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Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino no Rio de Janeiro nos anos 1980.

Foto de Paulo Rubens


Fonseca. Acervo Otto Lara Resende/ IMS

Neste ano de 2022 completam-se setenta anos que Hélio Pellegrino chegou ao Rio de Janeiro,
para ficar. Formado em medicina pela Universidade de Minas Gerais, depois UFMG, era
médico psiquiatra no Instituto Raul Soares, em Belo Horizonte, e estava casado com Maria
Urbana Pentagna Guimarães. Cedia, enfim, aos apelos de Otto Lara Resende, que o instava a
se mudar para a então capital federal, onde se reuniria aos outros três membros do lendário
quarteto dos mineiros, já moradores da cidade: Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e o
próprio Otto.

Hélio Pellegrino nasceu em 5 de janeiro de 1924, em Belo Horizonte, e, mal saído da


adolescência, tornou-se colaborador do jornal católico O Diário, da capital mineira, de onde
partiu para a Folha de Minas. Depois viria o Liberdade, de apoio ao brigadeiro Eduardo Gomes
e do qual foi um dos fundadores, além da revista Edifício, para citar algumas iniciativas de sua
frenética trajetória jornalística, antes de dedicar-se à vocação maior: a psicanálise.

Amigo de Otto desde o tempo de O Diário, dele diria o autor de O braço direito, no
depoimento gravado para o disco Os 4 mineiros, de 1981:

Paulo Mendes Campos, com quem convivi em São João del Rei, Fernando Sabino, que conheci,
escoteiro, em Belo Horizonte, Hélio Pellegrino, que encontrei para encontrar-me, nós somos
quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse que há tantos anos temos vivido [...] .

Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino no Rio de Janeiro nos anos 1980. Foto de Paulo Rubens
Fonseca. Acervo Otto Lara Resende/ IMS

Neste ano de 2022 completam-se setenta anos que Hélio Pellegrino chegou ao Rio de Janeiro,
para ficar. Formado em medicina pela Universidade de Minas Gerais, depois UFMG, era
médico psiquiatra no Instituto Raul Soares, em Belo Horizonte, e estava casado com Maria
Urbana Pentagna Guimarães. Cedia, enfim, aos apelos de Otto Lara Resende, que o instava a
se mudar para a então capital federal, onde se reuniria aos outros três membros do lendário
quarteto dos mineiros, já moradores da cidade: Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e o
próprio Otto.

Hélio Pellegrino nasceu em 5 de janeiro de 1924, em Belo Horizonte, e, mal saído da


adolescência, tornou-se colaborador do jornal católico O Diário, da capital mineira, de onde
partiu para a Folha de Minas. Depois viria o Liberdade, de apoio ao brigadeiro Eduardo Gomes
e do qual foi um dos fundadores, além da revista Edifício, para citar algumas iniciativas de sua
frenética trajetória jornalística, antes de dedicar-se à vocação maior: a psicanálise.

Amigo de Otto desde o tempo de O Diário, dele diria o autor de O braço direito, no
depoimento gravado para o disco Os 4 mineiros, de 1981:

Paulo Mendes Campos, com quem convivi em São João del Rei, Fernando Sabino, que conheci,
escoteiro, em Belo Horizonte, Hélio Pellegrino, que encontrei para encontrar-me, nós somos
quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse que há tantos anos temos vivido [...] .
Os 4 mineiros: Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Fernando Sabino
na biblioteca de Fernando Sabino, no Rio, nos anos 1970. Autoria não identificada. Acervo Otto
Lara Resende/ IMS

À época da gravação já ia longe o tempo em que “os vintanistas”, como Mário de Andrade os
chamou, se reuniam nos bares belo-horizontinos, compartilhavam os sonhos literários, as
confidências das emoções das primeiras namoradas e “puxavam angústia” nos bancos da
praça da Liberdade.

Ainda em 1946, ano em que chegou ao Rio, Otto escrevia a Hélio, quando de sua candidatura a
deputado federal pela UDN: “Para você, czar de todas as rússias, formulo os melhores votos de
felicidade partidária, a suprema”. Ao mesmo tempo, ia abrindo caminho para o amigo nos
jornais cariocas. Mas não se pense que era sempre fácil. Se Hélio não caprichasse no texto,
perdia definitivamente a chance de publicá-lo, como se lê na recusa de Otto em carta de 1946:
“Não publicarei seu artigo. Ele é demasiado ruim para publicação, e com isto concorda o
Edgar 1. O Mario Pedrosa, mostrei-lho, disse-me: ‘É uma merda’. E mais algumas observações,
que tenho preguiça de lhe passar agora”.

