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GRANDE DO SUL
Ijuí (RS)
2019
LAURA MALLMANN MARCHT
Ijuí (RS)
2019
Dedico este trabalho a Olorum, à minha
família de sangue e de religião.
Epáô Babá! Odôiyá! Ogunhê!
AGRADECIMENTOS
Aos professores, Dr. Alfredo Copetti Neto, Dr. Gilmar Antonio Bedin e Dr.
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, pelas orientações. Ao Alfredo, pelos inúmeros TV1
e por ter me incumbido de diagramar e editar um “disco-voador garantista” – a Rede
Garantismo Brasil –, sendo um dos principais responsáveis pelas quebras
paradigmáticas ocorridas durante a graduação. Obrigada pela autonomia. Ao Bedin,
alcunha “Pai Bedin”2, por estar presente, ainda que virtualmente, nos momentos mais
árduos da minha trajetória. Ao Maiquel, por ter confiado na minha capacidade quando
sequer eu acreditava: agradeço imensamente pelo apoio incondicional e, também, pela
amizade sincera3.
1
No original: “te vira” (COPETTI NETO, Alfredo, 2014).
2
Ou, ainda, “filho de Xangô”.
3
Em termos agambenianos, obrigada por ser indiferente a todas as minhas singularidades.
Camargo, José Ricardo Nerling, Regina Halfen, Luisa Jalil, Matheus Van der Ham,
Quézia Vanzin, Tiago Spinato e Vitória Agnoletto. Também, à Carmen Antunes, Ligia
da Silva e Janete Guterres.
Based on the analysis of the main works of Michel Foucault, Hannah Arendt,
Giorgio Agamben and Achille Mbembe, the purpose of this research was to verify, if
the biopolitics, in the agambenian molds, is insufficient to explain how the
contemporary forms of war. Dialectic was the method used, as the Cameroonean
philosopher Achille Mbembe understands that biopolitic is insufficient to express the
new forms of war in the conflict existent between Israel and Palestine States as it
intertwine in the use of highly precise technology. In these terms the Agamben thesis
was presented, in wich biopolitics, as an assumption of life by power, is a condition of
possibility for the existence of necropolitics, as well as the antithesis, in which it is
understood that it is through modern terror that necropolitics can "aim" – to kill - with
high precision the lives stated as sacrificable. What might be extracted from this work
is: biopolitic and necropolitic are not divided categories, but they justify themselves.
The exercise of the death power is only possible if there is the exercise of the life power.
Therefore, it is possible to conclude that the of human rights leaders must be rethought,
at the same time that they have to exercise, to protect, to hold more subordinate
subjects.
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 8
CONCLUSÃO............................................................................................................... 40
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 43
8
INTRODUÇÃO
É a partir da matriz teórica dos filósofos Michel Foucault (1979, 1988, 1999,
2008, 2010), Giorgio Agamben (2004, 2007, 2008, 2009, 2013, 2015) e Hannah Arendt
(1999, 2008, 2010, 2012, s.a) que o filósofo camaronês Joseph-Achille Mbembe (2014,
2018) propõe uma reflexão das novas formas de controle e de guerra na
contemporaneidade. Para isso, Mbembe cria o conceito de “necropolítica” e emprega
como exemplo dessa nova forma de controle o conflito existente entre o Estado da
Palestina e Israel desde a instituição deste país enquanto Estado. Para compreender o
contexto em que se insere o conceito de necropoder, esta pesquisa tem por objetivo
geral analisar as principais contribuições desses filósofos com o aporte de autores como
André Duarte (2015), Celso Lafer (1997, 2008), Edgardo Castro (2012), Oswaldo
Giacóia Junior (2008, 2019) e Peter Pál Pelbart (2003, 2019).
Diante das novas feições de guerra, esta pesquisa busca entender em que medida
os direitos humanos, na contemporaneidade, dão amparo frente às políticas que
segregam os povos árabe e muçulmano a partir do resgate feito por Achille Mbembe em
Necropolítica, bem como, se a biopolítica é insuficiente para explicá-las. Desse modo,
esta monografia tem como hipótese que os direitos humanos atuam como instrumento-
meio para a pacificação dos conflitos existentes – a partir do fenômeno do orientalismo
–, e ainda, que o conceito de biopolítica, em termos agambenianos, é condição de
possibilidade para o exercício de poder de morte – a necropolítica –.
