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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Faculdade de Serviço Social

Fabiana Schmidt

Medidas socioeducativas e cultura punitiva: o recrudescimento do


controle das expressões da “questão social” no Brasil

Rio de Janeiro
2017
Fabiana Schmidt

Medidas socioeducativas e cultura punitiva: o recrudescimento do


controle das expressões da “questão social” no Brasil

Tese apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Área de concentração:
Serviço Social e trabalho.

Orientadora: Prof.ª Dra. Silene de Moraes Freire

Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

S351 Schmidt, Fabiana


Medidas socioeducativas e cultura punitiva: o recrudescimento
do controle das expressões da “questão social” no Brasil /
Fabiana Schmidt – 2017.
196 f.

Orientadora: Silene de Moraes Freire.


Tese (doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Faculdade de Serviço Social.
Bibliografia.

1. Crianças e adolescentes – Medidas socioeducativas – Teses. 2.


Pobreza – Brasil – Aspectos sociais – Teses. 3. Brasil.[Estatuto da criança
e do adolescente (1990)] - Teses I. Freire, Silene de Moraes. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Serviço Social.
III. Título.

CDU 339.12

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial


desta tese, desde que citada a fonte.

____________________________________ ___________________________
Assinatura Data
Fabiana Schmidt

Medidas socioeducativas e cultura punitiva: o recrudescimento do controle


das expressões da “questão social” no Brasil

Tese apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Área de concentração:
Serviço Social e trabalho.

Aprovada em 13 de junho de 2017.


Banca examinadora:

________________________________________________
Prof.ª Dra. Silene de Moraes Freire (Orientadora)
Faculdade de Serviço Social – UERJ

________________________________________________
Prof.ª Dra. Vania Morales Sierra
Faculdade de Serviço Social – UERJ

________________________________________________
Prof. Dr. Maurílio Castro de Matos
Faculdade de Serviço Social – UERJ

________________________________________________
Prof.ª Dra. Janete Luzia Leite
Universidade Federal do Rio de Janeiro

________________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Silva Lima
Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro
2017
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos adolescentes que resistem a criminalização e as


diversas formas de punição, na expectativa de um dia poderem vivenciar outras
formas de sociabilidade.
À Luísa, que todos os dias, revigora minha esperança em dias melhores para
todos.
AGRADECIMENTOS

A realização desta tese de doutorado contou com importantes apoios e


incentivos, sem os quais não se teria tornado uma realidade. A todos minha eterna
gratidão.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES,
agradeço pela bolsa de estudos de Doutorado.
À professora Silene de Moraes Freire, agradeço a orientação, o apoio, o
incentivo ao estudo, pela sua lucidez teórica e seriedade, que se traduz em sua
competência e rigor acadêmico, meu respeito e admiração. Agradeço pela
dedicação à orientação desta tese e pela forma brilhante de transformar a relação
formal entre orientador/orientando em professor/aluno, verdadeiramente me senti
sua aluna. Obrigada pela paciência e pelo grande ensinamento, professora Silene!
Agradeço aos professores membros da banca examinadora por terem
aceitado o convite, em especial aos professores José Paulo Netto, Rodrigo Silva
Lima, Maurílio de Castro Matos, que contribuíram de forma significativa na banca de
qualificação do projeto de tese. Agradeço também às professoras Vania Morales
Sierra e Janete Luzia Leite pelo aceite para a defesa.
Ao quadro docente do Programa de Pós-Graduação da FSS/UERJ, em
especial, Elaine Behring, Marilda Iamamoto, Ines Souza Bravo, Monica Alencar,
Mario Duayer e José Paulo Netto, pelos brilhantes ensinamentos em sala de aula.
Aos colegas da turma de doutorado 2013, pelo convívio prazeroso, pela troca
acadêmica e a amizade construída, em especial Larisse, Ana, Jose e Beth,
presentes do doutorado para a vida, agradeço o apoio e o incentivo na reta final.
Aos colegas alunos da equipe Proealc, da qual tive o prazer e a honra de
participar por meio do GEP, agradeço a acolhida, as trocas e aprendizados, grata
pela inspiração.
Aos colegas assistentes sociais que aceitaram participar do Grupo Focal,
agradeço pela disponibilidade e principalmente pela coragem. Sem palavras, o meu
eterno agradecimento. Em especial à Celeste Anunciata Moreira e à Silvia Ribeiro,
colegas admiráveis, que contribuíram sobremaneira para a realização desta
atividade, bem como pelas trocas e debates.
À Maria Palma Wolff, tia e colega, pelo incentivo de sempre, bons debates e
pela contribuição ao fôlego final, minha admiração, meu carinho.
Ao Leonardo, meu companheiro, pelo incentivo à disciplina, pela paciência
com minhas ausências, mas principalmente por estar comigo nesta caminhada,
agradeço por sua capacidade de persistir com bom humor, mesmo nos momentos
espinhosos da vida! Minha admiração e meu amor.
Aos meus pais, Clarice e Hélio, por sempre me apoiarem, mesmo de longe,
por compreenderem minhas ausências, obrigada pelo incentivo e pelo amor
transmitido. A toda família Wolff, vocês são imprescindíveis em minha vida, em
especial aos tios Gustavo e Gladis, agradeço a vocês pela inspiração política de
sempre.
Aos companheiros membros do CEDCA, em especial, Margarida Prado de
Mendonça e André Rangel, pela grande parceria insurgente, pelo aprendizado que
tive com vocês, meu agradecimento e minha admiração.
À Bianca Savietto, por todo apoio fundamental neste processo. Meu enorme
carinho e reconhecimento.
À minha amiga carioca Flavia Vilella, pelo maravilhoso convívio de sempre,
agradeço principalmente a ajuda com a revisão do abstract. Que possamos viver
mais momentos incríveis.
À Larissa Murad, minha colega que se transformou em uma grande amiga,
obrigada por sua amizade, pela ajuda em momentos difíceis e por compreender
minhas negativas de saídas pelas tardes e noites cariocas.
À Neuza pelo apoio estrutural, obrigada pela dedicação e carinho, mas
principalmente pelas palavras de incentivo.
Às amigas do Rio Grande do Sul, minha terra natal, Simone e Vanessa, mais
do que colegas de profissão, agradeço a irmandade formada, pelo grande incentivo
e apoio de sempre, pelos debates e risadas maravilhosas, vocês são
imprescindíveis na minha vida!
“Somos cegos, não só de olhos, mas também de entendimento; quem enxerga tem
responsabilidade de ter olhos quando os outros perderam a visão, porque a cegueira
também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”.

José Saramago
RESUMO

SCHMIDT, Fabiana. Medidas socioeducativas e cultura punitiva: o recrudescimento


do controle das expressões da “questão social” no Brasil. 2017. 197 f. Tese
(Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

Esta tese tem como objetivo analisar as medidas socioeducativas (MSEs)


para adolescentes no Brasil e sua relação com a persistente cultura punitiva. O
controle das expressões da “questão social” por meio da cultura punitiva e da
criminalização dos adolescentes “pobres” tem nas MSEs uma de suas mais cruéis
facetas. A instrumentalidade dessa cultura se amplia como mecanismo seletivo dos
segmentos pauperizados da sociedade - predominantemente negros e moradores
de periferias. O recrudescimento da barbárie, relacionada às forças destrutivas
ativadas para efetivação de projetos excludentes de civilização, ganha maior
funcionalidade no atual estágio do capitalismo. A administração dos sobrantes e
inúteis ao mercado depende do alargamento do sistema punitivo, evidenciando a
face penal do Estado como uma das expressões do Estado neoliberal. Estes
processos, que estão vinculados à perspectiva da mundialização do capital, no
Brasil possuem maiores impactos, procedentes da formação social, política e
econômica que se edificou ao longo do processo histórico de desenvolvimento do
capitalismo, ficando evidente o consenso pela ampliação da punição. As MSEs
acabam por ser instrumentos de controle e neutralização das denominadas "classes
perigosas" e/ou daqueles supérfluos ao capital. As conquistas legais no âmbito da
infância e adolescência, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990) e
do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE/2012), ainda que
relevantes, não foram suficientes para dissolver a lógica punitiva e autoritária
reinante da sociedade brasileira. À medida que os estudos foram se aprofundando,
mais ficava evidente a consensual e histórica hegemonia do punitivismo em nossa
sociedade. Para aprofundar a compreensão da realidade a partir da visão em
relação ao objeto estudado, os profissionais do Serviço Social envolvidos com as
MSEs no Rio de Janeiro foram inseridos na pesquisa por meio da metodologia do
grupo focal. Buscou-se ainda reconhecer as contradições vivenciadas pelos
assistentes sociais nestes espaços: a tensão entre defender direitos e conviver com
práticas punitivas vinculadas ao “controle social” destes jovens. Por fim, conclui-se
que a cultura punitiva possui uma centralidade nas MSEs para muito além da
neutralização de um crime ou “criminoso”. Apresenta-se feroz pelas formas que se
reproduz na atualidade, como poderoso instrumento ideológico de eliminação dos
sujeitos sociais.

Palavras-chave: Medidas socioeducativas. Cultura punitiva. Criminalização da


pobreza. Mundialização do capital. Serviço social.
ABSTRACT

SCHMIDT, Fabiana. Socio-educational measures and the punitive culture:


intensification of the control of expressions of “social questions” in Brazil. 2017. 197 f.
Tese (Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

The present theses’ objective is to analyze the socio-educational measures for


adolescents in Brazil and its relation to the persistent punitive culture that prevails in
our society. The control of the expressions of the “social question” through a punitive
culture and the criminalization of “poor” adolescents is one of the most cruel facets of
socio-educative measures. The instrumentality of this culture is amplified as a
selective mechanism of the pauperized segments in society – mainly black people
and inhabitants of poor areas. Intensification of the Barbary related to the destructive
forces activated to turn effective the civilization excluding projects gains even more
functionality in the actual stage of capitalism. The administration of the surplus and
those useless in regard to the market depend on the amplification of the punitive
system, evincing that the penal aspect of the State is one of the expressions of neo-
liberalist. These processes linked to the globalization of capital have major impacts in
Brazil, as result of the social, politic and economic background that became stronger
within the historic process of development of capitalism. The consensus for the
increase of punitive actions has become more evident in this context. The Socio-
educational Measures have become instruments of control and neutralization of the
so-called “dangerous classes” or of those considered superfluous by the capital. The
legal achievements in the range of infancy and adolescents rights like the Statute of
the Child and Adolescent (ECA/1990) and the National System of Socio-educative
Support (SINASE/2012), although relevant mechanisms of protection, they were not
sufficient to dissolve the punitive and authoritarian logic that rules Brazilian society.
As research was elaborated, more clear became the historic and consensual punitive
hegemony in our society. In order to build on the comprehension of the reality of the
subject here presented, this research interviewed Social Workers who are involved
with the Socio-educational measures in Rio de Janeiro through the focus group
method. The study aimed to recognize the contradictions experienced by the social
assistants in these spaces: the tension caused by the urge to defend human rights
frustrated by the punitive practices related to “social control” of these teenagers.
Finally, it may be possible to conclude that the punitive culture has a centrality in the
Socio-educational arena that means much more than just to neutralize a crime or a
“criminal”. It proves to have become a powerful ideological tool of elimination of
social individuals.

Keywords: Socio-educational measures. Punitive culture. Criminalization of poverty.


Mundialization/globalization of capital. Social service.
RESUMEN

SCHMIDT, Fabiana. Medidas socioeducativas y cultura punitiva: el recrudecimiento


del control de las expresiones de la “cuestión social” en Brasil. 2017. 197 f. Tese
(Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

Esta tesis, tiene como objetivo analizar las medidas socioeducativas para
adolescentes en Brasil y su relación con la persistente cultura punitiva. El control de
las expresiones de la “cuestión social”; por medio de la cultura punitiva y de la
criminalización de los adolescentes “pobres”; tiene en las MSEs una de sus más
crueles facetas. La instrumentalización de esa cultura se amplía como mecanismo
selectivo de los segmentos empobrecidos de la sociedad, predominantemente
negros y habitantes de las periferias. El recrudecimiento de la barbarie, relacionado
con las fuerzas destructivas, enfocadas para la efectividad de proyectos excluyentes
de civilización, gana mayor funcionalidad en la actual etapa del capitalismo. La
administración de los sobrantes e inútiles al mercado, dependen de la ampliación del
sistema punitivo, evidenciando la cara penal del Estado, como una de las
expresiones del Estado neoliberal. Estos procesos, que están vinculados a la
perspectiva de la globalización del capital, enBrasil poseen mayores impactos,
procedentes de la formación social, política y económica, que se ha edificado a lo
largo del proceso histórico de desarrollo del capitalismo, quedan do evidente el
consenso por la ampliación del castigo. Las MSEs acaban por ser instrumentos de
control y neutralización de las denominadas “clases peligrosas”; o de aquellos
innecesarios al Capital. Las conquistas legales en el ámbito de la niñez y
adolescencia, como el Estatuto del Niño y del Adolescente (ECA / 1990) y del
Sistema Nacional de Atención Socioeducativa (SINASE / 2012), aunque relevantes,
no fueron suficientes para disolver la lógica punitiva y autoritaria reinante de la
sociedad brasileña. A medida que los estudios se profundizaron, dejan evidente la
consensuada e histórica hegemonía de punición en nuestra sociedad. Para
profundizar la comprensión de la realidad acerca del objeto estudiado, los
profesionales del trabajo social involucrados con las MSEs en Rio de Janeiro,
utilizaron para la investigación la metodología del grupo focal. Se buscó también
reconocer las contradicciones vivenciadas por los trabajadores sociales en estos
espacios: la tensión entre defender derechos y convivir con prácticas punitivas,
vinculadas al “control social” de estos jóvenes. Finalmente, se concluye que la
cultura punitiva ejerce una centralidad en las MSEs mucho más allá de la
neutralización de un crimen o criminal. Se presenta cruel por las formas en que se
reproduce en la actualidad, como poderoso instrumento ideológico de eliminación de
los sujetos sociales.

Palabras clave: Medidas socioeducativas. Cultura punitiva. Criminalización de la


pobreza. Mundialización del capital. Trabajo Social.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Evolução da aplicação de MSEs de Privação de Liberdade


no Brasil.................................................................................. 47
Figura 2 – Tipificação dos Atos Infracionais dos adolescentes privados
de Liberdade no Estado do Rio de Janeiro............................. 107
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

ALEC American Legislative Exchange Council

BM Banco Mundial

BIRD Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento

CBAS Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais

CEDCA Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente

CFESS Conselho Federal de Serviço Social

CONANDA Conselho Nacional

CREAS Centro de Referência Especializada em Assistência Social

CRESS Conselho Regional de Serviço Social

DEGASE Departamento Geral de Ações Socioeducativas

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

EUA Estados Unidos da América

FASE Fundação de Atendimento Socioeducativo

FMI Fundo Monetário Internacional

GEP Grupo de Estudos e Pesquisa

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INFOPEN Sistema Nacional de Informações Penitenciárias

JR Justiça Restaurativa

IPEA Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas

MP Ministério Público
MSE Medidas socioeducativas

OIT Organização Internacional do Trabalho

ONU Organização das Nações Unidas

PEC Proposta de Emenda Constitucional

PIA Plano Individual de Atendimento

PUC Pontifícia Universidade Católica

PROEALC Programa de Estudos de América Latina e Caribe

SINASE Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

SUAS Sistema Único de Assistência Social

TJ Tribunal de Justiça

UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância


SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................ 15
1 A INSTRUMENTALIDADE DA CULTURA PUNITIVA NO
BRASIL.......................................................................................... 34
1.1 O recrudescimento da barbárie na lógica da mundialização
do capital: a experiência brasileira ............................................ 35
1.2 Relações sociais e cultura punitiva: a formação social,
política, econômica e cultural no Brasil..................................... 48
1.3 Cultura punitiva e controle das expressões da “questão
social” na atualidade.................................................................... 60
2 A CENTRALIDADE DA CULTURA PUNITIVA NO TRATO DA
INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NO BRASIL: DETERMINANTES
ECONOMICOS E SOCIAIS DAS MSEs......................................... 70
2.1 Elementos históricos presentes no trato da infância e da
adolescência no Brasil................................................................. 72
2.2 A seletividade das MSEs e a construção do mito das
“classes perigosas”...................................................................... 98
2.2.1 A criminalização dos pobres como fundamento do trabalho na
execução das MSEs ....................................................................... 114
3 MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS E O TRABALHO DO SERVIÇO
SOCIAL: LIMITES E POSSIBILIDADES NO CONTEXTO DA
BARBÁRIE ENGENDRADA PELA CULTURA PUNITIVA............ 120
3.1 O serviço social no campo sociojuridico: aportes para o
debate............................................................................................. 121
3.2 Contradições do processo de trabalho no âmbito das mse:
discurso de defesa de direitos e criminalização dos
pobres............................................................................................. 130
3.3 A presença da cultura punitiva: das determinações da
história para a instrumentalização da realidade........................ 150
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................ 173
REFERÊNCIAS............................................................................... 182
APÊNDICE – Termo de consentimento livre e esclarecido
(TCLE)............................................................................................. 196
14

INTRODUÇÃO

A máquina acossa os jovens: os tranca, tortura, mata. Eles são a prova viva
de sua impotência. Os expulsa: os vende, carne humana, braços baratos,
ao estrangeiro. A máquina, estéril, odeia tudo que cresce e se move. Só é
capaz de multiplicar as prisões e os cemitérios. Não pode produzir outra
coisa que presos e cadáveres, espiões e policiais, mendigos e desterrados.
Ser jovem é um delito. A realidade comete esse delito todos os dias, na
hora da alvorada; e também a História, que cada manhã nasce de novo. Por
isso a realidade e a História estão proibidas.
(“O Sistema”. Eduardo Galeano, Dias e Noites de Amor e de Guerra, 1979,
p.130).

A presente tese busca analisar as medidas socioeducativas1 (MSEs)


atribuídas a adolescentes em razão da prática de atos infracionais e a relação
estabelecida com a persistente cultura punitiva verificada no contexto brasileiro. O
interesse pelo tema partiu de inúmeras indagações sobre os fundamentos deste
mecanismo jurídico e sua relação com esta cultura, que segue vigorando apesar dos
avanços da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do
Adolescente, de 1990. Temos como base a realidade brasileira e suas permanentes
contradições no que se refere à histórica cultura política de criminalização e punição
seletiva aos “pobres”2. Desta forma, registra-se que os adolescentes pobres
possuem histórias de vidas marcadas pelas expressões cruéis da desigualdade
social, decorrentes da luta de classes no país. Trata-se, portanto, de sujeitos
inseridos no contexto permeado de expressões da “questão social”. Assim,
entendemos a pobreza, no modo de produção capitalista, como:

1
Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.064/1990), institui-se em seu artigo 122:
“Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as
seguintes medidas: I- advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à
comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semiliberdade; VI – internação em
estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI. § 1º A medida
aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a
gravidade da infração. § 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de
trabalho forçado. § 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão
tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições”. (BRASIL, 1990)
Destaca-se que este estudo se centrará na análise das MSEs de “internação”, também denominadas
de “privação de liberdade”, expressão que também será utilizada no decorrer do texto.
2
Compreendemos a pobreza como expressão da “questão social”, intrínseca ao Modo de Produção
Capitalista. Sendo importante dizer que - ao utilizar-se a expressão “pobre” - é dessa compreensão
que partimos, sem reproduzir a lógica conservadora sobre a pobreza. Como a expressão “pobres”
será utilizada ao longo de todo texto por uma questão estética, não conterá aspas.
15

(...) uma manifestação da relação de exploração entre capital e trabalho,


tendo sua gênese nas relações de produção capitalista, onde se gestam as
classes e seus interesses. (...) se o pauperismo e a pobreza, em sociedades
pré-capitalistas, é resultado da escassez de produtos, na sociedade
comandada pelo capital elas são o resultado da acumulação privada de
capital. No MPC, não é o precário desenvolvimento social e econômico que
leva à pauperização de amplos setores sociais, mas o próprio
desenvolvimento (das forças produtivas) é o responsável pelo
empobrecimento (absoluto ou relativo) de segmentos da sociedade
(MONTAÑO, 2012, p. 280).

A pesquisa tem como finalidade contribuir para que se possa desvelar o


fenômeno da atual “administração” dos pobres pela via da punição e repressão das
denominadas "classes perigosas"3 ou daqueles “supérfluos” (CASTEL, 2009) ao
capital. Neste contexto, encontram-se as políticas assistenciais minimalistas e
focalizadas, que conduzem a política para este segmento na esteira do tardo–
capitalismo, cujas expressões se intensificaram a partir dos anos de 1980. Buscou–
se analisar o fenômeno em questão na perspectiva da totalidade social, entendendo-
se aí tanto as singularidades existentes no contexto do processo brasileiro quanto os
aspectos políticos e econômicos universais. O que nos interessou foi colocar como
centro de análise das Medidas Socioeducativas a perspectiva de classe social e a
cultura punitiva, essenciais tanto para a compreensão teórica como para a
intervenção nas políticas públicas para este segmento.
Esta pesquisa aprofunda os estudos que iniciamos com a dissertação de
mestrado “Adolescentes Privados de Liberdade: a dialética dos direitos conquistados
e violados” (SCHMIDT, 2007)4, realizada no Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social da PUC/RS. Ali abordamos a privação de liberdade como um
fenômeno cujas determinações vão além do fato jurídico, denunciando a forma como
os adolescentes vivenciavam a punição e as contradições que se apresentam no
cotidiano das unidades de privação de liberdade5.

3
O conceito será apresentado no decorrer da tese, utilizaremos aspas em sua denominação por
concordarmos com o caráter conservador da expressão, que produz determinações vinculadas ao
medo e à criminalização de um determinado grupo social, sendo um dos elementos que compõe a
cultura punitiva.
4
A pesquisa foi fruto do processo de trabalho da proponente como assistente social na Fundação de
Atendimento Socioeducativo (FASE), do Rio Grande do Sul, e foi publicada em livro pela editora
Juruá (SCHMIDT, 2009).
5
Nesse estudo, o objetivo foi desacomodar o senso comum e o pragmatismo existente nas práticas
com adolescentes “em conflito com a lei”. Na dissertação, foi possível analisar que, além das
questões de violação de direitos e da punição vivenciada pelos adolescentes, na prática das
16

A escolha do tema da tese também é fruto da experiência profissional como


assistente social na área sociojurídica6, iniciada ainda no curso de graduação com a
realização dos estágios curriculares em abrigos para crianças em situação de
abandono. Posteriormente outras experiências profissionais na área sociojurídica
reforçaram o conjunto de questionamentos sobre as práticas sociais neste campo.
Especialmente porque se verifica que a execução de MSEs estabelecidas pelo ECA
(1990) e, mais recentemente, pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE, 2012) são conquistas legais e formais que não alteraram a lógica da
punição e a realidade dos adolescentes que vivenciam a histórica cultura punitiva.
A experiência de docência em Serviço Social7 também permitiu vislumbrar a
temática através do contato com disciplinas de estágio supervisionado e orientações
de monografias na área sociojurídica. Reiterou-se, então, a necessidade de
problematizar criticamente o assunto e contribuir com a formação profissional dos
assistentes sociais que estão inseridos no trabalho com as MSEs.
A participação como conselheira do Conselho Estadual de Defesa da Criança
e do Adolescente do Rio de Janeiro (CEDCA, 2014-2015), representando o
Conselho Regional de Serviço Social (CRESS, 7ª região), configurou-se como uma
atividade com muitos desafios. Esse espaço de “controle social” democrático, repleto
de lutas e disputas, possibilitou uma maior compreensão do objeto que buscamos
decifrar. Nessa vivência, foi possível contrapor o direcionamento dado às políticas
para a área da criança e do adolescente e ao papel do “controle social”.
Em quase duas décadas de experiência como assistente social inserida na
área sociojurídica e como pesquisadora da temática das MSEs, observamos que a
lógica punitiva é persistente e cada vez mais se intensifica. Buscamos, então,

instituições que fazem parte do sistema de execução das MSEs continuamente se perpetua a lógica
da punição pelo discurso da socioeducação.
6
Conforme Fávero (2007), conjunto de área em que a ação do Serviço Social se articula a ações de
natureza jurídica: poder judiciário, sistema penitenciário, sistema de segurança, sistemas de proteção
e acolhimento, como abrigos, internatos, conselhos de direitos. O termo sociojurídico passou a ser
mais conhecido no meio profissional dos assistentes sociais, especialmente a partir de sua escolha
como tema da Revista Serviço Social e Sociedade, nº 67 (Cortez Editora); bem como de uma das
sessões temáticas do X Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), em 2001; e, ainda, do
Encontro Nacional Sociojurídico, que ocorreu em Curitiba, em 2004, quando foi discutido o sistema de
defesa de direitos nas áreas do Judiciário e do Penitenciário. Neste encontro, os participantes
aprovaram, dentro da agenda política, que o conjunto CFESS/CRESS consolidasse a terminologia
“campo de prática sociojurídica”. Este debate será feito no quarto capítulo.
7
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2014); Universidade Federal Fluminense (2010
a 2012); Universidade Estácio de Sá (2009 a 2010).
17

aprofundar o conhecimento sobre as determinações presentes na vida dos


adolescentes pobres que cometem atos infracionais, mas sem desconsiderar que
vivemos em um momento da vida social no qual formas arcaicas de punição, como
torturas, por exemplo, são um apelo de grande parte da sociedade8.
Iamamoto (2004) destaca a importância do assistente social no campo
sociojurídico, por este absorver “um amplo contingente de profissionais nos níveis
estadual e municipal, e dispõe de destacada importância na efetivação dos direitos
de cidadania” (IAMAMOTO, 2004, p.262). Assim, é fundamental a análise crítica das
concepções e práticas punitivas, a fim de fomentar estratégias e posicionamentos de
trabalho na construção de práticas que direcionem aos princípios do projeto ético-
político do Serviço Social.
A desconsideração das determinações da totalidade social traz a lógica do
medo das denominadas “classes perigosas” e tem produzido um clamor social por
justiça, o qual, na verdade, se configura como desejo de vingança, ampliando cada
vez mais a lógica do ódio aos pobres e a qualquer pessoa que não sirva à
reprodução capitalista. Neste sentido, a punição e a criminalização de sujeitos que
não possuem “valor” (segundo a lógica mercadológica) se expressam na
particularidade do contexto brasileiro.
A pesquisa pretende contribuir para desvendar a aparência deste fenômeno
histórico e propor reflexões que agreguem profundidade ao enfrentamento da
realidade apresentada. Buscamos, então, o aprofundamento teórico e crítico,
decifrando os mecanismos persistentes da cultura política brasileira, que se
atualizam nos dias de hoje. Nesta direção, corroboramos com os estudos de Freire
(2011) ao mencionar que “o eixo das discussões intelectuais atuais tem priorizado a

8
O recente debate sobre a redução da maioridade penal demonstrou esse apelo, bem como as
notícias de jornais que registram a prática da “justiça com as próprias mãos” no Brasil. Sobre este
tema, consideramos importantes os estudos de: MARTINS, José de Souza. Linchamento: o lado
sombrio da mente conservadora. In: Tempo Social; Revista social. USP, São Paulo, pp. 11-26,
outubro de 1996. Também em recente pesquisa do Centro de Estudos em Segurança e Cidadania da
Universidade Cândido Mendes, 37% dos cariocas concordam com a frase "Bandido Bom é Bandido
Morto". Mais de 2,3 mil pessoas foram ouvidas na pesquisa “Olho por Olho? O que pensam os
cariocas sobre 'bandido bom é bandido morto'". Um a cada três concordam total ou parcialmente com
a frase, enquanto 2% ficaram neutros e 1% preferiu não opinar. Sessenta, a cada 100 cariocas,
discordam da frase. "Sem dúvida, 37% é um número muito alto, mas o número do Rio de Janeiro foi
até menor do que a média nacional", disse Julita Lemgruber, coordenadora da pesquisa, realizada
pelo Centro de Estudos em Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes. Pesquisa
anterior do Data Folha, encomendada pelo Fórum de Segurança Pública, indicava que pelo menos
50% dos brasileiros apoiavam a frase. Ver em <https://www.ucamcesec.com.br/livro/olho-por-olho-o-
que-pensam-os-cariocas-sobre-bandido-bom-e-bandido-morto/>, acesso em: 05 abr. 2017.
18

interpretação dos fatos emergentes. No entanto, muitos dos limites do presente


fazem parte de experiências passadas, que foram fundamentais para a (re)
construção dos limites democráticos atuais” (FREIRE, 2011, p. 1).
Serão, então, aprofundados os elementos permanentes da face punitiva
existentes na cultura política brasileira, os quais são ressignificados nos dias atuais
pelos marcos da crise estrutural do capital e pela via do recrudescimento da agenda
neoliberal, o qual no Brasil se efetiva com radicalidade, contribuindo para a não
concretização dos princípios do ECA. Os determinantes históricos - que
continuamente atualizam a cultura punitiva - se expressam nos dados sobre
aumento do aprisionamento (no mundo e, de forma intensa, no Brasil), violações e
extermínio (agora justificados em “nome da lei” ou “dentro da lei”), principalmente de
jovens, negros e moradores de periferias das grandes cidades. Essa cultura dá
centralidade à pena e ao seu disciplinamento. O conservadorismo da sociedade
brasileira, que possui um lastro histórico profundo, está mais evidente e se traduz
em um clamor punitivo, o qual resgata uma cultura que é o eixo desta tese - a ideia
de punição para tudo ou todos que ameaçam o status quo das classes dominantes,
na especificidade das MSEs, a que se objetiva esta pesquisa.
Por cultura, compreendemos o resultado de valores e ações da sociedade
civil, que percorre as crenças, a moral, a religião e também os organismos sociais e
políticos, como a escola, a universidade, a mídia, os movimentos sociais e a família.
A cultura é fruto de uma complexa elaboração social e cada classe social tem uma
maneira específica de formar consciência e cultura, representando um “modo de
viver, de pensar e de operar” (GRAMSCI, 1999, p. 258). Nos termos de Gramsci
(2004), estes organismos se constituem como aparelhos de hegemonia, em um
processo que conduz, é guia e também líder, está à frente e comanda. Estes
aparelhos são, então, agentes essenciais da hegemonia, os mensageiros materiais
das ideologias, tanto para conservar a dominação como para contraditar seus
pressupostos, portanto são difusores de concepções particulares de mundo, que
ambicionam validar-se na sociedade civil. Na atual conjuntura mundial, com a
perpetuação da classe burguesa no poder, os mesmos tornam-se fundamentais para
sua manutenção.
O papel da cultura, assim como o da política, é crucial na definição das visões
de mundo, e o Estado - no sentido amplo - (sociedade política e sociedade civil)
busca a supremacia que se constitui como a síntese simultânea de hegemonia e
19

dominação, consenso e coerção, direção e ditadura (GRAMSCI, 2004), que se


manifesta como domínio e como direção intelectual e moral na dominação de uma
classe sobre a outra. Por meio destes processos, é possível conquistar consensos
no apoio e legitimação das massas. Portanto, hegemonia é algo que atua tanto
“sobre a estrutura econômica e sobre a organização política da sociedade” bem
como “sobre o modo de pensar, sobre as orientações ideológicas e sobre os modos
de conhecer” (GRUPPI, 1978, p. 5). A hegemonia possui como questão central a
criação de um bloco ideológico necessário à manutenção intelectual da classe
dirigente.
Assim sendo, entendemos por cultura punitiva um conjunto de valores que
clamam pelo protagonismo da punição e negam as possibilidades de explicação dos
fatos como fenômenos sociais, políticos e econômicos, construídos ao longo do
processo histórico9. Desse modo, tal cultura é também expressão da cultura política,
referindo-se a “valores políticos que configuram tanto a base do discurso e das
ideologias políticas como da prática política a partir dos valores formados
historicamente” (FREIRE, 2011, p. 10).
No Brasil, a cultura punitiva constituiu-se vinculada à formação social, política,
cultural e econômica, e, portanto, compôs a organização do Estado e da sociedade.
Ao analisarmos esta formação, percebemos que essa cultura tornou-se hegemônica
e, portanto, instrumental para o domínio da classe burguesa. A cultura punitiva inicia
a sua gestação ainda no processo de colonização brasileiro, pois, assim como nos
demais países da América Latina, o País já nasce submergido em um banho de
sangue promovido pelas nações colonizadoras contra as populações indígenas e
com espoliação de suas riquezas. A violência deste processo conduziu a um longo
período de escravidão, sendo que sua forma de resolução pela abolição também
ocorreu de forma a contemplar os interesses econômicos vigentes. O poder da
classe dominante e do Estado - a ela subserviente - perpetuou uma lógica que
perpassou pela Independência, pelo nascimento da República, pelo Estado Novo e
pelo período da Ditadura Militar, deixando marcas profundas tanto na sociedade

9
A construção histórica da pena e dos sistemas de punição foi aprofundada pelos autores Rusche e
Kirchheimer que consideram que “a transformação em sistemas penais não pode ser explicada
somente pela mudança das demandas da luta contra o crime, embora esta luta faça parte do jogo.
Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de
produção. É, pois, necessário pesquisar a origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de
certas punições e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por forças
sociais, sobretudo econômicas e, consequentemente fiscais.” (RUSCHE; KIRCHHEIMER 2004, P. 20)
20

como no Estado brasileiro. Cabe destacar que houve resistências e confrontos ao


longo desses processos, porém a resposta foi a coerção e a violência. A tortura que
foi utilizada como forma de neutralizar e coibir as resistências à ditadura de 1964
não deixou de ser utilizada com a abertura democrática.
A perspectiva autoritária do Estado é adensada pelo movimento do capital
mundial, que exige o mínimo para investimentos sociais e o máximo para as
políticas de segurança. Desta forma, a cultura punitiva autoritária não foi extinta na
transição para a democracia, pelo contrário, se adensou. O processo de abertura
democrática representou uma mudança política e não uma ruptura com o
autoritarismo da classe dominante, perpassando para o campo democrático.
Portanto, esta cultura - gestada ao longo do processo histórico - se adéqua ao caso
brasileiro por esta herança da cultura política que pulsa insepulta.
A cultura punitiva acirra-se com o contexto neoliberal, então emergente e a
política de segurança passa a ganhar mais espaço no âmbito das políticas públicas;
trata-se, então, da potencialização da lei do mercado e da face penal do Estado. A
segurança pública passa a ser sinônimo de punição e maior controle policial. O
combate ao crime torna-se ação prioritária do Estado. E a compreensão do crime se
dá pela lógica individual e descontextualizada das relações sociais.
Outro aspecto imprescindível para descortinarmos o processo da perpetuação
da cultura punitiva presente nas MSEs é a análise e a percepção de que
corriqueiramente não são considerados os aspectos sociais, políticos e econômicos,
isolando-se o fenômeno do crime e exigindo um Estado cada vez mais penal. O
Estado historicamente teve uma face penal, porém na atualidade se verifica sua
maior centralidade na organização da vida social e política. No Brasil, a punição
virou símbolo de justiça, sendo que grande parte da sociedade se sente confortável
com a punição, em torno do qual foi solidificado um consenso e um clamor que se
torna nítido, principalmente no contexto da atual crise estrutural do capital.
Entendemos, portanto, por cultura punitiva o conjunto de valores forjados a partir do
processo histórico brasileiro, que é reforçado pela conjuntura socioeconômica e que
direciona as práticas vinculadas ao ato infracional, desconsiderando suas múltiplas
determinações.
A cultura punitiva também impede a visibilidade das “causas” da
criminalidade, focando-se na punição sem que o crime seja investigado e sem que
as exigências para o processo legal sejam cumpridas, o que demonstra a
21

permanência do autoritarismo em tempos democráticos no Brasil. A partir desta


forma de manifestação, ressignifica-se o crime como um fenômeno em si, condição
mundialmente presente, mas que no Brasil é ainda mais eloquente, separando o
crime das dimensões políticas e sociais. A “onda conservadora” que se renova na
atual conjuntura ganha forças, ainda que sua maior ou menor visibilidade se module
aos interesses econômicos vigentes em momentos específicos10 da história.
A ideia de segurança pública se reforça na busca de uma segurança que evite
o crime, concepção que vem desde a política de “tolerância zero”11, inaugurada nos
EUA, partícipe do momento de grande inflexão do contexto neoliberal e da
mundialização do capital, passando a ser um componente central na defesa de seus
preceitos, vinculado ao medo, segurança, punição e interesses do grande capital.
Cabe destacar que a segurança historicamente foi utilizada para a defesa dos
princípios burgueses, se constituindo em um “conceito social supremo da sociedade
burguesa, o conceito de polícia, segundo o qual toda sociedade somente existe para
garantir a cada um de seus membros a conservação da pessoa, de seus direitos e
de sua propriedade” (MARX, 1991, p. 44); na atualidade, intensifica-se e ingressa no
circuito do valor. Para evitar o crime, as políticas de Estado se voltam, então, de
forma antecipada e seletiva para a punição, tendo como alvo aqueles considerados
inúteis ao mercado ou que contrariam sua lógica através da “rebeldia” como
estratégia de sobrevivência. Assim, o movimento de construção e legitimação da
cultura punitiva, bem como de seu acirramento, só foi possível pela perpetuação do
consenso que estabelece a necessidade de punição, o que, na maioria das vezes, é
defendido pelos próprios sujeitos que através dela são punidos. Por outro lado, a

10
Conforme o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), o atual “Congresso
eleito em 2014, é considerado um dos mais conservadores desde 1964, pois: representantes de
“todas” as frações e setores estão representados: empreiteiros, banqueiros, fabricantes,
exportadores, importadores e ruralistas elegem, com uma facilidade extrema – e muito dinheiro, claro
-, seus prepostos, que na “casa do povo” (como gostam de dizer alguns deputados montanheses da
atualidade), recebem a companhia, em altíssimo número, de membros das bancadas da bala e
evangélica, além de representantes dos estratos mais lumpenizados e obscuros da classe dominante
brasileira” (DEMIER, 2016, P. 11).
11
A “tolerância zero” inaugurada na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, é definida por
Wacquant como “a doutrina da “tolerância zero”, instrumento de legitimação da gestão policial e
judiciária da pobreza que incomoda – a que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço
público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança, ou simplesmente de
incômodo tenaz e de inconveniência –, propagou-se através do globo a uma velocidade alucinante. E
com ela a retórica militar da “guerra” ao crime e da “reconquista” do espaço público, que assimila os
delinquentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros
– o que facilita o amálgama com a imigração, sempre rendoso eleitoralmente” (WACQUANT, 2001,
p.25).
22

cultura, a filosofia e a política fazem parte de um processo educativo fundamental


para o rompimento de uma dada visão de mundo. Assim, para a construção de uma
contra-hegemonia, é necessário enfrentar de forma crítica o fato de que a cultura é
muitas vezes “tomada emprestada de outro grupo social, por razões de submissão e
subordinação intelectual” (GRAMSCI, 1999, p. 97).
A participação dos assistentes sociais nesta investigação significa o
reconhecimento da sua importância através da intervenção nestes espaços, além de
serem detentores de uma leitura ímpar da realidade, trazendo elementos
importantes na perspectiva da práxis. E também pela necessidade de compreensão
das contradições e limites do Serviço Social nas MSEs, identificando elementos
punitivos no cotidiano de trabalho dos profissionais. A pesquisa pode trazer à tona
elementos que possibilitem decifrar os processos ideológicos, desta forma
contribuindo para romper com análises vinculadas ao senso comum - considerado
“uma concepção desagregada, incoerente, inconsequente, conforme à posição
social e cultural das multidões das quais ele é a filosofia” (GRAMSCI,1999, p. 98).
Senso comum que se apresenta nas formas de compreender as MSEs, podendo ser
uma armadilha perigosa para os profissionais na perspectiva da naturalização da
criminalização destes sujeitos e consequentemente das formas que se engendra e
se produz a punição. Neste aspecto, torna-se imprescindível desvelar o fenômeno
da produção e instrumentalidade da cultura punitiva para criarmos outra forma de
cultura na socioeducação. Consideramos que os assistentes sociais possuem papel
fundamental tanto no âmbito do rompimento de processos punitivos como na
possibilidade de serem partícipes na construção de uma contra-hegemonia. Nesta
direção, consideramos também imprescindível trazer à tona a realidade do trabalho
nas MSEs, e - com a socialização das descobertas - contribuir com propostas de
ruptura desta cultura. Isto porque,

Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente


descobertas “originais”; significa também, e, sobretudo, difundir criticamente
verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; e, portanto,
transformá-las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de
ordem intelectual e moral (GRAMSCI, 1999, p. 95).

Na atualidade, nos deparamos com a contínua regressão dos direitos


conquistados. Exemplo disto é o debate sobre a redução da maioridade penal, que
periodicamente ingressa na pauta política. O apelo da sociedade por punição
repercute e se amplia no Congresso Nacional, onde manobras políticas foram
23

executadas para novamente ser apreciada a Proposta de Emenda Constitucional


(PEC) 171 (2015). Essa discussão se iniciou ainda no momento após a promulgação
da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, com a proposta
de emenda constitucional, arquivada desde 199312, sobre redução da maioridade
penal de 18 anos para 16 anos de idade, em uma expressão clara da correlação de
forças sobre a temática. Este episódio não foi isolado de outros retrocessos,
demonstrando a força desta onda que vem como um tsunami destruindo direitos e
avanços sociais. Essas discussões refletem a posição de grupos conservadores que
representam parte da sociedade brasileira e que defendem a adoção das práticas
punitivas, principalmente contra estratos mais empobrecidos da população. Ficando
clara a supremacia da classe dominante, que se utiliza tanto da coerção como do
consenso como direção e domínio de classe.
Assim, trata-se de estabelecer um debate sobre a punição constitutiva do
capitalismo e suas formas de “controle social”13 das classes, que podem colocar em
xeque o poder das classes dominantes. O “controle social” é intrínseco ao processo
histórico de reprodução das relações sociais, sendo um vital mecanismo de
manutenção do sociometabolismo do capital globalizado, que se realimenta ao
reproduzir mais capital, assim, a sociedade de controle vai da “tolerância repressiva
à defesa liberal da repressão” (MÉSZÁROS, 2002, p. 989). Com a crise estrutural do
capital e a implantação dos ajustes neoliberais, se acirram as contradições e as
tensões sociais evidenciadas no Brasil e no mundo, com o que o “controle social”
também se amplia. Desta forma, o que:

12
Ano da Chacina da Candelária, como ficou conhecido este episódio. Foi uma chacina que ocorreu
na noite de 23 de julho de 1993, próximo à Igreja da Candelária, localizada no centro da cidade do
Rio de Janeiro. Neste crime, oito jovens (seis menores e dois maiores de idade) moradores de rua
foram assassinados por policiais militares. Demonstrando com este triste episódio que as forças
conservadoras com anseios punitivos e higienistas se faziam presentes mesmo com a aprovação do
ECA, sendo recrudescidas na atualidade, o que veremos no decorrer deste estudo.
13
Diferentemente do “Controle Social” democrático, vinculado à participação da sociedade civil no
controle das políticas setoriais e do orçamento público destinado à população. A partir da
Constituição de 1988, começa a vigorar os Conselhos de direitos na área da assistência social,
saúde, educação, criança e adolescentes, idosos, mulheres, segurança pública, entre outros. Em que
pese a difícil tarefa a que se dispõe o desmonte do Estado e a precarização destes espaços, ainda
possuem um papel importante para a efetivação de alguns avanços democráticos. Neste sentido,
utilizaremos aspas para diferenciar controle democrático, ou participação social, do “controle”
punitivo, coercitivo e seletivo.
24

(...) hoje estamos vivendo não é apenas uma crescente polarização –


inerente à crise estrutural global do capitalismo atual – mas, igualmente, o
que multiplica os riscos de explosão, o colapso de uma série de válvulas de
segurança que cumpriam um papel vital na perpetuação da sociedade de
mercado (MÈSZÁROS,2002, p. 984).

É necessário discutir, então, a naturalização da punição na vida cotidiana, na


busca de contribuir para a construção de estratégias vinculadas à defesa dos
direitos humanos, ainda que considerados nos limites da emancipação política.
Entendemos que em tempos de barbárie, é imprescindível problematizar tanto os
apelos por punição, a naturalização da segregação e o extermínio de crianças e
jovens negros e pobres.
O estudo sobre as MSEs requer também a explicitação sobre o fato de que o
conhecimento e o trato das políticas públicas para crianças e adolescentes não são
prioridade política e não estão direcionadas a efetivar a proteção integral prevista
nos estatutos legais. Nos diferentes períodos históricos, diversas foram as
concepções voltadas à compreensão da criança e sua reprodução no mundo.
Passou-se pelo desconhecimento da infância como período peculiar de
desenvolvimento (ARIÉS, 1981), passando-se à compreensão da criança como
força de trabalho e uma forma mercadológica com configurações de exploração daí
decorrentes. A dificuldade de proteção das crianças expressava também a
concepção da criança como objeto (lógica mercadológica primária), principalmente
as pobres, com o processo de exploração capitalista, então emergente. A
descoberta da criança como um ser em desenvolvimento e a importância da
efetivação de direitos no que se referem ao seu cuidado, com boas condições de
alimentação, moradia, saúde, educação, é muito recente14.
No Brasil, este processo não foi diferente, principalmente no que se refere à
condição de crianças e adolescentes pobres como expressão da “questão social”.
Os filhos de famílias pobres ou as enjeitadas eram deixados a cargo das ações
filantrópicas da Igreja Católica (roda dos expostos das Santas Casas). No final do
século XIX, foi cultuada a ideia de (re) formar o Brasil, tendo a figura da criança
como elemento simbolizador do futuro do país (RIZZINI, 2011). Foram aprofundadas
as ideologias do reeducar e disciplinar para o trabalho, em uma busca de
“prevenção” pela via da repressão, pela força dos “desocupados” e “delinquentes”,

14
Declaração de Genebra em 1924, apontando a necessidade de proporcionar proteção especial a
todas as crianças e, em 1959, na Declaração dos Direitos da Criança, que foi reconhecida na
Declaração Universal dos Direitos humanos.
25

congregando delinquência com pobreza. A necessidade de uma legislação para a


administração dos “problemas da infância” redundou na construção da doutrina
“menorista”, o “Código de Menores” que desempenhou “um papel simbólico
relevante no sentido de desentranhar determinados indivíduos do domínio de uma
representação genérica de infância, a qual atrelam-se expectativas de um certo
comportamento social (...)” (VIANNA, 1999, p. 22).
No final da década de 1970, com a busca de superação da perspectiva
menorista, das consequências do tratamento dado à infância “pobre ou delinquente”,
surge - no meio acadêmico e nas organizações sociais envolvidas com este
segmento - novas propostas de políticas públicas. Com a Constituição Federal de
1988 e logo após com a aprovação do ECA, estes sujeitos passam a ser
compreendidos e denominados crianças e adolescentes como sujeitos de direitos,
inaugurando a proteção integral através da prioridade absoluta no atendimento das
políticas públicas. Buscava-se romper com a lógica menorista e conservadora,
trazendo os princípios de proteção integral a todas as crianças e adolescentes,
independentemente da classe social. No entanto o avanço histórico não transpôs o
aspecto legal, pois encontrou-se com uma sociedade já tomada pelo processo
neoliberal, pelo recrudescimento das desigualdades sociais e das formas
criminalizantes e punitivas do trato da “questão social”.
O que podemos identificar é que neste percurso histórico a perspectiva de
classe social esteve presente na seletividade punitiva e criminalizadora, através de
concepções ideológicas sobre pobreza vinculadas a uma “problemática individual”,
uma vez que “o direito da criança e do adolescente está interligado ao modelo liberal
de direito, ao Estado moderno e ao desenvolvimento do capitalismo” (SPOSATO,
2006, p.17).
A determinação do capital também se apresenta em relação às crianças e
adolescentes que não são alvo dessa criminalização. Os filhos pertencentes às
camadas médias da população possuem um maior acesso à educação privada,
saúde, moradia, lazer e esporte, e demais direitos, o que não os transforma
necessariamente em sujeitos de direitos, mas sim objetos da perspectiva
mercadológica. Para eles, há uma supervalorização da condição de ser criança, uma
vez que são imprescindíveis para o lucro da indústria de alimentos, brinquedos e
26

produtos tecnológicos, da publicidade15 e também para a reprodução da lógica do


capital.
O recrudescimento da agenda neoliberal e os impactos para a vida cotidiana
se expressam no fato da mercadoria valer mais que a vida humana, e, assim, a
sociedade, em sua maioria não se sensibiliza pelas mortes e violações sofridas por
milhares de crianças e adolescentes pobres16. Neste sentido a atualidade de Marx
(2011, p. 25) se apresenta para nossa análise. Na publicação do “18 Brumário de
Luís Bonaparte”, em relação a processos históricos é referido que “A história se
repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Podemos afirmar que
a tragédia permanece em um grau intenso de barbárie; enquanto fundante do
processo capitalista, na atualidade se expressa de forma inconteste, pois a luta de
classes ocorre de forma devastadora, com reduzidos espaços civilizatórios. Já a
farsa se apresenta pela via instrumental da punição dos pobres e através das MSEs,
sendo mais um dos tentáculos do capital. Trata-se do fetiche do “direito” em que o
“fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico” (PACHUKANIS,
1988, p.75).

