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O Tráfico nas Teorias: Tradução Cultural e Prática Feminista

Claudia de Lima Costa


Universidade Federal de Santa Catarina
Actas de las VI Jornadas de Historia de las Mujeres y I Congreso Latinoamericano de Estudios de las Mujeres y de
Género. Bs. As., IIEGE, 2000.

Sobre viagens e teorias


Nas formações pós-coloniais, diante da reconfiguração de conhecimentos e do re-mapeamento contemporâneo de
todos os tipos de fronteiras (geográfica, econômica, política, cultural, libidinal etc.), a questão da tradução se tornou
um importante (e acrescentaria, recente) espaço de debate feminista. Por quais rotas as teorias feministas, junto
com suas categorias analíticas, viajam nas Américas? Como são traduzidas nos diferentes contextos geográficos e
históricos? Quais são os mecanismos e tecnologias de controle que patrulham o trânsito das teorias pelas fronteiras
geopolíticas? Quais as leituras que as categorias analíticas feministas recebem quando se deslocam de um contexto
para outro? Qual é o lugar de enunciação que sujeitos feministas ocupam nesse trânsito de teorias ao longo do eixo
norte/sul e vice-versa? De que forma o lugar que ocupamos no gênero, raça, sexualidade, classe, instituições etc
sobre-determina quais teorias (e autoras/es) são traduzidas e como são interpretadas/apropriadas? Quem, afinal,
define o que é teoria?
Gostaria, antes de entrar nesses debates, esclarecer que o termo tradução aqui não se refere às discussões sobre
estratégias intra ou interlinguísticas e processos intersemióticos próprios da área dos estudos de tradução, mas
alude à controvérsia sobre tradução cultural que prevalesce nos escritos recentes sobre teoria e prática
etnográficas.1 Tradução cultural, como Niranjana (1992) postula, não assume que o contexto da tradução seja um de
simetria entre linguagens, mas assume que qualquer processo de descrição, interpretação e disseminação de idéias e
visões de mundo está sempre já imbricado com as relações de poder e as assimetrias entre linguagens, regiões e
povos.
Muito já tem sido dito e escrito sobre as viagens das teorias por diversas topografias e através de itinerários cada
vez mais complexos (Edward Said, 1983; Radhakrishnan, 1996; Kaplan, 1996; Grewal and Kaplan, 1994). Nessas
viagens das teorias, há duas coisas interessantes a observar. Primeiro, as teorias que viajam mais facilmente são
aquelas com um nível de abstração tão grande que qualquer questão de contexto se torna irrelevante (por exemplo,
pós-estruturalismo, desconstrução etc). Segundo, a partir de seus cruzamentos pelos diversos territórios, as teorias
vão sofrendo diferentes apropriações (leituras locais), tornado-se mais compósitas. Como argumenta John (1996),
temos nessa categoria as teorias feministas, que são geralmente forjadas em variados níveis de abstração—isto é,
utilizam-se simultaneamente de registros econômicos, culturais e históricos.
No atual cenário de divisas fragmentadas, "zonas de contato" (em vez de centros e periferias) (Pratt,1999) e
epistemologias da fronteira, é crucial investigarmos os processos de apropriação—ou, como gostaria aqui de chamar,
processos de tradução cultural—das teorias feministas e de seu conceito-chave, gênero, com o intuito de
desenvolvermos o que algumas autoras têm chamado de "capacidade geopolítica ou transnacional de ler e escrever"
(Friedman, 1998; Spivak, 1992) na articulação de "feminismos transnacionais" (Grewal e Kaplan, 1994).
Essa tarefa implica rastrear as migrações e traduções das teorias feministas com a finalidade de salientar aqueles
elementos de apropriação os quais subvertem qualquer noção de autenticidade ou originalidade. Idéias e conceitos—
que jamais são totalmente puros ou nativos—emergem de lugares sempre já saturados por outros lugares e teorias e
cujo itinerário segue uma espécie de lógica do rizoma, sem um ponto de origem evidente nem um ponto de chegada
inequívoco.2 No caso específico das teorias feministas, essa tarefa se complica ainda mais porque seus conceitos são
geralmente produzidos no (des)encontro das formações feministas heterogêneas e através das diferenças de raça,
classe, orientação sexual, nação, linguagem, etnia e tradição, dentre muitas outras.
Em uma perspicaz discussão sobre feminismo, experiência e representação, Nelly Richard (1996) observou que, na
divisão global do trabalho, o trânsito da teoria entre os centros metropolitanos e as periferias se faz a partir de uma
troca desigual: enquanto o centro acadêmico teoriza, espera-se da periferia o fornecimento de estudos de caso. Em
outras palavras, a periferia é reduzida ao lado prático da teoria (ou, usando uma outra oposição binária perversa, a
periferia torna-se o corpo concreto em oposição à mente abstrata do feminismo metropolitano). Trinh Minh-ha
2
mostra com sagacidade como experiência da mulher do terceiro mundo é inscrita no repertório feminista ocidental
quando, refletindo sobre sua condição de mulher imigrante não branca nos Estados Unidos, diz:
Agora que tenho permissão para falar e me abrir, sou encorajada a expressar minha diferença. Meus ouvintes
esperam e exigem isso de mim, do contrário se sentiriam roubados: não viemos aqui escutar uma pessoa do terceiro
mundo falar sobre o primeiro (?) mundo. Viemos para escutar aquela voz da diferença que provavelmente nos trará o
que não podemos ter, e nos distrairá da monotonia do mesmo.3

