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JORGE PINHEIRO

Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor


de Teologia e História na Graduação e no Mestrado da Faculdade Teológica Batista de São
Paulo.

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Darwin e sua presença na teologia


Jorge Pinheiro*

“A linguagem humana é profunda como o mar,

e as palavras dos sábios são como os rios que nunca secam”

(Provérbios 18.4).

Charles Darwin continua polêmico duzentos anos após seu nascimento e cento e cinqüenta
anos depois da publicação de A Origem das Espécies. O medo que teólogos no correr
desses cento e cinqüenta anos tiveram de Darwin nos leva a esta pequena reflexão sobre o
assunto. Serei breve, não pretendo, nem acho possível esgotar o assunto, desejo apenas
apresentá-lo. Creio que o medo referido é mantido por tradição baseada mais em
desconhecimento do que em fatos.

É importante entender que Darwin sempre conviveu com o cristianismo inglês, o


anglicanismo. Nosso cientista nasceu durante as guerras napoleônicas, quando os
conservadores governaram em estreita associação com a igreja. Embora o alto clero tenha
adotado uma postura que se aproximava em muito do fundamentalismo, a família de
Darwin procurou não se afastar de sua tradição iluminista, quando os não-conformistas
levantavam a bandeira da “unidade sem uniformidade”. Assim Darwin, seguindo uma
tradição escandalosa para o anglicanismo oficial da época, se posicionou no campo do
unitarianismo, que prega a unidade absoluta de Deus, a liberdade de cada pessoa para
buscar a verdade e a espiritualidade sem a necessidade de dogmas ou instituições, como
fizera um de seus avós, Erasmus, que era livre-pensador. Aliás, Charles foi batizado numa
capela unitarista. Quando sua mãe faleceu, ele tinha oito anos e foi estudar em Shrewsbury
School, uma escola pública sob administração da igreja anglicana.

O pai de Charles, Robert Darwin, era médico e livre pensador como Erasmus. Quando a
família constatou que Charles não pretendia fazer medicina, como o pai, sugeriu que
seguisse a carreira eclesiástica. Mais tarde, Darwin escreveu: "Gostei da idéia de ser pastor
no interior. Passei a ler com atenção o Credo de Pearson e livros sobre Deus. E como não
tinha a menor dúvida sobre a verdade absoluta e literal de cada palavra da Bíblia, logo me
convenci de que os nossos princípios deveriam ser aceitos integralmente”. E, assim, foi
matriculado no Christ's College Cambridge para o bacharelado em Artes exigido.

Mas, por obra do destino (ops!), ele freqüentava as aulas de história natural ministradas
pelo pastor John Stevens Henslow, que também era professor de teologia. E passou a ler os
textos de outro pastor, William Paley, que trabalhava Filosofia Moral e Política e dava
umas aulas muito criativas sobre As Evidências do Cristianismo. Darwin escreveu que
apreciava tanto os textos de Paley que poderia expor todos seus argumentos, embora não
com a mesma precisão. Disse que gostou tanto do livro A Teologia natural, obra maior de
Paley, que era quase capaz de recitá-lo de memória.

Depois de ter sido aprovado nos exames de teologia, Charles não abandonou a Teologia
Natural de Paley, que apresentava provas da existência de Deus recorrendo à complexidade
dos seres vivos, que foram colocados num mundo organizado e feliz, conforme escolha e
finalidade definidas pelo Criador. E foi assim que Charles começou a se interessar pela
ciência. E tal escolha aconteceu num momento em que Cambridge recebia a visita de dois
missionários que nadavam contra a corrente, Richard Carlile e Robert Taylor. Aliás, Taylor,
“o capelão do Diabo”, já tinha, inclusive, sido preso por blasfêmia. A presença dos dois e
suas posturas não-conformistas geraram tumultos e ambos foram expulsos de Cambridge.
Essas surumbambas fizeram Charles repensar sua escolha.

A teologia deu lugar à ciência. E a viagem na expedição do Beagle foi um acontecimento


benfazejo. Quando retornou à Inglaterra e desenvolveu a teoria da seleção natural, então
sim, começou a entrar em conflito com o argumento teleológico que marcara seus estudos
teológicos.