15
Conforme o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), pesquisas científicas no mundo
inteiro mostram que, até os 12 anos de idade, a criança não consegue analisar criticamente os apelos
publicitários. Ela, que está em um momento do seu desenvolvimento, acaba absorvendo os
'desvalores' passados pela publicidade e acreditando que os bens materiais são absolutamente
imprescindíveis para ela se reconhecer como alguém. Esses valores materialistas provavelmente
serão levados pelo resto da vida. No futuro, essas crianças serão adultos que fazem de tudo para ter
cada vez mais dinheiro, para consumir cada vez mais e que nunca estão satisfeitos. Sabemos do
impacto que a publicidade pode ter em uma criança que vive em situação de extrema vulnerabilidade
social, que não tem acesso a nada do que aparece na televisão, mas que é igualmente atingida pelos
estímulos ao consumo. Houve também uma descoberta do mercado de que a criança é não só um
consumidor atual e potencial para o futuro, como também pode influenciar as compras dos adultos:
há estudos que dizem que as crianças chegam a influenciar de 70% a 80% das compras da família.
Há diversos projetos de lei em andamento no Congresso com o objetivo de regular a publicidade
infantil. Existe uma forte movimentação do setor contra as propostas. As associações de classe (da
indústria de refrigerantes, da indústria alimentícia, das agências de publicidade etc.) participam das
audiências públicas sobre o tema para defender que não haja nenhum tipo de restrição à atividade
publicitária, desqualificando a discussão e os nossos argumentos. Isso atrasa muito o desenlace do
tema, porque o Legislativo fica tentando mediar e chegar a um consenso. O projeto de lei 591/2001, o
mais emblemático sobre publicidade infantil, por exemplo, tramita no Congresso há 12 anos sem
nenhuma perspectiva de ser aprovado. (Acesso em: http://www.idec.org.br/em-acao/revista/o-
labirinto-das-multas/materia/crianca-alvo-facil-da-publicidade, 15/10/2016).
16
Por outro lado, amplia-se a defesa pelos direitos dos animais e a prioridade pelos animais
domésticos. Conforme dados recentes do IBGE, a população de cachorros foi estimada pelo instituto
em 52,2 milhões, indicando média de 1,8 cachorro por domicílio. Já a população de gatos foi
estimada em cerca de 22 milhões. Os números mostram que, hoje, é possível dizer que o Brasil tem
mais cachorros do que crianças, já que, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD), de 2013, o país tinha 44,9 milhões de crianças de 0 a 14 anos. Leia mais sobre
esse assunto em http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/brasil-tem-mais-cachorros-de-estimacao-
do-que-criancas-diz-squisa-.
27

A realidade de crianças e adolescentes pobres no Brasil, que são mortos ou


neutralizados, é preocupante não só no eixo São Paulo – Rio de Janeiro, porém aqui
ganham destaque com seus números17 assustadores. Ademais, quando estes
sujeitos conseguem escapar das estatísticas de mortalidade, passam a compor a
seletividade do sistema penal e grande parte ingressa nas unidades
socioeducativas. A realidade do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do
Rio de Janeiro – DEGASE é de superlotação das unidades, práticas de tortura,
ausência de condições de higiene, deformação escolar e profissional e dificuldade
de acesso ao atendimento técnico (assistentes sociais, psicólogos e pedagogos).
Os relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) corroboram com a
perspectiva de existência de uma realidade nacional de violações de direitos e,
principalmente, de permanência da lógica punitiva, apesar dos discursos de adoção
de práticas socioeducativas. Os dados mencionados expressam a efetivação de
uma cultura punitiva que é naturalizada e que produz consensos sociais em torno de
sua aplicação, sobre práticas de extermínio e violência estatal, bem como a
criminalização dos pobres através do aprisionamento em massa. Entendemos,
então, que existe no Brasil um consentimento que advoga a punição e impõe a
lógica da falência dos pressupostos do ECA.
A desvalorização da vida não parece chamar atenção ou mobilizar a opinião
pública, alimentada cotidianamente por uma mídia classista e reprodutora dos
valores dominantes. Parece-nos que a sociabilidade humana está contaminada por
uma cegueira que toma o cotidiano pela competição, consumo desenfreado,
individualismo ao extremo, violência, destruição ambiental. O tempo presente é
marcado pela valorização das coisas, da mercadoria ao avesso das necessidades
humanas.
Estudar e pesquisar a realidade das MSEs, no âmbito da sociedade brasileira,
se apresenta como um compromisso ético e político na direção da defesa dos
adolescentes pobres. Apesar de estarmos inseridos no coletivo que defende a
implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente em sua integralidade,
entendemos que sua efetivação não pode ser isolada, devendo atrelar-se a outros
movimentos voltados a mudanças societárias. Consideramos que neste estudo
estamos (como sujeito) implicados com o objeto, contrariando o aspecto da

17
Ao longo da tese, serão apresentados e problematizados alguns destes dados.
28

neutralidade científica, o que não exclui a objetividade do conhecimento teórico


(NETTO, 2009).
O conhecimento do objeto requer a apreensão das múltiplas determinações,
as quais constituem o fenômeno social que envolve os adolescentes pobres que
cumprem MSEs na atualidade.

Um fenômeno social é um fato histórico na medida em que é examinado


como momento de um determinado todo e desempenha uma função dupla:
definir a si mesmo e definir o todo; ser ao mesmo tempo produtor e produto;
conquistar o próprio significado e ao mesmo tempo conferir sentido a algo
mais (BEHRING & BOSCHETTI, 2007, p. 40).

Cabe destacar que buscamos uma análise do fenômeno para além das
representações comuns e das especializações temáticas isoladas, projetando uma
produção teórica mediada pela compreensão da sociedade burguesa na perspectiva
da totalidade social. Não nos contentamos com análises ou formas esquemáticas
que explicam o fenômeno dos adolescentes e da cultura política punitiva por meio de
representações conservadoras, positivistas ou vinculadas ao senso comum, tão
recorrente nesta área, no atual momento brasileiro.
É com base na referência teórico-metodológica da tradição marxiana que
construímos a proposta metodológica deste estudo. Pensar a contribuição da teoria
social de Marx e tê-la como referencial é afirmar a perspectiva político-ideológica
que consideramos fundamental para decifrar as contradições da sociedade, pois:

O traço distintivo desta teoria é que ela toma a sociedade (burguesa) como
uma totalidade concreta: não como um conjunto de partes que se integram
funcionalmente, mas como um sistema dinâmico e contraditório de relações
articuladas que se implicam e se explicam estruturalmente. Seu objetivo é
reproduzir idealmente o movimento constitutivo da realidade (social), que se
expressa sob formas econômicas, políticas e culturais, mas que extravasa
todas elas. Por isso, a análise da organização da economia (a crítica da
economia política) é o ponto de irradiação para a análise da estrutura de
classes e da funcionalidade do poder (a crítica do Estado) e das formas
jurídico-políticas (a crítica da ideologia) (NETTO, 1998, p. 29).

O aprofundamento do conhecimento sobre um objeto, ou sobre um fenômeno


em sua essência, requer a apreensão de suas múltiplas determinações, objetivando
romper com análises superficiais, causais e deterministas. O método na perspectiva
marxista possibilita esse conhecimento, não se confundindo com uma técnica que se
aplica ou um modelo que se encaixa na realidade (ou vice-versa) (BEHRING, 2007).
No momento de construção do processo de pesquisa, considerando o
comprometimento do pesquisador e do estabelecimento teórico metodológico da
29

pesquisa, estamos apoiados em “um projeto político singular que se articula a


projetos mais amplos e que, em última análise, relaciona-se com o projeto de
sociedade pelo qual lutamos” (MARTINELLI, 1999, p. 26).
A sociedade burguesa é considerada o “solo” de nossa investigação. Buscou-
se, assim, alcançar a essência do fenômeno através da abstração do pensamento
(concreto pensado), a fim de agregar novos conhecimentos para a produção de uma
nova síntese, o que “permite que o processo se renove através de novo
questionamento, cujo resultado tende a ser o aprofundamento do conhecimento
sobre o objeto estudado” (NETTO, 2009, p. 706). Para tanto, este conhecimento
precisa ser apresentado pelas conexões teóricas que contribuem para a produção
do aprofundamento sobre o objeto, considerando que “toda a citação é ao mesmo
tempo uma interpretação” (LUKÁCS, 1989, p.9), através das citações buscou-se um
vigor teórico ao objeto e sua exposição. Foram evidenciadas as concepções e
práticas históricas que envolvem o fenômeno “adolescentes pobres e a cultura
política punitiva”, identificando no “trato” dado a este segmento os componentes
permanentes que estão relacionados à formação social brasileira e que são
ressignificados na conjuntura vigente. Neste processo, a preocupação é também
reconhecer as “posições tomadas pelas forças políticas em confronto, desde o papel
do Estado até a atuação de grupos que constituem as classes sociais e cuja ação é
determinada pelos interesses da classe em que se situam” (BEHRING &
BOSCHETTI, 2007, p. 43).
Dessa forma, os objetivos elencados para a presente tese foram: contribuir
com o conhecimento crítico sobre a execução das medidas socioeducativas, sendo
central na análise da relação com a cultura punitiva; desvelar as contradições
presentes nos princípios de proteção do ECA e a relação destas com o Estado e a
sociedade burguesa; aprofundar os estudos sobre as expressões da “questão social”
na atualidade e seu enfrentamento pelo Estado brasileiro, através do viés da
punição, presentes nas MSEs; contribuir com o Serviço Social, identificando
contradições, limites e possibilidades no cotidiano com adolescentes em
cumprimento de MSEs.
As categorias do método; historicidade, totalidade, contradição e mediação,
elencadas como categorias teóricas, deram sustentação a todo o processo de
pesquisa, descortinando a hipótese apresentada de que há uma presença forte e
resistente da cultura punitiva nas MSEs, sendo central para a não efetivação dos
30

preceitos democráticos do ECA. Esta contribui também para que, em diferentes


âmbitos da vida social, as violações de direitos sejam naturalizadas e justificadas.
Projeta-se, desde essa perspectiva, o recrudescimento das políticas penais como
solução para o enfrentamento das expressões da “questão social” no âmbito da
adolescência e juventude. Nesse sentido, a pesquisa social e as questões de
investigação são “fruto de determinada inserção no real; nele encontramos suas
razões e seus objetivos”. (MINAYO, 2004, p.18). E aqui se destaca a dificuldade de
pesquisar, apropriar-se e estar em contato com o objeto que está vinculado ao
movimento do real, em uma conjuntura socioeconômica, na qual regressamos a
cada dia o pouco que avançamos. Por isso, “(...) nada pode ser intelectualmente um
problema, se não tiver sido, em primeira instância, um problema da vida prática”
(MINAYO, 1998, p. 90).
Nesta direção, então, a metodologia de pesquisa, para além dos instrumentos
e técnicas, foi pensada como articuladora de concepções teóricas, de conteúdos,
pensamentos e existência. Buscou-se desenvolver estudos de natureza teórico-
interpretativa, sem deixar de considerar os dados empíricos – os quais estarão
representados pelos dados secundários, que foram analisados através das
mediações teóricas. Os instrumentos de coletas de dados utilizados foram: análises
bibliográficas a partir de produções teóricas sobre as MSEs, advindas tanto do
campo do Serviço Social como das ciências sociais em geral; observação
sistemática e participante em seminários e debates sobre a temática estudada. Foi
ainda utilizada a metodologia do grupo focal, que contou com a participação de
profissionais do Serviço Social18, e cujo relato, após gravação, foi processado
através da análise de conteúdo19. A leitura dos dados possibilitaram o

18
O procedimento metodológico do grupo focal foi utilizado após a proposta ser apreciada e aprovada
pelo Comitê de Ética da UERJ, tendo obtido Certificado de Apresentação para Apreciação Ética
(CAAE) de número 58130916.6.0000.5282, disponível em: <http://plataformabrasil.saude.gov.br>.
Bem como no momento do grupo focal os participantes leram e assinaram o termo de consentimento
(modelo em anexo). O convite foi feito através de uma prévia seleção aleatória de profissionais que
trabalham no DEGASE/RJ e ou nas demais frentes de atendimento das MSEs. Foram convidados 17
profissionais, doze confirmaram presença, porém apenas quatro compareceram. Foram dois
assistentes sociais do DEGASE e dois do Ministério Público, que trabalham com as MSEs, sendo que
um destes havia trabalhado por dois anos no DEGASE.
19
A análise de conteúdo é “considerada fundamental na pesquisa, porque é quando os dados
coletados ganham vida à luz da teoria e, por sua vez, a teoria ilumina-se maior vigor perante a
realidade. Por isso é aqui que a competência e habilidade teórica metodológica do pesquisador
devem ter, executando o compromisso inicial da pesquisa, a intencionalidade ética e política”
(SCHMIDT, 2009, p.69). Minayo considera que o termo “análise de conteúdo” “significa mais do que
31

aprofundamento em duas categorias de análise: criminalização dos pobres e cultura


punitiva.
Cabe referir que a utilização da metodologia específica do grupo focal
objetivou buscar a concepção dos profissionais sobre as MSEs. Para Gaskell e
Bauer (2002), o grupo focal possui características centrais, como “uma sinergia
emerge da interação social. O grupo é mais do que a soma de suas partes é
possível observar o processo, a dinâmica da atitude e da mudança de opinião e a
liderança de opinião” (2002, p.76). Também se considera no grupo focal o aspecto
do nível de envolvimento, que raramente se observa nas entrevistas individuais.
Estas questões motivaram a escolha desta metodologia de coleta de dados sobre o
objeto estudado, pois permitiu compreender também processos de construção da
realidade pelos sujeitos envolvidos e suas práticas cotidianas. Constituindo-se,
então, como “uma técnica importante para o conhecimento das percepções,
crenças, valores, restrições, preconceitos, linguagens e simbologias prevalentes no
trato em comum, relevantes para o estudo do problema visado (GATTI, 2005, p. 11).
As fontes de pesquisa selecionadas durante a elaboração desta tese foram
vinculadas a uma intencionalidade teórica e política, na direção de capturar a
essência do fenômeno ao qual nos dispusemos a estudar. O material colhido foi
analisado a partir das categorias teóricas já referidas e por outras fontes que
surgiram ao longo do processo.
O objeto de estudo da tese resgata aspectos importantes do período de 27
anos, a partir da proclamação do ECA em 1990, e, através de sucessivas
aproximações, foi possível compreender o todo complexo. Neste sentido, a busca de
dados para a elaboração da presente pesquisa foi feita através das seguintes fontes:
Levantamento de dados sobre encarceramento de adolescentes nos estudos
realizados pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos (2009 até 2013); pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ): recomendações ao Departamento Geral de
Atendimento Socioeducativo/DEGASE e outros órgãos de execução das MSEs
sobre melhorias na qualidade do atendimento e contrários à tortura; pelo Fórum
Nacional de Segurança Pública (Anuário de Segurança Pública; Mapa da Violência;
bem como pesquisas de órgãos, como Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Sistema Nacional de

um procedimento técnico. Faz parte de uma histórica busca teórica e prática no campo das
investigações sociais” (1998, p.199).
32

Informações Penitenciárias (INFOPEN); Pesquisas elaboradas pelo Instituto


HumanRightsWatch sobre MSEs e violência policial; Jornais Extra, O Globo, Folha
de São Paulo e Revistas, como Le Monde Diplomatique Brasil. Dados do
Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, através
de relatórios anuais produzidos (2015 e 2016). Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF), Documentário a “13 Ementa”; análise do documento produzido
pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) sobre os “Subsídios para Atuação
do assistente social no sociojurídico”.
Também consideramos como parte do aprofundamento teórico do objeto
estudado a participação semanal no Grupo de Estudos e Pesquisa (GEP) do
Programa de Estudos de América Latina e Caribe (PROEALC). Os estudos de
autores clássicos, bem como de temáticas diversas, contribuíram para o escopo
teórico metodológico e para o aprofundamento do objeto estudado. O estudo apoiou-
se também em diversas discussões provenientes da participação em seminários,
congressos, palestras ministradas sobre o tema, bem como nas disciplinas cursadas
ao longo do doutorado.
A tese está estruturada a partir de três capítulos, que foram pensados e
organizados de forma articulada com o desenho da pesquisa e com as
determinações que envolvem o objeto de investigação: as MSEs para adolescentes
e sua relação com a persistente cultura punitiva no Brasil. Segue-se, então, o
caminho desenvolvido no arcabouço dos capítulos.
O primeiro capítulo, intitulado “A instrumentalidade da cultura punitiva no
Brasil”, buscou aprofundar a formação histórica do Estado brasileiro, cuja
organização jurídica e burocrática orientou-se para a defesa da classe dominante e
da propriedade privada, direcionando, para este fim, seu aparato repressivo.
Objetivamos demonstrar a relação do passado com explicações para o presente,
não de forma linear, mas descortinando e identificando traços presentes da cultura
punitiva no Brasil, na reprodução das desigualdades sociais nos marcos da
mundialização do capital.
No segundo capítulo, “A centralidade da cultura punitiva no trato da
infância e adolescência no Brasil: determinantes econômicos e sociais das
MSEs na atualidade”, buscamos aprofundar a centralidade da punição ao longo do
processo histórico, no que refere-se à política de atendimento para adolescentes,
destacando seu recrudescimento na atualidade. Foi ressaltada a seletividade das
33

MSEs pela via dos determinantes raciais e de classe social. Através destes
determinantes, foi possível chegar também no papel da mídia burguesa como um
dos aparelhos privados de hegemonia, que na atualidade possui centralidade na
conquista de consensos e de um forte senso comum sobre a necessidade de
punição.
No terceiro e último capítulo, intitulado “Medidas socioeducativas e o
trabalho do serviço social: limites e possibilidades no contexto da barbárie
engendrada pela cultura punitiva”, a intenção foi de demonstrar os elementos da
cultura punitiva nas MSEs a partir dos profissionais do Serviço Social. Por via da
perspectiva da criminalização dos adolescentes pobres e da punição, foi possível
problematizar e decifrar as formas reiteradas de punição, bem como sobre as
contradições presentes no processo de trabalho dos assistentes sociais. Também foi
possível perceber as dificuldades vivenciadas pelos mesmos, considerando as
formas jurídicas burguesas, podendo, então, contribuir com o repensar sobre o
trabalho com as MSEs.
34

1 A INSTRUMENTALIDADE DA CULTURA PUNITIVA NO BRASIL

Este é tempo de partido,


tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.
(Carlos Drummond de Andrade)

Neste capítulo, buscamos identificar traços da realidade atual descortinando


sua relação com a cultura punitiva brasileira na reprodução das desigualdades
sociais. Para tanto, consideramos importante reconstruir partes significantes de
nossa formação social, enfatizando esta cultura, na qual é e se constrói
organicamente nesta formação. A busca, então, foi de demonstrar a relação de
nosso passado, não de forma linear como explicação do presente, mas como um
caminho que contribua no desvelar dos movimentos contraditórios da atualidade.
Aqui na junção com a intensificação de práticas e políticas de punição aos
adolescentes, tendo como instrumento as MSEs. Uma cultura que foi historicamente
construída tornando-se consenso, o trato da criança e do adolescente das classes
populares na história é a história de violações, violência, punição/criminalização aos
pobres, mas principalmente é a história do “desconhecimento” e do descaso.
Portanto, é necessário buscar identificar elementos da formação brasileira que -
através dos teóricos intérpretes brasileiros – apresentem as concepções em
disputas, buscando identificar a construção do autoritarismo (ideologia autoritária) e
da cultura punitiva, que se intensificam nos marcos da crise capitalista, bem como
do recrudescimento das políticas neoliberais.
35

1.1 O recrudescimento da barbárie na lógica da mundialização do capital: a


experiência brasileira

Os tempos atuais refletem, sim, “tempos partidos”, como nos falou


Drummond, mas principalmente de “homens partidos” e solitários inseridos em um
vasto processo histórico, social, econômico, político e cultural, em um sistema
planetário onde se movimentam populações de diferentes culturas, línguas e
religiões, nas quais surgem novas relações que apontam possibilidades de interação
entre povos dos diferentes continentes. Processo este que possui grandes impasses
e contradições, uma vez que a mundialização do capital em sua essência, como
modo de produção material e espiritual, encontra sua limitação, o seu absurdo, visto
que se pode falar “em capital e trabalho, pobre e rico, centro e periferia,
industrializado e subdesenvolvido, dominante e dependente, mas também se pode
falar em produção e consumo, emprego e desemprego, afluência e pauperismo,
integração e fragmentação, massificação e solidão” (IANNI, 2003, p. 64).
Contraditória solidão, pois nunca tivemos tão “interligados”, conectados pelo mundo
afora, através do acesso a informações de quase todos os “rincões” do planeta. Não
poderíamos imaginar tamanha interação através dos meios eletrônicos, da
massificação da internet, da televisão, celulares e demais meios. Na verdade, nunca
estivemos tão próximos no e do mundo, mas tão longe, tão solitários.
A ilusão de um mundo aberto para todos não se concretizou, nunca estivemos
tão partidos, tão individuais, tão possessivos, buscando a qualquer preço um “lugar
ao sol”. Há muitos desencontros no ponto de vista humano, nos mitos de que “todos
são iguais” e no “respeito às diferenças”, pois nos limites desta civilidade,
gerenciada pelo fetiche da mercadoria, o que “resta” são os mitos obscurecidos pela
promessa de um futuro promissor para quem “trabalhar e se esforçar por um lugar
ao sol”. Os avanços tecnológicos e científicos não caminharam na mesma direção
do avanço da humanidade, no sentido de um “progresso” humano, de civilidade,
pelo contrário, foram capturados e valorizados pelo tardo–capitalismo, podendo
afirmar então que a mesma ciência que “(...) abre perspectivas de emancipação
individual e coletiva, propicia a alienação material e espiritual de indivíduos e
coletividades, devido à forma pela qual se transforma em força produtiva e técnica
de ‘controle social’” (IANNI, 2003, p. 66).
36

A mundialização do capital caracteriza-se pelas “forças de mercados


liberadas, onde todos os campos da vida social, sem exceção, são submetidos à
valorização do capital privado” (CHESNAIS, 1996, p. 25). O capital mundial,
compreendido como mercado mundial, possui caráter abrangente e inclusivo das
atividades capitalistas, cuja valorização e expansão vão além de qualquer fronteira.
Ou seja, é “traço constitutivo do capitalismo a sua mundialização” (BRAZ & NETTO,
2007 p. 186).
Nesta forma de desenvolvimento do capital mundial, perde-se o sentido
mesmo que burguês da cidadania20 em detrimento da mercantilização das relações
sociais, através de grandes processos de financeirização do capital no mundo pela
via de grandes corporações vinculadas aos países desenvolvidos, que ditam as
regras no mundo “globalizado”. O que houve foi o avanço da cidadania da
mercadoria, pois o “(...) intercâmbio de mercadorias, compreendendo as moedas
nacionais, realizam-se sob o signo de uma moeda global, abstrata, imaginária, não
localizada, desterritorializada. A mercadoria alcançou a cidadania mundial muito
antes que o indivíduo” (IANNI, 2003 p. 110).
Neste cenário, são muitas as barreiras, no âmbito econômico e político, para
a efetivação de marcos mais civilizatórios 21e de ampliação da democracia. Esses
entraves são determinações das profundas transformações societárias emergentes,
desde a década de 1970, que vêm inaugurando um novo perfil para o capitalismo
contemporâneo. São as atuais circunstâncias de restauração do capital para
enfrentar a crise estrutural que rompeu com o que Mandel (1982) denominou de
segunda “longa onda expansiva” (1940 a 1970), crise 22 do capital ou período

20
Sobre cidadania burguesa, importante leitura de MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e
status. (1967). Porém a compreensão nesta tese sobre cidadania refere-se a “(...) capacidade
conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos,
de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de
realização humana abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado.
(COUTINHO, 2000, p. 50)
21
Partimos do pressuposto de que, no modo de produção capitalista, a efetivação de “marcos
civilizatórios” é limitada; conforme Marx (1968, apud NETTO, 2013, p.32), ela se dá “apenas pela
realização da emancipação política, porém a ordem burguesa engendrou sua negação”.
22
Compreendemos crise do capital como a necessidade do capitalismo de “cada vez mais se
reproduzir, através de valorização do dinheiro e de mercadorias, a crise é parte constitutiva do
modelo vigente, e é este processo de “abalos na rotação do capital (...) que requisita crescentemente,
a intervenção do Estado com o suporte do fundo público, em variadas formas, o que inclui, como
vimos sinalizando, a política social” (BEHRING, 2012, p. 166).
37

recessivo, que se mantém e se intensifica nos dias atuais. Instaurando, então, o


“desemprego estrutural”, aquilo que Mészáros datou e definiu:

(...) por volta de 1970, estávamos submetidos a um desenvolvimento


perigoso no mundo do trabalho, que pouco depois teve de ser
caracterizado, mesmo pelos apologistas da ordem estabelecida, como
“desemprego estrutural”. Desde aqueles dias, que hoje estão a não menos
de três ou quatro décadas, esse problema foi ainda mais agravando, em vez
de solucionado, conforme repetidas promessas e expectativas. De fato, ele
se ampliou atingindo proporções perigosas até mesmo nos países
capitalistas mais desenvolvidos, acentuando, assim, a irremediabilidade
persistente dessa característica da crise estrutural do sistema (MÉSZÁROS,
2004, p. 17).

Em resposta às expressões da crise do capital, gestaram-se exigências na


tentativa de restaurar o circuito produtivo. José Paulo Netto (2013, p. 21) apontou
que “o projeto restaurador viu-se resumido no tríplice mote da ‘flexibilização’ (da
produção, das relações de trabalho), ‘desregulamentação’ (das relações comerciais
e dos circuitos financeiros) e da ‘privatização’ (do patrimônio estatal)”. Com isso,
ocorreu o repasse de grande parte de recursos do Estado para o mercado financeiro
e o aumento significativo do exército industrial de reserva, movimento este
constitutivo do processo de acumulação capitalista.
As novas exigências do capital têm produzido a “precarização das condições
de vida da massa dos vendedores de força de trabalho” (NETTO, 2013, p.22) e a
precarização de direitos já conquistados. Com essa dinâmica, vive-se as mazelas na
vida cotidiana, com novas expressões da “questão social”23, que é compulsória e
constitutiva do desenvolvimento capitalista e se expressa na totalidade da vida
social. O que, em “diferentes estágios deste desenvolvimento, produzem diferentes
manifestações da “questão social’” (NETTO, 2013, p.15).
A realidade mundial tem demonstrado o exaurimento do capitalismo no que
tange à sua lógica acumulativa, bem como de suas possibilidades civilizatórias.
Como, por exemplo, vejamos a cruel situação dos milhares de imigrantes da Síria,
Afeganistão, Kosovo, Sérvia, Paquistão e Iraque, dentre outros, conforme dados do
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), que buscam a

23
A “questão social” neste estudo é compreendida como “o conjunto das expressões das
desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social cada
vez mais coletiva. O trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus
frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade” (IAMAMOTO, 2007, p.27).
Também compreendemos que a “questão social” “não é uma sequela adjetiva ou transitória do
regime do capital: sua existência e suas manifestações são indissociáveis da dinâmica específica do
capital tornado potência social dominante. A “questão social” é constitutiva do capitalismo: não se
suprime aquela se este se conservar” (NETTO, 2013, p. 15).
38

sobrevivência na Europa. São constantes também movimentos de povos africanos e


latinos americanos. No período de 2010 a 2014, 39 mil haitianos e senegaleses
ingressaram no Brasil conforme dados da Polícia Federal, muitos agora estão se
deslocando para o Chile, fugindo da crise econômica brasileira. Esses sujeitos
buscam a “salvação” em países com a economia um pouco mais “viva”, fugindo do
desemprego, da fome e de guerras, produzindo impactos para o recrudescimento do
racismo e xenofobia nestes territórios, representando o que Mészáros (2002) definiu
como os limites sociometabólicos de reprodução do capital, afirmando ainda que o
estágio atual é necessariamente destrutivo do ponto de vista humano, ecológico e
social. Do ponto de vista humano e de seus direitos, os retrocessos são da mesma
forma destrutivos quanto a valores e princípios vinculados à defesa da vida.
Das possibilidades civilizatórias do capital, a defesa da vida foi transformada
na defesa das “coisas”, valorização e idealização da cultura do consumo, pela
liderança do fetiche da mercadoria. A “coisificação” da vida demonstra o quanto
perdemos neste processo de esgotamento da civilidade, principalmente no aspecto
humano. Neste sentido, falar e ou defender direitos humanos para todos torna-se
cada vez mais uma ato de “nadar contra a maré”, pois no estágio atual da sociedade
burguesa, em todas as partes do mundo, na perspectiva da mundialização do
capital, os direitos humanos que se preservam são fundamentalmente “(...) garantias
à propriedade privada, garantias à livre acumulação, circulação e reprodução
ampliada do capital. Liberdade negocial e igualdade jurídica. Garantias individuais
somente aos humanos ricos e, preferencialmente, brancos – é o quanto basta”
(TRINDADE, 2011, p. 18).
Cabe afirmar também que no contexto da maximização do processo de
mundialização do capital e o esgotamento das possibilidades civilizatórias e
emancipadoras, principalmente no aspecto dos direitos humanos, como já nos
referimos, Trindade (2011) refere que:

O capitalismo e sua classe dirigente cumpriram um papel histórico


revolucionário, foram alavancas que impulsionaram a humanidade para
além do feudalismo e do absolutismo. Há tempos, contudo, passaram o
capitalismo e a burguesia a cumprir a função de entraves à busca humana
por liberdade e igualdade reais (não apenas jurídico – formais) e pela
sobrevivência com dignidade para todos. Direitos humanos e capitalismo,
nascidos como irmãos siameses, terminaram pondo-se em confronto. Não
se cumpriram, assim, as tais “promessas emancipadoras” suscitadas pela
modernidade (TRINDADE 2011, p. 18).
39

Nesta perspectiva, o recrudescimento da barbárie entra em cena novamente


no mundo globalizado, em um processo de “antítese dos valores de civilização”
(BAUMAN, 1988) e ou como ausência de civilização. Vale destacar também a
barbárie que toma seu ápice no que refere à “civilização em excesso” (MENEGAT,
2003), como esgotamento do processo atual de desenvolvimento capitalista.
Todavia compreendemos a mesma como produto sócio–histórico do processo de
desenvolvimento do capital e sua atual crise através do enfraquecimento dos valores
progressistas e sua antítese como o avanço do conservadorismo. Na forma
contemporânea, se expressa de forma “bárbara” com resquícios de processos
arcaicos, que nos remetem à “Idade Média” em uma conjunção com modernos
meios sofisticados, como os aparatos tecnológicos e bélicos, bem como pelo
aparato policial e poder judiciário, considerados mecanismos legais ou “dentro da
lei”.
Nossa compreensão aqui vai ao encontro das construções teóricas acima,
porém nosso objetivo foi desvelar o recrudescimento da barbárie no Brasil e neste
sentido corroboramos com os estudos de Netto (2013), no qual refere sobre a
conjuntura vigente brasileira. O que vem se configurando como face da barbárie é a
relação intrínseca entre políticas assistenciais minimalistas e repressão às
denominadas “classes perigosas”, pela via da criminalização dos pobres como
estratégia de enfrentamento da “questão social” – processo no qual compreendemos
constituir-se como uma “face contemporânea da barbárie” (NETTO, 2013, p.36).
Aqui demonstrando essas determinações no recrudescimento da barbárie, que
atinge os adolescentes que cumprem MSEs, na articulação entre pobreza e punição.
O atual contexto da realidade brasileira tem demonstrado que as novas leis -
como a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente
(1990) - podem ter sido sim uma conquista no âmbito democrático e civilizatório,
tendo como grande peso o entusiasmo de intelectuais e militantes, após vinte anos
de ditadura militar. A abertura democrática viria por romper com as grandes
desigualdades sociais que historicamente marcaram nossa formação social. Porém
não foram e não são suficientes para quebrar a lógica autoritária e de “controle
social” dos pobres, e a punição se efetiva como um instrumento eficaz para manter
os benefícios da classe dominante na defesa de seus interesses e da propriedade
privada. As conquistas legais, além de não terem sido suficientes para quebrar a
lógica dominante e autoritária na atualidade, têm demonstrado o recrudescimento
40

das desigualdades sociais nesta latitude e consequentemente da barbárie no


contexto da reprodução da mundialização do capital.
Cabe destacar que nesta conjuntura o papel do Estado burguês é central para
a reprodução da mundialização do capital, porém de forma redimensionada a partir
da década de 1970, inaugurando um novo estágio, o período do “tardo-capitalismo”,
como já referido, que se caracteriza pela obstacularização de valorização do capital
(MANDEL, 1982). O Estado passa, então, a ser central na efetivação dessas
transformações, em razão de sua gênese histórica, que foi e é “(...) talhado
estruturalmente para funcionar conforme o capital” (MASCARO, 2015, p. 24). As
mudanças ocorridas para reverter a crise da acumulação foram erguidas através do
declínio do Estado de Bem-Estar Social na Europa, da ênfase em medidas
neoliberais, pela via dos discursos da urgência de um Estado mínimo, redução de
direitos, precarização do trabalho e terceirizações. Nesta perspectiva, o Estado vem
funcionando como um “esteio do capital privado” (Mandel, 1982, p. 340),
subsidiando grandes monopólios industriais e impulsionando o mercado financeiro
através de apoio de recursos públicos (pelo fundo público) aos bancos privados,
bem como liberando subsídios fiscais como forma de incentivo ao aumento da
produção e aos lucros para o setor privado.
A lógica atual do capital mundial, portador de juros e da financeirização, tem
contribuído com o acirramento das desigualdades sociais no país. Por outro lado,
investe em segurança e criminalização dos pobres como forma de combater
resistências e ampliar seu poder sobre a classe trabalhadora, que “paga”
duplamente para ser criminalizada: tanto na lógica da contribuição pelo trabalho e
previdenciária, como pela via de efetivação de um Estado penal. Nesta direção,
Behring afirma que:
O Estado é elemento importante também no circuito da produção,
assumindo ramos conexos, sendo a indústria de armamentos essencial
neste processo, como mostram os enormes orçamentos de defesa externa
e interna (armamento das polícias, para contenção interna acompanhada da
criminalização da resistência). E há a dívida pública, mecanismo pelo qual
os Estados transferem parte da riqueza socialmente produzida para o
capital portador de juros, o verdadeiro maestro do momento presente de
mundialização e financeirização do capital (BEHRING, 2012, p.177).

Neste contexto, diante disso, as leis do mercado avançam e os direitos


regridem, o desmonte do Estado de Bem-Estar Social vem acompanhado de uma
grande defesa do Estado penal (NETTO, 2009). Porém as análises das expressões
do Estado penal não podem perder de vista que esse processo possui múltiplas
41

determinações. Além do aspecto da criminalização dos pobres através da prisão ou


da violência policial24, que massacra a população jovem das periferias, a questão
criminal não é apenas objeto de controle de massas; transforma-se “(...) numa
mercadoria de altíssimo valor para a gestão policial e ganhos concretos” (BATISTA,
2011, p. 101). Basta olharmos para as políticas criminais de drogas, o estupendo
lucro do mercado de armas, o crescimento de empresas de segurança privada e a
inserção e lucro de grandes empreiteiras nas construções de novas prisões, bem
como na privatização das mesmas. Para o mercado que busca novos nichos
lucrativos, a questão criminal passou a ser uma nova fronteira.
O mercado lucrativo, que envolve a questão criminal, não se inicia no Brasil,
possui antecedentes nos países do capitalismo central (influência da cultura
estadunidense, WACQUANT, 2013), bem como foi uma das exigências para o
ingresso na União Europeia, entretanto rompe fronteiras e busca valorização nos
países de capitalismo periférico, como parte constitutiva da lógica da mundialização.
O recrudescimento da estrutura punitiva, que se expressa no aumento dos
encarceramentos em todo o mundo, utilizando a receita da grande população
carcerária para ganhos lucrativos, como parte de um pacote de “controle social”,
estímulo a privatizações das unidades prisionais, bem como o financiamento e
incentivo da indústria de armamentos, é incorporada e assimilada no contexto da
mundialização. A questão criminal então é parte constitutiva do movimento
econômico de valorização e acumulação do capital na conjunção entre superlucros e
“controle” de massas de populações sobrantes a esta perspectiva.
A perspectiva da centralidade da segurança pública e sua inserção cada vez
maior no circuito da valorização do capital são demonstradas no documentário “A
13ª Emenda”25, que aborda a questão da valorização do capital através da
segurança pública e privada nos EUA, venda de armas e privatização de

24
A ideia foi demonstrar, ao longo da pesquisa, que vivemos em um país onde a polícia foi e é
capacitada para matar. Consideramos que esse aparato policial se constituiu ao longo de nossa
formação social e política, intensificando-se a partir do longo processo ditatorial. A “polícia que mata”
é uma expressão de nossa cultura política punitiva. Casos como chacinas em São Paulo e caso
Amarildo no Rio de Janeiro demonstram essa realidade, sobre a qual aprofundaremos na tese. Sobre
a relação entre polícia e ditadura militar no Brasil, importante destacar a produção do jornalista Caco
Barcellos “Rota 66: a história da polícia que mata”, 1992. Bem como dados do Instituto Human Rights
Watch (2016) demonstram que a polícia no Estado do Rio de Janeiro é a que mais mata. Isso será
demonstrado a seguir.
25
Acesso pelo provedor de serviço online “NETFLIX”.
42

penitenciárias. Desde 1994, nos EUA, por meio da ALEC (American Legislative
Exchange Council), denominada associação e ou clube privado, tendo, como
membros, políticos, empresários e corporações, como Walmart (o maior vendedor
de armas e de munição do mundo), Direct TV, Fedex, Pfzer, Ford, entre outros,
estes vêm influenciando e propondo leis a seus correspondentes políticos (lobbys).
Este grupo influenciou mudanças de leis mais “duras”, em uma conjunção entre
incentivos para armas e financeirização para construção de presídios, ampliou a
militarização, bem como apoiou a política de “tolerância zero”, que, por sua vez,
contribuiu para produzir o hiperencarceramento, principalmente de pessoas pobres e
negras. A ALEC influenciou muitas leis na perspectiva punitiva, tanto no aumento
das prisões privadas requisitando a manutenção dos índices altos de
encarceramento (relação com o judiciário americano), bem como na alteração da lei
que determina que o presidiário cumpra 85% do tempo da pena, sem receber
liberdade condicional, contribuindo com o lucro das empresas.
No Brasil, no que se refere aos processos de privatizações de unidades
prisionais, a sua incorporação apresenta-se no início. Empresários das indústrias de
segurança, de armamentos e políticos conservadores (bancada da “bala”) já
perceberam que a privatização e ou o aumento de presídios pode vir a ser um
grande negócio26. No caso das MSEs para adolescentes, ainda não houve
movimentos em relação à privatização de unidades de execução, mas já acontece a
participação de empresas terceirizadas na área de alimentação e segurança
externa, em contratos temporários de trabalhadores, bem como a participação de
empreiteiras na construção de novas unidades27. Reconhecemos também que a
lógica da construção do medo dos adolescentes negros e pobres acaba por também
vincular-se à busca de mais segurança, muitas vezes privadas, e na oferta de
armamentos. Consideramos, então, que fazem parte de um subproduto partícipe da
acumulação capitalista.

26
. Ver “Privatização de presídios aprofunda discussão sobre responsabilidades do Estado. Brasil de
Fato, 04 fev. 2013. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/node/11838>.
27
Com a efetivação do SINASE, que recomenda adequações arquitetônicas nas unidades de
privação de liberdade e semiliberdade, foram construídas novas unidades e outras reformadas.
Porém percebe-se que, no debate político (poder executivo) e judiciário em torno do aumento de
internações e da superlotação das unidades, a centralidade acaba ficando na necessidade de
construção de novas unidades e não sobre a inadequação jurídica de muitas internações, muito
menos sobre a realidade da criminalização dos pobres.
43

O aumento de gastos com segurança pública no Brasil pode ser verificado


pela pesquisa elaborada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública/2016,
referente aos anos de 2002 a 2015, que demonstram a evolução das despesas
realizadas:

Pelos três entes na função segurança pública a partir de 2002, é


interessante perceber que todos os entes aumentaram seus gastos em
termos reais ao longo do período em análise, o que implica que o gasto em
segurança passou de R$ 48 bilhões em 2002 para R$ 81 bilhões em 2015,
representando um total gasto de 1,5% do PIB. A maior parte desse aumento
é dada pelos estados, o que se explica, fundamentalmente, pela
manutenção das principais forças policiais do país em termos de
contingentes, isto é, a maior parte desse gasto se deu com despesas de
pessoal ativo e inativo. Quando analisamos os gastos do governo federal,
segundo maior ente em gastos com segurança pública, percebe-se uma
trajetória oscilante, com crescimento até 2010 e depois redução de patamar
até o presente momento. No período de 2002 a 2010, é importante lembrar,
concentra-se o maior volume de recursos do Fundo Nacional de Segurança
Pública (FNSP). Volume importante desse recurso foi usado no período
para transferir recursos aos municípios e estados, principalmente por meio
de convênios, em especial para despesas de capital para a aquisição de
equipamentos e material permanente para as polícias, guardas e bombeiros
28
(2016, p. 76) .

No Brasil e no mundo, os dados expressam a realidade de recrudescimento


dessa barbárie, na qual a humanidade civilizatória é enjeitada sob a lógica criminal
seletiva na perspectiva liberal29. Porém, na particularidade brasileira, os impactos
desse agravamento são vividos por milhares de sujeitos, principalmente pobres,
negros, jovens e moradores das periferias das cidades. Os dados empíricos são
cruéis, extremamente chocantes e desanimadores, e têm sido demonstrados com
certa regularidade em pesquisas acadêmicas e artigos de forma crítica na busca
“desesperada” de romper com a naturalização dessa realidade e por alguma
mudança nesse cenário. Na mídia impressa, a revista “Le Monde Diplomatique
Brasil”, em recente matéria publicada sobre índices alarmantes de mortes no Brasil,
principalmente de jovens, refere sobre essa realidade brasileira, sendo assim, “já

28
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2016. Disponível em:
<http://www.forumseguranca.org.br/storage/10_anuario_site_18-11-2016-retificado.pdf>
29
Compreendido como o movimento livre e ilimitado do mercado, que possibilitaria o bem-estar.
Conforme Adam Smith (2003), a “mão invisível” do mercado livre que regula as relações econômicas
e sociais produzindo o bem comum.
44

poderemos concluir que possivelmente o Brasil pode estar voltando a um estágio


pré-Idade Média. Ou que ainda não saiu dessa época”30 (KOVALESKI, 2015, p. 30).
Os dados que demonstram a intensidade da barbárie contemporânea
brasileira se expressam nas estatísticas de mortes por homicídios, de aumento do
aprisionamento em presídios com péssimas condições de insalubridade e de
superlotação, com denúncias de práticas de torturas. Essa realidade se reproduz em
unidades de cumprimento de MSEs para adolescentes, conforme vem denunciando
os “Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura”31 em todo o país. A
naturalização dessa realidade por parte da sociedade brasileira, a qual tem
reivindicado o recrudescimento de um Estado penal e repressor, ignora que “o
Estado policial e jurídico está desalojando o Estado democrático no País” (SEMER,
2016)32.
Conforme dados do Sistema Nacional de Informações Penitenciárias
(INFOPEN, BRASIL, 2014), o Brasil possui o segundo lugar mundial na variação da
taxa de crescimento da população carcerária, perdendo apenas para a Indonésia e
com a quarta população carcerária. Entretanto os três primeiros países, Estados
Unidos, China e Rússia, vêm registrando um decréscimo nos índices de
encarceramento nos últimos anos. Um dos dados preocupantes neste contexto são
o índice de 41% de presos provisórios e a questão da população carcerária
feminina, registrando-se 567% de crescimento entre 2000 e 2014 (BRASIL, 2014).
Conforme estudos de WOLFF:

Estes elementos nos indicam que o importante e contínuo crescimento da


população carcerária não tem repercutido na melhora das condições de vida
e de segurança da população. Ainda que seja a população pobre a que
mais sofre com os delitos praticados e com atos de violência institucional
registrados por agentes do Estado, a demanda por maior segurança é de
todas as camadas sociais. Verifica-se que o alto custo econômico e social
do aparato repressivo e da prisão não empreende nem a prevenção geral –
dissuasão da prática de delitos – nem a prevenção especial positiva –
reforma moral do condenado. Ao contrário, o encarceramento marca
fortemente a trajetória da pessoa que passa pela experiência da
prisionalização, pela estigmatização e agravamento das condições de
exclusão e marginalização que culminaram com sua criminalização.

30
Matéria sobre índices alarmantes de mortes no Brasil, em “Le Monde Diplomatique Brasil”,
Intitulada “A dialética do esclarecimento revisitada”. Publicada em Julho 2015, p.30.
31
Estes dados serão demonstrados no próximo capítulo.
32
Fala de jurista Marcelo Semer em 17/03/206. Disponível em:
<http://www.vermelho.org.br/noticia/277928-1>
45

Portanto não se trata de efetivar a ‘defesa da sociedade’ muito menos a


‘reabilitação’ da pessoa criminalizada, mas de se constituir um lugar de
exclusão por excelência (WOLFF, 2016, p. 12).

Em relação ao extermínio de jovens no Brasil, especialmente no Rio de


Janeiro, a pesquisa de Simas (2013) denuncia o recrudescimento da realidade
violenta no Brasil, que possui “cor”, “gênero” e “raça”:

Entre 2002 e 2010 foram assassinados cerca de 272.422 cidadãos negros,


com a expressiva média de 39.269 por ano. Outro dado emblemático diz
respeito que os números de homicídios de branco apresentarem uma queda
de 25,5% no mesmo período, enquanto os de negros apresentaram um
forte aumento de 26952 para 34983, representando um incremento de
29,8%. No que se refere à taxa de homicídios de jovens brancos,
apresentou queda de 40,6 para 28,3 por 100 mil habitantes e dos negros
ocorreu um processo inverso, com um incremento de 69,6 para 72
assassinatos (SIMAS, 2013 p.169).

No que se refere às mortes de jovens, o autor também afirma que, a partir da


análise dos estudos de Waiselfisz (2012), “cruzando os dados de homicídios do país
por raça e idade, podemos concluir que a violência homicida no nosso país além de
apresentar forte desigualdade de gênero se expressa de forma mais contundente na
fase da adolescência/juventude, perpetrada em especial contra a população negra”
(SIMAS, 2013, p.169).
Estes dados não se alteraram de 2013 para 2016, conforme relatório da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal sobre mortes de
jovens no Brasil. Concluiu-se, então, que “um jovem negro é assassinado no Brasil a
cada 23 minutos, quatro vezes maior que brancos na mesma faixa etária (15 a 29
anos), ou seja, a cada ano, cerca de 23,1 mil jovens negros são assassinados no
país, sendo o homicídio a causa da morte dos mesmo, jovens, negros, pobres e
moradores das periferias dos grandes centros”33.
Importante destacar também os estudos mais recentes publicados por
Waiselfisz (2015) “Violência Letal Contra as Crianças e Adolescentes do Brasil”,
34
demonstrando que o Brasil, em comparação a 85 países do mundo, está em
terceiro lugar nas taxas de homicídio (por 100 mil) tanto de crianças e adolescentes
de 10 a 14 anos de idade como de adolescentes de 15 a 19 anos de idade. Atrás do
México e de El Salvador. Nessa pesquisa, o autor também identificou a larga
33
Notícia do Jornal o Globo, de 08 jun. 2016.
34
Waiselfisz. “Violência Letal Contra as Crianças e Adolescentes do Brasil” (2015). Disponível em:
<http://www.mapadaviolencia.org.br/publicacoes/Violencia_Letal_web.pdf>
46

preponderância das armas de fogo, que, em 2013, estiveram presentes em 78,2%


dos homicídios de crianças adolescentes de 1 a 17 anos de idade. O autor também
observou um forte crescimento da participação das armas de fogo com o avanço da
idade das vítimas, ou seja, na adolescência e no início da juventude:

Durante o primeiro ano de vida, esse instrumento participou de 10,5% dos


homicídios; com relação às vítimas com 1 ano completo, o percentual vai a
15,4% dos homicídios. E, assim, com intermitências, continua crescendo,
até atingir a marca de 84,1%, aos 17 anos de idade. Vemos a larga
preponderância das armas de fogo, que, em 2013, estiveram presentes em
78,2% dos homicídios de crianças adolescentes de 1 a 17 anos de idade
(WAISELFISZ, 2015, p. 103).

Outro dado que se destaca é sobre recente levantamento que compara as


mortes de crianças e adolescentes negros e brancos no Brasil no ano de 2013,
demonstrando a cruel realidade - do que podemos denominar - de um genocídio35
da população negra brasileira, e/ou, como o autor denominou, que as taxas de
homicídios possuem uma cor.

No conjunto da população de 1 a 17 anos de idade, a taxa de homicídios de


brancos foi de 4,7 por 100 mil e a de negros, 13,1 por 100 mil. O índice de
vitimização negra foi de 178,0%, isto é, proporcionalmente ao tamanho das
respectivas populações, morreram 178,0% mais negros do que brancos.
Quando se foca nos adolescentes de 16 e 17 anos, a taxa de homicídios de
brancos foi de 24,2 por 100 mil. Já a taxa de adolescentes negros foi de
66,3 em 100 mil. A vitimização, neste caso, foi de 173,6%.
Proporcionalmente, morreram quase três vezes mais negros que brancos
(WAISELFISZ, 2015, p. 106).

No que se refere ao nosso objeto aqui estudado, cabe destacar que o


aumento do encarceramento de adolescentes nas Unidades de privação de
liberdade para cumprimento de MSEs corrobora com essa realidade, onde o
extermínio e a punição não foram rompidos com a aprovação do Estatuto da Criança
e do Adolescente. Dados do Mapa da Violência de 201336 ilustram o crescimento em
quase 500% dos homicídios como causa da morte de jovens com a faixa etária entre
16 e 17 anos, de 1980 para 2013. Da mesma forma, o aumento do índice de
internação de adolescentes (privação de liberdade), via de regra em unidades
superlotadas e com condições insalubres, é um processo análogo ao aumento de
prisões de adultos. Mesmo o ECA, tendo como princípio o “respeito ao devido

35
Sobre o debate em torno da questão de um genocídio no Brasil, será aprofundado no terceiro
capítulo deste estudo.
36
Fonte de pesquisa: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2013/mapa2013_homicidios_
juventude.pdf>
47

processo legal” (que em relação ao antigo Código de Menores, foi um avanço), não
conseguiu reduzir o número de adolescentes presos, seguindo a tendência
neoliberal do “grande encarceramento”, conforme expressa o gráfico abaixo:

Figura 1 – Evolução da aplicação de MSEs de Privação de Liberdade no Brasil

Fonte: Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 2015.