Sobre tradução como migração discursiva


Niranjana (1992), em seu brilhante estudo sobre tradução no contexto da construção do sujeito colonial, mostra que
a prática da tradução, acorando-se em noções filosóficas ocidentais tidas como não questionáveis—por exemplo,
realidade, representação e conhecimento—conseguiu ocluir a violência presente na construção desse sujeito colonial.
Ao usar certos modos de representação do outro, estas práticas de tradução reforçaram visões hegemônicas desse
outro (do colonizado), colocando-o na posição, segundo Edward Said, de objeto sem história—ao invés de entender o
outro como o resultado histórico das próprias práticas de representação/tradução.
Para Niranjana, o termo "tradução" não significa somente um processo linguístico, mas sim toda uma problemática. É
uma prática que está situada entre a leitura e a interpretação. Teorizar o processo de tradução cultural (traduzir a
tradução) pressupõe explorar "aquelas economias dentro das quais o signo da tradução circula" e questionar a própria
noção de representação. Para Spivak, a tarefa da tradutora vai bem mais além de uma leitura íntima do texto em
mãos para uma leitura igualmente íntima do texto social, prestando especial atenção para as relações entre lógica e
retórica textuais por um lado e, por outro, entre retórica e lógica social—salientando aqui o potencial de ruptura que
as figuras de linguagem detêm frente às práticas sociais. Diante da intensa migração de conceitos e valores que
acompanham as viagens dos textos e das teorias, muitas vezes um conceito que apresenta potencial de ruptura
política e epistemológica em um determinado contexto, quando levado a outro lugar, pode se tornar despolitizado.
Para Hillis Miller (1996), isso acontece porque os conceitos carregam consigo uma longa genealogia e uma história
silenciosa que, transpostas a outras topografias, podem produzir leituras imprevistas. No entanto, a abertura de uma
teoria à tradução é conseqüência da natureza performativa, não cognitiva, da linguagem. De acordo com Hillis Miller,
teorias são maneiras de fazermos coisas com a linguagem, uma delas sendo a possibilidade de ativarmos diferentes
leituras do texto social. Quando introduzidas a um novo contexto, as leituras que as teorias promulgarão podem
transformar radicalmente esse contexto. Portanto, qualquer tradução sempre implicará em uma desfiguração: quando
a teoria viaja, ela desfigura, deforma e transforma a cultura ou a disciplina que a recebe. É nesse sentido que Spivak
argumenta que uma tradutora, mesmo trazendo sempre consigo uma parcela de traidora, deve esforçar-se
continuamente para ser não só sagaz conhecedora da língua a traduzir, mas também uma leitora superlativa do texto
social.