Este capítulo tem por objetivo analisar os direitos humanos e a biopolítica sob a
ótica dos autores Michel Foucault (1979, 1988, 1999, 2008, 2010) – filósofo francês – e
Hannah Arendt (1999, 2008, 2010, 2012, s.a) – filósofa judia-alemã – uma vez que o
conceito de biopolítica foi criado pelo primeiro a fim de denunciar a seletividade das
vidas ditas “sacrificáveis”. No entanto, Foucault não trabalhou em sua pesquisa sob a
perspectiva do campo – até mesmo por sua morte precoce –, tarefa realizada por
Giorgio Agamben posteriormente. A obra de Arendt e sua experiência enquanto
apátrida possibilitou um repensar dos direitos humanos. É nesse sentido que o conjunto
das obras de Michel Foucault e Hannah Arendt são fundamentais para as obras dos
autores que serão revisitados no segundo capítulo desta monografia.
Para o autor, um dos principais fenômenos do século XIX pode ser denominado
como a “assunção da vida pelo poder [...] [ou] uma tomada de poder sobre o homem
enquanto ser vivo” (FOUCAULT, 1999, p. 286). Para compreender esse cálculo do
poder político – a biopolítica –, o filósofo recorre à teoria clássica da soberania e
12
Tal definição pode ser expressa pela famosa película de Charles Chaplin,
Tempos Modernos. Situa-se temporalmente na Revolução Industrial e se trata de “uma
história da indústria, da iniciativa privada – e da humanidade à procura da felicidade”4
(CHAPLIN, 1936). Há na indústria registros dos horários de trabalho por meio de
relógio-ponto e uma máquina que promete alimentar os empregados enquanto
produzem. Ainda, há trabalhadores exaustos na fábrica sob a vigilância excessiva de um
chefe – por câmeras, até mesmo nos banheiros – que estão dispostos em série visando a
um aumento da eficiência e da produtividade. A forma da vigília feita pelo chefe
demonstra uma relação de poder própria do panóptico, aparelho arquitetural criado por
Jeremy Bentham e retomado por Foucault em Vigiar e Punir. Essa relação representa
um poder que é inverificável (o detento nunca sabe se está sendo observado ou não) e
visível (o prisioneiro deve ter a certeza que sempre pode estar sendo vigiado)
(FOUCAULT, 2010). Nesse sentido, na disciplina:
4
No original: “A story of industry, of individual enterprise – humanity crusading in the pursuit of
happiness.” (CHAPLIN, 1936).
14
se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que
faça, o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas,
segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim
corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as
forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas
forças (em termos políticos de obediência).” (FOUCAULT, 2010, p. 134).
5
Ciência do estado unitário no século XIX.
15
6
A Torre de Babel retratada na película faz referência ao Antigo Testamento: “E eles disseram: Vamos,
edifiquemos para nós uma cidade e uma torre, cujo topo possa alcançar o céu. E façamos para nós um
nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda terra.” (BÍBLIA, 2015, Gênesis, 11, 4, p.
29).
7
No original: “the mediator between brain and hands must be the heart!”. (HARBOU, 1927).
16
A cidade operária, tal como existe no século XIX, o que é? Vê-se muito bem
como ela articula, de certo modo perpendicularmente, mecanismos
disciplinares de controle sobre o corpo, sobre os corpos, por sua quadrícula,
pelo recorte mesmo da cidade, pela localização das famílias (cada uma numa
casa) e dos indivíduos (cada um num cômodo). Recorte, por indivíduos em
visibilidade, normalização dos comportamentos, espécie de controle policial
espontâneo que se exerce assim pela própria disposição espacial da cidade:
toda uma série de mecanismos disciplinares que é fácil encontrar na cidade
operária. E depois vocês tem toda uma série de mecanismos que são, ao
contrário, mecanismos regulamentadores, que incidem sobre a população
enquanto tal e que permitem, que induzem comportamentos de poupança, por
exemplo, que são vinculados ao habitat, a locação do habitat e,
eventualmente, a sua compra.” (FOUCAULT, 1999, p. 299-300).
[...] não pode ser ingenuamente compreendida pelo seu “caráter humanitário”
de administrar, por meio de intervenções políticas, as condições de vida da
população. Há um aspecto violento desse controle, denunciado pelo autor,
que reside justamente na exigência contínua e crescente da morte em massa
do “outro”, enquanto instrumento privilegiado para a garantia de melhores
meios de sobrevivência de uma determinada população. (WERMUTH, 2017,
s.p.)
