos também que a narração batalhas que venceram (Ourique,
compreende duas ações históricas e Salado e Aljubarrota); o episódio lírico-
uma ação mitológica. Dessas ações, -amoroso de Inês de Castro; o sonho
destacam-se inúmeros episódios de
profético de D. Manuel; o início da
natureza simbólica, profética, lírica,
viagem; o episódio do Gigante Ada-
naturista, histórica ou mitológica.
mastor, personificação do Cabo das
Particularizando melhor a nar-
Tormentas e símbolo da superação do
ração, temos:
medo do “Mar Tenebroso”.
• a primeira ação histórica,
A relação dos heróis portugueses
que principia com os navegadores já Vasco da Gama, capitão sob cujo comando os
e de seus atos é completada no portugueses chegaram a Calicute, na Índia, em
em pleno Oceano Índico, próximos de
Canto Vlll, por Paulo da Gama, que 20 de maio de 1498.
Moçambique.
Vencidos os perigos do mar e as conta ao catual, a pretexto de explicar
o significado das bandeiras de 5. Resumo dos cantos
armadilhas de Baco, em Quiloa e
Mombaça, os portugueses aportam Portugal, os feitos heroicos da gente
lusitana. 䊏 Canto I
em Melinde.
As narrativas são entremeadas de Proposição, invocação, dedi-
Do Canto lll ao V, a ação (viagem)
é interrompida e Vasco da Gama intervenções do poeta, principalmen- catória, início da narração (rápida
conta ao rei de Melinde a história de te no final dos cantos, em que referência a que os portugueses já
Portugal, desde os heróis primitivos, Camões lança suas reflexões morais, navegavam no Oceano Índico);
passando por todos os reis, heróis e invectivas contra o desprezo dos por- Consílio dos Deuses no Olimpo; em
feitos relevantes, até a inserção do tugueses pela arte, considerações Moçambique, Quiloa e Mombaça,
próprio narrador (Vasco da Gama) na sobre o verdadeiro valor da glória, so- ciladas de Baco contra os navegado-
história, narrando, ele próprio, a bre a submissão dos homens ao di- res e intervenções de Vênus e das
partida das naus, os incidentes da nheiro e sobre a decadência do país. Nereidas a favor dos portugueses; re-
viagem de Portugal a Melinde, a • a ação mitológica, que prin- flexões morais do poeta.
travessia do Cabo das Tormentas, ou cipia no Canto I, 20, com o episódio
da Boa Esperança. do Consílio dos Deuses no Olimpo. 䊏 Canto II
A narração da Viagem de Melinde Em Mombaça, narram-se as ma-
Baco é contrário aos portugueses:
até Calicute, na Índia, é retomada quinações de Baco e as intervenções
Vênus é favorável a eles e acaba con-
pelo poeta no Canto Vl. Seguem-se de Vênus e das Nereidas; Vênus sobe
vencendo Marte e Júpiter. A interven-
ao Olimpo e queixa-se a Júpiter, que
os episódios da conquista do Oriente. ção de divindades mitológicas (“ma-
profetiza os feitos lusos; chegada a
No Canto IX, inicia-se a viagem de re- ravilhoso pagão”) desdobra-se em ou- Melinde, onde os portugueses são
gresso à pátria, interrompida na “Ilha tros episódios: as ciladas de Baco, as bem recebidos.
dos Amores”, onde os navegadores intervenções de Vênus e das Nerei-
são recebidos por Tétis e pelas das, o Consílio dos Deuses Marinhos 䊏 Canto III
Ninfas, que amorosamente os no Palácio de Netuno, desembocando Vasco da Gama invoca a inspira-
recompensam dos duros trabalhos do na “llha dos Amores”, onde os planos ção de Calíope e inicia a narração da
mar. histórico e mitológico se fundem. história de Portugal, destacando: os

12 –
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primeiros heróis (Luso e Viriato), a 䊏 Canto VII mitológicos, proféticos, líricos e natu-
fundação do País e os reis de Portu- Os portugueses chegam a Cali- ristas (descrições da natureza), entre-
gal, as batalhas de Ourique e Salado e cute, na Índia. Camões descreve o meados uns aos outros, de forma que
o episódio lírico-amoroso de Inês de Oriente exótico. um mesmo episódio pode ter vários
Castro. significados.
䊏 Canto Vlll
䊏 Canto IV 䊏 O Consílio dos Deuses

PORTUGUÊS E
Paulo da Gama, atendendo a um
Vasco da Gama prossegue a nar- pedido do catual (autoridade regional no Olimpo (I, 20-41)
ração da história de Portugal: a Bata- da Índia), explica o significado das Reunidos sob a presidência de
lha de Aljubarrota (centralização mo- bandeiras de Portugal e refere-se aos Júpiter, os deuses discutem o futuro
nárquica — início da Dinastia de Avis). heróis portugueses e aos seus feitos. das navegações portuguesas e da
As primeiras conquistas, a Tomada de Camões narra os perigos enfrentados viagem de Vasco da Gama. Baco é
Ceuta, o sonho profético de D. Manuel, no Oriente. Vasco da Gama é feito pri- contrário aos portugueses, pois teme
que confia a Vasco da Gama o des- sioneiro e é resgatado em troca de que eles suplantem seus feitos no
cobrimento do caminho marítimo para mercadorias europeias. Camões tece Oriente. Também Netuno (deus do
as Índias. A partir desse ponto, Vasco considerações sobre a onipotência do mar) fará depois oposição aos nave-
da Gama passa a narrar a própria via- ouro. gadores, invejoso de seus sucessos
marítimos. Vênus (deusa do amor) e
gem, a partida das naus e a adver-
䊏 Canto IX Marte (deus da guerra) tomam partido
tência do Velho do Restelo (censura
Os portugueses iniciam a viagem dos lusos, considerados pela deusa
às navegações, representando a
de regresso. Vênus e as Ninfas prepa- como os maiores amantes e, por-
sobrevivência da ideologia medieval,
ram a “llha dos Amores”, prêmio e re- tanto, seus protegidos, e tidos por
feudal e conservadora).
pouso para os navegadores. É a fusão Marte como os guerreiros mais valen-
dos planos histórico e mitológico. tes. Após o debate, Júpiter decide a
䊏 Canto V
favor dos portugueses. Baco, incon-
Vasco da Gama conclui a narração
䊏 Canto X formado, desce à Terra e tenta im-
da sua viagem. Fala do Cruzeiro do Sul,
Na “llha dos Amores”, Tétis e as pedir o êxito da viagem, armando ci-
do fogo-de-santelmo, da tromba ma- ladas e ataques traiçoeiros.
Ninfas oferecem um banquete aos
rítima, do episódio cômico de Veloso Essa ação mitológica, a disputa
navegadores. Tétis mostra a Vasco da
e do Gigante Adamastor (monstro de entre Vênus e Baco, interfere no plano
Gama uma miniatura do Universo (a
pedra que personifica o Cabo das histórico, e tem o claro propósito de ele-
“Máquina do Mundo”), apontando os
Tormentas, simbolizando a superação var os navegadores à altura dos deu-
lugares onde os portugueses iriam
do medo do “Mar Tenebroso”). De ses olímpicos. Inspiradas na tradição
praticar grandes feitos. Camões narra
novo em Melinde, Vasco da Gama o episódio de São Tomé, em que se clássica, essas alegorias constituem
exalta a tenacidade portuguesa. Aqui fundem o “maravilhoso cristão” alguns dos pontos altos do poema.
se encerra o primeiro ciclo épico. (bíblico), o “maravilhoso pagão” 䊏 Inês de Castro (III,118-135)
Camões recrimina os portugueses (mitológico) e o plano histórico. Tétis Episódio de natureza Iírico-amo-
pelo desapego à poesia. despede-se dos portugueses. Re- rosa, simboliza a força e a veemência
gresso à pátria. Camões lamenta a do amor em Portugal.
䊏 Canto Vl decadência de Portugal (Epílogo), faz Valendo-se de fontes medievais
Camões retoma a narração da via- exortação a D. Sebastião e vaticina as (as Trovas, de Garcia de Resende) e
gem de Melinde para a Índia. Os deu- futuras glórias. clássicas (a tragédia A Castro, de
ses reúnem-se no Palácio de Netuno Antônio Ferreira), Camões, pela boca
6. Episódios notáveis
para o Consílio dos Deuses Marinhos. de Vasco da Gama, inscreve na
A bordo das naus, os portugueses se Os episódios de Os Lusíadas são epopeia a narrativa lírica da jovem
entretêm com a narrativa cavaleiresca ações acessórias às ações principais. condenada pelo crime de amar. Inês,
do episódio dos Doze da Inglaterra Além das ações históricas, reais, jovem da pequena nobreza de
(inspirada nos torneios da cavalaria narradas diretamente pelo poeta, por Castela, apaixonou-se pelo Príncipe
medieval). Meditações do poeta Vasco da Gama, ou por seu irmão, D. Pedro (depois D. Pedro I, de Portu-
sobre o verdadeiro valor da glória. Paulo da Gama, há episódios gal). A corte portuguesa opunha-se a
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tal união, e o Rei D. Afonso IV, mes- e punido pelos deuses, foi transfor- Esse longo episódio é riquíssi-
mo reconhecendo a inocência da mo- mado num monstro de pedra. Inspi- mo em sugestões e significados.
ça, não impede sua morte. Pedro, na rada na mitologia clássica (Homero e Simboliza a elevação dos navegadores
época em trabalhos de guerra na Ovídio), é uma das alegorias mais à condição de semideuses, inter-
África, regressa a Portugal e encontra ricas do poema. Simboliza, no plano seccionando os planos histórico e
a amada morta (de onde vem a histórico, a superação, pelos portu- mitológico. Na exibição da Máquina
expressão popular “agora Inês é gueses, do medo do “Mar Tenebro-
PORTUGUÊS E

do Mundo, os portugueses tornam-se


morta”). Diz a lenda que, tresloucado, so”, das superstições medievais. No
senhores dos segredos do Universo,
o príncipe teria desenterrado Inês, plano lírico, desenvolve o tema do
e Vasco da Gama triunfa mais uma vez
coroando-a rainha após a morte, e teria, amante infeliz e desenganado (Tétis
ainda, obrigado a corte a beijar a mão sobre Adamastor, tornando-se amante
era esposa de Peleu, e enganou o
da rainha-defunta. O certo é que, as- de Tétis, ninfa do mar. Inspirado em
Gigante); o amor-tragédia. Curiosa-
sumindo o trono, foi um dos reis mais mente, o primeiro navegante a atraves- Virgílio, Horácio e Ovídio, o episódio é
cruéis do país, obcecado pela vingança sar o Cabo das Tormentas, Bartolomeu um hino ao amor e à sensualidade.
contra os algozes da amada. Dias, morreu exatamente ali, quando,
12 anos depois, em 1500, comandava
䊏 O Velho do Restelo uma das quatro naus que Pedro
(IV, 94-104) Álvares Cabral perdeu na costa afri-
Quando as naus de Vasco da cana, num naufrágio. Era a vingança
Gama se despediam do porto de Be- do Gigante, ou do Cabo da Boa
lém, um velho, o Velho do Restelo, Espe ran ça, co mo o batizou
elevando a voz, manifestou sua Bartolomeu Dias, em 1488.
oposição à viagem às Índias. A sua
fala pode ser interpretada como a 䊏 A llha dos Amores
sobrevivência da mentalidade feudal, (IX, 18 a X, 143) “Oh! Que famintos beijos na floresta” — as
agrária, oposta ao expansionismo e ninfas são a recompensa de Vênus aos nave-
Após a conquista do Oriente, lan- gadores.
às navegações, que configuravam os
çadas as sementes do Império Por-
interesses da burguesia e da monar-
tuguês que aí surgiria, os navegado-
quia. É a expressão rigorosa do con- TEXTOS
res estão voltando a Portugal. Vênus,
servadorismo. Certo é que Camões,
mesmo numa epopeia que se propõe entretanto, prepara-lhes uma surpre-
EPISÓDIO DE INÊS DE CASTRO
a exaltar as Grandes Navegações, dá sa, como recompensa aos seus esfor-
a palavra aos que se opõem ao pro- ços e sacrifícios. Numa ilha paradi- Passada esta tão próspera vitória1,
jeto expansionista. síaca, os navegadores são recebidos Tornado Afonso à Lusitana Terra,
pelas ninfas do mar, que Cupido, por A se lograr da paz com tanta glória
䊏 O Gigante Adamastor ordem de Vênus, fez enamoradas dos Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e digno da memória,
(V, 37-60) portugueses. Emoldurados por uma
Que do sepulcro os homens desenterra,
Quando a esquadra de Vasco da natureza exuberante, vivem instantes Aconteceu da mísera e mesquinha
Gama atravessava o Cabo das Tor- de prazeres ilimitados. Home- Que depois de ser morta foi Rainha.
mentas, passando do Oceano Atlân-
nageados por Tétis com um ban- (III, 118)
tico para o Índico, um monstro disfor-
quete, uma ninfa profetiza os futuros
me e ameaçador interpela os navega-
feitos portugueses. Após, Tétis, do Tu, só tu, puro Amor, com força crua,
dores, condenando sua ousadia, pro-
alto de um monte, mostra a Vasco da Que os corações humanos tanto obriga,
fetizando desgraças e miséria. O Gi-
Gama a Máquina do Mundo, es- Deste causa à molesta2 morte sua,
gante narra, a seguir, a causa de sua
pécie de miniatura do Universo. Par- Como se fora3 pérfida inimiga.
transformação na figura monstruosa
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
que guarnecia o Cabo das Tormentas: ticularizando o globo terrestre, aponta
Nem com lágrimas tristes se mitiga4,
tendo-se apaixonado por Tétis (filha os lugares onde os portugueses iriam
É porque queres, áspero e tirano,
de Dóris e Nereu), foi por ela repudia- fincar sua bandeira, incluindo aqui o Tuas aras5 banhar em sangue humano.
do e tentou tomá-la à força. Derrotado Descobrimento do Brasil. (III, 119)

14 –
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Estavas, linda Inês, posta em sossego, O coração a quem soube vencê-la), Se terras e riqueza mais desejas?
De teus anos colhendo doce fruito6, A estas criancinhas tem respeito, Não é ele por armas esforçado,
Naquele engano7 da alma, Iedo e cego, Pois o não tens à morte escura dela; Se queres por vitórias ser louvado?
Mova-te a piedade sua e minha, (IV, 100)
Que a Fortuna8 não deixa durar muito,
Pois te não move a culpa que não tinha.
Nos saudosos campos do Mondego9,
(III, 127) Deixas criar as portas o inimigo,
De teus formosos olhos nunca enxuito10,
Por ires buscar outro de tão longe,
Aos montes ensinando e às ervinhas

PORTUGUÊS E
Vocabulário e Notas Por quem se despovoe o Reino antigo,
O nome que no peito escrito tinhas. 1 – Esta... vitória: refere-se à vitória dos cris- Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
(III, 120) tãos na Batalha do Salado. Buscas o incerto e incógnito perigo
2 – Molesto: lastimoso, lamentável. Por que a Fama te exalte e te lisonje
Do teu Príncipe ali te respondiam 3 – Fora: fosse. Chamando-te senhor com larga cópia,
As lembranças que na alma Ihe moravam, 4 – Mitigar: abrandar. Da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia.
Que sempre ante seus olhos te traziam, 5 – Ara: altar. (IV, 101)
Quando dos teus formosos se apartavam; 6 – Fruito: fruto.
De noite, em doces sonhos que mentiam, 7 – Engano: êxtase, enlevo. Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,
8 – Fortuna: na crença dos antigos, deusa que
De dia, em pensamentos que voavam; Nas ondas vela pôs em seco lenho5!
presidia ao bem e ao mal; destino, fado.
E quanto, enfim, cuidava e quanto via Digno da eterna pena do Profundo6,
9 – Mondego: rio que banha Coimbra.
Eram tudo memórias de alegria. Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
10 – Enxuito: enxuto.
(III, 121) Nunca juízo algum, alto e profundo,
11 – Indino: indigno.
Nem cítara sonora de vivo engenho,
12 – Mauro: mouro.
De outras belas senhoras e Princesas Te dê por isso fama nem memória,
Os desejados tálamos enjeita, Mas contigo se acabe o nome e glória!
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas, EPISÓDIO DO VELHO DO RESTELO
(IV, 102)
Quando um gesto suave te sujeita.
Mas um velho, de aspecto venerando,
Vendo estas namoradas estranhezas,
Que ficava nas praias, entre a gente, Trouxe o filho de Jápeto7 do Céu
O velho pai sisudo, que respeita
Postos em nós os olhos, meneando O fogo que ajuntou ao peito humano,
O murmurar do povo e a fantasia
Três vezes a cabeça, descontente, Fogo que o mundo em armas acendeu,
Do filho, que casar-se não queria,
A voz pesada um pouco alevantando, Em mortes, em desonras (grande engano!).
(III, 122)
Que nós no mar ouvimos claramente, Quanto melhor nos fora, Prometeu,
Tirar Inês ao mundo determina, C’um saber só de experiências feito, E quanto para o mundo menos dano,
Por lhe tirar o filho que tem preso, Tais palavras tirou do experto1 peito: Que a tua estátua ilustre não tivera
Crendo com sangue só da morte indina11 (IV, 94) Fogo de altos desejos que a movera!
Matar do firme amor o fogo aceso. (IV, 103)
“Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Que furor consentiu que a espada fina,
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Que pôde sustentar o grande peso Não cometera o moço miserando8
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Do furor Mauro12, fosse alevantada O carro alto do pai, nem o ar vazio
C’uma aura popular, que honra se chama!
Contra hũa fraca dama delicada?
Que castigo tamanho e que justiça O grande arquitector com o filho9, dando,
(III, 123)
Fazes no peito vão que muito te ama! Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Que mortes, que perigos, que tormentas, Nenhum cometimento alto e nefando
(...)
Que crueldades neles exprimentas2! Por fogo, ferro, água, calma e frio,
(IV, 95) Deixa intentado a humana geração.
A corte, contudo, exige a morte
Mísera sorte! Estranha condição!”
de Inês (nobre, mas bastarda), com
Condenando a temeridade de se (IV, 104)
quem o príncipe tinha filhos e de
lançarem os portugueses na con-
quem não queria se afastar. Levada à Vocabulário e Notas
quista do Oriente, adverte para o pe- 1 – Experto: experiente, sábio.
presença do rei, Inês suplica a cle-
mência de D. Afonso IV, não por ela, rigo representado pelos árabes e 2 – Exprimentas: experimentas.
3 – Ismaelita: referente a Ismael, filho de Abraão,
ou pela sua vida, mas por seus filhos. amaldiçoa as navegações:
segundo o Velho Testamento.
Observe a elegância e concisão do 4 – Pola: pela.
poeta na estrofe que se segue: Não tens junto contigo o Ismaelita3, 5 – Seco lenho: embarcação, navio.
Com quem sempre terás guerras sobejas? 6 – Profundo: inferno.
7 – Filho de Jápeto: Prometeu.
Não segue ele do Arábio a Lei maldita,
Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito 8 – Miserando: digno de pena.
(Se de humano é matar uma donzela, Se tu pola4 de Cristo só pelejas? 9 – Grande arquitector com o filho: Dédalo (da
Fraca e sem força, só por ter sujeito Não tem cidades mil, terra infinita, mitologia grega) e seu filho, Ícaro.

– 15
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MÓDULO 3 Barroco (I): introdução, características e Antônio Vieira


1. Conceito e âmbito jeta-se em Michelângelo, Bernini, 3) da forma fechada à forma
Rubens, Velásquez, El Greco, Cara- aberta, denotando as perspectivas
A apreciação do Barroco oscila
vaggio, Rembrandt, Tintoretto e múltiplas do observador;
entre a recusa e a posição negativista
Zurbarán, na criação de um espaço 4) da multiplicidade à unidade,
dos críticos que acusam o estilo de
tumultuado que busca sugerir atmos-
PORTUGUÊS E

rebuscado, artificial e vazio de subordinando vários aspectos a um


feras ora místicas, ora imprecisas, único sentido;
conteúdo e a apologia entusiasmada
repletas de elementos ornamentais e 5) da clareza absoluta dos
de outros, maravilhados com a enge-
pormenores significativos; objetos à clareza relativa, a sugerir
nhosidade e sutileza da linguagem
3) na Música, esse mesmo sen- formas de expressão esfumadas,
artística barroca, voltada para a novi-
tido de profundidade labiríntica e dilui- ambíguas, não finitas.
dade, para a alusão, para a sugestão
ção do espaço é perceptível em
e para a ilusão, entendida como fuga
Vitória, Palestrina, Bach e Händel, no 2. Características
da realidade convencional.
virtuosismo dos esquemas poli- estético-estilísticas
Em sentido amplo, tomado como
fônicos, geradores do contraponto e
constante universal, no homem e na
arte, barroco designa um conjunto
da fuga. 䊏 O dualismo
de características estéticas e formais Em sentido mais restrito, espe- O Barroco é a arte do conflito, do
que, aparentemente, ressurgem em cialmente espanhol, Barroco é a ex- contraste, da contradição, do dilema,
certas épocas, como no Helenismo, pressão artística e literária da Con- e da dúvida, que se expressam pelo
no Gótico flamejante, no século XVII, trarreforma católica e do absolutismo acúmulo de antíteses, paradoxos e
no Romantismo e no Impres- das cortes dos Habsburgos. Expressa oxímoros.
sionismo, marcadas pela tendência à a dualidade cultural da Contrarrefor-
ma: Humanismo renascentista (valo- 䊏 O fusionismo
intensificação, ao exagero, e pela
rização da cultura pagã do mundo O artista barroco não se limita a
ânsia de expressar a tensão e a
irregularidade. greco-latino) mais a religiosidade expor os contrários; quer conciliá-los,
O Barroco designa as característi- tridentina, gerada na estufa da nobre- fundi-los, integrá-los por meio das fi-
cas que assumem a arte e a cultura za e do clero romano, espanhol, aus- guras de linguagem:
seiscentistas, condicionadas, de iní- tríaco e português (valorização da “Incêndio em mares de água dis-
cio, pelo Absolutismo e pela Contrar- cultura cristã do mundo medieval). farçado; / Rio de neve em fogo con-
reforma, incluindo, depois, manifes- A dualidade, o bifrontismo (Teo- vertido.”
tações liberais do protestantismo e centrismo x Antropocentrismo, Fé x
Razão, Céu x Terra, Alma x Corpo, 䊏 O feísmo
racionalismo na Inglaterra, Holanda e
Virtude x Prazer, Ascetismo x He- Expressando uma época de
França. Nessa dimensão, o Barroco
donismo, Cristianismo x Paganismo), incerteza, de repressão, de
designa um certo número de estrutu-
faz do Barroco ibérico-jesuítico a ex- obscurantismo, o homem barroco
ras formais que tendem a fundir e a
pressão de um sentimento de dese- tem acentuada predileção pelos
conciliar atitudes opostas, correspon-
quilíbrio, de frustração e de instabili- aspectos cruéis, dolorosos e
dentes à coexistência e interdepen-
dade, relacionado com a repressão sangrentos, pelo “belo horrendo”,
dência, mesmo conflituosa, de for-
inquisitorial, com o terror político e re- pelo espetáculo trágico, deformando
mas sociais profundamente diferen-
tes na Europa. Essa ânsia de fusão ligioso e com a decadência do mun- as imagens pelo exagero, a resvalar o
dos contrários fornece os principais do católico, abalado com a derrota da grotesco.
elementos para a cosmovisão do invencível Armada, em 1588.
Barroco: A transição do ideal clássico para 䊏 O pessimismo
1) na Filosofia, a passagem de o barroco é definida por Heinrich Vivendo na órbita do medo e da
uma concepção finitista e estática do Wölfflin, em termos de uma pas- dúvida, o Barroco manifesta-se por
mundo para uma concepção infini- sagem: uma visão desencantada do mundo.
tista, energética e dinâmica, com 1) do linear ao pictórico, Como na Idade Média e no Roman-
Pascal, Newton e Giordano Bruno; incluindo o pitoresco e o “colorido”; tismo, a morte é uma constante preo-
2) nas Artes Plásticas, essa 2) da visão de superfície à visão cupação, ao lado da consciência da
ânsia de expressar o movimento, a de profundidade, implicando o fugacidade do tempo, e da incerteza e
profundidade e a irregularidade pro- desdobramento de planos e massas; inconstância da vida.
16 –
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䊏 A religiosidade (ilusória, sensorial, não racional) 5 – Se quer matar da sede os desfavores: é


Projetando uma época de inten- apoia-se nos jogos de palavras, nos perífrase de “se quer beber água”.
sos conflitos espirituais, o tema re- trocadilhos, nos enigmas, nas metá- 6 – Cristais: metáfora de “água”.
7 – Peçonha: veneno; os cristais bebe coa pe-
ligioso aparece muitas vezes mes- foras e nas perífrases ou circunló-
çonha menos – bebe água, mas sem o veneno
clado com a sensualidade; as ale- quios (= torneio em redor do termo
que nela se deposita.
gorias bíblicas do Antigo e do Novo próprio e adoção de muitas palavras
8 – Gostar: beber, provar.
Testamento misturam-se com a mito- para evitá-lo). Assim, em vez de lá-
9 – Vitais licores: água.

