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A ocorrência do fotográfico em Five, de Kiarostami

Antonio Fatorelli

Após realizar Ten, um longa metragem com apenas dois enquadramentos,


Abbas Kiarostami colocou-se o desafio de rodar um novo filme com apenas um único
ponto de vista. Five long takes dedicated to Yasujiro Ozu, de 2004, é o resultado desse
projeto minimalista, que assimila os procedimentos formais do chamado filme
estrutural, praticado por influentes cineastas norte-americanos nas décadas de 1960 e
1970, entre eles Andy Warhol. Uma influência visível na sua videoinstalação Sleepers,
de 2001, composta por um único plano-sequência de noventa e oito minutos, mostrando
a vida íntima de um casal, assumidamente inspirada no filme homônimo de Warhol.
Relativamente à cinematografia de Kiarostami, Five situa-se como um filme
singular devido, também, a uma outra peculiaridade. Ao contrário dos filmes que o
tornaram internacionalmente conhecido, caracterizados por frequentes diálogos e
constantes deslocamentos dos personagens, muitas vezes no interior de automóveis,
mas sempre descortinando novos horizontes, como em Gosto de cereja e Tem, Five é
um filme sem diálogos, onde o áudio ocupa uma função secundária, e cada um dos seus
cinco episódios exibe apenas uma única paisagem, praticamente imutável.
A motivação de Kiarostami ao realizar Five encontra-se expressa no subtítulo
do filme, no tributo ao diretor japonês Ozu. Em especial, a atenção dedicada aos
pequenos acontecimentos cotidianos, o uso de planos longos, carregados de afeto e de
intimidade, e o propósito de filmar uma experiência autêntica, vivenciada e
compartilhada pelos personagens, são algumas das preocupações recorrentes nos filmes
de Ozu, presentes de modo determinante na concepção de Five. O emprego de um
único ponto de vista e de longos planos tem para Kiarostami a finalidade de
proporcionar uma temporalidade distendida, no curso da qual os acontecimentos do
mundo, nas suas pequenas manifestações, ocupam o lugar de protagonistas dessas
narrativas mínimas que a natureza, talvez mais do que qualquer outro objeto ou
qualquer recurso verbal, pode expressar. Dar voz à natureza, apreender suas tendências
latentes, auscultar o murmúrio do universo, esses parecem ser os propósitos do olhar
prolongado sobre o horizonte marinho. Um olhar que demanda tempo, que se processa
no decurso de uma duração, solicitando uma percepção atenta às pequenas mudanças.
Kiarostami delineia esse estado do sensível ao relatar a origem da sua motivação para
realizar esses 5 vídeos: ‘estávamos numa praia de 500 metros e constatei que naquele
espaço aconteciam coisas aparentemente insignificantes, mas que, se fossem
observadas o tempo necessário, espelhavam todo um mundo’ (Kiarostami, 2004: 322).

Fotograma do terceiro vídeo de Five, de Abbas Kiarosmi, 2004

A expressão ‘o tempo necessário’ encontra-se referida à expansão do


hiato entre a percepção recebida e a ação executada e à intensificação da afecção. Por sua
vez, a ideia de que esses pequenos acontecimentos ‘espelhavam todo o mundo’ encerra
uma concepção muito particular de rebatimento universal, em que todas as faces da
matéria encontram-se mutuamente relacionadas. Numa outra passagem, ao comentar o
quinto e último trabalho dessa série, intitulado A lagoa e a lua, Kiarostami nos oferece
uma sugestiva imagem dessa relação de rebatimento,

Não realizei o filme, mas estava ali – pronto para compreender e observar. Por
exemplo, A lagoa e a lua é a descoberta do que existe na natureza. Não
imaginava que a relação entre a lua e os sapos fosse tão rica e articulada. Há um
diálogo entre eles. Não imaginava que os sapos contemplassem a lua. Mas aqui
se vê perfeitamente que ficam olhando para ela e que há uma relação entre eles.
E os sapos têm uma nota precisa, cantam essa nota. É como um concerto. O
primeiro começa, como uma voz de soprano, depois torna-se um dueto, depois
um trio, depois temos uma orquestra, um coro. A relação dos sapos com a lua é
de tal modo que eles criam ou mudam seu canto, dependendo da presença ou
ausência do astro, da existência ou não de nuvens. É uma descoberta, portanto
(Kiarostami, 2004: 322/323).