Práticas de tradução e o tráfico no/do gênero


Como sagazes críticas do original e leitoras superlativas do texto social, de que forma as feministas no norte e no sul
podem contribuir para uma prática de tradução que perturbe as narrativas hegemônicas do outro, do gênero e do
próprio feminismo, tornado visível as relações assimétricas entre linguagens, regiões e instituições? Em outras
palavras, como pensarmos através das lacunas/brechas da tradução e nos responsabilizarmos pelas forças múltiplas
(racial, sexual, econômica etc.) que sobre-determinam as práticas de traduções e lhe impõem limites?
Uma maneira de avaliarmos as perdas e os ganhos no tráfico das teorias dentro do feminismo seria fazer uma análise
das migrações de um de seus conceitos fundacionais, o gênero.
A ênfase das teorias feministas na diferença (uma resposta, no terreno social, às pressões políticas das mulheres não
brancas e das feministas lésbicas nos Estados Unidos), aliada à desconstrução das categorias da identidade (uma
resposta, no terreno epistemológico, à chegada do pós-estruturalismo), levou muitas acadêmicas feministas norte-
americanas a proclamar a desintegração do gênero diante das fraturas da classe, raça, sexualidade, idade e de outras
diferenças constitutivas da heteroglossia pós-moderna. Outras feministas, contestando a dispersão tanto da mulher
quanto do gênero nas múltiplas diferenças, criticaram amplamente o que consideraram uma perigosa tendência nos
anos 90: a emergência de um feminismo “sem mulheres”. Outras feministas, porém, quando confrontadas com um
3
cenário de corpos voláteis e categorias analíticas evasivas—quando tudo é reduzido a performances paródicas—
reafirmaram a necesidade de lutar contra a atomização das diferenças a partir da uma afirmação de uma identidade
positiva para a mulher por meio da articulação das diferenças com as estruturas de dominação que produziram, em
primeiro lugar, essas diferenças.
Enquanto esses debates aconteciam na academia norte-americana, Estados e agências inter-governamentais na
América Latina adotavam extensamente a categoria do gênero em suas políticas públicas e programas sociais
direcionados a promover a equidade de gênero. Sonia E. Alvarez (1998), analisando a entrada do feminismo no Estado
neo-liberal durante a "abertura política ao gênero", por exemplo, argumenta que a crítica feminista em relação à
opressão/subordinação da mulher diluiu-se e neutralizou-se nos discursos e práticas do Estado e de suas instituições.
Nas palavras de Alvarez,
Apesar del papel innegable que tuvieron los lobbies feministas locales y globales em promover las normas
internacionaleso de género que indirectamente inspiran estos modernos discursos estatales “pró-género”, la
“incorporación de la mujer al desarrollo” no siempre se inspira en el feminismo. La asidua crítica feminista a la
subordinación de las mujeres muchas veces se traduce y tergiversa en las práticas y discursos del Estado. Como me
explicó una oficial de la Alcaldía de Cali: “ahora la cosa cambió, ya no es aquel feminismo radical de los anõs 70; ahora
es perspectiva de género.”
Por um lado, na medida que Estados, agências intergovernamentais e organizações não-governamentais abraçavam sem
escrúpulos o gênero, por outro lado este conceito despertou reações violentas entre os mais conservadores. Jean
Franco (1998), em seu divertido artigo, "Defrocking the Vatican" (Despindo o hábito do Vaticano), faz uma leitura
aguda da reação do Vaticano ao conceito de gênero—o qual é visto como ameaça sinistra aos valores tradicionais, pois
acarretaria na aceitação da homossexualidade, na destruição da família (diga-se de passagem, patriarcal) e na
disseminação do feminismo. Segundo o bispo auxiliar de Buenos Aires, a utilização da palavra gênero como um
construto cultural separado do sexo biológico "torna-nos companheiros de viagem do feminismo radical.”
Donna Haraway, Teresa de Lauretis e Marta Lamas, entre várias outras, já apontaram para as dificuldades que o
termo gênero enfrenta quando, na sua jornada do norte rumo ao sul, entra no domínio das línguas românicas. Apesar
dos muitos significados do termo gênero em português, sua chegada na academia brasileira foi celebrada
efusivamente. Não é minha intenção aqui traçar uma detalhada cartografia das rotas do gênero no contexto
brasileiro. Gostaria, sim, de oferecer algumas reflexões sobre os usos e abusos das traduções do gênero no cenário
brasileiro, apontando para algumas conseqüências políticas dessas práticas de tradução.
Um ganho importante que o gênero como categoria analítica trouxe, quando aliado aos debates estruturalistas e pós-
estruturalistas, foi a negação epistemológica de qualquer tipo de essencialismo associado à categoria “mulher”.
Deveria observar, não obstante, que no contexto do movimento feminista e de mulheres, o reconhecimento da
diferença—a partir da passagem analítica da Mulher para mulheres—já havia em muito precedido a chegada do
gênero. Argumentar que o conceito de gênero introduziu o discurso da diferença na teoria feminista (tanto no Brasil
quanto nos Estados Unidos) seria incorrer na metalepse. Em outras palavras, postular a emergência do discurso sobre
a diferença como resultado da intervenção da teoria feminista no texto social ignora o fato de que o movimento
feminista foi o catalisador de um novo pensar sobre as mulheres e sobre as relações de gênero, e não vice-versa. A
heteroglossia incipiente nesses movimentos, refratando as suas diferenças internas, vinham já há algum tempo
contribuindo para o questionamento de posturas essencialistas, especialmente em relação à natureza humana,
masculina ou feminina. No entanto, o uso do gênero possibilitou às feministas explicar, com maior agudeza, as
complexas e fluidas relações e tecnologias de poder. Alguns excessos, contudo, marcaram a tradução e adoção
indiscriminada do conceito.