Se o racismo se constitui no “corte entre o que deve viver e o que deve morrer”
(FOUCAULT, 1999, p. 304), quanto mais degenerados morrerem, mais pura, vigorosa e
forte será a raça em que a noção da morte do outro – do inimigo político – se constitui
como condição de subsistência. Logo, o racismo é condição de existência para o
exercício de matar. O combate aos inimigos internos ou externos, reais ou virtuais, tem
como pretexto a proteção da vida por meio de políticas estatais de defesa
(CANDIOTTO, 2011). O evolucionismo pode ser visto como um aporte científico de
8
O biopoder é um conjunto de fenômenos e mecanismos que possibilita que a espécie humana entre
numa política, estratégia política: numa estratégia geral de poder (FOUCAULT, 2008).
9
O racismo é, “primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu,
um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o
aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como
boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo
do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos
em relação aos outros.” (FOUCAULT, 1999, p. 304).
18
como pensar a espécie e até mesmo pensar relações como a colonização, as guerras, a
criminalidade, a “loucura”.
A filósofa judia-alemã Hannah Arendt foi uma das responsáveis, à sua época,
pela imigração de jovens judeus para a Palestina durante o Terceiro Reich pela Youth
Aliyah10. Apátrida por aproximadamente duas décadas, refugiou-se em Paris, França11, e
após, nos EUA durante a Alemanha nazista, tornou-se cidadã americana posteriormente.
Por enfrentar catástrofes políticas durante o século XX, buscou uma nova resposta para
a ruptura – lacuna que separa o passado e futuro da contemporaneidade – (LAFER,
2008). A fim de entender essa ruptura, Arendt refletiu em suas obras sobre questões
como política, autoridade, totalitarismo, condição do trabalho e da mulher como,
também, violência (GIACOIA JUNIOR, 2019). Para o presente estudo, o foco principal se
dá na vítima dessa violência e sobre a figura do campo.
Essa teoria defende a total inocência da vítima. Ela insinua não apenas que
nenhum mal foi cometido, mas, também, que nada foi feito pela vítima que a
relacionasse com o assunto em questão. Contudo, quem tenta explicar por
que um determinado bode expiatório se adapta tão bem a tal papel abandona
nesse momento a teoria e envolve-se na pesquisa histórica. E então o
chamado bode expiatório deixa de ser a vítima inocente a quem o mundo
culpa por todos os seus pecados e através do qual deseja escapar ao castigo;
torna-se um grupo entre outros grupos, todos igualmente envolvidos nos
problemas do mundo. O fato de ter sido ou estar sendo vítima da injustiça e
da crueldade não elimina sua corresponsabilidade.” (ARENDT, 2012, p. 28-
29).
10
A juventude Aliyah foi criada em 1933 para salvar crianças judias do terror nazista. Recha Freirer,
sionista, criou essa organização para conduzir jovens à Palestina e à Grã-Betranha, e, mesmo após o
término da Segunda Guerra Mundial, o trabalho da juventude permanece com o objetivo de abrigar
crianças judias em Israel (YOUTH, s.a., s.p.).
11
Outros pensadores da época buscaram refúgio em Paris, a exemplo de Walter Benjamin (GIACOIA
JUNIOR, 2019).
20
12
Após os Tratados de Tilsit em 1807 e da perda de quase metade de seu território, na Prússia, o
antissemitismo flamejou pela primeira vez. Com a mudança política e a perda de privilégios da nobreza,
“essa reforma, uma ‘revolução de cima’, transformou a estrutura semifeudal do despotismo esclarecido
prussiano num Estado-nação mais ou menos moderno, cujo estágio final foi o Reich alemão de 1871.”
(ARENDT, 2012, p. 59).
13
Arendt datou seu início em 1884.
14
Em A era dos direitos (2004).
21
tudo é possível: “o tudo é possível levou pessoas a serem tratadas, de jure e de facto,
como supérfluas e descartáveis” (LAFER, 1997, p. 55). Representou, ainda, “uma nova
forma de governo que, ao almejar a dominação total através do uso da ideologia e do
emprego do terror para promover a ubiquidade do medo, fez do campo de concentração
o seu paradigma organizacional.” (LAFER, 1997, p. 57).