Duas descobertas articuladas. Inicialmente, por meio de uma observação atenta


ele descobre existirem algo na natureza, a seguir percebe, de modo processual, uma
após a outra, existir nesse acontecimento relações inicialmente insuspeitáveis. Nessas
experiências de natureza afectiva, prevalecem a indiscernibilidade entre o sujeito que
percebe e a coisa percebida, tanto quanto entre as próprias coisas. Essa é
verdadeiramente a expressão de uma percepção mundo, irredutível ao trabalho interior
do sujeito psicológico ou à identificação de uma objetividade material. Irredutível,
portanto, ao mundo anterior à filmagem, uma vez que, como argumenta de modo
incisivo, ‘é no interior da observação que começa a nascer tudo o que acontece’
(Kiarostami, 2004: 322). Fazer o cinema empreender a mesma dinâmica produzida pelo
movimento caótico da variação universal implica num gesto criativo, na descoberta de
relações inaugurais e na opção por determinados recursos expressivos, muito mais do
que na captação passiva de um fenômeno externo, como poderia parecer à primeira
vista. Explicita-se aqui toda a distancia que separa os procedimentos técnicos e
narrativos mobilizados por Kiarostami relativamente aos recursos proporcionados pela
estética das câmeras de vigilância.
A experiência de estar entre enunciada por Kiarostami encontra-se incompatível
com o papel, prepotente e centralizador, comumente atribuído ao diretor de cinema.
Não por acaso, ele identifica-se com uma outra postura, sintonizada com essa condição
de transitividade, marcadamente criativa, chegando a manifestar um entendimento
próprio da noção de direção.

Se conseguirmos parar num lugar e nos concentrar em algo, certamente


encontraremos muitas coisas que não são controláveis, no sentido de estarem sob
a direção de um cineasta. Portanto esse tipo de trabalho pode se aproximar, de
certo modo, da poesia, da pintura, e libertar-se da narração e da direção. Não a
ponto de o autor desaparecer, mas no sentido de que não haverá uma encenação.
Você continua sendo autor, mas se elimina como deus da cena (Kiarostami,
2004: 322).
E, a seguir, em uma passagem sobre o terceiro vídeo da série, acrescenta: ‘não
posso dizer que fiz esse filme, posso dizer que registrei esse filme, pintei essa história.
Mais ou menos como se eu houvesse declamado uma poesia que já estivesse escrita’. O
papel do diretor situa-se nesse lugar instável, entre o abando da posição do demiurgo,
essencialmente impositiva, e a passividade da mera representação. Importante observar
que ao se referir ao modo em como realizou o filme, Kiarostami relaciona essa
atividade à ação de declamar uma poesia, entendida como uma matéria anteriormente
elaboradora e objeto de uma síntese subjetiva produzida por um outro autor. Em
referência aos suplementos proporcionados pela percepção atenta, ou à importância do
papel exercido por outras linguagens, como a poesia, o trabalho do diretor é o de, uma
vez reconhecidas as mediações, religar os acontecimentos, por vezes distantes,
relacionados a uma experiência. Um papel, portanto, essencialmente criativo, de dar
forma visível ao informe, de outro modo inacessível. Percurso que Ishaghpour sublinhou
em seu texto sobre o diretor iraniano, ao anotar que

as realidades simples e escondidas se manifestam em seu ‘aparecer’


mesmo. Não de modo imediato, mas por uma restituição, por uma
reconstrução – portanto, à segunda vista: representa-se o que já foi e não é
mais igual a si mesmo, nem ao que fora da primeira vez (Ishaghpour, 2004:
105).

A função do filme é a de restituir o passado invisível das coisas e dos


acontecimentos, de refazer as suas trajetórias e evidenciar as marcas produzidas no
curso das suas existências, como os vestígios do tempo impressos nesse toco de
madeira abandonado ao sabor do movimento das ondas, no primeiro episódio de Five.
Esse objeto, encontrado ao acaso durante uma caminhada na praia, exibe, nas tramas da
sua superfície rígida, uma analogia com a viscosidade das formas de vida marinha. Um
pedaço de madeira qualquer, deixado à deriva no mar por um longo período apresenta,
para Kiarostami, essas marcas ocasionadas pela passagem do tempo e pode, do mesmo
modo que um ser vivo ou um artefato arqueológico, revelar um percurso vital e
despertar uma memória. E acrescenta:

Esse modo de olhar para as pessoas e objetos é a quintessência dos meus


filmes. Eu tento trazer de volta o significado que alguma coisa já teve e
perdeu. Extrair os valores que estão escondidos nos objetos e expô-los. Para
tanto, olhar atentamente, deixar a imaginação livre. Five é o resultado desse
tipo de olhar (Kiarostami, 2004).