Leituras genéricas/ Leituras feministas


Embora esteja longe de alegar que o gênero foi uma “influência sinistra” (muito pelo contrário!), quero argumentar que
esta categoria analítica abriu um espaço para alguns gestos de despolitização do feminismo. Tendo em vista que na
academia brasileira tanto a palavra feminismo quanto o termo teorias feministas exalavam um certo radicalismo,
muitas feministas acadêmicas brasileiras adotaram a rubrica “gênero” para descrever suas atividades de pesquisa na
tentativa de reter algum tipo de credibilidade diante da comunidade científica. Um enfoque nos estudos de gênero,
4
em contraste com os estudos feministas, permitiu às acadêmicas alguma parcela de “rigor” e “excelência” (segundo
definições positivistas) nas suas pesquisas e garantiu-lhes um lugar seguro no cânone científico que, por sua vez, não
foi desafiado. No terreno dos estudos de gênero, podia-se estudar a opressão da mulher e as relações desiguais de
poder entre homens e mulheres sem, necessariamente, estar engajada em um projeto político feminista de
transformação social. No suposto terreno neutro do gênero, não havia a necessidade de politizar a teoria e de
teorizar a política.
Para entendermos os fatores contextuais que cercaram a adoção da categoria do gênero no Brasil seria importante
salientar que o feminismo acadêmico brasileiro encontra-se situado na encruzilhada de duas correntes teóricas
bastante distintas. Por um lado, temos um caminho nos leva ao estruturalismo francês, com sua ênfase na
complementaridade, na defesa do ideal de igualdade e na negação da diferença. Por outro, temos a via do pós-
estruturalismo norte-americano e a concomitante questão da alteridade e da politização da diferença.4 Como
Machado (1997) observa, na França as feministas antropólogas, sociólogas e historiadoras não desafiaram o cânone
dessas disciplinas, mas introduziram, a partir do feminismo, novos temas e abordagens analíticas. Nos Estados Unidos,
pelo contrário, as feministas dentro da academia fizeram intervenções mais radicais no cânone e inventaram novas
epistemologias.5
Um dos efeitos dessa mistura particular de tendências teóricas dentro do feminismo acadêmico brasileiro foi que um
grande número de acadêmicas nas ciências sociais (contrastando com seus pares nas humanidades) abraçou
rapidamente o termo “estudos de gênero,” enquanto que na literatura, por exemplo, o significante “mulher” tem se
conservado até hoje (falamos mais de “mulher e literatura” do que “gênero e literatura”). Para o primeiro grupo,
gênero foi percebido como sendo um termo que transmitia mais rigor científico do que estudos da mulher e/ou
estudos feministas. Estudos da mulher eram muito essencialistas e estudos feministas soavam a militância, portanto
careciam da objetividade e da sistematicidade exigidas pela ciência.
Esta controvérsia ilustra de forma significativa um ponto que levantei anteriormente: para analisar as viagens das
teorias, precisamos estimar os limites analíticos e históricos que sobre-determinam a articulação da diferença com as
estruturas sociais assimétricas. Como a própria Scott (1988) colocou, preocupada diante da facilidade com que o
gênero havia entrado na academia, “gender seems to fit within the sicentific terminology of social science and thus
dissociates itself from the (supposedly strident) politics of feminism. (…) It does not carry with it a necessary
statement about inequality or power nor does it name the aggrieved (and hitherto) invisible party” (p. 31).
Outra apropriação problemática do gênero pelo feminismo brasileiro, com efeitos preocupantes para este campo de
estudos, pode ser observada na recente e irregular proliferação de estudos de masculinidades. A lógica da tradução,
