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Um caminho sem retorno: o trauma de Belo Monte

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

No seu belo livro, Estar vivo, o antropólogo Tim Ingold define de forma
extraordinária o que entende por atenção. Ele diz: “Estar atento significa estar
vivo para o mundo” 1. É ao longo da vida que vamos tecendo nossas trilhas e
delineando o mundo vital. Para isso, o que há de mais fundamental são nossas
relações. Elas também compões o ritmo e a alegria da nossa vida. Nesse
itinerário de construção identitária, o habitar encontra um lugar decisivo. Para
Tim Ingold, habitar é um verbo intransitivo, algo que “concerne à maneira como
os habitantes, isolados e em conjunto, produzem as suas próprias vidas” 2. Na
visão desse antropólogo, com base em Heidegger, o habitar é o modo como os
seres ganham inserção no mundo. Só na medida em que somos capazes de
habitar é que podemos construir. Antes de pensar em qualquer empreendimento
de construção é necessário verificar as condições que favoreçam
verdadeiramente o habitar.
Não é, infelizmente, o que ocorreu no processo de instalação da
hidrelétrica de Belo Monte, construída na bacia do rio Xingú. Ontem à noite, dia
07 de novembro de 2018, assisti com lágrimas nos olhos o esplêndido
documentário dirigido por Eliane Brum: Eu + 1 3 , de 2017. Foi um
empreendimento magnífico, envolvendo um grupo de voluntários da área de
psicologia com o único objetivo de escutar os “refugiados de Belo Monte”, ou seja
as pessoas que foram desalojadas de suas casas e instaladas na periferia de
Altamira, em condições precárias de existência. O projeto ganhou um nome
singular, “Clínica de Cuidado”, e só ganhou vida pela ação voluntária da ajuda de
1.305 pessoas que apoiaram sua realização. O documentário, nas palavras de
Eliane Brum, “percorre um delicado itinerário pela experiência singular de cada
voluntário, faz uma expedição íntima por desejos e percepções durante a atuação no
território”. O objetivo do trabalho foi criar um espaço de discussão sobre o que Belo
Monte significa, e o que ele provocou nas pessoas ribeirinhas. Um documentário para
ser compartilhado e debatido nos mais variados espaços: “na casa, na sala de aula, na
associação comunitária, no boteco da esquina”.

O documentário foi dedicado a João Pereira da Silva, tendo nascido a


partir de sua voz, de sua dor. Ele talvez seja a expressão mais viva das
consequências de Belo Monte. No dia 04 de setembro de 2015 ele convocou sua
família e anunciou que iria se matar na ilha queimada, sendo impedido por sua
mulher, Raimunda. Ele dizia: “Quero que o mundo saiba que Belo Monte me
matou”. No último dia de agosto de 2015, sua casa tinha sido incendiada pela
Norte Energia, uma das empresas responsáveis pelo empreendimento. Quando
Raimunda foi buscar seus pertences na casa, o que encontrou foram cinzas. Daí
em diante começou o calvário da família, como de outras tantas. Em sua dor ela

1 Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes,
2011, p. 13.
2 Ibidem, p. 34
3 Documentário Eu + 1: https://www.youtube.com/watch?v=IG_DdW4znCE

1
dizia para o técnico da Norte Energia: “Na sua linguagem ela pode ser tudo isso
aí, moço. Mas, na minha, é minha casa. E eu me sentia bem nela”. Tudo está
devidamente registrado no artigo de Eliane Brum, publicado em 10 de maio de
2016 em coluna do Jornal El País4.

A hidrelétrica de Belo Monte, nomeada na região como “Belo Golpe”, vem


apresentada como a quarta maior hidrelétrica do mundo, com 11.233 megawatts
de capacidade instalada. É um “monstro” no meio da região. Como diz Eliane
Brum,

“o que o governo costuma esquecer de citar é que, na temporada de seca do


Xingu, a produção de energia baixa drasticamente. Assim, na média, Belo Monte
vi produzir de fato 4.571 megawatts, o que a coloca como uma das hidrelétricas
menos produtivas na relação entre a capacidade instalada e energia firme” 5.