PORTUGUÊS E
logia pagã; a fé cristã e o misticismo grima, o barroco diz o “cristal dos
10 – Cristal: brilho, beleza.
aliam-se ao racionalismo, no arrepen- olhos”; em vez de dentes, as “péro-
11 – Fermoso: formoso.
dimento e na busca do perdão. Os las da boca”; em vez de leque, o
12 – Gosta o cristalino agrado: aqui o verbo
argumentos lógicos sobrepõem-se à “zéfiro manual”. O abuso artificioso
gostar está em lugar de ver : vê o rosto amado.
revelação mística e a consciência do da fantasia no campo psicológico da
pecado não inibe a esperança de representação sensível faz do poeta
salvação. É uma religiosidade tensa e gongórico um verdadeiro alquimista, 4. O Barroco conceptista
conflituosa. que busca extrair do real uma natu-
reza supranatural, imaterial e arbitrá-
䊏 Atitude lúdica ria. O conceptismo, ou concep-
O propósito da arte barroca é, O aspecto exterior, imediata- tualismo, é o aspecto construtivo do
muitas vezes, o de surpreender o lei- mente perceptível, no Barroco cultis- Barroco, voltado para o significado,
tor pelo virtuosismo, pela engenhosi- ta ou gongórico, é o abuso no empre- para o jogo de ideias, para a argu-
dade, enredando-o em verdadeiros la- go de figuras de linguagem: mentação sutil, para a dialética
birintos de imagens e ideias. Mani- cerrada. Configura a atitude inte-
pulando as palavras, abusando das lectual do Barroco, o seu modo de
figuras de linguagem, privilegia o as- A serpe1, que adornando várias cores2,
reconhecer e conceituar os objetos.
pecto formal, o significante, em detri- Com passos mais oblíquos3, que serenos,
Opera por meio de trocadilhos, de as-
mento do significado. Assim, alguns Entre belos jardins, prados amenos,
sociações inesperadas e dos meca-
textos barrocos parecem vazios de É maio errante de torcidas flores4;
nismos da Lógica: o silogismo, o so-
conteúdo, meros pretextos para o ar- fisma e o paradoxo. Há um constante
tista exibir a sua habilidade na explo- Se quer matar da sede os desfavores5, esforço dialético orientando a organi-
ração de sutilezas, de trocadilhos e de Os cristais6 bebe coa peçonha7 menos, zação convincente das ideias. A um
construções inusitadas. Esse niilismo Por que não morra cos mortais venenos, certo caos plástico (cultismo),
temático, essa “pobreza” de Se acaso gosta8 dos vitais licores9. opõe-se a ordem racionalista (concep-
conteúdo é mais frequente no aspec- tismo). Há uma tese a demonstrar e o
to gongórico ou cultista do Barroco. interlocutor tem de ser convencido.
Assim também meu coração queixoso,
Enquanto o cultismo (gongoris-
3. O Barroco cultista ou Na sede ardente do feliz cuidado,
mo) procura apreender o como dos
gongórico Bebe cos olhos teu cristal 10 fermoso11;
objetos, por meio da captação (descri-
ção) de seus aspectos sensoriais e
Denomina-se cultismo ou Pois para não morrer no gosto amado, plásticos (contorno, forma, cor, volu-
culteranismo o aspecto do Barroco Depõe logo o tormento venenoso, me), num verdadeiro frenesi cromá-
voltado para o jogo de palavras, para o Se acaso gosta o cristalino agrado12. tico e imagético, o conceptismo pes-
rebuscamento da forma, para a orna- (Manuel Botelho de Oliveira) quisa a essência dos objetos, bus-
mentação estilística, para o precio- cando saber o que são, buscando
sismo linguístico, para a erudição mi- apreender a face oculta das coisas,
nuciosa. Retrata-se a realidade de Vocabulário e Notas
apenas acessível ao pensamento, ou
modo indireto, realçando mais a ma- 1 – Serpe: cobra, serpente.
seja, aos conceitos. O cultismo e o
2 – Adornando várias cores: perífrase de “co-
neira de representar que propriamen- conceptismo não podem ser vistos
lorida”.
te o apresentado. Constitui o aspecto como polos construtivos opostos.
3 – Passos ... oblíquos: coleante, como o movi-
sensual do Barroco, voltado para a Como observou Dámaso Alonso, “es-
mento da serpente.
descrição do mundo por meio das 4 – É maio errante de torcidas flores: multico- ta paixão barroca, poderíamos di-
sensações (analogias sensoriais = lorida, a serpe é tão colorida quanto a zer que o Gongorismo a expressa
metáforas), num estado de verda- primavera (maio, na Europa); torcidas flores como uma labareda para fora e o
deiro delírio cromático, apoiado em sugere a imagem de cores em espiral, pelo Conceptismo como uma reconcen-
sugestões intensivas de cores e de movimento coleante da serpente (“passos tração para dentro”. São como duas
sons. Esse processo de identificação oblíquos”). faces de uma mesma moeda cha-
– 17
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mada Barroco. Costuma-se dizer que ACHANDO-SE UM BRAÇO PERDIDO DO desenvolve um raciocínio sutil e paradoxal
o conceptismo predomina na prosa e MENINO DEUS DE N. S. DAS MARAVILHAS, (versos 3-4: se a parte é que faz o todo, a parte
QUE DESACATARAM é tudo — é essencial — para que haja o todo),
o gongorismo, na poesia. Esta noção
INFIÉIS NA SÉ DA BAHIA exemplifica com um artigo de fé (Deus está
é falsa. Há conceptismo, por exem- inteiro em cada hóstia, que é parte de seu
plo, na poesia sacra e reflexivo- corpo), chegando à conclusão de que o braço
-filosófica de Gregório de Matos, uma da imagem de Cristo vale não apenas como
O todo sem a parte não é todo;
variante da poesia a lo divino, dos parte, mas como a imagem toda.
A parte sem o todo não é parte;
PORTUGUÊS E

místicos espanhóis, em que o Mas se a parte o faz todo, sendo parte,


Homem é divinizado e Deus Não se diga que é parte, sendo o todo. ***
humanizado, por meio de sutilezas
conceituais, na esteira de Quevedo,
modelo conceptista muito repro- Em todo o Sacramento está Deus todo, VOS ESTIS SAL TERRAE – Math., V, 13
duzido em Portugal e no Brasil. E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
O conceptismo é a vertente bar- Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com
Em qualquer parte sempre fica o todo. os Pregadores, sois o sal da terra: e chama-
roca mais diretamente influenciada
pela visão de mundo da Companhia lhes sal da terra, porque quer que façam na
de Jesus, pela fé inaciana e contrar- terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir
O braço de Jesus não seja parte,
a corrupção, mas quando a terra se vê tão
reformista: os recursos da lógica aris- Pois que feito Jesus em partes todo,
corrupta como está a nossa, havendo tantos
totélica e tomista postos a serviço do Assiste cada parte em sua parte.
nela que têm ofício de sal, qual será ou qual
convencimento religioso; a expressão
pode ser a causa desta corrupção? Ou é por-
da angústia de ter ou não ter fé, de Não se sabendo parte deste todo, que o sal não salga, ou porque a terra se não
amar a Cristo e revoltar-se contra Um braço que lhe acharam, sendo parte, deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os
suas determinações. Evitando a apa- Nos diz as partes todas deste todo. Pregadores não pregam a verdadeira doutrina;
rência brilhante do cultismo, o con- (Gregório de Matos) ou porque a terra se não deixa salgar, e os
ceptismo procura economizar pala- ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes
vras e imagens. Mas têm em comum Vocabulário e Notas dão, a não querem receber; ou é porque o sal
o desejo de surpreender pela novida- 1 – Parte: nada. não salga, e os Pregadores dizem uma coisa e
de, pela excentricidade, requerendo fazem outra, ou porque a terra se não deixa
ambos do leitor um elevado grau de salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que
Comentário eles fazem, que fazer o que dizem: ou é
atenção, dado o obscurantismo deli- A propósito do achamento de um braço
porque o sal não salga, e os Pregadores se
berado, a propor verdadeiros labi- de uma estátua perdida de Cristo, o poeta,
pregam a si, e não a Cristo; ou porque a terra
rintos de imagens e ideias: partindo de constatações óbvias (versos 1-2: o
se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de
todo depende da parte e a parte, do todo),
servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é
tudo isto verdade? Ainda mal. (...)
(Padre Antônio Vieira,
Sermão de Santo Antônio aos Peixes)

Comentários
A partir de um “conceito predicável”,
extraído da citação bíblica, Vieira desenvolve o
raciocínio explorando as possibilidades
sugeridas pelo tema, por meio de antíteses e
associações de ideias que, dispostas em
movimento circular, vão sendo retomadas e
ampliadas. A estrutura paralelística revela-se
Enterro do Conde de Orgaz, em várias orações — “Ou é porque o sal não
de Domenikos Theotokopoulos, salga, ou porque a terra se não deixa salgar”.
O título, Sermão de Santo Antônio aos
El Greco (1541-1614).
Peixes, indicia o fato de que, alegoricamente,
Há nitidamente dois planos:
Vieira irá falar aos “peixes”, que agrupam, segun-
o terreno, marcado pela pompa,
do ele, categorias humanas. Parte da lenda
tristeza e imobilidade diante do medieval segundo a qual o franciscano Santo
mistério da morte, e o celestial, Antônio, numa de suas pregações, não sendo
marcado pelo movimento e ouvido pelos homens, lança a sua palavra ilumi-
pela visão da eterna salvação nada na praia deserta, e os peixes levantam a
da alma, acolhida pelos anjos cabeça à superfície das águas, como sinal da
e pela Virgem Maria. força da palavra do santo pregador.

18 –
TEORIA_E_SEMI_1_PORT_2017_GK 21/03/17 16:09 Page 19

5. Padre Antônio Vieira 䊏 Sermão da Sexagésima amplificá-la com as causas, com os efeitos,
(Lisboa, 1608 – Bahia, 1697) Pregado na Capela Real de Lis- com as circunstâncias, com as conveniências
que se hão de seguir, com os inconvenientes
boa, em 1655, o Sermão da Sexagé-
que se devem evitar; há de responder às
sima é uma teorização sobre a arte de dúvidas, há de satisfazer às dificuldades, há de
pregar, um sermão sobre o sermão, impugnar e refutar com toda a força da
uma aula de oratória sacra. Por isso, eloquência os argumentos contrários, e depois
Vieira o escolheu para abrir sua obra, disso há de colher, há de apertar, há de

PORTUGUÊS E
como um prefácio, ou uma de- concluir, há de persuadir, há de acabar.

claração de princípio. É uma defesa


do conceptismo, um ataque aos exa- (...)

geros do barroco cultista ou gon-


górico. O tema do sermão é extraído As razões não hão de ser enxertadas, hão
de ser nascidas. O pregar não é recitar. As
de uma passagem bíblica escolhida
razões próprias nascem do entendimento, as
para a ocasião: “Semen est verbum alheias vão pegadas à memória e os homens
Dei” (São Lucas, Vlll, 11), ou seja, “A não se convencem pela memória, senão pelo
semente é a palavra de Deus”. Trans- entendimento.
formando o tema em pergunta, o
pregador indaga: “E se a palavra de Encaminhando-se para a pero-
Pregador da Companhia de Jesus Deus é tão poderosa e tão eficaz, co- ração (ou epílogo), lembra que os
que exerceu intensa atividade como
mo vemos tão poucos frutos da pregadores “pregam palavras de
missionário no Brasil, nas diversas
palavra de Deus?” Deus, mas não pregam a palavra de
vezes em que aqui esteve. A serviço
da Coroa Portuguesa, foi como embai- Depois de considerar todas as Deus” e finaliza advertindo:
xador à França, Holanda e Itália. Na condições pelas quais a palavra de
Europa, foi perseguido pela Inquisição Deus não pode frutificar, passa a de- Semeadores do Evangelho, eis aqui o que
por suas ideias favoráveis aos judeus. finir as qualidades exigíveis de um devemos pretender nos nossos sermões, não
Chegou a ser expulso do Maranhão por pregador: que os homens saiam contentes de nós, senão
opor-se aos colonos que queriam que saiam muito descontentes de si; não que
escravizar os índios. Brilhou como Ihes pareçam bem os nossos conceitos, mas
Mas como em um pregador há tantas
que Ihes pareçam mal os seus costumes, as
pregador na Itália, na corte da rainha qualidades, e em uma pregação tantas leis, e
suas vidas, os seus passatempos, as suas
Cristina da Suécia. No fim da vida, os pregadores podem ser culpados em todas,
ambições e, enfim, todos os seus pecados.
dedicou-se a compilar os sermões que em qual consistirá essa culpa? — No pregador
havia pronunciado. podem-se considerar cinco circunstâncias: a
Além dos sermões, sua obra in- pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. 䊏 Sermão de Santo Antônio
clui três volumes de cartas e obras aos Peixes
proféticas, como História do Futuro e, No quinto capítulo inicia o ataque Pregado em São Luís do Mara-
em latim, Clavis Prophetarum (“Chave ao preciosismo da oratória gongórica, nhão, em 1654, revela fina ironia, rique-
dos Profetas”). investindo contra os exageros orna- za nas sugestões alegóricas e agudo
mentais praticados por muitos ser- senso de observação sobre os vícios e
6. Estrutura dos sermões monistas, especialmente o dominica- vaidades do homem, comparando-o,
no Frei Domingos de S. Tomás: “O por meio de alegorias, aos peixes.
Os sermões de Vieira têm estru- estilo culto não é escuro, é negro, e Critica a prepotência dos gran-
tura tradicional: negro boçal e muito cerrado.” À con- des que, como peixes, vivem do sa-
• proposição do tema, em geral
denação do gongorismo, segue-se a crifício de muitos pequenos, os quais
trecho da Bíblia;
defesa do conceptismo e do primado “engolem” e “devoram”. O alvo são
• introito, em que expõe o pla-
no segundo o qual se desenvolverá o da lógica, da clareza, do rigor da os colonos do Maranhão, que no Bra-
sermão; sintaxe e do pensamento: sil são grandes, mas em Portugal
• invocação, geralmente à “acham outros maiores que os co-
Nossa Senhora; mam, também, a eles”.
Há de tomar o pregador uma só matéria,
• argumentação, que consiste há de defini-la para que se conheça, há de Censura os soberbos (= ronca-
no desenvolvimento do tema e inclui dividi-la para que se distinga, há de prová-la dores); os pregadores (= parasitas);
exemplos e sentenças; com a Escritura, há de declará-la com a razão, os ambiciosos (= voadores); os hipó-
• peroração ou epílogo. há de confirmá-la com o exemplo, há de critas e traidores (= polvos):

– 19
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O polvo, com aquele seu capelo na cabe- E ele próprio responde, corajo- que vós colheis deles é um trabalho sobre
ça, parece um monge; com aqueles seus raios samente: outro. Não há trabalhos mais doces que os das
estendidos, parece uma estrela; com aquele vossas oficinas; mas toda essa doçura para
não ter osso nem espinha, parece a mesma quem é? Sois como as abelhas, de quem disse
Quando a necessidade e a consciência
brandura, a mesma mansidão. E, debaixo o poeta: “Sic vos non vobis mellificatis apes”1.
dessa aparência tão modesta ou dessa hipo- obriguem a tanto, digo que sim, e torno a dizer
crisia tão santa, testemunham constantemen- que sim: que vós, que vossas mulheres, que
vossos filhos e que todos nós nos sus- Vocabulário e Notas
te (...) que o dito polvo é o maior traidor do mar.
tentássemos de nossos braços, porque melhor 1 – Verso atribuído a Virgílio: “Assim vós, mas
PORTUGUÊS E

é sustentar do suor próprio que do sangue não para vós, fabricais o mel, abelhas”.
䊏 Sermão da Primeira alheio. Ah! Fazendas do Maranhão; que se
Dominga da Quaresma esses mantos e essas capas se torcerem, ha- Mas, paradoxalmente, estabele-
Também denominado Sermão do viam de lançar sangue. ce uma cabal diferença entre o negro
Cativo, foi pregado no Maranhão, em gentio, entregue à sua própria sorte
1653. Nele o orador tenta persuadir os na África, e o negro submetido à fé
colonos a libertarem os indígenas, que 䊏 Sermão XIV do Rosário católica. Chega a bendizer a escra-
compara aos hebreus cativos do Pregado na Bahia para uma irman- vidão que trouxe o negro ao Brasil e
faraó. Na corte, atuou na defesa do dade de negros, revela a repulsa ao ao cristianismo:
índio contra os colonos e lá pregou, preconceito de cor e ao tratamento
em 1662, o Sermão da Epifania: “que cruel a que eram submetidos os es- (...) Deveis dar infinitas graças a Deus por
os homens de qualquer cor, são todos cravos: vos ter dado conhecimento de si e por vos ter
iguais por natureza, e mais iguais ain- tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós
da por fé”, afirma o pregador, defen- viveis como gentios, e vos ter trazido a esta,
Em um engenho sois imitadores de
onde, instruídos na Fé, vivais como cristãos e
dendo a filiação comum e universal do Cristo Crucificado: porque padeceis em um
vos salveis. (...)
homem a um Deus criador e único. modo muito semelhante ao que o mesmo
Oh! se a gente preta tirada das brenhas
No Sermão da Primeira Dominga Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua
de sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera
da Quaresma, imagina-se no lugar paixão. A sua cruz foi composta de dois ma-
bem quanto deve a Deus e à sua Santíssima
deiros, e a vossa em um engenho é de três.
dos colonos que tivessem de se des- mãe por este que pode parecer desterro,
(...) Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem
fazer de seus escravos e indaga: cativeiro e desgraça, e não é senão milagre e
comer, e vós famintos; Cristo em tudo
grande milagre!
Quem nos há de ir buscar um pote de maltratado, e vós maltratados em tudo. (...)
água ou feixe de lenha? Quem nos há de fazer Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e
vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; 䊏 Sermão do Bom Ladrão
duas covas de mandioca? Hão de ir nossas
mulheres? Hão de ir nossos filhos? eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o Pregado em 1655, em Lisboa,
traz a distinção entre o ladrão comum,
que eventualmente furta para sobre-
viver, e o ladrão que, amparado pelo
poder, rouba cidades e reinos. A
notória atualidade do tema tem tor-
nado frequente a transcrição de tre-
chos desse sermão em diversos ves-
tibulares:

(...) Não só são ladrões, diz o Santo


[Basílio Magno], os que cortam bolsas, ou
espreitam os que se vão banhar para Ihes
colher a roupa; os ladrões que mais própria e
dignamente merecem este título são aqueles a
quem os reis encomendam os exércitos e
legiões, ou o governo das províncias, ou a
administração das cidades, os quais, já com
manha, já com força, roubam e despojam os
povos. Os outros ladrões roubam um homem,
estes roubam cidades e reinos; os outros
furtam debaixo do seu risco, estes sem temor
Os europeus destroem uma aldeia ameríndia (gravura alemã do século XVII). Vieira pregou e nem perigo; os outros, se furtam, são enfor-
atuou contra a escravidão do indígena no Brasil. cados, estes furtam e enforcam.