neste caso, opera da seguinte maneira: como o gênero é um conceito relacional, as pesquisadoras, encarregadas de
desvendar o funcionamento perverso do sistema de gênero, foram incumbidas com carga mais pesada, pois para
estudar as mulheres também tinham que estudar os homens. Então, segunda a lógica, se quiséssemos coletar
narrativas de mulheres vítimas da violência, tínhamos também que reunir as narrativas dos homens (na maioria, os
perpetradores dessas violências), caso contrário não estaríamos sendo suficientemente científicas.6 Nessa
perspectiva, o gênero ocupava, por assim dizer, o espaço na dicotomia entre o feminino/ masculino, em vez de ser
interpretado como um dos muitos fatores estruturando os sistemas desiguais de poder. Atualmente, esta tendência
nos estudos de gênero encontra-se totalmente consolidada dentro da academia brasileira (e na América Latina como
um todo) a partir dos numerosos estudos de masculinidade, estimulados pelos gordos incentivos financeiros das
agências do governo e das instituições filantrópicas nacionais e internacionais.7
Embora não seja meu propósito condenar todo e qualquer estudo de masculinidades, vejo com preocupação que em
muitos casos esses estudos não se articulam com perspectivas feministas críticas. À guisa de um exemplo, em um
seminário nacional sobre estudos de gênero na minha universidade há alguns anos, um trabalho foi apresentado onde
a autora examinava o olhar dos homens sobre o aborto. Quando ainda não temos suficientes relatos do olhar feminino
sobre o aborto, pareceu-me um pouco precipitado abandonar as narrativas das mulheres para nos dedicarmos à
contemplação das experiências masculinas. Como se não tivesse sido suficiente que as mulheres se tornaram “gênero”
nos anos 80, temo que agora, nos anos 90 em diante, o “gênero” se transforma em masculinidades. Com isso fechamos
o ciclo e voltamos ao ponto de partida, ou seja, à pré-histórica dos estudos feministas.
5
Entretando, devo admitir que nem tudo está perdido com certas traduções do “gênero.” Millie Thayer (1999), em seu
estudo bastante perspicaz sobre as viagens norte-sul do conceito de gênero (de um coletivo de mulheres em Boston
até o SOS Corpo em Recife), expõe como a migração discursiva e as conseqüentes traduções/apropriações ecléticas
do gênero (a partir de especificidades locais) foram bem mais radicais do que qualquer modelo de transmissão
unilateral entre norte e sul poderia supor, iluminando assim a diversidade de forças (por exemplo, financiamentos de
agências de fomento internacionais) e discursos (por exemplo, discursos sobre cidadania e direitos), os quais
complicam infinitamente qualquer movimento conceitual através de fronteiras políticas e epistemológicas.
Seu trabalho mostra como, em vez do gênero se despolitizar a partir da longa caminhada rumo o sul das Américas, no
contexto brasileiro de luta contra a ditadura, ele irá articular-se ao conceito de cidadania. Assim sendo e
extravasando seus limites puramente analíticos, o gênero no SOS Corpo transforma-se em instrumento crucial de
demanda política, em um movimento que vai do corpo (engendrado) ao corpo político. A autora ilustra, então, que o
gênero, um discurso com raízes distantes (nesse caso, no texto de Joan Scott), quando se articula a conceitos com
uma cor mais local em contextos de lutas pela democratização da sociedade, radicaliza-se. Contudo, se por um lado o
tráfego norte-sul das teorias feministas politiza o conceito de gênero, por outro lado barreiras econômicas e
discursivas irão continuar limitando profundamente os deslocamentos e trocas teóricas na direção contrária—sul-
norte. Cabe aos movimentos feministas transnacionais, a autora conclui, abrir espaços que permitam uma maior
horizontalidade nos deslocamentos discursivos visando participação mais simétrica do sul nos fluxos globais das
teorias.