Para os que denunciam o massacre, o Partido dos Trabalhadores


consumou na verdade o “rompimento do Estado de Direito”, realizando o que o
governo militar não conseguiu durante a ditatura instalada no país. No dia 05 de
maio de 2015, data de inauguração de Belo Monte, era o dia em que João da Silva
completava 64 anos. Nas palavras de Dilma, era o tempo da chegada do
progresso na região:

“Com Belo Monte nós não levamos só energia para o resto do Brasil. Criamos
aqui uma riqueza única, que é colocar a disposição das empresas que quiserem
vir aqui, colocar o seu negócio aqui, participar desse estado que tem grandes
reservas minerais, grande potencial agrícola, podem vir aqui, porque não vai
faltar energia” 6.

Em outro artigo de Eliane Brum, de 14 de setembro de 2015 7, ela relata a


dor da maior liderança popular do Xingu, Antonia Melo, também arrancada de
seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte. A história relatada por Eliane Brum é
mesmo dramática e revoltante. Delineia como Antonia Melo foi “encurralada”
por essa obra brutal. Essa mulher guerreira “estava ali, sitiada, testemunhando o
mundo que ajudou a construir ser violado e convertido num cenário de Faixa da
Gaza” 8. Assim como sua família, outras tantas foram “cuspidas de seus lares pela
hidrelétrica” naquele tenebroso setembro de 2015. E dizia Antonia Melo:

“Dinheiro nenhum paga uma casa (...). Aqui é o lugar que eu escolhi para morar,
criei meus filhos. A maioria deles nasceu aqui e já estão crescendo aqui. Então,
indenização nenhuma paga a casa de uma pessoa. A casa que eu vou comprar
com esse dinheiro nunca será a minha casa. Uma casa é como plantar uma
árvore. As raízes vão profundamente embaixo da terra, lá embaixo elas se
agarram, para que o vento, vendaval, tempestade, e até mesmo uma alagaçãoo,
não a derrubem”.

4 E o título da Coluna: Dilma compôs seu réquiem em Belo Monte:


https://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/09/opinion/1462804348_582272.html.
5 Ibidem.
6 Ibidem.
7 No artigo: O dia em que a casa foi expulsa da casa:

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/14/opinion/1442235958_647873.html.
8 Ibidem.

2
Antonia Melo foi indenizada, outra famílias não, porque suas casas não
eram consideradas casas, pois não atendiam ao padrão estabelecido pelo
empreendedor como “moradia”. No rosto de Antonia, a dor de um povo...
Roubaram parte de seus sonhos mais bonitos. E chora sua mágoa: “Eu não me
sinto bem quando eu vou ao rio, vejo o que está acontecendo, as ilhas
derrubadas. Não. A minha casa é tudo isso. Era, o rio livre. As ilhas lindas, verdes.
Para mim, é tudo ligado. É uma tristeza só”. E continua: “Aqui eu construí, é uma
pertença muito grande. As mãos, a cabeça... o pensamento está todo aqui. É a
pertença” 9.

Essa liderança da região é conhecida como “a maior árvore do Xingu”, por


sua força e por sua raça. Seu sofrimento dava continuidade a tantos outros, como
o de sua companheira de luta, Dema, ou mesmo a irmã Dorothy Stang, que
tombaram em razão de uma luta em favor da floresta e do rio. Antônia também
entrou na lista obscura dos ameaçados de morte em razão dos conflitos de terra
na Amazônia. E resistiu, com apoio precioso de amigos como o então bispo de
Xingu Dom Erwin Kräutler, também tão ameaçado: por mais de uma década,
enquanto era bispo efetivo, tinha que andar com escolta policial.

Em seu artigo, Eliana Brum assinala que a violência ganhou lugar na vida
de Antônia, e não podia ser simplesmente simbolizada, pois “virou uma
literalidade que perfurou o coração de uma mulher que a tudo havia resistido”.
Como diz Eliane, “O desencontro entre Brasis tornou-se trágico no processo de
expulsão das famílias de Belo Monte. A empresa concessionária, a Norte Energia,
e o governo federal preferem dar a essa ação o nome técnico de remoção” 10. O
que houve, na verdade, foi violência e devastação. Com empenho, força e decisão,
Antonia conseguiu resistir. Dizia:

“Cada vez que eu olho o que eles estão fazendo, destruindo as casas, destruindo
o rio, destruindo as vidas, mais eu me fortaleço nessa resistência, mais eu crio
coragem e forças para dizer ´não` e continuar resistindo. Para mim, Belo Monte
não é fato consumado. Eu luto contra esse modelo de destruição e morte de
gerar energia, luto contra esse modelo chamado desenvolvimento. Belo Monte é
um crime contra a humanidade” 11.