Está claro que Otto, rapidamente convidado para colaborar nos principais jornais do Rio,
continuava a cavar espaço para o amigo: no dia 10 de fevereiro de 1947 estreariam juntos na
mesma página do Correio da Manhã: Otto na coluna “Vida literária”, e Hélio, assinando H.P.,
na “Quinzena Literária de Minas”. Apesar de seguir com atuação forte na imprensa, Hélio
resistia a publicar livros, e só por insistência de amigos concordou, em 1947, que as edições
Edifício lançassem a plaquete Poema do príncipe exilado. Somente décadas mais tarde voltaria
a ser editado.

“Otto, luz de meus olhos”, escrevia ele de Belo Horizonte em carta ainda de 1947, acreditando
que palavras doces acalmariam o amigo, ansioso por sua mudança para o Rio. Em vão:

Não; isto me aumenta a raiva de você. Sórdido amigo! Você me dirá, sei que me convencerá, e
eu já estou de antemão convencido, que isto não tem importância, que a amizade não se
alimenta da regularidade postal, hélas! Sei que isto tudo é verdade, mas o fato de sabê-lo não
me deixa menos furioso.

Otto exigia a presença do companheiro, o que aconteceria em 1952, como já se disse aqui,
quando Hélio finalmente transferiu-se para o Rio de Janeiro. Otto pôde então aprofundar a
amizade mais apaixonada e mais integral dentre todos os seus laços fraternos, o que não
significa dizer que nela deixasse de haver momentos de forte tensão.
Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende. Belo Horizonte, 28/12/1941. Acervo Otto Lara Resende/
IMS

Tão logo se ambientou na cidade, Hélio começou a fazer formação analítica com Iraci Doyle,
numa época em que a psicanálise engatinhava no Rio de Janeiro. Em 1954, já formara uma boa
clientela e, com a morte de Iraci nesse mesmo ano, ele, “órfão de mãe analítica”, lamentava,
começaria análise-didática com Katrin Kemper, de quem disse: “Dona Catarina, por sua
conduta terapêutica, ampliou e aprofundou minha convicção de que a análise, mais do que um
processo técnico interpretativo, é a construção de um encontro humano para o qual o
conhecimento científico é necessário, mas não suficiente”. Com ela, criaria a Clínica Social de
Psicanálise, instituição de atendimento gratuito, que funcionou num casarão na rua Tonelero,
em Copacabana, de 1973 a 1991. Simultaneamente, era o “homem-comício”, o orador
inflamado que dava voz aos desejos do povo e que, sob o regime da ditadura militar brasileira,
desafiava autoridades com sua fé na juventude e na crença do surgimento do “homem novo”.
Não ficou impune pela liderança na Passeata dos 100 mil, em 26 de junho de 1968, nem por
seus artigos de ataque ao governo no Correio da Manhã: enquadrado na Lei de Segurança
Nacional, acabou preso durante três meses.

Em toda a sua prática, nunca deixou de contar com o apoio e a coragem da mulher, com quem
se casara em 1948: Maria Urbana Guimarães Pellegrino, mãe de seus sete filhos e com quem
teria ardorosa e tumultuada relação de amor: “O casamento feliz é prisão de cinco estrelas”,
diria ele nas melhores fases. Talvez por isso mesmo buscasse outras prisões de mesmo naipe, o
que resultou em dois outros casamentos: com a física Sarah de Castro Barbosa e a escritora
Lya Luft, além de, entre as duas, ter reatado com Maria Urbana, a Grande, como dizia Otto.

A forma de amizade de Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino reflete-se claramente na


correspondência trocada entre os dois. Não só discutiam assuntos diversos, como tinham
necessidade de relatar o cotidiano. E ainda havia espaço para fazer considerações a respeito
de amizade, da capacidade de ser amigo, como se lê em carta de Otto de 10 de junho de 1951:

Convém à amizade que ela fique sendo apenas esse esforço inconsciente de dar-se as mãos
nesse nevoeiro, de tocar-se através desse muro de vazio que nos separa uns dos outros. Estar
só é, efetivamente, a fatalidade do homem, e aceitar essa fatalidade, virilmente, aí, nisso, deve
residir a sua mais poderosa dignidade.

São 164 cartas enviadas pelo primeiro e 69 pelo segundo. A diferença sugere o quanto Otto,
missivista compulsivo, reclamou da falta de resposta do interlocutor: “Me escreva, tenha pena
de minha solidão e dos meus beirais flamengos pela madrugada”, apelava ele de Bruxelas, em
6 de abril de 1959. Tinha de esperar, no entanto, como se vê pela menor quantidade de cartas
que recebia.

