Fabiana Schmidt
Rio de Janeiro
2017
Fabiana Schmidt
Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A
CDU 339.12
____________________________________ ___________________________
Assinatura Data
Fabiana Schmidt
________________________________________________
Prof.ª Dra. Silene de Moraes Freire (Orientadora)
Faculdade de Serviço Social – UERJ
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Prof.ª Dra. Vania Morales Sierra
Faculdade de Serviço Social – UERJ
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Prof. Dr. Maurílio Castro de Matos
Faculdade de Serviço Social – UERJ
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Prof.ª Dra. Janete Luzia Leite
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Prof. Dr. Rodrigo Silva Lima
Universidade Federal Fluminense
Rio de Janeiro
2017
DEDICATÓRIA
José Saramago
RESUMO
Esta tesis, tiene como objetivo analizar las medidas socioeducativas para
adolescentes en Brasil y su relación con la persistente cultura punitiva. El control de
las expresiones de la “cuestión social”; por medio de la cultura punitiva y de la
criminalización de los adolescentes “pobres”; tiene en las MSEs una de sus más
crueles facetas. La instrumentalización de esa cultura se amplía como mecanismo
selectivo de los segmentos empobrecidos de la sociedad, predominantemente
negros y habitantes de las periferias. El recrudecimiento de la barbarie, relacionado
con las fuerzas destructivas, enfocadas para la efectividad de proyectos excluyentes
de civilización, gana mayor funcionalidad en la actual etapa del capitalismo. La
administración de los sobrantes e inútiles al mercado, dependen de la ampliación del
sistema punitivo, evidenciando la cara penal del Estado, como una de las
expresiones del Estado neoliberal. Estos procesos, que están vinculados a la
perspectiva de la globalización del capital, enBrasil poseen mayores impactos,
procedentes de la formación social, política y económica, que se ha edificado a lo
largo del proceso histórico de desarrollo del capitalismo, quedan do evidente el
consenso por la ampliación del castigo. Las MSEs acaban por ser instrumentos de
control y neutralización de las denominadas “clases peligrosas”; o de aquellos
innecesarios al Capital. Las conquistas legales en el ámbito de la niñez y
adolescencia, como el Estatuto del Niño y del Adolescente (ECA / 1990) y del
Sistema Nacional de Atención Socioeducativa (SINASE / 2012), aunque relevantes,
no fueron suficientes para disolver la lógica punitiva y autoritaria reinante de la
sociedad brasileña. A medida que los estudios se profundizaron, dejan evidente la
consensuada e histórica hegemonía de punición en nuestra sociedad. Para
profundizar la comprensión de la realidad acerca del objeto estudiado, los
profesionales del trabajo social involucrados con las MSEs en Rio de Janeiro,
utilizaron para la investigación la metodología del grupo focal. Se buscó también
reconocer las contradicciones vivenciadas por los trabajadores sociales en estos
espacios: la tensión entre defender derechos y convivir con prácticas punitivas,
vinculadas al “control social” de estos jóvenes. Finalmente, se concluye que la
cultura punitiva ejerce una centralidad en las MSEs mucho más allá de la
neutralización de un crimen o criminal. Se presenta cruel por las formas en que se
reproduce en la actualidad, como poderoso instrumento ideológico de eliminación de
los sujetos sociales.
BM Banco Mundial
JR Justiça Restaurativa
MP Ministério Público
MSE Medidas socioeducativas
TJ Tribunal de Justiça
INTRODUÇÃO
A máquina acossa os jovens: os tranca, tortura, mata. Eles são a prova viva
de sua impotência. Os expulsa: os vende, carne humana, braços baratos,
ao estrangeiro. A máquina, estéril, odeia tudo que cresce e se move. Só é
capaz de multiplicar as prisões e os cemitérios. Não pode produzir outra
coisa que presos e cadáveres, espiões e policiais, mendigos e desterrados.
Ser jovem é um delito. A realidade comete esse delito todos os dias, na
hora da alvorada; e também a História, que cada manhã nasce de novo. Por
isso a realidade e a História estão proibidas.
(“O Sistema”. Eduardo Galeano, Dias e Noites de Amor e de Guerra, 1979,
p.130).
1
Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.064/1990), institui-se em seu artigo 122:
“Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as
seguintes medidas: I- advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à
comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semiliberdade; VI – internação em
estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI. § 1º A medida
aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a
gravidade da infração. § 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de
trabalho forçado. § 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão
tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições”. (BRASIL, 1990)
Destaca-se que este estudo se centrará na análise das MSEs de “internação”, também denominadas
de “privação de liberdade”, expressão que também será utilizada no decorrer do texto.
2
Compreendemos a pobreza como expressão da “questão social”, intrínseca ao Modo de Produção
Capitalista. Sendo importante dizer que - ao utilizar-se a expressão “pobre” - é dessa compreensão
que partimos, sem reproduzir a lógica conservadora sobre a pobreza. Como a expressão “pobres”
será utilizada ao longo de todo texto por uma questão estética, não conterá aspas.
15
3
O conceito será apresentado no decorrer da tese, utilizaremos aspas em sua denominação por
concordarmos com o caráter conservador da expressão, que produz determinações vinculadas ao
medo e à criminalização de um determinado grupo social, sendo um dos elementos que compõe a
cultura punitiva.
4
A pesquisa foi fruto do processo de trabalho da proponente como assistente social na Fundação de
Atendimento Socioeducativo (FASE), do Rio Grande do Sul, e foi publicada em livro pela editora
Juruá (SCHMIDT, 2009).
5
Nesse estudo, o objetivo foi desacomodar o senso comum e o pragmatismo existente nas práticas
com adolescentes “em conflito com a lei”. Na dissertação, foi possível analisar que, além das
questões de violação de direitos e da punição vivenciada pelos adolescentes, na prática das
16
instituições que fazem parte do sistema de execução das MSEs continuamente se perpetua a lógica
da punição pelo discurso da socioeducação.
6
Conforme Fávero (2007), conjunto de área em que a ação do Serviço Social se articula a ações de
natureza jurídica: poder judiciário, sistema penitenciário, sistema de segurança, sistemas de proteção
e acolhimento, como abrigos, internatos, conselhos de direitos. O termo sociojurídico passou a ser
mais conhecido no meio profissional dos assistentes sociais, especialmente a partir de sua escolha
como tema da Revista Serviço Social e Sociedade, nº 67 (Cortez Editora); bem como de uma das
sessões temáticas do X Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), em 2001; e, ainda, do
Encontro Nacional Sociojurídico, que ocorreu em Curitiba, em 2004, quando foi discutido o sistema de
defesa de direitos nas áreas do Judiciário e do Penitenciário. Neste encontro, os participantes
aprovaram, dentro da agenda política, que o conjunto CFESS/CRESS consolidasse a terminologia
“campo de prática sociojurídica”. Este debate será feito no quarto capítulo.
7
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2014); Universidade Federal Fluminense (2010
a 2012); Universidade Estácio de Sá (2009 a 2010).
17
8
O recente debate sobre a redução da maioridade penal demonstrou esse apelo, bem como as
notícias de jornais que registram a prática da “justiça com as próprias mãos” no Brasil. Sobre este
tema, consideramos importantes os estudos de: MARTINS, José de Souza. Linchamento: o lado
sombrio da mente conservadora. In: Tempo Social; Revista social. USP, São Paulo, pp. 11-26,
outubro de 1996. Também em recente pesquisa do Centro de Estudos em Segurança e Cidadania da
Universidade Cândido Mendes, 37% dos cariocas concordam com a frase "Bandido Bom é Bandido
Morto". Mais de 2,3 mil pessoas foram ouvidas na pesquisa “Olho por Olho? O que pensam os
cariocas sobre 'bandido bom é bandido morto'". Um a cada três concordam total ou parcialmente com
a frase, enquanto 2% ficaram neutros e 1% preferiu não opinar. Sessenta, a cada 100 cariocas,
discordam da frase. "Sem dúvida, 37% é um número muito alto, mas o número do Rio de Janeiro foi
até menor do que a média nacional", disse Julita Lemgruber, coordenadora da pesquisa, realizada
pelo Centro de Estudos em Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes. Pesquisa
anterior do Data Folha, encomendada pelo Fórum de Segurança Pública, indicava que pelo menos
50% dos brasileiros apoiavam a frase. Ver em <https://www.ucamcesec.com.br/livro/olho-por-olho-o-
que-pensam-os-cariocas-sobre-bandido-bom-e-bandido-morto/>, acesso em: 05 abr. 2017.
18
9
A construção histórica da pena e dos sistemas de punição foi aprofundada pelos autores Rusche e
Kirchheimer que consideram que “a transformação em sistemas penais não pode ser explicada
somente pela mudança das demandas da luta contra o crime, embora esta luta faça parte do jogo.
Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de
produção. É, pois, necessário pesquisar a origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de
certas punições e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por forças
sociais, sobretudo econômicas e, consequentemente fiscais.” (RUSCHE; KIRCHHEIMER 2004, P. 20)
20
10
Conforme o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), o atual “Congresso
eleito em 2014, é considerado um dos mais conservadores desde 1964, pois: representantes de
“todas” as frações e setores estão representados: empreiteiros, banqueiros, fabricantes,
exportadores, importadores e ruralistas elegem, com uma facilidade extrema – e muito dinheiro, claro
-, seus prepostos, que na “casa do povo” (como gostam de dizer alguns deputados montanheses da
atualidade), recebem a companhia, em altíssimo número, de membros das bancadas da bala e
evangélica, além de representantes dos estratos mais lumpenizados e obscuros da classe dominante
brasileira” (DEMIER, 2016, P. 11).
11
A “tolerância zero” inaugurada na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, é definida por
Wacquant como “a doutrina da “tolerância zero”, instrumento de legitimação da gestão policial e
judiciária da pobreza que incomoda – a que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço
público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança, ou simplesmente de
incômodo tenaz e de inconveniência –, propagou-se através do globo a uma velocidade alucinante. E
com ela a retórica militar da “guerra” ao crime e da “reconquista” do espaço público, que assimila os
delinquentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros
– o que facilita o amálgama com a imigração, sempre rendoso eleitoralmente” (WACQUANT, 2001,
p.25).
22
12
Ano da Chacina da Candelária, como ficou conhecido este episódio. Foi uma chacina que ocorreu
na noite de 23 de julho de 1993, próximo à Igreja da Candelária, localizada no centro da cidade do
Rio de Janeiro. Neste crime, oito jovens (seis menores e dois maiores de idade) moradores de rua
foram assassinados por policiais militares. Demonstrando com este triste episódio que as forças
conservadoras com anseios punitivos e higienistas se faziam presentes mesmo com a aprovação do
ECA, sendo recrudescidas na atualidade, o que veremos no decorrer deste estudo.
13
Diferentemente do “Controle Social” democrático, vinculado à participação da sociedade civil no
controle das políticas setoriais e do orçamento público destinado à população. A partir da
Constituição de 1988, começa a vigorar os Conselhos de direitos na área da assistência social,
saúde, educação, criança e adolescentes, idosos, mulheres, segurança pública, entre outros. Em que
pese a difícil tarefa a que se dispõe o desmonte do Estado e a precarização destes espaços, ainda
possuem um papel importante para a efetivação de alguns avanços democráticos. Neste sentido,
utilizaremos aspas para diferenciar controle democrático, ou participação social, do “controle”
punitivo, coercitivo e seletivo.
24
14
Declaração de Genebra em 1924, apontando a necessidade de proporcionar proteção especial a
todas as crianças e, em 1959, na Declaração dos Direitos da Criança, que foi reconhecida na
Declaração Universal dos Direitos humanos.
25
15
Conforme o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), pesquisas científicas no mundo
inteiro mostram que, até os 12 anos de idade, a criança não consegue analisar criticamente os apelos
publicitários. Ela, que está em um momento do seu desenvolvimento, acaba absorvendo os
'desvalores' passados pela publicidade e acreditando que os bens materiais são absolutamente
imprescindíveis para ela se reconhecer como alguém. Esses valores materialistas provavelmente
serão levados pelo resto da vida. No futuro, essas crianças serão adultos que fazem de tudo para ter
cada vez mais dinheiro, para consumir cada vez mais e que nunca estão satisfeitos. Sabemos do
impacto que a publicidade pode ter em uma criança que vive em situação de extrema vulnerabilidade
social, que não tem acesso a nada do que aparece na televisão, mas que é igualmente atingida pelos
estímulos ao consumo. Houve também uma descoberta do mercado de que a criança é não só um
consumidor atual e potencial para o futuro, como também pode influenciar as compras dos adultos:
há estudos que dizem que as crianças chegam a influenciar de 70% a 80% das compras da família.