A morte esteve presente na vida de Darwin: pensou sobre ela e sua leitura cristã e acabou
por considerar a construção da fé produto e desenvolvimento da própria sociedade. Mas, foi
com a morte da filha Annie que se afastou da crença em um Deus bom, deixando o
cristianismo de lado, embora não tenha rompido formalmente com sua igreja local:
continuou a ajudar financeiramente suas ações sociais e missionárias. Aos domingos, no
entanto, preferia sair para caminhar, enquanto a família ia aos cultos. É interessante notar
que quando escreveu A Origem das Espécies ainda era teísta: acreditava na existência de
Deus como causa primeira.

Foi no final da vida que Darwin passou a questionar a religião como avalista da ciência.
Disse que a ciência não pertence a Cristo e que o hábito da investigação científica faz um
homem sábio quando busca e admite o óbvio. Disse não crer que houvesse sempre
revelação, embora sobre a futura vida, caberia a cada um julgar por si próprio entre
probabilidades vagas e contraditórias. Nunca afirmou ser ateu, preferia ser visto como
agnóstico.

Caso convidássemos Darwin para uma conversa tranqüila, e se isso fosse viável hoje, muito
possivelmente nos contasse que não tinha ouvido para música a ponto de questionar como
poderia tirar algum prazer dessa arte. Ou dizer como, em um período em que colecionava
besouros, tendo encontrado dois deles segurou um em cada mão. Mas eis que um terceiro
aparece! Então, sem pensar, coloca um deles na boca para liberar uma das mãos. O inseto
libera um líquido que queima sua língua e como resultado dois besouros se perdem.

História simples, quase sem importância, uma bobagem, mas serve para situar o homem.
Alguém que não teve vergonha de incluir estes detalhes em suas memórias.

Às vezes, um de meus estudantes, querendo se fazer apologista, diz em sala de aula: “Não
concordo que viemos dos macacos!” Bem, quem quiser atacar a teoria de Darwin, que
ataque, não ficarei no caminho. Mas descartar ou abominar o que não se conhece é base
segura para o fundamentalismo, para o preconceito, para a violência. Ainda hoje, mesmo na
Europa e nos Estados Unidos, a teoria da evolução só é bem aceita em meios científicos.
Mas muito possivelmente as reservas por parte da população possam ser explicadas pelos
equívocos e folclores atribuídos a Darwin, como a afirmação prematura de meu aluno em
sala de aula. De todas as maneiras, sabemos como é difícil para a fé simples aceitar que o
ser humano visto enquanto elemento de um ecossistema não é autônomo e independente em
relação às outras espécies.

Mas voltemos aos equívocos e folclores. Um exemplo de equívoco é o chamado


“darwinismo social", que afirma existir raças superiores e raças inferiores. O que foi
amplamente utilizado pelo nazismo. Darwin não defendeu tais idéias. Ao contrário, quando
deixou o Brasil disse que não voltaria mais a um país escravagista. Já folclore é a idéia
linear da evolução, presente naqueles desenhos de um macaco de quatro, outro semi-ereto
na frente e, por último, o homo sapiens. De acordo com Darwin, o homo sapiens não veio
do macaco, mas de um ancestral comum tanto ao homo sapiens como aos macacos. E, mais
ainda, não há uma espécie menos evoluída e outra mais evoluída: todas emergem como
ramificações da vida que se espraia.

Assim, Darwin nos apresenta a probabilidade de termos um antepassado comum com os


macacos, que não era homem e não era macaco, ao menos não como os conhecemos hoje.
Este antepassado, por sua vez, provavelmente tinha antepassados comuns com vários
mamíferos de seu tempo e assim por diante.

Mas alguém que vê sua fé ameaçada pela teoria da evolução poderia dizer: “Mas dá na
mesma, a alternativa é ainda mais primitiva!”. É verdade. Por isso, eu diria ao estudante de
religião: tão primitiva quanto os vários estágios do processo da produção de um vaso. Neste
caso partimos de terra, moldamos até obter a forma desejada, deixamos secar, levamos ao
forno, e por aí vai. É algo que não sei fazer, mas admiro os que sabem. É uma arte. Se eu
disser que acredito que exista a etapa da modelagem da argila ninguém me acusaria de não
acreditar que o oleiro fez o vaso. Se eu for em frente com a metáfora do vaso posso dizer
que ambos são fruto de um processo de criação. É certo que Darwin não disse isso, nem
pensava assim. Estou apenas construindo pontes.