Hélio, de certo modo justificava: “A coisa mais importante do mundo é a possibilidade de ser-
com-o-outro, na calma, cálida e intensa mutabilidade do amor”, afirmou em “Diálogos
Possíveis com Clarice Lispector”, na revista Manchete, em absoluta coerência com a sua
atitude na vida. Revolucionário essencial, viveu a plenitude nas esferas da vida amorosa,
política e profissional. Psiquiatra, poeta e psicanalista que contribuiu para tirar a psicanálise do
pedestal, como afirmou Paulo Roberto Pires em Hélio Pellegrino – a paixão indignada, foi
ainda indispensável nos comícios contra o governo militar e firme negociador da liberdade dos
estudantes.
Resistente a editar-se em livros, Hélio colaborou com artigos nas edições de Crise na
psicanálise (1982), Grupo sobre grupo (1987) e Os sentidos da paixão (1987). Estava
preparando a coletânea A burrice do demônio, lançada postumamente, em 1988, no mesmo
ano de sua morte, que foi no dia 23 de março. Com organização de Humberto Werneck sua
poesia foi reunida em Minérios domados (1993) e a neta, Antonia Pellegrino,
organizou Lucidez embriagada (2004).

Rubem Braga, presente ao velório, não deixou de observar as amadas que pranteavam o
morto: “Nunca vi tanta mulher bonita”, diria o Sabiá da Crônica, enquanto Otto, tomado de
dor, escrevia carta muito comovente ao historiador Francisco Iglésias, dois dias depois da
morte de Hélio Pellegrino:

[...] Tínhamos, depois de tantos anos, uma recíproca e instantânea compreensão, que se fazia
quase sem palavras, ou com palavras de passe que vimos espontaneamente criando ao longo
de tanto tempo repartido a dois. [...] Nosso encontro foi fulminantemente fraternal, a partir do
primeiro minuto. E Você sabe que brigávamos muito, com uma franqueza rude, às vezes a
ponto de chamar atenção dos passantes na rua (quando era na rua) ou de cometer alguns
estragos em volta. Nunca, mas nunca jamais mesmo nos separamos um com mágoa do outro.
E nunca deixamos de nos dizer brutalmente (eu talvez mais do que ele) o que pensávamos.
1
. Edgar da Mata Machado.

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS


Os 4 mineiros: Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Fernando Sabino
na biblioteca de Fernando Sabino, no Rio, nos anos 1970. Autoria não identificada. Acervo Otto
Lara Resende/ IMS

À época da gravação já ia longe o tempo em que “os vintanistas”, como Mário de Andrade os
chamou, se reuniam nos bares belo-horizontinos, compartilhavam os sonhos literários, as
confidências das emoções das primeiras namoradas e “puxavam angústia” nos bancos da
praça da Liberdade.

Ainda em 1946, ano em que chegou ao Rio, Otto escrevia a Hélio, quando de sua candidatura a
deputado federal pela UDN: “Para você, czar de todas as rússias, formulo os melhores votos de
felicidade partidária, a suprema”. Ao mesmo tempo, ia abrindo caminho para o amigo nos
jornais cariocas. Mas não se pense que era sempre fácil. Se Hélio não caprichasse no texto,
perdia definitivamente a chance de publicá-lo, como se lê na recusa de Otto em carta de 1946:
“Não publicarei seu artigo. Ele é demasiado ruim para publicação, e com isto concorda o
Edgar 1. O Mario Pedrosa, mostrei-lho, disse-me: ‘É uma merda’. E mais algumas observações,
que tenho preguiça de lhe passar agora”.

Está claro que Otto, rapidamente convidado para colaborar nos principais jornais do Rio,
continuava a cavar espaço para o amigo: no dia 10 de fevereiro de 1947 estreariam juntos na
mesma página do Correio da Manhã: Otto na coluna “Vida literária”, e Hélio, assinando H.P.,
na “Quinzena Literária de Minas”. Apesar de seguir com atuação forte na imprensa, Hélio
resistia a publicar livros, e só por insistência de amigos concordou, em 1947, que as edições
Edifício lançassem a plaquete Poema do príncipe exilado. Somente décadas mais tarde voltaria
a ser editado.

“Otto, luz de meus olhos”, escrevia ele de Belo Horizonte em carta ainda de 1947, acreditando
que palavras doces acalmariam o amigo, ansioso por sua mudança para o Rio. Em vão:

Não; isto me aumenta a raiva de você. Sórdido amigo! Você me dirá, sei que me convencerá, e
eu já estou de antemão convencido, que isto não tem importância, que a amizade não se
alimenta da regularidade postal, hélas! Sei que isto tudo é verdade, mas o fato de sabê-lo não
me deixa menos furioso.