20 –
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MÓDULO 4 Barroco (II): Gregório de Matos

1. Contexto histórico-cultural vinda de D. João Vl, e nosso primeiro los. Esse “abrasileiramento linguís-
(século XVII e primeira jornal, a Gazeta do Rio de Janeiro, tico” tem expressão nos autos de
apareceu em 10 de setembro de José de Anchieta, na poesia satírica
metade do século XVIII)
1808. Não havia o que ler na Colônia, de Gregório de Matos e em alguns

PORTUGUÊS E
salvo os compêndios escolares, obras momentos do Arcadismo.
• Reconhecem-se três momen- religiosas e catequéticas, coletâneas As academias “literárias” baianas
tos no Barroco brasileiro: de leis e uns raros romances de e cariocas foram o último centro
1) o primeiro momento cor- cavalaria. As poucas bibliotecas das irradiador do Barroco literário e “o
responde à primeira metade do casas religiosas reuniam algumas primeiro sinal de uma cultura humanís-
século XVII, marcado pela centenas de volumes hagiográficos tica viva, extraconventual”, segundo
dominação filipina, pela ocupação ho- (de vidas de santos) e apologéticos Alfredo Bosi. Aglutinavam religiosos,
landesa no Nordeste e pela hege- (de defesa da fé). Mesmo a circulação militares, desembargadores, altos
manuscrita era dificultada pelo alto funcionários, reunidos em grêmios
monia de Pernambuco, a capitania
preço do papel. eruditos, à imitação das congêneres
mais adiantada;
Até a expulsão da Companhia de europeias. Tinham caráter forte-
2) o segundo momento ocupa
Jesus, em 1759, os jesuítas mente encomiástico (de elogio) e
a segunda metade do século XVII e detiveram o monopólio do ensino. seus atos acadêmicos destinavam-se
marca a preeminência da Bahia, sede Era um ensino “literário” e retórico, à celebração das festas religiosas ou
do Governo Geral, da Diocese, da desdenhoso dos comportamentos dos feitos das autoridades coloniais.
Relação, do principal presídio de científicos e técnicos perante a rea- Deram maior contribuição à História e
tropas, do porto mais ativo e da lidade, infenso a toda manifestação à erudição em geral que à Literatura.
economia mais dinâmica; artística que escapasse ao âmbito 1) Academia Brasílica dos
3) o terceiro momento com- vocabular e oral. Formávamos Esquecidos (Bahia, 1724-1725) –
preende as primeiras décadas do sacerdotes e bacharéis. Essa edu- Sebastião da Rocha Pita, o Acadêmico
século XVIII, ainda centrado na cação medievalizante, retórica e Vago, foi seu membro mais notório.
Bahia, quando entram em moda as contrarreformista abafou, durante 2) Academia Brasílica dos
academias literárias e científicas, por três séculos, os apelos da nova terra, Renascidos (Bahia, 1759) – Propu-
influência europeia. É o apogeu do a força de atração do meio tropical e a nha-se a reviver os Esquecidos.
maneirismo barroco, mercê das consciência que os agrupamentos hu- 3) Academia dos Felizes (Rio de
novas condições sociais que se vão manos, mestiçados ou não, iam Janeiro) – Reuniu-se entre 1736 e
criando com a descoberta de pedras e tomando de sua diferenciação. Esses 1740.
metais preciosos em Minas Gerais. apelos da nova terra irão desaguar no 4) Academia dos Seletos (Rio de
Exagerando o estilo barroco em suas sentimento nativista, fermento de Janeiro, 1752) – Foi organizada em
linhas mestras, presencia-se o pro- várias rebeliões que, a partir de 1640, homenagem a Gomes Freire de
gresso no sentido de uma afetação atestam a presença de pruridos Andrade.
cada vez maior, correspondente ao autonomistas (Amador Bueno,
estilo rococó. Beckman, Guerra dos Mascates, 2. Gregório de Matos Guerra
Não houve tipografia e imprensa Emboabas, Vila Rica, Inconfidência (BA, 1623 – PE, 1699)
nos séculos coloniais e as tímidas ini- Mineira, Revolução dos Alfaiates, os
ciativas foram categoricamente proi- Suassunas e a Revolução Pernambu- 䊏 O Boca do Inferno
bidas pela Metrópole. A Carta Régia cana de 1817). Filho de senhores de engenho na
de 8 de junho de 1706 determinava Até meados do século XVIll Bahia, viveu entre a Colônia e a
“sequestrar as letras impressas e houve duplicidade linguística: o Metrópole.
notificar os donos delas e os oficiais emprego do português e do tupi. O Bacharel em leis, advogado na
de tipografia que não imprimissem vernáculo era ensinado nas escolas e corte, teve vida atribulada. Andarilho,
nem consentissem que se impri- revestido de uma aura de prestígio; a violeiro, conheceu a prisão e o exílio
missem livros ou papéis avulsos”. “língua geral” era empregada na vida em Angola por dois anos. Incom-
Fomos o último povo da América a familiar, refletindo o forte contingente patibilizado com autoridades civis e
conhecer a imprensa. A Impressão indígena e africano em circulação eclesiásticas pela maldade, irreverên-
Régia foi implantada em 1808, com a durante o primeiro e segundo sécu- cia e justeza de suas sátiras, foi,
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desde sempre, “poeta maldito”. Sua A obra atribuída a Gregório de se julgavam a “nobreza” da terra; os
obra permaneceu praticamente Matos é o organismo mais inventivo e “unhates”, comerciantes portugue-
inédita até o século XX, apesar da atual de toda a poesia do período ses; os mestiços, mulatos, o clero e
popularidade de que desfrutou na considerado luso-brasileiro. Gregório as autoridades.
Bahia, onde seus poemas circulavam possui três modelos: Camões, A sátira constitui a vertente mais
em cópias manuscritas e eram “brasileira” e original de sua obra, ain-
Góngora e Quevedo. Sua poética
constantemente oralizados pelo da que tenha várias vezes recorrido
mantém, portanto, compromissos
PORTUGUÊS E

povo. As peripécias de sua vida foram aos moldes espanhóis (Quevedo):


com a Renascença maneirista e com
romanceadas recentemente por Ana o Barroco cultista e conceptista. RETRATO ANATÔMICO
Miranda, no romance biográfico Boca
Assim, a lírica amorosa anda de DOS ACHAQUES DE QUE
do Inferno. Sua sátira à Bahia
permeio com a lírica religiosa. Sua PADECIA ÀQUELE TEMPO
dominada pela “máquina mercante”
sátira desbocada e agressiva vem A CIDADE DA BAHIA
é o que se lê a seguir:
também da Espanha barroca, mas (fragmentos)
possui raízes medievais portuguesas
Triste Bahia, oh quão dessemelhante
Que falta nesta cidade? ... Verdade.
Estás e estou de nosso antigo estado! e qualidades absolutamente próprias.
Que mais por sua desonra? ... Honra.
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, A poesia encomiástica explica-se pela
Falta mais que se lhe ponha? ... Vergonha.
Rica te vi eu já, tu a mi abundante. habilidade versificatória e pelas
circunstâncias de sua vida.
O Demo a viver se exponha,
A ti trocou-te a máquina mercante, É uma constante em sua poesia a
Que em sua larga barra tem entrado; Por mais que a fama a exalta,
noção de que os homens e as vai- Numa cidade onde falta
A mim foi-me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante.
dades humanas são insignificantes, Verdade, Honra, Vergonha.
de que o tempo é fugaz e a sorte
䊏 Uma obra problemática instável. Dentro dessa linha, produziu, (...)
Não há um texto definitivo (edi- entre outros, o magnífico soneto
ção crítica) da poesia de Gregório de “Nasce o sol, e não dura mais que E que justiça a resguarda? ... Bastarda.
Matos e não se encontrarão dois poe- um dia”, que lembra, pela temática, É grátis distribuída? ... Vendida.
mas absolutamente iguais nas diver- o famoso “O sol é grande...”, de Sá Que tem, que a todos assusta? ... Injusta.
sas edições que se seguiram à pri- de Miranda.
meira tentativa de organizar, já no sé- Valha-nos Deus, o que custa
culo XX, sua suposta “obra comple- O que El-Rei nos dá de graça,
ta”. Nada tendo publicado em vida, e Que anda a justiça na praça
䊏 A sátira de
expurgado de nossa vida literária Bastarda, Vendida, Injusta.
Gregório de Matos
durante dois séculos, os códices (= Ora é respeitador do escrúpulo
manuscritos antigos) e compilações (...)
vocabular, usando palavras admitidas
trazem infinitas variantes, muitos pela convenção, para pôr a nu as
poemas que comprovadamente não mazelas e baixezas de toda a Bahia; E nos Frades há manqueiras? ... Freiras.
são de Gregório de Matos e inúmeros ora é livre usuário de vocabulário que Em que ocupam os serões? ... Sermões.

ainda faz enrubescer, para retratar Não se ocupam em disputas? ... Putas.
casos de autoria duvidosa.
Esquematicamente, podemos isomorficamente festas de bailes,
agrupar assim a poesia de Gregório passeios ou cenas picarescas e Com palavras dissolutas
de Matos: pornográficas das ruas, lares e pros- Me concluís, na verdade,
tíbulos de sua terra. Satiriza povo, Que as lidas todas de um frade
clero e fidalgos do tempo, sempre São Freiras, Sermões e Putas.
I – Poesia satírica
com a mesma maldade, muita inteli-

{
amorosa gência e alta consciência poética. A O açúcar já se acabou? ... Baixou.

erótico-irônica situação de “intelectual branco” não E o dinheiro se extinguiu? ... Subiu.

sacra ou muito prestigiado pelos poderosos do Logo já convalesceu? ... Morreu.


II – Poesia lírica Brasil pungia o amor-próprio do poeta
religiosa
reflexiva ou e o levava a estiletar todas as classes À Bahia aconteceu
filosófica da nossa sociedade, especialmente O que a um doente acontece,
os “caramurus”, descendentes dos Cai na cama, o mal lhe cresce;
III – Poesia encomiástica primeiros povoadores e que por isso Baixou, Subiu e Morreu.

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Por trás da contundência da sátira, O poeta manipula, a seu favor, a A D. ÂNGELA


observe-se a habilidade na construção parábola da ovelha desgarrada, do No-
Anjo no nome, Angélica na cara!
das estrofes pelo processo de vo Testamento. A submissão e humil-
Isso é ser flor e Anjo juntamente:
disseminação-e-recolha: o último dade religiosa reveladas no primeiro Ser Angélica flor e Anjo florente,
verso de cada estrofe repete e dispõe quarteto são contraditadas nos Em quem, senão em vós, se uniformara?
no plano horizontal as três palavras tercetos; insinua-se neles o argumen-
que finalizam os três primeiros versos to de que a alegria do Senhor e a sua Quem vira uma tal flor que a não cortara

PORTUGUÊS E
da estrofe. glória dependem da salvação do poeta. De verde pé, da rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente
Parafraseando o sofisma engendrado:
Que por seu Deus o não idolatrara?
䊏 A poesia sacra de se Cristo não me perdoar, ou perderá
Gregório de Matos uma ovelha desgarrada e, portanto, a Se pois como Anjo sois dos meus altares,
Os temas comuns da época da glória, ou não é verdadeiro o que a Fôreis o meu Custódio e a minha guarda,
Contrarreforma — o horror do peca- Bíblia registra. Livrara eu de diabólicos azares.
do, a ameaça do inferno e a humilha-
Mas vejo que, por bela e por galharda,
ção do homem perante Deus — for- 䊏 A poesia lírico-amorosa –
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
necem vasto material para o talento espírito x corpo Sois Anjo que me tenta, e não me guarda.
poético de Gregório de Matos. A Apresenta-se sob o signo da dua-
consciência do pecado, o arrepen- lidade barroca, oscilando entre a O tema clássico do carpe diem
dimento e a busca do perdão atitude contemplativa, o amor eleva- (= aproveita o dia) é frequente. A
divino são, quase sempre, pretextos do, à maneira dos sonetos de Ca- consciência da fugacidade do tempo
para o exercício poético. e das incertezas da vida leva à
mões, e a obscenidade, o carnalis-
necessidade de fruição imediata dos
A manipulação engenhosa dos mo. É curioso que a postura platônica prazeres. É o que se nota em:
argumentos, através de silogismos, é dominante quando o poeta se
sofismas e paradoxos, evidencia a refere a mulheres brancas, de condi- Discreta e formosíssima Maria,
predominância conceptista na obra ção social superior, e a libido agres- Enquanto estamos vendo a qualquer hora,
do poeta baiano, que tomou siva, o erotismo e o deslocamento Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos e boca, o Sol e o dia:
emprestado de Quevedo formas, são as tônicas quando o poeta se ins-
temas e até versos inteiros: pira nas mulheres de condição social Enquanto com gentil descortesia,
inferior, especialmente as mulatas: O ar, que fresco Adônis te namora,
A JESUS CRISTO, NOSSO SENHOR,
Te espalha a rica trança brilhadora,
ESTANDO O POETA PARA MORRER
Minha rica mulatinha Quando vem passear-te pela fria:
desvelo e cuidado meu,
Pequei, Senhor; mas não porque hei eu já fora todo teu, Goza, goza da flor da mocidade,
[pecado e tu foras toda minha; Que o tempo trata a toda ligeireza,
Da vossa alta clemência me despido; E imprime em toda flor a sua pisada.
Porque, quanto mais tenho delinquido, Juro-te, minha vidinha,
Vos tenho a perdoar mais empenhado. se acaso minha qués1 ser, Ó não aguardes que a madura idade
que todo me hei de acender Te converta essa flor, essa beleza,
em ser teu amante fino Em terra, em cinza, em pó, em sombra,
Se basta a voz irar tanto pecado, pois por ti já perco o tino2, [em nada.
A abrandar-vos sobeja um só gemido; e ando para morrer.
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
A seguir, um exemplo do conflito
Vocabulário e Notas
carne x espírito, mediante duas
1 – Qués: quiseres.
definições do amor:
Se uma ovelha perdida e já cobrada1 2 – Tino: juízo.
Glória tal e prazer tão repentino O Amor é finalmente
Vos deu, como afirmais na sacra história, Observem-se os versos curtos um embaraço de pernas,
(medida velha) e a aproximação com uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, uma linguagem mais espontânea e
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino, popular. *
Perder na vossa ovelha a vossa glória. Ardor em firme coração nascido;
Já no soneto seguinte, encontra-se
Pranto por belos olhos derramado;
Vocabulário e Notas a atitude idealizante e a linguagem mais Incêndio em mares de água disfarçado;
1 – Cobrado: recuperado. erudita: Rio de neve em fogo convertido.

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Arcadismo: Cláudio Manuel da Costa,


MÓDULO 5
Tomás Antônio Gonzaga e autores épicos
1. O contexto histórico-cultural A vida literária, já estimulada no 䊏 Volta aos modelos clássicos
final do período Barroco pelo apareci- Retorno aos modelos greco-ro-
O Arcadismo ou Neoclassicismo
mento das Academias Literárias, manos e renascentistas, revaloriza-
PORTUGUÊS E

corresponde ao período de superação ção dos arquétipos da poesia e da mi-


ganha novo alento com o surgimento
dos conflitos religiosos da época bar- tologia da Antiguidade. Daí a deno-
de um público leitor. Estabiliza-se,
roca. No século XVIII, a fé e a religião minação de Neoclassicismo.
dessa forma, a relação autor-obra-
perdem importância, e a Razão e a Predomínio da Razão, a arte bus-
-leitor, ou seja, surgem escritores
Ciência passam a explicar o homem ca o Belo, o Bem, a Verdade e a
brasileiros, que escrevem sobre o
e o mundo. Perfeição. Há intenção didática e
Brasil, para leitores brasileiros.
O Arcadismo coincide com o Sé- moralizante: “O belo é verdadeiro e
culo das Luzes, marcado pelo Ilu- o verdadeiro é o natural”. Busca da
minismo (Rousseau, Montesquieu, harmonia social pela obediência às
Voltaire); pelo Empirismo Científico leis da natureza. Otimismo, crença no
(Newton, Lavoisier, Lineu, Locke); progresso do homem, da ciência e da
pelo Enciclopedismo (Diderot) e, no razão.
âmbito político, pelo Despotismo
Esclarecido. 䊏 Arte como imitação
Representa, historicamente, o úl- da natureza
timo período de dominação da aristo- Obediência às regras de Aristó-
cracia e as primeiras investidas da teles quanto à verossimilhança
burguesia, emergente na Revolução (mimese). O poeta deveria buscar na
Comercial, e que assumirá a condição natureza os seus modelos, selecio-
de classe dominante a partir da nando apenas os que configurassem
as noções de Belo, Bem e Perfeição.
Revolução Francesa.
Os teóricos do Neoclassicismo
Em Portugal, corresponde à épo-
(Boileau, Metastásio) propunham,
ca do Marquês de Pombal (1750-
não a imitação direta da natureza,
1777), que operou profundas transfor-
mas a imitação com base nos autores
mações administrativas e educacio-
antigos ou renascentistas (Horácio,
nais, sob influxo dos ideais do Ilumi-
Morte de Marat, de Jacques-Louis David Ovídio, Virgílio; Petrarca, Camões). O
nismo e do Despotismo Esclarecido (1748-1825). poeta arcádico não visa à origina-
(expulsão dos jesuítas, submissão da
lidade, não é um “inventor”, como o
Santa Inquisição, laicização do ensino, 2. Características barroco, o romântico, o simbolista, o
reforma universitária, divulgação das
moderno; busca a perfeição na
ideias científicas etc.) 䊏 Reação aos exageros verbais imitação do modelo.
No Brasil, corresponde ao apo- do Barroco, propondo a clareza, a Poesia descritiva e objetiva. O
geu da mineração do ouro em Minas simplicidade e o equilíbrio clássico: poeta deve ser mais um pintor de
Gerais e à transferência do centro eco- situações que de emoções.
nômico e cultural da Colônia do norte Alguém há de cuidar que é frase inchada, Poucas figuras de linguagem
(Pernambuco e Bahia) para o centro- Daquela que lá se usa entre essa gente, (em comparação com o Barroco),
-sudeste (Minas e Rio de Janeiro). Que julga que diz muito e não diz nada. preferência pela metonímia, predo-
Corresponde também à fase de mínio da ordem direta da frase,
estabilização de uma sociedade urbana O nosso humilde gênio não consente emprego do verso branco (sem rima),
mais complexa e às primeiras rebeliões Que outra coisa se diga, mais que aquilo que aproxima a poesia da cadência da
contra o Estatuto colonial (Inconfidência Que só convém ao espírito inocente. prosa.
Mineira, Revolução dos Alfaiates etc.).
Daí o nativismo, que passa a ser A frase pastoril, o fraco estilo. 䊏 Bucolismo, pastoralismo
reivindicatório e não mais apenas Da flauta e da sanfona, antes que tudo, Inspirados nos clássicos antigos,
descritivo e pitoresco, como ocorrera Será digno que Albano chegue a ouvi-lo. os árcades tematizam a natureza,
no Quinhentismo e no Barroco. (Cláudio Manuel da Costa) vista sempre como cenário ameno e

24 –
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aprazível (pastores, ovelhas, riachos variáveis dentro de suas obras, Características


cristalinos, campinas verdejantes, reproduzem no Brasil as formas e • Sobrevivem traços cultistas
alamedas floridas etc.). A natureza é temas do Neoclassicismo europeu. em sua obra, que se realiza como
convencional e serve de moldura • Poesia épica: Cláudio Manuel da uma transição entre o Barroco e o
suave, de cenário para a vida serena Costa, Basílio da Gama e Santa Rita Arcadismo.
dos pastores e suas musas, ou de
Durão.
testemunha impassível dos lamentos
• Poesia satírica: Tomás Antônio • Buscou os modelos clássicos
e desenganos do poeta.

PORTUGUÊS E
Gonzaga (Cartas Chilenas ) e Silva (Teócrito, Virgílio, Sannazaro, Ca-
䊏 Fingimento, afetação Alvarenga (O Desertor das Letras ). mões), com equilibrada consciência
e convencionalismo crítica. Concluindo o Prólogo ao
Na mitologia clássica, a Arcádia Leitor, das Obras Poéticas, diz, com
era concebida como morada dos pas- visível falsa modéstia:
tores que, governados por Pã, viviam
“A lição dos gregos, franceses e
em contato com a natureza, tangendo
italianos, sim, me fizeram conhecer a
suas ovelhas, entretidos em amáveis
diferença sensível dos nossos estu-
pugnas poéticas e musicais, bem
como na exaltação da beleza das dos, e dos primeiros Mestres da Poe-
musas e da excelência da vida cam- sia. É infelicidade que haja de con-
pestre. fessar que vejo e aprovo o melhor,
Quando, por volta de 1690, alguns mas sigo o contrário na execução.”
poetas italianos começaram a se opor
• Apesar dos traços cultistas
ao Barroco, fundaram sociedades lite-
que sua obra revela, fez severas
rárias às quais deram o nome de
restrições a esse estilo, defendendo a
arcádias, aludindo à inspiração clás-
simplicidade arcádica.
sica que norteava essas associações
e às propostas de uma poesia sim-
• Foi grande sonetista, sóbrio e
ples, bucólica e pastoril. Os membros
Cristo Flagelado, de Antônio Francisco Lisboa elegante, revelando acentuadas
das arcádias adotavam pseudônimos
— o Aleijadinho — (1738?-1814). Renomado influências de Camões e de
pastoris e chamavam-se uns aos artista plástico brasileiro, arquiteto e escultor.
outros de pastores. Ainda que essencialmente barroco, foi
Petrarca. Poeta de forma trabalhada,
São frequentes os temas clássi- contemporâneo dos poetas árcades da virtuosística, adotou uma concepção
Inconfidência: Cláudio Manuel da Costa (1729-
cos: o carpe diem (= aproveita o dia), neoclássica de poesia, sem sacrificar
1789), Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e
a aurea mediocritas (= mediania de Alvarenga Peixoto (1743-1792). Aleijadinho por inteiro a expressão das emoções
jamais saiu do Brasil, enquanto os poetas, e sentimentos, presentes em suas
ouro), a exaltação da vida simples, o filhos da elite da mineração, educados na
fugere urbem (= fugir da civilização), Europa, assimilaram os ideais iluministas e o melhores criações:
buscar na natureza a felicidade, o estilo árcade-neoclássico.
locus amoenus (= natureza amena, Que tarde nasce o Sol, que vagaroso!
aprazível). Os poetas árcades adota- 4. Cláudio Manuel da Costa Parece que se cansa de que a um triste
(Glauceste Satúrnio) Haja de aparecer: quanto resiste
vam como lema o inutilia truncat
A seu raio este sítio tenebroso!
(= corta o inútil), aludindo à oposição (Mariana, 1729 –
de exageros ornamentais do Barroco. Vila Rica, 1789)
Não pode ser que o giro luminoso
Tanto tempo detenha: se persiste
3. Arcadismo no Brasil Autor de Obras Poéticas (1768), Acaso o meu delírio! se me assiste
reunindo sonetos, éclogas, cantatas, Ainda aquele humor tão venenoso!
O Arcadismo, no Brasil, foi um epicédios, epístolas e outras modalida-
movimento eminentemente poético, des, além do poema épico de inspira- Aquela porta ali se está cerrando;
com três vertentes: Dela sai o Pastor: outro assobia,
ção camoniana, denominado Vila Rica. E o gado para o monte vai chamando.
• Poesia lírica: oscila dos resíduos
Nasceu em Minas, filho de mine-
barrocos às antecipações do
radores, estudou na corte. Voltando Ora não há mais louca fantasia!
Romantismo. Cláudio Manuel da
Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Silva ao Brasil, foi envolvido na devassa da Mas quem anda, como eu, assim penando,
Não sabe quando é noite ou quando é dia.
Alvarenga, Alvarenga Peixoto e Inconfidência Mineira, suicidando-se
Caldas Barbosa, em proporções na prisão. ***
– 25
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Não vês, Nise, este vento desabrido, que arrebate as ideias de Poeta, deixa e a experiência intelectual e social na
Que arranca os duros troncos? Não vês esta, ponderar ambiciosa fadiga de minerar a Europa.
Que vem cobrindo o Céu, sombra funesta,
terra que Ihes tem pervertido as cores.” • Os temas que versou com
Entre o horror de um relâmpago
[incendido?
“A desconsolação de não poder mais frequência foram:
substabelecer aqui as delícias do Tejo, do – o platonismo amoroso, con-
Não vês a cada instante o ar partido Lima e do Mondego, me fez empecer o figurado no amante infeliz e na tris-
Dessas linhas de fogo? Tudo cresta, engenho dentro do meu berço.”
teza da mudança das coisas em rela-
PORTUGUÊS E

Tudo consome, tudo arrasa e infesta


O raio a cada instante despedido. ção à permanência dos sentimentos;
• Essa visão realista e objetiva – o contraste rústico x civilizado;
Ah! não temas o estrago que ameaça da impossibilidade de transpor para a – a presença de Nise, sua musa
A tormenta fatal; que o Céu destina natureza brasileira as convenções da
Vejas mais feia, mais cruel desgraça:
e pastora, causa de seus lamentos e
poesia arcádica contribuiu para que dissabores:
Rasga o meu peito, já que és tão ferina; se criticasse, em Cláudio Manuel da
Verás a tempestade, que em mim passa; Costa, a ausência do elemento brasi- Aquela cinta azul, que o Céu estende
Conhecerás, então, o que é ruína. leiro. Contudo, a paisagem mineira À nossa mão esquerda, aquele grito
está presente na sua obra, através de Com que está toda a noite o corvo aflito
• Tentou conciliar as conven- alusões à natureza áspera (pedras, Dizendo um não sei quê, que não se
ções do Arcadismo com a paisagem penhas, rochedos, penhascos), que [entende;
mineira, mas reconheceu as limita- o poeta faz contrastar com a
ções que as adversidades da condi- Levantar-me de um sonho, quando atende
brandura de seus sentimentos.
O meu ouvido um mísero conflito,
ção colonial impunham à criação
A tempo, que o voraz lobo maldito
poética. Observem-se estes trechos
... oh! quem cuidara A minha ovelha mais mimosa ofende;
do “Prólogo” das Obras Poéticas:
Que entre penhas tão duras se cria
Encontrar a dormir tão preguiçoso
Uma alma terna, um peito sem dureza.
“que só entre as delícias do Pindo se Melampo, o meu fiel, que na manada
podem nutrir aqueles espíritos que desde Sempre desperto está, sempre ansioso;
o berço se destinaram a tratar com as • Oscilou entre o apego à Colô-
nia e o amor à Metrópole, atitude Ah! queira Deus que minta a sorte irada:
Musas.”
Mas de tão triste agouro cuidadoso1
“Não são estas as venturosas praias comum a muitos dos nossos árcades.
Só me lembro de Nise, e de mais nada.
da Arcádia, onde o som das águas Por isso, é frequente a expressão do
inspirava a harmonia dos versos. Turva e dilaceramento interior, provocado Vocabulário e Notas
feia, a corrente desses ribeirões, primeiro pelo contraste entre o rústico mineiro 1 – Cuidadoso (de): preocupado com.

