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Mídia e Transito

ALGUMAS REFLEXÕES
Ricardo Figueiredo Moretzsohn *
O fenômeno trânsito e transporte têm crescido em grandes
proporções, infelizmente, muitas vezes em direção contrária à
vida e aos direitos humanos. Em diversos países, os problemas
causados pelo trânsito configuram-se na perspectiva do meio
ambiente, impactam na qualidade de vida possível às pessoas e,
não raro, são casos de alarde na saúde pública.

Dados da Organização Mundial de Saúde apontam para cerca de 1


milhão de mortes por ano em todo o mundo, como resultado de
conseqüências geradas pelo trânsito. No Brasil, são mais de 35
mil pessoas sendo vitimadas ano-a-ano, com cerca de 3 mil
crianças em idade escolar. Fora desses dados estão os feridos com
um número próximo de 400 mil pessoas, sendo algumas vítimas
de mutilações permanentes, bruscamente impedidas de levar uma
vida dita “normal”. Além disso, os traumas decorrentes do
trânsito configuram o segundo lugar entre as mortes por “causas
externas” e somam custos da ordem de 5 bilhões de reais a cada
ano, conforme estudos do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada –IPEA, realizados entre 2003 e 2006.

Nesse contexto, destacamos o automóvel que é parte do cotidiano


das questões da mobilidade, estando nas páginas dos jornais, nos
noticiários de televisão e rádios, nas propagandas, nas conversas
de bar, nos filmes e novelas, nos acordos para a construção de
estradas e de obras viárias e na corrupção que pode daí advir; está
presente na disputa pelo dinheiro público para a instalação de
montadoras, nas corridas e nos heróis do automobilismo, nos
acordos trabalhistas das empresas de transporte, nos prazeres da
velocidade, no status e no progresso social de se possuir o modelo
do ano, nas propagandas com crianças já empurrando seus
carrinhos (“ desde pequeno você já sonhava”, diz a propaganda de
uma marca famosa) ou naqueles comerciais que incentivam a se
deixar o transporte público (“se você estivesse aqui, já tinha
chegado lá”, diz outra campanha de veículo conhecido).
Nessas e em tantas outras expressões está presente a eficácia da
cultura do automóvel no modo de vida do brasileiro.

Uma das bem sucedidas práticas dessa cultura é dividir a


mobilidade em vários pedaços, como se fosse possível se ter uma
via totalmente dividida em pedaços para cada modo de
deslocamento (um pedaço para o carro; outro pedaço para o
ônibus; outro, para o pedestre; outro, para a bicicleta) ou mesmo
como se fosse possível à gestão do trânsito ser dividida. Nessa
absurda concepção existe o pressuposto básico de que a função do
Poder Público é de garantir o deslocamento fluído dos veículos, e
não das pessoas. Essa fluidez, que é marca registrada dessa
cultura, tem como base o fato de o ser humano ter de,
necessariamente, se adaptar às necessidades do automóvel.

Para essa adaptação existe um imenso aparato de normas e bases


educacionais que se imiscuem a ensinar a “viver no trânsito”, sem
atrapalhar a sua fluidez. Os espaços vivenciais de trânsito para
crianças, por exemplo, ensinam como se proteger dos automóveis,
e como se portar segundo os ditames da fluidez. Para a eficácia
dessa fluidez, já sabemos todos os números assustadores de
mortes e de sequelados.

Historicamente, a modernidade trouxe para a população uma das


experiências mais inovadoras, tanto física como psicologicamente
- a experiência da velocidade, onde as distâncias passaram a ser
percorridas com maior rapidez. É o que alguns autores chamam
de fenômeno da “movimentação humana”, onde os deslocamentos
espaço-temporais impactam nos sujeitos, provocando a sensação
do transitório, do lugar instável, do não lugar.