Otto exigia a presença do companheiro, o que aconteceria em 1952, como já se disse aqui,
quando Hélio finalmente transferiu-se para o Rio de Janeiro. Otto pôde então aprofundar a
amizade mais apaixonada e mais integral dentre todos os seus laços fraternos, o que não
significa dizer que nela deixasse de haver momentos de forte tensão.
Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende. Belo Horizonte, 28/12/1941. Acervo Otto Lara Resende/
IMS

Tão logo se ambientou na cidade, Hélio começou a fazer formação analítica com Iraci Doyle,
numa época em que a psicanálise engatinhava no Rio de Janeiro. Em 1954, já formara uma boa
clientela e, com a morte de Iraci nesse mesmo ano, ele, “órfão de mãe analítica”, lamentava,
começaria análise-didática com Katrin Kemper, de quem disse: “Dona Catarina, por sua
conduta terapêutica, ampliou e aprofundou minha convicção de que a análise, mais do que um
processo técnico interpretativo, é a construção de um encontro humano para o qual o
conhecimento científico é necessário, mas não suficiente”. Com ela, criaria a Clínica Social de
Psicanálise, instituição de atendimento gratuito, que funcionou num casarão na rua Tonelero,
em Copacabana, de 1973 a 1991. Simultaneamente, era o “homem-comício”, o orador
inflamado que dava voz aos desejos do povo e que, sob o regime da ditadura militar brasileira,
desafiava autoridades com sua fé na juventude e na crença do surgimento do “homem novo”.
Não ficou impune pela liderança na Passeata dos 100 mil, em 26 de junho de 1968, nem por
seus artigos de ataque ao governo no Correio da Manhã: enquadrado na Lei de Segurança
Nacional, acabou preso durante três meses.

Em toda a sua prática, nunca deixou de contar com o apoio e a coragem da mulher, com quem
se casara em 1948: Maria Urbana Guimarães Pellegrino, mãe de seus sete filhos e com quem
teria ardorosa e tumultuada relação de amor: “O casamento feliz é prisão de cinco estrelas”,
diria ele nas melhores fases. Talvez por isso mesmo buscasse outras prisões de mesmo naipe, o
que resultou em dois outros casamentos: com a física Sarah de Castro Barbosa e a escritora
Lya Luft, além de, entre as duas, ter reatado com Maria Urbana, a Grande, como dizia Otto.

A forma de amizade de Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino reflete-se claramente na


correspondência trocada entre os dois. Não só discutiam assuntos diversos, como tinham
necessidade de relatar o cotidiano. E ainda havia espaço para fazer considerações a respeito
de amizade, da capacidade de ser amigo, como se lê em carta de Otto de 10 de junho de 1951:

Convém à amizade que ela fique sendo apenas esse esforço inconsciente de dar-se as mãos
nesse nevoeiro, de tocar-se através desse muro de vazio que nos separa uns dos outros. Estar
só é, efetivamente, a fatalidade do homem, e aceitar essa fatalidade, virilmente, aí, nisso, deve
residir a sua mais poderosa dignidade.

São 164 cartas enviadas pelo primeiro e 69 pelo segundo. A diferença sugere o quanto Otto,
missivista compulsivo, reclamou da falta de resposta do interlocutor: “Me escreva, tenha pena
de minha solidão e dos meus beirais flamengos pela madrugada”, apelava ele de Bruxelas, em
6 de abril de 1959. Tinha de esperar, no entanto, como se vê pela menor quantidade de cartas
que recebia.

Hélio, de certo modo justificava: “A coisa mais importante do mundo é a possibilidade de ser-
com-o-outro, na calma, cálida e intensa mutabilidade do amor”, afirmou em “Diálogos
Possíveis com Clarice Lispector”, na revista Manchete, em absoluta coerência com a sua
atitude na vida. Revolucionário essencial, viveu a plenitude nas esferas da vida amorosa,
política e profissional. Psiquiatra, poeta e psicanalista que contribuiu para tirar a psicanálise do
pedestal, como afirmou Paulo Roberto Pires em Hélio Pellegrino – a paixão indignada, foi
ainda indispensável nos comícios contra o governo militar e firme negociador da liberdade dos
estudantes.
Resistente a editar-se em livros, Hélio colaborou com artigos nas edições de Crise na
psicanálise (1982), Grupo sobre grupo (1987) e Os sentidos da paixão (1987). Estava
preparando a coletânea A burrice do demônio, lançada postumamente, em 1988, no mesmo
ano de sua morte, que foi no dia 23 de março. Com organização de Humberto Werneck sua
poesia foi reunida em Minérios domados (1993) e a neta, Antonia Pellegrino,
organizou Lucidez embriagada (2004).