A Casa dos Contos (vestíbulo), construída em Ouro Preto (1784). Cláudio Manuel da Costa foi um
dos inconfidentes que estiveram presos nessa elegante construção civil, em 1789.

26 –
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5. Tomás Antônio Gonzaga expressão da desesperança e da Marília, os amores de Dirceu, os pro-


(Porto, 1744 – solidão. jetos de vida futura, os quadros des-
Moçambique, 1810) 2.o) A imitação direta da natu- critivos amenos, a expressão otimista
reza de Minas, e não da natureza e o narcisismo:
Nascido em Portugal, veio para o reproduzida dos poetas bucólicos
Brasil com 7 anos. Voltou a Portugal, greco-romanos ou renascentistas. A Num sítio ameno,
onde se formou em Direito e exerceu ficção bucólica de Gonzaga é injetada Cheio de rosas,

PORTUGUÊS E
a magistratura. Retornando ao Brasil, de autenticidade pela transcrição dos De brancos lírios,
já com 38 anos, na condição de Ouvi- Murtas viçosas,
aspectos rústicos e reais da paisagem
Dos seus amores
dor de Vila Rica, ficou noivo de Maria e da vida da Colônia. Na companhia,
Joaquina Doroteia de Seixas (a Marília Apesar das alusões mitológicas e Dirceu passava
das Liras). de outras reminiscências clássicas, Alegre o dia.
Envolvido na Inconfidência Mineira, percebe-se que o poeta teve a preo-
foi desterrado para Moçambique, onde cupação de fazer-se claramente en- A segunda parte das Liras,
reconstruiu sua vida e conquistou tendido por Marília. Para tanto, obser- escrita no cárcere, expressa a amar-
excelente situação econômica. va-se o tom familiar, quase prosaico, gura, o desconsolo e a solidão. Há
de boa parte das composições. momentos de revolta contra a
䊏 Obras Mesmo admitindo a sinceridade injustiça e incompreensão dos
• Poesia lírica: Liras de Marília das intenções do poeta, não há nas homens. Os sentimentos de melan-
de Dirceu; Liras um transbordamento de um colia, saudade e depressão
• Poesia satírica: Cartas Chi- apaixonado autêntico. Há muito de aproximam-se do pathos romântico.
lenas ; “fingimento”, de frieza calculada e Mas não há o desvario sentimental
• Tese jurídica: Tratado de disfarçada de um conquistador cor- dos românticos nem a incontinência
Direito Natural. tês, dotado de apreciável intuição verbal. Mesmo expressando seu
psicológica. Isso explica as contradi- desespero, o estilo de Gonzaga é
䊏 Características das Liras ções na caracterização de Dirceu, ora sóbrio, equilibrado, ainda preso ao
• Foi o poeta mais equilibrada- honrado pastor, ora ilustre magis- espírito dos clássicos:
mente neoclássico de nossa trado, e na de Marília, ora loira, ora
literatura, e sua obra lírica é, ainda morena. Se me visses com teus olhos
Nesta masmorra metido,
hoje, das manifestações árcades no As preferências temáticas estão
De mil ideias funestas
Brasil, a que mais se comunica com centradas no ideal de vida simples, E cuidados combatido,
o leitor. no pastoralismo e bucolismo Qual seria, ó minha bela,
• Apesar de ceder, vez por outra, (fugere urbem); no heroísmo que se Qual seria o teu pesar?
às convenções da poesia arcádica, atinge pela honradez e pelo trabalho
infunde em sua obra dois elementos (aurea mediocritas); no sentimento 䊏 As Cartas Chilenas
não convencionais: da transitoriedade da vida, que Poema satírico, vazado em 13
1.o) O lirismo como expressão arrasta o poeta ao carpe diem hora- cartas (a 7.a a 13.a incompletas), que
pessoal, construído em torno de seu ciano; nos retratos que lisonjeiam e ataca os desmandos do governador
modo de ser e pensar, inspirado na divinizam a mulher amada. de Minas, D. Luís da Cunha Menezes.
estilização de sua alegria ou de seu Tudo isso mistura-se à expressão Os nomes das pessoas envolvidas
drama. Essa nota de subjetivismo é de um ideal burguês de vida, às são ocultos por criptônimos. Gonzaga
mais evidente na segunda parte das tentativas de autovalorização, de é Critilo; Cláudio Manuel da Costa, o
Liras. afirmação narcisística das qualida- suposto destinatário, é Doroteu; o go-
Sob esse aspecto, é possível re- des do poeta, às cenas da natureza vernador Cunha Menezes é Minésio,
constituir, a partir das Liras, a evolu- que oscilam entre a frivolidade o Fanfarrão. Os topônimos também
ção dos sentimentos e intenções de próxima ao estilo rococó e o são trocados, mas os fatos narrados
Dirceu em relação a Marília: a desco- realismo descritivo. por Critilo e imputados ao governador
berta e a revelação da mulher escolhi- A primeira parte das Liras, que são reais.
da, a fase dos ciúmes, a consolidação corresponde à época do noivado, A crítica é de natureza pessoal, di-
dos sentimentos e intenções, a frus- expressa a vertente mais convencio- rigida ao governador. Não há oposição
tração dos planos de casamento e a nal e neoclássica: os encantos de à Metrópole nem ao sistema colonial.
– 27
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Já destes bens, Marília, não preciso: A devorante mão da negra morte


TEXTOS
nem me cega a paixão, que o mundo arrasta; acaba de roubar o bem que temos;
para viver feliz, Marília, basta até na triste campa4 não podemos
LIRA I que os olhos movas, e me dês um riso. zombar do braço da inconstante sorte:
(PARTE I) Graças, Marília bela, qual5 fica no sepulcro6,
Graças à minha Estrela! que seus avós ergueram, descansado;
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, qual7 no campo, e lhe arranca os frios ossos
PORTUGUÊS E

que viva de guardar alheio gado, ferro do torto arado.


de tosco trato, d’expressões grosseiro, Irás a divertir-te na floresta,

dos frios gelos e dos sóis queimado. sustentada, Marília, no meu braço;
Ah! enquanto os destinos impiedosos
Tenho próprio casal1, e nele assisto2; ali descansarei a quente sesta,
não voltam contra nós a face irada,
dá-me vinho, legume, fruta, azeite; dormindo um leve sono em teu regaço,
façamos, sim, façamos, doce amada,
das brancas ovelhinhas tiro o leite, enquanto a luta jogam os Pastores
os nossos breves dias mais ditosos8.
e mais as finas lãs, de que me visto. e emparelhados correm nas campinas,
Um coração que, frouxo,
Graças, Marília bela, toucarei6 teus cabelos de boninas7,
a grata posse de seu bem difere9,
Graças à minha Estrela! nos troncos gravarei os teus louvores.
a si, Marília, a si próprio rouba
Graças, Marília bela,
e a si próprio fere.
Graças à minha Estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte,
dos anos inda não está cortado; Ornemos nossas testas com as flores

os pastores, que habitam este monte, Depois que nos ferir a mão da morte, e façamos de feno um brando leito;

respeitam o poder do meu cajado. ou seja neste monte, ou noutra serra, Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,

Com tal destreza toco a sanfoninha, nossos corpos terão, terão a sorte gozemos do prazer de sãos amores.

que inveja até me tem o próprio Alceste: de consumir os dois a mesma terra. Sobre as nossas cabeças,

ao som dela concerto a voz celeste; Na campa, rodeada de ciprestes, sem que o possam deter, o tempo corre;

nem canto letra que não seja minha. lerão estas palavras os pastores: e para nós o tempo que se passa

Graças, Marília bela, “Quem quiser ser feliz nos seus amores também, Marília, morre.

Graças à minha Estrela! siga os exemplos que nos deram estes.”


Graças, Marília bela, Com os anos, Marília, o gosto falta,
Graças à minha Estrela! e se entorpece o corpo já cansado:
Mas tendo tantos dotes da ventura,
triste, o velho cordeiro está deitado,
só apreço lhes dou, gentil Pastora,
e o leve filho, sempre alegre, salta.
depois que teu afeto me segura3 Vocabulário e Notas A mesma formosura
que queres do que tenho ser Senhora. 1 – Casal: propriedade rural. é dote que só goza a mocidade:
É bom, minha Marília, é bom ser dono 2 – Assistir: residir, morar. rugam-se as faces, o cabelo alveja,
de um rebanho, que cubra monte e prado; 3 – Segurar: o mesmo que assegurar. mal chega a longa idade.
porém, gentil Pastora, o teu agrado 4 – Rio levantado: cheia, inundação.
vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono. 5 – Nédio: gorduroso. Que havemos de esperar, Marília bela?
Graças, Marília bela, 6 – Toucar: cobrir. Que vão passando os florescentes dias?
Graças à minha Estrela! 7 – Bonina: por extensão, flor da planta de As glórias que vêm tarde já vêm frias,
mesmo nome. e pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
Os teus olhos espalham luz divina
Ah! não, minha Marília,
a quem a luz do Sol em vão se atreve:
aproveite-se o tempo, antes que faça
papoula ou rosa delicada e fina ***
o estrago de roubar ao corpo as forças
te cobre as faces, que são cor de neve.
e ao semblante a graça!
Os teus cabelos são uns fios d’ouro; LIRA XIV
teu lindo corpo bálsamos vapora. (PARTE I) Vocabulário e Notas
Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora, 1 – Ventura: felicidade.
para glória de Amor igual tesouro. Minha bela Marília, tudo passa; 2 – Mesmo: próprio.
Graças, Marília bela, a sorte deste mundo é mal segura; 3 – Ímpio fado: impiedoso destino.
Graças à minha Estrela! se vem depois dos males a ventura1, 4 – Campa: túmulo.
vem depois dos prazeres a desgraça. 5 – Qual: um.
Leve-me a sementeira muito embora Estão os mesmos2 deuses 6 – Sepulcro: sepultura.
o rio sobre os campos levantado4: sujeitos ao poder do ímpio fado3: 7 – Qual: outro.
acabe, acabe a peste matadora, Apolo já fugiu do céu brilhante, 8 – Ditoso: feliz.
sem deixar uma rês, o nédio5 gado. já foi pastor de gado. 9 – Diferir: adiar.

28 –
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6. Autores épicos do Arcadismo O episódio mais famoso do poe- Pois, se sabes que a tua formosura
ma é o da morte de Lindoia. Cacam- Por força há de sofrer da idade os danos,
bo, o amado da bela índia, foi levado Por que me negas hoje esta ventura?
䊏 Basílio da Gama
à morte por uma trama traiçoeira do
(São José do Rio das Mortes, Guarda para seu tempo os desenganos,
horrendo jesuíta Balda. Este agora vai
MG, 1741 – Lisboa, 1795) Gozemo-nos agora, enquanto dura,
conseguir seu intento de casar seu
Sua obra de maior representativi- repulsivo filho Baldeta com a índia, Já que dura tão pouco, a flor dos anos.
dade foi O Uraguai, epopeia em que é filha do cacique. No final do epi-

PORTUGUÊS E
cinco cantos, com versos sódio, Lindoia, refugiada numa gruta Vocabulário e Notas
decassílabos brancos (sem rimas) e para evitar o casamento indesejado, 1 – Desbaratar: arruinar.
estrofação livre, que narra o conflito escreve por toda a parte o nome do
entre os índios de Sete Povos das amado morto e depois deixa que uma 䊏 Frei Santa Rita Durão
Missões e o exército luso-espanhol. cobra venenosa Ihe morda o seio. (Cata Preta, MG, 1722 –
No poema, Basílio da Gama tenta Assim o poeta a descreve morta: Lisboa, 1784)
conciliar a louvação de Pombal e do É o autor do poema épico Cara-
Inda conserva o pálido semblante1
heroísmo do indígena. Torna herói o muru, no qual segue o modelo camo-
Um não sei quê de magoado e triste,
niano (dez cantos, versos decassíla-
comissário real português Gomes Que os corações mais duros enternece,
bos em oitava-rima).
Freire de Andrade, fazendo recair Tanto era bela no seu rosto a morte!
Nesse poema, narram-se os acon-
sobre os jesuítas a pecha de vilões. Vocabulário e Notas tecimentos lendário-históricos do nau-
Sobre O Uraguai, pode-se afirmar: 1 – Semblante: rosto. frágio, do salvamento e das aventuras
• nada há no poema que lembre de Diogo Álvares Correia, o Caramuru.
Comentário
as rígidas divisões do poema épico Caramuru destaca-se por apre-
O antológico verso final, com suas alitera-
tradicional, ou seja, do modelo camo- sentar costumes e instituições dos ín-
ções em t e seu tom exclamativo, é imitação
niano; de um verso do poeta italiano Petrarca dios brasileiros, a flora nativa e o
• a natureza é colhida por ima- (séc. XV): Morte bela parea nel suo bel viso, “a sentimento nativista de amor à pátria.
gens densas e rápidas; já não são as morte parecia bela em seu rosto belo.” Assim, Santa Rita Durão prenun-
imagens do Arcadismo, mas sim o ca- cia a figuração romântica do índio:
minho para o paisagismo romântico; Na lírica, suas produções são às
• há o realismo da ação heroica, vezes de alta qualidade, como atesta Nós que zombamos deste povo insano,
e não o fabuloso; o soneto seguinte, em que o lugar- Se bem cavarmos no solar nativo,
• usa-se o sobrenatural (bruxaria -comum do carpe diem é desen- Dos antigos heróis dentro às imagens
indígena); volvido com o emprego de imagens Não acharemos mais que outros selvagens.
de discreto gosto barroco:
• o indígena é tomado como he-
rói, equiparado ao português, prenun- Veja-se a abertura do poema:
Já, Marfiza cruel, me não maltrata
ciando o índio romântico de Saber que usas comigo de cautelas,
Gonçalves Dias e Alencar. De um varão em mil casos agitado,
Qu’inda te espero ver, por causa delas,
Que as praias discorrendo do Ocidente,
Veja-se a abertura do poema: Arrependida de ter sido ingrata.
Descobriu o recôncavo afamado
Fumam ainda nas desertas praias Com o tempo, que tudo desbarata1, Da capital brasílica potente,
Lagos de sangue tépidos1 e impuros2, Teus olhos deixarão de ser estrelas; Do filho do trovão denominado,
Em que ondeiam cadáveres despidos, Verás murchar no rosto as faces belas Que o peito domar soube à fera gente,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales E as tranças d’ouro converter-se em prata. O valor cantarei na adversa sorte,
O rouco som da irada artilheria. Pois só conheço herói quem nela é forte.
MUSA, honremos o Herói 3 que o povo rude
Subjugou do Uraguai e no seu sangue
Dos decretos reais lavou a afronta.
Ai, tanto custas, ambição de império4!... A Morte de Moema,
de Vítor Meireles (1832-1903).
Tanto Moema, do poema
Vocabulário e Notas
1 – Tépido: quente. 2 – Impuro: porque o
Caramuru, quanto Lindoia,
sangue é de indígenas, não cristãos. 3 – Herói: do poema O Uraguai,
o general português que lutou contra os representam antecipações do
indígenas. 4 – Império: domínio. indianismo romântico
ainda no período neoclássico.

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MÓDULO 6 Romantismo em Portugal: introdução e Camilo Castelo Branco


䊏 Características
formais e temáticas
• A ruptura com a
disciplina clássica
PORTUGUÊS E

Na poesia desaparecem as for-


mas fixas, predominando a liberdade
quanto à extensão do poema e quan-
to aos temas e à natureza dos versos
e estrofes. A poesia aproxima-se do
tom coloquial da prosa, e a prosa
ganha inflexões poéticas. O conto,
a novela e o romance tornam-se
gêneros muito difundidos e ganham
respeitabilidade.
O teatro rompe com a lei das
três unidades e manifesta-se em
prosa. O gênero épico ganha inúme-
ras modalidades e perde o rigor clás-
sico; desaparecem as sugestões fun-
dadas na mitologia greco-romana.
A liberdade, a flexibilidade e a
A Liberdade Guiando o Povo, de Eugène Delacroix (1798-1863). O quadro é uma exaltação das ideias mistura de gêneros tornam relativos
liberais que se associam ao Romantismo. O jovem de cartola e com um fuzil na mão é o próprio pintor, todos os valores.
um aristocrata que, em 1830, entusiasmou-se com as ideias libertárias.
Retomando alguns aspectos do
Barroco (o impulso pessoal, a intensi-
1. Romantismo -Naturalismo, o Parnasianismo, o Sim- dade, a irregularidade), o Romantismo
constitui o primeiro grande estilo mo-
bolismo e o Modernismo.
derno do Ocidente. Renova-se a lín-
䊏 Contexto A burguesia, instalada então no
gua, com a incorporação da
O Romantismo é o movimento poder após aquelas revoluções, mas linguagem oral e do neologismo. A
cultural que reflete as ideias e ideais sem a tradição e o prestígio da nobre- superação do repertório linguístico
da burguesia recém-chegada ao po- za, já decaída, instaura nova perspec- dos clássicos possibilita uma dicção
der. É, no plano intelectual, uma revo- tiva estética: em vez dos procedimen- mais solta e mais compatível com o
lução que corresponde ao que, no tos artificiosos da cultura clássica — gosto e com o entendimento da
burguesia e das camadas populares.
plano político, foi a Revolução Fran- imitação da natureza, razão, ordem,
cesa (1789) e as outras revoluções equilíbrio, harmonia, impessoalidade • O predomínio da
burguesas (de 1770 e 1848) e, no etc. —, a arte agora expressa os imaginação e da emoção
plano tecnológico, ao que foi a Revo- aspectos tumultuosos e pessoais da – O subjetivismo
A manifestação do subjetivismo
lução Industrial (por volta de 1750). existência, como a paixão, o amor, o
corresponde ao predomínio da função
Os movimentos culturais ocor- sonho, o devaneio, a loucura, a
emotiva ou expressiva da linguagem.
ridos após a Idade Média — Renas- morbidez, o tédio, o espírito de A metáfora é, mais uma vez, o
cimento, Barroco e Arcadismo —, rebeldia, o ímpeto revolucionário, a instrumento pelo qual a imaginação
apesar de suas diferenças, são todos infância e a religiosidade. No lugar do descobre semelhanças onde há dis-
pertencentes à Era Clássica, que tem universalismo da arte clássica, o paridade. Daí a riqueza das imagens
como fundamento socioeconômico o Romantismo propõe o particularismo e a ousadia das aproximações, fer-
mentando um discurso pomposo,
fato de a nobreza estar no poder. O do indivíduo (subjetivismo) e do país
colorido, carregado de adjetivos. A
Romantismo inaugura a Era Român- (nacionalismo); em vez da repetição do
realidade confunde-se com a fanta-
tica, que, a despeito também de suas que a tradição consagra, os românticos sia, e a percepção das coisas torna-se
diferenças, inclui ainda o Realismo- valorizam a originalidade, o novo. mais importante do que elas pró-
30 –
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prias. A intensidade da emoção, o im- contra os exércitos francês e mantismo, é representado por três
pulso, por vezes o tumulto, fazem espanhol, e o país fica em situação autores: Almeida Garrett, Alexandre
fre quentes as inter jeições, os lastimável: saques, perseguições e Herculano e Antônio Feliciano de Cas-
pontos de exclamação e as reticên- uma política insustentável — tilho, cujas obras têm ainda fortes
cias, a dupla pontuação e as após- simultaneamente protetorado inglês ressonâncias neoclássicas. Esses
trofes violentas. e colônia do Brasil. autores marcam-se pela presença do
• O nacionalismo vai buscar A regência do general Beresford, a
medievalismo, que fascinou o grupo

PORTUGUÊS E
suas fontes no passado histórico e revolta do exército (1820), a Junta Pro-
coimbrão do Romantismo.
lendário (na Idade Média, para os eu- visória, as eleições para as cortes, o
ropeus; na figura do índio e na Camões (1825), de Garrett (o
regresso de D. João Vl a Portugal, a
natureza, nos países da América). autor mais ativo do grupo), foi marco
nova Constituição e a Independência do
Desenvolve-se o gosto pelo exótico, inicial do movimento, que só se con-
Brasil abrem um período de revoluções
pela cor local e pelas manifes- solidou na década de 1830. São des-
e contrarrevoluções, contrapondo abso-
tações nacionais e populares. lutistas e liberais de diversos matizes, o sa época as primeiras traduções para
que se estenderá até 1851, quando o o português das obras de Walter
• O idealismo – Scott e a publicação de A Voz do
governo da Regeneração, por meio de
A insatisfação – Profeta, de Alexandre Herculano;
Saldanha, assume o poder, apoiado
O escapismo • O segundo momento (1840-
pela burguesia unificada.
(fuga da realidade)
É nesse contexto que se desen- 1850) representa a transição entre o
O mundo real sempre frustra o
volve o Romantismo português, cujos medievalismo e a observação da
idealismo romântico. Daí a rebeldia
marcos cronológicos são: realidade. É a fase do ultrarroman-
dos poetas do mal do século. Esse de-
Início: 1825 – Publicação do tismo, das novelas passionais de
sejo de fugir à realidade manifesta-se
poema Camões, de Almeida Garrett; Camilo Castelo Branco e da poesia
em atitudes como: a morbidez; o de-
Término: 1865 – Eclosão da mórbida de Soares Passos;
sejo de morrer; a boêmia desbragada;
o culto da solidão; a evasão no tempo “Questão Coimbrã”, que marca o • O terceiro momento (1850-
(a busca do passado, a antevisão do início do período realista. 1865) representa a aliança do Ro-
futuro e a abominação do presente); a mantismo com as antecipações do
䊏 A evolução do Realismo. Júlio Dinis, com o romance
evasão no espaço (a busca de lugares
Romantismo em Portugal de costumes, foi fundamental na
longínquos, exóticos, o gosto pelas
Há três momentos (ou gerações) caracterização da classe média urba-
ruínas, a poesia noturna e fúnebre)
etc. que podem resumir a evolução do na e rural. João de Deus, na poesia,
• Ilogismo Romantismo português: atacou duramente a venalidade do
A negação da lógica e da razão e • O primeiro momento (1825- regime da Regeneração, antecipando
a instabilidade emocional manifes- 1840), a fase de implantação do Ro- a atitude crítica dos realistas.
tam-se por meio de atitudes anti-
téticas — alegria/tristeza, euforia/ de-
pressão, desejo/autopunição, religio-
sidade/satanismo.
• Idealização da mulher
Anjo ou demônio, inacessível, po-
derosa, a mulher, para os românticos,
é capaz de alterar a vida do homem,
levá-lo à loucura e à morte.