Há diversos projetos de lei em andamento no Congresso com o objetivo de regular a publicidade
infantil. Existe uma forte movimentação do setor contra as propostas. As associações de classe (da
indústria de refrigerantes, da indústria alimentícia, das agências de publicidade etc.) participam das
audiências públicas sobre o tema para defender que não haja nenhum tipo de restrição à atividade
publicitária, desqualificando a discussão e os nossos argumentos. Isso atrasa muito o desenlace do
tema, porque o Legislativo fica tentando mediar e chegar a um consenso. O projeto de lei 591/2001, o
mais emblemático sobre publicidade infantil, por exemplo, tramita no Congresso há 12 anos sem
nenhuma perspectiva de ser aprovado. (Acesso em: http://www.idec.org.br/em-acao/revista/o-
labirinto-das-multas/materia/crianca-alvo-facil-da-publicidade, 15/10/2016).
16
Por outro lado, amplia-se a defesa pelos direitos dos animais e a prioridade pelos animais
domésticos. Conforme dados recentes do IBGE, a população de cachorros foi estimada pelo instituto
em 52,2 milhões, indicando média de 1,8 cachorro por domicílio. Já a população de gatos foi
estimada em cerca de 22 milhões. Os números mostram que, hoje, é possível dizer que o Brasil tem
mais cachorros do que crianças, já que, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD), de 2013, o país tinha 44,9 milhões de crianças de 0 a 14 anos. Leia mais sobre
esse assunto em http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/brasil-tem-mais-cachorros-de-estimacao-
do-que-criancas-diz-squisa-.
27
17
Ao longo da tese, serão apresentados e problematizados alguns destes dados.
28
Cabe destacar que buscamos uma análise do fenômeno para além das
representações comuns e das especializações temáticas isoladas, projetando uma
produção teórica mediada pela compreensão da sociedade burguesa na perspectiva
da totalidade social. Não nos contentamos com análises ou formas esquemáticas
que explicam o fenômeno dos adolescentes e da cultura política punitiva por meio de
representações conservadoras, positivistas ou vinculadas ao senso comum, tão
recorrente nesta área, no atual momento brasileiro.
É com base na referência teórico-metodológica da tradição marxiana que
construímos a proposta metodológica deste estudo. Pensar a contribuição da teoria
social de Marx e tê-la como referencial é afirmar a perspectiva político-ideológica
que consideramos fundamental para decifrar as contradições da sociedade, pois:
O traço distintivo desta teoria é que ela toma a sociedade (burguesa) como
uma totalidade concreta: não como um conjunto de partes que se integram
funcionalmente, mas como um sistema dinâmico e contraditório de relações
articuladas que se implicam e se explicam estruturalmente. Seu objetivo é
reproduzir idealmente o movimento constitutivo da realidade (social), que se
expressa sob formas econômicas, políticas e culturais, mas que extravasa
todas elas. Por isso, a análise da organização da economia (a crítica da
economia política) é o ponto de irradiação para a análise da estrutura de
classes e da funcionalidade do poder (a crítica do Estado) e das formas
jurídico-políticas (a crítica da ideologia) (NETTO, 1998, p. 29).
18
O procedimento metodológico do grupo focal foi utilizado após a proposta ser apreciada e aprovada
pelo Comitê de Ética da UERJ, tendo obtido Certificado de Apresentação para Apreciação Ética
(CAAE) de número 58130916.6.0000.5282, disponível em: <http://plataformabrasil.saude.gov.br>.
Bem como no momento do grupo focal os participantes leram e assinaram o termo de consentimento
(modelo em anexo). O convite foi feito através de uma prévia seleção aleatória de profissionais que
trabalham no DEGASE/RJ e ou nas demais frentes de atendimento das MSEs. Foram convidados 17
profissionais, doze confirmaram presença, porém apenas quatro compareceram. Foram dois
assistentes sociais do DEGASE e dois do Ministério Público, que trabalham com as MSEs, sendo que
um destes havia trabalhado por dois anos no DEGASE.
19
A análise de conteúdo é “considerada fundamental na pesquisa, porque é quando os dados
coletados ganham vida à luz da teoria e, por sua vez, a teoria ilumina-se maior vigor perante a
realidade. Por isso é aqui que a competência e habilidade teórica metodológica do pesquisador
devem ter, executando o compromisso inicial da pesquisa, a intencionalidade ética e política”
(SCHMIDT, 2009, p.69). Minayo considera que o termo “análise de conteúdo” “significa mais do que
31
um procedimento técnico. Faz parte de uma histórica busca teórica e prática no campo das
investigações sociais” (1998, p.199).
32
MSEs pela via dos determinantes raciais e de classe social. Através destes
determinantes, foi possível chegar também no papel da mídia burguesa como um
dos aparelhos privados de hegemonia, que na atualidade possui centralidade na
conquista de consensos e de um forte senso comum sobre a necessidade de
punição.
No terceiro e último capítulo, intitulado “Medidas socioeducativas e o
trabalho do serviço social: limites e possibilidades no contexto da barbárie
engendrada pela cultura punitiva”, a intenção foi de demonstrar os elementos da
cultura punitiva nas MSEs a partir dos profissionais do Serviço Social. Por via da
perspectiva da criminalização dos adolescentes pobres e da punição, foi possível
problematizar e decifrar as formas reiteradas de punição, bem como sobre as
contradições presentes no processo de trabalho dos assistentes sociais. Também foi
possível perceber as dificuldades vivenciadas pelos mesmos, considerando as
formas jurídicas burguesas, podendo, então, contribuir com o repensar sobre o
trabalho com as MSEs.
34
20
Sobre cidadania burguesa, importante leitura de MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e
status. (1967). Porém a compreensão nesta tese sobre cidadania refere-se a “(...) capacidade
conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos,
de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de
realização humana abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado.
(COUTINHO, 2000, p. 50)
21
Partimos do pressuposto de que, no modo de produção capitalista, a efetivação de “marcos
civilizatórios” é limitada; conforme Marx (1968, apud NETTO, 2013, p.32), ela se dá “apenas pela
realização da emancipação política, porém a ordem burguesa engendrou sua negação”.
22
Compreendemos crise do capital como a necessidade do capitalismo de “cada vez mais se
reproduzir, através de valorização do dinheiro e de mercadorias, a crise é parte constitutiva do
modelo vigente, e é este processo de “abalos na rotação do capital (...) que requisita crescentemente,
a intervenção do Estado com o suporte do fundo público, em variadas formas, o que inclui, como
vimos sinalizando, a política social” (BEHRING, 2012, p. 166).
37
23
A “questão social” neste estudo é compreendida como “o conjunto das expressões das
desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social cada
vez mais coletiva. O trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus
frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade” (IAMAMOTO, 2007, p.27).
Também compreendemos que a “questão social” “não é uma sequela adjetiva ou transitória do
regime do capital: sua existência e suas manifestações são indissociáveis da dinâmica específica do
capital tornado potência social dominante. A “questão social” é constitutiva do capitalismo: não se
suprime aquela se este se conservar” (NETTO, 2013, p. 15).
38
24
A ideia foi demonstrar, ao longo da pesquisa, que vivemos em um país onde a polícia foi e é
capacitada para matar. Consideramos que esse aparato policial se constituiu ao longo de nossa
formação social e política, intensificando-se a partir do longo processo ditatorial. A “polícia que mata”
é uma expressão de nossa cultura política punitiva. Casos como chacinas em São Paulo e caso
Amarildo no Rio de Janeiro demonstram essa realidade, sobre a qual aprofundaremos na tese. Sobre
a relação entre polícia e ditadura militar no Brasil, importante destacar a produção do jornalista Caco
Barcellos “Rota 66: a história da polícia que mata”, 1992. Bem como dados do Instituto Human Rights
Watch (2016) demonstram que a polícia no Estado do Rio de Janeiro é a que mais mata. Isso será
demonstrado a seguir.
25
Acesso pelo provedor de serviço online “NETFLIX”.
42
penitenciárias. Desde 1994, nos EUA, por meio da ALEC (American Legislative
Exchange Council), denominada associação e ou clube privado, tendo, como
membros, políticos, empresários e corporações, como Walmart (o maior vendedor
de armas e de munição do mundo), Direct TV, Fedex, Pfzer, Ford, entre outros,
estes vêm influenciando e propondo leis a seus correspondentes políticos (lobbys).
Este grupo influenciou mudanças de leis mais “duras”, em uma conjunção entre
incentivos para armas e financeirização para construção de presídios, ampliou a
militarização, bem como apoiou a política de “tolerância zero”, que, por sua vez,
contribuiu para produzir o hiperencarceramento, principalmente de pessoas pobres e
negras. A ALEC influenciou muitas leis na perspectiva punitiva, tanto no aumento
das prisões privadas requisitando a manutenção dos índices altos de
encarceramento (relação com o judiciário americano), bem como na alteração da lei
que determina que o presidiário cumpra 85% do tempo da pena, sem receber
liberdade condicional, contribuindo com o lucro das empresas.
No Brasil, no que se refere aos processos de privatizações de unidades
prisionais, a sua incorporação apresenta-se no início. Empresários das indústrias de
segurança, de armamentos e políticos conservadores (bancada da “bala”) já
perceberam que a privatização e ou o aumento de presídios pode vir a ser um
grande negócio26. No caso das MSEs para adolescentes, ainda não houve
movimentos em relação à privatização de unidades de execução, mas já acontece a
participação de empresas terceirizadas na área de alimentação e segurança
externa, em contratos temporários de trabalhadores, bem como a participação de
empreiteiras na construção de novas unidades27. Reconhecemos também que a
lógica da construção do medo dos adolescentes negros e pobres acaba por também
vincular-se à busca de mais segurança, muitas vezes privadas, e na oferta de
armamentos. Consideramos, então, que fazem parte de um subproduto partícipe da
acumulação capitalista.
26
. Ver “Privatização de presídios aprofunda discussão sobre responsabilidades do Estado. Brasil de
Fato, 04 fev. 2013. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/node/11838>.
27
Com a efetivação do SINASE, que recomenda adequações arquitetônicas nas unidades de
privação de liberdade e semiliberdade, foram construídas novas unidades e outras reformadas.
Porém percebe-se que, no debate político (poder executivo) e judiciário em torno do aumento de
internações e da superlotação das unidades, a centralidade acaba ficando na necessidade de
construção de novas unidades e não sobre a inadequação jurídica de muitas internações, muito
menos sobre a realidade da criminalização dos pobres.
43
28
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2016. Disponível em:
<http://www.forumseguranca.org.br/storage/10_anuario_site_18-11-2016-retificado.pdf>
29
Compreendido como o movimento livre e ilimitado do mercado, que possibilitaria o bem-estar.
Conforme Adam Smith (2003), a “mão invisível” do mercado livre que regula as relações econômicas
e sociais produzindo o bem comum.
44
30
Matéria sobre índices alarmantes de mortes no Brasil, em “Le Monde Diplomatique Brasil”,
Intitulada “A dialética do esclarecimento revisitada”. Publicada em Julho 2015, p.30.
31
Estes dados serão demonstrados no próximo capítulo.
32
Fala de jurista Marcelo Semer em 17/03/206. Disponível em:
<http://www.vermelho.org.br/noticia/277928-1>
45
35
Sobre o debate em torno da questão de um genocídio no Brasil, será aprofundado no terceiro
capítulo deste estudo.
36
Fonte de pesquisa: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2013/mapa2013_homicidios_
juventude.pdf>
47
processo legal” (que em relação ao antigo Código de Menores, foi um avanço), não
conseguiu reduzir o número de adolescentes presos, seguindo a tendência
neoliberal do “grande encarceramento”, conforme expressa o gráfico abaixo:
Controle autoritário, que no Brasil possui suas raízes em sua formação social,
política, econômica e cultural, sobre o qual iremos demonstrar na próxima seção.