Rubem Braga, presente ao velório, não deixou de observar as amadas que pranteavam o
morto: “Nunca vi tanta mulher bonita”, diria o Sabiá da Crônica, enquanto Otto, tomado de
dor, escrevia carta muito comovente ao historiador Francisco Iglésias, dois dias depois da
morte de Hélio Pellegrino:

[...] Tínhamos, depois de tantos anos, uma recíproca e instantânea compreensão, que se fazia
quase sem palavras, ou com palavras de passe que vimos espontaneamente criando ao longo
de tanto tempo repartido a dois. [...] Nosso encontro foi fulminantemente fraternal, a partir do
primeiro minuto. E Você sabe que brigávamos muito, com uma franqueza rude, às vezes a
ponto de chamar atenção dos passantes na rua (quando era na rua) ou de cometer alguns
estragos em volta. Nunca, mas nunca jamais mesmo nos separamos um com mágoa do outro.
E nunca deixamos de nos dizer brutalmente (eu talvez mais do que ele) o que pensávamos.
1
. Edgar da Mata Machado.

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS


(Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino. Foto de Paulo Rubens Fonseca. Acervo IMS)

Em 5 de janeiro de 2024 aconteceu o centenário do psicanalista mineiro Hélio Pellegrino.


Nenhuma matéria na imprensa brasileira. Nenhuma nota. Nem mesmo nos jornais da sua
cidade natal, Belo Horizonte. Muito menos na sua cidade de escolha, Rio de Janeiro, onde
passou a maior parte da sua vida. O que isso significa? Que ele foi um poeta menor, com
apenas um livro póstumo? Ou um cronista/ensaísta mediano, indigno de crédito? O que será?
O que seria? Não há nada a se dizer?

Sim, há. O seu legado poético tem que ser resgatado. Não basta a publicação do “Minérios
Domados” (Ed. Rocco) carpintaria delicada feita por Humberto Werneck nos seus guardados.
Há mais poesia escondida no baú. O legado de textos em prosa, publicados em jornal é um
importante arcabouço. Por obra e graça da seleção de cartas, poemas e artigos, feita por
Antônia Pellegrino, existe o livro “Lucidez Embriagada”. E a sua quixotesca luta contra os
barões da Sociedade Psicanalítica produziu memoráveis textos ensaísticos. Cabe aos herdeiros
remexer neste baú e provocar a mágica da ressurreição de Hélio Pellegrino. E sem esquecer do
precioso perfil biográfico do psicanalista escritor por Paulo Roberto Pires (“A Paixão
Indignada”, Ed. Relume Dumará).

Neste campo, ele se declarava católico praticante e marxista convicto. Assim, dizia, aos brados,
com aqueles braços imensos e olhos faiscantes, que acreditava mesmo é na Ressureição da
Carne. “Eu acredito é na Ressurreição da Carne” – repetia. Era este o seu bordão contra a
morte: queria voltar reencarnado no próprio corpo, exatamente como ele foi. Não só a alma o
acompanharia – o corpo também.

No campo das ideias, o silêncio da imprensa reflete o pior dos mundos: a indiferença pela
ausência dos intelectuais na Política. As intrincadas razões desta retirada têm a ponta do
novelo muito clara: a tortura. Cumprindo à risca as determinações de Golbery do Couto e Silva,
os artistas e os intelectuais foram tão perseguidos quanto os ativistas. Mas aqui é necessário
dizer que muitos eram professores-jornalistas-escritores-músicos-poetas e – ativistas
clandestinos. Por isso o foco, por isso a necessidade imperial de exclui-los do campo político,
do campo da discussão das ideias. Afinal, como bem disse Nietzsche, “as ideias são forças”.

E Hélio Pellegrino era destes, da turma dos insubstituíveis. Ficou preso com Zuenir Ventura, foi
solto sob a intervenção de Nelson Rodrigues – história que Zuenir conta muito bem. Foi orador
da Passeata dos Cem Mil. Foi fundador do Partidos dos Trabalhadores. Foi um pensador. Um
homem com tal carisma que tornou sua fala inesquecível. Quem já o ouviu discursar não
esquece.
O resultado está posto: a Política sem os intelectuais fica sem humanidade. Política sem Arte é
apenas uma planilha de Excel. Números sem alma. Sem Hélio Pellegrino e seus olhos repletos
de paixão por um País novo e, como ele, inesquecível. Hoje deveríamos dizer: “Hélio
Pellegrino, Presente!”. Ele iria gostar.

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