2. Romantismo em Portugal

䊏 O contexto histórico português


Com a transferência da família
real e do governo português para o
Brasil, por 14 anos, a metrópole
transforma-se em colônia da colônia,
de 1808 a 1822. Com a corte de
D. João Vl no Brasil, os portugueses
enfrentam quatro anos de guerra Leitura do “Werther” de Goethe, de Wilhelm Amberg (1822-1899).
– 31
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3. Camilo Castelo Branco As personagens são representa- • Teatro


(1825-1890) tivas da miséria, dor, crime, corrup- Agostinho de Ceuta, O Marquês
䊏 Vida ção, perversão. É notória a influência das Torres Novas, A Morgadinha de
Teve vida atribulada. Filho natural, de seus estudos médicos. Val d’Amores.
perdeu a mãe aos dois anos e o pai Já se percebem nessas obras os
aos dez. Viveu sucessivamente com elementos passionais que marcarão a
• Vária
segunda fase e a intenção crítica que
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uma tia, até os 14 anos, e com uma Compreendendo crônicas, crítica


irmã. Casou-se aos 16 anos. Aos 21, amadurecerá na terceira.
literária, escritos sobre história, me-
já separado da mulher, rapta uma Segunda Fase – A Novela Pas-
mórias etc.
senhora em Vila Real. São sional: Amor de Perdição, Amor de
aprisionados. Cursa, sem concluir, Salvação e A Queda dum Anjo (novela
Medicina e Engenharia e frequenta o satírica). Essa fase representa a 䊏 Características da novela
seminário. Envolve-se com uma maturidade. passional camiliana
freira. Em 1857, conhece Ana Amor de Perdição, obra que • Esquema folhetinesco tradi-
Plácido, sua grande paixão. A moça, confere notoriedade ao autor, apre- cional: amor impossível, adúltero,
casada por imposição familiar, foge senta enredo conciso, equilibrado, incestuoso, que se engrandece em
do marido e junta-se com Camilo. sem personagens dispensáveis e face das dificuldades, tornando-se
Ambos são presos por dois anos. Na quase sem digressões. A linguagem eterno;
prisão, Camilo escreve, em quinze é adequada: é romântica na corres- • Amor fatal, obsessivo, tão
dias, sua obra-prima — Amor de pondência Simão–Teresa; é popular, grandioso que não pode ficar restrito
Perdição —, que esteve na iminência direta, coloquial em João da Cruz; ao campo terreno;
de ser rasgada pelo autor. Com a irônica e caricatural, quando envol- • Desenlaces trágicos, com a
morte do marido de Ana Plácido, ela e ve as freiras do convento. expiação transcendental das culpas
Camilo são libertados e vão viver em Há elementos de poesia, de dos amantes: morte, suicídio, lou-
São Miguel de Seide. novela e de tragédia, perpassados cura, ida para um convento;
Entregue à redação de suas de forte humanismo, que conferem à • Como Balzac e Sue, procurava
obras, nas quais tem seu ganha-pão, obra vigor e grandiosidade. enredar emocionalmente o leitor, jo-
Camilo leva existência difícil, pela Terceira Fase – A Antecipação gando com suas expectativas. Mesmo
falta de dinheiro, pela loucura de um Realista: Eusébio Macário, A Corja, trabalhando esquemas narrativos já
filho — Jorge — e pela cegueira A Brasileira de Prazins e Vulcões de incorporados ao gosto do leitor, Camilo
ameaçadora. Em 1.o de junho de Lama. inovou a escrita literária portuguesa.
1890, já cego, Camilo suicida-se. O poder de observação desce ao Afastou o empolamento retórico e re-
pormenor descritivo, com uma lingua- novou o vernáculo castiço, comuni-
gem mais próxima da classe popular. cando-se com o grande público, sem
䊏 Obras As personagens, extraídas das ca- deixar de fazer obra de arte.
• Novela: dentre as 58 que madas populares, não destoam da ga-
escreveu, destacamos: leria camiliana: são enjeitados, mulhe-
Primeira Fase – Iniciação: res moralmente fracas, tísicos, loucos, 䊏 Amor de Perdição
narrativas de mistério e novelas de adúlteros, beberrões, mal-amados etc. Dois jovens, Simão Botelho (rico
assunto histórico: Anátema, Carlota Pretendendo criticar e ironizar o fidalgo) e Teresa Albuquerque, estão
Ângela, Onde Está a Felicidade?, Um romance naturalista, parece que enamorados. As respectivas famílias,
Homem de Brios e Memórias de Camilo acaba por aderir à nova ten- separadas por velhas questões, não
Guilherme do Amaral. dência, realizando o romance de crí- veem com bons olhos tal afeição e
Os romances dessa fase marcam-se tica social decalcado no tema realista tentam de vários modos afastá-los,
pelo tom macabro, terrífico, com do adultério e na observação perso- chegando até a enviar Simão para
tendências para o melodrama (ódios, nalizada da realidade. Coimbra e a obrigar Teresa a ingressar
vinganças, fatalismo). num convento por não se casar com
Há instabilidade literária e falta de • Poesia seu primo Baltasar Coutinho. Diante
concisão no enredo; é perceptível a Pundonores Desagravados, O disso, os jovens planejam uma fuga e,
influência de Ann Radcliffe, Eugênio Juízo Final e o Sonho do Inferno, A quando Simão se dirige ao convento,
Sue, Alexandre Dumas, Victor Hugo. Murraça, Nas Trevas. encontra, às portas desse, o pai e o
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primo de Teresa. Trava-se, então, uma 䊏 Características da novela Ultrarromantismo, que escondia sob
luta entre o último e Simão. Baltasar satírica camiliana um palavreado sublime a caça erótica.
acaba morto. Simão é preso e con- Ainda que sejam contemporâneas A segunda parte (Cabeça), menos
denado ao exílio. Faz-lhe companhia a das novelas passionais, as novelas bem-humorada, é uma invectiva à
pobre Mariana, moça simples, que o satíricas de costumes representam burguesia portuense e ao jornalismo
ama sem ser correspondida e que lhe o avesso do idealismo sentimental, que a bajulava. A terceira parte
tem sido um anjo da guarda. Enquanto dando-nos o quadro de uma vida (Estômago) contém as melhores

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Teresa definha no convento, atacada totalmente dirigida pela sordidez, pela páginas. Glosando o tema a cidade e
por um mal incurável, o moço aguarda ambição de riqueza, pelos prazeres o campo, Silvestre exalta a vida
a hora de partir. O barco larga. Simão do estômago e do sexo, pela ânsia rústica, sã, instintiva, patriarcal, com a
avista, ao longe, o convento de hipócrita de supremacia social, poesia forte da ingenuidade. O
Monchique e o lenço branco de Teresa disfarçada, às vezes, pela retórica hedonismo impregna as descrições e
acenar debilmente. Sobrevém-lhe as falas, castiças, de flagrante
idealizante do sentimentalismo e das
verdade, dando suculência e cor ao
repentina febre, que o prostra à morte. nobres intenções sociais.
próprio estilo. Mas, para o inquieto
É sepultado no mar. Mariana lança-se Na novela satírica de costumes ou
Camilo, a vida aldeã não é também a
ao mar e morre abraçada ao cadáver nas paródias satíricas dos enredos
chave da ventura: o final desengana o
de Simão. passionais predomina o tom grotesco
leitor: Silvestre, no campo, estupidifi-
O trecho a seguir corresponde a de farsa, com que Camilo retrata o
ca-se, por excesso de “imobilidade e
essa passagem: tipo filho-família, boçal e libidinoso, ou
cansaço das molas digestivas”.
do novo-rico brasileiro. O adultério e a É esta a obra de Camilo na qual se
— Agora é tempo de dar sepultura ao sedução apresentam-se com uma luz reúnem características semeadas por
nosso venturoso amigo... É ventura morrer irônica, que os reduz a casos toda a sua produção literária, como
quando se vem a este mundo com tal estrela. picarescos ou de anedotário picante, se, indo buscar pedaços de cada
Passe a senhora Mariana ali para a câmara, que
apesar de o autor erguer, de quando personagem já criada, concluísse o
vai ser levado daqui o defunto.
em quando, um véu de considera- puzzle da sua galeria de tipos.
(...)
Foi o cadáver envolto num lençol e trans-
ções moralistas. É o que cabalmente O autor esmerou-se para nos
portado ao convés. exemplificam as aventuras amorosas presentear com uma das melhores
Mariana seguiu-o. Do porão da nau foi em que Silvestre da Silva se envolve novelas satíricas em língua portu-
trazida uma pedra, que um marujo lhe atou às na primeira parte de Coração, Cabeça guesa. Nela desvenda as misérias de
pernas com um pedaço de cabo. O comandan- e Estômago. O coração é o disfarce uma sociedade que se compraz na
te contemplava a cena triste com os olhos úmi- para as mais variadas incursões vulgaridade e na hipocrisia, praticando
dos, e os soldados que guarneciam a nau, tão todo o gênero de excessos e
eróticas do herói-memorialista.
funeral respeito os impressionara, que insensi-
Camilo esmera-se em traçar cari- orientando todas as suas energias
velmente se descobriram.
caturas das motivações digestivas, para a cupidez, a brutalidade e ânsia
Mariana estava, no entanto, encostada ao
sexuais ou econômicas, revestindo de ascensão social.
flanco da nau, e parecia estupidamente encarar
farsescamente essas motivações Coração, Cabeça e Estômago é o
aqueles empuxões que o marujo dava ao cadá-
ver, para segurar a pedra na cintura. inferiores com nobres ideais, sempre percurso de Camilo pela vida de
Dois homens ergueram o morto ao alto desmascarados no final. Silvestre da Silva. Escrito pelo punho
sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para o do próprio Silva em apontamentos
arremessarem longe. E, antes que o baque do • Coração, Cabeça e Estômago soltos, que o autor, seu amigo, teria
cadáver se fizesse ouvir na água, todos viram, Com intuito comercial, Camilo salvado das mãos dos credores, que
e ninguém já pôde segurar Mariana, que se
Castelo Branco cerziu nesta obra julgavam serem papéis de crédito os
atirara ao mar. papéis de escrita, a obra divide-se em
textos fragmentários, compondo-os
À voz do comandante desamarraram rapi- três volumes, cada um deles
como memórias dum tal Silvestre
damente o bote, e saltaram homens para dedicado à parte anatômica a que o
salvar Mariana.
da Silva. Este teria escrito essas
memórias em idade já madura, título se refere e que parece
Salvá-la!...
reflexiva, capaz de autoironia. Ao comandar a roda da fortuna de
Viram-na, um momento, bracejar, não para
evocar, na primeira parte (Coração), Silvestre da Silva em cada uma das
resistir à morte, mas para abraçar-se ao cadá-
ver de Simão, que uma onda lhe atirou aos amores da juventude, frutos de fases da sua vida.
braços. imaginação inquinada de literatura, A seguir, transcreve-se parte do
(Amor de Perdição) Silvestre denuncia o vazio do “Preâmbulo” da novela:

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— O meu amigo Faustino Xavier de Novais Eu fui o herdeiro dos seus papéis. Alguns folhetins eram um viveiro de imoralidades
conheceu perfeitamente aquele nosso amigo credores quiseram disputarmos, cuidando que vestidas, ou nuas, à francesa. Jornal em que
Silvestre da Silva... eram papéis de crédito. Fiz-lhes entender que ele escrevesse morria ao fim do primeiro
— Ora, se conheci!... Como está ele? eram pedaços dum romance; e eles, renun- trimestre, depois de ter matado muitas
— Está bem: está enterrado há seis ciando a posse, disseram que tais pataratices ilusões. Quem hoje desembrulha um queijo
meses. deviam chamar-se papelada, e não papéis. flamengo, e lê no invólucro um folhetim de
— Morreu?! Aceitei a distinção como necessária e Silvestre, mal pensará que tem entre as mãos
— Não morreu, meu caro Novais. Um retirei com a papelada, resolvido a dá-la à o passaporte de muita gente para o inferno.
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filósofo não deve aceitar no seu vocabulário a estampa, e com o produto dela ir resgatando a
palavra morte, senão convencionalmente. Não palavra do nosso defunto amigo, embolsando
há morte. O que há é metamorfose, transfor- os credores os credores. Fiz um cálculo
TEXTO I
mação, mudança de feito. Pergunta tu ao aproximado, que me anima a asseverar aos
doutíssimo poeta José Feliciano de Castilho o credores de Silvestre da Silva que hão de ser
destino que tem a matéria. Dir-te-á a teu plenamente pagos, feita a 10.a edição deste JORNALISTA
respeito o que disse de Ovídio, sujeito que não romance. I
era mais material que tu e que o nosso amigo Aqui tens tu uma ação que deve ser O homem não se deve somente à sua
Silvestre da Silva. “Ovídio cadáver”, pergunta extremamente agradável às moléculas felicidade — primeira máxima.
o sábio, “onde é que para? Tudo isso corre circunfusas do nosso amigo. Espero que O principal egoísta é aquele que se descia
fados misteriosos, como Adão, como Noé, Silvestre ainda venha a agradecer-me o culto em explorar o coração alheio para opulentar o
como Rômulo, como nossos pais, como nós, que assim dou à memória dele, convertido em próprio com as deleitações do amor — segun-
como nossos filhos, rolando pelos oceanos, aroma de flor, em linha de cristalina fonte, ou da máxima.
flutuando nos ares, manando nas fontes, em Ambrósia de vinho do Porto, metamorfose Como a felicidade do egoísta é um
correndo nos rios, agregado nas pedras, mais que muito honrosa, mas pouco paradoxo, a felicidade pelo amor é impossível
sumido nas minas, misturado nos solos, admirativa nele, que foi deste mundo já — terceira máxima.
viçando nas ervas, rindo nas flores, recenden- saturado em bom vinho. É opinião minha que o Quarta — o bem particular é resultado do
do nos frutos, cantando nos bosques, rugindo nosso amigo, a esta hora, é uma folhuda bem geral.
nas matas, rojando dos vulcões, etc.” Isto, a parreira. Quem quiser ser feliz há de convencer-se
meu ver, é exato e, sobretudo, consolador. O Vamos à papelada, como dizem os outros. de que sacrificou ao bem geral uma parte dos
nosso amigo Silvestre da Silva, a esta hora, Tenho debaixo dos olhos, mal enxutos da seus prazeres individuais — quinta máxima.
anda repartido em partículas. Aqui faz parte da saudade, três volumes escritos da mão de O amor, considerado fonte de contenta-
garganta dum rouxinol; além, é pétala duma Silvestre. mentos ideais, é o sonho dum doido sublime
tulipa; acolá, está consubstanciado num olho O primeiro, na lauda, que serve de capa, — sexta.
de alface; pode ser até que eu o esteja tem a seguinte inscrição em letras maiúsculas: Sétima — a mulher é uma contingência:
bebendo neste copo de água que tenho à Coração. quem quiser constituí-la essência de sua vida
minha beira e que tu o encontres nos sertões O segundo, menos volumoso, diz: Cabeça. aleija-se na alma e cairá setenta vezes sete
da América, alguma vez, transfigurado em O título do terceiro, e maior volume, é: vezes das muletas a que se ampare do chão
cobra cascavel, disposto a comer-te, meu Estômago. mal gradado e barrancoso do seu falso
Faustino. Nenhum deles designa época; mas quem caminho.
O que te eu assevero é que ele deixou de tiver, como eu, particular conhecimento do Estas sete máximas fui eu que as compus,
ser Silvestre da Silva, há seis meses, posto indivíduo, pode, sem grande erro cronológico, depois de ler a antiguidade e alguns
que os parentes teimam em lhe ter uma lousa datar os três manuscritos. almanaques que tratavam do amor.
sobre o chão, onde o estiraram, com esta O Coração reina desde 1844 até 1854. São Entrei a cogitar no modo de ser útil à
mentira: ‘Aqui jaz Silvestre da Silva.’ aqueles dez anos em que nós vimos Silvestre humanidade com a minha experiência e inteli-
Pois é verdade. fazer tolice brava. gência do coração humano. Ofereceu-se-me
O nosso amigo começou a queixar-se, há Em 1855 notamos a transfiguração do logo azo1 de exercitar as minhas benévolas
de haver um ano, de falta de apetite, e nosso amigo, que durou até 1860, época em disposições. Escrevi para o Periódico dos
frialdade de estômago, efeito das indigestões. que tu já tinhas trocado o Patrimônio da estima Pobres, do Porto, uma correspondência contra
Foi de mal a pior. Desconfiou que passava a dos teus conterrâneos pelas lentilhas do Novo o regedor2 da minha freguesia3, acusando-o de
outra metamorfose, e deu ordem aos seus Mundo. Não viste, pois, a transição que o me prender um criado para recruta. Nesta
negócios da alma com a eternidade. Dos bens homem fez para o estômago, sepultura indigna correspondência discorri largamente acerca
terrenos não fez deixação, porque lá estavam das santas quimeras, que aconteceram na dos direitos do homem. Examinei o que foi a
os credores, seus presuntivos herdeiros, ainda mocidade, e consequência funesta da má liberdade em Grécia e Roma. Procurei-a no
que alguns deles declinaram a herança a direção que ele deu aos Projetos, raciocínios e berço do cristianismo e vim com ela, através
benefício de inventário, lamentando que em sistemas da cabeça. Podemos assinar tempo dos séculos, até a Revolução Francesa, que eu
Portugal não fosse lei a prisão por dívidas: ao terceiro volume, desde 1860 até fim de 61, denominei o último verbo da sociabilidade
parece que os irritou a certeza de que o em que o autobiógrafo se desmanchou do que humana: tudo isto por causa do recruta e
cadáver insolvente não podia ser preso. Em era para se arranjar doutro feitio. contra o regedor da minha freguesia, que eu
outro ponto te darei mais detida notícia desta Silvestre, como sabes, tinha muita lição de cobri de epítetos4 tais como ominoso5 e paxá
catástrofe. maus livros. Olha se te lembras que os seus de três caudas6.
34 –
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O regedor respondeu-me e eu repliquei. Simão Antônio Botelho, que assim disse


TEXTO III
Seguiu-se uma série de correspondências, que chamar-se, ser solteiro, e estudante na
podiam formar um livro importante para a Universidade de Coimbra, natural da cidade de
história dos costumes dos regedores em Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão Havia na botica um relógio de parede, na-
Portugal no século XIX. na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho cional, datado em 1781, feito de grandes toros
O prurido de escrever correspondências a de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita de carvalho e muita ferraria. Os pesos, quando
respeito doutras muitas coisas, e mormente da Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura subiam, rangiam o estridor de um picar de
dotação do clero — matéria que veio a ponto, amarras das velhas naus. Dava-se-lhe corda

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ordinária, cara redonda, olhos castanhos,
quando eu tive uma questão com o meu cabelos e barba pretos, vestido com jaqueta de como quem tira um balde da cisterna. Por
pároco por causa da côngrua7 e pé de altar8, baetão azul, colete de fustão pintado e calça de debaixo da triplicada cornija1 do mostrador
insinuou-me a persuasão de que havia em mim pano pedrês2. E fiz este assento, que assinei havia uma medalha com uma dama cor de
pronunciadas tendências para escritor político. laranja, vestida de vermelhão, decotada, com
— Filipe Moreira Dias.
Discutia-se naquele tempo o Sr. Conde de
À margem esquerda deste assento está uma romeira2 e uma pescoceira, crassa3 e
Tomar, a quem uns chamavam Barba-Roxa e grossa de vaca barrosã 4, penteada à Pom-
escrito:
outros marquês de pombal. Decidi-me a favor padour, com uma réstia de pedras brancas a
Foi para a Índia em 17 de março de 1807.
dos segundos, que tinham incontestável razão. enastrar-lhe5 as tranças. Cada olho era maior
Não seria fiar demasiadamente na
Escrevi uma série de artigos, como muito que a boca, dum vermelho de ginja 6. Ela tinha
sensibilidade do leitor3, se cuido que o degredo
suco, em grande parte copiados do Dicionário a mão esquerda escorrida no regaço, com os
de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó.
Político de Garnier-Pagés; e, na parte de minha dedos engelhados7 e aduncos8 como um pé
Dezoito anos! O arrebol dourado e
lavra, havia ali uma verdura de ideias que de perua morta; o braço direito estava no ar,
escarlate da manhã da vida! As louçanias do
ninguém lhe metia dente. Por essa ocasião hirto 9, com um ramalho de flores que parecia
coração que ainda não sonha em frutos, e todo
recebi de vários pontos do País diferentes uma vassoura de hidrângeas10. Este relógio
cartas, umas insultadoras, capitulando-me de se embalsama no perfume das flores! Dezoito
badalara três horas que soaram ríspidas como
besta; outras, no mais moderado de seus anos! O amor daquela idade! A passagem do as pancadas vibrantes, cavas, das caldeiras da
encômios9, profetizavam em mim o Girardin seio da família, dos braços da mãe, dos beijos Hecate de Shakespeare11.
português10. das irmãs para as carícias mais doces da (Eusébio Macário)
(Coração, Cabeça e Estômago, virgem, que se lhe abre ao lado como flor da
Segunda Parte – Cabeça) mesma sazão e dos mesmos aromas, e à Vocabulário e Notas
mesma hora da vida! Dezoito anos!... E 1 – Cornija: moldura.
Vocabulário e Notas: degradado da pátria, do amor e da família! 2 – Romeira: agasalho feminino.
1 – Azo: motivo, causa, oportunidade. Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdade, 3 – Crasso: pesado (sentido figurado).
2 – Regedor: antiga autoridade administrativa nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem 4 – Barrosã: feminino de barrosão, de Barroso,
de Portugal. dignidade, nem um amigo!... É triste! região portuguesa onde se cria uma raça de boi,
3 – Freguesia: subdivisão administrativa de um O leitor decerto se compungiria; e a o qual é então denominado barrosão; diz-se
concelho (por sua vez, subdivisão administra- leitora, se lhe dissessem em menos de uma também do boi que tem pelo da cor do barro.
tiva de um distrito). linha a história daqueles dezoito anos, 5 – Enastrar: entretecer, ornar.
4 – Epíteto: qualificação. chocaria! 6 – Ginja: fruto muito semelhante à cereja.
5 – Ominoso: horrendo, execrável. Amou, perdeu-se, e morreu amando4. 7 – Engelhado: enrugado.
6 – Paxá de três caudas: o paxá era o gover- (Amor de Perdição) 8 – Adunco: curvo.
nador de uma província no Império Otomano; 9 – Hirto: retesado, esticado.
no contexto, paxá de três caudas é pejorativo e 10 – Hidrângea: hortênsia.
Vocabulário e Notas
significa homem mandão e insolente. 11 – Hecate: personagem da peça Macbeth, de
1 – Observe-se que, mesmo se tratando de
7 – Côngrua: o que os habitantes de uma fre- William Shakespeare.
uma novela passional romântica, Camilo
guesia pagam ao pároco para sua sustentação.
procura criar uma “ilusão” de realidade,
8 – Pé de altar: o rendimento que o pároco
pretendendo dar verossimilhança à narrativa,
obtém de batizados, casamentos e enterros.
com a citação de documentos e testemunhos.
9 – Encômio: elogio.
Simão Botelho realmente existiu e foi preso e
10 – Girardin: jornalista e político francês (1802-
degredado para a Índia, só que não pelos
1881).
motivos que o romance relata.
2 – Pedrês: matizado de preto e branco.
TEXTO II 3 – Este recurso de dirigir-se diretamente ao
leitor será retomado por Machado de Assis,
INTRODUÇÃO1 que, reconhecidamente, aprendeu muito com
Camilo Castelo Branco.
Folheando os livros de antigos assenta- 4 – “Amou, perdeu-se, e morreu amando” é a
Camilo Castelo
mentos, no cartório das cadeias da Relação do frase que pode sintetizar cabalmente a figura
Branco, por
Porto, li, no das entradas dos presos desde de Simão Botelho e a índole romântica e
Rafael Bordalo
1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte: passional da novela de Camilo.
Pinheiro.
– 35
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MÓDULO 7 Romantismo no Brasil (I): Poesia