Questão que se observa através da reprodução da mundialização do capital no
Brasil, o recrudescimento da punição como prática consensual se intensifica. A
mundialização favorece os países ricos e dominantes, bem como abre fronteiras
para o acirramento dessa dominação. Assim como as desigualdades sociais são
intrínsecas, a reprodução do capital e o acirramento destas como o aumento da
“pobreza” passam a ser uma problemática e considerada uma “ameaça” ao
desenvolvimento e à segurança mundial. Neste sentido, o Estado brasileiro passa a
cumprir com as diretrizes do Banco Mundial (BM) e do Fundo Monetário
Internacional (FMI) na administração da “pobreza”, como já dito em uma conjunção
entre a mesma, assistencialismo e punição como forma de “controle”. Diretrizes que
se expressam nas particularidades das MSEs.
37
O conceito de “revolução passiva” ganhou destaque nas reflexões de GRAMSCI (1987). Conforme os estudos
de FREIRE, “Gramsci considera que a ‘revolução passiva’ realiza uma espécie de estatização da transição que
destrói toda a iniciativa popular na base e qualquer modificação nas relações governantes-governados no interior
das superestruturas e das instituições. A ‘revolução passiva’ compromete, por meio de automatismos inscritos no
coração das instituições de reprodução social, a mudança com a conservação.” (FREIRE, 2011, p. 19)
51
(VIANNA, 1997, p.7). E na atual crise estrutural do capital e seus impactos tendem a
recrudescer o conservadorismo e o autoritarismo, bem como o “controle social” das
classes subalternas.
Os ajustes econômicos no cenário mundial possuem natureza universal, pela
qual os países centrais ditam as regras aos países periféricos, que cumprem a
cartilha imposta. Porém cada país expressará, em sua particularidade, as
consequências dessas alterações conforme sua formação social, política e
econômica (FERNANDES, 2005; IANNI, 2004; PRADO, 2004). A questão da
ampliação do mercado financeiro mundial é descrita por Iamamoto (2007):
38
Compreendemos como conservadorismo a adesão a princípios e valores que devam ser conservados em
relação a mudanças históricas. Alinhados ao tradicionalismo, contrapõem-se a transformações. Na perspectiva
deste trabalho, o pensamento conservador deixa de se contrapor ao capitalismo, obscurecendo as “contradições
próprias da sociedade capitalista, enfatizando, no nível analítico, apenas o que favorece sua própria coesão e
reprodução e encobrindo as desigualdades fundamentais nela produzidas” (IAMAMOTO, 1995, p. 23).
53
incorporada na sociedade desde esse período, fincando raízes, e nos tempos atuais,
quando, de forma ressignificada, colhemos seus frutos. A ideologia seletiva da
criação de consensos se expressa na forma superficial e moralista de caracterização
a priori sobre os sujeitos.
Neste período, assim como em outras rupturas históricas (Proclamação da
Independência – 1822, Proclamação da República – 1889 e a Revolução de 1930), o
pensamento autoritário e conservador debruçava-se sobre a presença do negro,
considerando-o mais “frequentemente estranho ao Estado Nacional” (IANNI, 2004,
p. 131).
A lógica punitiva, que tem como estratégias a utilização do aprisionamento
e/ou do genocídio dos pobres, em sua maioria negros no Brasil, não é nova como
forma de enfrentamento da “questão social”, é histórica e constitutiva da cultura
brasileira. Porém, no estágio atual de desenvolvimento, tal lógica se intensifica e
vem sendo (re) produzida de forma hegemônica e consensual. Octavio Ianni (2004)
traz elementos para pensar a criminalização da “questão social” tanto na formação
histórica brasileira como para os dias atuais:
pobres, está é a particularidade dos adolescentes que são destinatários das MSEs.
Conforme nos mostra Freire (2015), o resgate e aprofundamento sobre esses
elementos históricos não devem reproduzir linearmente os fatos justificáveis da
história atual, mas devem evidenciar componentes centrais da cultura política
brasileira. Assim:
Tal postura fica evidente nas palavras de Oliveira Vianna (1930), ao frisar
que num país ainda por colonizar, é de um ridículo atroz que estejamos a
debater a distribuição da riqueza, quando os mais simples, os mais
56
39
Cidadania regulada foi o nome proposto pelo sociólogo brasileiro Wanderley Guilherme dos Santos
para nomear uma "cidadania restrita e sempre vigiada pelo Estado" (1979). Os direitos civis e
políticos evoluíram pouco entre 1930 e 1945, pois em 1937 foi instalado o Estado Novo, um regime
ditatorial estabelecido no governo Vargas e durante o qual a "participação" popular restringiu-se aos
votos para o Legislativo.
40
Serviço de Assistência ao Menor (SAM), Legião Brasileira de Assistência (LBA), Institutos de
Aposentadorias e Pensões (IAPs), Ministério do trabalho, Ministério da Educação, Departamento
Nacional de Saúde e a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
58
populares nas decisões políticas do Estado. Do mesmo modo cabe frisar que o
movimento integralista41 influenciou na formação autoritária brasileira.
Na atual conjuntura, o que vem se configurando como “nova” é a relação
intrínseca entre políticas assistenciais minimalistas e repressão às denominadas
“classes perigosas”. Isto ocorre pela via da criminalização dos pobres, como forma
de enfrentamento da “questão social” – processo que compreendemos constituir-se
como uma “face contemporânea da barbárie” (NETTO, 2013, p.36). A denominação
e/ou conceito de “classes perigosas” não é novo, tem sua origem na segunda
metade do século XIX, e considera “perigosas porque pobres, por desafiarem as
políticas de ‘controle social’ no meio urbano e também por serem consideradas
propagadoras de doenças” (CHALHOUB, 1996, p. 20), estando as mesmas “à
margem da lei”. Esse processo, que inaugurou de forma técnica e científica a gestão
das diferenças sociais nas cidades, é abordado por Batista (2003) como uma forma
de fundamentar políticas de “controle social” e o genocídio dos pobres e negros no
Brasil:
Esta perspectiva é corroborada por Ianni (2004) quando refere que muito
tempo depois, praticamente um século após a Abolição da Escravatura, ainda
ressoa no pensamento social brasileiro “a suspeita de que a vítima é culpada. Há
estudos em que a “miséria”, a “pobreza” e a “ignorância” parecem estados de
41
Neste processo, cabe destacar também sobre a Ação Integralista Brasileira, através de Plínio
Salgado, fundador e importante liderança da Ação Integralista Brasileira, partido de extrema-direita
inspirado nos princípios do movimento fascista italiano, fazia referências insistentemente positivas,
principalmente a Alberto Torres e a Oliveira Viana. Salgado também afirmava que esses pensadores
constituíram uma das principais influências na ideologia integralista. No Brasil, a década de 1920 tem
uma importância crucial para o crescimento do pensamento autoritário e, nessa época, Plínio Salgado
já participava ativamente da vida político-cultural no país. Diante disso, a perspectiva de se
compreender o integralismo como um movimento de caráter fascistizante conflui com o componente
da tradição intelectual autoritária brasileira. Grandes proprietários de terra tinham influência no
governo.
60
42
Na atualidade, a violência está presente no cotidiano e nas formas de socialização da sociedade
brasileira que possui diferentes expressões, bem como concepções. Porém nossa análise. quando
nos referimos à “violência”, será em relação à criminalização e controle dos pobres através dos
diferentes aparatos estatais.
43
Sobre esse debate, é importante destacar os estudos do historiador Leandro Karnal sobre a
produção da cultura do ódio, como consta no vídeo: “O Ódio no Brasil” (2011).
61
(...) marcada por uma forma de dominação burguesa que Fernandes (1975)
qualifica de “democracia restrita” – restrita ao membros das classes
dominantes que universalizam seus interesses de classe a toda nação, pela
mediação do Estado e de seus organismos privados de hegemonia
(IAMAMOTO, 2007, p. 131).
política e econômica que não rompeu com seu caráter dependente e desigual.
Nessa perspectiva, é de fundamental importância compreender a lógica da
acumulação e o papel do Estado burguês para, então, referir o gerenciamento dos
descartáveis para o mercado. Muitos se veem sem qualquer possibilidade de virem
a ser incluídos e acabam se tornando “(...) estoques de força de trabalho
‘descartáveis’ para o mercado de trabalho, colocando em risco para esses
segmentos a possibilidade de defesa da própria vida” (IAMAMOTO, 2004, p.33).
Esses descartáveis citados pela autora precisam ser administrados pelo Estado,
pois, fora do mercado, podem se tornar um entrave para a economia, tanto pelas
lutas por melhores condições de vida, como por não poderem consumir. No tardo-
capitalismo, em tempos de afirmação da cultura do consumo, que cria a
sensibilidade consumidora (NETTO 2013), a categoria “sujeito de direitos”44 se
converte para “sujeito de consumo” e/ou “objeto do direito”, como denominou
Trindade (2002). A satisfação diária do consumo como única finalidade da vida é
referida por Behring (2009) a respeito do capitalismo contemporâneo, marcado pela
“fantasia do consumo, como se o mercado estivesse acessível para todos e fosse a
única possibilidade de plena realização da felicidade” (BEHRING, 2009, p.45).
A desregulamentação e o desmantelamento de conquistas sociais e
democráticas no mundo estão imbricados com as alterações no modo de produção,
agora intensivo em tecnologias e na efetivação de políticas neoliberais. Tem-se,
assim, um recrudescimento da “questão social”, que tem deixado parcelas imensas
da população mundial fora do mercado de trabalho.
Essas alterações geram impactos para os que vivem da venda de sua força
de trabalho: cortes, precarização nas condições de trabalho e de direitos
trabalhistas. Aqueles que não vendem a força de trabalho – sujeitos que
compreendem “universos heterogêneos, desde aposentados com pensões
miseráveis, crianças e adolescentes sem qualquer cobertura social (...)” (NETTO,
2013, p. 23), doentes e demais trabalhadores formais e informais, que têm perdido
postos de trabalho - enfrentam um “mal maior”, que Netto (2013) denominou de “rés
44
Torna-se fundamental compreendê-la em relação com “sujeito de consumo” e ou “objeto do direito”,
pois, com o ECA, a categoria passou a ser central na mudança de paradigma para a defesa deste
segmento. É preciso problematizar a contradição entre “proteção” e “punição”, mas cabe aqui já
apontar que ela deve ser compreendida somente no debate da emancipação política – “os direitos
apenas como normas abstratas, que são creditadas independentemente das vicissitudes históricas.
Assim, a naturalização dos processos de construção dos direitos retira sua conflitualidade e
contraditoriedade” (WOLFF, p. 08).
63
45
“Para a política social, a grande orientação é a focalização das ações, com estímulo a fundos
sociais de emergência, e a mobilização da ‘solidariedade’ individual e voluntária, bem como das
organizações filantrópicas e organizações não-governamentais prestadoras de serviço de
atendimento, no âmbito da sociedade civil” (BEHRING, 2003, p. 65). Sobre as políticas sociais no
Brasil, em tempos de efetivação da política neoliberal, ver Elaine BEHRING. “O Brasil em contra–
reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos” (2003).
64
46
Disponível em: <http://exame.abril.com.br/brasil/desigualdade-diminui-mas-salarios-tambem-caem-
diz-pnad/>
65
47
Como concepção e gestão de política social (principalmente da política atual de assistência social
no Brasil), são utilizadas concepção de Beck (1997), teórico liberal que tem como perspectiva a
“modernização reflexiva” e a teoria do risco, que apresenta uma abordagem conservadora da
sociedade atual. O autor assinala como alternativas para romper com o “risco no mundo globalizado”
66
a consideração do indivíduo como “ator, planejador, diretor de cena de sua própria biografia,
identidade e convicções, na lógica do ‘faça você mesmo’” (BECK, 1997, p 25.), suprimindo a luta de
classes.
48
Cabe registrar que o autor não é um teórico marxista, mas é um importante pesquisador do
pensamento crítico, contribuindo de forma intensa com dados de pesquisa que demonstram essa
realidade.
67
(...) paradoxo colocado está no fato de ser sabido que a pobreza é uma
decorrência da sociedade de classes, mas, mesmo assim, serem as
pessoas o alvo das intervenções de “proteção”. Incidindo na
individualização, nas histórias particulares, sejam individuais ou familiares,
preservam – se valores burgueses (propriedade privada, modelos de
famílias burgueses, escola, etc.) e condena-se tudo que os ameaça. Um
dos maiores paradigmas da sociedade burguesa, a propriedade privada, é
exaltada em cada uma das práticas sociais. A prática hierarquizada e
autoritária de assistentes sociais, médicos, pedagogos, psicólogos,
filantropos, do judiciário, enfim, dos que em geral entendem estar
protegendo os que estão em risco, é tão privada quanto a vida dos que
vivem as intervenções (2007, p. 70).