Nesse sentido, seria necessário e possível, por meio de uma reconstrução dos
direitos humanos em conjunto com a noção de responsabilidade coletiva, evitar novas
experiências totalitárias em resgate à noção agostiniana de amor mundi15. Em 1961,
Hannah Arendt é convidada pela revista americana The New Yorker para cobrir o
julgamento, que aconteceria na Corte Distrital de Jerusalém, Israel, de Otto Adolf
Eichmann – acusado de arquitetar a morte de, aproximadamente, seis milhões de
judeus16 –. Em 1963, é publicada a primeira versão do livro Eichmann em Jerusalém,
que causou grandes turbulências na vida particular e profissional da filósofa (como
retrata o filme teuto-francês lançado em 2013, Hannah Arendt):
15
O “amor do mundo” corresponde à metáfora da mesa. A mesa (a esfera pública) é aquilo que separa, e
ao mesmo tempo une os homens, o in between.
16
Arendt esclarece que há uma suposição no que se refere aos mortos pela Solução Final, e, devido à
dificuldade de provar tal total, estima-se que foram vítimas entre 4,5 milhões e 6 milhões de judeus
(1999).
17
Ipsis litteris ao texto de Hannah. O tenente-coronel sofreu cinco acusações.
23
Estado’, sobre os quais nenhum outro Estado tinha jurisdição [...]” (ARENDT, 1999, p.
33).
18
Termo referenciado por Eichmann sobre o que seria a obediência cega, kadavergehorsam.
24
fato essa liberdade existe, é necessário que ela se manifeste na esfera pública – onde se
estabelecem relações de poder –.
19
Conceito aristotélico para denominar o que era a vida política.
25
Giorgio Agamben (2004, 2007, 2008, 2009, 2013, 2015), ao retomar a expressão
homo sacer do direito romano arcaico, busca dar resposta à lacuna deixada por Michel
Foucault e Hannah Arendt. Achille Mbembe (2014, 2018), filósofo camaronês, explicita
que a biopolítica como se compreende atualmente é insuficiente para explicar novas
formas de guerra – como a ocupação colonial da Palestina –. Nesse sentido, este
capítulo tem por objetivo analisar as obras dos autores contemporâneos para explicitar a
tese e a antítese, capaz de gerar a síntese final desta monografia.
20
Para Carl Schmitt, o soberano.
29
Como exemplo do “mirar com alta precisão”, é possível citar o quinto episódio
da quarta temporada da série britânica Black Mirror, Metalhead. A ausência de cor e a
trilha sonora intensa do episódio revela a atmosfera pós-apocalíptica do cenário: “os
vencedores contemplam a vida por ninguém vivida e os corpos dos que estão prostrados
no chão.” (PANDOLFO; LINCK, 2018, p. 676). Ao buscar uma caixa em um depósito,
Bella e Tony são alvejados por rastreadores do cão cabeça-de-metal. Tony e Clarke são
vitimados pelo exbicho enquanto Bella foge deste: “O humano exhumado aí persegue
certamente o seu fim, ele segue para; segue e para, cansa, sonha, ama. Cogita. O
exbicho não; encontra-se incessantemente ligado – num breve intervalo de tempo
recarrega-se automaticamente, exorganicamente.” (PANDOLFO; LINCK, 2018, p.
678).
22
É possível estabelecer uma conexão desse conceito até mesmo com a invenção dos fuzis. Esses foram
criados para substituir os mosquetes em meados do século XIX, e partir de então, a tecnologia bélica se
encarregou de aperfeiçoar as miras das armas. Segundo Foucault, as mudanças ocorridas entre o século
XVIII e XIX se deslocam para a obtenção de um resultado específico que visa a um resultado ótimo, com
o máximo de eficiência possível. É nesse contexto que se pode citar a invenção do fuzil: “mais preciso,
mais rápido que o mosquete, valoriza a habilidade do soldado; mais capaz de atingir um alvo
determinado, permitia explorar a potência de fogo ao nível individual; e inversamente fazia de cada
soldado um alvo possível, exigindo pela mesma razão maior mobilidade; e assim ocasionava o
desaparecimento de uma técnica das massas em proveito de uma arte que distribuía as unidades e os
homens ao longo de linhas extensas, relativamente flexíveis e móveis.” (FOUCAULT, 2010, p. 156-157).