A tecnologia desempenha um papel muito especial, e nada tecnicista, nesse tipo


de cinema que Kiarostami diz ser mais sobre performance, onde o que importa é a
emergência, de modo mais ou menos aleatório, dos pequenos acontecimentos. O
essencial, nesse particular, é a leveza e a portabilidade do equipamento digital, que
‘possibilita trabalhar com um equipe pequena, de duas ou três pessoas, e favorece o
‘registro dessas ocorrências casuais’ (Kiarostami, 2004). Essa relação mais pessoal e
intuitiva com o equipamento permite, também, ‘que nos afastemos da tecnologia e da
indústria do cinema’ (Kiarostami, 2004: 187), dessa indústria do entretenimento que
depende de trucagens e de artifícios cênicos para mobilizar o espectador.
As narrativas mínimas, os enredos fracos, a ausência de clímax, a inexistência
de um trabalho de direção coercitivo, o emprego de equipamentos portáteis, a opção
pela câmera fixa, essas inúmeras opções pela leveza e pela fluidez recorrentes em Five,
guardam a intenção comum de proporcionar ao expectador a possibilidade de
compartilhar a relação sensorial, imaginativa e livre, experimentada pelo diretor, de
modo a que também ele empreenda um trabalho criativo durante a fruição da obra.
Five é o filme mais fotográfico de Kiarostami e, possivelmente, aquele em que
ele vivenciou de modo mais radical esse exercício de liberdade ao longo da filmagem.
Uma liberdade que sempre esteve, na sua concepção, intimamente associada à prática
fotográfica. De fato, as fotografias podem ser criadas de modo solitário, com
equipamentos simples e portáteis, além de não exigirem a montagem da cena e o
trabalho de direção habitualmente demandados pela filmagem. Uma outra singularidade
ocupa lugar central nessa sua concepção sobre a imagem fotográfica: o fato de ela não
precisar contar uma história e, desse modo, conservar o fascínio normalmente
despertado pela imagem. Como assinala,

No cinema, infelizmente, é preciso contar uma história, ao passo que na


fotografia somos mais livres, e uma estrada que se estende em direção a
um certo lugar que não se vê pode abrir-nos um mundo desconhecido.
Esta fotografia não conta uma história, mas deixa-nos a liberdade de
imaginá-la. Ante uma fotografia, o espectador pode fazer a sua própria
viagem (Kiarostami, 2004: 184/185).

A imagem estática aponta para um lugar passível de ser apenas intuído ou


imaginado, enquanto a câmera móvel do cinema se volta, persistentemente, ao
contracampo, sempre de modo a fornecer um sentido ao enigma enunciado. Os
diálogos e os efeitos sonoros reforçam ainda mais a narratividade dos filmes,
produzindo uma totalidade fechada, saturada de significados fixados a priori. Ao
contrário do cinema, que pode contar uma história e aceder a um universal, a
fotografia apresenta-se parcial e precária, mas em virtude mesmo dessas
inconsistências, ela permanece essencialmente aberta à prática e à percepção criativas.
Nesse contraponto com o cinema, o aspecto positivo da fotografia recai exatamente
sobre a sua natureza subtrativa, por oferecer menos e, em vista dessa insuficiência,
proporcionar a expansão das margens de participação do espectador. Kiarostami
sustenta essa comparação em um texto de apresentação de uma das suas exposições
fotográficas,

Por isso, às vezes penso que a fotografia é uma arte mais completa; que
uma fotografia, uma imagem estática, vale muito mais que um filme. O
mistério de uma fotografia permanece em segredo porque é sem sons, não
há nada em seu entorno (Kiarostami, 2004: 185).