Além do gênero?
O gênero, constituindo-se numa das "propostas mais importantes das teorias feministas" (Flax, 1990), ainda continua
sendo uma base epistemológica frágil por dois motivos: primeiro, como vimos, o conceito se presta a
traduções/apropriações contraditórias (politizadas e despolitizadas); segundo, relatos dos mecanismos através dos
quais nos "tornamos mulher" devem incluir outros modos de constituição do sujeito que excedam oposição entre
masculino e feminino. Como nos lembra Alarcón (1990), em sociedades onde assimetrias de raça e de classe são
princípios organizadores fundamentais, "tornar-se mulher" também inclui relações de oposição a outras mulheres.
Isso quer dizer que a própria categoria "mulher" e as maneiras como esta se constrói precisam ser igualmente
problematizadas e explicadas, e não entendidas como ponto de partida do feminismo.
Para Alarcón, então, se o gênero continuar sendo o conceito central das teorias feministas, a epistemologia irá
aplainar-se de tal forma que perderemos de vista a complexidade dos mecanismos de construção do sujeito e de sua
experiência.
Diante dessas polêmicas, venho propondo uma reavaliação do legado do gênero, principalmente quando esse conceito
se desprende—a partir de suas múltiplas traduções—de um projeto feminista explícito de transformação social
(Costa, 1998). Penso também que essas releituras problemáticas do gênero apontam, de certa forma, para confusões
conceituais sobre as operações do poder.
Foucault já nos mostrou como o sujeito se constitui através da operação de diferentes tipos de poder, lugares de
poder, formações discursivas e esquemas reguladores. Tais poderes, porém, não operam separadamente nem
cumulativamente. É impossível, portanto extrair, por exemplo, o gênero da sexualidade, a masculinidade do
colonialismo, e assim por diante (Brown, 1997). Ainda mais, os sujeitos tornam-se sujeitos na medida em que são
produzidos por essas operações do poder. Para apreendermos, diz Brown, a construção do sujeito a partir das
diferentes formas de sujeição social (classe, sexualidade, raça etc.) é necessário que utilizemos diferentes modelos
de poder. O paradoxo está no fato de que mesmo assim ainda não poderemos dar conta da complexidade desse
sujeito, pois ele é sempre mais que um (excede a soma de suas diferenças) e os modelos de poder que o produzem (por
exemplo, discursos e instituições heterossexuais normativas) não são necessariamente compatíveis uns com os outros.
Finalmente, os aparatos reguladores do sujeito não existem fora dos sujeitos que eles regulam. Não existe primeiro o
gênero e depois o aparato regulador do gênero—o gênero é a materialização daqueles efeitos produzidos pelos
aparatos de poder e por seus discursos reguladores.
6
Creio que para lidarmos com todas essa complexidade no que tange à construção de sujeitos precisamos ir além do
gênero e rumo, seguindo a sugestão de Friedman (1998), a uma geografia da identidade. Isso implica em, primeiro,
vermos a identidade em termos de espaços físicos e discursivos de operações do poder, espaços estes que jamais
estão fixos mas constituem um campo em constante movimento. Segundo, entendermos a identidade fora de qualquer
parâmetro binário. Uma geografia (ou cartografia) da identidade aponta, não para o desdobramento de identidades
centrais ou periféricas seguindo uma lógica linear, mas para o mapeamento de "zonas de contato" e fronteiras
constitutivas de identidades híbridas. Raça, classe, gênero, sexualidade, etc., são lugares de operações do poder e de
materialização de efeitos.
Para Friedman, é dentro dessa perspectiva mais geográfica das identidades que questões como as viagens das teorias
e dos sujeitos, e as questões sobre diáspora, nomadismo e hibridismo cultural—enfim, questões sobre os vários
movimentos de todos os tipos de forças através de espaços físicos e figurativos—adquirem relevância material e
urgência política.