Um aumento de 763 adolescentes em relação ao ano de 2009, o que


representa crescimento de 4,50%. Em novembro de 2010, havia 17.703
adolescentes em restrição e privação de liberdade, sendo 12.041 em internação;
3.934 em internação provisória e 1.728 em medida de semiliberdade. Os indicadores
também revelam que mesmo com a consolidação do Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (SINASE), que regula e aponta para a redução de
jovens privados de liberdade e priorização das medidas socioeducativas em meio
aberto, a realidade demonstra contrariedade a esta questão. Ou seja, o investimento
continua no recolhimento e na privação de liberdade destes jovens como política de
resolução da pobreza. Os dados do “Anuário de Segurança Pública/2013” também
revelam este aumento:

Indicam o crescimento da aplicação das medidas privativas de liberdade na maior


parte do país. A taxa de adolescentes em cumprimento de medida de internação por
100 mil adolescentes (população na faixa etária de 12 a 17 anos) cresceu na maioria
das unidades da Federação, passando a taxa nacional de 58,3, em 2010, para 64,1
em 2011. Esse crescimento coloca-se como um grande desafio aos operadores do
sistema de justiça juvenil e aos gestores de políticas para a infância e adolescência,
uma vez que se distancia do princípio de excepcionalidade dessa medida
preconizado pelo ECA e da meta de redução da taxa de internação defendida pelo
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA. (p. 83).
48

Mészáros (2004), em sua outra obra “O poder da Ideologia”, traz elementos


para refletir sobre o momento presente, o qual denomina de uma nova época
histórica e não dos acontecimentos efêmeros de uma nova conjuntura, em contraste
com as fases anteriores do desenvolvimento capitalista, portanto devemos voltar
nossas atenções para as:

Forças e contradições subjacentes, pois elas não pertencem a um passado


distante. Pelo contrário, continuam até hoje a limitar nossa margem de
ação. E, pior, nos dias atuais, elas fazem tentativas crescentemente
perigosas – incluindo o uso, hoje rotineiro, em larga escala da mais brutal
máquina militar, combinada com falsos pretextos para a guerra e suas
cínicas justificativas ideológicas -, com a ideia absolutamente irracional de
colocar sob controle autoritário as condições agravantes da ordem política e
socioeconômica estabelecida (MÉSZÁROS, 2004, p.15).

Controle autoritário, que no Brasil possui suas raízes em sua formação social,
política, econômica e cultural, sobre o qual iremos demonstrar na próxima seção.
Questão que se observa através da reprodução da mundialização do capital no
Brasil, o recrudescimento da punição como prática consensual se intensifica. A
mundialização favorece os países ricos e dominantes, bem como abre fronteiras
para o acirramento dessa dominação. Assim como as desigualdades sociais são
intrínsecas, a reprodução do capital e o acirramento destas como o aumento da
“pobreza” passam a ser uma problemática e considerada uma “ameaça” ao
desenvolvimento e à segurança mundial. Neste sentido, o Estado brasileiro passa a
cumprir com as diretrizes do Banco Mundial (BM) e do Fundo Monetário
Internacional (FMI) na administração da “pobreza”, como já dito em uma conjunção
entre a mesma, assistencialismo e punição como forma de “controle”. Diretrizes que
se expressam nas particularidades das MSEs.

1.2 Relações sociais e cultura punitiva: a formação social, política, econômica


e cultural no Brasil

Identificar elementos de construção do pensamento e de práticas autoritárias


como parte constitutiva de uma cultura política punitiva em nosso país se faz
necessário para reconhecermos as determinações contemporâneas do
recrudescimento da punição aos pobres. As persistentes desigualdades sociais que
49

marcam nossa história e que se expressam através da “pobreza” e as formas de


“controle” adotadas na atualidade possuem marcas persistentes de dominação e
perpetuação das classes dominantes nesta latitude. Por isso, se faz necessário um
mergulho na formação brasileira e no seu processo de dominação burguesa e
transformação capitalista (FERNANDES, 2005). Historicamente o Brasil se constitui
por um profundo conservadorismo que marca nossa sociedade, o qual se solidificou
através de mecanismos hegemônicos de consensos na construção de uma cultura
punitiva, principalmente direcionada aos pobres. Cabe, então, destacar esse
processo como construtor de uma hegemonia da punição. A categoria hegemonia
destaca-se na reflexão sobre a produção e a presença de consensos no âmbito do
Estado e da sociedade civil. Consensos que legitimam o status quo do modo de
produção capitalista e obscurecem seu processo contraditório. Segundo Gramsci,
em uma:

Sociedade de classes, a supremacia de uma delas se exerce sempre


através das modalidades complementares e, de fato, integradas, se bem
que analiticamente dissociável, do domínio e da hegemonia. Se o domínio
se impõe aos grupos antagônicos pelos mecanismos de coerção da
sociedade política, a hegemonia se exerce sobre grupos sociais aliados ou
neutrais, usando dos “mecanismos hegemônicos” da sociedade civil. Uma
conjunção de força e de consenso, de ditadura e de hegemonia é
fundamental em todo o Estado; o que varia é a proporção entre ambos
elementos, em razão do grau de desenvolvimento da sociedade civil, que,
como sede da ação ideologicamente orientada, é o locus de formação e
difusão da hegemonia, o centro nevrálgico de toda a estratégia política
(Gramsci, 1999, p. 130).

Nesta direção, também precisamos compreender que o processo de


formação do Estado e da sociedade brasileira possui traços conservadores e
autoritários, os mesmos, conforme dissemos anteriormente, é a razão para a
legitimação e não resolução das desigualdades sociais e econômicas. Isto só foi
possível mediante o aparato hegemônico do Estado e da sociedade civil, mas
também de um elemento fundamental na construção e perpetuação de elementos
dominantes em nossa sociedade, a ideologia.
O poder da ideologia e seu papel para a efetivação e manutenção das
persistentes desigualdades sociais, de sua naturalização e consequências, construiu
as formas de resoluções das expressões da “questão social”, via punição e/ou o
assistencialismo. Em nossa sociedade, tudo está impregnado de ideologia; em
nossa cultura liberal – conservadora, o sistema ideológico socialmente estabelecido
e dominante funciona de modo a apresentar – ou desvirtuar – suas próprias regras
50

de seletividade, preconceito, descriminação bem como dos preceitos capitalistas


liberais. Portanto, esse poder não pode ser superestimado, pois “ele afeta tanto os
que negam sua existência quanto os que reconhecem abertamente os interesses e
os valores intrínsecos às várias ideologias” (Mészáros, 2004 p.64). Na lógica da
criminalização dos pobres, a construção ideológica se sustenta e reverbera pela via
do clamor popular pela segurança e punição, logo, estás sentada em uma ideologia.
Compreendemos a mesma como um fenômeno histórico–social decorrente do modo
de produção econômico e se expressa de forma contundente na sociedade, visto
que:

A alienação social se exprime numa “teoria” do conhecimento espontânea,


formando o senso comum da sociedade. Por seu intermédio, são
imaginadas explicações e justificativas para a realidade tal como é
diretamente percebida e vivida. (...) Esse senso comum social, na verdade é
o resultado de uma elaboração intelectual sobre a realidade, feita pelos
pensadores ou intelectuais da sociedade – sacerdotes, filósofos, cientistas,
professores, escritores, jornalistas, artistas -, que descrevem e explicam o
mundo a partir do ponto de vista da classe dominante de sua sociedade.
Essa elaboração intelectual incorporada pelo senso comum social é a
ideologia. Por meio dela, o ponto de vista, as opiniões e as ideias de uma
das classes sociais – a dominante e dirigente – tornam-se o ponto de vista e
a opinião de todas as classes e de toda a sociedade (CHAUÍ, 2003, p. 174).

O consenso ideológico na sociedade brasileira foi construído e engendrado no


processo de desenvolvimento do capitalismo através do pacto entre elites
industriais, oligarquias agrárias e políticas, em detrimento de seus interesses. No
conhecimento da formação social, econômica, política e cultural do Brasil, é
perceptível que a luta de classes se efetivou e se efetiva pela dominação ideológica
burguesa conservadora e autoritária. Ampliando o olhar sobre os momentos
decisivos da história brasileira, é possível compreender que estes se apresentaram
através de manobras “pelo alto” (elitista e antipopular), sem rupturas nas estruturas
dominantes de poder econômico, conservando interesses privados da burguesia
37
pela via de uma “revolução passiva” , base da modernização (conservadora)
capitalista no Brasil, sendo o setor público um lugar de relações “condominiais entre
os interesses dominantes, expropriando politicamente os setores subalternos da
sociedade e intensificando modalidades autoritárias de ‘controle social’ sobre elas”

37
O conceito de “revolução passiva” ganhou destaque nas reflexões de GRAMSCI (1987). Conforme os estudos
de FREIRE, “Gramsci considera que a ‘revolução passiva’ realiza uma espécie de estatização da transição que
destrói toda a iniciativa popular na base e qualquer modificação nas relações governantes-governados no interior
das superestruturas e das instituições. A ‘revolução passiva’ compromete, por meio de automatismos inscritos no
coração das instituições de reprodução social, a mudança com a conservação.” (FREIRE, 2011, p. 19)
51

(VIANNA, 1997, p.7). E na atual crise estrutural do capital e seus impactos tendem a
recrudescer o conservadorismo e o autoritarismo, bem como o “controle social” das
classes subalternas.
Os ajustes econômicos no cenário mundial possuem natureza universal, pela
qual os países centrais ditam as regras aos países periféricos, que cumprem a
cartilha imposta. Porém cada país expressará, em sua particularidade, as
consequências dessas alterações conforme sua formação social, política e
econômica (FERNANDES, 2005; IANNI, 2004; PRADO, 2004). A questão da
ampliação do mercado financeiro mundial é descrita por Iamamoto (2007):

A efetiva mundialização da “sociedade global” é acionada pelos grandes


grupos industriais transnacionais articulados ao mundo das finanças. Este
tem como suporte as instituições financeiras que passam a operar com o
capital que rende juros (bancos, companhias de seguros, fundos de pensão,
fundos mútuos e sociedades financeiras de investimento), apoiadas na
dívida pública e no mercado acionário das empresas. Este processo
impulsionado pelos organismos multilaterais captura os Estados nacionais e
o espaço mundial, atribuindo um caráter cosmopolita à produção e consumo
de todos os países; e, simultaneamente, radicaliza o desenvolvimento
desigual e combinado, que estrutura as relações de dependência entre
nações no cenário internacional (IAMAMOTO, 2007, p.107).

No Brasil, pelas características e peso histórico de suas contradições, “o


‘moderno’ se constrói por meio do ‘arcaico’, recriando elementos de nossa herança
histórica colonial e patrimonialista, ao atualizar marcas persistentes e, ao mesmo
tempo, transformá-las, no contexto de mundialização do capital sob hegemonia
financeira” (IAMAMOTO, 2007, p.128).
Portanto, na atualidade, as transformações mundiais repercutem de forma
intensa na realidade brasileira, onde o peso de sua formação social, política,
econômica e cultural produz impactos catastróficos, intensificando as expressões da
“questão social” não resolvidas historicamente. É importante, neste processo,
compreender que a lógica do “capital fetiche” possui uma posição obscura, sendo
necessário seu desvelamento. Sobre essa dinâmica, Iamamoto (2007) afirma que:

O capital financeiro assume o comando do processo de acumulação e,


mediante inéditos processos sociais, envolve a economia e a sociedade, a
política e a cultura, vincando profundamente as formas de sociabilidade e o
jogo das forças sociais. O que é obscurecido nessa nova dinâmica do
capital é o seu avesso: o universo do trabalho – as classes trabalhadoras e
suas lutas –, que cria riqueza para outros, experimentando a radicalização
dos processos de exploração e expropriação (IAMAMOTO, 2007, p. 107).
52

As mudanças históricas ocorridas no Brasil, no que se refere ao


desenvolvimento capitalista, foram orquestradas “pelo alto”, ou seja, de forma elitista
e antipopular (COUTINHO, 1986, p. 145). Conforme FREIRE (2011), neste processo
brasileiro:

(...) não é difícil notar porque o conceito de “revolução passiva” contribui


enormemente para o entendimento do modo como ocorreu a via de
modernização capitalista no Brasil. Consequentemente podemos perceber
porque aqui o industrialismo não implicou rupturas revolucionárias e sim um
ajustamento entre empresários industriais e oligarquias agrárias, realizado
sob a égide de um Estado empenhado numa revolução – conservação
(FREIRE 2011, p. 20).

No Brasil, a dinâmica da formação social capitalista se constituiu, em sua


essência, de forma muito particular. Fernandes (2005) destacou sobre o caso
brasileiro que:

(...) o desenvolvimento capitalista significou coisas distintas, em cada uma


das três fases que marcam a evolução interna do capitalismo, sendo que
em nenhuma delas tivemos uma réplica ao desenvolvimento capitalista
característico das nações tidas como centrais e hegemônicas. Ao contrário,
nas três situações sucessivas, apresenta os traços típicos que ele teria que
assumir nas nações tidas como periféricas e heterônomas, fossem ou não
de origem colonial. Considerado em termos das motivações e dos alvos dos
estamentos dominantes (sob o regime de trabalho escravo), ou das classes
dominantes (sob regime do trabalho livre), em nenhuma das três fases o
desenvolvimento capitalista chegou a impor: 1°) ruptura com a associação
dependente, em relação ao exterior(ou aos centros hegemônicos da
dominação imperialista); 2°) a desagregação completa do antigo regime e
de suas sequelas ou, falando-se alternativamente, das formas pré-
capitalistas de produção, troca e circulação; 3°) a superação de estados
relativos de subdesenvolvimento, inerentes à satelização imperialista da
economia interna e à extrema concentração social e regional resultante da
riqueza (FERNANDES, 2005, p.261).

Neste sentido, é importante identificarmos que as particularidades histórico-


culturais brasileiras caracterizam-se pelas raízes escravocratas, que se manifestam
até os dias atuais pela expressão intensa do racismo, da violência e do culto do ódio
aos pobres. Perpetua-se, então, por grande parte da sociedade, a reivindicação
conservadora38 pela ordem e pela punição – o que podemos considerar como uma
expressão intensa da segregação em nossa sociedade, ou um “apartheid” racial e
social contemporâneo ao “modus operandi” brasileiro.

38
Compreendemos como conservadorismo a adesão a princípios e valores que devam ser conservados em
relação a mudanças históricas. Alinhados ao tradicionalismo, contrapõem-se a transformações. Na perspectiva
deste trabalho, o pensamento conservador deixa de se contrapor ao capitalismo, obscurecendo as “contradições
próprias da sociedade capitalista, enfatizando, no nível analítico, apenas o que favorece sua própria coesão e
reprodução e encobrindo as desigualdades fundamentais nela produzidas” (IAMAMOTO, 1995, p. 23).
53

Os impactos da escravidão e de sua “mal” conduzida abolição até hoje


produzem determinações na produção contemporânea da segregação dos negros e
do recrudescimento do racismo. A Abolição da Escravatura (1888) não representou
um processo de “verdadeira conquista da liberdade”, visto que a população negra e
ex-escrava foi liberta sem “as garantias de reparação material e moral justas e
eficazes, condenando os mesmos à eliminação no mercado competitivo de trabalho
e ou ao aviltamento de sua condição” (FERNANDES, 2008, p. 59). Podemos
também identificar esse processo na política do Estado brasileiro na valorização da
imigração europeia como força de trabalho considerada mais eficaz e competitiva
para trabalhar nas fazendas que produziam café.
Destaca-se que na “relação entre o “imigrante” e o “escravo” (o liberto) estava
a própria questão do destino que se pretendia dar à ordem social competitiva e à
sociedade de classes no Brasil” (FERNANDES, 2008, p. 51), pois a tendência de
reintegração da ordem social e econômica desse período expeliu de forma intensa a
população liberta do sistema capitalista de relações de produção, principalmente no
campo. Entretanto o que há de essencial, para a “análise da posição do negro e do
mulato, é que eles foram excluídos como categoria social das tendências modernas
de expansão do capitalismo” (FERNANDES, 2008 p. 72). Cabe mencionar que neste
estudo de Florestan Fernandes o mesmo compreendia que com a modernização
brasileira os negros seriam integrados de forma igualitária na sociedade, o que não
ocorreu, sendo ainda uma questão não resolvida em nossa sociedade, fomentando
o debate sobre políticas compensatórias e o mito da democracia racial.
O processo de valorização da mão de obra dos imigrantes ou a
“europeização” da força de trabalho foi defendido pelas classes dominantes e
conservadores da sociedade para além da busca de mão de obra que viria a
substituir a população então liberta. Buscavam também com esse investimento na
importação de massas de imigrantes italianos, alemães e japoneses o
“branqueamento” da população brasileira. Desta forma, o denominado “arianismo
vem por dentro da revolução burguesa em marcha, por dentro desse processo
fundamental de redefinição do trabalho e do trabalhador, ou seja, força de trabalho”
(IANNI, 2004, p. 134). Da mesma forma conservadora, moralista e fascista,
defendiam a tese de que o índio, o negro e o mulato se entregavam a luxúria e à
preguiça (ócio), e em função dessas características não se ajustavam às exigências
do mercado de força de trabalho. Percebe-se, então, que essa perspectiva foi
54

incorporada na sociedade desde esse período, fincando raízes, e nos tempos atuais,
quando, de forma ressignificada, colhemos seus frutos. A ideologia seletiva da
criação de consensos se expressa na forma superficial e moralista de caracterização
a priori sobre os sujeitos.
Neste período, assim como em outras rupturas históricas (Proclamação da
Independência – 1822, Proclamação da República – 1889 e a Revolução de 1930), o
pensamento autoritário e conservador debruçava-se sobre a presença do negro,
considerando-o mais “frequentemente estranho ao Estado Nacional” (IANNI, 2004,
p. 131).
A lógica punitiva, que tem como estratégias a utilização do aprisionamento
e/ou do genocídio dos pobres, em sua maioria negros no Brasil, não é nova como
forma de enfrentamento da “questão social”, é histórica e constitutiva da cultura
brasileira. Porém, no estágio atual de desenvolvimento, tal lógica se intensifica e
vem sendo (re) produzida de forma hegemônica e consensual. Octavio Ianni (2004)
traz elementos para pensar a criminalização da “questão social” tanto na formação
histórica brasileira como para os dias atuais:

Em geral, os setores sociais dominantes revelam uma séria dificuldade para


se posicionar em face das reinvindicações econômicas, políticas e culturais
dos grupos e classes subalternas. Muitas vezes reagem de forma
extremamente intolerante, tanto em termos de repressão como de
explicação. Esta inclinação é muito forte no presente, mas já se manifestava
nítida no passado (IANNI, 2004, p. 109).

A cultura punitiva permanece, mas é ressignificada na atualidade a partir dos


determinantes da crise capitalista e sua lógica de acumulação, a qual produz
grandes ondas nos países periféricos. Ou seja, há uma acentuação da face penal do
Estado brasileiro, que se perpetua de forma muito mais violenta e perversa nos dias
atuais, em função das marcas persistentes de nossa cultura política. Freire (2011)
aponta que trata-se de:

(...) valores políticos que configuram tanto a base do discurso e das


ideologias políticas como da prática política a partir de valores formados
historicamente. Apesar de não existir um significado claro em torno da
expressão, o fenômeno tem sido tratado na reflexão dos grandes
paradigmas. O uso crescente da expressão ‘cultura política’ como cultura
analítica e na linguagem do quotidiano do debate intelectual tem
plasmado a sua contemporaneidade na reflexão sobre as práticas
políticas brasileiras (FREIRE, 2011, p.10).

Na análise foram capturados os traços persistentes dessa cultura política


brasileira, que contribuem e/ou embasam a lógica histórica da criminalização dos
55

pobres, está é a particularidade dos adolescentes que são destinatários das MSEs.
Conforme nos mostra Freire (2015), o resgate e aprofundamento sobre esses
elementos históricos não devem reproduzir linearmente os fatos justificáveis da
história atual, mas devem evidenciar componentes centrais da cultura política
brasileira. Assim:

Optamos por resgatar elementos importantes da cultura política brasileira,


que evidenciam os limites que hoje nos deparamos no Brasil para
consolidarmos um projeto verdadeiramente democrático. Não pretendemos,
obviamente, ignorar nossa dependência aos processos hegemônicos
internacionais, mas, sim, resgatar elementos históricos particulares que são
facilitadores dessa situação (FREIRE, 2015, p. 53).

O pensamento autoritário foi fundamental na legitimação da luta de classe e


do capitalismo, dando subsídios para a modernização brasileira, fincada em
preceitos conservadores e repressivos. No período que compreende as décadas de
1920 e 1930 do século XX, no Brasil, ampliaram-se as perspectivas através dos
intelectuais que defendiam a filiação de um Estado forte, centralizado e autoritário.
Tais referenciais foram apresentadas por intelectuais, como Oliveira Viana, Alberto
Torres e Azevedo Amaral, os quais tiveram influência marcante no pensamento
nacionalista autoritário brasileiro. A perspectiva do pensamento autoritário foi um
divisor de águas para a política brasileira, pelo motivo de ter estabelecido uma nova
correlação de forças, pela qual o Estado seria o interventor na economia na
substituição das ideias do liberalismo econômico por ideias corporativas na busca da
expansão do mercado interno, partícipe do processo de modernização do Brasil
(FREIRE, 1991). Desta forma, no período de 1930/1945, a cultura do autoritarismo
direcionou a “prática das classes dominantes no Brasil, fornecendo à elite
governamental orientações referentes às opções do novo regime. Nesse contexto,
os pensadores autoritários elaboraram a forma possível para a modernização”
(FREIRE, 1991, p. 211).
No entanto destaca-se que, na construção do processo da modernização
conservadora, estes pensadores da perspectiva autoritária não elaboravam críticas
em relação à persistente desigualdade social brasileira. Esta questão não se
apresentava como prioridade, mas, sim, a expansão da riqueza e não sua
distribuição (FREIRE, 1991).

Tal postura fica evidente nas palavras de Oliveira Vianna (1930), ao frisar
que num país ainda por colonizar, é de um ridículo atroz que estejamos a
debater a distribuição da riqueza, quando os mais simples, os mais
56

elementares problemas relativos à produção ainda não foram resolvidos.


Vale mencionar que embora diga atribuir importância à distribuição da
riqueza, Oliveira Vianna empenhou-se explicitamente em Populações
Meridionais do Brasil (1952a), na tarefa de traçar uma genealogia racial da
desigualdade social. Através da teoria das desigualdades sociais, justificava
a superioridade de uma das raças sobre outras, associando sempre as
elites com as raças superiores e fazendo da etnologia uma ciência
explicativa dos fenômenos sociais e históricos (FREIRE, 1991, p. 215).

Cabe dizer, então, que a modernização brasileira se efetiva de forma


conservadora e autoritária, beneficiando a classe dominante a qual aglutinou seus
interesses nas diretrizes governamentais. As desigualdades sociais não se reduzem,
ao contrário, agravam-se. Por um lado, se vê um Brasil na busca por modernização,
“próspero” e diversificando sua economia, e, por outro lado, a “pobreza” se
perpetuando, processo que podemos definir pelo fato de que a mesma “fábrica do
progresso fabrica a questão social” (IANNI, 2004, p. 120). O Estado, como já
referimos, passa a ser central para a modernização burguesa, mas também para a
repressão do que vier por obstaculizar esse processo.

Para conhecer a sociedade na qual vivemos, é necessário também o


conhecimento do Estado, do qual ela é parte constitutiva (a sociedade funda o
Estado), (IANNI, 2004). O Estado é um mediador das relações sociais, participando
ativamente do processo de acumulação capitalista, bem como do conflito entre
diferentes classes sociais. Mandel (1982) também afirma que as principais funções
do Estado burguês são:

(...) criar as condições gerais de produção que não podem ser


asseguradas pelas atividades privadas dos membros da classe
dominante; reprimir qualquer ameaça das classes dominadas ou de
frações das classes dominantes ao modo de produção corrente através
do Exército, da polícia, do sistema judiciário e penitenciário; integrar as
classes dominadas, garantir que a ideologia da sociedade continue
sendo a da classe dominante e, em conseqüência, que as classes
exploradas aceitem sua própria exploração sem o exercício direto da
repressão contra elas (porque acreditam que isso é inevitável, ou que é
“dos males, o menor”) (MANDEL, 1982, p. 333).

Ao longo de sua história, o Estado enquanto mediador das relações sociais se


apresenta em alguns momentos de forma mais intensa e, noutros, de forma mais
periférica. Todavia a direção de sua mediação foi subordinada à lógica da
acumulação, entrando em consonância com grandes proprietários de terras,
industriais e detentores do capital. Ou seja, a intervenção estatal brasileira
desenvolveu-se no âmbito social e político, mas especialmente no âmbito
57

econômico. O Estado teve papel central nos momentos de transição econômica,


social e política, mas ao longo de sua evolução foi refinando seus instrumentos e
alargando suas ações (políticas e sociais).
No Brasil, a busca pela conquista de direitos esteve historicamente atrelada à
constituição de uma cidadania regulada39. A partir da década de 1930, o Estado
passou a assumir maior responsabilidade quanto à elaboração de políticas sociais, o
que resultou na criação de uma série de legislações, instituições, institutos e novos
ministérios40 responsáveis por executá-las. Dessa forma, não se garantiam direitos,
mas concediam-se benesses e favores, reafirmando as relações de dependência
estabelecidas desde o período colonial entre as classes subalternas e as elites
dominantes, produzindo-se uma cultura consensual de naturalização da “pobreza” e
da punição. As políticas sociais constituíam-se, então, como meios para garantir a
coesão do projeto político dominante.

O reconhecimento do direito não vem se constituindo atributo efetivo das


políticas sociais e da Seguridade Social no país. No vasto campo de
atendimento às necessidades sociais das classes subalternas, administra-
se favores. Décadas de populismo e clientelismo consolidaram uma
“cultura” tuteladora, que não tem favorecido o protagonismo dos
subalternizados ou sua emancipação (YAZBEK, 1998, p. 53).

No que se refere à “questão social”, após a década de 1930, nos anos de


populismo e clientelismo, e também do militarismo, a preocupação com suas
expressões se coloca tanto como problema de polícia como de política. O que, aliás,
nunca deixou de ocorrer repressão às diversas manifestações de setores populares,
através de mecanismos estatais, bem como é intensificado seu processo de
naturalização. Dentre as explicações que “naturalizam” a “questão social”, duas se
destacam:
Uma tende a transformar as manifestações da questão social em problemas
de assistência social. O sistema nacional de previdência e o serviço
nacional de assistência social são as expressões mais evidentes dessa
forma de “explicar” e resolver a questão social. Outra forma é transformar
em problemas de violência, caos e aí a resposta óbvia: segurança e
repressão. Toda manifestação de setores sociais subalternos na cidade e

39
Cidadania regulada foi o nome proposto pelo sociólogo brasileiro Wanderley Guilherme dos Santos
para nomear uma "cidadania restrita e sempre vigiada pelo Estado" (1979). Os direitos civis e
políticos evoluíram pouco entre 1930 e 1945, pois em 1937 foi instalado o Estado Novo, um regime
ditatorial estabelecido no governo Vargas e durante o qual a "participação" popular restringiu-se aos
votos para o Legislativo.
40
Serviço de Assistência ao Menor (SAM), Legião Brasileira de Assistência (LBA), Institutos de
Aposentadorias e Pensões (IAPs), Ministério do trabalho, Ministério da Educação, Departamento
Nacional de Saúde e a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
58

no campo pode trazer o “gérmen” da subversão da ordem social vigente. A


ideologia das forças policias e militares, bem como de setores dominantes e
de tecnocratas do poder público, está impregnada dessa “explicação”.
(IANNI, 2004, p. 112).

Muitas vezes essas medidas operam em conjunto, criam e aperfeiçoam


instituições, de modo a garantir o controle sobre o jogo das forças sociais e a
continuidade das políticas de crescimento, desenvolvimento, progresso e
modernização. Modernizar instituições para que grupos e classes permaneçam sob
controle, não colocando em xeque a “paz social”. É o que aconteceu também no
período de consolidação da ditadura militar brasileira, quando houve repressão,
implantação de intensas propagandas ideológicas através do medo da ameaça
comunista, bem como de políticas sociais compensatórias, através de medidas de
combate à “pobreza”. Pode-se considerar que neste período houve avanços na
legislação social, mesmo que de forma limitada em função do modelo econômico
efetivado. O que é destacado pelos estudos de Freire (2011) sobre esse momento
do país.
O período de 1964-74 não se caracterizou apenas como uma época de
institucionalização, consolidação e apogeu da Ditadura militar, mas também
de reformas institucionais, também no campo da chamada “questão social”.
Na verdade, em que pese a força das armas, o Estado militar necessita de
legitimação, da adesão de uma parte dos intelectuais, das camadas médias
e das massas populares. Não podemos esquecer que o Estado,
protagonista de uma “revolução passiva”, não pode prescindir do consenso
(FREIRE, 2011 p. 169).

A formação das classes sociais no processo histórico brasileiro não se


constituiu de forma linear, muito menos harmônica. A perspectiva autoritária
permeou o processo de desenvolvimento do capitalismo - então dependente - ao
qual não se consolidou de forma democrática, bem como não rompeu com as
hierarquias e estruturas do passado colonial e escravista. Criou-se um padrão de
dominação “autocrático”, no qual uma rígida estrutura social instalou-se de forma a
impedir a participação e a conquista do espaço político das classes subalternas,
como forma de dominação da classe burguesa e a própria manutenção do sistema
econômico (FERNANDES, 2005). Ou seja, o pensamento autoritário que defendia e
perpetuava a ideologia de uma sociedade civil “débil”, “frágil” e “incompetente”
proporcionou, desta forma, a ausência ou a exclusão principalmente das classes
59

populares nas decisões políticas do Estado. Do mesmo modo cabe frisar que o
movimento integralista41 influenciou na formação autoritária brasileira.
Na atual conjuntura, o que vem se configurando como “nova” é a relação
intrínseca entre políticas assistenciais minimalistas e repressão às denominadas
“classes perigosas”. Isto ocorre pela via da criminalização dos pobres, como forma
de enfrentamento da “questão social” – processo que compreendemos constituir-se
como uma “face contemporânea da barbárie” (NETTO, 2013, p.36). A denominação
e/ou conceito de “classes perigosas” não é novo, tem sua origem na segunda
metade do século XIX, e considera “perigosas porque pobres, por desafiarem as
políticas de ‘controle social’ no meio urbano e também por serem consideradas
propagadoras de doenças” (CHALHOUB, 1996, p. 20), estando as mesmas “à
margem da lei”. Esse processo, que inaugurou de forma técnica e científica a gestão
das diferenças sociais nas cidades, é abordado por Batista (2003) como uma forma
de fundamentar políticas de “controle social” e o genocídio dos pobres e negros no
Brasil:

(...) o conceito de classe perigosa dava o fundamento teórico para o grande


debate pós-abolição. A relação trabalho/ociosidade/criminalidade enriquecia
o debate parlamentar por uma lei de repressão à ociosidade. Estavam
presentes nesse debate os mesmos fundamentos teóricos da estratégia de
atuação da polícia para as primeiras décadas do século XX. A preocupação
principal de garantir que, com a abolição da escravidão, os negros
continuassem sujeitos ao trabalho, criou a estratégia da suspeição
generalizada, com os afro-brasileiros vistos como sujeitos preferenciais.
Sem ter mais a propriedade direta do trabalhador, o sistema precisava criar
uma estratégia de repressão contínua fora dos limites da unidade produtiva.
Assim, a manutenção da ordem passa a ser prerrogativa do poder público e
de suas instituições (BATISTA, 2003, p. 38).

Esta perspectiva é corroborada por Ianni (2004) quando refere que muito
tempo depois, praticamente um século após a Abolição da Escravatura, ainda
ressoa no pensamento social brasileiro “a suspeita de que a vítima é culpada. Há
estudos em que a “miséria”, a “pobreza” e a “ignorância” parecem estados de

41
Neste processo, cabe destacar também sobre a Ação Integralista Brasileira, através de Plínio
Salgado, fundador e importante liderança da Ação Integralista Brasileira, partido de extrema-direita
inspirado nos princípios do movimento fascista italiano, fazia referências insistentemente positivas,
principalmente a Alberto Torres e a Oliveira Viana. Salgado também afirmava que esses pensadores
constituíram uma das principais influências na ideologia integralista. No Brasil, a década de 1920 tem
uma importância crucial para o crescimento do pensamento autoritário e, nessa época, Plínio Salgado
já participava ativamente da vida político-cultural no país. Diante disso, a perspectiva de se
compreender o integralismo como um movimento de caráter fascistizante conflui com o componente
da tradição intelectual autoritária brasileira. Grandes proprietários de terra tinham influência no
governo.
60

natureza, ou da responsabilidade do miserável, pobre, analfabeto” (IANNI, 2004, p.


110).

1.3 Cultura punitiva brasileira como instrumento de controle das expressões


da “questão social” na atualidade

No processo de evolução da sociabilidade humana, a dinâmica da violência 42


sempre esteve presente, ainda que o pensamento conservador negue esse fato43.
No entanto trata-se aqui de uma violência desigual contra as classes subalternas na
lógica da criminalização. Sobre esta construção, Marildo Menegat (2010) afirma que:

A violência que se perpetrou contra as massas subalternas para se produzir


o trabalhador assalariado, que é o modo como estas participam da fórmula
“indivíduos livres”, e que distingue a modernidade das sociedades
anteriores, é a traumática violação que transforma um ser destinado à vida
em sociedade em um produto individualizado. Em outras palavras, a prisão
é a forma de existência da solidão a que este ponto de partida nos relega.
Tal modelo de formulação do desamparo, não mais dado na relação aberta
do homem com a natureza, mas encapsulado pela “segunda natureza” dos
homens, reverbera com intensidade a justeza da tese de Hobbes, de que o
homem é o lobo do homem. Se não era verdade, passou a ser (MENEGAT,
2010, p. 217).

Como já referimos na seção anterior, o desenvolvimento do capitalismo no


Brasil não rompeu com as raízes patrimonialistas e de dependência do capital
internacional. A economia brasileira relacionou-se com a expansão monopolista
seguindo a forma típica que assumiu na periferia dos centros mundiais, com
componentes extremamente violentos e repressores como mecanismo de “controle
social” das expressões da “questão social”. No país, essa transição não foi presidida
“por uma burguesia com forte orientação democrática e nacionalista voltada à
construção de um desenvolvimento capitalista interno autônomo” (IAMAMOTO,

42
Na atualidade, a violência está presente no cotidiano e nas formas de socialização da sociedade
brasileira que possui diferentes expressões, bem como concepções. Porém nossa análise. quando
nos referimos à “violência”, será em relação à criminalização e controle dos pobres através dos
diferentes aparatos estatais.
43
Sobre esse debate, é importante destacar os estudos do historiador Leandro Karnal sobre a
produção da cultura do ódio, como consta no vídeo: “O Ódio no Brasil” (2011).
61

2007, p. 131). A economia brasileira transitou da democracia dos “oligarcas para


democracia do grande capital” (IAMAMOTO, 2007, p.132) e neste sentido foi:

(...) marcada por uma forma de dominação burguesa que Fernandes (1975)
qualifica de “democracia restrita” – restrita ao membros das classes
dominantes que universalizam seus interesses de classe a toda nação, pela
mediação do Estado e de seus organismos privados de hegemonia
(IAMAMOTO, 2007, p. 131).

A “questão social” esteve presente na história da sociedade brasileira desde o


declínio do regime de trabalho escravo e passou a ser um ingrediente cotidiano em
diferentes lugares da sociedade e do Estado. Na forma como suas expressões
foram enfrentadas ao longo do processo histórico, está a criminalização, sendo que
a cultura punitiva se apresenta como central nessa caminhada, se intensificada na
lógica da mundialização do capital. Na perspectiva histórica, a “questão social”
recebeu diferentes explicações e denominações, como a influência do
“evolucionismo, darwinismo social, arianismo, positivismo, catolicismo, liberalismo,
neoliberalismo, estruturalismo, marxismo (...)” (IANNI, 2004, p. 108). Diversas
correntes do pensamento buscaram descrever, explicar, resolver ou exorcizar as
manifestações da “questão social” (IANNI, 2004). Entendemos que é somente nos
marcos da análise marxiana pela da Lei Geral da Acumulação Capitalista que se
pode compreender a “questão social”. Desta forma:

A existência de suas expressões como indissociáveis da dinâmica do


capital. No modo de produção capitalista, conforme se desenvolvem as
forças produtivas, cresce o Exército Industrial de Reserva, a massa dos
trabalhadores expulsa do processo de trabalho pelo aumento da
composição orgânica do capital: Essa massa tem entrada sazonal no
processo de produção, pressionando os salários dos trabalhadores para
baixo, o que resulta na piora generalizada das condições de vida, apesar da
produção capitalista ser caracterizada pelo desenvolvimento das
capacidades produtivas e pelo excesso (IAMAMOTO, 2007, p.79).

A compreensão da “questão social” e de suas expressões se coloca na


relação entre a exploração do trabalho e o crescimento da miséria, e a luta da classe
trabalhadora pelo reconhecimento de suas necessidades. Bem como relaciona-se
de forma exclusiva com a sociabilidade, sob comando do capital, na lógica dos
interesses antagônicos entre classes dominantes e detentoras do poder e
proletários, em que a produção da riqueza é cada vez mais social e sua apropriação
de forma privada (NETTO, 2005).
Na atualidade brasileira, intensificam-se “novas” expressões da “questão
social” em um contexto marcado pela desigualdade social e por uma formação
62

política e econômica que não rompeu com seu caráter dependente e desigual.
Nessa perspectiva, é de fundamental importância compreender a lógica da
acumulação e o papel do Estado burguês para, então, referir o gerenciamento dos
descartáveis para o mercado. Muitos se veem sem qualquer possibilidade de virem
a ser incluídos e acabam se tornando “(...) estoques de força de trabalho
‘descartáveis’ para o mercado de trabalho, colocando em risco para esses
segmentos a possibilidade de defesa da própria vida” (IAMAMOTO, 2004, p.33).
Esses descartáveis citados pela autora precisam ser administrados pelo Estado,
pois, fora do mercado, podem se tornar um entrave para a economia, tanto pelas
lutas por melhores condições de vida, como por não poderem consumir. No tardo-
capitalismo, em tempos de afirmação da cultura do consumo, que cria a
sensibilidade consumidora (NETTO 2013), a categoria “sujeito de direitos”44 se
converte para “sujeito de consumo” e/ou “objeto do direito”, como denominou
Trindade (2002). A satisfação diária do consumo como única finalidade da vida é
referida por Behring (2009) a respeito do capitalismo contemporâneo, marcado pela
“fantasia do consumo, como se o mercado estivesse acessível para todos e fosse a
única possibilidade de plena realização da felicidade” (BEHRING, 2009, p.45).
A desregulamentação e o desmantelamento de conquistas sociais e
democráticas no mundo estão imbricados com as alterações no modo de produção,
agora intensivo em tecnologias e na efetivação de políticas neoliberais. Tem-se,
assim, um recrudescimento da “questão social”, que tem deixado parcelas imensas
da população mundial fora do mercado de trabalho.
Essas alterações geram impactos para os que vivem da venda de sua força
de trabalho: cortes, precarização nas condições de trabalho e de direitos
trabalhistas. Aqueles que não vendem a força de trabalho – sujeitos que
compreendem “universos heterogêneos, desde aposentados com pensões
miseráveis, crianças e adolescentes sem qualquer cobertura social (...)” (NETTO,
2013, p. 23), doentes e demais trabalhadores formais e informais, que têm perdido
postos de trabalho - enfrentam um “mal maior”, que Netto (2013) denominou de “rés

44
Torna-se fundamental compreendê-la em relação com “sujeito de consumo” e ou “objeto do direito”,
pois, com o ECA, a categoria passou a ser central na mudança de paradigma para a defesa deste
segmento. É preciso problematizar a contradição entre “proteção” e “punição”, mas cabe aqui já
apontar que ela deve ser compreendida somente no debate da emancipação política – “os direitos
apenas como normas abstratas, que são creditadas independentemente das vicissitudes históricas.
Assim, a naturalização dos processos de construção dos direitos retira sua conflitualidade e
contraditoriedade” (WOLFF, p. 08).
63

do chão da ordem tardo-burguesa”, cuja sobrevivência vem se deteriorando no


capitalismo contemporâneo.
Na lógica mercadológica atual, como estratégia de enfrentamento da “questão
social”, o Estado burguês gerencia esta população “excluída” através de políticas
sociais focalizadas45 e tuteladas pela via do Estado. Esse processo também não é
novo na realidade brasileira, porém traz elementos “modernos”, como programas
ditos “protetores”, com discursos que visam o combate à pobreza, que nada mais
são do que seus “administradores”. Conforme denominada por Netto (2013, p.35),
trata-se da “nova filantropia que satura as várias iniciativas estatais e privadas,
mediante as chamadas ‘parcerias público-privado’”. Ou seja, na verdade, a ideia não
é enfrentar, acabar com a “pobreza” a fim de reduzir a imensa desigualdade social
persistente neste solo desde sua origem.
O instrumento utilizado para analisar as desigualdades sociais é o “índice ou
coeficiente de Gini”, desenvolvido pelo estatístico italiano Corrado Gini em 1912.
São dados que variam de zero (0) a um (1), e, quanto mais perto do um (1), maior o
índice de desigualdades e mais perto do zero (0) corresponde aos índices de
igualdade. É levado em conta além do salário, a arrecadação por pensão,
aposentadoria, programa social, pensão alimentícia, aluguel, etc. No Brasil, os
estudos sobre distribuição de renda por meio deste método começam, de forma
incipiente, a partir da década de 1930, mas foi na década de 1990 que este estudo
se intensificou. Conforme os estudos de André Singer (2010), o que está por trás da
lenta queda do índice de Gini no Brasil, está uma piora na repartição entre o capital
e o trabalho. Ao estudar sobre os mecanismos de enfrentamento da pobreza, alega
que “uma maior equidade entre os que vivem do próprio trabalho tem sido
compensada por um aumento da parcela apropriada pelos capitalistas sob a forma
de lucros e dividendos” (SINGER, 2010, p. 64). Cabe mencionar que o índice de
Gini, que mede o grau de concentração de renda, caiu de 0,497 em 2014 para 0,491
em 2015, quando consideradas todas as fontes de receitas da população com 15

45
“Para a política social, a grande orientação é a focalização das ações, com estímulo a fundos
sociais de emergência, e a mobilização da ‘solidariedade’ individual e voluntária, bem como das
organizações filantrópicas e organizações não-governamentais prestadoras de serviço de
atendimento, no âmbito da sociedade civil” (BEHRING, 2003, p. 65). Sobre as políticas sociais no
Brasil, em tempos de efetivação da política neoliberal, ver Elaine BEHRING. “O Brasil em contra–
reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos” (2003).
64

anos ou mais46. Porém é preciso considerar que o levantamento é feito por


amostragem domiciliar (PNAD), não levando em conta as aplicações financeiras e
demais ganhos, podendo subestimar a riqueza nas camadas mais elevadas da
pirâmide social, comprometendo a realidade da desigualdade social no país.
No atual momento histórico, em razão das alterações no ordenamento político
e das políticas de ajustes do tardo-capitalismo, principalmente no que se refere à
redução e precarização dos direitos e na intensificação da redução dos
investimentos públicos em políticas sociais, constata-se que:

A pauperização absoluta e a relativa, conjugadas ou não, cresceram,


mesmo que diferencialmente, para a maioria esmagadora da população do
planeta (constatações verificáveis até nos documentos do Banco Mundial a
partir de 1991 e nos vários relatórios do PNUD, especialmente a partir de
2005). “Declaração do Milênio” (2000), consensuada na Organização das
Nações Unidas: através dos “objetivos de desenvolvimento do milênio”, há a
proposta/promessa de “libertar os nossos semelhantes, homens, mulheres e
crianças, das condições abjetas e desumanas da extrema pobreza” (itálicos
meus); mais precisamente, a proposta é, em 15 anos (ou seja, até 2015),
reduzir a extrema pobreza pela metade – este é o primeiro objetivo do
desenvolvimento do milênio: reduzir pela metade a percentagem de
pessoas que vivem com menos de um dólar por dia 80. Apesar deste
espantoso minimalismo frente a uma “questão social” maximizada, os vários
relatórios sobre o “desenvolvimento humano”, regularmente preparados
pelo PNUD, ainda que enfatizem “ganhos” deste programa, deixam claro
que seus objetivos – reitere-se: minimalistas – dificilmente serão
alcançados. (NETTO, 2012, p. 22)

A perspectiva da histórica naturalização e desqualificação da “pobreza” com


sua estrutura histórica determinada, tanto no âmbito do “pensamento conservador
laico quanto no do confessional (que, aliás, tardou até mesmo a reconhecê-la como
pertinente)” (NETTO, 2012, p. 34), faz parte de forma orgânica do “caldo” histórico
da cultura punitiva brasileira, o qual se intensifica na atualidade.
A resolução da “pobreza” - que se intensifica no Brasil atual pela via de uma
cultura punitiva - necessita, além do aparato repressivo, jurídico e extremamente
criminalizador, consensos em torno das perspectivas e conceitos sobre a origem da
“questão social” e consequentemente da “pobreza”. Trata-se de superar a visão da
mesma como um simples fato social “a-histórico desarticulado dos fundamentos
econômicos e políticos da sociedade, portanto, dos interesses e conflitos sociais.
Assim, se o ‘problema social’ (a ‘questão social’) não tem fundamento estrutural, sua
solução também não passaria pela transformação do sistema” (MONTAÑO, 2012, p.

46
Disponível em: <http://exame.abril.com.br/brasil/desigualdade-diminui-mas-salarios-tambem-caem-
diz-pnad/>
65

271). Neste sentido, passa a ser necessário e instrumental para a intensificação da


criminalização dos pobres a responsabilização individual por sua condição, pois esta
lógica contribui com a naturalização da própria punição. Portanto, a “questão social”,
a “miséria” e a “pobreza” e todas as suas manifestações são percebidas e
compreendidas não como expressão da exploração econômica, mas como
“fenômenos autônomos e de responsabilidade individual ou coletiva dos setores por
elas atingidos. A "questão social", portanto, passa a ser concebida como "questões"
isoladas e ainda como fenômenos naturais ou produzidos pelo comportamento dos
sujeitos que os padecem” (MONTAÑO, 2012, p. 272). A partir dessas
desqualificações e conceitos, as causas da “pobreza” estariam vinculadas a três
fatores, são eles:
Primeiramente a pobreza no pensamento burguês estaria vinculada a um
déficit educativo (falta de conhecimento das leis "naturais" do mercado e de
como agir dentro dele). Em segundo lugar, a pobreza é vista como um
problema de planejamento (incapacidade de planejamento orçamentário
familiar). Por fim, esse flagelo é visto como problemas de ordem moral-
comportamental (malgasto de recursos, tendência ao ócio, alcoolismo,
vadiagem etc.) (MONTAÑO, 2012, p. 272).

No trato histórico da criança e do adolescente, as três causas se apresentam,


mas a terceira causa apontada, a ordem moral – comportamental, possui
centralidade e amplia-se, o que será detalhado no terceiro capítulo deste estudo. A
intensificação do espectro punitivo e extremamente seletivo sobre os pobres possui
no Brasil influência da autoritária cultura punitiva que se desenvolveu historicamente
como “controle social” da “pobreza” e se apresenta intensamente instrumental nas
expressões contemporâneas da face penal do Estado.
Compreendemos que a naturalização da face penal do Estado é expressão
intrínseca e constituinte do modo de produção capitalista, e que se atualiza na
realidade brasileira em tempos neoliberais como política pública de administração da
pobreza pela via assistencialista e punitiva. O momento atual foi caracterizado por
Wacquant (2012) como o de “um sistema penal proativo, não sendo um desvio, mas
sim um ingrediente constitutivo do Leviatã neoliberal, juntamente com variantes do
trabalho social gerencial e da alegoria cultural da ‘responsabilidade individual’” 47
(WACQUANT, 2012, p. 15).

47
Como concepção e gestão de política social (principalmente da política atual de assistência social
no Brasil), são utilizadas concepção de Beck (1997), teórico liberal que tem como perspectiva a
“modernização reflexiva” e a teoria do risco, que apresenta uma abordagem conservadora da
sociedade atual. O autor assinala como alternativas para romper com o “risco no mundo globalizado”
66

O conceito de “Estado Penal” tem sido trabalhado por Wacquant48, com


importante repercussão teórica para descrever a realidade mundial e os efeitos de
seu impacto nos países de capitalismo periférico. Em suas análises, pouco aparece
a lógica da reestruturação produtiva, bem como a perspectiva da luta de classes,
mas as suas pesquisas e o debate proposto são importantes para a formulação de
uma crítica ao capitalismo contemporâneo, no que se refere à intensificação da
lógica punitiva estatal no contexto do neoliberalismo. Cabe aqui, então, salientar sua
intencionalidade em demonstrar a ascensão do Estado Penal, que é de:

(...) dar uma contribuição à antropologia histórica do Estado e das


transformações transnacionais do campo do poder, na era do
neoliberalismo em ascensão, propondo ligar as modificações das políticas
sociais às das políticas penais, de modo a decifrar a dupla regulação à qual
o proletariado urbano encontra-se doravante submetido, por meio da ação
conjunta dos setores assistencial e penitenciário do Estado. Isso porque a
polícia, os tribunais e a prisão são, se examinados mais de perto, a face
sombria e severa que o Leviatã exibe, por toda a parte, para as categorias
deserdadas e desonradas, capturadas nas cavidades das regiões inferiores
do espaço social e urbano, pela desregulação econômica e pelo recuo dos
esquemas de proteção social. Em resumo, este livro não é um estudo do
crime e da punição, mas sim da reformatação do Estado na era da ideologia
hegemônica do mercado, pois a expansão penal nos Estados Unidos, e nos
países da Europa Ocidental e América Latina que seguiram, de forma mais
ou menos servil, sua orientação, encerra, no fundo, um projeto político, um
componente central da remontagem da autoridade pública, necessária para
alimentar o avanço do neoliberalismo (WACQUANT, 2007, p. 17).