Kiarostami pondera que ‘as longas tomadas de Five se aproximam muito de


fotografias’, e são notórias as suas opções técnicas e estéticas no sentido de reduzir o
filme ao frame, de modo a ressaltar as suas características fotográficas. Da fotografia
entendida, portanto, no sentido ampliado, em contato com outras práticas, como o
vídeo e o cinema, perpassada pelos seus recursos particulares, como a suspensão do
movimento contínuo da película e os retardos da imagem. Uma disposição que
Dubois nomeou de ‘fotográfico’, marcada pela ‘variabilidade da imagem foto’
(Dubois, 2009: 89) e, portanto, irredutível à infraestrutura técnica do meio – o filme
ou o equipamento –, e aos seus recursos formais específicos.
A presença ou a ausência de movimento permanece como o ponto de tensão
nesse projeto estético. Sabemos que, nesses cinco episódios, o quadro permanece
praticamente inalterado, comportando transições muito sutis, por vezes,
imperceptíveis. Entretanto, na duração de cada um dos episódios, e de modo bem
distinto das fotografias imóveis, processa-se uma mudança qualitativa que altera
significativamente o sentido do que se vê. Ainda que lenta, tal transformação sutil
encerra o potencial estético da obra, bem como a sua originalidade e, pode-se dizer,
estabelece a marca irredutível desse filme.
Se a força dos filmes de Kiarostami se deve ao modo em como eles se abrem à
participação livre do espectador, podemos ver em Five uma tentativa limiar de
promover, a partir do cinema em direção à fotografia, a sobreposição dessas duas
modalidades de percepção da obra. Tal movimento de convergência se exerce sobre o
ponto de tensão das procedimentos fílmicos, que parecem aspirar à condição de
imobilidade da fotografia, em direção a essa modalidade de olhar penetrante
proporcionado pela imagem fixa.
De outro modo, na sua produção fotográfica, iniciada há mais de trinta anos, e
até hoje frequente, Kiarostami conserva um postura neutra relativamente à linguagem
fotográfica, invariavelmente considerada na sua versão convencional, como nas séries
Roads e Trees in snow, expostas recentemente. Realizadas no curso de longas
caminhadas solitárias, muitas vezes na busca de locações para os seus filmes, essas
fotos são silenciosas e reflexivas.

Abbas Kiarostami. Da série Roads, 1978-2003.

Abbas Kiarostami. Da série Trees in snow, 1978-2003.


As fotografias de Kiarostami exibem uma paisagem com poucos vestígios da
presença do homem. São imagens que resultam do estado de recolhimento do fotógrafo
ao observar demoradamente o mundo ao seu redor. Nessas fotos não há trucagem, nem
qualquer tipo de modificação posterior à tomada, nenhuma interferência que pudesse se
interpor à presença da natureza, na sua grandiosidade e aparente insignificância. É nessa
atitude de recuo do autor, liberado da tarefa de fornecer um significado conclusivo à
imagem, que reside o potencial dessas séries de fotografias, supostamente interdito ao
cinema, cativo da necessidade de contar uma história. A atenção ao espectador e à sua
criatividade ao observar a obra constitui o ponto central das suas análises sobre a
fotografia que, a seu ver, mereceriam ser assimiladas pelo novo cinema.

Como dizia, não suporto o cinema narrativo. Abandono o sala. Quanto mais
se esforça por contar, e quanto mais sucesso tem nisso, maior é minha
resistência. A única maneira de prefigurar um cinema novo reside em um
maior respeito pelo papel desempenhado pelo espectador. É preciso antecipar
um cinema “in-finito” e incompleto, de modo que o espectador possa intervir
para preencher os vazios, as lacunas. A estrutura do flme, em vez de sólida e
impecável, deveria ser enfraquecida, tendo em conta que não se deve deixar
escapar os espectadores! Talvez a solução adequada consista em estimular os
espectadores a uma presença ativa e construtiva. Por isso, estou meditando a
respeito de um cinema que não faça ver. Creio que muitos filmes mostram
demais, e, dessa maneira, perdem o efeito. Estou tentando entender o quanto
se pode fazer ver sem mostrar. Neste tipo de fime, o espectador pode criar as
coisas de acordo com a sua própria experiência, coisas que não vemos, que
não são visíveis (Kiarostami, 2004: 183).

Além da versão para as salas de cinema tradicionais, Five ganhou um formato


para exibição em galerias. Nesses ambientes abertos, o público teve a oportunidade de
entrar e sair livremente no local de projeção, criando um percurso próprio, entrecortado e
fragmentado, a depender das demandas de cada visitante. Uma comportamento que
coincide, em muitos aspectos, com a postura do visitante de uma exposição fotográfica.
Referências bibliográficas

DUBOIS, Philippe. “Sobre o ‘efeito cinema’ nas instalações contemporâneas de


fotografia e vídeo”. Em Katia Maciel (org.), Transcinemas. Rio de Janeiro:
Editora Contra Capa, 2009.
ISHAGHPOUR, Youssef. “O real, cara e coroa”. Em Abbas Kiarostami. São Paulo:
Cosac Naify, 2004.
KIAROSTAMI, Abbas. “Duas ou três coisas que sei de mim” e “Filmografia”. Em
Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

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