49
Risco ou situação de risco “é um termo, de ressonância na formulação de alguns teóricos da tradição
sociológica francesa, utilizado frequentemente por Pierre Rosanvalon. O autor entende a lógica da proteção
integral (ou do Estado Providência) por outro viés, ― o Estado Providencia funcionava por um véu de ignorância,
pois, ao perceber os riscos de forma homogênea, perde-se a racionalidade das diferenças (ROSANVALON,
1998, p.56). Seu debate abre um leque de possibilidades, mas em nossa modesta opinião, não se trata de uma
nova questão social na vida de crianças e adolescentes, mas de novas determinações da questão social o que
não elide recorte de classe social” (LIMA, 2013, p.211).
69
O que fazer com todas essas crianças? Jonathan Swift e sua língua afiada
sugeriram: ora, se não podemos alimentá-las, vamos comê-las. Por um bom
preço, claro. Admito que esta comida será um tanto cara e, sendo assim,
muito apropriada para Senhores de terra que, tendo já devorado a maioria
dos pais, parecem ter maiores direitos sobre os filhos.
(SWIFT, 1729)
50
Escritor anglo-irlandês (1667 – 1745) escreveu diversas obras. “As viagens de Gulliver” (1726) são
as mais conhecidas. A obra que nos interessou aqui foi a intitulada originalmente como: 'Modesta
proposta para evitar que as crianças pobres da Irlanda sejam um fardo para seus pais ou para o país'.
(1729)
71
51
Disponível em: <http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/2016/12/unicef-535-milhoes-de-
criancas-vivem-em-areas-de-conflito-ou-desastres/#.WE7_jLl2Ff0>, acesso em: 09 dez. /2016
52
Uma pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), que
estudou casos de linchamento de 1980 até 2006, constatou que o Brasil é o país que mais lincha no
mundo. Nesse período, foram 1179 casos. O Estado do Rio de Janeiro aparece em segundo lugar,
com 204 justiçamentos. Em primeiro vem São Paulo, com 568. Acesso em:
http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-07-26/brasil-e-pais-que-mais-faz-linchamentos-rio-
amarga-vice-campeonato-nacional.htm
72
53
A Revolução industrial, localizada historicamente em meados do século XIX, seria uma continuidade
do processo de aprimoramento técnico e científico da Primeira Revolução Industrial (século XVIII).
Não há uma ruptura ou linha divisória nítida que separe os dois períodos, mas, a partir da segunda
metade do XIX, houve um aumento significativo no ritmo industrial, expansão do uso da energia
elétrica, o uso do motor à explosão, difusão do uso do aço, ampliação extraordinária das ferrovias,
modernização dos meios de comunicação, crescimento das cidades, e uma série de novas invenções
que permitiram maior integração entre os mercados, e maior obtenção de lucros pelas empresas,
resultando na aceleração da economia capitalista mundial.
73
54
Será aprofundada no próximo item deste capítulo.
75
55
Em destaque para RIZZINI (2009, 2011), ARANTES (2005), PASSETI (2009), ZAMORA (2005),
FALEIROS (2011), dentre outros.
76
56
Sobre este debate, ver Garcia Mendez, Emílio. Do avesso ao direito: da situação irregular à
proteção da infância e da Adolescência na América Latina. São Paulo: Malheiros, 1994.
77
57
As citações do texto foram fielmente transcritas conforme a língua portuguesa da época.
78
58
Conforme os estudos de ZALUAR, “Vadios eram considerados os mendigos, os desocupados, os
jogadores, os capoeiras e todos aqueles que exercessem atividades não reconhecidas oficialmente.”
(ZALUAR, 1996, p.81). Bem como a “repressão as contravenções tinham como objetivo separar o
trabalho da vagabundagem” (ZALUAR, 1996, p 93).
59
Conforme a historiadora Mary Del Priore, a historiografia sobre crianças e adolescentes no mundo
pode servir de inspiração para nós, mas não como uma bússola, “as lições devem começar em casa”:
e afirma que; Gilberto Freyre em 1921, manifestava seu desejo de escrever “(...) uma história do
menino da sua vida – dos seus brinquedos, dos seus vícios – brasileiro, desde os tempos coloniais
até hoje. Já comecei a tomar notas na biblioteca de Oliveira Lima, (anotava ele) nos cronistas
coloniais, nos viajantes, nas cartas dos jesuítas. Sobre meninos de engenho, meninos do interior, da
cidade. Os órfãos dos colégios jesuítas. Os alunos dos padres. Os meninos mestiços. De crias da
casa grande. De afilhados de senhores de engenhos, de vigários, de homens ricos, de educados
como se fossem filhos por esses senhores. É um grande assunto. E creio que só por uma história
deste tipo – história sociológica, psicológica, antropológica e não cronológica – será possível chegar-
se a uma idéia sobre a personalidade do brasileiro. É o menino que revela o homem” (FREYRE,
1921, apud DEL PRIORE, p. 11). Concordamos com o autor sobre ser um grande tema, mas para
além de compreender a “personalidade” do brasileiro, através da apreensão dos determinantes
históricos no “trato” da criança no Brasil, é possível reconhecer o pilar da manutenção das
desigualdades brasileiras, ao qual se coloca hoje como um “lugar-comum perverso”. Sua análise é
restrita no sentido de que não descortinou as desigualdades sociais, bem como a questão da
escravidão.
80
60
A lei em questão previa que: “(...) quando pelo chefe de pollcia da Côrte forem enviados a esse
Juizo menores nacionaes ou estrangeiros que vagam pelas ruas da cidade sem amparo ou
protecção, deve proceder a respeito do modo seguinte: 1º. Solicitar ao ajudante general do exercito
ou da armada, ou ao director do Arsenal de Guerra a admissão dos menores em qualquer das
companhias de aprendizes da guerra ou da marinha; 2º. Requisitar ao Ministerio do Imperio, quando
possa, ser alliacceitos, para que sejam admitidos no Asylo dos Meninos Desvalidos; 3º. Dar a
soldada, na forma da Ord. Liv.1º Tit.88, §13 da disposição do aviso n.º 312 de 20 de outubro de 1859,
não só os menores orphãos como os filhos de paesincognitos; 4º. Finalmente, communicar ao agente
consular respectivo, logo que for reconhecida a nacionalidade do menor estrangeiro, antes de dar-lhe
o destino legal, afim de facilitar áquelle funccionario os meios necessarios para a boa direcção dos
filhos menores de seus compatriotas”. Disponível em: <http://www.ciespi.org.br/index.phpa>
61
Sobre este fato, será desenvolvido no próximo capítulo.
82
certo comportamento social (...)” (VIANNA, 1999, p. 22), onde o papel da polícia
neste período foi central para a construção ideológica da cultura do termo “menor”
como “agente classificador”, sendo aplicado a uma camada específica da população
e não a todos que se encontravam em determinada faixa etária (VIANNA, 1999).
Questão que nos dias atuais ainda permanece e é recrudescida de forma
assustadora.
Na construção do consenso em torno da punição ao “menor”, consideramos o
papel da polícia62 como mais um elemento fundante da cultura punitiva que se
perpetua também no período garantista (ECA). “A criação da polícia no Brasil
constitui um privilegiado sismógrafo para prolongarmos a apreensão da crosta
repressiva que revestiu a formação social brasileira” (BRITO, 2010, p. 157). Zaluar
(1996) refere também sobre este processo:
62
Em 1809, foi criada a Guarda Real de Polícia. Subordinada à Intendência, colocou-se, efetivamente,
como uma forca policial de disponibilidade integral, organizada sob perspectivas militarizadas.
Holloway (1997), ressaltando a truculência de seus métodos e intervenções, mostrou que o castigo
físico em público se tornou uma cena cotidiana, conforme revelado, por exemplo, pelo ritual punitivo
apelidado de ceia do camarão, baseado na intensiva agressão a suspeitos, em meio a logradouros,
até o ponto das carnes descascarem. Particularmente, vale registrar que Miguel Nunes Vidigal
(ocupando o cargo de comandante da Guarda Real de Polícia no período de 1809 até 1824, quando
foi aposentado com honrarias de Marechal-de-Campo) ganhou notoriedade por rituais truculentos,
como o supracitado e pelas incursões aos quilombos. O recrutamento dos membros da Guarda Real
de Polícia era realizado, sobretudo, nos setores sociais pauperizados, privilegiando homens com
famas de frieza e brutalidade consolidadas, na expectativa de melhor atingir a meta de infundir terror
aos “ociosos”, “vadios” e “escravos recalcitrantes”, agindo sobre os “efeitos sociais do colapso da
velha ordem” (Holloway, 1997: 264), em nome da defesa do status quo imperial-escravocrata. Em
outubro de 1831, sob a luz do Código Criminal de 1830 e das pretensões de “modernização” do
Estado e seus mecanismos de controle, foi criado o Corpo de Guardas Municipais Permanentes
(posteriormente, Corpo Militar de Polícia da Corte, em 1866, e Polícia Militar, a partir de 1920). Em
agosto de 1831, foi criada a Guarda Nacional, também sobre bases estritamente militarizadas, mas
com amplitude nacional (BRITO, 2010, p.157).
83
Quer pela inserção dos juristas enquanto agentes históricos; quer pela
participação e envolvimento direto dos “bacharéis” na vida pública e na
formação ideológica brasileira, enquanto intelectuais atuantes na política e
em vários campos do saber (história, geografia, literatura, jornalismo etc.).
Além de encaminhar o projeto de construção da “nação”, o discurso jurídico
63
Conforme SPOSATO (2006, p.47): “A partir da leitura de apenas dois artigos do Código de Menores
de 1979, já é possível avaliar a forte influência da doutrina da situação irregular no estabelecimento
de políticas públicas para a infância e a juventude, e especialmente para as políticas de atenção aos
adolescentes envolvidos com a prática de infrações penais. De modo geral, coube à Justiça da
Infância e Juventude, em associação direta com o assistencialismo, uma ação política de
manutenção do status quo do atendido, sem alterar efetivamente sua condição”.
84
Cabe também apresentar que a escolha dos detidos baseava-se, por sua vez,
“na formação de um conhecimento propriamente policial, capaz de reconhecer
nesses indivíduos, através de suas falas e comportamentos, um perigo potencial.
Esse saber específico seria responsável, ainda hoje, pela própria organização do
inquérito policial, em que a identificação do suspeito precede e justifica as etapas de
investigação” (VIANNA, 1999, p. 46). A “criminalidade” infantil foi, por sua vez, uma
determinação da “delinquência” ao longo do curso desse processo, fazendo par com
a criminalidade feminina e prostituição e com a “vagabundagem”, entre outros
(VIANNA, 1999). Em 1937, a realidade da situação das crianças e adolescentes
pobres no Brasil, mais precisamente da realidade baiana, foi retratada por Jorge
Amado, que lança o livro Capitães de Areia65, levando para a literatura a questão do
“menor”.
A agenda modernizadora no Brasil não comportou procedimentos decisórios
democráticos, com o que as mudanças intensas desencadeadas a partir daí
se deram sob uma ditadura, num processo de modernização conservadora.
Dentro dessa agenda, desde a fase do Estado de compromisso, além da
perspectiva de dar um salto adiante do ponto de vista econômico,
impulsionando as demais oligarquias agrárias e a indústria, estavam
64
Em alguns países, o termo “menor” continua sendo utilizado, como na Espanha, por exemplo, onde
há menos violações e as legislações acabam tendo uma maior efetividade. No caso brasileiro, criou-
se uma grande expectativa sobre a alteração do termo “menor” para adolescente, acreditando que a
alteração viria também com uma mudança na realidade social destes sujeitos. Sobre este debate, ver
a tese de PEIXOTO, B. Roberto, “Socioeducação e Violação de Direitos: o simulacro do Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) no Brasil do século XXI”, 2016, UERJ.