Neste sentido, cabe também apontar a definição de “onda punitiva” como:

O declínio acelerado e a miséria do estado social nos Estados Unidos,


chegando ao clímax com a substituição do bem-estar protetor pelo estado
do trabalho social disciplinar, em 1996. A segunda parte rastreia as
modalidades do crescimento e da extensão do estado penal, e constata que
o advento de um “governo carcerário forte” foi determinado não pela lógica
contraditória do capital, nem pela elevação da criminalidade, mas sim pela
reação de classe e racial aos avanços dos anos de 1960 (WACQUANT,
2012, p.13).

Em um país como o Brasil, dependente dos países centrais e do capital


financeiro internacional, conjuga-se a histórica cultura punitiva e a atual expressão
da face autoritária do Estado, recrudescendo as práticas ao desenvolvimento
econômico. O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o BIRD

a consideração do indivíduo como “ator, planejador, diretor de cena de sua própria biografia,
identidade e convicções, na lógica do ‘faça você mesmo’” (BECK, 1997, p 25.), suprimindo a luta de
classes.
48
Cabe registrar que o autor não é um teórico marxista, mas é um importante pesquisador do
pensamento crítico, contribuindo de forma intensa com dados de pesquisa que demonstram essa
realidade.
67

(Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento), bem como as empresas


transnacionais e as agências multilaterais, podem ser considerados como “gerentes
da mercadoria nos quatro cantos do mundo. Uma cidadania cuja essência está
expressa na moeda global, o dólar (...)” (IANNI, 2004 p. 111). Outro elemento que
também deve ser considerado é o fato de que nas últimas décadas, no Brasil, foram
sendo implementados um modelo neodesenvolvimentista, que, como política
consensual, busca o desenvolvimento econômico através de ações focalizadas de
combate à “pobreza”. Consideramos, então, como estratégia brasileira a:

(...) equação novo desenvolvimentismo e políticas de combate à pobreza


não se restringe a um conjunto de políticas, programas e iniciativas
governamentais. A rigor, ao aliar o combate à pobreza à defesa do
crescimento econômico, a burguesia e seu Estado protagonizam uma
sociabilidade baseada na ideologia do consenso: a possibilidade de
compatibilizar crescimento econômico com desenvolvimento social
(MOTTA, 2012, p. 34).

Entre os objetivos do Banco Mundial está o “de fomentar e promover as


políticas de combate à pobreza, em articulação com os governos nacionais
dependentes de sua ajuda” (IANNI, 2003, p. 115). Assim, o Banco Mundial incorpora
o papel de protetor das nações pobres, trazendo em suas diretrizes a ajuda
internacional como única forma de esses países progredirem e se adaptarem à nova
realidade global (SIQUEIRA, 2011). A estratégia do BM de redução da pobreza,
anteriormente baseada na oferta de trabalho e de assistência social, é modificada na
década de 2000. O conceito de pobreza se amplia, passando a abranger outros
fatores, sendo então:

Mais do que renda ou desenvolvimento humano inadequado; é também


vulnerabilidade, falta de voz, poder e representação”, incorporando assim
uma visão multidimensional da pobreza, supostamente mais abrangente
que a questão econômica (SIQUEIRA, 2011, p. 181).

Nesta perspectiva, o enfrentamento da pobreza é considerada como carência


ou déficit, cujas respostas são ações filantrópicas e beneficência social. Também aí
podem ser entendidas as práticas consideradas mendicância e vadiagem,
decorrendo daí respostas de criminalização dos pobres, a partir da repressão e
reclusão (MONTAÑO, 2012). Tais respostas vinculam-se ainda às concepções pós-
modernas que advogam políticas e práticas nas quais os indivíduos devem buscar a
saída de forma individual. Como, por exemplo, está a tão espraiada cultura do
empoderamento (lógica liberal), que se define com a valorização dos recursos e
68

capacidades individuais e de sua comunidade, e a disseminação do


empreendedorismo (sujeito empreendedor) para superar as vulnerabilidades. Nesta
direção, cabe destacar o estudo de Scheinvar (2007): “A produção da condição de
risco como estratégia das políticas de proteção social”, na relação com o combate à
“pobreza”. Esta perspectiva do “risco” se relaciona de forma particular com a
criminalização dos adolescentes pobres que cumprem MSEs, que é enfatizado como
necessidade de proteção, acionada, muitas vezes, para justificar ações punitivas
(recolhimento/apreensão pela polícia) e não como uma relação direta com a possível
proteção. Nas teorias do “risco”49, efetiva-se o deslocamento da discussão de
classes e das desigualdades sociais, contribuindo com a naturalização das
expressões da “questão social” e da mesma forma com a punição. Na área
pesquisada, categorias como “situação de risco” e “vulnerabilidade” são utilizadas de
forma corriqueira, expressando uma concepção teórica conservadora e voltada para
a individualização, de acordo com a lógica da responsabilização individual das
famílias pertencentes às classes subalternas.
Na área da criança e do adolescente, é muito empregada a perspectiva “em
situação de risco”, possibilitando análises descontextualizadas da totalidade social.
Nesta perspectiva, Scheinvar menciona que o:

(...) paradoxo colocado está no fato de ser sabido que a pobreza é uma
decorrência da sociedade de classes, mas, mesmo assim, serem as
pessoas o alvo das intervenções de “proteção”. Incidindo na
individualização, nas histórias particulares, sejam individuais ou familiares,
preservam – se valores burgueses (propriedade privada, modelos de
famílias burgueses, escola, etc.) e condena-se tudo que os ameaça. Um
dos maiores paradigmas da sociedade burguesa, a propriedade privada, é
exaltada em cada uma das práticas sociais. A prática hierarquizada e
autoritária de assistentes sociais, médicos, pedagogos, psicólogos,
filantropos, do judiciário, enfim, dos que em geral entendem estar
protegendo os que estão em risco, é tão privada quanto a vida dos que
vivem as intervenções (2007, p. 70).

A criminalização dos pobres é histórica e baseada no medo frente às classes


subalternas, que passam a se constituir como “classes perigosas”. E é a

49
Risco ou situação de risco “é um termo, de ressonância na formulação de alguns teóricos da tradição
sociológica francesa, utilizado frequentemente por Pierre Rosanvalon. O autor entende a lógica da proteção
integral (ou do Estado Providência) por outro viés, ― o Estado Providencia funcionava por um véu de ignorância,
pois, ao perceber os riscos de forma homogênea, perde-se a racionalidade das diferenças (ROSANVALON,
1998, p.56). Seu debate abre um leque de possibilidades, mas em nossa modesta opinião, não se trata de uma
nova questão social na vida de crianças e adolescentes, mas de novas determinações da questão social o que
não elide recorte de classe social” (LIMA, 2013, p.211).
69

compreensão deste “medo” norteador dos discursos criminológicos que esta


pesquisa também abarcou, a partir dos elementos históricos de nossa cultura
política punitiva que ainda se fazem presentes e se intensificam nos dias atuais.

A perspectiva de classe social continua encoberta, e as MSEs expressam


uma opção política a favor do capital. Como mencionou Nilo Batista (2012), “esse
olhar criminalizante sobre os pobres, seus bairros e suas estratégias de
sobrevivência é muito funcional para o processo de acumulação do capital
neoliberal: o ‘criminal’ é um fetiche que encobre a compreensão da conflitividade
social” (BATISTA, 2012, p. 310).

As MSEs demonstram ainda práticas arcaicas pautadas no castigo do corpo,


contribuindo para a perspectiva do “controle social” dos pobres e para a teoria do
“grande encarceramento”, definida por Batista (2010). A proposta é, então, refletir
sobre como os discursos e práticas com discursos e intencionalidades pedagógicas
assumem o viés da cultura da punição, encobrindo mecanismos alienantes e de
dominação da população pobre que cumpre MSEs.

Cabe destacar também sobre o processo da cultura punitiva, que a


criminalização dos pobres, aqui “caracterizados”, tem uma sustentação ideológica
que é histórica. Porém na atualidade intensifica-se pela “chuva” midiática dos meios
de comunicação, aliados à lógica do capital e da hegemonia das classes dominantes
brasileiras, produzindo consensos de naturalização da punição, e reiterando os
clamores contra a “impunidade” da justiça brasileira. Na atual conjuntura, percebe-se
de forma recrudescida a aliança entre mídia, burguesia e poder judiciário, que possui
“classe social” e defende essa mesma classe que é a dominante, na lógica do
“controle social” da “pobreza”. Desse modo, é de fundamental importância
compreender o papel do Estado para então referir a lógica da gerência dos
“descartáveis” para o mercado.
70

2 A CENTRALIDADE DA CULTURA PUNITIVA NO TRATO DA INFÂNCIA E


ADOLESCÊNCIA NO BRASIL: DETERMINANTES ECONÔMICOS E SOCIAIS
DAS MSEs NA ATUALIDADE

O que fazer com todas essas crianças? Jonathan Swift e sua língua afiada
sugeriram: ora, se não podemos alimentá-las, vamos comê-las. Por um bom
preço, claro. Admito que esta comida será um tanto cara e, sendo assim,
muito apropriada para Senhores de terra que, tendo já devorado a maioria
dos pais, parecem ter maiores direitos sobre os filhos.
(SWIFT, 1729)

A miséria da Irlanda, em 1729, e a do Brasil, em 2006, não tem muita


diferença. Mulheres em trapos rebocando filas de crianças indesejadas com
pais desconhecidos, que ficam jogadas por aí, dormindo ao relento,
crescendo com ódio e pedindo troco no sinal fechado, enquanto fecham-se
os vidros elétricos e os corações já endurecidos. A miséria é terrível, mas o
mais terrível é se acostumar com ela e deixar endurecer o coração. Mas
não estamos falando de canibalismo. Você tem em mão um manifesto
político atemporal que não precisa sequer ser contextualizado. E ainda
dizem que a humanidade caminha!
(Clara Averbuk é escritora e jornalista, traduziu e elaborou o prefácio da
versão brasileira “Como fazer das crianças pobres churrasco”, 2006)

O sarcasmo do escritor inglês Jonathan Swift50 (2006) - apresentado na


abertura deste capítulo - se atualiza no momento presente e também nesta
pesquisa. O passado –é ressignificado no atual momento mundial e brasileiro.
Conforme recente relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF),
menciona-se que 535 milhões de crianças vivem em áreas de conflito ou afetadas
por desastres naturais:

Isso representa quase uma criança em cada quatro no mundo. Segundo a


agência da ONU, esses menores de idade geralmente não têm acesso a
cuidados de saúde, educação de qualidade, nutrição apropriada e proteção.
Durante essas sete décadas, a agência tem levado ajuda para salvar vidas,
tem dado apoio e esperança a crianças cujas vidas e futuro estão
ameaçados por conflitos, crises, pobreza, desigualdade e discriminação. O
relatório diz que quase 50 milhões de crianças foram deslocadas, mais da
metade tiveram de fugir de suas casas por causa de conflitos. Segundo o
Unicef, devido a escalada da violência na Síria, o número de menores
vivendo em áreas sob cerco mais do que dobrou em um ano. Dados da
agência da ONU mostram que quase 500 mil crianças sírias estão em 16
regiões sitiadas por todo o país, quase completamente isoladas de ajuda
humanitária e serviços básicos. No Haiti, mais de dois meses depois da

50
Escritor anglo-irlandês (1667 – 1745) escreveu diversas obras. “As viagens de Gulliver” (1726) são
as mais conhecidas. A obra que nos interessou aqui foi a intitulada originalmente como: 'Modesta
proposta para evitar que as crianças pobres da Irlanda sejam um fardo para seus pais ou para o país'.
(1729)
71

passagem do furacão Matthew, mais de 90 mil crianças com menos de


51
cinco anos continuam precisando de ajuda (ONU/UNICEF, 2016) .

No Brasil, a realidade atual vincula-se com os “conflitos” descritos no relatório


da UNICEF através das violações vinculadas à pobreza e está propiciando a
vulnerabilidade de jovens, que são mortos, como já referido no capítulo anterior
(Mapa da Violência). Esta realidade também se percebe na violência sofrida pelos
adolescentes que cumprem MSEs nas unidades de internação e aqueles que
cotidianamente sofrem por violações de direitos na área da educação, saúde,
alimentação e moradia, fruto das intensas desigualdades sociais. O aspecto de
violações são reforçados através dos discursos de eliminação aos pobres, por
sujeitos contrários aos direitos humanos: como a tão cruel expressão “bandido bom
é bandido morto”, como já referido, bem como a justiça feita com as próprias mãos,
como linchamentos, por exemplo52. Na atualidade, não se fala em fazer “churrasco”,
mas mata-se, chacina-se com a vibração e aplausos de grande parte da população.
Em ambas as realidades o momento é delicado para aqueles que vivenciam as
expressões da crise do capital. Nesta perspectiva, os dados mencionados revelam o
grau de instrumentalidade da punição consentida em nossa sociedade. O
punitivismo é intrínseco à evolução histórica capitalista das sociedades, sempre
esteve presente, porém nos tempos atuais percebe-se seu recrudescimento e seu
clamor também por parte de grupos vinculados a uma esquerda punitiva. Acirra - se
pela divisão entre dois grupos: “nós, os puros” e “eles, os criminosos”, de forma mais
violenta, onde o “ódio” e a vingança são tolerados e incentivados pela mídia
burguesa. Nossa hipótese, então, é de que estamos diante de um punitivismo
contemporâneo e, desta forma, buscaremos neste capítulo os determinantes que
caracterizam e definem os adolescentes que cumprem MSEs, e o gerenciamento
desta população através da cultura punitiva.

51
Disponível em: <http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/2016/12/unicef-535-milhoes-de-
criancas-vivem-em-areas-de-conflito-ou-desastres/#.WE7_jLl2Ff0>, acesso em: 09 dez. /2016
52
Uma pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), que
estudou casos de linchamento de 1980 até 2006, constatou que o Brasil é o país que mais lincha no
mundo. Nesse período, foram 1179 casos. O Estado do Rio de Janeiro aparece em segundo lugar,
com 204 justiçamentos. Em primeiro vem São Paulo, com 568. Acesso em:
http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-07-26/brasil-e-pais-que-mais-faz-linchamentos-rio-
amarga-vice-campeonato-nacional.htm
72

2.1 Elementos históricos presentes no trato da infância e da adolescência no


Brasil

Se ampliarmos os horizontes de nossa investigação, veremos que os sujeitos


representados pelas crianças e adolescentes deste país conquistaram avanços
legais dentro dos marcos jurídicos da legislação brasileira. No entanto isto não
elimina a centralidade da cultura punitiva, que faz parte do atendimento direto ao
segmento criança e adolescente. Tais avanços não foram suficientes para reduzir o
abismo entre a legislação e a realidade que se apresentam na atualidade, assim
como a cultura da punição, que é histórica, passa a ter uma reprodução ampliada
sobre o capital, principalmente aos segmentos mais pauperizados, como vimos no
primeiro capítulo deste estudo, há um aprofundamento da punição e sua
instrumentalidade torna-se mais eficaz para a reprodução das relações sociais.
Concordamos, então, com a jornalista Averbuk (2006), no prefácio de Swift (1729),
sobre os passos lentos da humanidade. Trazer à tona a realidade dos adolescentes
pobres que passam pela experiência das MSEs é buscar as mediações com as
determinações históricas e da totalidade social que se expressa na execução das
mesmas, como a “água no moinho” de uma engrenagem punitiva e seletiva.
Na história mundial, a criança “emergiu na multidão do século XIX como um
problema social a ser enfrentado, seja como órfão, seja como marginalizada”. A
descoberta da criança está vinculada ao período da industrialização e do processo
de urbanização das principais cidades da Europa53. “Na multidão que se
encaminhava para as fábricas, era possível reconhecer – entre os homens –
mulheres que antes tinham como tarefa principal cuidar e educar os filhos; e
crianças que perderam o direito de proteção da família” (LUEDEMANN, 2002, p. 13).
A história mundial da criança foi marcada por violações, explorações e
criminalizações, fazendo parte da condição fundamental deste processo o
surgimento da educação formal, deixando de ser parte e ou privilégio das elites, ou
seja, a escola nasce juntamente com a fábrica. A perspectiva da exploração de

53
A Revolução industrial, localizada historicamente em meados do século XIX, seria uma continuidade
do processo de aprimoramento técnico e científico da Primeira Revolução Industrial (século XVIII).
Não há uma ruptura ou linha divisória nítida que separe os dois períodos, mas, a partir da segunda
metade do XIX, houve um aumento significativo no ritmo industrial, expansão do uso da energia
elétrica, o uso do motor à explosão, difusão do uso do aço, ampliação extraordinária das ferrovias,
modernização dos meios de comunicação, crescimento das cidades, e uma série de novas invenções
que permitiram maior integração entre os mercados, e maior obtenção de lucros pelas empresas,
resultando na aceleração da economia capitalista mundial.
73

crianças é desenvolvido por MARX e ENGELS no Manifesto Comunista, em 1848,


trazendo à tona tanto a questão da mulher na sociedade burguesa como dos filhos,
as crianças, colocando as mesmas como objeto de exploração.

A fraseologia burguesa sobre a família e a educação, sobre a relação íntima


de pais e filhos, torna-se tanto mais repugnante quanto mais, em
consequência da grande indústria, todos os laços familiares dos proletários
são destruídos e seus filhos transformados em simples artigos de comércio,
em simples instrumentos de trabalho (MARX & ENGELS, 1988, p. 26).

Conforme mencionamos no primeiro capítulo, no Brasil essas expressões se


apresentam de forma mais contundente pela formação histórica social estar
demarcada pelo autoritarismo e suas expressões como o “controle social” punitivo e
criminalizador dos segmentos pauperizados. O traço autoritário e as persistentes
desigualdades sociais que presidem o processo de desenvolvimento do capitalismo
no país têm sido uma das particularidades históricas de nossa formação,
repercutindo intensamente na área da criança e do adolescente, obtendo uma
relação inseparável nesse processo. A herança histórica colonial, patrimonialista (no
Brasil foi incorporado pelo Estado colonial português quanto ao processo de
concessão de títulos, terras e poderes absolutos para uma minoria) passa a ser o
“manto da ideologia autoritária estrutural” (SIMAS, 2013 p. 38). Bem como a
presença de um poder oligárquico, sendo um regime político em que o poder é
exercido por um pequeno grupo de pessoas, pertencentes ao mesmo partido
político, classe ou família, tendo como preponderância um pequeno grupo no poder.
Um exemplo relevante dos processos históricos que permanecem é o monopólio
oligárquico da terra, que até hoje jaz no Brasil, onde a defesa da reforma agrária é
desconsiderada e criminalizada (Movimento dos Sem Terra - MST) pela ideologia
dominante. A herança escravocrata, que deixou marcas cruéis, se atualiza nas
expressões intensas de racismo e através das formas de seletividade do sistema
penal, bem como nas persistentes desigualdades sociais que se intensificam no
Brasil atual. Heranças que são pilares de um país que criminaliza e reitera a
“exclusão” das classes subalternas, historicamente destituídas da cidadania social e
política. (IAMAMOTO, 2007, p. 130).
O movimento histórico do trato da infância e adolescência brasileira - a partir
do viés do controle moral, autoritário, repressivo, mas principalmente punitivo às
crianças e adolescentes pobres - torna–se relevante. Definimos aqui estes sujeitos
74

como membros da parcela de uma “superpopulação relativa” (MARX, 1980)54, sendo


supérfluos para o capital. São pertencentes às classes subalternas definidas como
filhos de pais vinculados a uma “população estagnada”, empobrecida.
Compreendemos estes adolescentes como sujeitos que fazem parte de um todo
societário, “assim como a divisão do trabalho e a família são determinadas
historicamente, a criança e o adolescente são produtos históricos” (LIMA, 2013,
p.58), sendo, então, uma expressão viva das contradições de uma sociedade que
está longe de reconhecê-los como “sujeitos de direitos”, pois são concebidos, na
verdade, como “objetos do direito”, como nos ensina Trindade (2002). A partir disso,
buscamos uma análise crítica diferenciada das construções teóricas lineares sobre a
história de violações no trato deste segmento pelo Estado e pela sociedade
brasileira.
A construção não será feita através de uma expressão linear da história, mas,
sim, pela expressão de suas contradições, para além de “cortes” específicos e
apenas singulares. Capturaremos elementos centrais dos mecanismos punitivos que
se fizeram presentes nesse processo “evolutivo”, ao qual já podemos afirmar que a
seletividade racial e social se complexificou como uma “engenharia” moderna e
refinada de “controle social” sobre os pobres. Trazer à tona os elementos históricos
nos desafia a não narrativa de simples fatos, mas que a partir dos mesmos podemos
captar determinantes balizadores dos processos atuais de intensificação e
recrudescimento da punição, na singularidade dos adolescentes pobres que já foram
“comidos” no imaginário literário de Swift (1729), “adestrados”, “assassinados”,
“reeducados”, “escravizados”, “repreendidos”, “etiquetados”, “criminalizados” e
“descartados”. No caminho histórico da formação brasileira, é possível constatar as
marcas de práticas punitivas brutais contra a infância pobre, passando pelo
“adestramento físico e mental a que foram submetidas as crianças indígenas pelos
jesuítas, pelo infanticídio disfarçado na “Roda dos Expostos”, na época colonial, e,
mais recentemente, pela estigmatização da criança pobre em “menor”, pequeno
bandido, e da adolescência pobre em “geração hedionda” (SPOSATO, 2006, p. 26).
Nos diferentes momentos históricos e políticos brasileiros e sistemas de
responsabilização de adolescentes ao longo da história, é “possível desvendar nas
diferentes etapas e abordagens uma junção entre punição exercida sobre crianças e

54
Será aprofundada no próximo item deste capítulo.
75

adolescentes e diferentes construções teóricas do saber penal”. (SPOSATO, 2006,


p. 26). Iremos, então, trazer à tona a história crítica da construção das medidas
socioeducativas (MSEs), destacando traços punitivos, disputas de ideias, projetos e
políticas. Isto posto é possível verificar que a punição se apresenta com
determinações diferentes a cada período, porém em todos estes momentos a
pobreza se faz presente como critério seletivo. Estudiosos da área da criança e do
adolescente no Brasil55 construíram consensos de que existem três etapas históricas
fundamentais que possuem interfaces com o aprofundamento da cultura punitiva,
sendo então: Etapa penal indiferenciada (1730 até 1919), etapa tutelar (1920 até
1990) e a etapa garantista (1990 até os dias de hoje), identificando os processos de
formação de uma cultura punitiva que nasce e se cristaliza no gerenciamento da
pobreza através dos adolescentes que constituem esse conjunto da população. E
que mesmo após a efetivação do ECA, que então passa a ser considerada “ramo”
do direito público como “direito da criança e do adolescente” (SPOSATO, 2006), a
cultura punitiva encontra espaço para atuar.
No processo da formação social brasileira, através da compreensão da
questão do trato da criança e do adolescente, é possível identificar a construção de
um arcabouço conceitual de diferentes “teorias” que foram sendo construídas a partir
do conceito do mito das “classes perigosas”. A mesma está vinculada ao contexto
histórico pós-abolição da escravatura, os negros foram instituídos como suspeitos
preferenciais através da repressão à ociosidade, e a passagem da violência do
domínio privado dos senhores de engenho para o Estado, a denominada teoria da
“suspeição generalizada”, sendo esta a essência da expressão das “classes
perigosas” (CHALHOUB, 1996). Ideologia que permanece nos dias atuais com
novos determinantes sociais, culturais, raciais e econômicos. Articula-se também à
construção histórica e social do medo (produção contemporânea possui
determinantes econômicos, “segurança privada”, milícias,) dos “ociosos”, dos
pobres, dos “negros”, dos “perigosos”, e das possíveis rebeliões, objetivando a
“conservação e expansão dos monopólios fundadores dos interesses da classe
senhorial” (BATISTA, 2003, p.132). Neste bojo conceitual-ideológico, também
fizeram parte desta construção as teorias da “periculosidade”, que esteve associada
a uma “concepção positivista do homem e da humanidade, concebendo o delito

55
Em destaque para RIZZINI (2009, 2011), ARANTES (2005), PASSETI (2009), ZAMORA (2005),
FALEIROS (2011), dentre outros.
76

como produto de uma suposta decadência genética” (SPOSATO, 2006, p. 41). A


influência de Cesare Lombroso - através de teorias racistas e eugênicas
fundamentadas pela obra de Charles Darwin - embasou e justificou as ações e
políticas de criminalização dos “desocupados”, tendo no lócus social como produtor
de criminalidade, determinações como raça, clima, hereditariedade, vida familiar,
ociosidade eram consideradas fundantes na construção da periculosidade
(ZAFFARONI, 1991). Atreladas a estas teorias a sociedade brasileira foi construindo
a partir destes elementos uma moral comportamental conservadora, vinculada a
uma disciplina autoritária ao trabalho (ética do trabalho). A defesa dos pobres
“bons”, que teriam possibilidade de trabalhar (assistencialismo) e repressão aos
“maus”, “ociosos” e “perigosos”. O “controle social” utilizava a relação “trabalho -
ociosidade – criminalidade”, que compreendemos se converter na atualidade em
criminalização aos supérfluos para o mercado. Neste sentido, Chauí demonstra o
papel da ideologia para pensar estas construções que fundamentaram a
criminalização atual dos pobres.

A ideologia é um fenômeno histórico – social decorrente do modo de


produção econômico. É uma rede de imagens e de ideias ou um conjunto
de representações sobre os seres humanos e suas relações, sobre as
coisas, sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, os bons e os maus
costumes. A produção ideológica da ilusão social tem como finalidade fazer
com que todas as classes sociais aceitem as condições em que vivem,
julgando-as naturais, normais, corretas, justas, sem pretender transformá-
las ou conhecê-las realmente, sem levar em conta que há uma contradição
profunda entre as condições reais em que vivemos e as ideias (CHAUÍ,
2003, p. 388).

Como definidor da “etapa penal indiferenciada” (período de positividade


criminológico, teorias da defesa social, onde o delito não é o único indicador, mas,
sim, a “má vida, a vadiagem, a ociosidade também legitimam a aplicação da pena)56,
estas teorias justificavam as práticas criminalizadoras dos adolescentes pobres,
vistos como “problema social” a ser enfrentado.

O período entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX


caracteriza a emergência do problema da menoridade, no sentido da
demarcação de um campo de interesse e atuação de diversas instituições e
saberes. Neste aspecto, trata-se de um período no qual é consolidada a
representação de um problema social cristalizado na massa diversificada de
crianças pobres passíveis de serem enquadradas em classificações que
denotassem sua situação anormal frente a um modelo de infância e família.

56
Sobre este debate, ver Garcia Mendez, Emílio. Do avesso ao direito: da situação irregular à
proteção da infância e da Adolescência na América Latina. São Paulo: Malheiros, 1994.
77

Compreendida através de um cruzamento temático que incluía a


propagação da higiene, o controle e a reformulação do espaço urbano, a
necessidade de repressão à criminalidade e de criação de novas formas de
compulsão ao trabalho, as ‘crianças desvalidas’ eram foco de intervenção
de diferentes profissionais, ao mesmo tempo que objeto de novas
regulações legais (VIANNA, 1999, p. 42).

A construção do mito das “classes perigosas” faz parte da lógica do capital,


porém necessita de mediações teóricas ideológicas através da construção do medo
e do perigo que propiciam o consenso à criminalização seletiva. Trata-se de um
fenômeno internacional, como refere Chalhoub (1996), porém no Brasil
presenciamos suas expressões de diferentes formas, como relata Evaristo de
Moraes (1925), já no início do século XX, ao discutir sobre as “Prisões: Instituições
Penitenciárias no Brasil”. O autor apresenta informações ainda do tempo do Império
e início da República sobre a questão dos “menores”. O resumo do artigo57 expressa
a “preocupação” do jurista com os mesmos: “Subiria de ponto a imperfeição deste
ensaio, si não nos referíssemos, nelle, ao que entre nós, até agora, se emprehendeu
no sentido da assistência e da educação dos menores abandonados e da repressão
dos menores criminosos” (1925, p. 75). Segue o resumo:

A assistência aos menores abandonados ou desvallidos, tal como foi


exercida nos primeiros tempos do Império: o aproveitamento dos arsenais
de Guerra e de Marinha. – A situação em 1882. – O asylo de Menores da
Casa de Correcção: como surgiu e como desappareceu. – A fundação do
Asylo de Meninos Desvalidos. – Uma colônia em Pernambuco. – A abusrda
entrega de menores a fazendeiros. Os menores accusados por crimes ou
contravenções durante o Imperio: como eram tratados. – Como o são na
vigência da República: lamentável situação. – A Escola Premunitora 15 de
Novembro e adminitração de Franco Vaz. – Os patronatos agrícolas. O
projeto Alcindo Guanabara e a commissão presidida pelo desembargador
Nabuco de Abreu. Providencia legislativa de 1921, ainda não executada
(1925, p. 75).

Cabe também destacar outros “trechos” do artigo, pois pensamos ser


relevante para balizar que a temática do “menor” desde o período do Império se
apresentava como “problema” individual, vinculado à “indisciplina”, e não na
vinculação com os “horrores” produzidos pela sociedade escravocrata e
extremamente desigual.

Quanto aos primeiros, a providencia mais antiga remota à época em que D.


João VI veio para o Brasil, fugindo as hostes de Napoleão. Foram então
admitidos no Arsenal de Guerra, alguns menores abandonados, a titulo de
aprendizes; mas só muito mais tarde, em 1830 e 1831, se lhes normalizou a
situação (MORAES, 1925, p.76).

57
As citações do texto foram fielmente transcritas conforme a língua portuguesa da época.
78

Eram aceitos os menores órfãos ou indigentes, enviados pelas autoridades


públicas, os filhos de pais pobres que os não pudessem educar, os filhos
dos operários com dez anos de serviço no Arsenal e os de soldados e
inferiores do Exercito e da Marinha que o requeressem. Tinham os menores
dos Arsenais de Guerra casa, alimentação, vestuario, recebiam instrucção
primaria e musical, e apprendiam algum officio, segundo a vocação de cada
um. Aos 16 annos, passavam a operários, devendo servir dez annos, findos
os quais estavam livres de todo o serviço militar, podendo ou não
permanecer, salariados, nos Arsenais (MORAES, 1925, p.76).
(...) o Ministério da Marinha instituiu na capital do império, por decreto, em 5
de julho de 1845, uma companhia de aprendizes de marinheiros, para a
qual podiam, também as autoridades locais enviar menores abandonados.
(...) Em 1882 verificou-se que já existiam 18 companhias com um effectivo
de 1500 menores (MORAES, 1925, p.76).

Conforme Evaristo de Moraes, até o período denominado acima, “não temos


consignado o concurso da administração civil nessa obra benemérita de
preservação da infância e da adolescência” (MORAES, 1925, p. 77). Ou seja,
questionava que o cuidado da questão da criança só estava a cargo dos militares.
Destacamos também que é referido nesta produção, ainda neste momento histórico,
certa “preocupação” com a “preservação da infância e adolescência”, acreditamos
ser pela questão de que o autor defendia a criação de um lugar mais apropriado e
específico para a “reeducação” dos mesmos.
O Jurista também refere a criação em 1861 do “Instituto de Menores
Artesãos”, que compreendia os “menores que forem presos pela polícia por vadios,
vagabundos ou abandonado, os que por má índole não possam ser corrigidos pelos
seus Paes ou tutores, os menores por sua orphandade não puderam receber
educação conveniente e apropriada em outro lugar” (MORAES, 1925, p.77).
Destacando também que o objetivo do estabelecimento era a “(...) educação moral e
religiosa dos referidos menores” (1925, p. 78). Afirma também sobre a necessidade
da inserção de um “pensamento humanitário”. Justifica a necessidade de novas
instituições, pois pela ausência de vagas a polícia recolhia os jovens e enviava para
as fazendas no interior do país. (1878):

Como, porém se faz a educação desses menores abandonados? Que


inspecção a garante? Nenhuma; disto estamos todos convencidos.
Sabemos bem o que são as nossas fazendas, o que são os
estabelecimentos ruraes, alimentados por braços escravos, com todos os
seus vícios, com todos os seus males e misérias. As escolas e perigos das
ruas se substituem ali pelas praticas mais ignóbeis, pelo contato pernicioso
da escravatura, isto é do homem sem família, sem religião, sem moral,
embrutecido pela ignorância, pela violência e pela embriaguez dos vícios. É
ali que a autoridade paternal da Justiça publica colloca os menores
vagabundos e já viciosos, que encontra nas ruas e praças desta capital
(MORAES, 1925, p. 79).
79

A publicação histórica destaca também que no Congresso Internacional de


Proteção à Infância, em Paris, no ano de 1889, o Brasil apresenta a situação dos
“menores” reconhecendo que “sobre os menores processados e condensados,
manda a Justiça se diga que, durante o Império, não se cuidou a sério da sua
situação: mesmo na Capital era possível encontrar, cumprindo pena na Casa de
Correção, uma criança de menos de dez anos!” (MORAES, 1925, p. 80). O jurista
estava se referindo ao Código Penal de 189058, que condenava a vadiagem, pois na
“Na Capital da República, até há bem pouco tempo, os menores de qualquer idade
eram recolhidos jutamnente com adultos, quando presos preventivamente” e sendo
condenados por crimes, eram enviados à “pena na Casa de Correcção e pelo delito
de vadiagem para a tristemente famosa Colônia Correccional de Dois Rios” (1925, p.
81). Estes registros históricos demonstram que - mesmo em um aspecto evolutivo -
caminhamos pouco em relação aos adolescentes pertencentes às classes
subalternas deste país.
Rizzini (2009) resgata alguns elementos imprescindíveis para a compreensão
da questão da criança no Brasil, os quais se gestaram nos idos da Primeira
República, as tais raízes históricas das políticas para infância no Brasil59. Segundo
ela, a partir do final do séc. XIX, foi cultuada uma ideologia de (re) formar o Brasil,
que tinha na figura da criança como elemento que simbolizava o futuro do país. Esse

58
Conforme os estudos de ZALUAR, “Vadios eram considerados os mendigos, os desocupados, os
jogadores, os capoeiras e todos aqueles que exercessem atividades não reconhecidas oficialmente.”
(ZALUAR, 1996, p.81). Bem como a “repressão as contravenções tinham como objetivo separar o
trabalho da vagabundagem” (ZALUAR, 1996, p 93).
59
Conforme a historiadora Mary Del Priore, a historiografia sobre crianças e adolescentes no mundo
pode servir de inspiração para nós, mas não como uma bússola, “as lições devem começar em casa”:
e afirma que; Gilberto Freyre em 1921, manifestava seu desejo de escrever “(...) uma história do
menino da sua vida – dos seus brinquedos, dos seus vícios – brasileiro, desde os tempos coloniais
até hoje. Já comecei a tomar notas na biblioteca de Oliveira Lima, (anotava ele) nos cronistas
coloniais, nos viajantes, nas cartas dos jesuítas. Sobre meninos de engenho, meninos do interior, da
cidade. Os órfãos dos colégios jesuítas. Os alunos dos padres. Os meninos mestiços. De crias da
casa grande. De afilhados de senhores de engenhos, de vigários, de homens ricos, de educados
como se fossem filhos por esses senhores. É um grande assunto. E creio que só por uma história
deste tipo – história sociológica, psicológica, antropológica e não cronológica – será possível chegar-
se a uma idéia sobre a personalidade do brasileiro. É o menino que revela o homem” (FREYRE,
1921, apud DEL PRIORE, p. 11). Concordamos com o autor sobre ser um grande tema, mas para
além de compreender a “personalidade” do brasileiro, através da apreensão dos determinantes
históricos no “trato” da criança no Brasil, é possível reconhecer o pilar da manutenção das
desigualdades brasileiras, ao qual se coloca hoje como um “lugar-comum perverso”. Sua análise é
restrita no sentido de que não descortinou as desigualdades sociais, bem como a questão da
escravidão.
80

percurso delimita a dicotomia que vai basilar o tratamento da questão da infância


pobre no Brasil: o abandono (‘material e moralmente abandonada’) e a delinquência
(‘que deve ser afastada do caminho que conduz às escolas do crime’). Sob o viés
ambivalente de defesa da sociedade e da criança, as autoridades da época definiam
as metas para infância através de quatro ordens de funções: prevenção (vigiar a
criança, evitando sua degeneração), educação (moldar a criança pobre para a
disciplina do bem-viver dos hábitos do trabalho), recuperação (reabilitar o menor
vicioso retirando-o da criminalidade e reabilitando ao trabalho) e repressão (conter
através da força o menor delinquente, a fim de evitar danos à sociedade). (Id., p.26)
Sobre este período da história, através dos estudos da pesquisadora Alba Zaluar
(1996), podemos identificar que:

A exclusão da cidadania efetuada na República, quer pela engenharia


excludente da representação, que deixava fora da participação política
cerca de 80% da população, quer pela tradição inquisitorial da Justiça
brasileira, que se manteve na República, não teve exceções no Brasil. Uma
importante e enorme lacuna se deu em termos de direitos civis e de uma
administração da justiça independente dos privilégios e das regalias, ou
ainda do poder de influência, da sociedade senhorial. Os privilégios foram
mantidos em todos os centros urbanos do país, nos quais ainda vigora a
cidadania de segunda classe, com “controle social” repressivo para os
brasileiros pobres e com a liberdade econômica, pouco controlada na
aplicação de leis e de regulações de órgãos governamentais, para os que
enriqueceram. O conceito de ordem pública, do que está acima das
liberdades e dos interesses individuais, não inclui a necessidade de limitar
as liberdades desses últimos (ZALUAR, 1996, p.94).

A história brasileira se repete, então, como farsa na ressignificação de


concepções e práticas do passado, porém com mecanismos “modernos” e sob a
proteção jurídica. Através da “apreensão” ou “prisão para averiguação, o “controle
social” efetivado no passado se reproduz no presente.

Foram os candidatos a desocupados, os ociosos sem renda que ocuparam


quase toda a atenção dos chefes de polícia durante a virada do século.
Eram considerados um perigo para a ordem pública e uma ameaça moral à
sociedade. Daí serem presos por vadiagem, desordem ou embriaguez, três
contravenções descritas no Código Penal de 1890 que encheram as prisões
brasileiras nessa época. Muitos destes personagens do novo cenário
urbano foram “presos para averiguações”, ou seja, por mera suspeita. Não
havia prova de que tinham cometido algum crime. Por isso nunca foram
processados judicialmente. A prisão servia apenas para controlá-los,
moralizá-los ou, segundo alguns historiadores, obrigá-los a trabalhar nas
fazendas nordestinas onde não havia mais braço escravo (ZALUAR, 1996,
p.80).

Faleiros (2009) aponta elementos históricos que corroboram com a afirmação


de Zaluar (1996): “integrar pelo trabalho ou dominar pela repressão eram estratégias
81

dominantes” (2009, p. 43) daquele período. Destaca-se também, neste momento da


história, a aprovação da “Lei de 1892 Brasil, nº 6” que determinava “como se deve
proceder quanto aos menores vagabundos”60 (RIZZINI, 2009, p.115), lei que
vigorava no período e era publicizada nas cidades, sendo fixada nos
estabelecimentos comerciais, orientava a população em relação aos “menores”.

Sanear as “classes laboriosas” de modo preventivo significava, nessa


perspectiva, ocupar-se de suas crianças. Não só para prover a educação
daquelas porventura abandonadas, desvalidas, mas para substituir o tipo de
educação prática e particular, que lhes era proporcionada no seu meio, por
outra educação uniforme, escolar, universal e racional, para o mercado de
trabalho (RIZZINI, 2009, p. 327).

A apreensão para averiguação não ficou no passado, e, mesmo com o


advento do ECA no período Garantista, estas questões se expressam na atualidade.
Em setembro de 2015, foram apreendidos um número de 160 adolescentes para
averiguação sob suspeita, e as justificativas da polícia foram por estarem em
“situação de vulnerabilidade”, por estarem sem documentos e sem a presença dos
pais. Estavam se locomovendo da zona norte da cidade do Rio de Janeiro para as
praias da zona sul61. “Os dispositivos de “controle social” projetaram uma imagem de
pobreza que tem logrado manter-se, ao longo do tempo, sem prejuízos das
eventuais variações históricas ou regionais dessa percepção” (RIZZINI, 2009, p.
325).
Esse processo foi se balizando através das ideologias do “reeducar”,
disciplinar para o trabalho e prevenir a sociedade através da repressão pela força
dos “viciados” e “delinquentes”, congregando delinquência com pobreza. Também
passamos pela construção ideológica do termo “menor”, que “desempenha um papel
simbólico relevante no sentido de desentranhar determinados indivíduos do domínio
de uma representação genérica de infância, a qual atrelam-se expectativas de um

60
A lei em questão previa que: “(...) quando pelo chefe de pollcia da Côrte forem enviados a esse
Juizo menores nacionaes ou estrangeiros que vagam pelas ruas da cidade sem amparo ou
protecção, deve proceder a respeito do modo seguinte: 1º. Solicitar ao ajudante general do exercito
ou da armada, ou ao director do Arsenal de Guerra a admissão dos menores em qualquer das
companhias de aprendizes da guerra ou da marinha; 2º. Requisitar ao Ministerio do Imperio, quando
possa, ser alliacceitos, para que sejam admitidos no Asylo dos Meninos Desvalidos; 3º. Dar a
soldada, na forma da Ord. Liv.1º Tit.88, §13 da disposição do aviso n.º 312 de 20 de outubro de 1859,
não só os menores orphãos como os filhos de paesincognitos; 4º. Finalmente, communicar ao agente
consular respectivo, logo que for reconhecida a nacionalidade do menor estrangeiro, antes de dar-lhe
o destino legal, afim de facilitar áquelle funccionario os meios necessarios para a boa direcção dos
filhos menores de seus compatriotas”. Disponível em: <http://www.ciespi.org.br/index.phpa>
61
Sobre este fato, será desenvolvido no próximo capítulo.
82

certo comportamento social (...)” (VIANNA, 1999, p. 22), onde o papel da polícia
neste período foi central para a construção ideológica da cultura do termo “menor”
como “agente classificador”, sendo aplicado a uma camada específica da população
e não a todos que se encontravam em determinada faixa etária (VIANNA, 1999).
Questão que nos dias atuais ainda permanece e é recrudescida de forma
assustadora.
Na construção do consenso em torno da punição ao “menor”, consideramos o
papel da polícia62 como mais um elemento fundante da cultura punitiva que se
perpetua também no período garantista (ECA). “A criação da polícia no Brasil
constitui um privilegiado sismógrafo para prolongarmos a apreensão da crosta
repressiva que revestiu a formação social brasileira” (BRITO, 2010, p. 157). Zaluar
(1996) refere também sobre este processo:

A República apostou na polícia para mudar a sociedade violentamente. Não


era uma democracia. Por isso é que se diz que, naquela época, a questão
social foi considerada uma questão de polícia. Em todo o país. A opção
preferencial da polícia pelos pobres e pelos negros e pardos vem, pois, pelo
menos daquela época (...). A impunidade dos empresários do crime é tão
velha quanto a República, uma das mudanças mais importantes no código
penal é, pois, a retirada da “vadiagem’ como contravenção penal que pode
levar um desempregado à prisão. Por causa disso, a carteira de trabalho
passou a ser o passaporte da cidadania, durante as primeiras décadas da
República, o único meio de obter serviços do Estado ou de evitar a prisão
numa revista policial. Esse artigo do Código Penal sempre foi um dos
principais meios de controle repressivo dos pobres, justamente os que não
receberam suficiente formação escolar e profissional, os que não podem
pagar advogados para defendê-los. E também de controle de muitos
descendentes de escravos e índios. (ZALUAR, 1996, p. 94)

62
Em 1809, foi criada a Guarda Real de Polícia. Subordinada à Intendência, colocou-se, efetivamente,
como uma forca policial de disponibilidade integral, organizada sob perspectivas militarizadas.
Holloway (1997), ressaltando a truculência de seus métodos e intervenções, mostrou que o castigo
físico em público se tornou uma cena cotidiana, conforme revelado, por exemplo, pelo ritual punitivo
apelidado de ceia do camarão, baseado na intensiva agressão a suspeitos, em meio a logradouros,
até o ponto das carnes descascarem. Particularmente, vale registrar que Miguel Nunes Vidigal
(ocupando o cargo de comandante da Guarda Real de Polícia no período de 1809 até 1824, quando
foi aposentado com honrarias de Marechal-de-Campo) ganhou notoriedade por rituais truculentos,
como o supracitado e pelas incursões aos quilombos. O recrutamento dos membros da Guarda Real
de Polícia era realizado, sobretudo, nos setores sociais pauperizados, privilegiando homens com
famas de frieza e brutalidade consolidadas, na expectativa de melhor atingir a meta de infundir terror
aos “ociosos”, “vadios” e “escravos recalcitrantes”, agindo sobre os “efeitos sociais do colapso da
velha ordem” (Holloway, 1997: 264), em nome da defesa do status quo imperial-escravocrata. Em
outubro de 1831, sob a luz do Código Criminal de 1830 e das pretensões de “modernização” do
Estado e seus mecanismos de controle, foi criado o Corpo de Guardas Municipais Permanentes
(posteriormente, Corpo Militar de Polícia da Corte, em 1866, e Polícia Militar, a partir de 1920). Em
agosto de 1831, foi criada a Guarda Nacional, também sobre bases estritamente militarizadas, mas
com amplitude nacional (BRITO, 2010, p.157).
83

No que se refere à atual política da criança e do adolescente, este momento


da história possui antecedentes, pois, com a proclamação da República, esperava-
se um regime político democrático orientado para dar garantias ao indivíduo em uma
sociedade de território amplo e fartura em recursos naturais. Contudo veio um
século em que muitas crianças e jovens experimentaram crueldades inimagináveis.
A gestão das crianças e adolescentes pobres, pela via estatal, iniciou através da
difusão de ideologias que referendavam, desde então, a criminalização dos pobres,
como “família desestruturada”, “crianças delinquentes”, “reabilitação de crianças e
jovens”. Desta forma, a busca por uma “integração” dos indivíduos na sociedade,
desde a infância, passou a ser tarefa do Estado “(...) por meio de políticas sociais
especiais destinadas às crianças e adolescentes provenientes de famílias
desestruturadas, com o intuito de reduzir a delinquência e a criminalidade”
(PASSETI, 2004, p. 348).
O primeiro Código de Menores foi promulgado em 1927, ingressando, então,
na etapa tutelar, e, no período entre o primeiro código e o último de 1979, inaugura-
se e cristaliza-se a fase do “menor” em “situação irregular”63, “fruto típico do
chamado entulho legislativo dos governos militares” (GORENDER, 2004, p. 105),
separando os adolescentes “abandonados” dos “menores delinquentes”, bem como
neste período foi criado também o primeiro Juizado de Menores. E aqui sublinhamos
o papel do Judiciário e do Direito na construção da ideologia do trabalho e nos
caminhos da perpetuação da criminalização dos pobres e da seletividade do sistema
penal, questões que na atualidade não se alteram, pelo contrário, o caráter classista
do Poder Judiciário cada vez mais se adensa, legitimando-se como protetor dos
interesses dominantes. Conforme destacou Gizlene Neder (2012), o direito
desempenhou um papel de destaque na construção do Estado Nacional no Brasil,
sendo um dos “agentes” principais da criminalização aos segmentos subalternos:

Quer pela inserção dos juristas enquanto agentes históricos; quer pela
participação e envolvimento direto dos “bacharéis” na vida pública e na
formação ideológica brasileira, enquanto intelectuais atuantes na política e
em vários campos do saber (história, geografia, literatura, jornalismo etc.).
Além de encaminhar o projeto de construção da “nação”, o discurso jurídico

63
Conforme SPOSATO (2006, p.47): “A partir da leitura de apenas dois artigos do Código de Menores
de 1979, já é possível avaliar a forte influência da doutrina da situação irregular no estabelecimento
de políticas públicas para a infância e a juventude, e especialmente para as políticas de atenção aos
adolescentes envolvidos com a prática de infrações penais. De modo geral, coube à Justiça da
Infância e Juventude, em associação direta com o assistencialismo, uma ação política de
manutenção do status quo do atendido, sem alterar efetivamente sua condição”.
84

promove o processo de ideologização que acompanha a constituição do


mercado de trabalho no Brasil. Através do processo de criminalização, este
discurso jurídico encaminha a apropriação da ideologia burguesa de
trabalho, aspecto importante na passagem para o capitalismo na formação
histórica brasileira (NEDER, 2012, p. 65).

Apesar de alguns historiadores afirmarem que a partir deste momento o termo


“menor” se vulgariza, consideramos que já possuía antecedentes. Concordamos
com Vianna (1999) que - com o Código de Menores - o termo é reafirmado e
juridicamente protegido, porém desde 1910 já era utilizado como forma de
classificação (a correcional, a prevenção e o abandono), pois conforme os estudos
da autora “é possível afirmar que o termo menor, embora tenha suas raízes na
produção jurídica, consolidou-se e generalizou-se em boa medida por meio da ação
policial” (VIANNA, 1999, p. 43).
O papel da polícia se transforma em mais um elemento na construção de uma
sociedade marcada pela violência e práticas autoritárias baseadas no “controle
social” dos pobres (manutenção da ordem e ética do trabalho).

(...) para que o contingente sempre crescente de imigrantes e libertos que


chegavam à cidade pudesse se enquadrar em uma organização social
baseada na venda da força de trabalho, não bastava manter sua condição
de expropriados – com o controle, por exemplo, do mercado de terras – ou
tentar criar e difundir um valor social para o trabalho. Era preciso dispor de
mecanismos efetivos de punição para os que se recusassem a tanto. A
polícia ao prender vadios – adultos ou menores – agia, portanto, em sintonia
com o esforço mais geral de reordenamento do mundo urbano, ao qual
aliavam-se as transformações sanitárias e urbanísticas, todas realizadas
frente à resistência de parte da população da cidade, como fica claro no
caso da Revolta da Vacina, em 1904, ou das tentativas de impedir a
derrubada de cortiços e casas de cômodos (VIANNA, 1999, p. 46).