Subjetivamente, essa sensação vai sendo incorporada de forma


singular em cada indivíduo, e isso gera conflitos no ambiente do
trânsito, mero lugar de passagem. E o que temos, o que vivemos,
são situações em trânsito, segregadas umas das outras em
ambientes que estratificam, que excluem. Vamos nos deslocando,
em movimento, sem nos darmos conta da deformação do espaço
pela ideologia da velocidade.
Vivemos hoje o tempo da rapidez que, do ponto de vista
capitalista, se traduz em eficiência e onde parece que as coisas são
boas quando são rápidas. Entretanto, essa relação prazerosa com a
velocidade nos cobra um preço que provoca um empuxo à
posição narcísica, com rasgos fantasiosos de poder, triunfo e
onipotência.

Já é sabido que a velocidade é um dos principais fatores


envolvidos nos acidentes de trânsito. Mesmo não sendo a única,
dentre as inúmeras causas que contribuem para o acidente, ela
potencializa os danos advindos dos demais fatores que estejam
envolvidos nos desastres.
Há muito tempo que a expertise da publicidade sabe dos “prazeres
da velocidade” e, de forma eficaz, tem produzido e veiculado
vários anúncios que seduzem, aliciam e manipulam corações e
mentes ao associar automóveis velozes à virilidade e à potência,
engendrando influências poderosas na formação de valores e no
comportamento de motoristas.

Em regra, a grande maioria das peças publicitárias, ao enfatizarem


a velocidade para vender seus carros, associam-na com os
aspectos agressivos da natureza humana. Assim, nos deparamos
com um discurso publicitário repleto de alusões às transgressões,
rivalidade, desrespeito, conflitos, banalização dos aspectos de
segurança, dentre outros.

Curiosamente, tal discurso transita livremente pelos diversos


veículos de mídia sem serem importunados, a despeito de códigos
legais existentes no Brasil. O Código de Trânsito Brasileiro
(CTB) determina que a velocidade máxima permitida aos veículos
no país não pode ultrapassar o limite de 120 quilômetros. Existe
também o Código de Defesa do Consumidor (CDC) que faz
menções acerca da publicidade onde está incluída a de
automóveis. Abaixo, a transcrição do seu teor:
Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou
abusiva.
§ 1° É enganosa qualquer modalidade de
informação ou comunicação de caráter
publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por
qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz
de induzir em erro o consumidor a respeito da
natureza, características, qualidade, quantidade,
propriedades, origem, preço e quaisquer outros
dados sobre produtos e serviços.
§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade
discriminatória de qualquer natureza, a que incite
à violência, explore o medo ou a superstição, se
aproveite da deficiência de julgamento e
experiência da criança, desrespeita valores
ambientais, ou que seja capaz de induzir o
consumidor a se comportar de forma prejudicial
ou perigosa à sua saúde ou segurança.
§ 3° Para os efeitos deste código, a
publicidade é enganosa por omissão quando
deixar de informar sobre dado essencial do
produto ou serviço.

Assim, fica claro que, ao fazer a elegia da velocidade do


automóvel, a publicidade afronta esses dispositivos legais sem
que haja sanções para tais infrações.

Além dos códigos legais, existe no país uma regulamentação


privada da publicidade que vem a ser a do Conselho Nacional de
Auto-Regulamentação Publicitária (CONAR). Trata-se de
entidade do mercado publicitário e conforme a auto-apresentação
publicitária que o próprio Conar faz de si ele é ‘um órgão criado
por agências, anunciantes e veículos para zelar pelos limites
éticos da comunicação comercial’.
Ela se orienta pelo seu Código Brasileiro de Auto-
Regulamentação Publicitária onde no anexo “O” do mesmo
encontram-se algumas normas que dizem respeito à publicidade
de veículos motorizados, conforme se pode observar abaixo:

Na propaganda de automóveis, caminhões, ônibus


e tratores:
1. Não se permitirá a divulgação de dados de
desempenho que correspondam a condições de
uso atípicas para a maioria dos Consumidores – a
não ser quando tais condições forem claramente
especificadas.
2. Não se permitirá que o anúncio contenha
sugestões de utilização do veículo que possam
pôr em risco a segurança pessoal do usuário e de
terceiros, tais como ultrapassagens não
permitidas em estradas, excesso de velocidade,
não utilização de acessórios de segurança,
desrespeito à sinalização, desrespeito aos
pedestres e às normas de trânsito de uma forma
geral.
3. Também não serão permitidos anúncios que
induzam o usuário a desrespeitar, quando na
direção de veículos motorizados, as regras de
silêncio e de higiene das vias públicas, bem como
do respeito aos recursos naturais e ecológicos
quando em viagem.
4. Os anúncios não deverão induzir a erro quanto
às características específicas do veículo, tais
como consumo, velocidade, desempenho, conforto
e segurança.
Como se observa, o item 2, do anexo “O”, não deixa dúvidas
sobre o limite permitido aos anúncios de veículos motorizados.
Mesmo assim, a maior parte dos anúncios de venda dos
automóveis continua sendo abusiva, apesar de desrespeitarem
essas regras que são do próprio mercado publicitário. E por que o
Conar, que deve zelar pelos seus estatutos, não toma maiores
providências? Porque o Conar não visa proteger o consumidor,
pois ele existe para proteger a credibilidade do discurso
publicitário! Ele só protege a publicidade da má publicidade e o
seu interesse fundamental é fortalecer o mercado anunciante e,
para isso, ele sabe que a credibilidade é crucial.

Assim, por não contar com o órgão privado que deveria zelar
pelos excessos da publicidade e nem com a proteção do Estado, a
população brasileira continua a ser assediada por anúncios de
automóveis abusivos que prestam um enorme desserviço à
cidadania. De que adianta o governo, através dos seus órgãos
competentes, veicularem campanhas institucionais de respeito ao
trânsito se eles não conseguem fazer frente à sofisticação técnica,
aos apelos narcísicos e aos conteúdos sedutores da alta velocidade
nos anúncios de automóveis? Como lidar com essa situação se
não há sanções pelo desrespeito às leis? Talvez a questão das
bebidas alcoólicas possa ser uma pista para o entendimento dessa
falta de sanções.

O país, hoje, tem uma lei de combate ao uso de álcool pelos


motoristas. Ela é de tolerância zero para todos aqueles que são
flagrados sob os efeitos de álcool conduzindo veículos
motorizados. Existe também outra lei sobre a publicidade de
bebidas alcoólicas determinando que aquelas acima de 13 graus gl
não podem ser veiculadas em anúncios na mídia, entre as 7 e 21
horas.
Aparentemente são duas leis positivas para a sociedade e que se
complementam. Mas, infelizmente, não é esse o caso! A lei sobre
a publicidade de bebidas alcoólicas não contempla as cervejas, os
vinhos e as chamadas bebidas “ice” por seu teor alcoólico ser
abaixo dos 13 graus. Esta lei só foi aprovada depois que o
poderoso lobby da indústria cervejeira conseguiu não ter seu
produto enquadrado nas normas restritivas das demais bebidas.
Sendo assim, temos uma situação esdrúxula: um motorista que
bebe algo em torno de três latas de cerveja será detido pelo
bafômetro policial numa eventual blitz. Então por que esta mesma
cerveja não é considerada bebida alcoólica para efeitos da
publicidade? Tal situação de legislações contraditórias cria um nó
e permite que a propaganda de cervejas continue a deitar e rolar.
Infelizmente, como no caso das bebidas, a contradição parece ser
a tônica do governo frente à publicidade abusiva de automóveis!

Por isso, se faz necessário trabalhar e envidar esforços por uma


moção, uma resolução ou uma diretriz que denuncie os aspectos
transgressores, problemáticos e perversos contidos na publicidade
de automóveis para serem apresentadas à apreciação da
Conferência Nacional de Comunicação.

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(*) Psicólogo, foi conselheiro do CFP. Ex-membro titular da Câmara de Saúde e Meio
Ambiente, do CONTRAN por duas gestões consecutivas, representando o CFP. Foi
conselheiro - titular do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional,
representando a sociedade civil. Atual integrante do Comitê Executivo do Movimento
Nacional Pela Democratização do Trânsito (MNDT)

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