A poesia romântica no Brasil (1836-1881)
Reconhecem-se três gerações, marcadas por certa unidade temática e formal nem sempre rígida. A atitude de
uma geração projeta-se nas demais. A seguir, há um quadro-resumo da poesia romântica no Brasil.
GERAÇÕES TEMAS E FORMAS POETAS
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Índio (idealizado como cavaleiro medieval e como o “bom Gonçalves de Magalhães, conde
Primeira: selvagem” de Rousseau), natureza (nativismo ou Manuel de Araújo Porto-Alegre
Indianista ou ufanismo), passado histórico, religiosidade, antilu- (fase de formação) e Gonçalves
Nacionalista. sitanismo, xenofobia (aversão ao estrangeiro), projeto de Dias (consolidação da poesia
uma “língua brasileira”. romântica).
Segunda: Morte, tédio, dúvida, escapismo, boêmia, satanismo, Álvares de Azevedo,
Byroniana ou saudosismo (infância, família), solidão, depressão, sen- Fagundes Varela,
Individualista, ou do Mal sualismo reprimido (“amor-e-medo”). Incorporação de Junqueira Freire e
do Século, ou Egótica, novos temas bucólicos e roceiros; poesia maldita. Casimiro de Abreu.
ou Ultrarromântica.
Liberdade, temas sociais (Guerra do Paraguai, Abolição, Castro Alves e Tobias Barreto.
Terceira:
República). Poesia enfática e declamatória (poesia de Sousândrade (que radicalizou as
Condoreira ou
comício). Uso de metáforas ousadas, baseadas em inovações linguísticas e desvios
da poesia social,
aspectos grandiosos da natureza (oceano, amplidão, criativos) constitui caso à parte, pela
Hugoana, ou da
infinito, céu, universo). Águias, condores e albatrozes são originalidade e modernidade;
Escola de Recife.
utilizados como imagens da liberdade. Emprego de an- contemporâneo da Segunda
títeses, hipérboles e apóstrofes violentas, além de Geração, sua poesia refoge aos
interjeições, exclamações, reticências etc. parâmetros brasileiros.

1. A primeira geração Prólogo (primeiro manifesto da poesia • equilíbrio, senso de medida,


(Indianista ou Nacionalista) romântica), que pelos poemas, virtuosismo e erudição, consequên-
escritos em Paris. Foi apelidado de cias da sólida formação neoclás-
Compreende dois grupos: o
“romântico arrependido”. sica, que não abandonou de todo;
fluminense, em torno das revistas
Tentou a poesia épica indianista, • presença de modelos portu-
Niterói, Minerva Brasiliense e Guana-
com A Confederação dos Tamoios, gueses (Garrett, Alexandre Hercu-
bara (Gonçalves de Magalhães,
obra duramente criticada pelo então lano), que se harmonizam com a es-
conde Araújo Porto-Alegre, Joaquim
iniciante José de Alencar, provocando pontaneidade e sabor nacional;
Norberto) e o maranhense (Sotero
polêmica que teve larga repercussão. • expressividade do ritmo,
dos Reis, Odorico Mendes). O caçula
Colaborou com Martins Pena e ponto forte de Gonçalves Dias, que
da Primeira Geração, Gonçalves
João Caetano na criação do teatro se utiliza de todos os metros poéticos
Dias, pertenceu aos dois grupos e foi,
nacional, tendo escrito os dramas com insuperável propriedade.
destacadamente, o melhor poeta de
Olgiato e Antônio José ou O Poeta e
sua geração.
a Inquisição.
Não obstante defenderem a esté- Obras
tica romântica, esses poetas apresen- • Primeiros Cantos (1846).
taram fortes resíduos do Neoclas- 䊏 Gonçalves Dias Consta de três partes:
sicismo. Primam pelo comedimento, (Maranhão, 1823-1864) Poesias Americanas (a mais im-
pela sobriedade e, amparados pelo Consolida a poesia romântica portante, pelo tratamento dado ao
imperador, esforçaram-se por não com Primeiros Cantos (a “Canção do índio e à natureza); Poesias Diversas
aborrecer Sua Majestade, nem a Exílio” é o poema que abre o livro). e Hinos (impregnados de panteísmo
pacata sociedade de então. Sua poesia marca-se pelas se- — sentimento entre filosófico e reli-
guintes características: gioso de ver em tudo (natureza,
䊏 Gonçalves de Magalhães • riqueza temática, abrangendo mares, montanhas, vales, florestas,
(Rio, 1811 – Roma, 1882) a poesia indianista, o lirismo auroras) uma projeção de Deus).
Introdutor do Romantismo, com amoroso, poesia da natureza, sau- • Segundos Cantos e Sextilhas
seus Suspiros Poéticos e Saudades dosismo, poesia religiosa, poesia de Frei Antão. Obra erudita, escrita em
(1836), foi poeta medíocre, ainda que erudita (escrita em português português arcaico, à maneira dos tro-
teorizasse com lucidez as propostas arcaico, medieval) e poesia egótica, vadores medievais, e que Gonçalves
do Romantismo. O livro vale mais pelo antecipando o mal do século; Dias denominava ensaio filológico.
36 –
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• Os Timbiras. Poema épico in- Não gorjeiam como lá. Vocabulário e Notas
dianista, do qual temos apenas os Nosso céu tem mais estrelas, 1 – Imigo: inimigo.
Nossas várzeas têm mais flores, 2 – Mendace: mendaz, mentiroso, traidor.
quatro cantos iniciais. Os doze
3 – Fugace: fugaz, rápido.
restantes perderam-se no naufrágio Nossos bosques têm mais vida, 4 – Ignavo: preguiçoso, covarde.
em que morreu o poeta. O plano do Nossa vida mais amores.
poema era ambicioso: Em cismar, sozinho, à noite, III
Mais prazer encontro eu lá;

PORTUGUÊS E
“(...) imaginei um poema... como nunca Minha terra tem palmeiras, I-JUCA-PIRAMA
ouviste falar de outro: magotes de tigres, de Onde canta o Sabiá. (fragmento: canto VIII)
coatis, de cascavéis; imaginei mangueiras e
Minha terra tem primores, Tu choraste em presença da morte?
jabuticabais copados, jequitibás e ipês arro-
Que tais não encontro eu cá; Na presença de estranhos choraste?
gantes, sapucaieiras e jambeiros, de palmeiras
Em cismar — sozinho, à noite — Não descende o covarde do forte;
nem falemos; guerreiros diabólicos, mulheres
Mais prazer encontro eu lá; Pois choraste, meu filho não és!
feiticeiras, sapos e jacarés sem conta; enfim,
Minha terra tem palmeiras, Possas tu, descendente maldito
um gênese americano, uma Ilíada Brasileira. Onde canta o Sabiá. De uma tribo de nobres guerreiros,
Passa-se a ação no Maranhão e vai terminar no Implorando cruéis forasteiros,
Amazonas com a dispersão dos Timbiras; Não permita Deus que eu morra, Seres presa de vis Aimorés.
guerras entre eles e depois com os portu- Sem que eu volte para lá;
gueses.” Sem que desfrute os primores (...)
Que não encontro por cá;
• Últimos Cantos, em que se Sem qu’inda aviste as palmeiras, Não encontres doçura no dia,
Onde canta o Sabiá. Nem as cores da aurora te ameiguem,
inclui a obra-prima do indianismo
E entre as larvas da noite sombria
romântico, “I-Juca-Pirama”. Nunca possas descanso gozar:
II
• Cantos, que reúne os livros an- Não encontres um tronco, uma pedra,
teriores, mais os Novos Cantos. Aí se I-JUCA-PIRAMA Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
inclui “Ainda uma Vez, Adeus”, poe- (fragmento: canto IV) Padecendo os maiores tormentos,
ma lírico-amoroso, de fundo autobio- Onde possas a fronte pousar.

gráfico, tematizando o insucesso Meu canto de morte,


amoroso. Nessa vertente, mais inti- Guerreiros, ouvi: IV
Sou filho das selvas,
mista, há ainda, em outros livros,
Nas selvas cresci; I-JUCA-PIRAMA
poemas famosos, como “Se se Guerreiros, descendo (fragmento: canto X)
Morre de Amor”, “Olhos Verdes”, Da tribo tupi.
“Não me Deixes” etc. Um velho Timbira, coberto de glória,
• Leonor de Mendonça é um dra- Da tribo pujante, Guardou a memória
ma em três atos, de assunto medieval Que agora anda errante Do moço guerreiro, do velho Tupi!
Por fado inconstante, E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
(a ação se passa em 1512), escrito em
Guerreiros, nasci: Do que ele contava,
prosa. D. Jaime, Duque de Bragança, Sou bravo, sou forte, Dizia prudente: — “Meninos, eu vi!”
suspeita da relação de sua esposa, Sou filho do Norte;
Leonor, com o jovem Alcoforado. Meu canto de morte, “Eu vi o brioso no largo terreiro
Ambos são punidos injustamente. Guerreiros, ouvi. Cantar prisioneiro
Gonçalves Dias deixou outros Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Já vi cruas brigas Valente, como era, chorou sem ter pejo;
dramas, além de traduções, estudos
De tribos imigas1, Parece que o vejo,
etnográficos, geográficos, literários, E as duras fadigas Que o tenho nest’hora diante de mi.”
cartas e um dicionário de tupi. Da guerra provei;
Nas ondas mendaces2 “Eu disse comigo: ‘Que infâmia d’escravo!’
Antologia de Gonçalves Dias Senti pelas faces Pois não, era um bravo;
Os silvos fugaces3 Valente e brioso, como ele, não vi!
Dos ventos que amei. E à fé que vos digo: parece-me encanto
TEXTOS
Que quem chorou tanto,
Andei longes terras, Tivesse a coragem que tinha o Tupi!”
I Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras Assim o Timbira, coberto de glória,
CANÇÃO DO EXÍLIO Dos vis Aimorés, Guardava a memória
Vi lutas de bravos, Do moço guerreiro, do velho Tupi.
Minha terra tem palmeiras, Vi fortes — escravos! E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Onde canta o Sabiá; De estranhos ignavos4 Do que ele contava,
As aves que aqui gorjeiam Calcados aos pés. Tornava prudente: “Meninos, eu vi!”

– 37
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2. Poesia da Segunda Geração • erotismo irrealizado, associ- Mas se Werther morreu por ver Carlota9
Romântica (Byroniana – ado à culpa e ao medo. O desejo e a Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela... eu mais te
Individualista – do Mal do punição fundem-se. O amor só se
[adoro
Século – Ultrarromântica) realiza no plano do sonho: Sonhando-te a lavar as camisinhas!
䊏 Álvares de Azevedo IDEIAS ÍNTIMAS
É ela! é ela! meu amor, minh’alma,
(1831-1852) IX
A Laura, a Beatriz10 que o céu revela...
Ligado aos grupos boêmios da Oh! ter vinte anos sem gozar de leve É ela! é ela! — murmurei tremendo,
PORTUGUÊS E

Faculdade de Direito de São Paulo A ventura de uma alma de donzela! E o eco ao longe suspirou “é ela!”.
E sem na vida ter sentido nunca
(Sociedade Epicureia), morreu aos Na suave atração de um róseo corpo Vocabulário e Notas
1 – Águas-furtadas: sótãos. 2 – Venturoso: feliz.
vinte anos. É o melhor representante Meus olhos turvos se fechar de gozo!
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas 3 – Morfeu: deus grego dos sonhos. 4 – Mavioso:
do mal do século. afetuoso. 5 – Otelo: personagem de peça
Passam tantas visões sobre meu peito!
Suas principais características (...) homônima de Shakespeare; personifica o ciúme.
são: 6 – Devaneio: fantasia, imaginação. 7 – Cioso: cui-
• poesia humorística (realismo dadoso. 8 – Rol: lista. 9 – Werther e Carlota:
• morbidez, tédio, dúvida, humorístico e humor negro) e litera- personagens de Werther, de Goethe. 10 – Laura
satanismo, na esteira de Lord tura fantástica são duas contribui- e Beatriz: musas de Petrarca e Dante, respec-
Byron, modelo que seguiu de perto: tivamente.
ções originais ao nosso Romantismo:
• Os presságios da morte, as
SE EU MORRESSE AMANHÃ É ELA! É ELA! É ELA! É ELA! alusões à família e à infância, a fúria
Se eu morresse amanhã, viria ao menos É ela! é ela! — murmurei tremendo, da solidão, as dualidades sonho
Fechar meus olhos minha triste irmã; E o eco ao longe murmurou “é ela!...” versus realidade, espírito versus
Minha mãe de saudades morreria Eu a vi... minha fada aérea e pura, carne e alguns arroubos liberais
Se eu morresse amanhã! A minha lavadeira na janela! (“Pedro Ivo”) são temas constantes.
(...) Obras
Dessas águas-furtadas1 onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado • Lira dos Vinte Anos reúne seus
• poesia cerebral, que reflete Os vestidos de chita, as saias brancas... melhores poemas: “Ideias Íntimas”,
mais leituras que vivências. A precoci- Eu a vejo e suspiro enamorado! “Spleen e Charutos”, “É Ela! É Ela! É
dade de sua poesia oscila entre Ela! É Ela!”, além de “Lembrança de
Esta noite eu ousei mais atrevido Morrer” e “Se Eu Morresse Ama-
momentos geniais e descaídas. Es-
Nas telhas que estalavam nos meus passos
crevia tumultuariamente, entregue, nhã”. O livro é dividido em três par-
Ir espiar seu venturoso2 sono,
Vê-la mais bela de Morfeu3 nos braços! tes, e a segunda parte vem precedida
às vezes, à incontinência verbal e ao
de prefácio em que o poeta de-
descabelamento. Nem sempre exer- Como dormia! que profundo sono!... monstra grande consciência dos com-
cia o senso crítico, que possuía mais Tinha na mão o ferro do engomado... ponentes estéticos de seu trabalho.
agudo que qualquer romântico nacio- Como roncava maviosa4 e pura!
Quase caí na rua desmaiado! LEMBRANÇA DE MORRER
nal, à exceção de Gonçalves Dias:
Afastei a janela, entrei medroso: Eu deixo a vida como deixa o tédio
IDEIAS ÍNTIMAS Do deserto, o poento caminheiro
Palpitava-lhe o seio adormecido...
I — Como as horas de um longo pesadelo
Fui beijá-la... roubei do seio dela
(...) Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Um bilhete que estava ali metido...
Basta de Shakespeare. Vem tu agora,
(...)
Fantástico alemão1, poeta ardente Oh! decerto... (pensei) é doce página
Que ilumina o clarão das gotas pálidas Onde a alma derramou gentis amores! Descansem o meu leito solitário
São versos dela... que amanhã decerto Na floresta dos homens esquecida,
Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
Ela me enviará cheios de flores... À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Meu coração deleita-se... Contudo,
— Foi poeta — sonhou — e amou na vida.
Parece-me que vou perdendo o gosto, Tremi de febre! Venturosa folha!
Vou ficando blasé2, passeio os dias Quem pousasse contigo neste seio! SPLEEN E CHARUTOS
Pelo meu corredor, sem companheiro, Como Otelo5 beijando a sua esposa, I
Sem ler nem poetar. Vivo fumando. Eu beijei-a a tremer de devaneio...6 SOLIDÃO
(...)
É ela! é ela! — repeti tremendo, Nas nuvens cor de cinza do horizonte
Vocabulário e Notas Mas cantou nesse instante uma coruja... A lua amarelada a face embuça 1;
1 – Fantástico alemão: Goethe. Abri cioso7 a página secreta... Parece que tem frio e, no seu leito,
2 – Blasé: entediado. Oh! meu Deus! era um rol8 de roupa suja! Deitou, para dormir, a carapuça 2.

38 –
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Ergueu-se... vem da noite a vagabunda3 sando pela poesia gótica, pelo sata- 䊏 Casimiro de Abreu (1839-1860)
Sem xale, sem camisa e sem mantilha, nismo, pelo patriotismo, pelo natu- Poeta da saudade, do amor ado-
Vem nua e bela procurar amantes...
ralismo e pela poesia religiosa. Foi um lescente, simples, espontâneo, co-
É doida por amor da noite a filha.
poeta de transição no Romantismo. municativo; sua poesia, muito popu-
(...) Os temas roceiros e bucólicos lar, ainda agrada aos que pedem pou-
Falando ao coração... que nota aérea (“Juvenília”, “A Roça”, “A Flor do co à poesia. Essencialmente musical,
Deste céu, destas águas se desata? Maracujá”), ao lado da dualidade Casimiro não tem maior complexida-
Canta assim algum gênio adormecido

PORTUGUÊS E
cidade versus campo, natureza versus de filosófica e psicológica, e sua obra,
Das ondas mortas no lençol de prata?
civilização, constituem a parte mais acessível a qualquer leitor alfabetiza-
Minh’ alma tenebrosa4 se entristece, significativa de sua obra, sem esque- do, versa sempre as pulsões eróticas
É muda como sala mortuária...
cer o “Cântico do Calvário”, elegia da adolescência, oscilando entre o
Deito-me só e triste sem ter fome, amor e o medo; as saudades da infân-
Vendo na mesa a ceia solitária. dedicada ao filho morto, obrigatória
em qualquer antologia romântica. cia, da família e da pátria. Opera uma
Ó lua, ó lua bela dos amores, “descida de tom” em relação a Gon-
Se tu és moça e tens um peito amigo, A ROÇA çalves Dias e a Álvares de Azevedo.
Não me deixes assim dormir solteiro, As Primaveras, reunião de suas
À meia-noite vem cear5 comigo! O balanço da rede, o bom fogo poesias, incluem os conhecidos
(Álvares de Azevedo) Sob um teto de humilde sapé;
A palestra, os lundus, a viola, “Meus Oito Anos”, “Amor e Medo”,
Vocabulário e Notas
O cigarro, a modinha, o café; “Minha Terra”, “Minha Mãe”, além
1 – Embuçar: cobrir.
2 – Carapuça: gorro.
da “Canção do Exílio”, derivação imi-
Um robusto alazão, mais ligeiro tativa do poema homônimo de
3 – Vagabundo: errante.
Do que o vento que vem do sertão,
4 – Tenebroso: sombrio.
Negras crinas, olhar de tormenta,
Gonçalves Dias.
5 – Cear: jantar. Pés que apenas rastejam no chão.
• A Noite na Taverna, escrito à MEU LAR OU CANÇÃO DO EXÍLIO
(...)
maneira dos contos fantásticos de
Hoffmann, traz à tona o mundo insólito Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
A FLOR DO MARACUJÁ
Meu Deus! não seja já!
da inconsciência e da embriaguez (...) Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
(incesto, envenenamento, traição, ne-
Cantar o sabiá!
crofilia, duelo etc.), através das recor- Por tudo o que o céu revela!
Por tudo o que a terra dá,
dações de alguns jovens embriaga- Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu
Eu te juro que minh’alma
dos, numa taverna, em noites de tem- De tua alma escrava está!... [morro
pestade, entre mundanas bêbadas, Guarda contigo este emblema Respirando este ar;
adormecidas, garrafas vazias etc. Da flor do maracujá! Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
Solfieri, Johann, Gennaro, Bertran, Os gozos do meu lar!
Não se enojem teus ouvidos
Arnold e Herman resolvem, por des- De tantas rimas em – a –
(...)
fastio, contar casos escabrosos e ver- Mas ouve meus juramentos,
dadeiros que tivessem vivido. Meus cantos ouve, Sinhá!
Te peço pelos mistérios AMOR E MEDO
• Macário, de classificação pro- Da flor do maracujá!
blemática, oscila entre o teatro, o diário
Quando eu te fujo e me desvio cauto
íntimo e a narrativa. Satã e Penseroso CÂNTICO DO CALVÁRIO Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
dialogam no cemitério sobre os vícios e Contigo dizes, suspirando amores:
Eras na vida a pomba predileta
destinos da cidade de São Paulo, vei- “— Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!”
Que sobre um mar de angústias conduzia
culando as ideias do próprio poeta. O ramo da esperança. — Eras a estrela
• Conde Lopo e Poema do Frade Que entre as névoas do inverno cintilava Como te enganas! meu amor é chama
são poemas narrativos, motivados Apontando o caminho ao pegureiro1. Que se alimenta no voraz segredo,
diretamente pela emulação do Eras a messe2 de um dourado estio. E se te fujo é que te adoro louco...
Eras o idílio de um amor sublime. És bela — eu moço; tens amor — eu
modelo byroniano.
Eras a glória, — a inspiração, — a pátria, [medo!...
䊏 Fagundes Varela (1841-1875) O porvir de teu pai! Ah! no entanto,
Autor, dentre outras obras, de Pomba, — varou-te a flecha do destino! (...)
Vozes d’América, Cantos e Fantasias, Astro, — engoliu-te o temporal do norte!
Teto, — caíste! — Crença, já não vives! MEUS OITO ANOS
Cantos do Ermo e da Cidade e An-
chieta ou o Evangelho nas Selvas, (...) Oh! que saudades que tenho
realizou uma síntese da poesia ro- Da aurora da minha vida,
mântica, versando temas que vão do Vocabulário e Notas Da minha infância querida
indianismo de Gonçalves Dias ao 1 – Pegureiro: guardador de gado; pastor. Que os anos não trazem mais!
condoreirismo de Castro Alves, pas- 2 – Messe: colheita. (...)