Foram muitos autores e produções a respeito do tema, que pesquisaram e


plubicizaram a história da criança em nosso país. Considerando, então, a expressão
“a história da criança é a história de seu desconhecimento” (RIZZINI, 2004), na
atualidade, podemos afirmar que a história da criança no Brasil define-se como a
história com duas faces: a criança criminalizada e a não criminalizada, onde criou-se
e “manteve-se, pois, o abismo infranqueável entre infâncias privilegiadas e menores
marginalizados” (RIZZINI, 2009, p.16). O referido “desconhecimento” compreende-se
à perspectiva do não reconhecimento destes seres como sujeitos de direitos,
vinculado a uma sociedade estruturada por diferentes classes sociais, fundada
principalmente na manutenção através das grandes e persistentes desigualdades
sociais e econômicas, tendo, como instrumento de manutenção deste status quo, o
“controle social” da pobreza. O distanciamento da criança pobre do período da
85

infância é histórico e é aprofundado no Brasil a partir da construção da categoria


“menor”64, sendo camuflada a determinação política das desigualdades sociais.

Daí a construção de uma categoria jurídica específica: a do menor, dividindo


a infância em duas e atrelando a periculosidade às crianças e adolescentes
pobres, alvo preferencial da intervenção estatal. O controle da infância é
exercido pela família e pela escola; já o controle dos menores é atribuição
dos tribunais (SPOSATO, 2006, p. 40).

Cabe também apresentar que a escolha dos detidos baseava-se, por sua vez,
“na formação de um conhecimento propriamente policial, capaz de reconhecer
nesses indivíduos, através de suas falas e comportamentos, um perigo potencial.
Esse saber específico seria responsável, ainda hoje, pela própria organização do
inquérito policial, em que a identificação do suspeito precede e justifica as etapas de
investigação” (VIANNA, 1999, p. 46). A “criminalidade” infantil foi, por sua vez, uma
determinação da “delinquência” ao longo do curso desse processo, fazendo par com
a criminalidade feminina e prostituição e com a “vagabundagem”, entre outros
(VIANNA, 1999). Em 1937, a realidade da situação das crianças e adolescentes
pobres no Brasil, mais precisamente da realidade baiana, foi retratada por Jorge
Amado, que lança o livro Capitães de Areia65, levando para a literatura a questão do
“menor”.
A agenda modernizadora no Brasil não comportou procedimentos decisórios
democráticos, com o que as mudanças intensas desencadeadas a partir daí
se deram sob uma ditadura, num processo de modernização conservadora.
Dentro dessa agenda, desde a fase do Estado de compromisso, além da
perspectiva de dar um salto adiante do ponto de vista econômico,
impulsionando as demais oligarquias agrárias e a indústria, estavam

64
Em alguns países, o termo “menor” continua sendo utilizado, como na Espanha, por exemplo, onde
há menos violações e as legislações acabam tendo uma maior efetividade. No caso brasileiro, criou-
se uma grande expectativa sobre a alteração do termo “menor” para adolescente, acreditando que a
alteração viria também com uma mudança na realidade social destes sujeitos. Sobre este debate, ver
a tese de PEIXOTO, B. Roberto, “Socioeducação e Violação de Direitos: o simulacro do Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) no Brasil do século XXI”, 2016, UERJ.
65
O romance “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, foi publicado em 1937. O livro teve a primeira
edição apreendida e exemplares queimados em praça pública de Salvador por autoridades da
ditadura. “Em 1944, quando uma nova edição é lançada, entra para a história da literatura brasileira,
assim como outros livros do autor, traduzidos para outros idiomas e adaptados para rádio, teatro e
cinema. Pela primeira vez na história da literatura brasileira, um escritor denuncia de maneira
panfletária – romântica, e paradoxalmente, socialista e realista – o problema dos menores
abandonados e dos menores infratores que desafiavam a polícia e a própria sociedade. A abordagem
romântica deve-se, exclusivamente, ao fato de o autor minimizar os delitos dos meninos e acentuar
os defeitos da sociedade, nem mesmo a Igreja ficou livre da censura do autor. Por outro lado, Jorge
Amado traz para discussão a problemática desses meninos que não tiveram a felicidade de ter uma
família ou a felicidade de ser acolhidos pelo Estado, que tinha (e ainda tem) a obrigação de defendê-
los de qualquer tipo de marginalização”. (BIAGIO, Maria Cristina Altvate, Resenha, 2004) Disponível
em: <http://www.saojose.com.br/index.php/8-o-colegio/noticias/56-resenha-literaria-do-livro-capitaes-
da-areia-de-jorde-amado>
86

pendentes a regulamentação do trabalho e o enfrentamento da questão


social, até então vista exclusivamente como questão de polícia, conforme
pensava Washington Luiz. Neste sentido, se o governo Vargas enfrentou
também com a polícia os componentes mais radicalizados do movimento
operário nascente, e especial após 1935, ele soube combinar essa atitude
com uma forte iniciativa política: a regulamentação das relações de trabalho
no país, buscando transformar a luta de classes em colaboração de classe,
e o impulso à construção do Estado social, em sintonia com os processos
internacionais, mas com nossas mediações internas particulares
(BEHRING, 2007, p.106).

Neste sentido, em um esforço regulatório do governo de Vargas (1930 e


1943), foram introduzidas as políticas sociais no Brasil. O Ministério do Trabalho é
criado e com ele a Carteira de Trabalho, sendo caracterizado como uma cidadania
regulada, tendo o desenvolvimento do Estado social brasileiro um caráter
corporativo e fragmentado, distante da perspectiva da universalização (BEHRING,
2007).
Ianni (2004) fala sobre um destes momentos:

Em 1944, já se pensava em planejar o desenvolvimento econômico


nacional, para que se concretizasse a racionalidade possível ou presumida.
Em face do pauperismo, da pobreza de recursos, das deficiências da
técnica, das disparidades regionais, das fraquezas do protecionismo, da
inflação, dos problemas gerados com a guerra e da consciência empresarial
inexperiente, o Estado se propõe talvez pela primeira vez o planejamento
nacional (IANNI, 2004, p.53).

No bojo da introdução, as políticas sociais pelo Estado passam a ter um papel


central a partir das políticas de assistência às crianças e adolescentes pobres deste
país, através do Serviço de Assistência ao Menor (SAM), que foi criado em 1941, e,
em 1964, cria-se a Fundação Nacional de Bem-Estar (FUNABEM)66 e suas
respectivas FEBENs de âmbito estadual, sendo instituições que contribuíram
também para o fortalecimento da ideologia punitiva. Cabe referir que a conclamação
da política Nacional de Bem-Estar do Menor se efetiva com o Código de Menores de
1979, destinados à recepção e permanência de menores, tendo uma lógica de
controle e vigilância. (SPOSATO, 2006). É importante, então, destacar que neste
período o:

66
A criação da FUNABEM, conforme BATISTA, “está relacionada à Doutrina de Segurança Nacional,
aonde a questão da juventude pobre se encaixa na doutrina de defesa do Estado. A Funabem passa
a atuar como propagadora de ideologia em nível nacional, com discurso ideológico fortalecedor das
representações negativas da juventude pobre, prenhe dos discursos darwinistas sociais e dos
determinismos da virada do século. A Funabem faz o marketing das políticas sociais da ditadura, no
contexto dos “fatores psicossociais”, da política de Segurança Nacional.” (BATISTA, 2003, p. 78).
87

Discurso político sobre o tema, na época, se traduz na responsabilização do


grupo familiar, da religião, da hereditariedade e de padrões de
comportamento pelo envolvimento de crianças e adolescentes com a
criminalidade, afastando-se da análise quaisquer considerações sobre o
contexto socioeconômico e político brasileiro (SPOSATO, 2006, p. 46).

O atendimento institucional sofreu mudanças significativas na história recente,


particularmente no período que sucedeu a aprovação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (lei 8.069 de 13 de julho de 1990), inaugurando a Etapa Garantista,
denominada, assim, pela perspectiva da “introdução do princípio da proteção integral
em substituição à situação irregular e pelo reconhecimento do adolescente como
sujeito de direitos, titulares de garantias positivas” (SPOSATO, 2006, p. 49). No
entanto muitos de seus desdobramentos são ainda marcados por “ideias e práticas
do passado” (RIZZINI, 2004, p. 13), como destacamos neste item.
No final da década de 1970, ainda no período ditatorial, outra denominação e
concepção surgem no meio acadêmico e também através das práticas de militantes
e organizações envolvidas com este segmento, para designar sobre as crianças e
adolescentes que não estavam institucionalizados, mas que vivessem nas ruas: os
“meninos de rua”. Com a Constituição Federal (1988) e, logo após, com a aprovação
do ECA (1990), estes sujeitos passam a ser compreendidos e denominados
“crianças e adolescentes como sujeitos de direitos”, buscando de forma legal romper
com a lógica histórica menorista e conservadora, mas principalmente trazendo em
seus princípios a proteção integral a todas as crianças e adolescentes,
independentemente da classe social.
O avanço histórico legal não encontrou bases de sustentação em uma
sociedade já recrudescida pelas políticas neoliberais, mas também por não romper
com as persistentes desigualdades sociais e as formas criminalizantes e punitivas
do trato da “questão social”, que marcaram nossa formação. O que é identificado
pelo professor José Damião de Lima Trindade (2011) sobre a não efetivação de
direitos de forma universal na sociedade burguesa:

Não importa quantos tratados internacionais de direitos humanos hajam


sido celebrados em salões dourados e brindados com champanhe em taças
de cristais – entenda-se bem, e de uma vez por todas: esses direitos, a vida
o vem demonstrando, não são “universais”, valem apenas para uma parcela
da universalidade humana, a parcela rica, não para as multidões de pobres
ou de desempregados (a estes, no máximo, o assistencialismo público ou a
caridade privada), nem para as pessoas com biótipos não-caucasianos e
idiomas não-europeus (TRINDADE, 2011, p.16).
88

Consideramos que a inserção da categoria “sujeitos de direitos” na área da


criança e do adolescente foi um avanço apenas no aspecto legal, pois abre “portas”
para a defesa jurídica da proteção integral para "todos”. No caso dos adolescentes,
as MSEs apontam para garantias do devido processo legal, que apenas a minoria
possui acesso (advogado particular ou defensor público, quando conseguem
acessar). A mudança da terminologia de “menor” para adolescentes, “sujeito de
direitos”, foi uma conquista tanto para a prática, no atendimento, como legal, na
perspectiva jurídica, mas na atualidade acaba se transformando em instrumento de
criminalização do próprio ECA. Este fato fica evidente quando observa-se a que a
própria mídia não utiliza mais o termo “menor”, mas adolescentes. Reforçando a
ideia de que o ECA protege os denominados adolescentes “bandidos”. A mudança
legal por si só não representou a alteração ideológica e social da criminalização a
estes segmentos, pois a instrumentalidade da cultura punitiva se ampliou, sendo
maior que o ECA. Nesta perspectiva, o Estatuto deve ser compreendido na direção
do fetichismo jurídico e para além de uma visão idealista, pois:

(...) com a noção de que a categoria jurídica de sujeito de direto não é uma
categoria racional em si: ela surge num momento relativamente preciso da
história e desenvolve-se como uma das condições da hegemonia de um
novo modo de produção. É preciso compreender que, ao fazer isso, o novo
sistema jurídico não cria exnihilo uma pessoa nova. Pela categoria de
sujeito de direito, ele mostra-se como parte do sistema social global que
triunfa nesse momento: o capitalismo. É preciso, pois, recusar todo ponto de
vista idealista que tenderia a confundir essa categoria com aquilo que ela é
suposta representar (a liberdade real dos indivíduos) (TRINDADE, 2002, p.
85).

Para além do idealismo, temos uma legislação considerada pelo “senso


comum” de “moderna” ou “lei de primeiro mundo”, na verdade como já referimos, o
ECA é uma lei que contribuiu com o avanço na área, mas devemos compreendê-la
inserida em processos históricos e com limites no que se refere a uma “grande”
alteração do status quo da sociedade burguesa, pois a “noção de sujeitos de direitos
é, pois, absolutamente indispensável ao funcionamento do modo de produção
capitalista” (TRINDADE, 2002, p. 84). A lógica do ECA, assim como as demais leis,
está fundada na perspectiva da mercadoria e Evgny Bronislavovich Pachukanis nos
mostrou isso em sua obra “Teoria Geral do Direito e Marxismo”.

Na realidade, a categoria de sujeito Jurídico é, evidentemente, estabelecida


no ato de troca que ocorre no mercado. E é justamente neste ato de troca
que o homem realiza na prática a liberdade formal da autodeterminação. A
relação do mercado revela esta oposição entre o sujeito e o objeto num
89

sentido jurídico particular. O objeto é a mercadoria e o sujeito o proprietário


de mercadorias que dispõe delas no ato de apropriação e de alienação. É
justamente no ato de troca que o sujeito se manifesta pela primeira vez em
toda a plenitude das suas determinações. O conceito, formalmente mais
elaborado, de sujeito, que a partir desse momento abrange somente a
capacidade jurídica, distancia-nos ainda mais do sentido histórico real desta
categoria jurídica. Eis por que é tão difícil para os juristas renunciar ao
elemento voluntário ativo quando elaboram os conceitos de "Sujeito" e de
"Direito subjetivo". A esfera de domínio, que envolve a forma do direito
subjetivo, é um fenômeno social que é atribuído ao indivíduo do mesmo
modo que o valor, outro fenômeno social, é atribuído à coisa, enquanto
produto do trabalho. O fetichismo da mercadoria se completa com o
fetichismo jurídico (PACHUKANIS, 1988, p.75).

A partir desta compreensão, é importante ampliarmos nosso olhar crítico aos


processos de redemocratização do Estado brasileiro, com a aprovação da
Constituição Federal de 1988 e do ECA/1990, após os longos anos de ditadura
militar, com a abertura política e a mobilização e organização dos movimentos
sociais. Porém é importante reconhecermos os limites no que se refere à “conquista”
de direitos, pois estão vinculados à própria formação brasileira, que não rompeu com
a concentração de renda e, portanto, com as desigualdades sociais, bem como com
a própria sociedade burguesa regida pela mercadoria. Pelo Estatuto, os
adolescentes passam a ser “sujeitos de direitos”, porém muito mais como objetos,
pois se suas famílias fazem parte do grupo que são supérfluos ao mercado, que não
produzem para o capital, quem os protegerá, o livre mercado?

A vida social desloca-se simultaneamente, por um lado, entre totalidade de


relações coisificadas, surgindo espontaneamente (como o são todas as
relações econômicas: nível dos preços, taxa de mais-valia, taxa de lucro
etc.), isto é, relações onde os homens não têm outra significação que não
seja a de coisas, e, por outro lado, entre totalidade de relações onde o
homem não se determina a não ser quando é oposto a uma coisa, ou seja,
quando é definido como sujeito. Essa é precisamente a relação jurídica.
Estas são as duas formas fundamentais que originariamente se diferenciam
uma da outra, mas que, ao mesmo tempo, se condicionam mutuamente e
estão intimamente unidas entre si. Assim o vínculo social, enraizado na
produção, apresenta-se simultaneamente sob duas formas absurdas; por
um lado, como valor de mercadoria e, por outro, como capacidade do
homem de ser sujeito de direito (PACHUKANIS,1988, p 71).

O ECA completou 27 anos de sua aprovação em 2017. Torna-se relevante


olharmos para esse tempo histórico na busca de uma análise crítica sobre o
movimento da realidade brasileira, no que se refere aos avanços e retrocessos para
este segmento da população. Entre militantes, pesquisadores da área e defensores
dos direitos das crianças e dos adolescentes, é unânime a ideia de que o Estatuto
foi um avanço. Ele foi fruto da mobilização e de lutas de vários setores da sociedade
civil e do governo, que lutavam pela alteração da realidade de crianças e
90

adolescentes, e representou uma conquista democrática de um período histórico,


sendo um marco no Brasil pós-ditadura.
Mas é oportuno destacar que foi uma resposta ao esgotamento histórico,
jurídico e social do Código de Menores. O ECA não resolveu todas as questões das
crianças e dos adolescentes, pois a lógica engendrada pelo capital fetiche, que
rende juros, se expressa na centralidade da mercadoria, é maior que os princípios
do ECA, que vislumbra uma realidade vinculada a uma democracia plena, questão
que na sociedade burguesa não ocorrerá.
Da mesma forma, temos de considerar que a conquista do marco legal foi um
importante avanço como instrumento de luta e possibilidades no sentido de
pressionar a efetivação da defesa e da proteção de crianças e adolescentes (mesmo
que pela “redução de danos”). Podemos comemorar alguns avanços, como a
redução do trabalho infantil; do analfabetismo; da mortalidade infantil (acesso à
saúde/pré-natal); a universalização da educação (mesmo que precária); a criação
dos conselhos tutelares e conselhos de direitos (“controle social” democrático)67.
Ainda assim, esses ganhos não foram suficientes para alterar a vida de
milhares de crianças e adolescentes brasileiros, pois, neste período, a dinâmica e/ou
os traços autoritários da cultura política brasileira - e consequentemente da cultura
punitiva - foram fundamentais para reprodução das desigualdades sociais. Ou seja,
a face punitiva que permeia a cultura brasileira é mais forte que o ECA, porque
possui determinações históricas que estão vinculadas à hegemonia burguesa,
produzindo consensos na sociedade, entre os quais a criminalização dos pobres. O
Estatuto nasce no contexto neoliberal, considerado uma conquista tardia das lutas
sociais, e seu horizonte societário está pautado no plano da modernização
conservadora da sociedade capitalista (SILVA, 2011). Por isso, seus limites acabam
sendo maiores que seus avanços, principalmente em relação às MSEs, ao estruturar
suas respostas com base no sistema penal.
A provação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE,
2006), o qual significou também importante avanço no âmbito legal, pela
regulamentação das MSEs, não possibilitou a alteração da presente cultura punitiva.
Com aumentos do número de internação de adolescentes (questão contrária aos
princípios dessa lei), mantendo a lógica punitiva institucional (denúncias de torturas),

67
Estes dados são fruto da sistematização da autora para uma palestra ministrada sobre os 25 anos do ECA,
promovida pelo CRESS/RJ, 2015.
91

policial e juridicamente ativa. Houve ainda uma precarização das condições de


atendimento nas unidades de cumprimento tanto no âmbito do Estado como dos
municípios (medidas socioeducativas em meio aberto, via política de assistência
social - CREAS/SUAS). Como já afirmamos em relação ao ECA, a legislação
sozinha não dará conta de fazer retroceder uma cultura que se constituiu ao longo
do processo histórico e se recrudesce no contexto neoliberal brasileiro. Para tanto,
essa cultura - consensualmente defendida como forma de “controle social” - precisa
ser decifrada como um elemento fundamental de domínio da classe dominante, para
então haver a possibilidade de se criar resistência às formas violentas, vingativas e
criminalizados da pena e consequentemente dos sujeitos. Conforme o estudo de
Karam (1996), verifica-se que:

A monopolizada reação punitiva contra um ou outro autor de condutas


socialmente negativas, gerando a satisfação e o alívio experimentados com
a punição e consequente identificação do inimigo, do mau, do perigoso, não
só desvia as atenções como afasta a busca de outras soluções mais
eficazes, dispensando a investigação das razões ensejadoras daquelas
situações negativas, ao provocar a superficial sensação de que, com a
punição, o problema já estaria satisfatoriamente resolvido. Aí se encontra
um dos principais ângulos da funcionalidade do sistema penal, que,
tornando invisíveis as fontes geradoras da criminalidade de qualquer
natureza, permite e incentiva a crença em desvios pessoais a serem
combatidos, deixando encobertos e intocados os desvios estruturais que os
alimentam (KARAM, 1996, p.3).

Nesse sentido, corroboramos também com Karam (2015) no que se refere à


expressão política de uma “esquerda punitiva” na atualidade brasileira. Conforme
seus estudos sobre a história da esquerda e a punição:

Na história recente, o primeiro momento de interesse da esquerda pela


repressão à criminalidade é marcado por reinvindicações de extensão da
reação punitiva a condutas tradicionalmente imunes à intervenção do
sistema penal, surgindo fundamentalmente com a atuação de movimentos
populares, portadores de aspirações de grupos sociais específicos, como os
movimentos feministas, que, notadamente a partir dos anos 70, incluíram
em suas plataformas de luta a busca de punições exemplares para autores
de atos violentos contra mulheres, febre repressora que logo se estendendo
aos movimentos ecológicos, igualmente reivindicantes da intervenção do
sistema penal no combate aos atentados ao meio ambiente, acaba por
atingir os mais amplos setores da esquerda (KARAM, 2015, p. 1).

A lógica da punição e a função da pena em nossa sociedade compõem um


debate que urge na atualidade, principalmente no que diz respeito a grupos, partidos
políticos, conselhos profissionais, movimentos sociais e pesquisadores, com
concepções mais progressistas e democráticas, que buscam repensar criticamente o
tema. Consideramos que este debate é delicado, pois são alguns setores da
92

esquerda que possuem esta visão, porém, nas formas equivocadas e contraditórias
de reivindicações pela punição, acaba-se jogando muita “água no moinho” da cultura
punitiva, contribuindo para o fortalecimento do “controle social”, principalmente dos
sujeitos vinculados à classe subalterna. O questionamento e afirmativas contrárias à
punição devem estar em todos os âmbitos da vida social, onde a violência se
expressa (na violência contra mulheres, no meio ambiente, na violência contra
idosos e principalmente em relação a todas as crianças e adolescentes).
No questionamento do papel do aprisionamento como vingança física e moral,
o que pode parecer uma bandeira do abolicionismo penal (utópica talvez), porém o
que move esta reivindicação é a vinculação com a luta contra a ordem violenta,
punitiva (muitas vezes reiteradas) e criminalizadora do capital, em direção a outra
forma de sociabilidade. Percebemos que a não atualização desse debate pela
perspectiva crítica traz equívocos para as práticas, contribuindo para a perpetuação
da punição aos pobres e revigorando a lógica dominante em nossa sociedade. A
autora evidencia a incorporação do poder punitivo por segmentos da esquerda68,

O equivocado discurso sobre a criminalidade, encerrando a entusiasmada


crença no sistema penal, e as reivindicações repressoras, na linha deste
pragmatismo político-eleitoral, sem princípios e sem ideais, favorecedor da
ampliação do poder punitivo do Estado, hoje faz de amplos setores da
esquerda uma reacionária massa de manobra da “direita penal” e do
sistema de dominação vigente (KARAM, 2015, p.10).

É curioso notar que mesmo após os avanços legais apontados, sobretudo a


partir da promulgação do ECA, acrescidos da sistematização, estruturação e busca
de maior qualidade no atendimento prestado, respaldadas também pelo SINASE,
podemos observar índices que reportam ao crescimento anual do número de
adolescentes presentes em instituições fechadas, bem como o aumento do número
de instituições dessa natureza em todo o Brasil. A construção de discursos do medo
e propostas de segurança estariam alimentando as práticas de punição aos
adolescentes pobres, negros e moradores das periferias urbanas.

68
Sobre este debate, Rosa e Amaral assinalam a preocupação sobre a “esquerda punitiva”,
destacando que: “Um furor persecutório, muitas vezes histérico e irracional, normalmente
monopolizado pela direita na legitimação de forças reacionárias, acaba por reintroduzir o pior do
autoritarismo em matéria penal. Nada menos porque, ao incentivar o rompimento com imprescindíveis
liberdades fundamentais do Estado de Direito, no entusiasmo de atingir aqueles menos afetados pelo
sistema penal, frequentemente não percebem que esta vinculação repercute, pela própria
seletividade do sistema penal, exatamente sobre os ‘clientes’ de sempre do sistema que sofrem
cotidianamente a sua intensa ingerência” (ROSA, A. M. e AMARAL, A. J., 2015, p.57).
93

Recentemente (2015), a pauta da redução da maioridade penal retorna à


cena política no Brasil, na qual a expressão do ódio direcionado a jovens pobres e
negros e o apelo à punição (tendo como contribuição a mídia burguesa) se
intensificam de forma violenta. O debate não é novo, porém o momento é delicado
no que diz respeito ao retrocesso dos direitos dos adolescentes e demais
reivindicações de cunho progressista. Nesse contexto, é importante estarmos
atentos às ameaças que se apresentam. Na realidade brasileira atual, as
expressões da “questão social” se intensificam; consequentemente, as formas de
opressão e estigma se aprofundam. A lógica da criminalização dos pobres, negros e
moradores das periferias se efetiva enquanto sistema desigual e extremamente
seletivo, como já referido, respaldado por uma cultura de punição aos pobres, que é
histórica, porém se exacerba nos dias de hoje. Cabe, então, referir que as MSEs se
concretizam na atualidade com um “sistema penal juvenil” não só em sua forma de
aplicação da lei, baseada no código penal e nas normas jurídicas, mas também na
aplicabilidade na execução das MSEs, demonstrando neste processo a força de um
sistema penal que está mais proativo como nunca. Podemos, então:

Finalmente, enxergar além da carapuça de um sistema que tem se mantido


de pé por meio de um discurso de igualdade da lei, de segurança jurídica e
de tantas outras artimanhas elaboradas para seu triunfo. Porém, assim,
despido de qualquer véu, mais do que os fracassos evidentes nas suas
promessas, o que nos toca é a concretização do que nunca fora anunciado.
No final, o que ficou definitivamente explicitado é que a alardeada “falência
do sistema penal” é, na verdade, slogan de mais uma manobra. O sistema
penal funciona. E funciona bem. Funciona para os fins para os quais foi
concebido: manter as pessoas onde estão (FLAUZINA, 2008, p.33).

A cultura punitiva - expressa nas MSEs - funciona tanto para neutralizar como
para descartar os sujeitos. É importante mencionar que embora as violações das
MSEs possuam especificidades regionais, a lógica contraditória e punitiva que as
sustenta também as constitui como um sistema nacional. Algumas pesquisas
veiculadas recentemente em jornais e sites de notícias constataram o alcance
nacional da precarização e da violação de direitos. Em visita de fiscalização do
Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDCA) da Paraíba, o
relatório denuncia que:

A Unidade se parece com um presídio. Os alojamentos são celas, com


pouca ventilação e luminosidade. Algumas delas se parecem com “grutas”,
conforme definição dada pelos próprios jovens. As paredes estão cheias de
mofo e de pichações. Durante as inspeções havia restos de comidas para
94

todo e qualquer canto. O único critério seguido para a separação dos jovens
69
parece ser o das “facções” .

Recentemente, em uma das unidades da Fundação de Atendimento


Socioeducativo (FASE) do Rio Grande do Sul, um motim realizado por internos teve
como reivindicações a melhoria na alimentação e a solicitação de transferência para
o presídio de adultos, devido às péssimas condições da unidade.70
No Rio de Janeiro, nas visitas de fiscalização do Conselho Estadual de
Defesa da Criança e do Adolescente (CEDCA/RJ) ao Departamento Geral de Ações
Socioeducativas (DEGASE) frequentemente é constatado essa realidade perversa:
superlotação das unidades, ausência de condições de higiene, adolescentes sem
frequentar cursos e sem acesso ao atendimento técnico (assistentes sociais,
psicólogos e pedagogos). O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à
Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ)71 é um órgão criado pela Lei Estadual n.º
5.778 de 30 de junho de 2010, vinculado à Assembleia Legislativa do Estado do Rio
de Janeiro, e tem sido importante ator na defesa e denúncia da realidade das
unidades para cumprimento de MSE do DEGASE, bem como no sistema prisional
na atualidade. O mesmo possui como objetivo realizar e conduzir visitas periódicas a
espaços de privação de liberdade, em diferentes formas ou fundamento de
detenção, aprisionamento, contenção ou colocação em estabelecimento público ou
privado de controle, internação, dentre outras. Os dados expressos em seus
relatórios corroboram com nossa afirmativa da existência de uma intensa cultura
punitiva nestes espaços, inclusive com verificação e comprovação da utilização de
práticas de tortura. Em um dos relatórios do Mecanismo do ano de 2013 consta que:

69
Fonte: <http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2015/06/porrete-direitos-humanos-e-achado-em-
centro-socioeducativo-na-paraiba.html?noAudience=tru>.
70
Fonte: <http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2015/06/porrete-direitos-humanos-e-achado-em-
centro-socioeducativo-na-paraiba.html?noAudience=tru>.
71
O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) resulta
do processo de estabelecimento, pelo Estado Brasileiro, das diretrizes contidas no Protocolo
Facultativo da Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penais Cruéis, Desumanos ou
Degradantes da Organização das Nações Unidas, ratificado pelo país no ano de 2007. O referido
Protocolo decorre do acúmulo estabelecido na Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU,
realizada em 1993, na qual se declarou firmemente que os esforços para erradicar a tortura deveriam
primeira, e principalmente, concentrar-se na prevenção, designando, para tanto, o estabelecimento
de um sistema preventivo para realizar visitas regulares a centros de detenção.
95

A ocorrência de tortura contra uma menina, com o emprego de uma técnica


denominada ‘bailarina’, que consiste em algemar as suas mãos apontadas
para o céu, obrigando-a a permanecer nas pontas dos pés para não sentir
dores no braço (Relatório anual de 2013, MEPCT-RJ, 2013, p.93).

Fato bárbaro dentre tantos que também foi referido pela pesquisadora Ana
Claudia Nery Camuri Nunes, membro na época do Mecanismo em sua tese de
doutorado72:
A adolescente de 17 anos havia sofrido agressões físicas e fora algemada a
uma grade, vestida somente com roupas íntimas e na ponta dos pés. O fato
teria ocorrido em 02/05/2013 e, até o momento da visita, a jovem não havia
sido encaminhada para realização de exame de corpo de delito. A
adolescente só foi encaminhada para unidade policial 24 horas após a visita
do Mecanismo, que caracterizou o evento como “um quadro grave de
omissão por parte da direção da unidade”. A mídia local especulou que ela
teria sofrido estupro. A defensora pública envolvida no caso, à época,
declarou à imprensa que, apesar de nunca ter ouvido relatos de estupro no
Cense PACGC, a menina teria sofrido a tortura só de sutiã - o que
caracterizaria abuso e constrangimento sexual. Vale ressaltar que, na
delegacia, o caso foi registrado como “lesão corporal” (art. 129 do Código
Penal) e não como tortura. No dia em que tudo aconteceu (02/05/2013),
outras duas adolescentes foram algemadas e penduradas da mesma forma
(NUNES, 2016, p.350).

O mecanismo também aponta - em seus relatórios - outras formas de tortura,


como “corredor polonês”:

Denominada “piupiu”, na qual um alicate de cortar cadeado é colocado na


região genital do adolescente, sendo o saco escrotal pressionado. A fim de
maquiar o ocorrido, os agentes estariam levando o adolescente torturado
para um banho frio e um outro adolescente, de facção rival, levado com ele
para a delegacia. Em sede policial, se registra a ocorrência de briga entre
ambos. Em decorrência da suposta briga, o adolescente fica proibido de
receber visitas, dificultando a denúncia por parte dos familiares também
(Relatório anual de 2015, MEPCT-RJ, 2016, p.86).
Além dos casos de torturas e as formas de “maquiagem” para esconder as
mesmas, o Mecanismo também relata sobre as precárias:

(...) condições físicas, condições de higiene e salubridade ruins, mau cheiro,


vários relatos acerca de enfermidades adquiridas pelos adolescentes devido
à situação do lugar (doenças de pele) e uníssonas reclamações sobre
agressões físicas e verbais no cotidiano. Outro problema derivado da
superlotação se caracteriza pelo não acompanhamento da equipe técnica
aos adolescentes e seus familiares, profissionais que veem como única
possibilidade de atuação a produção de relatórios que servem ao sistema
de justiça. Demonstrando assim que o plano político pedagógico e a
elaboração do PIA ficam em segundo plano (Relatório anual de 2016,
MEPCT-RJ, 2016, p.51).

72
“A tortura no teatro dos castigos: do palco à coxia”. Tese de Doutorado pelo Centro de Educação e
Humanidades, Instituto de Psicologia/UERJ (2006)
96

Os relatórios do Mecanismo acabam sendo importantíssimos para análise da


realidade do sistema socioeducativo no Rio de Janeiro, bem como para esta
pesquisa. Na parte citada a seguir, destaca-se a percepção da cultura punitiva e da
semelhança da prática da mesma com o sistema prisional:

As visitas de monitoramento realizadas pelo Mecanismo revelam que o


tratamento dispensado aos adolescentes privados de liberdade no Rio de
Janeiro viola o exercício da proteção integral e desconsidera o adolescente
como pessoa em sua condição peculiar de desenvolvimento. Nesse sentido,
percebe-se que este se assemelha, em diversos aspectos, àqueles
destinados aos adultos no sistema prisional. A lógica punitiva é o fio
condutor da relação de tratamento e ofusca, sem sombra de dúvidas, a
lógica da socioeducação. A reiterada utilização de algemas em quaisquer
deslocamentos externos dos adolescentes, o uso recorrente de spray de
pimenta, armas de eletrochoque (teaser), a ritualização da “cabeça baixa e
mãos para trás em fila indiana” remetem a uma lógica militarizada,
disciplinadora e punitiva, que fere a inviolabilidade da integridade física,
psíquica e moral (Relatório anual de 2015, MEPCT-RJ, 2015, p.84).

Os relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) corroboram com os


relatórios acima na perspectiva de uma realidade nacional de violações de direitos e,
principalmente, de permanência da lógica punitiva, apesar dos discursos de práticas
socioeducativas73.
Na análise destes dados, o Anuário de Segurança Pública se refere à relação
entre sistema penal e MSE, em uma conjunção de práticas que acentuam a lógica
do encarceramento, da criminalização e da não efetivação da Doutrina da Proteção
Integral proposta pelo ECA. As hipóteses corroboram com nossa reflexão:

Em primeiro lugar, há uma aproximação entre o sistema de justiça juvenil e


o sistema de justiça penal, no qual se verifica acentuada tendência de
encarceramento. Assim, os dados do Anuário reforçam a existência de um
movimento mais amplo de endurecimento penal, que perpassa todo o
sistema de justiça e independe da idade dos infratores. Deve-se considerar
também a pouca penetração da doutrina da proteção integral no ensino
jurídico, de modo que as especificidades do direito e da justiça juvenis são
pouco tratadas na formação dos futuros operadores desse sistema. Em
segundo lugar, as medidas privativas de liberdade podem ser usadas pelos
operadores como instrumentos de política criminal em resposta aos
sentimentos de medo e insegurança da população e à ausência ou
ineficácia de políticas preventivas implementadas pelo poder executivo.
(2013, p.83)

Portanto, a possibilidade do SINASE de efetivar-se como estratégia de


enfrentamento desta realidade seria na concretização de seus princípios que
referem sobre a primazia de MSEs em meio aberto (no que diz respeito

73
Fonte da pesquisa: <http://www.cnj.jus.br/busca?termo=unidades+de+interna%C3%A7%
C3%A3o+de+adolescentes>.
97

principalmente ao direito à convivência familiar e comunitária - ECA), em detrimento


da privação de liberdade, podendo talvez reduzir a lógica punitiva. Porém a
precarização destes espaços (CREAS/SUAS) e o aumento de MSEs - também no
meio aberto - acarretam maior dificuldade deste princípio ser consolidado.
Mesmo com todas as normativas internacionais embasadas em concepções
de direitos humanos, nas quais a da Doutrina da Proteção Integral se embasou, as
MSEs seguem sendo um campo “tenso” de disputas por projetos societários: o
projeto de lutas por uma democracia plena e o projeto privatista de sociedade -
vinculado ao projeto hegemônico do capital. Enquanto o primeiro expressa a defesa
de direitos por um segmento de militantes e profissionais da área, o segundo
expressa um desejo por repressão e culpabilização individual dos jovens
denominados “perigosos”. Ignora-se que o adolescente que executou o delito é
formado socialmente por elementos fetichizadores e alienantes, típicos da sociedade
capitalista madura. (Mészáros, 2002). Neste sentido, também cabe salientar a
análise abaixo:

É possível dizer que as imbricações próprias da consolidação dessa política


apresentam dois níveis de tensão predominantes: um deles se daria nos
campos da gestão da justiça e da assistência, a partir das negociações
entre projetos de sociedade antagônicos e concepções de cidadania, que
são parcialmente incorporados no atendimento à infância no Brasil. Em
outro nível estariam as tentativas políticas de produzir ações
universalizantes para esse segmento e sua colisão com a estruturação de
um atendimento especializado dedicado aos infratores, devendo considerar
ainda a inexistência de condições objetivas para a concretização da
doutrina da proteção integral nesse contexto (MOREIRA, 2011, p.109).

Através da apreensão dos elementos que constituíram a cultura punitiva na


formação social brasileira, podemos perceber que mesmo com o “avanço” legal
expresso pela aprovação do ECA, pós-Constituição Federal de 1988, a questão das
políticas para crianças e adolescentes permanece com seu caráter divisório entre as
“ricas” e pobres. As relações entre pobreza e criminalização permaneceram, como
também se recrudesceram no âmbito atual. Não estamos afirmando que são os
adolescentes pertencentes às classes subalternas que cometem mais “delitos” ou
“atos infracionais”. Pelo contrário, queremos demonstrar que os determinantes da
criminalização dos pobres e da seletividade do sistema penal (e aqui as MSEs) são
um instrumento central e eficaz no “controle social” dos descartáveis ao capital. “A
tendência de naturalizar a questão social é acompanhada da transformação de suas
manifestações em objeto de programas assistenciais focalizados de combate à
98

pobreza, ou em expressões da violência dos pobres, cuja resposta é a segurança e


a repressão oficiais” (IAMAMOTO, 2001, p. 17)
Na compreensão da realidade atual, percebemos a atualização de elementos
balizadores na formação social brasileira, na relação com a histórica constituição da
não efetivação de direitos universais. Nesta relação dialética entre presente-
passado, e passado-presente, verifica-se o recrudescimento da cultura punitiva na
especificidade dos adolescentes que cumprem MSEs.

2.2 A seletividade das mses e a construção do mito das “classes perigosas”

Quanta riqueza por aí, onde que está? Cadê sua fração? Até quando
esperar, até ajoelhar esperando a ajuda de Deus!
(Trecho da música “Até quando esperar” da banda PLEBE RUDE, 1985)

Através da apreensão histórica de elementos punitivos no trato de crianças e


adolescentes pobres no Brasil, foi possível constatar que na sua maioria não foram
superados, mas, sim, intensificados nos dias atuais, no período de crise e
restauração do capital, tendo impactos bárbaros para a população mais frágil, e/ou
mais desprotegidas. O foco de nossa investigação refere-se ao período Garantista,
após Constituição Federal/1988 e da aprovação do ECA /1990. Como já
mencionado, a não efetivação de direitos e conquistas foram limitadas pelas
questões históricas não “resolvidas”, bem como pelo advento do neoliberalismo,
introduzido no Brasil “a partir da década de 1990, a pragmática neoliberal teve claras
consequências: aumento da concentração de riqueza, avanço dos lucros e ganhos
do capital, incrementados com a privatização de empresas públicas, além de
deslanchar a desregulamentação dos direitos do trabalho. Foi assim com Collor e
FHC” (ANTUNES, 2017, p. 2). Bem como obteve continuidade com os governos do
Partido dos Trabalhadores (PT), mais próximos ao social-liberalismo, incorporando
uma política “policlassista fortemente conciliadora, preservando e ampliando os
interesses das frações burguesas” (Idem, 2016, p.2). Em que pese a inclusão de
programas sociais, como o bolsa família, dirigido à população mais empobrecida, os
pressupostos fundamentais do neoliberalismo foram preservados, não se alterando
99

a perspectiva das desigualdades sociais, pelo contrário, a concentração de renda


nas mãos de poucos obteve um crescimento significativo, através de lucros e
dividendos provenientes de incentivos do Estado para o poder privado.

(...) nos últimos trinta anos, o modo de produção capitalista experimentou


transformações de monta, que se refrataram distintamente nas diversas
formações econômicas – sociais em que se concretiza e que exigem
instrumentos analíticos e heurísticos mais refinados. Ainda que se registrem
polêmicas acerca da natureza e das complexas implicações dessas
transformações, bem como do ritmo em que levam o modo de produção
capitalista a aproximar-se dos seus limites estruturais, duas inferências
parecem-me inquestionáveis: 1°) nenhuma dessas transformações
modificou a essência exploradora da relação capital/trabalho; pelo contrário,
tal essência, conclusivamente planetarizada e universalizada, exponencia-
se a cada dia; 2°) a ordem do capital esgotou completamente as suas
potencialidades progressistas, constituindo-se, contemporaneamente, em
vetor de travagem e reversão de todas as conquistas civilizatórias (NETTO,
2012, p. 8).

Na particularidade brasileira, as permanentes desigualdades sociais e dessas


as expressões da “questão social”, tendo a pobreza como elemento central, e por
outro lado a concentração de renda e riqueza, sendo dois pilares constitutivos da
expansão/crise capitalista, possui marcas inalienáveis e se recrudescem na
atualidade. Vivemos, então, um período marcado pela consolidação da hegemonia
“(...) ultra neoliberal. Sua principal finalidade: privatizar tudo que ainda restar de
empresa estatal, preservar os grandes interesses dominantes e destroçar os direitos
trabalhistas” (ANTUNES, 2017, p.3). Compreende-se a “(...) questão social
indissociável do processo de acumulação e dos efeitos que produz sobre o conjunto
das classes trabalhadoras” (IAMAMOTO, 2001, p. 11). Gera-se, então, uma
população sobrante, pessoas não “empregáveis” ou inseridas em trabalhos informais
e temporários, ou em nenhuma destas opções, vivendo através dos programas de
assistência social, como o programa bolsa família, por exemplo.

A violência da pobreza é parte de nossa experiência diária. Os impactos


destrutivos das transformações em andamento no capitalismo
contemporâneo vão deixando suas marcas sobre a população empobrecida:
o aviltamento do trabalho, o desemprego, os empregados de modo precário
e intermitente, os que se tornaram não empregáveis e supérfluos, a
debilidade da saúde, o desconforto da moradia precária e insalubre, a
alimentação insuficiente, a fome, a fadiga, a ignorância, a resignação, a
revolta, a tensão e o medo (...) (YASBEK, 2001, p.35).

Podemos afirmar, deste modo, que na maioria dos adolescentes que


cumprem MSEs, através da expressão da realidade socioeconômica de suas
famílias, estão incluídas neste grupo, acrescentaria aqui, a “pilhagem” e outras
100

formas de busca pela sobrevivência, entre elas o trabalho74 no tráfico de drogas. A


“questão social” passa “a ser objeto de um violento processo de criminalização que
atinge as classes subalternas. Recicla-se a noção de ‘classes perigosas’ – não mais
laboriosas -, sujeitas à repressão e extinção”. (Iamamoto, 2001, p. 17) “Evoca o
passado, quando era concebida como caso de polícia, ao invés de ser objeto de
uma ação sistemática do Estado no atendimento às necessidades básicas da classe
operária e outros segmentos trabalhadores” (Idem, 2001, p. 17). Então, “novos”
determinantes são acionados a partir de “velhos” processos de “controle social” da
população “pobre”, onde mecanismos punitivos, policialescos e genocidas são
acionados.
Consideramos fundamental o aprofundamento da Lei Geral da Acumulação
em Marx, na relação com os processos atuais de restauração do circuito do capital,
porém buscando mediações com as expressões atuais da mundialização do capital
no solo brasileiro, e com a reestruturação produtiva a fim de demonstrar que a atual
legislação (o ECA) e, consequentemente, as MSEs se efetivam pela via da cultura
punitiva como políticas de gerenciamento desta população de adolescentes. As
transformações ocorridas no capitalismo mundial a partir da década de 1970 e no
Brasil, que se intensificaram a partir da década de 1990, expressam uma série de
fenômenos contemporâneos, os quais indicam o término das possibilidades
civilizatórias da ordem tardia do capital, restando apenas soluções “barbarizantes
para a vida social” (NETTO, 2012, p.10).
Dentre essas transformações já mencionadas anteriormente, destacamos a
esfera da cultura, pois “jamais a decadência ideológica estudada por G.Lukács
(2010) atingiu tal grau de profundidade e a manipulação das consciências pela mídia
atingiu tal magnitude (...)” (NETTO, 2012, p. 10), repercutindo nas formas de
enfrentamento das expressões da “questão social”. Verifica-se, desta forma, na
contemporaneidade, a intensificação das “políticas de segurança pública em
períodos de paz formal e se estende como negócio capitalista privado à vida na paz
e na guerra, configurando a emergência da militarização da vida social” (Idem, 2012,
p.10), no cotidiano, sendo acionados os tentáculos punitivos, mantendo–se os
históricos e renovando novos aparatos de “controle social” dos pobres.

74
Sobre este debate, aprofundaremos no próximo capítulo.
101

Para compreendermos o processo da “decadência ideológica” na atualidade,


é preciso compreender o projeto da modernidade e de sua crise, ou seja, a lógica
cultural que dá sustentação ideológica à atual fase do capitalismo, denominada de
pós-modernidade. Precisamos, então, compreender o significado revolucionário da
modernidade para a vida dos homens e as distintas reações conservadoras a este
processo. A modernidade resulta do projeto iluminista, definida como um momento
histórico específico, considerando a importância do homem como ser racional,
responsável pela reflexão sobre si e sobre sua realidade. Estas ideias marcaram
definitivamente a modernidade, pois foram responsáveis por impulsionar duas
grandes revoluções: a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Industrial, na
Inglaterra. Conforme Harvey (1996), o pensamento iluminista abraçou a ideia do
progresso e buscou a ruptura com a tradição, principalmente vinculada à religião. Foi
um movimento secular que procurou desmistificar essas tradições na busca do
conhecimento baseado na ciência e, a partir do mesmo, a perseguição de uma
possível sociedade “igualitária” e verdadeiramente “livre”.
Foi também a partir desse processo histórico e da constituição da sociedade
burguesa e de sua sociabilidade que foi possível a visibilidade do homem como ser
social, pela sua capacidade de reflexão (pensamento, consciência, espírito),
objetivação sobre suas reflexões, sendo a principal delas o trabalho (tanto no âmbito
mais simples ao mais complexo), capacidade de socialização através da formação e
do aprendizado e sua universalização. Bem como foi a partir da sociedade burguesa
que o homem passou a buscar uma maior compreensão sobre a vida, a natureza e a
realidade na qual estava inserido, para tanto nasce a teoria social. A natureza
humana e seu elemento teleológico através do conhecimento busca desvelar o
mundo e transformá-lo, este processo e sua visibilidade marcou o processo da
modernidade.
Conforme Rouanet (1993), na produção o “Mal-estar na modernidade”,
menciona que a proposta civilizatória da modernidade só poderia se realizar através
de três elementos fundamentais: da universalidade, da individualidade e da
autonomia. Nesta direção, cabe destacar que a ilustração, definida como programa
sociocultural da modernidade, contém uma determinada concepção de razão. Esta
engloba três formas de conhecer a realidade: a intuição (saber imediato), a
intelecção (o entendimento, próprio da razão analítica) e razão dialética (Hegel).
Embora a racionalidade moderna seja constituída por estas três formas (articuladas)
102

de conhecer a realidade, é importante ressaltar que as necessidades colocadas à


expansão capitalista propiciaram um desenvolvimento extraordinário da intelecção.
Porém é relevante destacar que existiu uma contraditoriedade entre a razão
moderna e a conjuntura sócio-histórica, que possibilitou a sua construção: o
processo global da revolução burguesa. Portanto, com a consolidação da sociedade
capitalista, o projeto da modernidade foi perdendo densidade e se distanciando do
seu objetivo principal: a emancipação humana.

Na consolidação desse processo, a burguesia abandona seus anseios


revolucionários e passa a ser conservadora, defensora do liberalismo, onde a
“ideologia burguesa degenera num liberalismo vil e disposto aos compromissos”
(LUKÁCS, 2010, p. 56). Inicia-se um processo de ocultação (o que Marx através do
exame crítico da decomposição da economia clássica, ou seja, da sociedade
burguesa denominou de economia vulgar, onde a burguesia abandona as bases da
produção e analisa apenas a circulação, encobrindo, então, a exploração do
trabalho) da realidade e das contradições inerentes ao desenvolvimento capitalista.

Como historiador e crítico da economia clássica, Marx descobriu e


escreveu, pela primeira vez, a história dessa decomposição. A
caracterização sumária dessa decomposição, feita por Marx no que diz
respeito ao período 1820-1830, torna-se ao mesmo tempo uma exposição e
uma crítica rica e multilateral da decadência ideológica da burguesia. Esta
tem início quando a burguesia já domina o poder político e a luta de classes
entre ela e proletariado se coloca no centro do cenário histórico (LUKÁCS,
2010, p. 51).

Veremos, deste modo, que com o avanço e expansão capitalista a


“decadência ideológica” se amplia, fortalecendo os anseios burgueses. As
transformações ocorridas no capitalismo mundial, como já explicitamos, expressam
uma série de fenômenos contemporâneos, que indicam o término das possibilidades
civilizatórias da ordem tardia do capital. A crise estrutural do capitalismo amplia sua
capacidade de destruição, bem como de dominação:

Adentramos, então, no início da década de 1970, em uma profunda crise


estrutural: o sistema de dominação do capital chafurdava em todos os
níveis: econômico, social, político, ideológico, valorativo, obrigando–o a
desenhar uma nova engenharia da dominação (ANTUNES, 2017, p. 1).