No livro dos princípios, o de Gênesis, os períodos de tempo nomeados normalmente são


traduzidos como dias, mas podem ser qualquer unidade de tempo, yom ou eras como
aparece no hebraico. Quanto tempo é uma era? Pode ser muito tempo. Talvez tempo
bastante para o surgimento dos primeiros pedacinhos unicelulares de vida através de
variações genéticas e seleção natural, equivalentes ao processo de modelagem dos animais,
do vaso-humano, da vida neste planeta. Esta opinião pode ser questionada, como tudo sob o
sol. É perfeitamente possível questionar Darwin. Ele mesmo questionava suas descobertas
o tempo todo. Mas, podemos crer no oleiro, na existência do vaso e em sua modelagem.

O evolucionismo cristão

A origem das espécies de Darwin levou a teologia a repensar o surgimento do universo e do


ser humano. E quem fez essa caminhada inusitada e criativa foi o jesuíta Pierre Teilhard de
Chardin, precursor do evolucionismo cristão: cientista e teólogo proibido pela igreja. Só
depois da morte, em 1955, aos poucos suas pesquisas e produção saíram do ostracismo.
Hoje é leitura obrigatória quando em teologia se discute cristianismo e evolução.

Assim, as discussões sobre a origem da vida continuam a gerar polêmicas, principalmente


porque leitores tomam o relato de Gênesis, em seus três primeiros capítulos, como
literalidade absoluta. Por isso, as idéias de Darwin causam tanto desconforto hoje como
quanto em 1858, quando apresentou a teoria da evolução à comunidade científica.

Quase setenta anos depois daquele desconforto, em 1926, Teilhard de Chardin, com 45
anos de idade, vivendo e trabalhando como paleontólogo em Tientsin, na China, escreveu à
sua prima Margueritte Chambom. Disse que estava decidido a relatar o mais simplesmente
possível a experiência ascética e mística que vivia e ensinava. Mas não pretendo abandonar
o rigor do cristianismo. Queria, antes que nada, ir adiante.

Na época de Darwin, outra leitura sobre a origem da vida, defendida pelo pastor William
Paley, ganhara força: dizia que a adaptação dos organismos vivos era fruto de um projeto
inicial, de um desenho inteligente. Mas, como vimos, Darwin rompeu com as idéias de
Paley e partiu uma hipótese radical: os seres vivos se desenvolveram a partir de mudanças
aleatórias e as particularidades do humano se deram por razões adaptativas.

Para Chardin, ir adiante era uma postura de paleontólogo. Mas ele não era só um
paleontólogo, era teólogo e místico. Assim, ir à frente significava que arriscaria tornar-se o
Darwin da teologia. E em Tientsin, onde a Companhia de Jesus acabara de abrir um
instituto de estudos superiores e para onde foi mandado numa espécie de exílio, pois lá suas
idéias não repercutiriam, mergulhou em pesquisas de campo e produção teórica.

É interessante ver que as oposições que Darwin e Chardin enfrentaram foram semelhantes.
A Companhia de Jesus sem desejar colocou Chardin no lugar certo, pois em Tientsin
estavam sendo realizadas escavações e expedições paleontológicas. De 1923 a 1946, ele
permaneceu lá. E não se afastou de suas pesquisas. Aprofundou-se na ciência, a procura de
um novo pensar teológico. E foi assim que surgiu sua principal obra: O fenômeno humano
(1955), onde apresentou os conceitos que passaram a balizar o evolucionismo cristão. Mas
escreveu também outros trabalhos importantes: O coração da matéria (1950), O surgimento
do homem (1956), O lugar do homem na natureza (1956), O meio divino (1957), O futuro
do homem (1959), A energia humana (1962), Ciência e Cristo (1965).

Chardin formatou novas leituras da evolução, da estrutura orgânica do universo e da


tendência do ser a alcançar um estado cada vez mais orgânico, de unificação. O fim da
existência passou a ser visto como a convergência das consciências individuais na
consciência do centro ômega, momento de completude do processo evolutivo.

"Uma só liberdade, tomada isoladamente, é fraca, incerta e pode facilmente errar nos seus
tateios. Uma totalidade de liberdades, agindo livremente, acaba sempre por encontrar o seu
caminho. E eis por que, incidentemente, sem minimizar o jogo ambíguo da nossa escolha
em face do Mundo, eu pude sustentar implicitamente, no decurso desta conferência, que
nós avançávamos, livre e inelutavelmente, para a Concentração através da Planetização. Na
evolução cósmica, poder-se-ia dizer, o determinismo aparece nas duas pontas, mas, aqui e
lá, sob duas formas antitéticas: em baixo, uma queda no mais provável por defeito, - em
cima, uma subida para o improvável por triunfo de liberdade".[1]

O universo, para Chardin, está impregnado de pensamento, o que se torna patente com a
evolução, através da crescente complexidade estrutural que a matéria alcança. Chardin
intuiu laivos de consciência nos graus ínfimos da existência, no plano físico do universo. A
evolução levou esta consciência a revelar-se mais avançada no ser humano. Ora, a
organicidade do todo implica uma lógica, seria absurdo determo-nos neste ponto do
caminho sem continuá-lo.