– 39
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3. A Terceira Geração ADORMECIDA Tua voz é a cavatina4


(Condoreira – Poesia Social – Dos palácios de Sorrento5,
Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Hugoana – Escola de Recife) Quando a praia beija a vaga,
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo Quando a vaga beija o vento.
E o pé descalço do tapete rente.
䊏 Castro Alves (1847-1871) E como em noites de Itália
Imbuído da concepção de poeta ‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste Ama um canto o pescador,
mediúnico (que escreve em transe, Exalavam as silvas1 da campina...
PORTUGUÊS E

Bebe a harmonia em teus cantos


que se acredita instrumento media- E ao longe, num pedaço do horizonte, O Gondoleiro do amor.
Via-se a noite plácida e divina.
dor entre as forças superiores, Deus,
o cosmos e os homens), colocou sua Teu sorriso é uma aurora6
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Que o horizonte enrubesceu7.
poesia a serviço da reforma da Indiscretos entravam pela sala,
— Rosa aberta com o biquinho
sociedade e das grandes causas de E de leve oscilando ao tom das auras,
Das aves rubras do céu;
seu tempo (Guerra do Paraguai, Iam na face trêmulos — beijá-la.

Abolição, República). Era um quadro celeste!... A cada afago Nas tempestades da vida,
Representa o segmento liberal- Mesmo em sonhos a moça estremecia... Das rajadas8 no furor9,
progressista da burguesia, que acre- Quando ela serenava... a flor beijava-a... Foi-se a noite, tem auroras
dita no progresso, opondo-se à ten- Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia... O Gondoleiro do amor.
dência saudosista e regressiva, domi-
Dir-se-ia que naquele doce instante Teu seio é vaga dourada
nante em nosso Romantismo.
Brincavam duas cândidas crianças... Ao tíbio10 clarão da lua,
Os temas que versou com maior A brisa, que agitava as folhas verdes, Que, ao murmúrio das volúpias11,
frequência foram: Fazia-lhe ondear as negras tranças!...
Arqueja12, palpita nua;
• a poesia da natureza, explo-
rando o efeito plástico e sugestivo E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Como é doce, em pensamento,
Mas quando a via despertada a meio,
dos grandes planos (mar, infinito, Do teu colo no langor13
P’ra não zangá-la... sacudia alegre
oceano, vastidão, águias e albatro- Vogar14, naufragar, perder-se
Uma chuva de pétalas no seio...
zes): O Gondoleiro do amor!?

Eu, fitando esta cena, repetia,


Qual no fluxo e refluxo, o mar em vagas Naquela noite lânguida e sentida: Teu amor na treva é — um astro,
Leva a concha dourada... e traz das plagas “Ó flor! — tu és a virgem das campinas! No silêncio — uma canção,
Corais em turbilhão, Virgem! — tu és a flor de minha vida!...” É brisa — nas calmarias15,
A mente leva a prece a Deus — por pérolas (Espumas Flutuantes) É abrigo — no tufão;
E traz, volvendo após das praias cérulas1,
Vocabulário e Notas
— Um brilhante — o perdão! Por isso eu te amo, querida,
1 – Silva: designação comum a diversas plantas
A alma fica melhor no descampado... Quer no prazer, quer na dor...
da família das rosáceas; silveira, sarça.
O pensamento indômito, arrojado Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Galopa no sertão, Do Gondoleiro do amor.
• a poesia lírico-amorosa do
Qual nos estepes o corcel fogoso (Espumas Flutuantes)
ciclo inspirado pela atriz Eugênia
Relincha e parte turbulento, estoso2,
Câmara:
Solta a crina ao tufão. Vocabulário e Notas
(Espumas Flutuantes, 1870) O GONDOLEIRO DO AMOR 1 – À flor: à superfície, à tona. 2 – Dourar:
DAMA NEGRA iluminar. 3 – Fronte: rosto. 4 – Cavatina: peque-
na peça musical. 5 – Sorrento: cidade italiana
Vocabulário e Notas Teus olhos são negros, negros,
da região de Nápoles. 6 – Aurora: alvorecer.
1 – Cérulo: da cor do céu. Como as noites sem luar...
7 – Enrubescer: tornar rubro, vermelho.
2 – Estoso: ardente, febril. São ardentes, são profundos,
8 – Rajada: vento intenso. 9 – Furor: força,
Como o negrume do mar;
intensidade. 10 – Tíbio: fraco. 11 – Volúpia:
• a poesia erótica, de sensuali- Sobre o barco dos amores, grande prazer sexual. 12 – Arquejar: respirar
dade forte e madura, viril, às vezes Da vida boiando à flor1, exaltadamente. 13 – Langor: sensualidade.
galhofeira, conciliando o exercício Douram2 teus olhos a fronte3 14 – Vogar: navegar. 15 – Calmaria: grande
poético com a prática do amor: Do Gondoleiro do amor. calor sem ventos.

40 –
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• a poesia patriótica e de- Presa nos elos de uma só cadeia, 6 – Cambalear: desequilibrar-se.
clamatória, “Ode ao Dous de Julho”, A multidão faminta cambaleia6, 7 – Rijo: violento, severo.
“Pedro Ivo”: E chora e dança ali! 8 – Serra Leoa: região da África.
Um de raiva delira, outro enlouquece, 9 – Lúgubre: sombrio, triste.
O POVO AO PODER Outro, que martírios embrutece, 10 – Coorte: tropa, conjunto formado por um
Cantando, geme e ri! grande número de pessoas.
A praça! A praça é do povo
11 – Irrisão: escárnio, zombaria.
Como o céu é do condor,
No entanto o capitão manda a manobra,
É o antro onde a liberdade

PORTUGUÊS E
E após fitando o céu que se desdobra, A CRUZ DA ESTRADA
Cria águias em seu calor.
Tão puro sobre o mar,
Senhor!... pois quereis a praça?
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
Desgraçada a populaça Caminheiro que passas pela estrada,
“Vibrai rijo7 o chicote, marinheiros!
Só tem a rua de seu... Seguindo pelo rumo do sertão,
Fazei-os mais dançar!...”
Ninguém vos rouba os castelos, Quando vires a cruz abandonada,
Tendes palácios tão belos...
(...) Deixa-a em paz dormir na solidão.
Deixai a terra ao Anteu1.
(Espumas Flutuantes) V Que vale o ramo do alecrim cheiroso
Vocabulário e Nota Que lhe atiras nos braços ao passar?
Senhor Deus dos desgraçados!
1 – Anteu: gigante, filho de Posídon e de Geia Vais espantar o bando buliçoso
Dizei-me vós, Senhor Deus!
(Terra). Habitava na Líbia e obrigava todos os Das borboletas, que lá vão pousar.
Se é loucura... se é verdade
viajantes a lutar contra ele. Enquanto estivesse
Tanto horror perante os céus?!
em contato com sua mãe, era invencível. É de um escravo humilde sepultura,
Ó mar, por que não apagas
Coa esponja de tuas vagas Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz.
• o amor ao progresso e à De teu manto este borrão?... Deixa-o dormir no leito de verdura,
liberdade:“O Livro e a América”, “O Astros! noites! tempestades! Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs.
Trem de Ferro”. Rolai das imensidades!
• poesia de inspiração judaica: Varrei os mares, tufão! Não precisa de ti. O gaturamo1
“Hebreia”, “Ahasverus e o Gênio”. Geme, por ele, à tarde, no sertão.
• poesia abolicionista e hu- (...) E a juriti 2, do taquaral no ramo,
manitária, momento mais expressivo Povoa, soluçando, a solidão.
do condoreirismo nacional. Valendo-se Ontem a Serra Leoa8,
A guerra, a caça ao leão, Dentre os braços da cruz, a parasita,
de metáforas ousadas, antíteses,
O sono dormido à toa Num abraço de flores, se prendeu.
hipérboles e apóstrofes violentas,
Sob as tendas d’amplidão! Chora orvalhos a grama, que palpita:
Castro Alves confere dignidade esté- Hoje... o porão negro, fundo, Lhe acende o vaga-lume o facho seu.
tica ao tema social, em sua movimen- Infecto, apertado, imundo,
tada alocução. “O Navio Negreiro”, Tendo a peste por jaguar... Quando, à noite, o silêncio habita as matas,
“Vozes d’África”, “A Cruz da Estrada”, E o sono sempre cortado A sepultura fala a sós com Deus.
“A Canção do Africano” são os poe- Pelo arranco de um finado, Prende-se a voz na boca das cascatas,
mas mais expressivos nesse aspecto: E o baque de um corpo ao mar...
E as asas de ouro aos astros lá nos céus.
IV Ontem plena liberdade,
Caminheiro! do escravo desgraçado
A vontade por poder...
Era um sonho dantesco1... otombadilho2 O sono agora mesmo começou!
Hoje... cúm’lo de maldade,
Que das luzernas3 avermelha o brilho Não lhe toques no leito de noivado,
Nem são livres pra morrer...
Em sangue a se banhar. Há pouco a liberdade o desposou.
Prende-os a mesma corrente
Tinir de ferros... estalar de açoite... — Férrea, lúgubre9 serpente —
Legiões de homens negros como a noite, Nas roscas da escravidão.
Horrendos a dançar... E assim zombando da morte,
Vocabulário e Notas
Dança a lúgubre coorte10
1 e 2 – Gaturamo e juriti: espécies de aves.
Negras mulheres, suspendendo às tetas Ao som do açoite... Irrisão11!...
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães: (...) 䊏 Obra
Outras moças, mas nuas e espantadas, (São Paulo, 18 de abril de 1868 – Espumas Flutuantes, único livro
No turbilhão de espectros4 arrastadas, Os Escravos)
publicado em vida (1870), reúne poe-
Em ânsia e mágoa vãs!
Vocabulário e Notas sia lírica, patriótica, naturista, faltando
1 – Dantesco: infernal. apenas o tema do escravo negro, que
E ri-se a orquestra irônica, estridente... 2 – Tombadilho: superestrutura erguida na
E da ronda fantástica a serpente
surgirá nos livros póstumos (Os
popa de um navio; diz-se também do
Faz doidas espirais... Escravos, A Cachoeira de Paulo Afon-
pavimento dessa superestrutura.
Se o velho arqueja5, se no chão resvala, 3 – Luzerna: clarão, luz muito intensa. so). Deixou, ainda, o drama histórico
Ouvem-se gritos... o chicote estala. 4 – Espectro: fantasma. sobre a Inconfidência: Gonzaga, ou a
E voam mais e mais... 5 – Arquejar: arquear, curvar-se. Revolução de Minas.
– 41
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Romantismo no Brasil (II):


MÓDULO 8
Prosa Romântica – José de Alencar

1. Introdução e romance secundárias e personagens ocasio- e significativas, como o romance


folhetinesco nais; não há análise psicológica, em- histórico, o de costumes, o india-
bora se busque retratar a crise moral, nista, os de perfis de mulher e o
PORTUGUÊS E

Narrar, contar uma história, é ati- fazendo com que a personagem sinta regionalista.
vidade que remonta aos primórdios seus crimes e meça seu desespero, Em linhas gerais, a prosa de
da literatura. Os gêneros literários de suspendendo por um instante o fluxo ficção romântica, apoiada no propósi-
natureza basicamente narrativa sem- dos acontecimentos. to nacionalista de reconhecer e exal-
pre foram os mais difundidos, desde O folhetim gozou de grande tar nossas paisagens e costumes,
as histórias orais dos rapsodos gre- popularidade, distraindo as donzelas desdobrou-se em três direções:
gos e as das canções de gesta me- casadoiras e as vovozinhas. Captava 䊏 O passado
dievais até o romance moderno. os costumes da época, exteriorizando Por meio do romance histórico,
Assim, a epopeia clássica, as no- uma visão superficial da vida: saraus, buscava-se na História e nas lendas
velas de cavalaria medievais, as fábu- passeios a cavalo, namoricos, fofocas, heroicas a afirmação da nacionalida-
las, as histórias de terror, as aventuras histórias de amor à base do “não-ata- de. Na Europa, a Idade Média e as
picarescas, o conto e o romance são -nem-desata”, sem mostrar a essência novelas de cavalaria ofereceram a um
formas de narrar que se desdobram alienada desse mundo e sem penetrar Walter Scott (Ivanhoé) e a um Alexan-
pelos diversos períodos históricos, re- nas intenções escusas e nos desejos dre Herculano (Eurico, o Presbítero)
fletindo o gosto predominante em cada inconfessáveis, escondidos sob a as possibilidades para a reconsti-
época. máscara risonha das amenidades e da tuição do clima, dos costumes e das
instituições da época medieval, per-
O romance projeta, nesse sen- hipocrisia.
mitindo também largos voos da
tido, o gosto do público burguês, Teixeira e Sousa (1812-1861) e
imaginação e da fantasia.
emergente à condição de classe Joaquim Manuel de Macedo (1820-
O romancista não tem compro-
dominante com a Revolução Fran- 1882) foram os iniciadores do missos com a verdade histórica.
cesa. Seu triunfo deveu-se ao romance folhetinesco. O primeiro, de Derivado do romance de “capa-e-
alargamento do público ledor (que, origem humilde, mulato, carpinteiro, -espada” e do romance de mistério, o
em grande parte, não tinha a cultura foi cronologicamente nosso pri- romance histórico foi tomado como
necessária à compreensão da epo- meiro romancista, com O Filho do substituto da epopeia clássica, mo-
peia clássica e renascentista) e, Pescador (1843). O segundo foi qua- delando heróis nacionais, calcados
especialmente, à abertura que o litativamente o primeiro romancista nos valores coletivos.
caracteriza, já que é um gênero brasileiro, inaugurando o romance No Brasil, os índios de Alencar
literário que possibilita inúmeras va- urbano com A Moreninha (1844). (em O Guarani, Iracema e Ubirajara)
riações, abrigando a imaginação fértil O sucesso desse gênero se pro- são transformados em cavaleiros
dos românticos e acolhendo os mais longou até nossos dias, nas radiono- medievais, vistos como símbolos e
elementos formadores da
variados temas e formas. velas, fotonovelas, nas coleções
nacionalidade, substituindo a Idade
Os primeiros romances editados Sabrina, Júlia e Bianca, bem como
Média que não tivemos.
no Brasil, ainda na década de 1830, nos romances de Barbara Cartland.
marcam-se pelo predomínio do as- Mesmo autores respeitáveis, como 䊏 A cidade
pecto folhetinesco. O folhetim, Alencar (Cinco Minutos, A Viuvinha e Com o romance urbano e de
publicado com periodicidade regular A Pata da Gazela), empenharam seu costumes, retrata-se a vida da corte,
pela imprensa, equivale às atuais talento em produzir folhetins, atraídos no Rio de Janeiro do século XIX,
novelas de televisão e confina com pelo sucesso perante o público e pelo fotografando-se, com alguma fidelida-
de, costumes, cenas, ambientes e
a subliteratura. Essa modalidade ganha-pão seguro do emprego na
tipos humanos da burguesia carioca.
apoia-se na complicação sentimental, imprensa.
As personagens caracterizam-se
na peripécia, na aventura e no
por meio de atos, gestos, diálogos,
mistério; as personagens são lineares 2. Outras modalidades do roupas. Em Macedo (A Moreninha)
(herói/heroína x vilão); a narrativa romance romântico no Brasil não há nenhum aprofundamento
centra-se na tensão bem x mal e psicológico, mas em Alencar (Diva,
desdobra-se no sentido da punição do Nem só de folhetins se alimentou Lucíola, Senhora) se encontram suti-
mal (intenção moralizante); a história a ficção romântica. Houve várias lezas devidas a um fino entendedor
principal é enxertada com histórias outras modalidades, mais complexas da sensibilidade feminina.
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䊏 O elemento regional o índio foi vítima, indiscriminadamente; Além do vigor descritivo e da juste-
O regionalismo romântico volta- assim, os brancos honrados, na visão za com que “pinta” a paisagem huma-
se para o campo, para a província e alencariana, irmanaram-se com os na e a natureza, apoiado em metáforas
para o sertão, num esforço naciona- índios na construção da nacionalidade, que ressaltam o colorido, fundindo a
lista de reconhecer e exaltar a terra e que o romancista idealizava morena, realidade humana e a paisagem,
o homem brasileiro, acentuando as mestiça, resultado da integração da na- Alencar desenvolveu um contínuo
particularidades de seus costumes e tureza (índio) com a civilização (branco). esforço no sentido analítico e crítico,
ambientes. O negro aparece como persona- aprofundando a dimensão psicoló-

PORTUGUÊS E
Essa vertente enfoca aspectos gem no teatro, em O Demônio Fami- gica de suas personagens, especial-
exóticos e pitorescos, oscilando entre liar e no dramalhão Mãe, cabendo mente em Lucíola e Senhora. Tentando
a idealização (Alencar e Bernardo lembrar que, fiel à sua posição política compreender as desarmonias e estra-
Guimarães) e o realismo fotográfico conservadora e à sua origem rural e nhezas da conduta e desmascarar e
(Taunay e Franklin Távora). aristocrática, Alencar foi contra a denunciar certos aspectos profundos
abolição do regime escravagista. da realidade humana e social, Alencar
3. José de Alencar (1829-1877) É sempre com desprezo e irrita- foi, sem embargo da idealização ro-
ção que Alencar observa os costumes mântica, um modesto precursor de
José de Alencar, nosso primeiro urbanos de seu tempo, bem como a Machado de Assis.
ficcionista de largo voo, exemplifica, vida da burguesia. A atitude do autor
pelo conjunto de sua obra, quase 䊏 Evolução
diante da vida urbana é sempre
todos os tipos do romance romântico. da obra alencariana
saudosista, regressiva e ressentida.
• Primeira fase (1856-1864)
Ao condenar a cidade, a saída que
䊏 Características Alencar iniciou-se publicando crô-
Alencar entrevê é puramente
Consolida o romance nacional, nicas na imprensa carioca, mais tarde
sentimental: o retorno à natureza, ao
compondo um verdadeiro painel do reunidas em Ao Correr da Pena
índio, ao sertão, aos campos.
Brasil, que inclui todas as latitudes, (1856). Ganha notoriedade nesse mes-
A intuição nacionalista de Alencar
todos os períodos históricos e todos mo ano, travando áspera polêmica
levou-o a inventar uma imensa saga
os grupos étnicos e regionais. acerca do poema épico pseudo-
brasileira, fundando, bem ou mal,
indianista A Confederação dos Ta-
uma mitologia mestiça, colossal e
No plano do espaço, abrange: moios, de Gonçalves de Magalhães.
telúrica, uma verdadeira sinfonia
• o sertão do Nordeste (O Serta- Já havia publicado A Viuvinha, sem
americana.
nejo); nenhuma repercussão, quando, em
• o litoral cearense (Iracema); Os índios e super-heróis inscre-
1857, publica O Guarani, que lhe traz
• o pampa gaúcho (O Gaúcho); vem-se nesse propósito de criar uma
rápida notoriedade. São dessa fase,
• a zona rural (Til ); literatura nacional com arquétipos, e o
entre outros, Lucíola, Diva, As Minas
• a zona da mata fluminense (O entusiasmo com que Alencar mergu-
de Prata e Iracema (1865), além das
Tronco do Ipê); lhou nesse trabalho verdadeiramente
peças de teatro.
• a cidade, a corte no Rio (Diva, enciclopédico explica os erros de
• Segunda fase (1866-1869)
Lucíola, Senhora) e demais romances História e Geografia e os exageros
Envolvido na política (deputado,
urbanos. imaginativos, que lhe valeram inúme- ministro da justiça, candidato rejeita-
ras críticas e zombarias. do a senador), deixou, nessa fase, os
No plano do tempo, abarca: Ainda o nacionalismo inspirou a escritos políticos intitulados Cartas de
• o período pré-cabralino (Ubi- luta que Alencar empreendeu em Erasmo.
rajara); defesa do português falado no • Terceira fase (1870-1875)
• os primeiros contatos entre o Brasil, liberto do rigor das gramáticas Abandonando a política e o tea-
índio e o colonizador nos séculos XVI e dicionários lusitanos. No sentido de tro, desgostoso e retraído, entrou em
e XVII (Iracema e O Guarani ); defesa de um uso brasileiro da língua nova fase criadora, publicando cerca
• a colonização (A Guerra dos portuguesa, escreveu Alencar: de dez livros (entre outros, O Gaúcho,
Mascates, As Minas de Prata); “Como pode um povo que chupa a Ubirajara, Senhora e O Sertanejo),
• o presente, a vida urbana no manga, o abacaxi e o cambucá falar além do romance póstumo Encar-
século XIX, em todos os romances como um povo que sorve a uva, a nação e da autobiografia Como e por
urbanos. pera e a nêspera?”. que Sou Romancista.
Enriqueceu a nossa língua literária
No plano étnico, o índio e o de inúmeros brasileirismos, aprovei- 䊏 Divisão da obra de Alencar
branco alternam-se como heróis, tando vocábulos, expressões e um a) Romances indianistas (for-
modelados na honradez e galanteria fraseado tipicamente nacionais, dando mação da nacionalidade; anteceden-
dos cavaleiros medievais: Peri, Poti, à frase um meneio, uma cadência tes aborígines):
Jaguarê, D. Antônio Mariz e seus tropical. Suas imagens e metáforas – O Guarani
cavaleiros, Arnaldo Louredo, Manuel utilizam com beleza e entusiasmo a – Iracema
Caño. Alencar omite a violência de que fauna e a flora do país. – Ubirajara
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b) Romances históricos (bos- branco, são e salvo, às terras piti- Mais rápida que a ema selvagem, a
quejos históricos e crônicas roman- guaras. Iracema, porém, apaixona-se morena virgem corria o sertão e as matas do
ceadas dos tempos coloniais): por Martim, traindo o “segredo da jure- Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da
grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal ro-
– As Minas de Prata ma”, que guardava como “virgem de
çando, alisava apenas a verde pelúcia que
– Alfarrábios Tupã” [Iracema entrega-se sexualmen- vestia a terra com as primeiras águas.
– A Guerra dos Mascates te a Martim, inebriados ambos pela Um dia, ao pino do sol, ela repousava em
droga cujo segredo ela deveria pre- um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a
servar]. Acompanha o esposo, deixan-
PORTUGUÊS E