65
O romance “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, foi publicado em 1937. O livro teve a primeira
edição apreendida e exemplares queimados em praça pública de Salvador por autoridades da
ditadura. “Em 1944, quando uma nova edição é lançada, entra para a história da literatura brasileira,
assim como outros livros do autor, traduzidos para outros idiomas e adaptados para rádio, teatro e
cinema. Pela primeira vez na história da literatura brasileira, um escritor denuncia de maneira
panfletária – romântica, e paradoxalmente, socialista e realista – o problema dos menores
abandonados e dos menores infratores que desafiavam a polícia e a própria sociedade. A abordagem
romântica deve-se, exclusivamente, ao fato de o autor minimizar os delitos dos meninos e acentuar
os defeitos da sociedade, nem mesmo a Igreja ficou livre da censura do autor. Por outro lado, Jorge
Amado traz para discussão a problemática desses meninos que não tiveram a felicidade de ter uma
família ou a felicidade de ser acolhidos pelo Estado, que tinha (e ainda tem) a obrigação de defendê-
los de qualquer tipo de marginalização”. (BIAGIO, Maria Cristina Altvate, Resenha, 2004) Disponível
em: <http://www.saojose.com.br/index.php/8-o-colegio/noticias/56-resenha-literaria-do-livro-capitaes-
da-areia-de-jorde-amado>
86
66
A criação da FUNABEM, conforme BATISTA, “está relacionada à Doutrina de Segurança Nacional,
aonde a questão da juventude pobre se encaixa na doutrina de defesa do Estado. A Funabem passa
a atuar como propagadora de ideologia em nível nacional, com discurso ideológico fortalecedor das
representações negativas da juventude pobre, prenhe dos discursos darwinistas sociais e dos
determinismos da virada do século. A Funabem faz o marketing das políticas sociais da ditadura, no
contexto dos “fatores psicossociais”, da política de Segurança Nacional.” (BATISTA, 2003, p. 78).
87
(...) com a noção de que a categoria jurídica de sujeito de direto não é uma
categoria racional em si: ela surge num momento relativamente preciso da
história e desenvolve-se como uma das condições da hegemonia de um
novo modo de produção. É preciso compreender que, ao fazer isso, o novo
sistema jurídico não cria exnihilo uma pessoa nova. Pela categoria de
sujeito de direito, ele mostra-se como parte do sistema social global que
triunfa nesse momento: o capitalismo. É preciso, pois, recusar todo ponto de
vista idealista que tenderia a confundir essa categoria com aquilo que ela é
suposta representar (a liberdade real dos indivíduos) (TRINDADE, 2002, p.
85).
67
Estes dados são fruto da sistematização da autora para uma palestra ministrada sobre os 25 anos do ECA,
promovida pelo CRESS/RJ, 2015.
91
esquerda que possuem esta visão, porém, nas formas equivocadas e contraditórias
de reivindicações pela punição, acaba-se jogando muita “água no moinho” da cultura
punitiva, contribuindo para o fortalecimento do “controle social”, principalmente dos
sujeitos vinculados à classe subalterna. O questionamento e afirmativas contrárias à
punição devem estar em todos os âmbitos da vida social, onde a violência se
expressa (na violência contra mulheres, no meio ambiente, na violência contra
idosos e principalmente em relação a todas as crianças e adolescentes).
No questionamento do papel do aprisionamento como vingança física e moral,
o que pode parecer uma bandeira do abolicionismo penal (utópica talvez), porém o
que move esta reivindicação é a vinculação com a luta contra a ordem violenta,
punitiva (muitas vezes reiteradas) e criminalizadora do capital, em direção a outra
forma de sociabilidade. Percebemos que a não atualização desse debate pela
perspectiva crítica traz equívocos para as práticas, contribuindo para a perpetuação
da punição aos pobres e revigorando a lógica dominante em nossa sociedade. A
autora evidencia a incorporação do poder punitivo por segmentos da esquerda68,
68
Sobre este debate, Rosa e Amaral assinalam a preocupação sobre a “esquerda punitiva”,
destacando que: “Um furor persecutório, muitas vezes histérico e irracional, normalmente
monopolizado pela direita na legitimação de forças reacionárias, acaba por reintroduzir o pior do
autoritarismo em matéria penal. Nada menos porque, ao incentivar o rompimento com imprescindíveis
liberdades fundamentais do Estado de Direito, no entusiasmo de atingir aqueles menos afetados pelo
sistema penal, frequentemente não percebem que esta vinculação repercute, pela própria
seletividade do sistema penal, exatamente sobre os ‘clientes’ de sempre do sistema que sofrem
cotidianamente a sua intensa ingerência” (ROSA, A. M. e AMARAL, A. J., 2015, p.57).
93
A cultura punitiva - expressa nas MSEs - funciona tanto para neutralizar como
para descartar os sujeitos. É importante mencionar que embora as violações das
MSEs possuam especificidades regionais, a lógica contraditória e punitiva que as
sustenta também as constitui como um sistema nacional. Algumas pesquisas
veiculadas recentemente em jornais e sites de notícias constataram o alcance
nacional da precarização e da violação de direitos. Em visita de fiscalização do
Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDCA) da Paraíba, o
relatório denuncia que:
todo e qualquer canto. O único critério seguido para a separação dos jovens
69
parece ser o das “facções” .
69
Fonte: <http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2015/06/porrete-direitos-humanos-e-achado-em-
centro-socioeducativo-na-paraiba.html?noAudience=tru>.
70
Fonte: <http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2015/06/porrete-direitos-humanos-e-achado-em-
centro-socioeducativo-na-paraiba.html?noAudience=tru>.
71
O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) resulta
do processo de estabelecimento, pelo Estado Brasileiro, das diretrizes contidas no Protocolo
Facultativo da Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penais Cruéis, Desumanos ou
Degradantes da Organização das Nações Unidas, ratificado pelo país no ano de 2007. O referido
Protocolo decorre do acúmulo estabelecido na Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU,
realizada em 1993, na qual se declarou firmemente que os esforços para erradicar a tortura deveriam
primeira, e principalmente, concentrar-se na prevenção, designando, para tanto, o estabelecimento
de um sistema preventivo para realizar visitas regulares a centros de detenção.
95
Fato bárbaro dentre tantos que também foi referido pela pesquisadora Ana
Claudia Nery Camuri Nunes, membro na época do Mecanismo em sua tese de
doutorado72:
A adolescente de 17 anos havia sofrido agressões físicas e fora algemada a
uma grade, vestida somente com roupas íntimas e na ponta dos pés. O fato
teria ocorrido em 02/05/2013 e, até o momento da visita, a jovem não havia
sido encaminhada para realização de exame de corpo de delito. A
adolescente só foi encaminhada para unidade policial 24 horas após a visita
do Mecanismo, que caracterizou o evento como “um quadro grave de
omissão por parte da direção da unidade”. A mídia local especulou que ela
teria sofrido estupro. A defensora pública envolvida no caso, à época,
declarou à imprensa que, apesar de nunca ter ouvido relatos de estupro no
Cense PACGC, a menina teria sofrido a tortura só de sutiã - o que
caracterizaria abuso e constrangimento sexual. Vale ressaltar que, na
delegacia, o caso foi registrado como “lesão corporal” (art. 129 do Código
Penal) e não como tortura. No dia em que tudo aconteceu (02/05/2013),
outras duas adolescentes foram algemadas e penduradas da mesma forma
(NUNES, 2016, p.350).
72
“A tortura no teatro dos castigos: do palco à coxia”. Tese de Doutorado pelo Centro de Educação e
Humanidades, Instituto de Psicologia/UERJ (2006)
96
73
Fonte da pesquisa: <http://www.cnj.jus.br/busca?termo=unidades+de+interna%C3%A7%
C3%A3o+de+adolescentes>.
97
Quanta riqueza por aí, onde que está? Cadê sua fração? Até quando
esperar, até ajoelhar esperando a ajuda de Deus!
(Trecho da música “Até quando esperar” da banda PLEBE RUDE, 1985)
74
Sobre este debate, aprofundaremos no próximo capítulo.
101
trabalhadores, desde que o custo salarial de maior número seja igual ou até
menor (MARX, 1980, p. 737).
Em 2013, 95% eram do sexo masculino e 60% deles tinham idade entre 16
e 18 anos. Dados de 2003 indicam que mais de 60% dos adolescentes
cumprindo pena (MSE de privação de liberdade) nesse ano eram negros,
51% não frequentavam a escola e 49% não trabalhavam quando
75
É importante frisar que obtivemos dificuldades em acessar dados sobre o perfil socioeconômico
dos jovens que cumprem MSEs, tanto pela pouca pesquisa e sistematização dos dados, bem como
pela lógica de que o que envolve dados sobre “criança e adolescente” é considerado pela legislação
como “segredo de justiça”. Questão que muitas vezes acaba sendo utilizada como “desculpa” para a
não divulgação e ou sistematização dos mesmos. Consideramos talvez os dados do IPEA como
“pouco” eficazes para traduzir a seletividade do sistema na relação com a pobreza, porém
entendemos que nenhuma ideologia é separada da questão econômica e com isso a comprovação
também se dá na relação com os demais dados expostos, bem como será aprofundado no próximo
capítulo.
107
76
Pesquisa divulgada durante o processo de debate e votação da pauta da redução da maioridade
penal no Congresso Nacional (2015). Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=25620&catid=10&Item
id=9> .
108
O capital produz anualmente mais valia, parte da qual se agrega todo ano
ao capital original; esse acréscimo aumenta todo ano com o crescimento do
capital que já está em funcionamento, além disso, a escala da acumulação
pode ser ampliada, alterando-se apenas a repartição da mais valia ou do
produto excedente em capital e renda, se houver um incentivo especial ao
impulso de enriquecimento, como por exemplo, quando surgem novos
mercados, novas esferas de aplicação do capital em virtude de
desenvolvimento de novas necessidades sociais etc. (MARX, 1980, p. 713).
No Brasil, país que forja uma imagem de harmonia racial tão descolada da
realidade que toma por referência, o racismo sempre foi uma variável
decisiva. O discurso racista conferiu as bases de sustento do processo
colonizador, da exploração da mão-de-obra dos africanos escravizados, da
concentração do poder nas mãos das elites brancas locais no pós –
independência, da existência de um povo superexplorado pelas
intransigências do capital. Em suma, o racismo foi amparo ideológico em
que o país se apoiou e se apóia para se fazer viável. Viável, obviamente,
nos termos de um pacto social radicalmente fundamentado, do qual as
elites nunca abriram mão (FLAUZINA, 2008, p. 17).
Cabe também dizer que a mídia reproduz tanto estas questões77, que muitos
78
dados acabam sendo importantes para deflagrar este processo e também foram
utilizados como fonte de pesquisa para esta tese, sendo considerada “(...) o arquivo
por excelência. O registro diário dos fatos, cada vez mais rico e abundante, fornece
informações preciosas sobre os valores, as ideologias, a percepção dos temas e
problemas sociais, o funcionamento das instituições e as práticas sociais” (FREIRE,
2014, p. 67).
77
Sobre o debate do papel da mídia como produção de uma “manufatura do consenso” e como
“aparelhos hegemônicos”, ver os resultados das pesquisas de FREIRE (2014).
78
Sobre os discursos utilizados pela mídia, ver pesquisa de Marco Antonio Viera e Sá “Mídia e
letalidade do Sistema Penal: marcas discursivas do jornal Meia Hora” (2014 p. 73)
112
79
Notícias site UOL, acesso em: 08 jan. 2016.
80
Foucault define como: A noção da periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado
pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações
113
efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam
(FOUCAULT, 2003, p. 85).
81
Notícia acessada pelo portal G1 em 30 nov. 2015.
82
Disponível em: <http://extra.globo.com/casos-de-policia/policia-do-rio-matou-645-pessoas-em-
2015-diz-relatorio-da-human-rights-watch-19660373.html#ixzz4Dr3Vq3Qb>
83
Notícia acessada pelo portal UOL em 30 jun.2016.
114
sagrado para a solução do conflito” (BATISTA, 2002, p. 223). Para tanto, a mídia se
configura como mais um componente deste processo e, ao decifrarmos seus
discursos ideológicos, é deflagrada também a questão criminal como parte do ciclo
do valor, constituindo-se como um determinante econômico da cultura punitiva.
Contudo podemos afirmar que, na atual realidade brasileira, os determinantes
considerados compõem a lógica de um neopunitivismo como gerenciamento desta
população.
84
Serão citadas e trabalhadas no próximo capítulo.