Antônia relata o fatídico dia de encontro com a então ministra de Minas e


Energia, ainda no primeiro mandato de Lula, quando testemunhou o gesto
decisivo de Dilma Rousself em favor da nova usina. Ela, Antônia, estava no
grupos de lideranças que viajou para Brasília negociar com o governo. Assim que
expôs suas preocupações, recebeu como resposta o gesto inusitada da então
ministra: “Dilma interrompeu-a com um murro na mesa. E um berro: ´Belo
Monte vai sair`”. Em seguida, Dilma “levantou-se, deu as costas a todos e foi
embora” 12.

9 Ibidem.
10 Ibidem.
11 Ibidem.
12 Ibidem.

3
E o projeto ganhou corpo e história. Como assinala Brum, “mais de uma
década depois, Belo Monte é um monstrengo alienígena esmagando o Xingu com
suas patas de concreto, aniquilando milhares de vidas humanas, animais e
vegetais” 13. Em livro emocionante sobre o grito da Amazônia, Dom Erwin
Kräutler também destaca em capítulo a longa história de violência que
acompanhou o nascimento de Belo Monte 14. Dizia ao final do capítulo:

“A quem interessa Belo Monte? Ao Brasil? Será que melhorará o teor de vida dos
habitantes do Pará, do Xingu, dos cidadãos de Altamira, de Vitória do Xingu, de
Souzel, de Anapu, da Transamazônica, do Baixo Xingu? A energia, a quem será
destinada? Sabemos todos que mais uma vez beneficiará as multinacionais que
vivem às custas do Brasil, com todas as vantagens fiscais e as facilidades
energéticas” 15.

E agora estamos vivendo um outro e mais assombroso momento, com a


entrada em cena de Jair Bolsonaro. A situação que se anuncia é muito mais
dolorosa e desastrosa. Estamos diante de um risco ainda mais aniquilador: da
entrega da Amazônia, como expressou também Eliane Brum em outro artigo no
Jornal El País 16. Como mostra Brum,

“esse projeto de usurpação das terras da União tem avançado de várias maneiras
ao longo dos últimos anos, inclusive com o apoio de setores do PT. O governo de
Dilma Rousself já tinha intensificado a aproximação com os ruralistas iniciada no
governo Lula. Figuras como Katia Abreu e Gleisi Hoffmann foram decisivas para
o desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (Funai). Não é permitido
esquecer que até 2016, quando foi afastada por impeachment sem fundamento,
Dilma foi a presidente que menos tinha demarcado terras indígenas” 17.

O futuro que se anuncia para a Amazônia com Bolsonaro é terrível. Como


indica o monitoramento divulgado pelo Instituto Socioambiental, neste ano de
2018, só na Bacia do Xingu foram cortadas 150 milhões de árvores. A floresta
amazônica chega ao final deste ano com um desmatamento de 20%, correndo um
grave risco de chegar a um ponto irrevogável de inflexão, caso o desmatamento
ultrapasse os 25%. As mudanças seriam desastrosas, com efeitos perversos
sobre a biodiversidade. E Bolsonaro já prepara as condições para se tornar um
agente perverso do antropoceno, com uma atuação que ameaça não apenas ao
Brasil, mas a todo o planeta.

13 Ibidem.
14 Erwin Kräutler. Ho udito il grito dell´Amazzonia. Diritti umani e creato. La mia lotta di vescovo.
Bologna: EMI, 2015 (com prefácio de Leonardo Boff). O livro tinha saído antes no Brasil: Servo de
Cristo Jesus. Dom Erwin Kräutler. Memórias de luta e espera. São Paulo: Paulinas, 2009
(organizado por Paulo Suess).
15 Erwin Kräutler. Ho udito il grito dell´Amazzonia, p. 133-134.
16 Em sua coluna regular: “Bolsonaro quer entregar a Amazônia”. El País, 07 de novembro de

2018: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/07/politica/1541597534_734796.html.
17 Ibidem. Tema também desenvolvido em outro artigo, de 18 de outubro de 2018, “Bolsonaro é

uma ameaça ao planeta”:


https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/17/opinion/1539799897_917536.html.

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