Bibliografia
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1
Ver Asad, 1986.
2
James Clifford (1992) já apontou que, embora as teorias estejam ligadas a um lugar (ou a lugares), este último deveria ser concebido
como uma interseção de vários itinerários os quais, por sua vez, são resultado de diferentes histórias de pertencimento, imigração e
exílio.
3
Trinh, citada em Bulbeck, 1998, p. 207; ênfase no original.
4
Ver Lia Z. Machado (1997) para um tratamento detalhado dessas duas correntes teóricas.
5
Sobre a atuação dentro da academia das feministas norte-americanas existe abundante bibliografia que seria impossível sequer começar
a citar aqui. Para uma breve abordagem dessa questão, ver entrevista com Mary Pratt (1999).
6
Para ilustrar este ponto, ver a resenha do livro de Maria Filomena Gregori, Cenas e Queixas: Um espelho sobre mulheres, relações
violentas e a prática feminista (São Paulo: Paz e Terra, 1992), escrita por Danielle Ardaillon e publicada na Revista Estudos Feministas
v. 1, n. 2, 1993, p. 487-489.
7
Seria interessante aqui, por exemplo, fazer uma análise minuciosa dos projetos aprovados pela Fundação McArthur nos seus concursos
sobre masculinidades: estudo dos temas propostos, da bibliografia citada, das definições utilizadas, das abordagens defendidas para
vermos até que ponto tais estudos expandem os pontos cegos das teorias feministas em relação a homens e masculinidades ou
representam um retorno à ênfase nos homens e numa visão de mundo exclusivamente masculina —ponto de partida das críticas
feministas. Creio que os estudos de masculinidades têm muito a acrescentar enquanto projeto político de transformação social (em
coalizão com o projeto feminista) quando conseguem mostrar a construção de identidades masculinas hegemônicas a partir da
subordinação das mulheres e da exclusão de outras masculinidades (homossexuais e raciais), ligando ambos processos a questões mais
amplas sobre construção de gêneros, de raça, classe, sexualidade, e de nacionalidade, entre outras. Muitos autores, escrevendo sobre
masculinidades a partir de uma ótica progressista, argumentam que a dinâmica central constitutiva da masculinidade hegemônica é a
repressão e exclusão de masculinidades gay. Um desses autores (Fred Pfeil, White Guys: Studies in Postmodern Domination and
Difference. London: Verso, 1995) mostra que nos Estados Unidos, diante do surgimento de subculturas homossexuais, a
heterossexualidade se configurou como característica definidora da masculinidade.

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