115
Portanto, é na atual conjuntura que a cultura punitiva, pela via das MSEs, se
insere em uma perspectiva de totalidade social. A perspectiva ideológica da
criminalização dos pobres perpetua-se como um sistema penal juvenil também pela
via do discurso da socioeducação. Esse viés é levantado por Maria Liduina de
85
Os principais autores da criminologia crítica são: ZAFFARONI (1988), BARATTA (1997), OLMO
(1992), ANITUA (2008), BATISTA (1990).
116
Cabe também mencionar que neste processo de busca de uma saber crítico
sobre as funções da prisão e da pena, bem como da cultura punitiva, nem todas as
“leituras do marxismo na questão criminal foram deslegitimantes da pena.
Permanências positivistas, discursos morais e reducionistas produziram aquilo que
Maria Lucia Karam chamou de esquerda punitiva” (BATISTA, 2011, p 86), questão já
mencionada anteriormente. Esta perspectiva atravessa também a execução das
117
MSEs através dos profissionais que nela atuam, questão que será mais bem
aprofundada no próximo capítulo.
É nessa perspectiva que se dá a relação entre políticas assistenciais e
criminais pela via do projeto neoliberal, o que, conforme Batista (2012), é a adesão
subjetiva à barbárie. Os discursos de defesa da lógica da “ressocialização” são
descartados e, conforme a autora, o projeto “do neoliberalismo abandonou as
ilusões de reeducar, ressocializar e ou recuperar para a lógica do armazenar,
neutralizar o sujeito” (BATISTA, 2012, p. 311). Ou seja, a lógica atual para os
“sobrantes”, “excluídos” e “pobres perigosos” são a eliminação, o extermínio ou sua
neutralização, e uma das vias é a das MSEs. Os estudos de Alexandre Morais da
Rosa e Salah H. Khaled Jr. (2014) 86sobre este debate ressaltam que:
86
Artigo “Direito Penal Mofado: a lenda conveniente da ressocialização”. (2014) Disponível em:
<http://justificando.com/2014/07/17/direito-penal-mofado-lenda-conveniente-da-ressocializacao/>
118
87
Texto extraído de entrevista concedida pelo autor. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-
jul-05/entrevista-eugenio-raul-zaffaroni-ministro-argentino>
119
Na “Fundação Casa...
- Quem gosta de poesia?
Ninguém, senhor.
Aí recitei “Negro drama” dos Racionais.
-Senhor isso é poesia?
- É.
- Então nóis gosta.
É isso. Todo mundo gosta de poesia.
Só não sabe que gosta.
(Sergio Vaz, 2016, p. 129)
88
Segundo Goffman (1987), as instituições totais se caracterizam por serem estabelecimentos fechados, que
funcionam em regime de internação, onde um grupo relativamente numeroso de internados vive em tempo
integral. Realiza uma modalidade de análise institucional que pode ser situada transitando entre os planos macro
(ou molar) e micro dos fenômenos que ocorrem nos estabelecimentos fechados. Sua concepção explícita de
poder é a de um poder essencialmente modelador, poder instaurado, repressivo e mutilador do eu em sua
missão (res)socializadora.
123
Apesar do esforço dos dignos magistrados que tem passado pelo Juízo de
Menores, os nossos estabelecimentos para crianças abandonadas não
preenchem sua finalidade educativa (PINHEIRO, 1985 p. 80).
(PINHEIRO, 1985 p. 80). Em que pese sua perspectiva teórica positivista, o texto
demonstra a histórica criminalização dos jovens pobres no Brasil e o pouco que se
avançou, mesmo com os novos mecanismos legais. Neste sentido, havia uma
preocupação com a lógica ideal da legislação e seu distanciamento com a realidade.
Verifica-se que passados tantos anos esta obra nos traz elementos de
realidade e denuncia o quanto as questões envolvidas na área da criança e do
adolescente não foram superadas e continuam na ordem do dia.
Nas décadas seguintes, o Serviço Social, sem deixar de lado a perspectiva
neotomista até então fundante dos valores da profissão, aprofundou sua vinculação
com os fundamentos positivistas e funcionalistas e com isto as práticas se voltaram
a preocupar-se mais com o ajustamento do indivíduo, cujos valores e preceitos do
Código de Ética de 1975 são emblemáticos, por suas expressões conservadoras e
funcionais a ordem ditatorial deste período histórico. Em relação aos deveres dos
125
A.C. A., 16 anos, branco, vendedor de refrigerantes na praia, pego com 1,6
g de maconha, é “membro de família desestruturada”. R.O.P., 15 anos,
pardo, morador de São Gonçalo, trabalhando em “biscates de carregar
água”, preso em 1978 com uma “trouxinha” de maconha, é “menor com
família desestruturada, já que vive com a tia e avó paterna, já que sua mãe
é muito pobre (BATISTA, 2003, p. 118).
89
Fruto de pesquisa de Vera Malaguti Batista, publicado no livro “Difíceis Ganhos Fáceis: Drogas e
Juventude Pobre no Rio de Janeiro, editora Revan, 2003.
126
Desta forma, as MSEs podem ser consideradas como uma das formas de
Você situa o adolescente nas políticas públicas que falharam na escola que
ele evadiu, o DEGASE que ele entrou várias vezes e você não tem nenhum
tipo de retorno de respostas sobre isso, teve um período que no meu
relatório tinha que: “aquela situação se repete naquele território por
gerações e gerações, com o irmão dele, com o primo dele, o CRAS e o
CREAS que ele passou”. Às vezes na decisão da MSE, tendo em vista que
a internação provisória não é dada de maneira excepcional como está na
lei, plantão judiciário é internação provisória e é uma regra, se o
adolescente foi apreendido em Cabo Frio e o plantão judiciário que atende
90
Os relatórios avaliativos possuem como objetivo avaliar os adolescentes a cada seis meses de
cumprimento da MSE, com o intuito de referir sobre a permanência ou a liberação do mesmo. Os
assistentes sociais participam, assim como demais profissionais, como os psicólogos e pedagogos.
91
As diretrizes curriculares aprovadas em 1996 apresentam - como um dos princípios que
fundamentam a formação profissional - o “Estabelecimento das dimensões investigativa e interventiva
como princípios formativos e condição central da formação profissional, e da relação teoria e
realidade” (ABEPSS, 1996, p. 6).
134
aquela área: Araruama, Rio Bonito, e se ele vai para o plantão o Juiz vai
internar provisoriamente, mesmo se ele roubou um biscoito no mercado,
porque ele não vai se comprometer com a organização dos pobres
(Assistente Social 1).
92
A Convenção Internacional sobre direitos de crianças e adolescente utiliza o termo “criança” para
denominar este segmento correspondente a idade de 0 a 18 anos.
93
Um importante registro histórico sobre esta divisão social entre zona sul e norte, principalmente
quando se refere ao acesso às praias, o preconceito aos pobres na década de 1970, no Rio de
Janeiro, é um vídeo de uma reportagem feita na época sobre este debate. O mesmo demonstra a
atualidade deste debate, e quando a classe dominante quer os pobres, negros e moradores das
periferias longe de seu convívio. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=W61Hu3Uj3
QA&spfreload=10>. Acesso em: 05 jan. 2017.
135
(...) mas só que o olhar desta sociedade, a gente está voltando para trás a
passos largos, quando as famílias que não podiam sustentar seus filhos,
eles iam para a FUNABEM, iam lá para as grandes instituições porque esta
família não podia, e é o que hoje está acontecendo, o adolescente que não
tem direito de curtir a sua praia, ele está sendo tirado do ônibus, e levado
para a delegacia, se ele tiver alguma passagem esconde, aí vamos salvar,
está em risco social! “Risco social” está sendo usado por policiais, ele está
em vulnerabilidade social, Beltrame falava isso (Assistente Social 3).
94
Em um único fim de semana de agosto de 2015, como o jornal EXTRA mostrou, cerca de 160
jovens foram retirados de ônibus que saíram do subúrbio em direção à Zona Sul, segundo
funcionários do Ciaca. Na ocasião, a prática foi condenada pelo Ministério Público, por parlamentares
e pelo próprio juiz Pedro Henrique Alves. Já o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, defendeu a
atuação da PM. No mesmo fim de semana, nenhuma das crianças ou adolescentes recolhidos nos
ônibus ficou apreendido por ter cometido qualquer ato infracional. Um ofício da Delegacia de
Proteção à Criança e Adolescente (DPCA), solicitado pela Defensoria Pública do estado, informou
que não houve apreensão de nenhum menor pela especializada. Ainda segundo o documento, alguns
adolescentes foram levados pela PM à delegacia para que fosse verificado se eles tinham mandado
de busca e apreensão pendente, mas nenhum possuía. Disponível em:
<https://extra.globo.com/casos-de-policia/juiz-condena-pratica-da-pm-de-recolher-criancas-
adolescentes-caminho-da-praia-17290527.html>.
95
Em publicação da revista Práxis do CRESS/RJ, este tema foi problematizado. Rodrigo Lima,
presidente do CRESS-RJ, chama a atenção para o caráter segregador da “Operação Verão”, “que
associou a ideia de “provável delinquente” a qualquer pessoa que estivesse descalça, sem camisa e
sem dinheiro, vinda de ônibus do subúrbio ou regiões periféricas da cidade. Com isso, o que se
tentou foi naturalizar e justificar a política de criminalização de segmentos pauperizados da classe
trabalhadora, praticada há tempos por autoridades públicas do estado do Rio de Janeiro. Vale
lembrar que este fato vem sendo insistentemente denunciado, já há muitos anos, por diversos
movimentos sociais e é tema que causa preocupação e denúncia de entidades nacionais e
internacionais de defesa dos direitos humanos” (Revista PRAXIS, nº 85, p. 86, 2015)
136
96
A crise do sistema penitenciário, que é histórica (massacre do Carandiru/1992), marcada pela
evolução de superlotação, péssimas condições de estrutura, insalubridade e violência, veio à tona
e/ou explodiu no início deste ano (2017). A barbárie promovida pela falência do sistema penal
brasileiro foi televisionada na mídia burguesa de massa. Conforme a matéria da EBC: “A morte de
mais de 100 detentos chamou atenção para a guerra de facções criminosas dentro de presídios
brasileiros e expôs a fragilidade do sistema penitenciário nacional. Segundo os últimos dados
divulgados em 2014 pelo Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça
(Infopen), o Brasil chegou à marca de 607,7 mil presos. Desta população, 41% aguardam por
julgamento atrás das grades. Ou seja, há 222 mil pessoas presas sem condenação. Três episódios
que aconteceram em 2017 denotam a crise nos presídios brasileiros. No dia 1º de janeiro, pelo
menos 60 presos que cumpriam em Manaus (AM) foram mortos durante a rebelião que durou 17
horas. Na mesma semana, houve um tumulto em uma penitenciária em Roraima, onde 33 presos
foram mortos. No dia 14, Rio Grande do Norte, pelo menos 26 presos foram mortos em rebelião na
139
este jovem passa a ser definido como partícipe ou do PCC (Primeiro Comando da
Capital) ou do Comando Vermelho. Ou seja, o Estado acaba por contribuir e
referendar as facções criminosas, ainda que muitos adolescentes não tenham esta
definição e/ou inserção, e não estivessem nelas inseridos. Sobre isto, um
profissional discorre que:
- Este perfil que falamos aqui... da não renda, do trabalho informal, talvez
em média um salário e meio, acho que as famílias conseguem tirar
mensalmente (Assistente Social 2).
- Também são famílias inseridas em programas de transferência, de renda,
o bolsa família, eu falo este dado por conta das solicitações de declaração
de frequência escolar, pois tem que estar estudando, mas não que a gente
cruze isso, pois isso tem na ficha de acolhimento e de recepção
(Assistentes Social 3).
A criminalização dos pobres é histórica nesta área. Este era o perfil das
internações no final da década de 1930, conforme já demonstrava o trabalho da
assistente social Isolina Pinheiro:
(...), mas a gente tem que saber que está lidando com o sistema de justiça,
um sistema que é totalmente retrógrado, que não consegue ter outra
perspectiva. (Assistente Social 3).
A fase da vida diz muito, né! Por ser adolescente, esse momento de vida
que ele vive, aí você faz uma associação com este perfil socioeconômico
que ele tem, das limitações de alcance de bens e de serviços e de produtos
e quanto as relações de status tem seu significado dentro das comunidades
não só favelas mas comunidades como um todo e o quanto estas
perspectivas da sensação de status tem um poder muito grande de sedução
pelo dinheiro, de ter a menina mais bonita do morro e vários aspectos, ser
visto, ser respeitado, acho que perpassa muito por isso, por estes aspectos
relacionados e o movimento do adolescente ao encontro do que vai dar
respostas para ele de uma maneira mais rápida, aos aspectos relacionados
mesmo a fase da vida. (Assistente Social 2).