37
Tal distopia revela uma realidade atual: o exercício do poder de morte não é tão
somente dos Estados (MBEMBE, 2018): “Milícias urbanas, exércitos privados,
exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado proclamam,
todos, o direito de exercer violência ou matar.” (MBEMBE, 2018, p. 139). A morte em
massa é precisa. Utiliza-se o emprego de armas de alta precisão assim como agentes
biológicos letais. Hobsbawm (2007, p. 46) refere que apesar do medo existente em
relação aos pequenos grupos terroristas no que tange ao uso desses agentes biológicos,
infelizmente, “há muito menos medo com relação aos perigos maiores e imprevisíveis
que surgirão se e quando a nova e crescente capacidade científica de manipular os
processos vitais, inclusive a vida humana, escapar ao controle, o que certamente
ocorrerá.”. As guerras não ocorrem mais entre Estados soberanos apenas. Elas são
travadas entre grupos armados – revestidos pelo Estado – contra grupos sem Estado,
mas, que controlam territórios como se estatizados fossem (MBEMBE, 2018).
23
Agamben (2008) adverte que a testemunha, para os gregos é martis, ou seja, mártir. A doutrina do
martírio surge para justificar uma carnificina, mortes sine causa, para que essas não parecerem absurdas –
para haver racionalidade no irracional –: entretanto, “o que aconteceu nos campos pouco tem que ver com
o martírio.” (AGAMBEN, 2008, p. 35).
39
A verdade sempre tem duas faces. Nós ouvimos a voz da vítima troiana pela
boca do grego Eurípedes. Tróia não contou sua história. Um povo ou um país
que não tem grandes poetas terá o direito de vencer um povo que não têm
poetas? Eu sou filho de um povo não reconhecido até pouco tempo atrás e
quero falar em nome dos ausentes, em nome do poeta de Tróia. Há muito
mais inspiração e riqueza humana na derrota do que na vitória. Se eu
pertencesse ao partido dos vencedores, participaria das manifestações de
solidariedade pelas vítimas. [...] Nós tivemos o azar de ter por inimigo Israel.
Ao mesmo tempo tivemos a sorte de ter por inimigo Israel. Vocês nos deram
a derrota e o reconhecimento.
Nos últimos setenta anos existe uma disputa entre judeus e palestinos pelo papel
de mártir. Como, então, livrar-se da lógica da culpabilidade recíproca que o algoz e a
vítima mantêm pelos grilhões da memória? (PELBART, 2019). Para compreender essa
questão, é necessário olhar para o Oriente Médio com lentes cautelosas. Em razão dos
atrasos percebidos nas sociedades contemporâneas orientais, tais como, a ausência de
democracia e a supressão de direitos das mulheres, “esquecemos que noções como
modernidade, iluminismo e democracia não são, de modo algum, conceitos simples e
consensuais que se encontram ou não, como ovos de Páscoa, na sala de casa.” (SAID,
2007, p. 15). É necessário que a terminologia “Oriente” seja lida como um termo que
não têm qualquer estabilidade ontológica porque é fundado a partir de uma pretensão de
identificação do Outro, muitas vezes, etiquetado como “terrorista” (SAID, 2007).
Portanto, não é por acaso que, de acordo com Edward Said (2007), o antissemitismo
moderno e o orientalismo têm origens comuns.
40
CONCLUSÃO
24
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5XcxVHo4ozc. Acesso em: 27 maio 2019.
25
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9PYQRwOvo24. Acesso em: 27 maio 2019.
26
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=P9sNAGHG0rs. Acesso em 27 maio 2019.
27
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5XcxVHo4ozc&t=123s. Acesso em: 27 maio 2019.
28
Ibidem.
41
29
Idem.
30
Foucault – ainda que crítico aos direitos humanos – buscava resposta para sua crítica “sem ter de
recorrer a qualquer conceito de Estado ou mesmo de ‘instituição do governo’, os quais supõem a
existência de uma estrutura política institucionalizada, pronta e acabada, organizada para visar a fins
claramente determinados e hierarquicamente coordenados, entendida como a instância prioritária de
condensação e difusão de todo poder.” (DUARTE, 2015, p. 18). Oswaldo Giacoia Junior relata que o
filósofo francês era ativista: liderou, inclusive, um movimento que deu origem ao The International
Tribunal for the Law of the Sea, e através da sua militância – principalmente, por intermédio do texto
Face aux gouvernements, les droits de l’homme –, conclamava uma resistência contra a pirataria dos
imigrantes à sua época.
31
Ibidem.
42
32
A Declaração de 1789, segundo Agamben (2015), em seus primeiros três artigos inscreve o elemento
nação ao princípio da soberania. Nação significa natio, nascimento.
43
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