A decadência ideológica “foge covardemente da expressão da realidade e


mascara a fuga mediante o recurso ao “espírito científico objetivo” ou ornamentos
românticos” (LUKÁCS, 2010, p. 61), onde apreende a realidade de forma acrítica,
103

fixando-se na imediaticidade dos fenômenos, não indo além, não aprofundando as


contradições da sociedade capitalista. O conhecimento superficial repercute no
âmbito da análise da realidade, mas principalmente nas respostas dadas às
problemáticas da vida burguesa, sendo muitas vezes respostas no âmbito
transformista e ou que não irão produzir alterações estruturais, mas superficiais.
Essas transformações que “desbordam amplamente os circuitos produtivos: elas
envolvem a totalidade social, configurando a sociedade tardo-burguesa que emerge
da restauração do capital operada desde fins dos anos 1970” (NETTO, 2012, p. 2).
Para que essa valorização do capital ocorresse, foi necessária a centralidade de
políticas de controle sobre o trabalho e de ataque aos direitos adquiridos pelos
trabalhadores ao longo da história. Para tanto, foi fundamental a ofensiva ideológica,
que intensifica valores do liberalismo (individualismo e competição) na fase da
acumulação flexível do capital, cumprindo enquanto mercadorias a dupla função: de
buscar novos espaços de produção da mais valia e a reprodução social do sistema
de valores que legitimam o capitalismo como forma de organização da produção
(SANTOS, 2007, p. 29). Conforme a autora:

Tudo é cada vez mais mercantilizável, inclusive os males que o próprio


capitalismo produz. Os tranqüilizantes químicos tem seu consumo em alta.
A indústria da segurança privada é alimentada pela violência urbana. Os
seguros-saúde fazem parte de um mercado que lucra com o
desmantelamento do sistema público de saúde e das políticas de prevenção
de doenças; isso para não falar da indústria farmacêutica. A educação,
também sofrendo os mesmos ataques, torna-se artefato de luxo (SANTOS,
2007, p. 29).

A perspectiva que envolve o arcabouço teórico na área da criança e do


adolescente, aqui na particularidade dos adolescentes inseridos nas medidas
socioeducativas, é muito ampla. Acreditamos estar também relacionada à
perspectiva da decadência ideológica, onde na maioria das vezes a centralidade de
classe social sai de cena para ingressar a “vulnerabilidade social”, a “exclusão
social”, bem como as denominações adolescentes em “situação de risco” social,
como já mencionado. Cabe destacar que consideramos estes jovens como
expressão da “questão social” e desta forma estão sim vulneráveis: à pobreza, à
morte, à punição, ao cárcere. Porém o que se percebe é que estas formas de
decifrar encobertam a questão central da luta de classes, bem como direcionam a
sua resolução para ações paliativas e superficiais e também alimentam a cultura
punitiva.
104

Inserida neste bojo de transformações, suscitadas acima, a intensa influência


da “decadência ideológica” produziu no Brasil alterações conceituais sobre a visão
da pobreza, contribuindo para a intensificação da criminalização dos pobres, bem
como de sua naturalização. Sendo assim, a pobreza passa a ser decifrada de forma
fragmentada, descontextualizada dos debates estruturais, contribuindo para o
acirramento da seletividade racial, classista e moral, através de práticas
criminalizadoras, estando aqui inseridos os adolescentes pobres que cumprem
MSEs.

Cabe destacar que na visão do social liberalismo, “o pauperismo não


deveria ser atribuído à dinâmica da acumulação capitalista e a inserção
subordinada do Brasil no mercado mundial – como fazem as pesquisas
baseadas na perspectiva da totalidade -, mas, sim, às falhas de mercado e
não dotação de certos ativos por parte dos pobres (CASTELO, 2012, p. 64).

Este processo esteve presente ao longo da formação brasileira, porém na


atualidade intensifica-se tanto no âmbito de suas expressões como na fragmentação
de suas análises, bem como “(...) na forma e no tratamento dado aos ‘pobres’, que
soa renomeados por suas fragilidades, descontextualizados, des-historicizados,
aparecendo no discurso tecnocrático reconstituídos por um novo tipo de vigilância
moral” (MAURIEL, 2012, p. 181). Nos últimos anos, a:

“questão social” brasileira, do ponto de vista da nossa péssima distribuição


de renda e riqueza, permaneceu formalmente inalterada. Alguns estudos
apontam inclusive que ela chegou mesmo a se deteriorar, caso se estude a
concentração de terra no país. Já o estado da arte mudou bastante com a
miséria ideológica da economia neoclássica do bem-estar (CASTELO,
2012, p. 62).

Nessa direção, é importante decifrarmos a lei geral da acumulação na sua


forma contemporânea, observando as particularidades da formação social de cada
sociedade, já trabalhado no capítulo anterior. A respeito disso, Netto (2013) afirma
que:

Precisa levar em conta a complexa totalidade dos sistemas de mediações


em que ela se realiza. Sistemas nos quais, mesmo dado o caráter universal
e planetarizado daquela lei geral, objetivam-se particularidades culturais,
geopolíticas e nacionais que, igualmente, requerem determinação concreta.
Se a lei geral opera independentemente de fronteiras políticas e culturais,
seus resultados societários trazem a marca da história que a concretiza. Isto
significa que o desafio teórico acima salientado envolve, ainda, a pesquisa
das diferencialidades histórico-culturais (que entrelaçam elementos de
relações de classe, geracionais, de gênero e de etnia constituídos em
formações sociais específicas) que se cruzam e tensionam na efetividade
social (NETTO, 2013, p. 19).
105

Na conjuntura socioeconômica mundial, a perspectiva de “exclusão social” de


grande parte da população se intensifica – fenômeno que não é recente, mas, sim,
inerente ao capitalismo (caracterizado por Marx [1980] como a produção do “exército
industrial de reserva”, assim como de uma população supérflua) e à apropriação de
grandes taxas de mais-valia pelo capital. Quando referimos que esta é inerente ao
capitalismo, buscamos ressaltar que a produção de uma população sobrante
constitui a engrenagem do processo de acumulação. Neste sentido, Marx (1980)
afirma que:

(...) se uma população trabalhadora excedente é produto necessário da


acumulação ou do desenvolvimento da riqueza no sistema capitalista, ela se
torna por sua vez a alavanca da acumulação capitalista, e mesmo condição
de existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército
industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão
absoluta como se fosse criado e mantido por ele. Ela proporciona o material
humano a serviço das necessidades variáveis de expansão do capital e
sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do
verdadeiro incremento da população (MARX, 1980, p. 733).

Está na base constitutiva da lei geral da acumulação a produção de


população excedente, pois, “(...) a verdade é que a acumulação capitalista sempre
produz, e na proporção de sua energia e de sua extensão, uma população
trabalhadora supérflua relativa, isto é, que ultrapassa as necessidades médias da
expansão do capital” (MARX, 1980, p. 731). Esse ponto também é desenvolvido na
análise de Menegat (2013):

No desenvolvimento da produção industrial foi sendo formada, por este


processo, uma população de reserva para as necessidades e oscilações do
ciclo econômico e para as suas expansões. Para o capital, é importante ter
esta reserva, tanto para não se ver na situação de ter que abandonar uma
possibilidade real de investimento e expansão por falta de trabalhadores,
como para não ser demasiadamente pressionado pelas reivindicações de
aumentos salariais e melhoras das condições de trabalho das massas
operárias, o que colocaria em risco sua taxa de lucro (MENEGAT, 2013, p.
89).

Para compreendermos a lógica contemporânea, é importante destacarmos


elementos e categorias que fazem parte do modo de produção capitalista, sendo
necessário decifrar seus fatores mais importantes que se apresentam no curso do
processo de acumulação. Marx demonstra que:

O acréscimo do capital variável é então índice de mais trabalho, mas não de


mais trabalhadores empregados. Cada capitalista tem absoluto interesse de
extrair determinada quantidade de trabalho de menor número de
106

trabalhadores, desde que o custo salarial de maior número seja igual ou até
menor (MARX, 1980, p. 737).

Todavia, na atualidade, no contexto de crise, como já mencionado, as


transformações ocorridas no capitalismo mundial e na sequência no Brasil, pelas
suas particularidades históricas, essa restauração altera a forma, e hoje temos um
“exército industrial de reserva” que não será “recrutado” e inserido, mas descartado,
pois conforme Mészáros:

(...) a questão do desemprego também foi significamente alterada para pior.


Ele já não é limitado a um “exército de reserva” à espera de ser ativado e
trazido para o quadro de expansão produtiva do capital, como aconteceu
durante a fase de ascensão do sistema, por vezes uma extensão
prodigiosa. Agora a grave realidade do desumanizante desemprego
assumiu um caráter crônico, reconhecimento até mesmo pelos defensores
mais acríticos do capital como “desemprego estrutural”, sob a forma de
autojustificação, como se ele nada tivesse que ver com a natureza perversa
do seu adorado sistema (MÉSZAROS, 2003 p. 22).

É constatado, então, que os sujeitos em foco neste estudo, para além de


estarem vinculados na sua maioria a esse grupo (desemprego estrutural), em sua
maioria nunca estiveram vinculados a algum tipo de emprego formal. Estas
determinações serão expostas a seguir.
A realidade da criminalização dos adolescentes pobres é confirmada por
recente pesquisa elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA,
2015)75, sobre o cumprimento da MSE de privação de liberdade no Brasil. O estudo,
que teve por intuito desconstituir o mito da impunidade em relação a este segmento,
demonstra que os adolescentes são responsabilizados pelos atos infracionais que
cometem. A pesquisa traz um recorte de quem são esses adolescentes que estão
em conflito com a lei cumprindo MSEs com restrição de liberdade:

Em 2013, 95% eram do sexo masculino e 60% deles tinham idade entre 16
e 18 anos. Dados de 2003 indicam que mais de 60% dos adolescentes
cumprindo pena (MSE de privação de liberdade) nesse ano eram negros,
51% não frequentavam a escola e 49% não trabalhavam quando

75
É importante frisar que obtivemos dificuldades em acessar dados sobre o perfil socioeconômico
dos jovens que cumprem MSEs, tanto pela pouca pesquisa e sistematização dos dados, bem como
pela lógica de que o que envolve dados sobre “criança e adolescente” é considerado pela legislação
como “segredo de justiça”. Questão que muitas vezes acaba sendo utilizada como “desculpa” para a
não divulgação e ou sistematização dos mesmos. Consideramos talvez os dados do IPEA como
“pouco” eficazes para traduzir a seletividade do sistema na relação com a pobreza, porém
entendemos que nenhuma ideologia é separada da questão econômica e com isso a comprovação
também se dá na relação com os demais dados expostos, bem como será aprofundado no próximo
capítulo.
107

cometeram o delito. 66% deles viviam em famílias consideradas


76
extremamente pobres.

Por outro lado, a lógica da criminalização e da produção de consensos a partir


do senso comum, que clama por mais prisões e pela redução da maioridade penal
de adolescentes, os dados do DEGASE (Departamento Geral de Ações
Socioeducativas do RJ) demonstram quais eram os atos infracionais cometidos por
adolescentes que se encontravam privados de liberdade no ano de 2012, no Estado
do Rio de Janeiro:

Figura 2 – Tipificação dos Atos Infracionais dos adolescentes privados de Liberdade


no Estado do Rio de Janeiro

Fonte: DEGASE, 2014.

Ao contrário do que grande parte da sociedade pensa, os dados acima


demonstram que o maior índice de atos infracionais cometidos por adolescentes
estão relacionados ao tráfico de drogas e não a atos de violência contra a pessoa. O
alto índice de envolvimento de adolescentes no tráfico de drogas sugere a busca por
alternativas (ou única) de renda para sustento e consumo familiar. Também
contradiz o próprio ECA e SINASE na primazia e no investimento em medidas em
meio aberto, ficando para a privação de liberdade atos infracionais cometidos
através de grave ameaça. Cabe uma discussão, então, ou análise quanto à relação

76
Pesquisa divulgada durante o processo de debate e votação da pauta da redução da maioridade
penal no Congresso Nacional (2015). Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=25620&catid=10&Item
id=9> .
108

tráfico de drogas, criminalidade e comércio, bem como sobre as políticas antidrogas,


questões que serão aprofundadas no quarto capítulo.
Os dados do Anuário de Segurança Pública também expressam esta
realidade: a porcentagem de adolescentes privados de liberdade por tráfico de
drogas, 26,6% do total nacional, ficando em segundo lugar como motivo da privação
de liberdade. O roubo, por sua vez, manteve-se como “principal motivo para a
privação de liberdade na maior parte do país, não obstante as ocorrências de tráfico
de drogas, sobretudo nos Estados da Região Sudeste” (Anuário de Segurança
Pública, 2013, p. 83).
O envolvimento dos adolescentes no tráfico de drogas e em roubos, como
demonstram os dados do DEGASE e do Anuário, revela–se como mais um
determinante deste objeto múltiplo de determinações, como partícipe a ser
desvelado no processo instrumental de perpetuação das desigualdades sociais,
através da cultura punitiva. Podemos considerar, deste modo, que, em grande parte,
estes adolescentes buscam nestas atividades ilícitas a sobrevivência através de
uma renda para si e suas famílias, bem como formas de inserção na sociedade de
consumo. Apesar dos poucos estudos identificando o “perfil” socioeconômico das
famílias dos adolescentes que cumprem MSEs, podemos afirmar que os mesmos
pertencem a camadas que representam a extrema pobreza, sendo representantes
das classes subalternas, como já mencionado anteriormente. A luta de classe se
apresenta, apesar de ser encoberta também por elementos fetichizados das formas
jurídicas.
Roubos acabam entrando na circulação das mercadorias (sistema
capitalista), aponta como uma espécie de acumulação primitiva
contemporânea, assim como o tráfico de drogas chama de processo
inverso; invés de redistribuição de riquezas, acumulação de riquezas nas
mãos de poucas pessoas que continuam fazendo fortuna em cima dos
riscos que essas atividades impõem aos nelas envolvidos (ZALUAR, 1996,
p. 99).

Nesta relação, cabe reafirmar que o modo de produção capitalista requer


acumulação através da extração da mais valia produzida pela venda da força de
trabalho. As transformações recorrentes (crises e suas estratégias para perpetuar a
acumulação) não alteram sua gênese, vinculada à produção-distribuição-troca-
consumo, isso por meio da busca de novos mercados e da criação de novas
necessidades, estando a mercadoria no centro desse processo. Conforme Marx
(1980):
109

O capital produz anualmente mais valia, parte da qual se agrega todo ano
ao capital original; esse acréscimo aumenta todo ano com o crescimento do
capital que já está em funcionamento, além disso, a escala da acumulação
pode ser ampliada, alterando-se apenas a repartição da mais valia ou do
produto excedente em capital e renda, se houver um incentivo especial ao
impulso de enriquecimento, como por exemplo, quando surgem novos
mercados, novas esferas de aplicação do capital em virtude de
desenvolvimento de novas necessidades sociais etc. (MARX, 1980, p. 713).

Além dos determinantes que envolvem o cometimento de atos infracionais,


como a busca de suprir necessidades básicas e novas que se impõem para estes
sujeitos, também buscam como estratégia de inserção social e econômica estes
novos mercados (venda de drogas e ou mercadorias frutos de roubos) e a partir daí
o cumprimento de MSEs.
A seletividade racial também deve ser aprofundada, como mais um elemento
constitutivo da instrumentalidade da cultura punitiva. Cabe destacar, então, a mesma
como um processo histórico, como já referido, mas que se perpetua com novos
mecanismos na atualidade, capitalismo não funciona sem racismo, encontrando no
Brasil bases para sua ampliação. Conforme Flauzina (2008):

No Brasil, país que forja uma imagem de harmonia racial tão descolada da
realidade que toma por referência, o racismo sempre foi uma variável
decisiva. O discurso racista conferiu as bases de sustento do processo
colonizador, da exploração da mão-de-obra dos africanos escravizados, da
concentração do poder nas mãos das elites brancas locais no pós –
independência, da existência de um povo superexplorado pelas
intransigências do capital. Em suma, o racismo foi amparo ideológico em
que o país se apoiou e se apóia para se fazer viável. Viável, obviamente,
nos termos de um pacto social radicalmente fundamentado, do qual as
elites nunca abriram mão (FLAUZINA, 2008, p. 17).

Na direção da perpetuação da criminalização como instrumento de controle e


legítimo da classe dominante sobre os pobres, a seletividade perpassa pela
construção de consensos entorno da perspectiva da pobreza e do racismo. Obtendo
uma junção entre raça e classe, que se construiu historicamente nesta latitude. Se
após a abolição da escravatura foram excluídos do processo de desenvolvimento do
capitalismo, na atualidade, a segregação se manteve e se amplia. Consideramos
que houve alguns avanços, como a política de cotas, por exemplo, porém o mito de
uma democracia racial se impõe diante dos dados sobre a péssima distribuição de
renda, sobre homicídios e encarceramento dos negros e pobres no Brasil. Neste
sentido, cabe destacar que elementos como manutenção do status quo referente a
níveis de pobreza e/ou subalternidade que abarca, em sua maioria, os negros,
representa também uma forma de controle e segregação desta população.
110

Outra dimensão da precariedade que foi desenhada como forma de controle


e extermínio desse contingente está relacionada ao nível de pobreza a que
está exposta a população negra. As questões anteriormente suscitadas,
apresentando a disposição do Estado em privilegiar o segmento branco,
com investimentos direcionados aos imigrantes e aos nacionais, em
contraposição às estratégias de exclusão empreendidas contra o segmento
excluído, da vedação ao acesso à terra aos obstáculos que se impuseram
entre os negros e as salas de aula, explicam a existência de realidades tão
distintas na concentração de renda desses dois setores (FLAUZINA, 2008,
p.118).

A pesquisadora Flauzina (2008) nos traz elementos importantes para pensar


a criminalização de negros e pobres:

(...)acionando os códigos sociais mais elementares na estigmatização dos


indivíduos – dos excessos caricatos da Polícia à austeridade do Ministério
Público e do Judiciário -, a clientela do sistema penal vai sendo
regularmente construída de maneira tão homogênea e harmônica que de
nada poderíamos suspeitar. Sempre os mesmos, sempre pelos mesmos
motivos, os criminalizados parecem representar a parcela da humanidade
que não cabe no mundo. Mas a ideia de inadequação dos indivíduos,
forjada pelos mecanismos de controle penal, acaba por reverter sua
vocação estigmatizadora, manuseada para a reprodução da violência
estrutural. Constatadas as seletividades quantitativa e qualitativa como
pressuposto da atuação do sistema penal, salta ao olhos um instrumento
que, em todo o mundo, pelo uso ostensivo da violência, opera em prejuízo
dos grupos vulneráveis, visando à manutenção do status quo (FLAUZINA,
2008, p. 33).

O debate sobre uma possível democracia racial no Brasil, através de uma


abertura para a inclusão dos negros ao acesso de “oportunidades”, não altera a
realidade destes sujeitos na sociedade brasileira, pelo contrário, deflagra um
recrudescimento da onda criminalizante e de ações de extermínio contra esta
população através da polícia, milícias, grupos racistas, bem como através do
sistema penal e das MSEs. Nesta direção, corroboramos com Flauzina (2008) sobre
a existência de um projeto histórico de genocídio contra os negros, estando na base
de um projeto de Estado assumido desde a abolição da escravatura, com o qual
nunca se rompeu efetivamente, e o sistema penal com seus eventos violentos tem
servido como estratégia de materialização de uma política genocida, ancorada pelas
intervenções policias. Processo este partícipe da lógica de gerenciamento de uma
população pobre, negra e jovem, sendo elemento central da cultura punitiva e
instrumental da manutenção das desigualdades sociais.

De fato, estamos numa pactuação do final do século XIX, feita entre


Abolição e República, com a finalidade precípua de se formatar os termos
do contrato que se estabelece entre velha necessidade de manter os termos
do pacto social e a nova demanda por extirpação. Desde então, o Estado se
movimenta para assegurar a ordem social conservadora, mantendo – a
111

intacta em termos raciais e, ao mesmo tempo, para transformar o caráter


dessa mesma ordem, eliminando os indivíduos que a ameaçam pela afronta
que sua existência representa ao ideal abraçado pelas elites. É por dentro
desta dupla exigência, de caráter flagrantemente complementar, que o
genocídio toma forma e expressão, garantido pelo discurso da convivência
pacífica entre as raças (FLAUZINA, 2008, p.147).

Na esteira de determinantes que compõem a cultura punitiva nas MSEs, em


especial, a seletividade é percebida através do perfil destes jovens que são privados
de liberdade, na sua maioria, pobres, negros e moradores da periferia, como já
referido. Respondendo ao apelo midiático da responsabilização de grande parte da
violência na sociedade a estes jovens.
O papel da mídia constitui um dos elementos centrais na abordagem dos
determinantes criminalizadores e seletivos deste processo, ou seja, funciona como
uma grande engrenagem da cultura punitiva. Denominada de “Criminologia
midiática”, por Raúl Zaffaroni (2012), pois é estratégica na acentuação dos
estereótipos e preconceitos discriminatórios, ocorrendo de forma circular,
retroalimentando os discursos punitivos. Nesta direção, destacamos o estudo de
Pedrinha (2015)
A mídia instrumentaliza a produção imagética do terror, constrói alegorias
na difusão do medo, através do papel disciplinador que exerce. Por ela
visualiza-se a espetacularização do medo do crime e do criminoso,
amoldado no estereótipo difundido. Assim, a mídia mantém vivo o medo
brando das almas negras, apontado por Sidney Chalhoub, reminiscências
da época da escravatura, quando no imaginário social das elites, habitavam
negros insurgentes e rebeldes, que queriam se libertar e se apossar dos
bens (PEDRINHA, 2015, p. 222).

Cabe também dizer que a mídia reproduz tanto estas questões77, que muitos
78
dados acabam sendo importantes para deflagrar este processo e também foram
utilizados como fonte de pesquisa para esta tese, sendo considerada “(...) o arquivo
por excelência. O registro diário dos fatos, cada vez mais rico e abundante, fornece
informações preciosas sobre os valores, as ideologias, a percepção dos temas e
problemas sociais, o funcionamento das instituições e as práticas sociais” (FREIRE,
2014, p. 67).

Conforme Zaffaroni (2012), a criminologia midiática refunda o neopunitivismo,


pois difunde juntamente com a globalização ao vincular um mundo “ficcional, com

77
Sobre o debate do papel da mídia como produção de uma “manufatura do consenso” e como
“aparelhos hegemônicos”, ver os resultados das pesquisas de FREIRE (2014).
78
Sobre os discursos utilizados pela mídia, ver pesquisa de Marco Antonio Viera e Sá “Mídia e
letalidade do Sistema Penal: marcas discursivas do jornal Meia Hora” (2014 p. 73)
112

pessoas decentes frente a uma massa de criminosos maus, estereotipados como


‘eles’” (PEDRINHA, 2015, p. 224). Os estudos de Freire e Carvalho (2007)
corroboram com esta perspectiva considerando que a mídia não contribui apenas
com a criminalização, mas também engendra explicações sobre o crime de forma
isolada, produzindo consensos e um forte senso comum sobre a necessidade de
punição, pois o:
(...) compromisso da mídia, cujos órgãos informativos integram grandes
grupos econômicos de telecomunicações, com o interesse do ajuste
neoliberal é a chave para a compreensão desse vínculo. A segurança
pública, hoje em dia, é um dos mais novos “filões” para as privatizações,
cujo foco agora encontra nos presídios. Para garanti-la, vários grupos
privados enriquecem proporcionando seguranças particulares e dispositivos
de proteção. Nestas condições, todo discurso que propõe a maioridade
penal e a pena capital são bem aceitos, gerando na população uma tensão
profunda entre a notícia dos crimes e o desejo de sentenças exemplares
(2007, p. 111).

Na perspectiva deste estudo, como forma de conhecer e problematizar a


realidade, os dados que expressam uma intensificação da cultura punitiva merecem
um olhar crítico e atento. Onde a mídia reproduz notícias com o intuito de reforçar o
caráter punitivo. Recentemente na cidade de São Paulo, dois meninos, um de 10 e
outro de 11 anos de idade, cometeram um roubo de um carro no bairro Morumbi,
região nobre da cidade. Fugiram no carro roubado, foram perseguidos pela polícia e
o menino de 10 anos foi morto com um tiro na cabeça. As notícias que se seguiram
sobre o fato é de que o menino de 10 anos estava portando uma arma, depois veio a
dúvida: estava armado, mas não atirou. A história familiar é de que seu pai está
preso, sua mãe já esteve presa, e ele mesmo trabalhava como engraxate no
aeroporto da cidade. Teve várias passagens por abrigos, onde fugia. Os meninos
tinham 10 e 11 anos de idade! Em uma nova página desta história, a perícia
“concluiu que não houve disparo de dentro do carro onde estavam os meninos,
como alegou a polícia, bem como a cena do ato foi alterada”79.
Este fato não é um caso isolado no Brasil, mas o que chama a atenção é a
pouca idade destes meninos, porém a questão de serem crianças não sensibilizou
nem tão pouco chamou a atenção da sociedade. O que prevaleceu nesta situação
foi a história familiar vinculada a uma possível “periculosidade” 80 determinista. Outra

79
Notícias site UOL, acesso em: 08 jan. 2016.
80
Foucault define como: A noção da periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado
pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações
113

situação exemplar ocorreu em novembro de 2015, na cidade do Rio de Janeiro,


onde cinco jovens foram mortos por tiros de fuzil provocados por policiais. Os cinco
jovens voltavam para casa, após uma festa, quando foram alvejados por mais de 100
tiros, quando estavam chegando em casa no bairro de Costa Barros, subúrbio do Rio
de janeiro81. Nos relatos, os policiais justificaram sua ação violenta na afirmação e
constatação de que os jovens estavam armados e “poderiam” ser traficantes, o que
foi desmentindo pela perícia e investigação policial após o ocorrido. Realidade que
corrobora com o relatório da organização “Human Rghts Watch” (2015), que aponta
para o Estado do Rio de Janeiro como um dos maiores em mortes causadas pela
polícia. Conforme dados divulgados, a polícia “matou cerca de oito mil pessoas na
última década na cidade, sendo 645 no ano passado (2015). Em 64 casos
analisados, a ONG encontrou provas de tentativas de acobertamento das
execuções.82
Em relação às mortes de crianças e adolescentes, a cidade de São Paulo
também possui dados cruéis. Informações da ouvidoria da polícia do Estado de São
Paulo demonstram que nos anos de 2010 a 2016 foram mortos pela polícia 191
crianças e adolescentes, sendo que 10 vítimas tinham menos de 14 anos de idade e
181 entre 14 e 16 anos de idade. Os registros envolvem casos de todos os tipos
como supostos confrontos e execuções83.
As notícias apresentadas pela mídia burguesa, como já mencionamos, podem
ser um poderoso instrumento tanto pelas análises da realidade deflagrada, mas
também pelas formas de descrever e interpretar os fatos vinculados a teorias
“lombrosianas” e a “suspeição generalizada”, que embasam a concepção de
“classes perigosas”. Reforçando, então, o “medo” e a possibilidade do “perigo”; e
com isso alimentando o apelo social pela punição, alimentando o consenso em
defesa da hegemonia dominante.
Assim como Nilo Batista afirma que existe “uma solidariedade entre a mídia e
os sistemas penais no neoliberalismo, que espraia a noção de sanção como rito

efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam
(FOUCAULT, 2003, p. 85).
81
Notícia acessada pelo portal G1 em 30 nov. 2015.
82
Disponível em: <http://extra.globo.com/casos-de-policia/policia-do-rio-matou-645-pessoas-em-
2015-diz-relatorio-da-human-rights-watch-19660373.html#ixzz4Dr3Vq3Qb>
83
Notícia acessada pelo portal UOL em 30 jun.2016.
114

sagrado para a solução do conflito” (BATISTA, 2002, p. 223). Para tanto, a mídia se
configura como mais um componente deste processo e, ao decifrarmos seus
discursos ideológicos, é deflagrada também a questão criminal como parte do ciclo
do valor, constituindo-se como um determinante econômico da cultura punitiva.
Contudo podemos afirmar que, na atual realidade brasileira, os determinantes
considerados compõem a lógica de um neopunitivismo como gerenciamento desta
população.

2.2.1 A criminalização de pobres como fundamento do trabalho na execução das


MSEs

Como já mencionado, os dados revelam que as MSEs na atualidade


participam como instrumentais para a perpetuação das desigualdades sociais,
através da criminalização dos adolescentes pobres. Cabe, então, decifrarmos como
esse processo se perpetua na execução das mesmas, sendo que o ECA e mais
recente o SINASE apresentam diretrizes84 para o trabalho com esta população, que
se dirigem à socioeducação.
Na execução das MSEs, estão presentes diferentes atores profissionais,
como assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, advogados, agentes
socioeducativos, gestores administrativos. Este processo de execução é
determinado por um juiz da Vara da Infância e Juventude, com a participação do
Ministério Público. Desta forma, diferentes saberes se encontram imbricados neste
ato, mediados por relações de poder, cujas disputas e conflitos se apresentam na
compreensão das MSEs. Estas relações de poder se expressam tanto no processo
da própria criminalização dos adolescentes como no interior das instituições que
executam a determinação judicial. Quando analisamos os dados e o perfil dos
adolescentes, nos parece óbvia a instrumentalidade desta criminalização. Porém
esta obviedade não encontra repercussão na forma como estes atores apreendem e
a criminalização dos pobres. Da mesma forma, as diretrizes da socioeducação são

84
Serão citadas e trabalhadas no próximo capítulo.
115

reiteradamente descumpridas ou transmutadas por práticas punitivas autoritárias e


excludentes e, muitas vezes, com requintes de tortura.
Neste sentido, compreendemos ser fundamental problematizarmos a
importância de uma visão crítica que contextualize a realidade destes jovens através
do reconhecimento dos mesmos como sujeitos deste processo criminalizador. Para
tanto, a compreensão do papel da prisão e da pena - vinculados com a forma como
tem sido executada as MSEs - torna-se fundamental. Destacamos, deste modo, a
criminologia crítica como um saber importante no processo de contextualização da
função da pena, prisão e da apreensão como instrumentos partícipes do processo
instrumental das MSEs no gerenciamento da população pobre no Brasil. A
criminologia crítica85 traz fundamentos para uma melhor compreensão do trabalho
nas MSEs, aprofundando elementos e construções teóricas, podendo contribuir para
o repensar crítico sobre as práticas punitivas.
Para compreendermos a cultura punitiva na lógica atual, consideramos
imprescindível identificarmos a questão criminal como parte constitutiva do modo de
produção capitalista – não como um fenômeno recente, mas que se intensifica e traz
novas determinações na contemporaneidade, principalmente na lógica da
seletividade aos pobres e na produção de mais valor na perspectiva mercadológica.
Como analisou Marx (1969) no texto sobre a “Concepção Apologética da
Produtividade de Todas as Profissões”, onde analisou a relação entre crime e
produtividade:

O criminoso não produz apenas crimes. Produz, igualmente, a lei penal e,


desse modo, produz o professor que dá aulas sobre lei penal e, em adição,
o inevitável compêndio por meio do qual o professor lança suas aulas no
mercado geral como “mercadorias”. O criminoso produz ainda a totalidade
da polícia e justiça penal, policiais, juízes, carrascos, júris etc., e todos
esses diferentes ramos de negócios que formam, da mesma maneira, as
muitas categorias da divisão social do trabalho, desenvolvem diferentes
capacidades do espírito humano, criam novas necessidades e novas
maneiras de satisfazê-las (MARX, 1969, p. 387-388).

Portanto, é na atual conjuntura que a cultura punitiva, pela via das MSEs, se
insere em uma perspectiva de totalidade social. A perspectiva ideológica da
criminalização dos pobres perpetua-se como um sistema penal juvenil também pela
via do discurso da socioeducação. Esse viés é levantado por Maria Liduina de

85
Os principais autores da criminologia crítica são: ZAFFARONI (1988), BARATTA (1997), OLMO
(1992), ANITUA (2008), BATISTA (1990).
116

Oliveira e Silva (2011) na pesquisa “Entre Proteção e Punição: o controle sócio


penal dos adolescentes”, que traz questionamentos e reflexões que caminham nesta
direção: “é possível, num sistema de responsabilização penal juvenil, de caráter
retributivo, prevalecer à natureza e o objetivo socioeducativo das medidas, em
detrimento do aspecto punitivo?” (OLIVEIRA & SILVA, 2011, p. 231). Acreditamos
que pela forma que a execução das MSEs tem se apresentado na atualidade, não
há possibilidade desta efetivação, o que vem se mostrando inexequível pela forma
com que se materializa, com elementos punitivos e criminalizadores.
É importante destacar que os discursos e principalmente as práticas que
envolvem a criminologia, o crime e a punição não são neutros. Ao contrário, verifica-
se a demanda por “ordem” em nossa formação econômica, política e social,
operacionaliza-se através do poder punitivo, respondendo à lógica do capital
(PAVARINI, 1983). Nesta direção, destacamos os estudos de Vera Malaguti Batista
(2011), que abordam a visão do marxismo como fundamental para a emergência de
um olhar desconstrutor das verdades jurídico penais, as quais fundaram a
criminologia crítica através de autores como Baratta (2002), Pavarini (1983), Anitua
(2008). Foram, então, as “aproximações marxistas à questão criminal” (BATISTA,
2011, p. 81) que subsidiaram estas formulações, problematizando a relação entre
prisão e a perspectiva da acumulação capitalista na relação do “controle social” da
população sobrante e/ou supérflua ao capital. A contribuição do marxismo foi
fundamental para a criminologia e acreditamos ser também essencial para o
pensamento crítico sobre as MSEs, pois:

O marxismo desvelou, então, a aparência legitimadora da norma jurídica


sobre os modos e as lutas que se produzem nas relações sociais de classe.
O discurso criminológico surge historicamente como uma ciência burguesa
nascida com o processo de acumulação do capital para ordenar e disciplinar
o contingente humano que vai produzir a mais – valia. Esta concepção de
mundo, vendida como teoria científica, seria então uma teoria legitimante do
capitalismo. Não é à toa que, apesar da criminalização de algumas
substâncias, o maior indicador criminal continua sendo o das frações
envolvendo a propriedade privada (BATISTA, 2011, p. 80).

Cabe também mencionar que neste processo de busca de uma saber crítico
sobre as funções da prisão e da pena, bem como da cultura punitiva, nem todas as
“leituras do marxismo na questão criminal foram deslegitimantes da pena.
Permanências positivistas, discursos morais e reducionistas produziram aquilo que
Maria Lucia Karam chamou de esquerda punitiva” (BATISTA, 2011, p 86), questão já
mencionada anteriormente. Esta perspectiva atravessa também a execução das
117

MSEs através dos profissionais que nela atuam, questão que será mais bem
aprofundada no próximo capítulo.
É nessa perspectiva que se dá a relação entre políticas assistenciais e
criminais pela via do projeto neoliberal, o que, conforme Batista (2012), é a adesão
subjetiva à barbárie. Os discursos de defesa da lógica da “ressocialização” são
descartados e, conforme a autora, o projeto “do neoliberalismo abandonou as
ilusões de reeducar, ressocializar e ou recuperar para a lógica do armazenar,
neutralizar o sujeito” (BATISTA, 2012, p. 311). Ou seja, a lógica atual para os
“sobrantes”, “excluídos” e “pobres perigosos” são a eliminação, o extermínio ou sua
neutralização, e uma das vias é a das MSEs. Os estudos de Alexandre Morais da
Rosa e Salah H. Khaled Jr. (2014) 86sobre este debate ressaltam que:

(...) se na Europa já se verifica um processo de endurecimento das políticas


penais, cada vez mais voltadas à defesa social em detrimento da
reinserção, o que dizer do Brasil? Estamos experimentando a maximização
de níveis de dor que já eram insuportáveis, mesmo para nossa realidade
marginal, de modo que o paralelo entre o movimento que a cultura do
controle americano a partir da década de 80 e o que vivenciamos no Brasil
atualmente é assustador, pois os efeitos aqui são muito mais profundos
(2014, p. 3).

A análise adotada parte do princípio que as MSEs preconizadas pelo Estatuto


da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), na sua natureza constitutiva de
responsabilizar os adolescentes pelos atos infracionais, na lógica legal e jurídica da
socioeducação, estava também alicerçada na ideia de “ressocialização”. As
concepções de “ressocialização”, “reinserção” e “reeducação”, utilizadas no
cotidiano da execução da pena para adultos, são também incorporadas na execução
das MSEs. Corroboramos com a análise de Alessandro Baratta (2002), que afirma:

(...) em relação aos limites e aos processos contrários à reeducação, que


são características do cárcere, se integra com uma dupla ordem de
considerações, que toca ainda radicalmente a natureza contraditória da
ideologia penal da reinserção. Estas considerações se referem à relação
entre quem exclui (sociedade) e quem é excluído (preso). Toda técnica
pedagógica de reinserção do detido choca contra a natureza mesma desta
relação de exclusão. Não se pode, ao mesmo tempo, excluir e incluir.
(BARATTA, 2002, p. 186).

Nesse sentido, nos tempos atuais, o “discurso” ou a ideia de “ressocialização”


é abandonada pela lógica punitiva e vingativa, como refere Zaffaroni (2009): “a ideia
de ressocialização é própria do estado previdente, do welfarestate. O liberalismo

86
Artigo “Direito Penal Mofado: a lenda conveniente da ressocialização”. (2014) Disponível em:
<http://justificando.com/2014/07/17/direito-penal-mofado-lenda-conveniente-da-ressocializacao/>
118

econômico destruiu o welfare state e passou a existir a ideia de cadeia reprodutiva,


87
que são gaiolas. A cadeia se tornou uma forma de vingança” (2009, p.2) .
Podemos perceber, então, que no processo de execução das MSEs está presente
tanto a ideia (discursos) da socioeducação, pela lógica da cultura punitiva, bem
como os e discursos de “ressocializar” para apenas punir, encarcerar ou exterminar,
de forma seletiva, jovens, pobres e, na maioria, negros. Nas palavras de Silva
(2011):

Não restam dúvidas de que o sistema contido no ECA, se comparado ao


existente no Código de Menores, foi alterado, passando de uma “justiça
assistencialista” para uma “justiça jurídica”, ou melhor, para uma “justiça
acusatória”. Este “novo” modelo de (in) justiça juvenil, por um lado,
incorporou normativas garantistas, e por outro, amarrou-as a uma
perspectiva criminal penal (SILVA, 2011, p. 208).

A efetivação de uma face penal do Estado no Brasil, principalmente no que se


refere à utilização da prisão como forma de gerenciar a pobreza e à determinação
da lógica da acumulação, segundo a qual quem reina é o mercado. Intensifica-se a
expressão punitiva pelo braço do Estado com o consenso de grande parte da
sociedade, que se expressa também no interior das unidades de execução das
MSEs, através da não contextualização da criminalização dos pobres, bem como na
priorização da burocracia jurídica em detrimento do atendimento de qualidade para
estes adolescentes.
O autor pesquisa a sociedade norte-americana, que se difere em muito da
realidade dos países da América Latina. Como já foi dito, cada país, a partir de sua
formação social, política, econômica e cultural, experimentará as “amarguras” das
políticas de ajustes neoliberais. No caso do Brasil, o Estado adere de forma intensa
à face penal e, pela formação social brasileira, as expressões dessas políticas
acabam sendo muito mais perversas. Sendo assim, é imprescindível considerar que
a perspectiva de classe social deva ser posta no centro da relação mediada pela
acumulação capitalista, pelas políticas sociais focalizadas e a criminalização dos
pobres.
Foi demonstrado anteriormente que Wacquant (2012) se referiu à constituição
de um “Estado Leviatã” nos EUA. Nesse sentido, a intenção aqui foi desvelar como
isso se apresenta no Brasil e contribui para a lógica punitiva que persiste no caso

87
Texto extraído de entrevista concedida pelo autor. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-
jul-05/entrevista-eugenio-raul-zaffaroni-ministro-argentino>
119

particular dos adolescentes pobres. A ideia é partir da existência da lógica


hobbesiana na formação de nossa cultura política, pois, conforme Freire (2015):

(...) a feição hobbesiana que marca o exercício do poder político


antidemocrático (em nosso país, desde os tempos do Império, encontra
suas raízes no conservadorismo sociocultural e político inerente à
constituição da nossa ordem burguesa. Esse traço peculiar da formação
burguesa brasileira levou o liberalismo, em nosso país, a circunscrever suas
reivindicações a uma plataforma extremamente conservadora, isolando-o,
de certa forma, da sua própria evolução (no caso, França, Inglaterra e
EUA), que forneceram os fundamentos iniciais da doutrina que nossa
burguesia capitalizou (FREIRE, 2015, p.59).

A criminalização dos pobres, como já referido, não é uma questão nova; no


entanto a ideia é colocar em evidência os elementos da cultura da punição que
estão presentes na execução das MSEs no atual momento brasileiro. Intenta-se
ainda buscar as concepções de MSEs que estão presentes no campo teórico e
prático, as quais encobrem a perspectiva de classe social e naturalizam a
criminalização desses adolescentes. Sobre a relevância de desvelar essas
determinações no Brasil atual, Netto afirma que “meu país é um verdadeiro
laboratório para uma análise da imbricação entre militarização da vida social e novo
assistencialismo” (NETTO, 2013, p.36). Nesse sentido, esta pesquisa também quer
contribuir com um repensar sobre as práticas correntes, produzindo alternativas que
venham alterar a realidade conforme ela se apresenta para o Serviço Social,
profissão inserida no cotidiano das MSEs.
Nesta perspectiva, a hipótese central deste trabalho é que, apesar do Estatuto
da Criança e do Adolescente ter rompido, no campo legal, com a perspectiva
menorista do Código de Menores, a execução das MSEs seguiram pelo viés de um
aparato penal brasileiro atrelado à histórica cultura política punitiva, enfraquecendo,
desta forma, as possibilidades da efetivação dos princípios da proteção contidos no
Estatuto. Questões que serão demonstradas no próximo capítulo através da
inserção dos assistentes sociais na execução das MSEs.
120

3 MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS E O TRABALHO DO SERVIÇO SOCIAL:


LIMITES E POSSIBILIDADES NO CONTEXTO DA BARBÁRIE ENGENDRADA
PELA CULTURA PUNITIVA

Na “Fundação Casa...
- Quem gosta de poesia?
Ninguém, senhor.
Aí recitei “Negro drama” dos Racionais.
-Senhor isso é poesia?
- É.
- Então nóis gosta.
É isso. Todo mundo gosta de poesia.
Só não sabe que gosta.
(Sergio Vaz, 2016, p. 129)

O objetivo deste capítulo é demonstrar as expressões da cultura punitiva nas


MSEs e sua mediação com o processo de trabalho onde se insere os assistentes
sociais, decifrando as expressões da cultura punitiva e consequentemente da
criminalização dos pobres, presentes no cotidiano de trabalho e de como os
profissionais percebem essa lógica na perspectiva do fetichismo do direito.
O objeto desta tese começou a ser delineado a partir de reflexões sobre a
inserção do assistente social na área sociojurídica, particularmente sobre o processo
de trabalho desenvolvido e as contradições que permeiam as MSEs para
adolescentes. Os questionamentos focavam a efetividade do trabalho realizado para
a defesa de direitos, as contradições frente os limites institucionais, bem como a
relação com a legislação a partir da realidade de violações cotidianas que se
apresentava. As reflexões foram instigadas tanto por esta mesma inserção
profissional como também pelo exercício da docência e indicaram a necessidade de
busca de respostas sobre o papel da profissão diante de tantas violações, da
criminalização dos pobres e das persistentes formas punitivas, que se fazem
presentes mesmo após o advento do ECA e do SINASE. Assim, a decisão tomada a
partir da qualificação do projeto de tese, de ouvirmos os profissionais envolvidos
com as MSEs, no Rio de Janeiro, através da metodologia do grupo focal, teve como
objetivo aprofundar a compreensão da realidade a partir da visão dos profissionais
em relação ao objeto estudado.
É preciso ressaltar que as MSEs seguem na perspectiva da histórica cultura
punitiva brasileira, que se recrudesce nos tempos atuais, efetivando-se através de
um punitivismo que se expressa pelas formas intensas de criminalização dos jovens
pobres, na seletividade racial, bem como nas diversas formas de violência
121

institucional, entre as quais, a policial. Nesta direção, entendemos como parte do


desenho desta pesquisa o aprofundamento do processo de trabalho ao qual o
Serviço Social está inserido nesta área, pois, “como um campo específico,
configura-se, para nós, assistentes sociais, como uma área de atuação e também de
produção de conhecimento” (BORGIANNI, 2013, p.1). Produção que carece
principalmente de aprofundamento das formas hegemônicas, que se engendra e se
perpetua a cultura punitiva

3.1 O serviço social no campo sociojuridico: aportes para o debate

A inserção do Serviço Social na área sociojurídica acompanha o período de


institucionalização da profissão no final da década de 1930, sendo que o Poder
Judiciário constituiu-se como um dos primeiros espaços de trabalho dos Assistentes
Sociais junto ao Juízo de Menores e com a realização de trabalhos especializados
do poder executivo nos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. A atuação nesta
área “dispõe de larga tradição e representatividade no universo profissional”
(IAMAMOTO, 2004, p. 262). Porém foi há poucos anos que as particularidades do
trabalho profissional nessa área passaram a ser publicizadas como preocupação
investigativa, na busca de qualificação da prática profissional (FÁVERO, 2007).
O termo sociojurídico emerge no contexto da profissão em 2001, no Décimo
Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS). No mesmo ano, a Revista
Serviço Social e Sociedade de nº 67 publicou diversos artigos relacionados às
diferentes áreas de atuação deste campo. O campo sociojurídico é compreendido a
partir da atuação do Serviço Social, articulada a ações de natureza jurídica: sistema
judiciário, sistema de segurança, sistema penal e penitenciário, sistemas de
proteção e acolhimento institucional, como abrigos, medidas socioeducativas,
programas de proteção a testemunhas ameaçadas. Se este campo foi pioneiro para
a profissão, cabe, então, compreender os motivos para que ficasse tanto tempo
esquecido no âmbito da pesquisa e sistematização, para além dos
condicionamentos específicos do desenvolvimento da profissão. Consideramos que
tal invisibilidade se deve ao fato de que estes espaços estão inseridos no contexto
do Poder Judiciário, o qual historicamente se constitui como um espaço de poder, de
122

centralidade e/ou exclusividade do saber jurídico, o que dificulta a publicização e


sistematização das demais áreas a ele vinculadas. Considera-se ainda que a
atuação vinculada a instituições de segurança e controle, como presídios, internatos,
FEBEMs, na lógica de instituições totais88, dificultou a pesquisa e a circulação de
qualquer reflexão para além da perspectiva ideal - positivista. O controle e a
censura, que sempre as caracterizaram, foi um empecilho para se “colocar” para fora
de seus muros as contradições e condições existentes em seu interior.
Desta forma, a renovação crítica da profissão enfrentou um limite a mais para
ingressar nestes espaços fechados, dificultando sua apropriação por estes
profissionais e também a publicização de práticas inovadoras que se faziam
presentes. A renovação crítica da profissão no Brasil, que incorporou a inspiração do
movimento de reconceituação latino-americano, aprofundou-se na direção das lutas
democráticas contra a ditadura e pela abertura democrática. Este fato chama a
atenção por se tratar de um campo de trabalho clássico da área: o Juízo de Menores
do Rio de Janeiro, então capital da República, (meados da década de 1930) um dos
primeiros espaços de atuação/profissionalização de assistentes sociais na esfera
pública, como já citado.
O Serviço Social se institucionaliza a partir de bases teórico–metodológicas,
referendadas na concepção de “casos individuais”, e baseadas no Serviço Social
norte-americano, a partir da produção de “Diagnóstico social” de autoria de Mary
Richmond (1917). Agregando pensamentos neotomistas, positivistas e
funcionalistas. Os casos individuais de natureza psicossocial (fatores internos de
personalidade e externos situacionais) direcionavam para uma perspectiva ética da
adaptação e integração social. Assim sendo, a crítica aos padrões dominantes de
exploração social e consequentemente das desigualdades sociais brasileiras não se
faziam presentes.
Neste processo histórico de construção da profissão no Brasil, cabe destacar
uma das primeiras produções locais, a publicação em 1939 da Assistente Social
pioneira Maria Esolina Pinheiro: “Serviço Social – Documento Histórico: Infância e

88
Segundo Goffman (1987), as instituições totais se caracterizam por serem estabelecimentos fechados, que
funcionam em regime de internação, onde um grupo relativamente numeroso de internados vive em tempo
integral. Realiza uma modalidade de análise institucional que pode ser situada transitando entre os planos macro
(ou molar) e micro dos fenômenos que ocorrem nos estabelecimentos fechados. Sua concepção explícita de
poder é a de um poder essencialmente modelador, poder instaurado, repressivo e mutilador do eu em sua
missão (res)socializadora.
123

Juventude Desvalidas” (PINHEIRO, 1985). A obra é resultado de sistematização de


seu trabalho no Juízo de Menores do Distrito Federal (ainda no Rio de Janeiro) e do
Laboratório de Biologia Infantil. Mesmo em uma perspectiva positivista e com
direção teórica metodológica de ajustamento dos sujeitos, a autora apresenta ali sua
preocupação com o “bem-estar” dos “menores”. Assim mencionava:

O cuidado para com a criança começa na gestação. Deve ser mais


intensivo, sob o ponto de vista material, na primeira infância, e, no ponto de
vista moral, na adolescência. Mas, muita gente parece desconhecer o
período mais grave da segunda infância, - o despertar do interesse. E é
justamente neste período que a maioria dos menores são levados à
internação que os abriga da miséria (PINHEIRO, 1985, p. 80).

Da mesma forma, trazia questionamentos sobre o papel e as consequências


da institucionalização dos menores atendidos, indicando, desde então, a
incongruência do que era previsto com a realidade apresentada:

Apesar do esforço dos dignos magistrados que tem passado pelo Juízo de
Menores, os nossos estabelecimentos para crianças abandonadas não
preenchem sua finalidade educativa (PINHEIRO, 1985 p. 80).