sombra da oiticica, mais fresca do que o


c) Romances regionalistas (a
do na sua tribo um ambiente de revol- orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre
pátria brasileira; a sociedade rural): esparziam flores sobre os úmidos cabelos.
ta, acirrado pelos ciúmes de Irapuã,
– O Gaúcho Escondidos na folhagem os pássaros ameiga-
destemido chefe tabajara. Desenca-
– O Sertanejo vam o canto.
deia-se a guerra de vingança, e os
– Til (...)
tabajaras são derrotados; Iracema con- Rumor suspeito quebra a doce harmonia
– O Tronco do Ipê
funde as venturas do amor com as da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol
amargas tristezas que despertam os não deslumbra; sua vista perturba-se.
d) Romances urbanos (roman- campos juncados de cadáveres de Diante dela e todo a contemplá-la, está
ces de complicação sentimental, seus irmãos. Ao remorso e saudade um guerreiro estranho, se é guerreiro e não
outra dor se lhe acrescenta: o arrefe- algum mau espírito da floresta. Tem nas faces
perfis de mulher e quadros da socie-
cimento do amor de Martim que, para o branco das areias que bordam o mar, nos
dade):
olhos o azul triste das águas profundas.
– Cinco Minutos amenizar a nostalgia da pátria distan-
Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o
– A Viuvinha te, ausentava-se em longas e demo-
corpo.
– A Pata da Gazela radas jornadas. Num dos seus regres- Foi rápido, como o olhar, o gesto de Irace-
– Sonhos d’Ouro sos, encontra Iracema às portas da ma. A flecha embebida no arco partiu. Gotas
– Encarnação morte, exausta pelo esforço que fize- de sangue borbulham na face do desco-
– Diva ra para alimentar o filhinho recém-nas- nhecido.
– Lucíola cido, a quem dera o nome de Moacir, De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu
que significa, na sua língua, “filho da sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O
– Senhora
dor”. Martim enterra o corpo da espo- moço guerreiro aprendeu na religião de sua
mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e
䊏 Romance indianista sa e parte, levando o filho e a sauda-
amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.
• Iracema de da fiel companheira. (R. M. Pinto, O sentimento que ele pôs nos olhos e no
Iracema é um romance lírico que in Pequeno Dicionário de Literatura rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de
desenvolve uma antiga lenda sobre a Brasileira, Cultrix.) si o arco e a uiraçaba e correu para o guerreiro,
colonização do Ceará, terra do autor. sentida da mágoa que causara.
A ação, centrada no encontro/desen- A mão que rápida ferira estancou mais
Iracema, por sua linguagem suge-
rápida e compassiva o sangue que gotejava.
contro entre o europeu e o nativo stiva e delicada, é um verdadeiro
Depois Iracema quebrou a flecha homicida:
brasileiro, envolve a rivalidade entre poema em prosa. A narrativa procura deu a haste ao desconhecido, guardando
as tribos tabajara e pitiguara. Martim representar, miticamente, o surgimen- consigo a ponta farpada.
é europeu, branco e civilizado; Irace- to da nacionalidade brasileira pelo (Iracema, cap. II)
ma, a bela selvagem tabajara que contato da terra virgem (Iracema é a
foge com ele para o litoral, representa “virgem dos lábios de mel”) com o
a América virgem e ingênua, cativa e europeu civilizado. Quanto a esse
dominada. sentido simbólico, já foi notado que o
nome Iracema é um anagrama de
• Resumo América (anagrama é palavra formada
Numa atmosfera lendária, de exó- pela transposição das letras de outra
tica e delicada poesia, desenrola-se a palavra).
história triste dos amores de Martim,
primeiro colonizador português no Cea-
rá, e Iracema, a jovem e bela índia taba- TEXTO I
jara, filha de Araquém, pajé da tribo.
Martim saíra à caça com seu amigo Além, muito além daquela serra, que
Poti, guerreiro pitiguara, e perdera-se ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que
do companheiro, indo ter aos campos Iracema, de Antônio Parreiras (1869-1937),
tinha os cabelos mais negros que a asa da graú-
dos inimigos dos tabajaras. Encontra inspirado na personagem homônima de José de
na e mais longos que seu talhe de palmeira. Alencar. Iracema, “lenda do Ceará”, metaforiza
Iracema, que o acolhe na cabana de O favo da jati não era doce como seu a formação de uma nova raça, morena, mestiça,
Araquém, enquanto volta Caubi, seu sorriso, nem a baunilha recendia no bosque tropical, uma utopia romântica e nacionalista,
irmão, que reconduziria o guerreiro como seu hálito perfumado. revestida de um intenso lirismo e alta poesia.

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• O Guarani de raças diferentes, é um símbolo perado, cingindo o tronco da palmeira nos seus
Publicado primeiramente em fo- feliz da futura população do Brasil. (R. braços hirtos, abalou-o até as raízes.
lhetins no Diário do Rio de Janeiro, M. Pinto, Pequeno Dicionário de Três vezes os seus músculos de aço,
em 1857, O Guarani foi o desdobra- Literatura Brasileira, Cultrix.) estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e
três vezes o seu corpo vergou, cedendo à
mento da polêmica de Alencar com
retração violenta da árvore, que voltava ao
Gonçalves de Magalhães sobre a cria-
lugar que a natureza lhe havia marcado.
ção de uma verdadeira epopeia na-
TEXTO II Luta terrível, espantosa, louca, esvairada;
cional. O livro procura ser a resposta

PORTUGUÊS E
luta da vida contra a matéria; luta do homem
de Alencar ao problema que tanto contra a terra; luta da força contra a imobi-
Peri compreendera o gesto da índia; não
preocupou os escritores que estabe- lidade.
fez, porém, o menor movimento para segui-la.
leceram o Romantismo entre nós. Houve um momento de repouso em que
Fitou nela o seu olhar brilhante e sorriu.
Alencar afasta-se da épica tradicional: o homem, concentrado todo o seu poder,
Por sua vez a menina também compreen-
não escreve em verso, como estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto
deu a expressão daquele sorriso e a resolução
Magalhães, mas em prosa, e sua nar- foi terrível; e pareceu que o corpo ia despe-
firme e inabalável que se lia na fronte serena
rativa filia-se ao gênero mais em voga daçar-se nessa distensão horrível.
do prisioneiro.
naquela época: o romance — no sub- Insistiu por algum tempo, mas debalde.
Ambos, árvore e homem, embalançaram-
gênero romance histórico de aven- se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes
Peri tinha atirado para longe o arco e as
turas. desprenderam-se da terra já minada profunda-
flechas e, recostando-se ao tronco da árvore,
Na realidade, se episódios da mente pela torrente.
conservava-se calmo e impassível.
colonização do Brasil nos albores do A cúpula da palmeira, embalançando-se
De repente o índio estremeceu.
graciosamente, resvalou pela flor da água
século XVII constituem o entrecho da Cecília aparecera no alto da esplanada e
como um ninho de garças ou alguma ilha flu-
obra, o protagonista é um índio, Peri, lhe acenara; sua mãozinha alva e delicada
tuante, formada pelas vegetações aquáticas.
elevado à categoria de autêntico herói agitando-se no ar parecia dizer-lhe que espe- Peri estava de novo sentado junto de sua
romântico. Logo depois que Filipe ll rasse; Peri julgou mesmo ver no rostinho gentil senhora quase inanimada: e, tomando-a nos
da Espanha ocupa o trono de de sua senhora, apesar da distância, brilhar um braços, disse-lhe com um acento de ventura
Portugal, D. Antônio de Mariz, fidalgo raio de felicidade. suprema:
da velha estirpe portuguesa, fiel à sua (O Guarani, cap. II) — Tu viverás!...
pátria, prefere instalar-se no interior Cecília abriu os olhos e, vendo seu amigo
do Brasil a servir à Coroa estrangeira. junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu
Com sua família e alguns homens de TEXTO III o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.
armas, inicia a formação de uma — Sim?... murmurou ela; viveremos!... lá
fazenda à margem do Rio Paquequer, no céu, no seio de Deus, junto daqueles que
afluente do Paraíba. De um acidente (...) amamos!...
resulta a morte de uma índia de uma Peri tinha falado com o tom inspirado que O anjo espanejava-se para remontar ao
tribo aimoré, que passa por isso a dão as crenças profundas; com o entusiasmo berço.
hostilizar os brancos colonizadores. das almas ricas de poesia e sentimento. — Sobre aquele azul que tu vês, conti-
D. Antônio de Mariz conta com a Cecília o ouvia sorrindo e bebia uma a nuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado
uma as suas palavras, como se fossem as dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu
amizade de Peri, jovem guerreiro
partículas do ar que respirava; parecia-lhe que viverás com tua irmã, sempre...!
goitacá, de nobres instintos e
a alma de seu amigo, essa alma nobre e bela, Ela embebeu os olhos nos olhos do seu
extrema bravura. O selvagem devo-
se desprendia do seu corpo em cada uma das amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.
tava a Cecília, a filha do fidalgo, uma O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
adoração quase religiosa e por isso frases solenes, e vinha embeber-se no seu
Fez-se no semblante da virgem um ninho
coração, que se abria para recebê-la.
estendia sua proteção providencial a de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios
A água subindo molhou as pontas das
toda a família. Depois de inúmeros abriram como as asas purpúreas de um beijo
largas folhas da palmeira, e uma gota, resva-
acidentes e peripécias, em que se soltando o voo.
lando pelo leque, foi embeber-se na alva cam-
destaca a ação de Peri, conjurando A palmeira arrastada pela torrente impe-
braia das roupas de Cecília.
perigos advindos não só dos indíge- tuosa fugia...
A menina, por um movimento instintivo
nas inimigos, mas também do vilão E sumiu-se no horizonte.
de terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse
Loredano e seus asseclas, dissimula- (O Guarani , Epílogo)
momento supremo, em que a inundação abria
dos entre os “aventureiros” que
serviam a D. Antônio, este, esgotadas
a fauce enorme para tragá-los, murmurou 䊏 Romance Urbano
docemente:
as possibilidades de resistência, pede — Meu Deus!... Peri!...
a Peri que salve Cecília, levando-a • Senhora
Então passou-se sobre esse vasto
para a Corte, enquanto faz explodir Publicado em 1875, é o terceiro
deserto de água e céu uma cena estupenda,
sua casa, a fim de evitar o trucida- heroica, sobre-humana; um espetáculo gran- da série “perfis de mulher”. A per-
mento de todos pelos selvagens. O dioso, uma sublime loucura. sonagem principal é Aurélia Camargo,
final do romance, com a palmeira Peri alucinado suspendeu-se aos cipós rainha dos salões cariocas na época
arrastada pelas águas da enchente e que se entrelaçavam pelos ramos das árvores do Segundo Reinado. Herdeira repen-
abrigando na sua copa os dois seres já cobertas de água e, com esforço deses- tina de um avô que desconhecia,
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passa da pobreza a uma existência de mundo, orgulhosa de esmagá-lo sob a planta, • Lucíola
fausto social. Toda a intriga gira em como a um réptil venenoso. Neste romance, Alencar desen-
E o mundo é assim feito; que foi o fulgor volve um tema romântico que motivou,
torno do tema do casamento por
satânico da beleza dessa mulher a sua maior e ainda motiva, muita paixão. É o tema
interesse, por meio do contrato e
sedução. Na acerba veemência da alma revol- da “boa prostituta”, que se redime de
dote, fato comum na época. Aurélia, ta, pressentiam-se abismos de paixão, e entre- seu “pecado” por meio do amor since-
enquanto pobre, sofrera amarga via-se que procelas de volúpia havia de ter o
ro de um belo jovem, que a ama, mas
decepção ao ver Fernando Seixas, por amor da virgem bacante.
que a sociedade tentará afastar dela.
PORTUGUÊS E

quem se enamorara, afastar-se diante Se o sinistro vislumbre se apagasse de sú-


Ela é Lúcia, meretriz de singular nobre-
do aceno de um dote de trinta contos bito, deixando a formosa estátua na penumbra
za de caráter, inspirada na Marguerite
suave da candura e inocência, o anjo casto e puro
de réis, quando ela de nada dispunha. da peça A Dama das Camélias, de
que havia naquela, como há em todas as moças,
Jurou vingar-se e, ao receber a he- Alexandre Dumas Filho; ele é Paulo
talvez passasse despercebido pelo turbilhão.
rança, manda sigilosamente oferecer As revoltas mais impetuosas de Aurélia Silva, um jovem promissor, de boa
ao ex-noivo a quantia de cem contos eram justamente contra a riqueza que lhe servia família, inspirado no Alfredo da mesma
de réis para um casamento com de trono e sem a qual nunca, por certo, apesar peça. Aqui, como em Senhora,
moça desconhecida. Fernando de suas prendas, receberia como rainha Alencar, romanticamente, apresenta o
repeliu inicialmente a oferta, mas, desdenhosa a vassalagem que lhe rendiam. amor como operador de mudanças
Por isso mesmo considerava ela o ouro comportamentais nas pessoas —
necessitando de dinheiro, aceitou-a,
um vil metal que rebaixava os homens; e no mudanças que trazem purificação,
com a condição de receber vinte
íntimo sentia-se profundamente humilhada redenção, elevação. No jogo de
contos de réis em adiantamento. Na pensando que, para toda essa gente que a “pecado”, “pureza”, sexo e conven-
noite de núpcias, é recebido com cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma ções sociais, revela-se a concepção
desprezo, sofrendo a humilhação de só das bajulações que tributavam a cada um de moral de Alencar, que exprime o
encarar o recibo da sua compra em seus mil contos de réis. moralismo da parcela conservadora da
posse de Aurélia. Um ano depois, Nunca da pena de algum Chatterton sociedade de seu tempo.
consegue, graças a um negócio desconhecido saíram mais cruciantes apóstro-
fes contra o dinheiro, do que vibrava muitas
antigo, receber a quantia de vinte
vezes o lábio perfumado dessa feiticeira meni- TEXTO III
contos que entrega à mulher para na, no seio de sua opulência.
compra de sua liberdade. Aurélia Um traço basta para desenhá-la sob esta
pede-lhe que fique, pois o seu face. Um embaraço imprevisto, causado por
procedimento fizera com que se redi- Convencida de que todos os seus inúme- duas gôndolas1, tinha feito parar o carro. A
misse de toda a venalidade [venal é ros apaixonados, sem exceção de um, a moça ouvia-me; voltou ligeiramente a cabeça
quem se vende] e infâmia. O pretendiam unicamente pela riqueza, Aurélia para olhar-me e sorriu. Qual é a mulher bonita
reagia contra essa afronta, aplicando a esses que não sorri a um elogio espontâneo e um
romance retrata os hábitos e vícios da
indivíduos o mesmo estalão. grito ingênuo de admiração? Se não sorri nos
sociedade fluminense da época, Assim costumava ela indicar o mereci- lábios, sorri no coração.
influenciada pelos hábitos europeus e mento relativo de cada um dos pretendentes, Durante que se desimpedia o caminho,
em vias de formação urbana. Com dando-lhes certo valor monetário. Em lingua- tínhamos parado para melhor admirá-la; e então
uma narrativa complexa para o gem financeira, Aurélia cotava os seus adora- ainda mais notei a serenidade de seu olhar que
romance da época, é dos melhores dores pelo preço que razoavelmente poderiam nos procurava com ingênua curiosidade, sem
obter no mercado matrimonial. provocação e sem vaidade. O carro partiu;
livros de José de Alencar. (A.
(Senhora, cap. I) porém tão de repente e com tal ímpeto dos ca-
Coutinho, Enciclopédia de Literatura valos por algum tempo sofreados, que a moça
Brasileira, MEC) assustou-se e deixou cair o leque. Apressei-me
TEXTO II
e tive o prazer de o restituir inteiro.
Na ocasião de entregar o leque apertei-lhe
Aurélia passava agora as noites solitária. a ponta dos dedos presos na luva de pelica.
TEXTO I Bem vê que tive razão assegurando-lhe que
Raras vezes aparecia Fernando, que ar-
ranjava uma desculpa qualquer para justificar não sou tímido. A minha afoiteza a fez corar;
(...) sua ausência. A menina, que não pensava em agradeceu-me com um segundo sorriso e uma
Na sala, cercada de adoradores, no meio interrogá-lo, também não contestava esses ligeira inclinação da cabeça; mas o sorriso
das esplêndidas reverberações de sua beleza, fúteis inventos. Ao contrário, buscava afastar desta vez foi tão melancólico, que me fez dizer
Aurélia, bem longe de inebriar-se da adoração da conversa o tema desagradável. ao meu companheiro:
produzida por sua formosura e do culto que Conhecia a moça que Seixas retirava-lhe — Esta moça não é feliz!
lhe rendiam, ao contrário parecia unicamente — Não sei; mas o homem a quem ela
seu amor; mas a altivez de coração não lhe
amar deve ser bem feliz!
possuída de indignação por essa turba vil e consentia queixar-se. Além de que, ela tinha
Nunca lhe sucedeu, passeando em nos-
abjeta. sobre o amor ideias singulares, talvez inspira-
sos campos, admirar alguma das brilhantes
Não era um triunfo que ela julgasse digno das pela posição especial em que se achara ao
parasitas que pendem dos ramos das árvores,
de si, a torpe humilhação dessa gente ante sua fazer-se moça.
abrindo ao sol a rubra corola? E quando ao co-
riqueza. Era um desafio, que lançava ao (Senhora, cap. VI) lher a linda flor, em vez da suave fragrância que
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esperava, sentiu o cheiro repulsivo de torpe cidamente rotulado como romance Às flores, que a noite desabrochara; aos
inseto que nela dormiu, não a atirou com regionalista, tendo, portanto, como frutos silvestres que enfeitavam a copa das
desprezo para longe de si? preocupação a descrição dos árvores; aos passarinhos que trinavam
É o que se passava em mim quando essas embalando-se nas franças9 dos coqueiros; ao
costumes daquela localidade, o que
primeiras recordações roçaram a face da Lúcia que era da terra e bem da terra, iam os
acaba por contribuir com mais uma
que eu encontrara na Glória. Voltei-me no leito
faceta do painel de nossa nacionali- impulsos desses jovens corações, quando não
para fugir à sua imagem e dormi.
dade que Alencar pretendia erigir. se volviam um para o outro, a reverem-se entre
(Lucíola, cap. II)
si.

PORTUGUÊS E
O céu, essa imensa tela azul, que foi
Vocabulário e Notas TEXTO IV
1 – Gôndola: carro puxado por burros. cúpula de um berço, o da luz, e será mais tarde
véu de um leito, o da vida; a alma só o procura,
Eram dois, ele e ela, ambos na flor da
só o contempla, quando a dor a prostra. Mas
䊏 Romance regionalista beleza e da mocidade.
para aquela que sorri e folga, o firmamento é
Aqui está um dos aspectos mais O viço da saúde rebentava-lhes no
uma terra por descobrir e debuxa-se10
admiráveis do autor: dá-nos um painel encarnado das faces, mais aveludadas que a
vagamente na imaginação, como a montanha
das principais regiões culturais do açucena escarlate recém-aberta ali com os
azul desse vale de lágrimas.
País — a região sulina, com seus orvalhos da noite. No fresco sorriso dos lábios,
Alguma vez deixava o rapaz de seguir
pampas e suas coxilhas (O Gaúcho), a como nos olhos límpidos e brilhantes, brotava-
com o passo a menina, para acompanhá-la
vida rural fluminense (O Tronco do lhes a seiva d’alma.
com a vista. De braços cruzados sobre a coro-
Ipê), o Planalto Paulista (Til) e o Ela, pequena, esbelta, ligeira, buliçosa,
nha da clavina11 de caça, fitava os grandes
Nordeste (O Sertanejo). Como no saltitava sobre a relva, gárrula e cintilante do
olhos pardos com tal possança d’alma, que
caso do romance histórico, não é a prazer de pular e correr, saciando-se na delícia
mais parecia absorver e entranhar em si o
realidade, a verdade em si, que atrai o inefável de se difundir pela criação e sentir-se
gracioso vulto, do que enlevar-se em sua
romancista, e sim o tema que flor no regaço daquela natureza luxuriante.
contemplação.
possibilite dar largas à fantasia, ao Ele, alto, ágil, de talhe robusto e bem
(...)
seu estilo épico e ao desejo de lançar conformado, calcando o chão sob o grosseiro
— Que me está olhando aí? Nunca me
os fundamentos de uma literatura soco da bota com a bizarria de um príncipe que
viu? exclamou com surpresa, mas travada
nacional. pisa as ricas alfombras1, seguia de perto a
sempre da petulância que animava-lhe todos
gentil companheira, que folgava pelo campo, a
os movimentos.
• Til volutear2 e fazendo-lhe mil negaças, como a
— Não era para você! respondeu rápido o
Publicado primeiramente em borboleta que zomba dos esforços inúteis da
moço, baixando a cabeça de modo a ocultar o
folhetim no jornal A República entre criança para a colher.
rubor que lhe afogueava o rosto.
1871 e 1872, Til obteve bastante Caminhavam por uma rechã3, bordada de
Para confirmar o disfarce, armou a clavina
sucesso. Sua linguagem idealizada, a ilhas de mato, que emergiam aqui e ali do
e fez pontaria a um cardeal que se embalava
descrição rebuscada da paisagem, os verde gramado. Pela ramagem frondente4 das
no topo de uma palmeira.
relacionamentos amorosos leves e árvores e renovos5 que abrolhavam, percebia-
— Miguel!...
inocentes, além do ritmo ágil das se a proximidade de um grande manancial, e
(Til, cap. I)
aventuras, foram alguns dos ingre- entre as crepitações da brisa nas folhas, como
dientes que conquistaram de ime- um tom opaco desse arpejo da solidão, ouvia-
diato os leitores. De fato, Alencar se o múrmure6 soturno do Piracicaba, que leva Vocabulário e Notas
demonstra um valioso domínio da ao Tietê o tributo caudal de suas águas. 1 – Alfombra: tapete espesso e muito macio,
técnica narrativa, pois construiu sua Sete horas da manhã haviam de ser. A luz de cores e figuras diversas.
trama em 62 capítulos: os 31 primei- de um sol esplêndido fluía no éter, que a 2 – Volutear: andar em roda; girar, rodopiar,
ros narram fatos que vão se tornando trovoada da véspera tinha acendrado7. O céu voltear.
cada vez mais complicados, o que arreava-se do azul diáfano onde a fantasia se 3 – Rechã: terreno alto, extenso e plano, ter-
prende a curiosidade, seduzida pelos embebe com a voluptuosidade casta da
minando em escarpa abrupta.
mistérios que se lhe vão criança a aconchegar-se dentro, tão dentro do
4 – Frondente: frondoso, repleto de copas.
apresentando; os 31 seguintes grêmio materno.
5 – Renovo: broto.
dedicam-se a desenrolar os nós da Bem longe do céu, porém, e bem presos
6 – Múrmure: murmúreo.
primeira metade do romance, o que à terra andavam os olhos dos nossos dois
7 – Acendrado: de acendrar (limpar).
atrai ainda mais a atenção, que vai amiguinhos, que nem haviam reparado sequer
8 – Sazão: época, estação.
vendo todos os mistérios sendo na limpidez da atmosfera. Ainda estavam na
desvendados. sazão8 feliz, em que respira o céu, como o ar 9 – França: copa.
Pelo fato de sua história se passar da vida, e o aroma do campo, quase sem 10 – Debuxar: esboçar.
no interior de São Paulo, Til é reconhe- sentir. 11 – Clavina: carabina.

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