97
Considerado pelo ECA em seu artigo 6º: Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins
sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos,
e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. (BRASIL,
1990).
143
pego pela polícia, é considerado e/ou “tratado” pelo viés da psicologia, psiquiatria,
ou medidas socioeducativas em meio aberto (principalmente as medidas de
prestação e serviço à comunidade). Já se um negro, morador de periferia e pobre
transgredir - e for pego pela polícia - ele será torturado, morto ou irá cumprir MSEs
(privação de liberdade). A questão também que envolve o “trabalho” no tráfico deve
ser analisada pelo viés da inserção nesta sociedade, onde não há espaço para
todos no que se refere ao acesso a bens e consumo, bem como, na conjuntura
atual, estes jovens pobres são filhos de pais que estão fora do mercado de trabalho
formal, e não vão ser inseridos, são supérfluos que não irão ser incluídos, assim
como estes adolescentes que não possuem escolarização. Buscar a renda pelo
tráfico, na maioria das vezes como única alternativa, como forma de inserção,
demonstra a própria expressão das desigualdades sociais nesta relação. Neste
sentido, a criminalização dos pobres opera como uma arma da burguesia na defesa
da propriedade privada, e a forma jurídica possui este papel.
respostas que ele pode ter a nível dos desejos que ele tem e quanto isso
tem representatividade para ele. (Assistente Social 2).
O questionamento que cabe é de que se a busca por romper com esta forma
de inserção como estratégia de sobrevivência e/ou de consumo depende
propriamente de uma escolha individual destes jovens. Questionou-se, desta forma,
no grupo focal, se a reflexão dos assistentes sociais não estaria reproduzindo um
senso comum contido na sociedade, ou também uma visão romantizada sobre a
própria escolha dos mesmos. É neste sentido a manifestação abaixo:
E a privação, porque ele podia ter dinheiro, mas ele não tinha a liberdade de
ir no shopping para comprar, ele não tinha como ter acesso aos bens de
consumo que empoderavam ele perante o grupo, entendeu? Está com o
tênis? Está com a moto? Ele não podia, porque se ele saísse dali corria o
risco de ir para trás das grades, né, então assim, a defensoria pública
sempre vem, não com o discurso de que está vinculado à exploração do
trabalho infantil, mas com o discurso de que tem lá uma súmula do STJ que
fala que quem, no caso dos adolescentes, com uma certa quantidade, ele
não deveria ir... que o tráfico, o artigo 33, não deveria ser encaminhado para
a privação de liberdade, receber MSE. (Assistente Social 3).
Neste sentido, é importante destacar que acreditamos que esta prática pode
vir a ser salutar, bem como defendemos os direitos humanos e lutamos para uma
sociedade onde a “paz” seja uma realidade concreta para todos os seres humanos,
bem como esta “paz” esteja vinculada à eliminação de todas as formas de
exploração e dominação. Portanto, compreendemos que a teoria que consolidou o
surgimento da “Justiça Restaurativa” esteja realmente imbuída na busca desta
sociabilidade, porém sua prática acaba encobrindo os grilhões de uma sociedade
desigual e violenta, principalmente com os jovens pobres, negros e moradores das
periferias das cidades. É oportuno frisar que o Serviço Social vem sendo solicitado
para participar como membro dos círculos restaurativos, então, é urgente o
aprofundamento sobre a temática para que possamos nos posicionar diante da
participação crítica nesta metodologia e/ou a posição da não participação.
A problematização da utilização das MSEs como instrumento de neutralização
- e/ou eliminação destes sujeitos - torna-se fundamental para os profissionais do
Serviço Social, bem como a apropriação da instrumentalidade da cultura punitiva na
compreensão da realidade que envolve as MSEs, questão que iremos aprofundar no
próximo item.
150
Dito isto, a autora também faz referência ao tratamento dos direitos como
uma categoria instrumental, a qual acaba atenuando a tensão ao não permitir que as
contradições sejam desveladas. Isto porque:
forma tímida, e sai depois, mas agora com a onda conservadora que
estamos vivendo a tendência é de ficar mais repressivo e mais militarizado,
tendo atualmente na direção um militar, coronel reformado, tendo grupos e
reuniões para discutir sobre uniforme como coturno, camisa preta, calça de
lona, o jaleco para os técnicos em uma perspectiva de cura, tratamento,
isso é um dos exemplos. (Assistente Social 1)
98
Conforme o SINASE em seu artigo 35º: A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos
seguintes princípios: I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do
que o conferido ao adulto; II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas,
favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos; III - prioridade a práticas ou medidas que
sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas; IV -
proporcionalidade em relação à ofensa cometida; V - brevidade da medida em resposta ao ato
cometido, em especial o respeito ao que dispõe o art. 122 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990
(Estatuto da Criança e do Adolescente); VI - individualização, considerando-se a idade, capacidades
e circunstâncias pessoais do adolescente; VII - mínima intervenção, restrita ao necessário para a
realização dos objetivos da medida; VIII - não discriminação do adolescente, notadamente em razão
de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação
ou pertencimento a qualquer minoria ou status; e IX - fortalecimento dos vínculos familiares e
comunitários no processo socioeducativo. (BRASIL, Lei 12.594/2012).
156
E aí quando esse jovem chega lá, que socioeducação é essa? Ele vira um
socioeducando, que ao mesmo tempo, sócio, convívio. Aprender a
reconstruir seu olhar sobre o mundo, você aprender se ver dentro deste
contexto de sociedade e aí o fortalecimento da educação, não da educação
formal, do letramento, mas da educação de forma mais ampla, de como
você se relaciona com o outro, de aprender a se relacionar com o outro, a
conviver, compartilhar, a ser, que são os pilares educacionais. Aí esse
adolescente chega e é cerceando, na MSE de internação ele está privado
de seu ir e vir, contudo ele é privado de tudo, de ter uma boa educação de
ter acesso à escola e que os professores não estão preparados, ou não
querem fazer um trabalho realmente de resgate daquele espaço, para que
ele reconheça aquele espaço. (Assistente Social 3)
E quando estas não se aplicam de maneira direta nem imediata, (pois falta
a política como mediação à realização do direito), a lei é descartada sob o
chavão de que a teoria na prática é outra. O fetichismo do direito é o véu
que esconde a mediação político-econômica na aplicação das leis e na
realização do direito que é sempre resultado da luta de classes. O
fetichismo do direito carrega seu próprio segredo. Quando este véu se
rompe, só nos resta enxergar a barbárie do mundo burguês. (GUERRA,
2013, p. 9)
157
(...) do contato com as pessoas que estão mais próximas a ele como dos
agentes socioeducativos, onde todo o tempo é reforçado que ele é bandido,
que ele é aquilo etc. e tal, isso dentro de um espaço socioeducativo onde
ele é tratado por um número e perde a identidade dele, onde muitas vezes
não é respeitado sua orientação sexual. Então, qual é o sentido da
socioeducação, quando a gente lê é tudo lindo maravilhoso, mas o que
esses adolescentes vivem é totalmente adverso à proposta que deveria ser,
porque este sistema não está preparado, ou melhor, ele não quer executar
a socioeoducação. (Assistente Social 3)
E a ausência desta discussão para dentro das Unidades e para além do que
a gente pode discutir. O sistema trabalha com regime de plantão dos
funcionários, então para cada grupo de plantão existe um regime disciplinar
o que é falta grave para um plantão não é para outro e vise e versa, por isso
os adolescentes incorporam isso, em cada plantão eles reagem de uma
forma, fica difícil. (Assistente Social2)
Este tipo de regras vem do sistema penal, né, e é produzido no DEGASE.
(Assistente Social1)
O esvaziamento de discussão é nesse nível. (Assistente Social 3)
De 2011 a 2012, quando a gente discutiu o Plano Político Pedagógico, a
gente não conseguiu avançar quanto ao regimento interno, que é pensar o
plano de organização da Unidade, e quanto ao debate sobre as sanções
não conseguimos avançar. Sempre que se colocava em pauta entrava as
questões da discussão das sanções e benefícios, isto não se conseguia
nunca gerar uma discussão, limitava-se ali sempre em discutir as questões
gerais das Unidades, entendendo que tivesse um recorte deste debate,
como se isso fizesse parte de outro espaço, de outro grupo, outros atores,
realmente é uma discussão a nível de regime disciplinar que é muito pouco
absorvida, pelo menos na minha experiência, não ingressa nas equipes de
trabalho, fica a cargo do disciplinamento mesmo para ser pensado.
(Assistente Social2)
O adolescente está sendo acompanhado dois anos pela equipe, ele teve
alguma confusão, teve uma briga, ele é transferido sem que a equipe
técnica saiba, sabe o acompanhamento, sendo legitimado ainda pela nossa
coordenação, que a gente não tem acesso a este menino dentro de outra
Unidade. A gente não pode trocar com a outra equipe, falar quais foram os
acompanhamentos, a gente não pode sentar e conversar com este
adolescente, porque agora ele é de outra Unidade. Quem decide a questão
de disciplinamento, de corpos dóceis, que é falado, esta questão da
normatização deste adolescente, isto não passa pela equipe técnica e
quando passa às vezes é só para cientificar, vai acontecer isso, raríssima
são as vezes que se consegue fazer um debate, vem cá vamos conversar,
vamos pensar nas estratégias, vamos olhar para isso com calma, às vezes
isso até acontece, mas a decisão já está tomada. Ele vai para o isolamento,
que hoje falam que não existe, mas existe, ou então ele tem alguma
sanção, como cortes, deixa de ir para o curso, é retirado do curso e da
escola, isso não pode. (Assistente Social 3)
(...) a gente está muito aquém ainda, reconceituação, a gente sabe que
teve, né, um movimento que olha, espera aí, vamos pensar, mas hoje,
2016, a gente percebe que ainda existe colegas que usam o seu relatório
avaliativo como uma arma contra, criminalizando, culpabilizando aquela
família, buscando o perdão, o arrependimento, a expressão do perdão e do
arrependimento daquele adolescente a respeito daquele ato infracional.
Também estamos sendo requisitados, recebendo várias requisições de
inúmeros lugares para a questão da judicialização sobre várias questões,
estou até extrapolando a socioeducação, o Juiz está mandando que a gente
responda sobre um determinado caso. E o que eu faço com isso?
(Assistente Social 3)
99
Consideramos que o documento produzido pelo conjunto CFESS/CRESS, denominado
“Parâmetros para atuação na área sócia jurídica”, é um importante balizador na direção de uma
atuação direcionada para os preceitos do projeto ético-político da profissão, porém acreditamos que o
maior aprofundamento da realidade das instituições, onde se inserem os assistentes sociais, pode
contribuir para uma aproximação ainda maior das entidades representantes com as dificuldades
vivenciadas.
165
Mas você não acha que tem um atravessamento desse controle do aparelho
do Estado em cima do discurso que possa parecer insipiente mas que
ganha fôlego, desta questão da emancipação, da discussão pelo
empoderamento do jovem, da família, do momento que eles estão perante
esta construção de sociedade, do olhar que o profissional tem com
discussões olhando mais para dentro da profissão, mesmo dos profissionais
que atuam, mesmo dos profissionais que apresentam lapso, sobre as
técnicas, o que fazer, e quanto isso é engolido e ou mastigado pela
estrutura que se coloca para a atuação, você tem a representação da
questão social que é ingerida para dentro da instituição que vem pela
prática dos Assistentes Sociais e dos atores que estão atuando e você tem
também a questão do Estado controlador dessas ações e o debate fica
nesse meio e é sobreposto por isto, e não sei se tem um estágio
intermediário onde essa força maior que se sobrepõe a isso e que direciona
para práticas de criminalização do próprio adolescente que comete o ato
infracional e quanto isso avança para a família lá naquele território.
(Assistente Social 2)
100
A precarização está em quase todos os campos sócio-ocupaconais do serviço social, na saúde, na
assistência social, e demais espaços, porém nesta área possuem uma especificidade, o consenso em
torno da efetivação de uma cultura punitiva produz também um consenso da precarização e de sua
naturalização.