A relação dos problemas da infância pobre com as desigualdades sociais não


estava presente na análise e, assim, a lógica da responsabilização individual e da
culpabilização das famílias pelo abandono de seus filhos eram centrais no trabalho.
Porém, ao mesmo tempo, é possível verificar o questionamento da autora sobre o
desinteresse da sociedade pela situação de crianças e adolescentes pobres. Da
mesma forma, seu relato indica a necessidade de maiores investimentos nas
instituições de internamento, deixando claro suas condições precárias e sua grande
lotação. Entendia que os “Internatos com grandes efetivos agravam os malefícios da
promiscuidade, porque não permitem assistência pessoal e contínua para cada
caso” (PINHEIRO, 1985 p. 101).

A autora abordou também a importância da efetivação de direitos sociais,


através da referência da prioridade da atenção para as crianças e jovens, sendo
recorrente sua abordagem sobre a necessidade da sociedade e dos políticos
olharem para os “menores” abandonados e “delinquentes”. Entendia que “as
medidas preventivas contra a delinqüência infantil abrangem o público, os pais e as
próprias crianças“ (PINHEIRO, 1985, p. 104). É neste sentido que “os graves
problemas de menoridade abandonada e delinqüente devem constituir uma
preocupação constante dos responsáveis pelos destinos de qualquer país”
124

(PINHEIRO, 1985 p. 80). Em que pese sua perspectiva teórica positivista, o texto
demonstra a histórica criminalização dos jovens pobres no Brasil e o pouco que se
avançou, mesmo com os novos mecanismos legais. Neste sentido, havia uma
preocupação com a lógica ideal da legislação e seu distanciamento com a realidade.

No exame do problema da delinqüência infantil e juvenil, não nos


perderemos no emaranhado das controvérsias, alimentadas pelas
divergências das várias escolas penais que porfiam pela aceitação de suas
doutrinas, convencidas de que só elas representam a verdade científica
sobre o crime e o criminoso (PINHEIRO, 1985, p. 102).

Destaca-se que neste período a legislação vigente era o primeiro “Código de


Menores Mello Matos”, cujos fundamentos estavam ancorados na doutrina
positivista. O direito, então, estava direcionado à adaptação da criança e do
adolescente em uma sociedade “perfeita”. Assim sendo, o Estado e suas instituições
deveriam “recuperar” e “reeducar” os jovens “desvalidos”, através de um tratamento
conservador e parcial da questão. Mas, apesar disto, representou um avanço
jurídico específico, desencadeando políticas públicas para este segmento.
Consideramos, por conseguinte, que o mais importante desta produção é o
registro histórico da prática profissional no período, contornada pela política
brasileira (Estado populista), refletida pela realidade das crianças e adolescentes e o
seu trato na década de 1930. Estes aspectos repercutiram na organização da
profissão, ao mesmo tempo em que assinalavam desafios futuros.

O Serviço Social procura amparar “essa pobre felicidade humana contra a


qual se erguem legiões de inimigos”. Mas é, principalmente, no que se
refere às crianças, “misteriosos destinos em semente” que as nossas leis e
instituições devem ser mais completas e eficientes (PINHEIRO, 1985, p.
83).

Verifica-se que passados tantos anos esta obra nos traz elementos de
realidade e denuncia o quanto as questões envolvidas na área da criança e do
adolescente não foram superadas e continuam na ordem do dia.
Nas décadas seguintes, o Serviço Social, sem deixar de lado a perspectiva
neotomista até então fundante dos valores da profissão, aprofundou sua vinculação
com os fundamentos positivistas e funcionalistas e com isto as práticas se voltaram
a preocupar-se mais com o ajustamento do indivíduo, cujos valores e preceitos do
Código de Ética de 1975 são emblemáticos, por suas expressões conservadoras e
funcionais a ordem ditatorial deste período histórico. Em relação aos deveres dos
125

profissionais, expressava que “O Assistente Social deve respeitar a política


administrativa da instituição empregadora”. (CFAS, 1975, p. 14).
O “respeito à política administrativa” certamente se traduzia em um
compromisso político com os valores dominantes da ordem então vigente no
contexto da ditadura militar (NETTO, 1996), do Estado autoritário e da ausência de
democracia. Assim, as:

Exigências do bem comum legitimam, com efeito, a ação disciplinadora do


Estado – formas de vinculação do homem à ordem social, expressões
concretas de participação efetiva na vida da sociedade (CFAS, 1975, p. 7).

O conservadorismo da profissão e, mais especificamente, da atuação junto ao


Juizado da Infância pode ser exemplificado pelos laudos elaborados neste período 89,
os quais deixam clara a postura discriminadora e conservadora presente no
exercício profissional. Esta perspectiva fica clara no estudo realizado por Vera
Malagutti Batista (2003), nas manifestações de psicólogas e assistentes sociais nos
processos do juizado de Menores da época.
A preocupação com o ‘desajustamento’ dos adolescentes aparece
relacionada com a ideia de desestruturação familiar, com a precária formação
profissional e, por isto, naturalmente sujeitos ao controle punitivo:

A.C. A., 16 anos, branco, vendedor de refrigerantes na praia, pego com 1,6
g de maconha, é “membro de família desestruturada”. R.O.P., 15 anos,
pardo, morador de São Gonçalo, trabalhando em “biscates de carregar
água”, preso em 1978 com uma “trouxinha” de maconha, é “menor com
família desestruturada, já que vive com a tia e avó paterna, já que sua mãe
é muito pobre (BATISTA, 2003, p. 118).

Da mesma forma, a situação abaixo descrita traz como solução para os


problemas vivenciados pela adolescente o seu internamento.

Vejamos o emblemático caso de M.S.C.B., 14 anos, branca, moradora da


Cruzada São Sebastião, detida em 1/2/78 com duas gramas de maconha. O
serviço social da Delegacia de Proteção ao Menor afirma: Sua família é
totalmente desestruturada; apesar de sua mãe viver com o marido, tem
companheiro que costuma levar para dentro de casa quando o marido não
está. (...) Acreditamos que a menor deva ser internada para que receba
tratamento e orientação para a sua vida futura (BATISTA, 2003, p. 118).

89
Fruto de pesquisa de Vera Malaguti Batista, publicado no livro “Difíceis Ganhos Fáceis: Drogas e
Juventude Pobre no Rio de Janeiro, editora Revan, 2003.
126

O viés da classe social, ou da criminalização dos pobres, pode ser verificado


também quando se trata de adolescente com outra realidade socioeconômica, para
o qual é, então, possível pensar em uma solução não punitiva:

J.P.R.P., 17 anos, branco, morador de apartamento na Tijuca, cursando a 8ª


série do 1º grau, detido com 1,3 g de maconha em 1983, filho de um casal
separado (coronel do Exército com uma assistente social). No Serviço de
Liberdade Assistida, a assistente social declara: O menor é componente de
família bem constituída, de classe média alta (...) diante do exposto acima,
não vemos a necessidade do menor se submeter a tratamento psicoterápico
neste serviço. Acrescentamos ainda que a mãe do menor é assistente
social, portanto capaz de lhe dar apoio necessário, no que aliás a mesma se
comprometeu (BATISTA, 2003, p. 120).

Nesta conjuntura dos anos de 1970 e 1980, se gestava mudanças profundas


no contexto da profissão, mas as práticas arraigadas no conservadorismo seguiam
sua trajetória de defesa e “controle social” e na subsunção das questões sociais à
lógica ideal jurídica. Este também foi o contexto das lutas travadas para a
modificação do paradigma de atenção à infância, que foram acompanhadas não
pela institucionalidade da profissão, mas de forma individualizada por alguns
segmentos profissionais.
Com a redemocratização do país, consolida-se um novo ordenamento jurídico
referendado pela Constituição Federal de 1988 e suas regulamentações. Foram
conquistas legais que incidiram nos espaços ocupacionais dos assistentes sociais,
na direção da defesa de direitos sociais, assim também na esteira deste processo as
expressões da “questão social”, objeto de trabalho do Serviço Social, ganham maior
visibilidade. Neste período de democratização do país, também começa a vir à tona
a violência no interior destas instituições totais, no bojo dos movimentos sociais em
defesa dos direitos humanos.

A Constituição de 1988 trouxe também aos assistentes sociais da área


sociojurídica a possibilidade de demonstrarem, com dados concretos
extraídos de estudos sobre a realidade de cada município onde vivem os
cidadãos, das prisões onde estão encarcerados, ou das instituições que têm
que defendê-los — e, principalmente, do contato cotidiano com a população
que é alvo ou credora da Justiça —, como o não cumprimento dos preceitos
fundamentais da Constituição lesam a vida e os direitos de parcelas
significativas da sociedade (BORGIANNI, 2013, p.6).

Agrega-se, a esta conjuntura, a consolidação do movimento de renovação


crítica do Serviço Social através do compromisso com a classe trabalhadora,
expresso nos Códigos de Ética de 1986 e 1993, pela Lei de Regulamentação da
Profissão e pela aprovação das diretrizes curriculares em 1996, pilares do atual
127

projeto ético-político do Serviço Social. Na direção da renovação crítica, profissionais


da área começam a produzir e publicizar artigos e pesquisas a partir da
sistematização do trabalho, iniciando, desta forma, a produção de um conhecimento
crítico neste campo, marcado historicamente por se constituir como espaço de
ações disciplinadoras e de “controle social”. Sobre este aspecto histórico e a
visibilidade sociojurídica, Fávero (2007) destaca que:

(...) a ampliação da demanda de atendimento e de profissionais que passa a


ocorrer após a Constituição Federal de 1998 - notadamente com o Estatuto
da Criança e do Adolescente, em 1990, num movimento de busca de
garantia de direitos, mas também do que vem sendo denominado por
alguns estudiosos como um movimento de judicialização da pobreza – ou
seja, tem sido cada vez mais freqüente a busca do Judiciário com vistas a
garantir direitos sociais ou, ou enquanto expressões de situações sociais
limites, forjadas por um modelo político econômico excludente. Modelo este
que, ao não implementar políticas sociais que garantam dignidade à
população, as tem levado, continuadamente, a procurarem o Judiciário para
entrega de filhos em adoção ou abrigamento por exemplo, a serem
denunciadas por negligência ou violência doméstica – com ou sem
fundamentação, a revelarem publicamente conflitos no âmbito familiar os
mais diversos, não raros decorrentes do desemprego e do desenraizamento
familiar e social (FÁVERO, 2007, p.4).

Portanto, há que considerar que os determinantes históricos, como as


políticas de ajuste prescritas pelos organismos internacionais, sob inspiração
neoliberal, provocaram alterações radicais nas relações entre Estado e sociedade
civil a partir da década de 1990 no Brasil. Esta questão somou-se a outras
determinações já existentes, como a histórica presença do patrimonialismo e
processos autoritários e em um momento pós-ditadura militar com processos
democráticos incipientes, ou seja, houve uma transição política sem um movimento
de ruptura com a perspectiva autoritária. Tais processos alteram a economia e a
política, mas também as formas de sociabilidade, acentuando-se sua ênfase no
pragmatismo da produtividade, competitividade e individualismo. Esta sociabilidade
se vincula e/ou abre espaços para a ampliação do conservadorismo sempre
presente em nossa sociedade, mas que se recrudesce nos tempos atuais, atingindo
também a profissão tanto no âmbito do que não já foi superado ao longo de sua
evolução, no que se refere a um possível retrocesso, como também ganha novos
adeptos, demonstrando que o atual projeto profissional não se apresenta como
hegemônico na totalidade dos profissionais. O Estado mostra-se cada vez mais
voltado aos interesses econômicos e políticos dominantes na esteira do mercado
financeiro, reduzindo investimentos em políticas públicas. O Serviço Social também
128

é atingido pelas formas precárias de trabalho e de contrato, pela ampliação das


desigualdades sociais, pelos retrocessos de direitos sociais, e, em consequência
disso, o recrudescimento das expressões da “questão social” e das formas de seu
enfrentamento pela lógica da punição, onde se fazem presentes os Assistentes
Sociais. O levantamento da produção sobre esta área das MSEs, a partir do ano de
2001, no principal veículo de publicações da profissão, a Revista Serviço Social e
Sociedade, indicou a pouca produção crítica sobre as mesmas na relação com a
cultura punitiva.
Cabe salientar os esforços do conjunto CFESS/CRESS na busca de qualificar
esse campo através de debates, seminários, formação de grupos de trabalhos na
construção de princípios e diretrizes para pensar a prática profissional junto a esse
segmento. Destacam-se também publicações, pesquisas e trabalhos apresentados
em congressos e seminários, que demonstram uma construção teórico-prática
crítica, de diversos profissionais sobre essa temática. Desde já, podemos citar as
referências de Silva (2011), Fávero (2013), Borgianni (2013), Fuziwara (2013),
Baptista (2000), Sales (2007), Tejadas (2012).
Como resultado destes esforços coletivos da profissão, destaca-se a
produção do documento intitulado “Atuação de Assistentes Sociais no Sociojurídico:
subsídios para reflexão” (CFESS 2014), sendo relevante como direcionamento ético-
político dos processos de trabalho nesta área. Na especificidade das MSEs, o
documento destaca:
(...) o rol de atribuições voltadas para a gestão institucional, o que
demonstra o potencial do serviço social nessa área de incidência nas
políticas institucionais. Além destas, têm-se atribuições mais tradicionais,
voltadas para o atendimento dos adolescentes e respectivas famílias, de
elaboração de relatórios e de articulação com a rede de serviços. Em
termos das armadilhas na atuação dos/as profissionais, a execução das
medidas socioeducativas, em especial as de privação e restrição de
liberdade, em que pesem as diferenças como sistema penitenciário, propicia
na análise identificar algumas similaridades, as quais se verificam,
sobretudo, nos processos internos de violação de direitos, especialmente
quanto à negativa em relação à escolarização, saúde, convivência familiar e
comunitária, entre outros, sobressaltando-se a perspectiva punitiva, em
detrimento da socioeducação. Ao mesmo tempo, sabe-se que os/as
assistentes sociais têm sido protagonistas na defesa e ampliação de direitos
dos/as adolescentes, desde as conquistas legais até a sua materialização
(CFESS, 2014, p.80).

Estas diretrizes contribuíram e contribuem muito para a reflexão e qualificação


do processo de trabalhos nestes espaços sócio-ocupacionais. No entanto é oportuno
frisar que muitas questões ainda permanecem como desafios, pois ainda não foram
129

superadas. Estes desafios apresentam-se na perspectiva do rompimento com as


atuais formas de expressão da cultura punitiva, o que se inicia pela compreensão
crítica dos fenômenos jurídicos, que envolvem os usuários buscando sua
compreensão para além do delito e/ou do ato infracional.

E aqui já podemos demarcar uma primeira armadilha ou desafio que se põe


ao assistente social em seu cotidiano: superar a aparência dos fenômenos
com os quais vai trabalhar; tal aparência é a de problemas jurídicos, pois,
como vimos, na realidade também carregam conteúdos de cunho
eminentemente político e social, e nessas outras esferas é que também
deveriam ganhar sua resolutividade (BORGIANNI, 2013, p.435).

Também cabe frisar outro aspecto importante da problemática e dos desafios


que se apresentam no cotidiano deste trabalho, não perdendo de vista que a autora
trata sobre a afirmação de Edson Seda (2007, p. 53, apud BORGIANNI, 2013), no
que diz respeito ao Poder Judiciário, referindo ser este "um poder da República que
só atua quando provocado em sua jurisdição, para resolver conflitos de forma
definitiva”. Assim:
(...) nem por um instante, nesse cotidiano que tende a reiterar a aparência
reificada da processualidade societária, que quem atua na área
sociojurídica está confrontando o tempo todo com as contradições que
surgem ou se renovam reiteradamente a partir da relação tensa entre as
determinações próprias da sociedade que é regida pelo capital e o buscar
da "justiça". Nas hipóteses em que um juiz se manifesta, sua decisão deve
ser cumprida, para que haja a estabilidade necessária à sociedade
organizada e ao bem comum (BORGIANNI, 2013, p. 434).

Cabe também o questionamento sobre as concepções que embasam a


“ressocialização”, “reeducação, “apreender com a prisão”, “sair melhor”, “reformar o
indivíduo”, que muitas vezes se materializam nos discursos de defesa de direitos ou
em defesa da sociedade, acabando por utilizar-se dessas perspectivas. Aqui o
fetichismo do direito acaba sendo incorporado pelos profissionais através de ilusões
messiânicas sobre as MSEs e sobre o próprio trabalho, demonstrando muitas vezes
a não compreensão das contradições que envolvem a realidade dos adolescentes e
das instituições de cumprimento das MSEs. Ou seja, é relevante considerarmos a
normativa do ECA sobre a denominação “adolescentes sujeitos de direitos”, que -
como já afirmamos - foi fundamental no ponto de vista da mudança normativa em
relação à situação irregular do Código de Menores, porém a mesma por si só não
resultará na efetivação de direitos. Na busca da compreensão dos dilemas e
desafios que envolvem o trabalho do Serviço Social nas MSEs, tendo claros os
limites representados pela ordem societária capitalista, a direção do projeto ético-
130

político profissional pode contribuir na construção de possibilidades e estratégias.


Neste sentido, os princípios do Código de Ética devem incidir na prática profissional
nestes espaços, contribuindo para o fortalecimento da autonomia profissional,
afirmando um comprometimento mais com o usuário do que com as demandas
institucionais.
Parece-nos conveniente destacar, então, que:

A atuação de um assistente social nessa área não pode estar a serviço da


culpabilização, da vigilância dos comportamentos ou dos julgamentos
morais. Tampouco pode servir ao engodo de grande parte das instituições
jurídicas que, em virtude da precarização e do desmonte que em seu
interior foi promovido, ficam apenas fazendo "os processos judiciais
andarem" com atos meramente burocráticos e burocratizantes
(BORGIANNI, 2013, p 12).

Diante dessas considerações, estas questões serão analisadas a partir da


perspectiva dos profissionais do Serviço Social nos próximos itens. Cabe ressaltar
que, conforme nossa construção teórica, a partir da compreensão de que a
criminalização dos pobres traz em si uma compreensão/concepção de crime que
clama por punição, fazendo parte da cultura punitiva, se criminaliza e se reivindica a
punição, ou seja, são indissociáveis, se autorrealimentam em uma relação dialética.
A criminalização dos pobres põe água no moinho da cultura punitiva, e a cultura
punitiva põe água na criminalização, completando um processo intenso de
recrudescimento dos processos punitivos. Para análise dos dados, as mesmas
foram separadas, mas o leitor poderá constatar que ambas se retroalimentam de
forma intensa e bárbara na seletividade dos adolescentes pobres.

3.2 Contradições do processo de trabalho no âmbito das MSEs: discurso de


defesa de direitos e criminalização dos pobres

A história da criminalização dos jovens pobres do Rio começa no


amanhecer da abolição da escravidão e termina com o início do grande
processo de emancipação marcado pela Constituição e pelo Estatuto. No
meio, está um século de desigualdade e discriminação, de autoritarismo e
de manipulações urbanísticas, legislativas e policiais direcionadas ao
controle repressivo e a guetização das sucessivas gerações de ex-
escravos. Uma história que, através dos mecanismos sociais, políticos e
culturais (...), ainda subsiste (BARATTA, 2003, p. 33).
131

O Serviço Social como profissão inserido na área da MSEs sofre impactos e


se depara com a realidade acima mencionada tanto no âmbito dos processos
societários, que conduzem as políticas, como mecanismos intensos de
criminalização e punição nas instituições onde estas determinações perpassam e se
expressam. Por estarem mergulhados nesta realidade social e dos sujeitos que a
vivenciam, consideramos que os assistentes sociais, então, possuem um papel
fundamental na explicitação das contradições presentes e na reflexão sobre os
encaminhamentos daí decorrentes, sendo necessário decifrar as ideologias e as
forças presentes neste processo. Para trazer à tona esta realidade, foram ouvidos,
com a utilização da metodologia do grupo focal, profissionais do Serviço Social que
trabalham com as MSEs no DEGASE/RJ e também na assessoria do Ministério
Público do Rio de Janeiro. Buscou-se conhecer as diferentes concepções que
envolvem este complexo debate e sua relação tanto com o projeto ético-político da
profissão como com a doutrina de proteção integral da criança e do adolescente.
Entende-se que existe um:

Universo de questões que se põem aos profissionais que atuam no interior


das instituições do sociojurídico, pelo simples fato de, como visto, o jurídico
configurar-se como a esfera de resolução dos conflitos pela impositividade
do Estado. São questões de ordem ética e política que surgem nesse
universo e das quais não se pode “escapar”, sendo necessário enfrentá-las
com coerência. Contribui para alargar esse desafio a crescente
criminalização da pobreza e a judicialização das expressões da questão
social. Tais determinações se impõem hoje no cotidiano profissional nas
prisões, nos tribunais, nas unidades de internação de adolescentes, de
forma avassaladora (BORGIANNI, 2013, p.434).

Há de considerar-se como forma de compreender e aprofundar os elementos


desta realidade, a identificação das expressões da criminalização dos pobres, a
partir dos dados que os profissionais do Serviço Social apresentam através de suas
experiências neste cotidiano, e que, na perspectiva da conjuntura societária
conservadora e punitiva, os adolescentes que cumprem MSEs nas instituições
vivenciam de perto estas expressões. A funcionalidade da cultura punitiva e a sua
relação com a criminalização, na perpetuação das desigualdades sociais, acabam
absorvendo a intencionalidade ético-política da intervenção dos profissionais, bem
como também pode ficar evidente a não compreensão das “causas” da
criminalidade, estando a percepção deste fenômeno separado das dimensões
políticas, econômicas e sociais. Esse processo contribui para que os profissionais
fiquem em uma “roda viva” entre demandas do Poder Judiciário e das instituições
132

que atuam, sem aprofundar ou buscar estratégias quanto à relação de sua


intervenção com a violação de direitos dos adolescentes. Diante dessa realidade,
questiona-se sobre quais são as possibilidades do Serviço Social perante tantas
contradições. A identificação da instrumentalidade das MSEs como um forte
mecanismo da contínua e recrudescida desigualdade social pode ser uma das
respostas a esta questão.
Baratta (2003) traz elementos imprescindíveis para pensarmos criticamente a
instrumentalidade do sistema socioeducativo pela via da criminalização dos pobres:

O ponto em torno do qual gira o problema da continuidade da repressão aos


jovens pobres no Rio reside, então, na estratégia imutável da defesa
material e simbólica da desigualdade por parte dos grupos no poder, que
encontram o consenso interessado das classes médias. Criminalizar os
pobres é um instrumento indispensável porque garante materialmente a sua
posição subalterna no mercado de trabalho e a sua crescente exclusão,
disciplinando-os, pondo-os em guetos e, quando necessário, destruindo-os.
É também um instrumento indispensável para encobrir, com a imagem da
criminalidade perseguida, isto é, a dos pobres, o grande edifício da
ilegalidade e da violência que reúne em nossa sociedade as classes
detentoras do poder econômico. Este edifício é tanto maior quanto maior for
a desigualdade social (BARATTA, 2003, p.31).

Esta questão aparece na fala de uma profissional que aborda a dificuldade de


efetivar direitos em um espaço repleto de violações e de interdição de direitos. Os
adolescentes já chegam cerceados pela seletividade do sistema penal, o qual tem a
criminalização dos pobres como um elemento constitutivo e definidor das MSEs.
Este fenômeno é percebido pelos Assistentes Sociais de diferentes formas:

A lógica de quando o adolescente chega no sistema socioeducativo, para


cumprir uma MSE, a gente sabe que já teve falhas nas medidas protetivas
básicas, da assistência social básica, de acesso a direitos básicos, houve
uma falência, se perdeu algo nesse caminho e não só com o adolescente,
mas com essa família também. Aí ele chega no socioeducativo para cumprir
uma MSE e na audiência é garantido para ele que ele vai ter dentro deste
sistema garantias de acesso à educação, à saúde, à alimentação
(Assistente Social 3).

A lógica da criminalização dos pobres, preferencialmente dos negros, se


expressa nas MSEs, como já abordado nos capítulos anteriores, sendo necessário
ressaltar diante da crueldade dos dados da realidade. Os determinantes históricos
se perpetuam na atualidade como forma de neutralização e ou eliminação, pois se
constituem em um sistema que criminaliza “seletivamente, tornando delitos boa
parte das alternativas de vida do segmento negro e lançado sobre ele uma
133

suspeição generalizada, pode se valer desses mesmos atributos para condenar à


morte”. (FLAUZINA, 2008, p. 134).

Desta forma, as MSEs podem ser consideradas como uma das formas de

Criminalização dos grupos subalternos no Brasil – que, entre os países


latino-americanos, é o mais desigual e o que está mais próximo ao passado
escravista – permaneceu como um tipo de compensação à perda de
propriedade sobre os escravos e como uma forma de manutenção da
autoridade dos proprietários sobre os libertos e seus filhos. Se antes a
propriedade sobre os escravos autorizava a puni-los, torturá-los ou destruí-
los, agora continua-se a punir, torturar e destruir seus descendentes para
afirmar simbolicamente um tipo de propriedade sobre eles, para enfatizar
sua diversidade, para combater sua tendência natural à insubordinação
(BARATTA, 2003, p. 33).

Esta questão se apresenta no cotidiano do trabalho dos profissionais do


Serviço Social e é referendada nos relatórios avaliativos90 sobre os adolescentes. A
repetição de suas histórias de vida representa quase um “recorta e cola” de vidas
definidas por expressões da “questão social” e criminalizadas pelas instituições do
Estado, que - ao contrário - deveriam estar voltados para a defesa dos direitos
fundamentais. No entanto esta constante reprodução de expressões da questão
social não consegue ser mote para o estudo da realidade, para mediar a reflexão
sobre a efetividade da legislação ou para construir estratégias de intervenção
efetivamente fundamentadas no projeto ético-político profissional. A postura
investigativa91 necessária para a formação de profissionais críticos, para tanto fica
subsumida nas demandas cotidianas e na subserviência à autoridade administrativa
ou judicial, embora o profissional tenha consciência de que ali muitas infrações são
cometidas, não só pelos adolescentes.

Você situa o adolescente nas políticas públicas que falharam na escola que
ele evadiu, o DEGASE que ele entrou várias vezes e você não tem nenhum
tipo de retorno de respostas sobre isso, teve um período que no meu
relatório tinha que: “aquela situação se repete naquele território por
gerações e gerações, com o irmão dele, com o primo dele, o CRAS e o
CREAS que ele passou”. Às vezes na decisão da MSE, tendo em vista que
a internação provisória não é dada de maneira excepcional como está na
lei, plantão judiciário é internação provisória e é uma regra, se o
adolescente foi apreendido em Cabo Frio e o plantão judiciário que atende

90
Os relatórios avaliativos possuem como objetivo avaliar os adolescentes a cada seis meses de
cumprimento da MSE, com o intuito de referir sobre a permanência ou a liberação do mesmo. Os
assistentes sociais participam, assim como demais profissionais, como os psicólogos e pedagogos.
91
As diretrizes curriculares aprovadas em 1996 apresentam - como um dos princípios que
fundamentam a formação profissional - o “Estabelecimento das dimensões investigativa e interventiva
como princípios formativos e condição central da formação profissional, e da relação teoria e
realidade” (ABEPSS, 1996, p. 6).
134

aquela área: Araruama, Rio Bonito, e se ele vai para o plantão o Juiz vai
internar provisoriamente, mesmo se ele roubou um biscoito no mercado,
porque ele não vai se comprometer com a organização dos pobres
(Assistente Social 1).

A utilização da internação provisória, mesmo para adolescentes que não


foram pegos em flagrante, nem cometeram atos infracionais graves, tem sido muito
comum nos tempos atuais, nos juizados de grande parte do Brasil, procedimento
contrário ao que se refere o próprio ECA e a própria Convenção Internacional dos
Direitos da Criança92, em seu artigo 37°, inciso b:

Nenhuma criança será privada de liberdade de forma ilegal ou arbitrária: a


captura, detenção ou prisão de uma criança devem ser conformes à lei,
serão utilizadas unicamente como medida de último recurso e terão a
duração mais breve possível (ONU, 1989).

Na cidade do Rio do Janeiro, esta questão possui uma particularidade própria


pela própria divisão entre zona sul e zona norte93, sendo que a criminalização dos
pobres acaba se constituindo como fundamento central na composição deste muro,
que divide a cidade em duas. Os dispositivos de “controle social” - ao longo da
história - projetaram uma imagem de pobreza, que se perpetua no período atual
através de uma contemporânea “suspeição generalizada”, onde os jovens negros e
moradores de favelas e/ou demais áreas pobres passam a serem identificados como
ameaça. Assim, o entendimento é de que os adolescentes, ao buscarem o lazer
nestes espaços “nobres” da cidade, irão cometer atos infracionais, questão que
algumas vezes isso se efetiva através de roubos e/ou furtos, assim como na maioria
das vezes isso não se concretiza, porém o que é produzido sobre estes sujeitos é
uma cultura do medo, onde a mídia possui um papel fundamental de afirmação da
mesma, obtendo respaldo do poder judiciário:

É participar da cidade, né, porque nos arrastões o ato infracional dos


arrastões é o furto, o garoto fica internado 20 dias, perde vaga na escola,
realmente o judiciário demora a julgar e ele vai ficar no Dom Bosco. Na
assentada vem que vai tirar ele de um ambiente vil e permissivo e botar no
DEGASE, isso que me impressiona, tirá-lo de uma ambiente vil e colocar no
DEGASE (Assistente Social 1).

92
A Convenção Internacional sobre direitos de crianças e adolescente utiliza o termo “criança” para
denominar este segmento correspondente a idade de 0 a 18 anos.
93
Um importante registro histórico sobre esta divisão social entre zona sul e norte, principalmente
quando se refere ao acesso às praias, o preconceito aos pobres na década de 1970, no Rio de
Janeiro, é um vídeo de uma reportagem feita na época sobre este debate. O mesmo demonstra a
atualidade deste debate, e quando a classe dominante quer os pobres, negros e moradores das
periferias longe de seu convívio. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=W61Hu3Uj3
QA&spfreload=10>. Acesso em: 05 jan. 2017.
135

A instrumentalidade da histórica criminalização dos pobres se caracteriza pela


sua eficácia em eliminar, neutralizar, deixar longe aquilo que pode perturbar a classe
dominante: os pobres e seus modos de vida e a possibilidade de conformação com
sua realidade e existência de suas possíveis reivindicações. Essa eficácia
acompanha a “modernização” da sociedade e do Estado, através de aparatos
tecnológicos, mas também legais. Destaca-se a forma como esta criminalização é
justificada, utilizando elementos contidos no próprio ECA, ou seja, com a
apropriação pelos representantes da segurança pública de categorias que deveriam
se dirigir à proteção de crianças e adolescentes. É, neste sentido, a reflexão abaixo:

(...) mas só que o olhar desta sociedade, a gente está voltando para trás a
passos largos, quando as famílias que não podiam sustentar seus filhos,
eles iam para a FUNABEM, iam lá para as grandes instituições porque esta
família não podia, e é o que hoje está acontecendo, o adolescente que não
tem direito de curtir a sua praia, ele está sendo tirado do ônibus, e levado
para a delegacia, se ele tiver alguma passagem esconde, aí vamos salvar,
está em risco social! “Risco social” está sendo usado por policiais, ele está
em vulnerabilidade social, Beltrame falava isso (Assistente Social 3).

A perspectiva do “risco social” e da “vulnerabilidade social”, utilizada para


justificar a abordagem policial e apreensão de adolescentes, que se encontravam
nos ônibus que se dirigiam à zona sul da cidade, às praias. 94 A denominada
“operação verão”95, que acontece todos os anos é articulada pela Secretaria
Estadual de Segurança Pública, com a participação das polícias militar e civil e da

94
Em um único fim de semana de agosto de 2015, como o jornal EXTRA mostrou, cerca de 160
jovens foram retirados de ônibus que saíram do subúrbio em direção à Zona Sul, segundo
funcionários do Ciaca. Na ocasião, a prática foi condenada pelo Ministério Público, por parlamentares
e pelo próprio juiz Pedro Henrique Alves. Já o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, defendeu a
atuação da PM. No mesmo fim de semana, nenhuma das crianças ou adolescentes recolhidos nos
ônibus ficou apreendido por ter cometido qualquer ato infracional. Um ofício da Delegacia de
Proteção à Criança e Adolescente (DPCA), solicitado pela Defensoria Pública do estado, informou
que não houve apreensão de nenhum menor pela especializada. Ainda segundo o documento, alguns
adolescentes foram levados pela PM à delegacia para que fosse verificado se eles tinham mandado
de busca e apreensão pendente, mas nenhum possuía. Disponível em:
<https://extra.globo.com/casos-de-policia/juiz-condena-pratica-da-pm-de-recolher-criancas-
adolescentes-caminho-da-praia-17290527.html>.
95
Em publicação da revista Práxis do CRESS/RJ, este tema foi problematizado. Rodrigo Lima,
presidente do CRESS-RJ, chama a atenção para o caráter segregador da “Operação Verão”, “que
associou a ideia de “provável delinquente” a qualquer pessoa que estivesse descalça, sem camisa e
sem dinheiro, vinda de ônibus do subúrbio ou regiões periféricas da cidade. Com isso, o que se
tentou foi naturalizar e justificar a política de criminalização de segmentos pauperizados da classe
trabalhadora, praticada há tempos por autoridades públicas do estado do Rio de Janeiro. Vale
lembrar que este fato vem sendo insistentemente denunciado, já há muitos anos, por diversos
movimentos sociais e é tema que causa preocupação e denúncia de entidades nacionais e
internacionais de defesa dos direitos humanos” (Revista PRAXIS, nº 85, p. 86, 2015)
136

guarda municipal, foi aplaudia pela maioria da sociedade carioca. Perante os


questionamentos de entidades de defesa dos direitos para crianças e adolescentes,
a justificativa foi de “proteção”, pois estavam sem camisa e sem documento, bem
como se encontravam sem os responsáveis. Este é um exemplo da consolidação da
ideologia punitiva presente em nossa sociedade, que de forma consensual funciona
através de uma “suspeição generalizada”, para dar segurança ao “bom” cidadão.
A “operação verão” - denominada pelo governo do Estado de uma “ação
preventiva” - desencadeou importantes debates e reflexões coletivas fomentadas
pelo CRESS do Rio de Janeiro, através da Comissão de Assistência Social e a partir
daí a construção de um documento que balizou:

O posicionamento de muitos profissionais, contrários ao “Plano Verão” e


serviu para dissipar a confusão decorrente de sua implementação que
atrelava o papel política da “assistência social” (e, consequentemente, o
trabalho de assistentes sociais) à polícia das famílias. Questionamentos por
parte das equipes da SMDS, em especial, assistentes sociais, era de que
seu trabalho deveria apontar para a garantia de direitos, para a “liberdade
protegida”, destinada para os usuários da política, e não para uma falsa
liberdade contida num processo de vigilância perverso, “focalizado somente
nas classes subalternizadas” (LIMA, et al, p 11, 2016).

O questionamento tanto do CRESS, como dos demais defensores de direitos


humanos para adolescentes, era no sentido da liberdade, do direito de um cidadão
de ir e vir, referendados tanto na Constituição Federal como também no próprio
ECA. Portanto, o documento definia da seguinte forma:

Não há restrição do direito de ir e vir nem na Constituição Federal nem no


Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. Segundo o ECA, o direito à
liberdade (art. 16) compreende alguns aspectos dentre os quais podemos
citar: a) brincar, b) praticar esportes e c) divertir-se; d) participar da vida
familiar e comunitária, sem discriminação; d) buscar refúgio, auxílio e
orientação; e) ir vir e estar nos logradouros públicos e espaços
comunitários, ressalvadas as restrições legais. Geralmente crianças,
aquelas entre zero e doze anos incompletos, são objeto de maiores
restrições. Por exemplo, nos cinemas e teatros, com espetáculos de
classificação livre, crianças com menos de 10 (dez) anos de idade só
podem frequentar com a presença dos pais ou responsáveis. Há a
necessidade de autorização, por escrito, em casos de hospedagem de
crianças e adolescentes que não estejam acompanhados por pais, mães e
responsáveis (LIMA et al, p. 12, 2016).

Sobre o direito de deslocar-se sem os responsáveis, o mesmo documento


justifica que:

É necessário ter permissão para se deslocar entre estados. De acordo com


o ECA (art. 83), “nenhuma criança poderá viajar para fora da Comarca onde
reside, desacompanhada dos pais ou responsável, sem expressa
autorização judicial. Essa a autorização não será exigida quando: 1) tratar-
137

se de comarca contígua à da residência da criança, se na mesma unidade


da Federação, ou incluída na mesma região metropolitana; 2) a criança
estiver acompanhada: de ascendente ou colateral maior, até o terceiro grau,
comprovado documentalmente o parentesco (tio, tia, primo, prima, avô, avó)
ou de pessoa maior, expressamente autorizada pelo pai, mãe ou
responsável (um vizinho ou uma professora. Esse termo precisa ser
autenticado, pois traz vários dados de identificação) (LIMA et al, p.13,
2016).

O que mais chamou a atenção no episódio referido foi de que em outros


períodos, como no inverno, por exemplo, e em outros lugares, fora da zona sul da
cidade, no centro, por exemplo, estes meninos e meninas se movimentam se
locomovem também sem a presença de pais e ou responsáveis, e esta
“preocupação” não se efetiva por parte dos agentes do Estado.
A “suspeição generalizada” (BATISTA, 2003) se atualiza na combinação com
as denominadas “classes perigosas” (CHALHOUB, 1996), porém é através dos
próprios mecanismos legais que atribui-se razão às práticas segregadoras e
criminalizadoras. Desta forma, o discurso da “proteção” contido no ECA é acionado,
sendo que em nenhum outro momento esta preocupação tornou-se evidente pelas
instâncias de segurança pública e ou jurídico-penais. É importante aqui reforçar o
que já foi problematizado no segundo capítulo deste estudo, sobre a teoria do
“risco”. Scheinvar (2007) afirma que esta representa uma perspectiva individual de
um problema que é estrutural, encobrindo as desigualdades sociais e negando a luta
de classes. Cabe destacar também, neste processo, a lógica do ECA sobre a
separação entre o aspecto da proteção e das MSEs. Ainda que este conceito tenha
sido importante no período de promulgação do Estatuto, ao longo destes 27 anos,
em função de nossa persistente cultura punitiva, a ideia de “risco” acabou por
contribuir também para a criminalização destes meninos e meninas. Assim,
questionamos o porquê da MSE não poder envolver a proteção, afinal isto é previsto
tanto no ECA, bem como é reforçado no próprio SINASE. Também entendemos que
esta contribui para efetivação de práticas violadoras tanto por parte da polícia, na
apreensão dos mesmos, como no interior das instituições de cumprimento
socioeducativo.

A separação do setor de proteção do setor da resposta à conduta infratora


constituiu um grande progresso, mas, em um primeiro momento, talvez
tenha fornecido um álibi moral à consciência coletiva, em favor da repressão
aos meninos pobres: se na emergência risco-abandono respondemos com
medidas de proteção, respondemos então com repressão à emergência-
crime. O álibi, que assim se criou, não percebe nem o espírito nem a letra
do Estatuto, nem o fato de que, muitas vezes, os adolescentes infratores
moradores de favelas e bairros pobres são meninos em situação de risco –
138

abandono, isto é, privados de muitos dos seus direitos fundamentais


(BARATTA, 2003, p. 29).

Outro aspecto relevante que marca, para os profissionais, a criminalização


destes sujeitos que chegam para cumprir MSE é o fato de que estabelece, de forma
estigmatizada, seu caráter permanente em “grupos” e ou “facções”, contribuindo
para a “exclusão” e ou guetização, reafirmando que os mesmos não fazem parte da
sociedade dos “homens de bem”, mas, sim, da “bandidagem”, através da
participação nas facções criminosas. A denominada concepção de cidadania
negativa que se restringe ao “conhecimento e exercício dos limites formais à
intervenção coercitiva do Estado. Esses setores vulneráveis, ontem escravos, hoje
massas marginais urbanas, só conhecem a cidadania pelo avesso, na “trincheira
auto-defensiva da opressão dos organismos do nosso sistema penal” (BATISTA,
2003, p. 57).

Em relação à reprodução das expressões da questão social, questão da


entrada do adolescente no sistema socioeducativo já é um marco, e tem a
criminologia crítica que vai falar que existe uma economia que acontece nos
sistemas de privação de liberdade e quando ele entra no DEGASE fazem a
pergunta para ele de qual grupo ele é, dentro desta economia paralela,
então já é um momento que se expressa a questão social aí, porque ele
pode ser inserido em uma certa engrenagem econômica, que é a tal da
facção e não voltar a estudar, eu trabalho na internação provisória, onde o
adolescente fica por até 45 dias, neste período o colégio que sabe que ele
estava cumprindo MSE de internação provisória e não aceita ele de volta, e
neste mesmo período ele virou de uma facção, então quer dizer, o colégio
não aceita ele de volta, mas a facção passa aceitar porque ele esteve neste
sistema (Assistente Social 1).

O grupo de profissionais abriu um debate sobre o fato de o próprio Estado


reforçar e corroborar com a organização das facções, próprias do sistema penal
para adultos96, ao perguntar ao jovem qual seu território e a qual facção pertence,

96
A crise do sistema penitenciário, que é histórica (massacre do Carandiru/1992), marcada pela
evolução de superlotação, péssimas condições de estrutura, insalubridade e violência, veio à tona
e/ou explodiu no início deste ano (2017). A barbárie promovida pela falência do sistema penal
brasileiro foi televisionada na mídia burguesa de massa. Conforme a matéria da EBC: “A morte de
mais de 100 detentos chamou atenção para a guerra de facções criminosas dentro de presídios
brasileiros e expôs a fragilidade do sistema penitenciário nacional. Segundo os últimos dados
divulgados em 2014 pelo Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça
(Infopen), o Brasil chegou à marca de 607,7 mil presos. Desta população, 41% aguardam por
julgamento atrás das grades. Ou seja, há 222 mil pessoas presas sem condenação. Três episódios
que aconteceram em 2017 denotam a crise nos presídios brasileiros. No dia 1º de janeiro, pelo
menos 60 presos que cumpriam em Manaus (AM) foram mortos durante a rebelião que durou 17
horas. Na mesma semana, houve um tumulto em uma penitenciária em Roraima, onde 33 presos
foram mortos. No dia 14, Rio Grande do Norte, pelo menos 26 presos foram mortos em rebelião na
139

este jovem passa a ser definido como partícipe ou do PCC (Primeiro Comando da
Capital) ou do Comando Vermelho. Ou seja, o Estado acaba por contribuir e
referendar as facções criminosas, ainda que muitos adolescentes não tenham esta
definição e/ou inserção, e não estivessem nelas inseridos. Sobre isto, um
profissional discorre que:

Em relação ao trabalho com o adolescente sobre esta questão das facções


eu acho bastante complicado, eu sempre penso que realmente o Estado
organiza de certa forma a facção, deixa o adolescente no alojamento com
outros do território semelhante, a primeira pergunta que é feita é de qual
facção ele é, se ele fala que é de um território específico é atribuído a uma
facção e de certa forma o Estado está organizando esta economia paralela,
que pela criminologia crítica diz que no ambiente de privação de liberdade
gera-se esta economia paralela, o Estado de certa forma está organizando
e é por isso que neste sentido as facções do Brasil, as maiores foram
criadas nos ambientes carcerários, o Comando Vermelho na Ilha Grande
com a junção de presos políticos naquele período, o PCC com o massacre
do Carandiru, então essa subjetividade da facção é muito forte em ambiente
de privação de liberdade e o Estado de certa forma corrobora com isso,
reproduz isso, organiza isso (Assistente Social 1).

Parte constitutiva da hipótese central deste trabalho é a afirmação do


recrudescimento da cultura punitiva, tendo a criminalização dos pobreza como
principal mecanismo. No âmbito do trabalho do assistente social, estas
determinações devem ser mediadas com a vida concreta de sujeitos concretos.
Assim, a “questão social” deve ultrapassar o âmbito conceitual, para ser reconhecida
no cotidiano dos adolescentes que cumprem MSEs, com suas histórias e modos de
vida, na identificação de elementos relacionados à lógica da criminalização dos
pobres, entendendo também sua inscrição neste processo seletivo. Neste sentido,
os participantes do grupo focal discorreram sobre o perfil socioeconômico dos
adolescentes que cumprem MSEs no DEGASE. Foram apresentadas as seguintes
referências:

- Na maioria com o primeiro grau incompleto (Ensino fundamental)


acompanhado principalmente pelas mães, ausência dos pais, são
principalmente negros... (Assistente Social 1)
- Faixa etária na maioria de 15 a 17 anos de idade e evadidos da escola.
(Assistente Social 2)
- Semianalfabetos, desculpa, analfabetos, analfabetos funcionais,
conseguem assinar o nome com dificuldade (Assistente Social 3)
-Região metropolitana do Rio de Janeiro... (Assistente Social 4)
- Das periferias... (Assistente Social 3)

Penitenciária Estadual de Alcaçuz”. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/especiais/entenda-crise-


no-sistema-prisional-brasileiro>
140

- Na internação provisória, eu vejo bastante Baixada Fluminense e região


metropolitana (Assistente Social 1).

Os indicadores apresentados corroboram com os dados já referenciados


anteriormente e deixam claro quem são os jovens e as famílias atendidas e sua
vinculação com o “mundo da pobreza” para além de serem representantes do
“mundo do crime”:

- Este perfil que falamos aqui... da não renda, do trabalho informal, talvez
em média um salário e meio, acho que as famílias conseguem tirar
mensalmente (Assistente Social 2).
- Também são famílias inseridas em programas de transferência, de renda,
o bolsa família, eu falo este dado por conta das solicitações de declaração
de frequência escolar, pois tem que estar estudando, mas não que a gente
cruze isso, pois isso tem na ficha de acolhimento e de recepção
(Assistentes Social 3).

No entanto, apesar da clareza expressa sobre “a condição social” dos


adolescentes e suas famílias, a vinculação com a perspectiva de classe social,
aparece, na fala dos profissionais, de certa maneira encoberta. Alguns profissionais
relacionaram a condição de classe, situando os sujeitos como:

- Em extrema vulnerabilidade social (Assistente Social 3);


- Com violações de direitos, ausência de escolarização (Assistente Social
1);
- Provenientes das periferias das grandes metrópoles, aí a gente pega São
Gonçalo, Niterói, da Baixada Fluminense, oriundos das favelas. (Assistente
Social 3)
- Trabalhadores do tráfico de drogas (Assistente Social 2).

A caracterização da condição dos sujeitos como em “violação de direitos” e


“extrema vulnerabilidade social” pode vir a ser uma possível armadilha para pensar
sobre o trabalho do Serviço Social, pois esta análise pode vincular-se a uma
compreensão reduzida da “questão social”, não reconhecendo a centralidade da
criminalização e da cultura punitiva. Também sobre a denominação de estarem em
“violação de direitos”, pode se remeter ao fato que se passar a acessar alguns
direitos sua condição pode ser transformada. Desta forma, não se processa a
relação com elementos da totalidade social, bem como se exclui seu caráter de
classe social. Podemos também identificar nesse processo a visão fetichizada da
categoria “sujeito de direito”, que é situada fora das condições históricas
determinadas, pois, na realidade, a “categoria de sujeito jurídico é, evidentemente,
estabelecida no ato de troca que ocorre no mercado. E é justamente neste ato de
141

troca que o homem realiza na prática a liberdade formal da autodeterminação”


(PACHUKANIS, 1988, p. 75). Podemos considerar, então, o aspecto evolutivo do
ECA ao estabelecer no âmbito formal e legal o adolescente como “sujeito de direito”,
porém esta, por si só, assim como pela vontade individual dos jovens, não se
concretizará.

A criminalização dos pobres é histórica nesta área. Este era o perfil das
internações no final da década de 1930, conforme já demonstrava o trabalho da
assistente social Isolina Pinheiro:

Causas de internação: “em pesquisa de verificações de entrada de menores


nos estabelecimentos subordinados ao Juízo de Menores, notamos que os
abandonos resultavam quase totalmente da miséria, ruindo lentamente os
pobres lares até que o desânimo completasse a obra de destruição –
desagregação da família, abandono dos filhos, abandono dos pais, vícios,
delinqüência, prostituição, alcoolismo – e dessa onda avassalante salvaram-
se ainda, no tocante aos filhos, o que pedem as suas internações pela
consciência vaga de que os devem proteger, ou pelo sentimento paterno ou
materno que ainda conservam vivos em seus corações desiludidos
(PINHEIRO, 1985, p. 87).

O perfil acima desenhado pelos profissionais cita os adolescentes como


“trabalhadores” do tráfico de drogas, questão que já problematizamos também como
um dos determinantes da cultura punitiva, que se expressam nas MSEs. Os dados
apresentados pelos profissionais corroboram com os dados tanto do DEGASE
(2015) como do Anuário de Segurança Pública, (2013) de que o tráfico de drogas
representa a maior causa das internações no Rio de Janeiro e também na grande
maioria dos demais Estados do Brasil.

No segundo semestre de 2015, a gente fez uma compilação de dados com


base nas vistorias realizadas nas unidades, de julho a dezembro, e com um
recorte específico sobre o ato infracional, e o percentual dominante ainda
era o tráfico, nesta janela de 33 a 38, e depois vinha o furto e roubo
(Assistente Social 2).

Neste contexto, é mencionada também a forma como o Poder Judiciário


define a prática do delito e as medidas decorrentes:

Bom, é considerado um ato infracional que é tipificado como análogo ao


artigo 33 do código penal, que também me impressiona muito o uso do
código penal nas assentadas, sempre me impressiona, porque eles fazem
questão de colocar o artigo e análogo? Sempre colocam o artigo 33 e
análogo parece uma resistência ao próprio ECA, não sei se facilita em algo
o trabalho da justiça quando você tipifica com o artigo, me parece uma
predileção ao Código Penal na assentada, mas é em relação a isso, é
142

facilmente quantificada. Mas será que é necessário recorrer ao Código


Penal? (Assistente Social 1).

