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COSTA, Claudia de Lima. O Tráfico Nas Teorias - 2000
COSTA, Claudia de Lima. O Tráfico Nas Teorias - 2000
Além do gênero?
O gênero, constituindo-se numa das "propostas mais importantes das teorias feministas" (Flax, 1990), ainda continua
sendo uma base epistemológica frágil por dois motivos: primeiro, como vimos, o conceito se presta a
traduções/apropriações contraditórias (politizadas e despolitizadas); segundo, relatos dos mecanismos através dos
quais nos "tornamos mulher" devem incluir outros modos de constituição do sujeito que excedam oposição entre
masculino e feminino. Como nos lembra Alarcón (1990), em sociedades onde assimetrias de raça e de classe são
princípios organizadores fundamentais, "tornar-se mulher" também inclui relações de oposição a outras mulheres.
Isso quer dizer que a própria categoria "mulher" e as maneiras como esta se constrói precisam ser igualmente
problematizadas e explicadas, e não entendidas como ponto de partida do feminismo.
Para Alarcón, então, se o gênero continuar sendo o conceito central das teorias feministas, a epistemologia irá
aplainar-se de tal forma que perderemos de vista a complexidade dos mecanismos de construção do sujeito e de sua
experiência.
Diante dessas polêmicas, venho propondo uma reavaliação do legado do gênero, principalmente quando esse conceito
se desprende—a partir de suas múltiplas traduções—de um projeto feminista explícito de transformação social
(Costa, 1998). Penso também que essas releituras problemáticas do gênero apontam, de certa forma, para confusões
conceituais sobre as operações do poder.
Foucault já nos mostrou como o sujeito se constitui através da operação de diferentes tipos de poder, lugares de
poder, formações discursivas e esquemas reguladores. Tais poderes, porém, não operam separadamente nem
cumulativamente. É impossível, portanto extrair, por exemplo, o gênero da sexualidade, a masculinidade do
colonialismo, e assim por diante (Brown, 1997). Ainda mais, os sujeitos tornam-se sujeitos na medida em que são
produzidos por essas operações do poder. Para apreendermos, diz Brown, a construção do sujeito a partir das
diferentes formas de sujeição social (classe, sexualidade, raça etc.) é necessário que utilizemos diferentes modelos
de poder. O paradoxo está no fato de que mesmo assim ainda não poderemos dar conta da complexidade desse
sujeito, pois ele é sempre mais que um (excede a soma de suas diferenças) e os modelos de poder que o produzem (por
exemplo, discursos e instituições heterossexuais normativas) não são necessariamente compatíveis uns com os outros.
Finalmente, os aparatos reguladores do sujeito não existem fora dos sujeitos que eles regulam. Não existe primeiro o
gênero e depois o aparato regulador do gênero—o gênero é a materialização daqueles efeitos produzidos pelos
aparatos de poder e por seus discursos reguladores.
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Creio que para lidarmos com todas essa complexidade no que tange à construção de sujeitos precisamos ir além do
gênero e rumo, seguindo a sugestão de Friedman (1998), a uma geografia da identidade. Isso implica em, primeiro,
vermos a identidade em termos de espaços físicos e discursivos de operações do poder, espaços estes que jamais
estão fixos mas constituem um campo em constante movimento. Segundo, entendermos a identidade fora de qualquer
parâmetro binário. Uma geografia (ou cartografia) da identidade aponta, não para o desdobramento de identidades
centrais ou periféricas seguindo uma lógica linear, mas para o mapeamento de "zonas de contato" e fronteiras
constitutivas de identidades híbridas. Raça, classe, gênero, sexualidade, etc., são lugares de operações do poder e de
materialização de efeitos.
Para Friedman, é dentro dessa perspectiva mais geográfica das identidades que questões como as viagens das teorias
e dos sujeitos, e as questões sobre diáspora, nomadismo e hibridismo cultural—enfim, questões sobre os vários
movimentos de todos os tipos de forças através de espaços físicos e figurativos—adquirem relevância material e
urgência política.
Bibliografia
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7
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1
Ver Asad, 1986.
2
James Clifford (1992) já apontou que, embora as teorias estejam ligadas a um lugar (ou a lugares), este último deveria ser concebido
como uma interseção de vários itinerários os quais, por sua vez, são resultado de diferentes histórias de pertencimento, imigração e
exílio.
3
Trinh, citada em Bulbeck, 1998, p. 207; ênfase no original.
4
Ver Lia Z. Machado (1997) para um tratamento detalhado dessas duas correntes teóricas.
5
Sobre a atuação dentro da academia das feministas norte-americanas existe abundante bibliografia que seria impossível sequer começar
a citar aqui. Para uma breve abordagem dessa questão, ver entrevista com Mary Pratt (1999).
6
Para ilustrar este ponto, ver a resenha do livro de Maria Filomena Gregori, Cenas e Queixas: Um espelho sobre mulheres, relações
violentas e a prática feminista (São Paulo: Paz e Terra, 1992), escrita por Danielle Ardaillon e publicada na Revista Estudos Feministas
v. 1, n. 2, 1993, p. 487-489.
7
Seria interessante aqui, por exemplo, fazer uma análise minuciosa dos projetos aprovados pela Fundação McArthur nos seus concursos
sobre masculinidades: estudo dos temas propostos, da bibliografia citada, das definições utilizadas, das abordagens defendidas para
vermos até que ponto tais estudos expandem os pontos cegos das teorias feministas em relação a homens e masculinidades ou
representam um retorno à ênfase nos homens e numa visão de mundo exclusivamente masculina —ponto de partida das críticas
feministas. Creio que os estudos de masculinidades têm muito a acrescentar enquanto projeto político de transformação social (em
coalizão com o projeto feminista) quando conseguem mostrar a construção de identidades masculinas hegemônicas a partir da
subordinação das mulheres e da exclusão de outras masculinidades (homossexuais e raciais), ligando ambos processos a questões mais
amplas sobre construção de gêneros, de raça, classe, sexualidade, e de nacionalidade, entre outras. Muitos autores, escrevendo sobre
masculinidades a partir de uma ótica progressista, argumentam que a dinâmica central constitutiva da masculinidade hegemônica é a
repressão e exclusão de masculinidades gay. Um desses autores (Fred Pfeil, White Guys: Studies in Postmodern Domination and
Difference. London: Verso, 1995) mostra que nos Estados Unidos, diante do surgimento de subculturas homossexuais, a
heterossexualidade se configurou como característica definidora da masculinidade.