166
de uma nova visão de mundo. O trabalho deve também voltar-se para a construção
de estratégias a partir da compreensão dos aspectos que engendram e se
expressam a essa cultura, e talvez aí se possa encontrar um “espaço intermediário”
através de uma direção crítica que desvele e venha por difundir outra forma de
realizar-se a socioeducação. Para buscar o rompimento do círculo da punição,
primeiramente é necessário o reconhecimento do papel dos assistentes sociais
nestes espaços:
Contexto em geral está muito direcionado para que o profissional use a sua
intervenção, seu saber profissional no sentido de dar respostas punitivas.
Porque eu acho que o contexto é muito marcado pelo imediatismo
assoberbado, os profissionais do Degase são divididos em equipes, cada
equipe acompanha às vezes cerca de 50, 60 adolescentes e aí aquela
pressão, né, que a gente sabe de elaboração de relatório, e às vezes a
equipe não consegue nem atender aquele adolescente de fato, coletar o
histórico sociofamiliar daquela família, entender o percurso que aquele
menino fez, se já teve histórico de passagem por instituição de acolhimento,
enfim, de fazer, né, de amarrar, né, e poder elaborar de fato um parecer
social conforme deve ser acerca do caso e acho que este contexto todo
coloca muito para a gente isso, né, a gente vive muito situações nas
instituições e se a gente não parar para refletir sobre o que é pedido, se a
gente não tiver espaço de discussão, se a gente não tiver espaço de troca,
a gente acaba reproduzindo, caindo nisso, nesta coisa de reproduzir a
culpabilização, a criminalização, você acaba fortalecendo algo que na teoria
167
você seria contra, entendeu, acho que é mais ou menos por aí. (Assistente
Social 4)
em dado momento histórico chega uma juíza que começa a ler os relatórios
e começa a chamar a equipe técnica para conversar e acaba acatando o
que a equipe técnica coloca no relatório, vai para a mídia e aí a juíza fala:
“eu estou baseada nos relatórios das equipes técnicas”. Todo mundo ficou
enlouquecido, pois está querendo colocar na minha conta, ela tem que
assumir, pois quem decide é ela, neste momento nós somos assessoras do
juiz, acho que a gente não entende esse papel dentro do sistema, que o
nosso relatório vai balizar a decisão, isso é assessoramento, se a gente não
entende o que está fazendo ali, fica difícil. (Assistente Social 3)
Romper com a alienação e ter clareza de nosso papel nas MSEs, também
contribui para romper com uma postura passiva em relação à visão do Juiz, tendo o
foco do trabalho no vínculo com o adolescente, questão que o profissional menciona
abaixo:
E quando a gente não tem este retorno, poxa eu me esmerei tanto, eu fiz
uma análise, eu juntei elementos e não se traz, mas a gente esquece que o
nosso usuário, antes da gente confeccionar o relatório ele sai do trabalho
que a gente faz junto com o nosso usuário, e a gente fez um trabalho com
nosso usuário mesmo que o juiz não tenha lido a gente está exercendo
nosso papel junto ao nosso usuário, fortalecendo, porque esse vai ser
nosso retorno, de repente ele pode ficar mais seis meses, mas um dia ele
vai sair e aí durante estes seis meses que ele vai ficar eu vou continuar
fortalecendo, apontando, articulando, propondo dentro dos meus encontros
com ele eu vou estar fortalecendo tudo aquilo que eu coloquei no relatório e
não teve o eco que eu gostaria que tivesse tido, pois a gente quer ouvir que
o juiz acatou, o defensor acatou, promotor acatou, mas a gente esquece
que quem está ali no nosso lado, quem construiu aquele relatório na
verdade, quem é esse cara que está ali? Que construiu comigo, foi uma
construção coletiva, né! Qual foi o impacto na vida desse usuário? Isso a
gente tem retorno! (Assistente Social 3)
169
(...) não sei se os colegas percebem isso, de muito pouca produção, fica
aquela perspectiva de que a repercussão do trabalho é a produção do
relatório e essas outras formas de mostrar esta intervenção se efetivar,
estes outros espaços podem acontecer de acordo com os perfis
profissionais e as formas de atuação e a sistematização dessa prática é
muito pouco estimulada, muito pela dinâmica do trabalho. No período que
eu fiquei por dois anos trabalhando dentro de uma unidade de internação,
os espaços de discussão que se tem dentro das equipes, eles favorecem a
ampliação do debate, porque se você está em uma equipe de trabalho, as
temáticas vão surgindo e você tem oportunidade de se colocar ou não. Um
espaço que surgiu para se poder pensar as repercussões desta atuação
dentro das unidades, era, por exemplo, os espaços de construções das
propostas do projeto pedagógico de cada uma das unidades. E o momento
que passa a ser entendido como um instrumento que vai favorecer, nortear
as ações, as propostas de trabalho, a forma de interação e aí a importância
da coletividade na construção, mas tem outros atores de outras áreas que
não só da equipe técnica e aí se constituem em um espaço de fomento para
este debate que não tem. Então não tem como mensurar o resultado disto,
assim como sobre o relatório avaliativo, você não tem como mensurar se o
que você coloca o Juiz entende aquilo que você sugeriu ou não, que é uma
coisa mais plausível de você entender, mas mensurar a sua intervenção
para os outros atores é um pouco mais difícil, e consegue então identificar
dentro do serviço quem são, os que se colocam disponíveis para o debate e
os que não se colocam disponíveis para isso, então fragmenta mesmo.
(Assistente Social 2)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
101
Um dos exemplos foi que recentemente o Brasil votou contra uma resolução do Conselho da ONU
que renovava o mandato da ONU para monitorar os impactos das políticas fiscais sobre os direitos
humanos, argumentando que a medida é contrária às reformas econômicas do governo. O voto foi
uma mudança brusca de posicionamento, pois o Brasil não costumava votar contra resoluções no
conselho, no máximo se abstém, bem como já havia apoiado essa mesma resolução em 2008, 2011
e 2014. (Jornal Folha de SP, 23/03/17) Acesso em:
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/03/1869055-por-austeridade-brasil-vota-contra-resolucao-
de-direitos-humanos-na-onu.shtml
102
A Emenda Constitucional nº 95, de 16/12/2016: “Altera o Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências”. Impôs um Novo Regime
Fiscal (NRF) no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, deverá vigorar pelos
próximos 20 anos, estabelecendo um limite para as despesas primárias, individualizado por cada um
dos poderes. No novo regime proposto, o crescimento anual do gasto não poderá ultrapassar a
inflação, o que implicará num congelamento, em termos reais, destas despesas até 2036, nos
patamares de 2016.
103
(...) primeiro ano de vigência, o NRF imporia uma redução importante de recursos do MDS: o teto
estimado garantiria apenas R$ 79 bilhões ao invés dos R$ 85 bilhões necessários para fazer frente às
políticas socioprotetivas, ou seja, representaria uma redução de 8%. Estas perdas tenderão a
176
indicou que esta redução irá atingir de forma importante o financiamento da política
de assistência social por meio da restrição dos investimentos no Benefício de
Prestação Continuada, no Programa Bolsa Família e nos serviços
socioassistenciais, como é o caso das MSEs em meio aberto. Este atendimento já
acontece de forma precarizada e com baixo orçamento, apesar de possuir
fundamental importância para a redução das MSEs de privação de liberdade
(SINASE, 2012), indicando a desresponsabilização e retrocessos do Estado. Nesta
direção, o que temos no horizonte é o recrudescimento das expressões da “questão
social” e a tendência de um maior investimento orçamentário nas políticas de
segurança pública, pela via da cultura punitiva.
A Constituição Federal de 1988 chegou de forma concomitante com a
mundialização do capital e com a efetivação de políticas neoliberais, o que trouxe
impactos para a concretização dos direitos recém-positivados, constituindo uma
relação dialética entre conquistas e perdas. Neste sentido, reconhecemos que - com
o advento do ECA - diversos aspectos da doutrina menorista puderam ser revistos;
da mesma forma, o SINASE trouxe alguns avanços de direitos na particularidade
dos adolescentes que praticaram atos infracionais. Porém a mudança legal por si só
não representou a alteração ideológica e social sobre o processo de criminalização
destes segmentos, já que a instrumentalidade da cultura da punição se ampliou,
sendo maior que o ECA. Não foi possível imprimir uma nova sociabilidade e, muito
menos, superar as desigualdades sociais e a consensual hegemonia da cultura
punitiva que atravessa a juventude pobre, especialmente diante de uma realidade de
extermínio, genocídio e neutralização dos “inúteis” à lógica mercadológica. Isto
porque, “para o fundamento material desumano da sociedade moderna, as massas
que sobram tem a mesma plasticidade de coisas entulhadas, que estorvam quando
não reduzidas à passividade” (MENEGAT, 2009, p. 39). Neste sentido, se os direitos
humanos (individuais e sociais) já não tinham “força para limitar o capital na sua fase
expansiva, em que as formas civilizatórias, apesar de dividirem permanentemente o
espaço social com as formas de barbárie, eram {pré} dominantes, o que pensar
quando isso se inverte? (MENEGAT, 2009, p. 39).
No Brasil, são inúmeras as razões para que não se verificasse um
rompimento das questões acima apontadas. Ao longo do processo de sua expansão
aumentar de maneira progressiva, alcançando 54% em 2036. (IPEA, 2016, p. 6) Acesso em:
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28588
177
104
As notícias e os dados cruéis não sensibilizam a opinião pública, fruto da construção do medo das
“classes perigosas”, também produzido pela mídia, como trabalhamos na tese. Consideramos que a
mídia burguesa brasileira contribui na engrenagem da cultura punitiva criando consensos e
incentivando a punição. Porém a mídia do exterior tem noticiado com mais ênfase notícias sobre a
centralidade das violações de direitos e a violência nas instituições. Conforme recente matéria do
Jornal inglês “The Guardian” (03/03/17), foi destacada que “Nas últimas semanas, mais de 140
presos morreram em decorrência da violência entre facções no Brasil. Mas, longe das manchetes,
uma catástrofe vem se desenrolando paralelamente nos centros de detenção juvenil do país, com os
ativistas exigindo reformas e advertindo que as propostas para endurecer as sentenças para jovens
infratores poderiam agravar a crise no sistema penal. De acordo com a lei existente, os adolescentes
com idades entre 12 e 18 anos devem ser tratados por meio de serviços comunitários ou de
educação, com pena máxima de até três anos em um centro de detenção para os crimes mais
graves. Na realidade, no entanto, os jovens que cometem infrações menos graves são muitas vezes
presos em instalações superlotadas com escassas oportunidades de reabilitação e educação, ou
proteção contra maus-tratos, afirmam os ativistas. De acordo com a Human Rights Watch, em 2014,
cerca de 22 mil jovens no Brasil estavam internados em centros de detenção juvenil, que foram
concebidos para manter um máximo de 18.000. Mas a superlotação é apenas um dos aspectos de
um regime que as inspeções consideraram brutal, com jovens presos por horas em quartos
semelhantes a celas com poucas oportunidades de recreação - condições que provocaram
frequentes tumultos”. Acesso em: www.theguardian.com/global-development/2017/mar/03/brazil-
crime-rates-brutal-treatment-young-offenders
178
vinculados às demais reinvindicações dos movimentos sociais, que, por sua vez,
lutam pela efetivação do direito à saúde, à terra, à moradia de qualidade, à
educação pública de qualidade. Estes movimentos também acabam sendo alvos da
criminalização e da neutralização por lutarem por direitos. Para tanto, nossa
proposta segue na direção do comprometimento da profissão com o
aprofundamento da temática da cultura punitiva, que perpassa a questão das MSEs.
Torna-se evidente que a cultura punitiva possui uma centralidade nas MSEs
para além da neutralização de um crime ou “criminoso”. Apresenta-se feroz pelas
formas que se reproduz na atualidade, como um poderoso instrumento ideológico de
eliminação dos sujeitos sociais. Por isso, compreendemos este tema imprescindível
para a formulação de resistências diante da barbárie que se apresenta. Entre a “dor
e o amor”, pesquisar sobre a permanente cultura punitiva nas MSEs foi também
trazer a centralidade destes sujeitos (adolescentes) que a vivenciam. Ao finalizarmos
esse estudo, temos clareza dos desafios presentes para construção de uma contra-
hegemonia, capaz de romper com a naturalização e instrumentalidade do
punitivismo em nossa cultura. Deste modo, é importante registrar que essa tese
encerra um ciclo para a abertura de novos ciclos de reflexão.
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