Assim, para Chardin, o fenômeno humano não completou a sua trajetória e não alcançou a
necessária conclusão, mas tal movimento está implícito na lógica do desenvolvimento do
próprio fenômeno. Então o Cristo, para este cientista e teólogo, pode ser proposto à ciência
como biótipo do fenômeno humano, como modelo que o humano poderá atingir com a
evolução, e o Evangelho como a lei social da unidade coletiva representada pela
humanidade do futuro. Esse é o processo da evolução, numa correlação das compreensões
da ciência e da espiritualidade cristã. E o humano faz parte deste processo.

Chardin constrói, assim, uma teologia da evolução, onde a santificação se dá por meio da
presença universal do pensamento imanente da divindade. É a sagração da evolução.
Chardin caminhou no terreno do cristianismo, mas fez uma nova leitura da origem da
existência, onde a estrutura mais íntima do ser é de natureza psíquica, para concluir que a
vida é pensamento coberto de morfologia e a espiritualidade é o ápice da evolução.

Ou como disse numa oração:


"Rico da seiva do Mundo, subo para o Espírito que me sorri para além de toda conquista,
revestido do esplendor concreto do Universo. E, perdido no mistério da Carne divina, eu já
não saberia dizer qual é a mais radiosa destas duas bem-aventuranças: ter encontrado o
Verbo para dominar a Matéria, ou possuir a Matéria para atingir e receber a luz de Deus".
[2]

A partir de Darwin e de sua presença na teologia, através de Chardin, podemos dizer que
pensar a existência humana é tarefa aberta e permanente para a ciência e a teologia. Mais
do que perder-se em formulações dogmáticas, quer na ciência ou na teologia, o desafio
humano é a busca para compreender como (ciência) e por que (teologia) estamos
conectados à existência e ao Universo.

Referências

Charles Darwin

A origem das espécies, Itatiaia Editora, 2002.

Autobiography of Charles Darwin, editor Francis Darwin, 1887.

Life and Letters of Charles Darwin, (ed. Francis Darwin). vols. I e II, 1887:

More Letters of Charles Darwin, editores Francis Darwin e A.C. Seward, vols. I e II, 1903.

Sobre o autor

Bizzo, Nélio/ Vianna, Sérgio Besserman/ Ades, César, Charles Darwin, em um futuro não
tão distante, Sangari do Brasil, 2009.

Burkhardt, Frederick, As cartas de Charles Darwin, UNESP, 1999.

Mayr, Ernst, Uma ampla discussão, Charles Darwin e a gênese, Funpec, 2006.

Stefoff, Rebecca/ Motta, Laura Teixeira, Charles Darwin, A revolução da evolução, São
Paulo, Companhia das Letras, 2007.

Teilhard de Chardin

Oeuvres, 13 volumes, Paris, Seuil, 1955-1976.

O fenômeno humano, São Paulo, Herder, 1965.

L’ambiente divino, Milão, Il Saggiatore, 1968.

Le Coeur de la Matiére, Paris, Seuil, 1976.


Sobre o autor

Borne, É., De Pascal à Teilhard de Chardin, Clermont-Ferrand, Ed. G. de Bussac, 1963.

Gibellini, R., Teilhard de Chardin: l’ópera e le interpretazioni, Brescia, Queriniana, 1981.

Schellenbaum, P., Le Christ dans l’energétique teilhardienne, Paris, Cerf, 1971.

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* Jorge Pinheiro, 64, é cientista da religião e teólogo. É Pós-Doutor em Ciências da


Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Doutor e Mestre em Ciências da
Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, Pós-Graduado e Bacharel em Teologia
pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É professor de Teologia e História na
Graduação e no Mestrado da Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Entre suas
principais obras estão Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo,
Fonte Editorial, 2008; História e religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico,
São Paulo, Editora Vida, 2007; e Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a
Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2007.

[1] Teilhard de Chardin, « La formation de la Noosphère », Revue des Questions


Scientifiques, Louvain, jan. 1947, pp. 7-35. The Future of Man, New York: Harper & Row,
1964.

[2] Teilhard de Chardin, « La Messe sur le Monde », Ordos, 1923.

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