Esta questão é abordada por outro profissional que amplia a concepção


crítica sobre o sistema de justiça:

(...), mas a gente tem que saber que está lidando com o sistema de justiça,
um sistema que é totalmente retrógrado, que não consegue ter outra
perspectiva. (Assistente Social 3).

Sobre as MSEs utilizarem a tipificação dos atos infracionais vinculados ao


Código Penal, é o resultado de “uma opção de política criminal, haja vista que as
condutas são as mesmas praticadas por adultos; os que os distingue é a fase de
desenvolvimento da personalidade, como decorrência do déficit da idade,
justificando assim a criação e a implementação de medidas e programas específicos
de responsabilização” (SPOSATO, 2006, p. 80).
Buscou-se, então, apreender como os profissionais compreendiam a
realidade dos adolescentes que se envolviam com o tráfico, o contexto da expressão
da “questão social” e o porquê da busca pela renda nesta forma de “trabalho”. Foi
então explicitado que:

A fase da vida diz muito, né! Por ser adolescente, esse momento de vida
que ele vive, aí você faz uma associação com este perfil socioeconômico
que ele tem, das limitações de alcance de bens e de serviços e de produtos
e quanto as relações de status tem seu significado dentro das comunidades
não só favelas mas comunidades como um todo e o quanto estas
perspectivas da sensação de status tem um poder muito grande de sedução
pelo dinheiro, de ter a menina mais bonita do morro e vários aspectos, ser
visto, ser respeitado, acho que perpassa muito por isso, por estes aspectos
relacionados e o movimento do adolescente ao encontro do que vai dar
respostas para ele de uma maneira mais rápida, aos aspectos relacionados
mesmo a fase da vida. (Assistente Social 2).

Diante desta realidade, é importante frisar que consideramos a afirmativa que


a fase da adolescência se caracteriza por uma fase de desenvolvimento, formação,
bem como de “testes” e de um período também de transgressão a normas e
regras97. O que temos que considerar é a perspectiva de classe social que envolve
ser um adolescente no Brasil. Se um jovem de classe média ou alta transgride e é

97
Considerado pelo ECA em seu artigo 6º: Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins
sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos,
e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. (BRASIL,
1990).
143

pego pela polícia, é considerado e/ou “tratado” pelo viés da psicologia, psiquiatria,
ou medidas socioeducativas em meio aberto (principalmente as medidas de
prestação e serviço à comunidade). Já se um negro, morador de periferia e pobre
transgredir - e for pego pela polícia - ele será torturado, morto ou irá cumprir MSEs
(privação de liberdade). A questão também que envolve o “trabalho” no tráfico deve
ser analisada pelo viés da inserção nesta sociedade, onde não há espaço para
todos no que se refere ao acesso a bens e consumo, bem como, na conjuntura
atual, estes jovens pobres são filhos de pais que estão fora do mercado de trabalho
formal, e não vão ser inseridos, são supérfluos que não irão ser incluídos, assim
como estes adolescentes que não possuem escolarização. Buscar a renda pelo
tráfico, na maioria das vezes como única alternativa, como forma de inserção,
demonstra a própria expressão das desigualdades sociais nesta relação. Neste
sentido, a criminalização dos pobres opera como uma arma da burguesia na defesa
da propriedade privada, e a forma jurídica possui este papel.

A forma jurídica, em sua forma desenvolvida, corresponde precisamente a


relações sociais burguesas–capitalistas. É claro que formas particulares de
relações não suprimem essas mesmas relações e as leis que lhe servem de
fundamento. Deste modo, a aquisição de um produto, no interior de
determinada formação social, e graças às suas forças, é um fato
fundamental ou, se quisermos, uma lei fundamental. (PACHUKANIS,1988,
p. 68).

A busca dos adolescentes pelo tráfico de drogas representa, em primeiro


lugar, uma alternativa de renda em relação à sua condição e de sua família, sendo
que os mesmos são membros, em sua grande maioria, das classes subalternas. Em
segundo lugar, compreendemos que também está vinculada a uma forma “fácil” de
inserção, pois a venda e compra de drogas, na sua maioria, está localizada perto do
local de moradia destes meninos, ou seja, lugares com pouca infra-estrutura de
saúde, educação, cultura e lazer. Compreendemos, então, o “trabalho” no tráfico de
drogas de crianças e adolescentes como expressão da “questão social”; e a
criminalização dos pobres como forma de resolução deste fenômeno.

E na perspectiva do trabalho, uma vez cheguei a ficar bastante surpreso por


conta do sistema de “previdência”, não só sobre a questão da remuneração,
mas quanto à previdência. Um menino que foi morto durante uma ação de
trabalho, ele estava na defesa da boca e trocou tiros e morreu, então ele
morreu no exercício do trabalho mesmo e enquanto aquele território for
gerenciado pela mesma “empresa”, o dono do morro ali, aquela família é
assistida e isso vinha pelo adolescente e pela família também e eu acho
que traz mais subsídios para caracterizar este ambiente que ele está se
inserindo, então a perspectiva do trabalho, do que ele alcança e das
144

respostas que ele pode ter a nível dos desejos que ele tem e quanto isso
tem representatividade para ele. (Assistente Social 2).

Desta forma, cabe assinalar como a não descriminalização das drogas e a


política denominada “guerra às drogas” acabam se constituindo em um potente
instrumento de “controle social” dos pobres, através da punição e também formas de
eliminação, através dos agentes de segurança pública. Parece-nos óbvio, pelas
estatísticas e dados da realidade, que a política proibicionista não traz mais
benefícios para toda a sociedade. Especialmente na realidade brasileira, a mesma
possui papel de criminalizar grupos e territórios que não servem mais ao mercado, e
este, por outro lado, cresce através do aumento da venda e do consumo de armas e
dividendos correspondentes a este mercado muito lucrativo. Sobre esta questão, é
possível observar que:

A perspectiva proibicionista não é consenso no âmbito das organizações


internacionais vinculadas às Nações Unidas, o que reforça ainda mais a
necessidade de discussão desta temática. Assim, a Organização Mundial
da Saúde, OMS e do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre
HIV/AIDS defendem estratégias de redução de danos. Esta já adotada em
alguns países, como Holanda, Espanha e Portugal e em alguns estados dos
Estados Unidos da América e mais recentemente no Uruguai. A experiência
portuguesa, já com doze anos de prática, indica especialmente a
possibilidade de o Estado estabelecer uma via de comunicação entre
instâncias do sistema legal e o sistema de saúde. Da mesma forma e não
menos importante é que a lei portuguesa não fez subir o número de
consumidores naquele país. (WOLFF, 2015, p.7).

Consideramos ser relevante também indicar que o envolvimento de


adolescentes no tráfico de drogas é considerado pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT), através da convenção 182, ratificada pelo Brasil em 12 de setembro
de 2000, como uma das piores formas de exploração do trabalho infantil. Este
conceito abrange:
a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como
venda e tráfico de crianças, sujeição por dívidas, servidão, trabalho forçado
ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou obrigatório de crianças
para serem utilizadas em conflitos armados; b)utilização, recrutamento e
oferta de criança para fins de prostituição, produção ou atuações
pornográficas; c)utilização, recrutamento e oferta de criança para atividades
ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes,
conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; d) trabalhos que,
por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são
susceptíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança. Estas
quatro categorias integram o núcleo básico do conceito “piores formas de
trabalho infantil” e devem ser priorizadas nas políticas e suas estratégias de
combate. (BRASIL, 2006).
145

Considerando, então, a Convenção da OIT, fica claro que se o trabalho no


tráfico de drogas é referido como exploração do trabalho infantil, sendo mais um
elemento para compreendermos como expressão da “questão social”, o debate que
deve ser feito é de que estes jovens precisam é de proteção e não de
responsabilização. Esta questão vem sendo discutida pelos defensores públicos e
entidades de defesa de direitos humanos para este segmento. Porém possui pouca
visibilidade, imperando, sim, a criminalização. Neste sentido, o grupo focal discutiu
sobre qual seria o papel do Serviço Social em relação a esta constatação:

O sistema de justiça hoje ele é conservador, a maioria dos Juízes são


conservadores por mais do discurso progressistas que possa ter, mas na
prática acha melhor aprisionar do que deixar né... é uma prevenção a
privação de liberdade e o tráfico ele é visto como crime. Por este sistema de
justiça vigente, que vem se arrastando por décadas, é crime, então o
adolescente que tem 12 anos está na sua primeira passagem e for pego
com 4 trouxinhas de maconha é considerado traficante, ele é traficante
então ele merece ficar 45 dias, ou 60, ou 80 dias, e depois ele é
encaminhado para cumprir seis meses de MSE. (Assistente Social 3).

Reconhecemos que neste espaço, principalmente vinculados ao Poder


Judiciário, a autonomia é relativa, porém a ausência de uma análise que vincule
estes jovens à expressão da “questão social” e ou às formas de resolução, como a
criminalização, podem reduzir ainda mais o espaço do Assistente Social. O que
resta, então, é o trabalho com o adolescente em uma perspectiva individualizada,
pela qual acreditamos obter pouco retorno por parte do mesmo, diante do que
representa a sua vida fora da instituição. Cabe pensarmos na perspectiva da
autonomia relativa, onde podemos fazer a escolha pela defesa da burocracia jurídica
ou com os direitos, mesmo que em uma condição também limitada, mas trabalhar a
partir da análise da contradição existente, explicitá-la e caminhar na direção dos
princípios do ECA e do projeto ético-político do Serviço Social, que estão em uma
lógica contrária à cultura punitiva. Contradição que não se apresenta na análise feita
pelo profissional, através do relato de como se trabalha com os jovens vinculados ao
tráfico de drogas:

Então no momento da intervenção eu falo assim: você sabia que você é


explorado? Qual é sua carga horária no tráfico? Você pegava que horas na
boca? E aí ele respondia, eu ficava 24 horas. Como assim 24 horas? E eu
perguntava também: mas você tinha alimentação? Pagavam sua
alimentação? Você tinha momentos de descanso? Porque não sei se você
sabe quando você trabalha tantas horas você tem direito a um número de
horas de descanso, intervalo para descanso, né! Então assim, eles não
tinham esta dimensão, o que interessava para eles era o resultado final de
na sexta feira pegar, na época que agora está caído, né, R$ 1500, 2000
146

reais para poder curtir o baile e aí eu trabalhava muito a questão da


administração financeira, porque eu falava para eles: esta não é a realidade
do povo, esta não é a realidade de quem está sentado aqui na minha frente
dizendo que quer mudar de vida, a lógica é outra, porque se você quer
mudar a sua vida, entende se que você não quer voltar a essa atividade
ilícita e trabalhava com ele o significado do lícito e do ilícito, administração
financeira, pois eu não vou poder pegar R$ 2000,00 e gastar em um
sábado... (Assistente Social 3).
E ainda na privação de liberdade! (Assistente Social 2).

O questionamento que cabe é de que se a busca por romper com esta forma
de inserção como estratégia de sobrevivência e/ou de consumo depende
propriamente de uma escolha individual destes jovens. Questionou-se, desta forma,
no grupo focal, se a reflexão dos assistentes sociais não estaria reproduzindo um
senso comum contido na sociedade, ou também uma visão romantizada sobre a
própria escolha dos mesmos. É neste sentido a manifestação abaixo:

E a privação, porque ele podia ter dinheiro, mas ele não tinha a liberdade de
ir no shopping para comprar, ele não tinha como ter acesso aos bens de
consumo que empoderavam ele perante o grupo, entendeu? Está com o
tênis? Está com a moto? Ele não podia, porque se ele saísse dali corria o
risco de ir para trás das grades, né, então assim, a defensoria pública
sempre vem, não com o discurso de que está vinculado à exploração do
trabalho infantil, mas com o discurso de que tem lá uma súmula do STJ que
fala que quem, no caso dos adolescentes, com uma certa quantidade, ele
não deveria ir... que o tráfico, o artigo 33, não deveria ser encaminhado para
a privação de liberdade, receber MSE. (Assistente Social 3).

Consideramos que a decisão de “trabalhar” no tráfico de drogas pode vir a ser


uma única alternativa ou também uma escolha, pois não podemos deixar de
considerar que a “questão social” e suas expressões são também rebeldia. Como já
mencionado, a busca de renda através do tráfico de drogas, refere-se a uma
estratégia de sobrevivência no sentido de “levar” dinheiro para dentro de casa e
também como forma de inserção na sociedade de consumo, onde quem tem acesso
a um tênis “Nike” ou a um moderno aparelho de celular passa a ser visível, ou
melhor, aceito. Para estes jovens que fazem parte desta sociedade de consumo
(nesta perspectiva são incluídos), a única forma de consumir será através dessas
estratégias. Acreditamos também que os mesmos possuem consciência de que será
muito difícil a inserção no mercado formal de trabalho, e que muitos não têm
capacidade de perceber-se inseridos em um trabalho com carteira assinada, porém
acredito que, em sua maioria, eles têm a consciência de qual é o seu lugar nesta
sociedade burguesa, e o que resta é “matar” ou “morrer”, porém entre este período
buscam como qualquer jovem a inserção financeira para “brilhar e se divertir”.
147

Acreditamos que o aprofundamento da compreensão sobre o modo de vida desses


sujeitos, sua cultura e suas resistências é fundamental para o Serviço Social, porém
no âmbito de uma instituição punitiva e não socioeducativa, na qual os jovens são
avaliados pela sua história, “conduta pregressa” e disciplina institucional, esse
aprofundamento torna-se limitado.

Desse modo apenas o desenvolvimento do mercado gera a possibilidade e


a necessidade de transformar o homem, que se apropria das coisas pelo
trabalho (ou pela espoliação), num proprietário jurídico. Entre estas duas
fases não existem fronteiras rigorosas. O “natural” passa insensivelmente
para o “jurídico”, tal como o roubo à mão armada está estreitamente ligado
ao comércio. (PACHUKANIS,1988, p. 81).

Em relação à lógica do tráfico, os profissionais são convidados a falar sobre a


lógica da punição e quais possibilidades e/ou alternativas diante da criminalização e
de medidas socioeducativas, que apenas punem. Neste sentido, refletem que:

Existe a perspectiva da justiça restaurativa que quando há um ato


infracional com vítimas, que me parece que não é levado muito à frente esta
perspectiva restaurativa, e antes da chegada do adolescente no Degase,
né, porque ele é identificado, é evadido da escola e tem o primeiro grau
incompleto, alguma coisa falhou antes, acho que aí se avalia ou não o
encarceramento. (Assistente Social 1)
Essa Justiça Restaurativa, JR está alinhada à nossa lei de regulamentação?
Estou falando enquanto AS, né, a gente tem que pensar, a nossa lei de
regulamentação ao nosso Código de Ética? Ela vai de encontro a isso?
Porque você buscar o perdão como está no TJ e no MP? Eu também tenho
lido um pouco e estou problematizando isso, que é assim quando a gente
fala da questão dentro dos nossos relatórios da questão do
condicionamento, do comportamento deste adolescente na Unidade desde
seu ingresso, eu me pergunto o que a gente deve colocar ou mediar neste
processo, seja de mediação ou da JR a questão do arrependimento? Do
perdão, isso é novo, é bonito, é vistoso, interessante, mas eu acho que a
gente tem que... porque é a mesma coisa, o mesmo papel, passar para o
Juiz a questão comportamental deste adolescente, se ele se comportou, se
ele se envolveu em algum episódio de conflitos com outros adolescentes e
eu na minha prática eu vou...ele se arrepende, “durante nossos encontros o
adolescente fala de seu arrependimento, solicita pedir perdão à vítima”,
sabe... (Assistente Social 3).

A “Justiça Restaurativa” mencionada e problematizada pelos profissionais,


como saídas e/ou formas de resolução da criminalização e da punição, nos chama
atenção e acreditamos estar vinculada a teorias pós-modernas, e, portanto a
“decadência ideológica”, como já mencionado (está na “moda” no Brasil). Sendo
uma forma (metodologia) de resolução de conflito no que envolve os adolescentes
que cometem atos infracionais, e como substituição à falência das medidas
socioeducativas, é o surgimento e aplicação de práticas vinculadas à denominada
“Justiça Restaurativa”. Neste sentido, acreditamos que a situação do sistema
148

socioeducativo e das Unidades onde são executadas as medidas encontram-se


diante de um caos e violência bárbara, que ações como essa podem em um
determinado momento “aliviar” a superlotação e a crueldade do sistema. Porém
observamos que ao tratar a “restauração” do crime, em mediações de conciliação
entre vítima e autor, acaba-se por individualizar mais ainda a questão, como um
desvio particular onde o autor deve demonstrar arrependimento pelo ato cometido.
Bem como o adolescente é retirado de uma Unidade de execução insalubre, onde
atos de tortura são comuns, para participar de um “círculo restaurativo” que busca a
harmonia entre os participantes. Vejamos, então, uma das definições:

Segundo a definição de Howard Zehr, a Justiça Restaurativa é uma


abordagem para tratar os efeitos do crime que pode ser compreendida
como uma resposta sistemática às infrações e suas consequências, numa
ênfase à cura das feridas geradas pelo agravo. Para tanto, o método
oportuniza a participação ativa de todos os envolvidos no conflito, em uma
aproximação que privilegia o diálogo e a concretização de ações para a
superação dos danos ocasionados pela infração. Assim, com apoio em um
procedimento que tem como valor máximo o respeito e a escuta multilateral,
a prática restaurativa abre espaços para a reconciliação e para o
restabelecimento das relações humanas abaladas com a violação.
(CEDECARJ, 2014).

Bem como sua aplicação é sugerida por normativas internacionais de direitos


humanos e no Brasil pelo Conselho Nacional de Justiça:

No contexto juvenil, a JR encontra abrigo em normativas internacionais


como a Convenção dos Direitos da Criança, as Regras de Beijing e a
Resolução 2002/12 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas
(ECOSOC). O método foi ainda referendado na Declaração de Lima,
resultante do I Congresso Mundial de Justiça Juvenil Restaurativa, entre
outros fóruns nacionais e internacionais. Nas últimas décadas, tem-se
testemunhado experiências exitosas de Projetos restaurativos em diversos
países do mundo, como Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Espanha,
Bélgica, Dinamarca, Inglaterra, Argentina, entre muitos outros. A partir de
aspectos convergentes destas experiências, pode-se afirmar que a JR vem
apontando um caminho para a redução da criminalidade, da reincidência,
ademais de contribuir com a construção de um sentido de justiça realizado
sob prismas restaurativos, os quais concedem à vítima e ao ofensor a
possibilidade de coautoria na construção de soluções reparadoras.
(CEDECARJ, 2014).

O aspecto reparador e ou soluções reparadoras a que se dispõe a “Justiça


Restaurativa”, em nossa compreensão, se desvincula das contradições da
sociedade burguesa, como se a resolução destes conflitos vinculados à “questão
social” será resolvido através de mediações na busca de um bem comum e da paz
social. Abaixo segue um exemplo de trabalhos apresentados no Seminário
Internacional de Direitos humanos, ocorrido na UERJ em 2016, onde abordam
149

questões sobre a Justiça Restaurativa como uma forma talvez romantizada de


resolução das expressões da “questão social”, bem como da sociedade burguesa:

A Justiça Restaurativa é um trabalho que pretende ampliar e questionar o


conceito de justiça, é uma prática que não procura culpados, ela trata de
restaurar relações, como também restaurar a forma de olhar para como o
conflito se apresenta. Justiça Restaurativa se coloca junto com a cultura de
paz e com os direitos humanos, onde prevalece o foco na autonomia da
vontade, na voluntariedade, com o propósito do bem comum e ganhos
mútuos. (SAMPAIO, 2016, p.2).
Nosso desafio é tomar a Justiça Restaurativa e suas propostas como
produtoras de deslocamento das verdades constituídas ao longo de anos a
partir dessa relação entre sociedade e adolescentes. Precisamos restaurar
nossa capacidade de invenção com o mundo que nos cerca. A Justiça
Restaurativa, através da afirmação de valores como responsabilização,
inclusão, participação e diálogo, pode corresponder a anseios civilizatórios
inadiáveis nos tempos presentes em que a violência teima em se impor
como forma natural de sociabilidade. (SAMPAIO, 2016, p.3).

Neste sentido, é importante destacar que acreditamos que esta prática pode
vir a ser salutar, bem como defendemos os direitos humanos e lutamos para uma
sociedade onde a “paz” seja uma realidade concreta para todos os seres humanos,
bem como esta “paz” esteja vinculada à eliminação de todas as formas de
exploração e dominação. Portanto, compreendemos que a teoria que consolidou o
surgimento da “Justiça Restaurativa” esteja realmente imbuída na busca desta
sociabilidade, porém sua prática acaba encobrindo os grilhões de uma sociedade
desigual e violenta, principalmente com os jovens pobres, negros e moradores das
periferias das cidades. É oportuno frisar que o Serviço Social vem sendo solicitado
para participar como membro dos círculos restaurativos, então, é urgente o
aprofundamento sobre a temática para que possamos nos posicionar diante da
participação crítica nesta metodologia e/ou a posição da não participação.
A problematização da utilização das MSEs como instrumento de neutralização
- e/ou eliminação destes sujeitos - torna-se fundamental para os profissionais do
Serviço Social, bem como a apropriação da instrumentalidade da cultura punitiva na
compreensão da realidade que envolve as MSEs, questão que iremos aprofundar no
próximo item.
150

3.3 A presença da cultura punitiva: das determinações da história para a


instrumentalização da realidade

O Brasil se policizou intensamente a partir da “transição democrática”. É


como se uma cultura punitiva de longa duração se metamorfoseasse
indefinitivamente. Mudam os medos, mas ele, o medo, permanece ali,
dirigido aos mesmos de sempre, os do “lugar do negro”. A tradução da
conflitividade social em crime produziu, por um lado, o intragável
politicamente correto, os “do bem”, e, por outro, o acirramento do estado
de polícia de combate, o bom matador puro. Assim, a judicialização da
vida privada caminha com a gestão policial da vida. (BATISTA, 2011, p.
114).

A cultura punitiva, como já definimos, é histórica, persistente e sedimentada


nos tempos atuais, ainda que com formas ressignificadas. É instrumental à
perpetuação da criminalização dos pobres, mas, apesar disto, suas formas parecem
ser invisíveis perante grande parte da sociedade brasileira. Os principais elementos
que evidenciam e constroem a cultura punitiva no Brasil se reproduzem tanto nas
formas seletivas e violentas da apreensão policial de adolescentes como na
administração das MSEs nas unidades de internação. Entre estes aspectos que
compõem a cultura punitiva estão a punição e/ou acusação sem o devido processo
de investigação, a centralidade do crime e da pena nas análises sobre o ato
infracional e a percepção focalizada sobre o crime e a pena. Processa-se, então, o
resgate de elementos autoritários não superados pela democracia e que se
transmutam como prática considerada “pedagógica” e utilizada como
disciplinamento na tentativa falaciosa de os jovens aprenderem a “serem melhores”,
“cidadãos de bem” e não cometerem mais crimes. Apresenta-se também como
disciplinamento interno, controle, tortura, elementos inquisitoriais, bem como
negação da luta de classes. Ou seja, são muitos elementos que compõem a cultura
punitiva e que se manifestam nas MSEs, os quais buscamos tornar visíveis com esta
pesquisa, demonstrando que o ECA isolado, sozinho, não obtém condições para
superá-la.
A aprovação do ECA, em substituição ao Código de Menores, expressou
amadurecimento político, teórico e legal quanto ao reconhecimento das crianças e
adolescentes como sujeito de direitos, na direção de sua proteção integral. As MSEs
acompanharam este salto legal, principalmente quanto ao direito à ampla defesa no
151

processo de imputação do ato infracional. Um dos grandes avanços legais neste


campo é o que está disposto no Art. 121: “A internação constitui medida privativa da
liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento” (BRASIL, 1990). No entanto este
avanço não encontra efetividade diante do número crescente de internação de
adolescentes, no não respeito ao seu caráter excepcional e nas condições de
cumprimento da MSE.
Passada a euforia do nascimento do ECA e após 27 anos de sua aplicação,
muitos desafios para sua efetivação ainda se apresentam, assim como muitos
retrocessos podem ser verificados. Podemos dizer que grande parte da ilusão
construída sobre a possibilidade de o ECA transformar a realidade de crianças e
adolescentes, e romper com a ideologia que movia a situação irregular que
embasava o Código de Menores, não se concretizou. Infelizmente, a ausência de
reflexão e de produção científica sobre a permanência e o recrudescimento da
cultura punitiva, bem como sobre a importância do aprofundamento crítico sobre a
doutrina e a “jurisprudência no campo do direito penal juvenil, tem contribuído
também para as persistentes violações dos direitos e garantias de adolescentes,
acusados ou autores de infração penal. O legado do direito do menor, nesse
aspecto, não foi extirpado” (SPOSATO, 2006, p. 82).
No contexto que envolve o aparato jurídico e político do ECA, e
consequentemente das MSEs, o que fica explícito são as formas que operam o
fetichismo do direito, pelas quais se constitui tanto a ideia de sujeito de direito como
a judicialização das relações sociais. A compreensão do fetichismo do direito indica,
ao mesmo tempo, a existência e a conquista de direitos pelo esforço ou por
oportunidades individuais, como também uma demonstração clara da luta de
classes. Desta forma, entende-se que:

O fato de a legislação ter completado boa parte das reivindicações de


entidades não-governamentais e da sociedade civil organizada pelos
direitos humanos da infância e juventude produziu uma percepção
fantasiosa de que, uma vez estabelecida em lei, os direitos e garantias se
concretizariam automaticamente, sem demandar um novo processo de
articulação com o mundo jurídico e as políticas governamentais.
(SPOSATO, 2006, p. 82)

Desvelar como os profissionais identificam e enfrentam essa realidade intensa


da cultura punitiva é o que será aprofundado nesta seção, trazendo também os
rebatimentos dessas questões para o processo de trabalho dos assistentes sociais.
152

Nesta direção, busca-se desvelar como o Serviço Social percebe e compreende a


cultura punitiva e como trabalha inserido neste contexto de intensa expressão de
seus elementos, tendo como pano de fundo as contradições estabelecidas desta
inserção com a defesa dos direitos previstos tanto no projeto ético-político da
profissão como no ECA. Por sua natureza interventiva, o Serviço Social é vulnerável
à concepção instrumentalista do direito, podendo, desta forma, cair em armadilhas
tanto de colocar-se em uma postura imobilista, entendendo que nada é possível,
como fazendo um discurso de que a defesa dos direitos poderá tudo resolver. Essa
concepção desencadeia processos alienantes no trabalho desenvolvido, através da
reprodução do conservadorismo que, ao olhar apenas para o ato infracional em si,
individualiza o adolescente, impossibilitando a construção de um trabalho para além
das circunstâncias que contribuem com as práticas punitivas. Assim, quando
utilizamos o discurso dos direitos sem perceber, este se torna:

(...) instrumento de aquisição de consenso, como uma mediação


pacificadora de conflitos. Pela reivindicação que fazemos como “operadores
de direitos”, acabamos adotando um excessivo e incondicional apego à letra
da lei e aos códigos, que converte o exercício profissional à aplicação da
legislação pertinente (seja o ECA, a LOAS, a Lei de regulamentação, o
Código de Ética, dentre outras). (GUERRA, 2013, p. 9).

Dito isto, a autora também faz referência ao tratamento dos direitos como
uma categoria instrumental, a qual acaba atenuando a tensão ao não permitir que as
contradições sejam desveladas. Isto porque:

(...) ao serem tratados como categoria instrumental, os direitos sociais


reconhecidos formal e abstratamente ainda que não efetivamente,
abrandam a tensionalidade posta na situação, imprimindo uma certa
resignação no usuário frente ao não atendimento da sua demanda. Afinal,
em que pese no momento os recursos inexistirem, ele foi reconhecido como
sujeito de direitos. Com isso, os direitos sociais perdem sua possibilidade de
operar mudanças nas condições de vida do usuário e a legitimidade das
instituições sociais é posta em risco. (GUERRA, 2013, p. 7).

O fetiche do direito dificulta a visibilidade das contradições presentes nas


expressões da cultura punitiva e da criminalização dos pobres operada através das
MSEs. É este o sentido referido por um profissional do Serviço Social que trabalha
em uma das unidades do DEGASE, ao expor sua percepção sobre a presença da
cultura punitiva nas unidades de cumprimento:

Eu entrei depois do chamado novo DEGASE, e na fala dos colegas de


antes, que antes era pior ainda, traz as construções do novo padrão
arquitetônico, faz concursos públicos depois de muito tempo, tinha uma
vice-presidência que tentava lançar a ideia da socioeducação, mesmo de
153

forma tímida, e sai depois, mas agora com a onda conservadora que
estamos vivendo a tendência é de ficar mais repressivo e mais militarizado,
tendo atualmente na direção um militar, coronel reformado, tendo grupos e
reuniões para discutir sobre uniforme como coturno, camisa preta, calça de
lona, o jaleco para os técnicos em uma perspectiva de cura, tratamento,
isso é um dos exemplos. (Assistente Social 1)

Na fala do profissional, destaca-se a importante leitura sobre a lógica punitiva


e criminalizadora que perpassa as instituições de cumprimento da MSE. Porém,
percebe-se que quando relata que a tentativa de “lançar a ideia de socioeducação,
mesmo de forma tímida” poderia ter sido uma possibilidade de melhora, esta
possibilidade de mudanças fica personalizada em uma diretoria e ou em um
servidor. Assim, não é problematizada a necessidade de mudanças de bases
política, cultural e estrutural na instituição. Este fato é destacado por outro
profissional, que critica a superficialidade das mudanças propostas. Desmistifica-se,
então, o discurso do “novo”, da existência de uma “nova” instituição.

O Novo Degase, como uma ação de governo, foi na perspectiva da


maquiagem de você pensar novos aspectos e tudo mais, mas quanto isso
não veio acompanhado de transformações na dinâmica do trabalho, na
forma de atuação, dos conceitos. O DEGASE é um sistema que hoje produz
muitos documentos, ele tenta que meio buscar o alinhamento das
discussões, então o Estado tem Plano Estadual, os municípios tem Plano
Municipal e o SINASE é falado o tempo inteiro, são vários grupos de
trabalhos, vários temas, ampliados e tudo mais, mas não se evolui de fato,
né. Então, não sai do papel e não vão para a prática. (Assistente social 2)

A análise remeteu também para as possibilidades de transformação através


da qualificação profissional, sem vincular elementos determinantes da totalidade
social e sem reconhecimento da necessidade de se construir uma cultura contra-
hegemônica para romper com o ciclo da cultura punitiva. O excerto abaixo ilustra
este aspecto:

Várias dificuldades que ao meu ver perpassa muito pela fragilização de um


plano de formação, de qualificação dos atores que possa gerar uma
transformação e não só agregar informação. (Assistente Social 2)

A reprodução da cultura punitiva, que se expressa na sociedade, se manifesta


no interior destas instituições de forma violenta e com o agravante de contar com o
aval de grande parte da sociedade para suas práticas. Porém a forma como este
processo é percebido pelo profissional acaba por naturalizar a cultura punitiva. Isto
porque o ato infracional é compreendido de forma isolada do contexto social e
econômico, sendo que a família e as forças de segurança são referidos como os
responsáveis para conter e/ou coibir o próprio ato infracional:
154

A forma que esses aspectos punitivos se reproduzem dentro do sistema o


quanto ele é trazido da sociedade, o quanto ele vem daqui de fora e apenas
vai se desenvolvendo da mesma maneira, não difere muito. Então, se a
lógica aqui fora é de compreender a punição como a principal via de ação a
ausência de estratégias claras e resolutivas que envolvam os atores que
atuam dentro do sistema em nível de preparação, de conhecimento não só
dos aspectos legais, mas de tratamento que se pressupõe da organização
do atendimento e tudo mais. Essas fragilidades todas permitem que isso
flua de maneira muito mais fácil então é muito mais fácil você reproduzir lá
dentro o que se espera que tivesse seja feito antes aqui fora, então não foi
feito antes aqui fora pela família, pelas forças de segurança, espera-se que
seja feito dentro pelos atores que estão atuando, independentemente dos
momentos históricos que o sistema esteja passando. (Assistente Social 2)

As instituições de cumprimento de MSEs podem ser tomadas como locus


privilegiado de consolidação da cultura punitiva, pois nestes espaços a
concretização da punição se expressa pelo castigo físico e moral. A ressocialização
sempre foi questionada pelos seus limites institucionais (Zaffaroni, 2009), porém na
atualidade, diferente de períodos anteriores, não é nem mais reivindicada como um
modelo de trabalho, já que perdeu força e credibilidade diante da dimensão
exacerbada da cultura punitiva. A construção do consenso em torno da cultura
punitiva nunca teve patamares tão elevados, porque a margem de contradição ficou
muito pequena e se perdeu do horizonte até da limitada possibilidade da
ressocialização. Essa perspectiva foi um dos elementos de ancoragem do Estado de
Bem-Estar Social que, como já mencionado, no Brasil contou apenas com uma
projeção legal pela Constituição Federal de 1988. Assim, o enfraquecimento do
ideário da ressocialização é associado à consolidação do Estado penal, com o que a
segurança pública passa a ser central; sai de cena, porém, não em decorrência dos
seus limites intrínsecos tanto questionados, mas, sim, porque a punição se basta em
si.
Esta questão teve rebatimento no conjunto dos assistentes sociais inseridos
na área sociojurídica, que reconheceram os limites da ressocialização, participando
também da sua crítica. No entanto cabe destacar que por mais restrita que fosse sua
aplicabilidade, esta via muitas vezes se constituía em uma possibilidade de acesso
aos direitos sociais, pela possibilidade de reivindicação de escolarização e
profissionalização e outros direitos. Neste sentido, cabe ainda ao Serviço Social a
reflexão sobre os limites da ressocialização. Esta definia um papel importante para a
profissão, mas sua fragilidade teórica e prática não possibilitou a construção de
novas formas de intervenção e, com esta fragilidade, a punição encontra seu lugar
cativo.
155

A perspectiva socioeducativa referida no ECA e no SINASE, cujos “princípios


do atendimento socioeducativo se somam àqueles integrantes e orientadores do
Sistema de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente” (BRASIL, 2006)98,
não se materializa no cotidiano dessas instituições. Assim, a expectativa em relação
à aplicação da socioeducação, pela via dos direitos, se perde. A cultura punitiva
resiste em uma sociedade marcada historicamente pela violência e punição, a
serviço de uma classe social em detrimento a outra. É possível afirmar, então, que
na atualidade são “reeditadas políticas com cunho punitivo, policialesco e
segregacionista” (FREIRE, 2011, p. 180). A teoria da “suspeição generalizada”, que
contribuiu para a construção do mito das “classes perigosas”, ao classificar estes
jovens pertencentes às classes subalternas como “bandidos perigosos”, “bandidos
de nascença” e que sempre serão “bandidos ”também possui determinantes da
teoria lombrosiana (CESARE LOMBROSO, 1835- 1909). São estas construções no
âmbito da cultura que justificam a lógica punitiva e de segurança nestes espaços. A
dinâmica da cultura punitiva perpassa o cotidiano do jovem em seu local de moradia
pela relação com a polícia e, de forma peremptória, recompõe-se na instituição de
cumprimento da MSE. Assim é a manifestação de um profissional:

Eu vejo o sistema socioeducativo como uma hegemonia à lógica punitiva,


porque é muito presente, e nem na legislação é assim, o SINASE tem a
perspectiva pedagógica e sancionatória, mas nem um momento a
perspectiva punitiva, e a realidade vivenciada como Assistente Social do
sistema é uma hegemonia punitiva, a perspectiva da segurança é muito
forte, gera muitos entraves e penso que por parte do poder público o
interesse é uma perspectiva realmente punitiva mesmo, um arcabouço de
repressão, assim como a polícia que apreende, e das políticas públicas que
tem dentro destes espaços parte da polícia mesmo, e depois leva para o
DEGASE, é o mesmo arcabouço repressivo. (Assistente Social 1)

98
Conforme o SINASE em seu artigo 35º: A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos
seguintes princípios: I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do
que o conferido ao adulto; II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas,
favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos; III - prioridade a práticas ou medidas que
sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas; IV -
proporcionalidade em relação à ofensa cometida; V - brevidade da medida em resposta ao ato
cometido, em especial o respeito ao que dispõe o art. 122 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990
(Estatuto da Criança e do Adolescente); VI - individualização, considerando-se a idade, capacidades
e circunstâncias pessoais do adolescente; VII - mínima intervenção, restrita ao necessário para a
realização dos objetivos da medida; VIII - não discriminação do adolescente, notadamente em razão
de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação
ou pertencimento a qualquer minoria ou status; e IX - fortalecimento dos vínculos familiares e
comunitários no processo socioeducativo. (BRASIL, Lei 12.594/2012).
156

Os profissionais reconhecerem este “arcabouço punitivo” das MSEs, e, com


isso, questionam o fato de a socioeducação perder-se neste processo:

E aí quando esse jovem chega lá, que socioeducação é essa? Ele vira um
socioeducando, que ao mesmo tempo, sócio, convívio. Aprender a
reconstruir seu olhar sobre o mundo, você aprender se ver dentro deste
contexto de sociedade e aí o fortalecimento da educação, não da educação
formal, do letramento, mas da educação de forma mais ampla, de como
você se relaciona com o outro, de aprender a se relacionar com o outro, a
conviver, compartilhar, a ser, que são os pilares educacionais. Aí esse
adolescente chega e é cerceando, na MSE de internação ele está privado
de seu ir e vir, contudo ele é privado de tudo, de ter uma boa educação de
ter acesso à escola e que os professores não estão preparados, ou não
querem fazer um trabalho realmente de resgate daquele espaço, para que
ele reconheça aquele espaço. (Assistente Social 3)

Os depoimentos desvelam contradições ao levantarem a expectativa de que


neste espaço seria possível “aprender a se relacionar com o outro” e a ter um “bom
convívio”, expressando uma possível avaliação moral e conservadora sobre o
adolescente. Remetem também a teorias positivistas sobre a função da prisão e da
privação de liberdade com a falácia da “reeducação”. Sem desconsiderar a
importância das formas do bom convívio, da “cultura da paz”, da convivência mútua
e fraterna, o que se destaca é a impossibilidade de trabalhar estes aspectos com um
adolescente que é torturado, denominado por um número e não pelo seu nome, que
deve caminhar de mão para trás e cabeça baixa, como exemplo de disciplina e
forma de controle.

A cultura punitiva apresenta-se mais forte e estruturante do que as legislações


brasileiras e os tratados internacionais de defesa de direitos humanos existentes
para este segmento possuem, em sua intencionalidade e em seus componentes,
valores vinculados à neutralização, controle, disciplinamento, obediência e à
criminalização dos segmentos subalternizados, tornando as desigualdades sociais
invisíveis; é um grande termômetro da luta de classes neste país. Portanto, o
reconhecimento de que os direitos e, a partir destes, as legislações só irão
concretizar-se com a alteração na estrutura de classes, é imprescindível para o
Serviço Social.

E quando estas não se aplicam de maneira direta nem imediata, (pois falta
a política como mediação à realização do direito), a lei é descartada sob o
chavão de que a teoria na prática é outra. O fetichismo do direito é o véu
que esconde a mediação político-econômica na aplicação das leis e na
realização do direito que é sempre resultado da luta de classes. O
fetichismo do direito carrega seu próprio segredo. Quando este véu se
rompe, só nos resta enxergar a barbárie do mundo burguês. (GUERRA,
2013, p. 9)
157

O reconhecimento e desvelamento da realidade ocorrem pela compreensão


de que teoria e prática são indissociáveis, pois a prática precede a teoria pela sua
forma dinâmica. A teoria é post–festum, pós-prática e, portanto, o processo de
investigação deve ser constante para se apreender o maior número de
determinações possíveis, a fim de que o sujeito (a razão) se aproxime cada vez mais
do objeto a ser conhecido (SANTOS, 2010). A teoria modifica de imediato o
conhecimento que se tem sobre o concreto; portanto, aprofundar e revelar os
momentos essenciais ocultos na superfície da imediaticidade das expressões da
cultura punitiva nas MSEs é fundamental. Considerando que mesmo com uma
autonomia profissional cada vez mais relativa, vinculada a contratos de trabalho
frágeis e a outras inúmeras formas de precarização, os profissionais podem decifrar
as determinações históricas e sociais, buscando a construção de outra cultura que
se coloque de forma contra-hegemônica à barbárie que se apresenta no cotidiano
destas instituições.
Na direção da análise sobre o sentido e apresentação da socioeducação na
realidade, verifica-se que, além da promessa de efetivação de direitos que não se
concretiza, há ainda o elemento cultural da violência segregadora da instituição
como forma de manutenção de um status criminalizador, com a reiteração da
ideologia das classes perigosas sobre os adolescentes. Ou seja, a perspectiva da
materialização da socioeducação em suas bases legais (ECA/SINASE) não é
suficiente para mudar uma cultura histórica e cristalizada em nossa sociedade. Tais
aspectos foram assim referidos por um profissional:

(...) do contato com as pessoas que estão mais próximas a ele como dos
agentes socioeducativos, onde todo o tempo é reforçado que ele é bandido,
que ele é aquilo etc. e tal, isso dentro de um espaço socioeducativo onde
ele é tratado por um número e perde a identidade dele, onde muitas vezes
não é respeitado sua orientação sexual. Então, qual é o sentido da
socioeducação, quando a gente lê é tudo lindo maravilhoso, mas o que
esses adolescentes vivem é totalmente adverso à proposta que deveria ser,
porque este sistema não está preparado, ou melhor, ele não quer executar
a socioeoducação. (Assistente Social 3)

A perpetuação de sua condição “marginal”, assim como a violência física e


psicológica que os jovens vivenciam é adensada por suas histórias de vida. A fala
abaixo contribui para esta reflexão ao afirmar o quanto o trabalho se torna inócuo
perante a realidade social e institucional:
158

(...) trabalhar isso com o adolescente porque essa construção desta


subjetividade é muito mais forte do que o momento que ele vai passar na
internação provisória, por exemplo, onde ele vai ficar em um lugar muito
ruim e o que ele tem é a coletividade dos outros adolescentes para lidar
com a violência do Estado. (Assistente Social 1)

A expressão do controle institucional, a qual os profissionais possuem


dificuldades de questionar e de se desvincular, é percebida pelos próprios familiares
que não conseguem separar os Assistentes Sociais da dinâmica punitiva e
controladora destes espaços:

Eu acho que a perspectiva do controle é demandada pela instituição e ela


quando o usuário, a família chega para o atendimento, ela até acha que vai
ser atendida nesta perspectiva do controle, a família chega se justificando:
“não, meu filho é trabalhador, porque de sol a sol”, a perspectiva do controle
é bem presente pelos outros atores como os agentes socioeducativos e eles
até falam para o adolescente: “olha, os técnicos vão incluir isso no seu
relatório”, como se o relatório (avaliativo) tivesse realmente esta
perspectiva. (Assistente Social 1)

O mesmo profissional esclarece ainda que:

No caso da internação provisória onde eu trabalho tem uma


despersonalização da profissão do Serviço Social, porque não atuamos
mais como miniequipe, 40 adolescentes para cada técnico, independente se
você é Psicólogo ou Assistente social e na assentada vai vir a demanda por
um relatório social ou por um parecer psicológico e eu vou responder por
um instrumento que foi pensado que é a síntese informativa, que é o que eu
tenho tempo hábil de fazer ali. (Assistente Social 1)

Muitas vezes também, a cultura punitiva presente nas unidades é utilizada


como ameaça na busca de manutenção da disciplina e do controle, tanto para os
adolescentes como para seus familiares. Assim, os técnicos (assistentes sociais,
psicólogos e demais) são vinculados a práticas punitivas, mesmo sem que esta seja
a intenção, por parte da grande maioria de profissionais. Pois a elaboração do
relatório avaliativo sobre o adolescente apresenta-se como um exercício de poder,
pois é a ação técnica sobre a ação dos internos, ao qual irá contribuir para justificar
a intervenção do poder judiciário, também sobre a ação dos adolescentes (WOLFF,
2005). Esse poder estará intrínseco ao processo do relatório avaliativo, sendo
importante esta compreensão para então construirmos estratégias que irão ao
encontro do “sujeitos de direitos”. Porém a utilização do mesmo pela instituição
como uma ameaça e um controle disciplinar faz parte dos elementos da cultura
punitiva, a partir desta compreensão pelos assistentes sociais, o esforço deve ser no
sentido de sua diferenciação.
159

No grupo focal, a cultura punitiva foi analisada em sua expressão disciplinar,


cuja imposição de sanções (punição, castigo, isolamento – solitária) veio à tona
pelos profissionais que a abordaram da seguinte forma:

A questão da disciplina é totalmente de cima para baixo, o adolescente não


tem o direito a debater em nenhum momento as regras, até porque não há
regras. Na verdade a questão da disciplina não tem nenhum tipo de
parâmetro legal! (Assistente Social 1)
Não há regras, mas ao mesmo tempo há várias regras! (Assistente Social 2)
Há várias regras que remetem a uma perspectiva militarizada, ou seja mão
para traz, cabeça baixa. E como o técnico vai chamar para lidar com esse
tipo de situação, eu vejo que esperam talvez pacificar alguma coisa entre os
adolescentes, acalmar, não sei se a figura materna que é demandada por
esta situação. (Assistente Social 1)

As questões caracterizadas pelos profissionais demonstram o quanto o


disciplinamento e o controle militarizado se fazem presentes no ambiente
“socioeducativo”, sendo o autoritarismo um componente central dessa cultura
punitiva. Característica evidente de uma cultura punitiva que se ampliou, perpassou
o processo de abertura democrática pós-Ditadura e sobreviveu aos novos princípios
constitucionais e às legislações daí decorrentes, como o próprio ECA, lembrando
que disciplina militarizada foi uma “regra” nas antigas FEBEMs. A ausência de
mecanismos de implementação do Estado Democrático de Direito se expressa em
diferentes momentos do cumprimento da MSE e da internação. É este o destaque a
seguir:

Eu acho que é importante chamar a atenção para esta questão da


disciplina, é que nenhuma Unidade do DEGASE hoje tem um regimento
interno. E aí você quer discutir disciplina, você quer chamar os profissionais
para estarem de alguma maneira atuando nisso, mas você não tem uma
discussão, você não tem um documento que norteie estas práticas e aí a
ausência destes documentos que está lá no SINASE como obrigação, que é
um dos requisitos para a inscrição do programa de atendimento, para ter o
programa você tem que ter o regimento, já começa por aí, a MSE está
sendo executada sem um documento e aí a ausência destes parâmetros
destes espaços de discussão coletiva sobre as questões das sanções e dos
benefícios também, porque eu acho que a discussão fica muito nesta pauta
da disciplina, sanção, e os aspectos dos benefícios do enaltecimento destes
meninos durante o cumprimento desta medida, e você pouco fala sobre
isso, você sempre fica na questão da punição, da proibição da visita, da
perda de um direito a uma atividade, enfim... (Assistente Social 4)

A necessidade de construção coletiva de normas e sua publicização não


deve, no entanto, servir de mote a justificativas para as práticas punitivas. Vincular a
espera de um regimento interno que regularize o que é castigo, o que é sanção para
imprimir mudanças nas práticas desenvolvidas só demonstra o quanto os
160

profissionais acabam banalizando e naturalizando a punição existente no interior das


unidades. Este aspecto requer um repensar sobre os processos de trabalho
desenvolvidos, especialmente no que diz respeito à concretização do projeto ético-
político do Serviço Social.
O profissional abaixo reitera a importância da construção de um regimento
interno, bem como de que a participação dos assistentes sociais no debate poderia
talvez garantir o mínimo ou uma possibilidade de “redução de danos”, questão que
abre um debate que compreendemos ser central para a definição do objeto de
trabalho nestas instituições. Acreditamos que muitos profissionais não concordam
com castigos e sanções violentas, banalizadas pela instituição. Possuem intenção
de posicionarem-se contrários a esta lógica, porém as relações que se estabelecem
nestes espaços são baseadas no medo e no conflito. A consolidação do espectro do
medo no trabalho (medo de represálias por pensar contrária à punição, de sofrer
com a violência construída na instituição, de ser alvo de sanções administrativas)
nestes espaços é tão grande que fragiliza estes profissionais e se constitui em um
processo que nos parece como um “moinho de gastar gente”. Muitas vezes
posicionar-se questionando o instituído propicia conflitos entre os profissionais e/ou
entre profissionais e agentes socioeducativos, entre profissionais e superiores,
fazendo parecer que a luta de classes se reproduz entre as pessoas e não entre
uma classe e outra. O medo, o conflito, o desgaste por conta da precarização das
condições de trabalho, a convivência com a violência, contribui para a redução do
espaço de liberdade no âmbito da autonomia relativa profissional, que aqui encontra
seu ápice.
A gente fala muito do regimento interno, e aí foi criado um grupo de trabalho
que discutiu exaustivamente com inúmeras reuniões e até agora este
regimento interno não saiu. E aí mais uma vez a gente vai cair na mesma
coisa quando entrou a socioeducação, existe um GT e não há uma
discussão com as equipes sobre o papel das equipes técnicas dentro do
que no sistema penal chama-se de CTC, as comissões. Tem profissional
que é contra e profissionais que são a favor, pois não conseguem enxergar
que dentro destas comissões você vai poder estar garantindo o mínimo de
direitos, porque senão ele só vai receber sanção. (Assistente Social 3)

A não regulamentação dos programas de atendimento das unidades que


executam as MSEs, conforme previsto pelo SINASE, contribui para a constituição de
violações, reiteração da punição, prática de torturas, bem como dos castigos
vinculados ao discurso de “disciplinamento”. A ausência de regulamentação e suas
consequências fazem parte do processo punitivo e não são novidades para
161

entidades de defesa de direitos humanos e também para os profissionais que


trabalham com os adolescentes. Sendo assim, emerge o questionamento sobre
como agir diante de tantas violações. Em relação a tal questão, os assistentes
sociais expressaram a ausência de debate e de organização em relação aos
regimentos internos e normativas de controle sobre a “disciplina”, as “sanções” e os
“castigos”. Certamente que estas normativas não irão impedir ou mudar a direção
imposta pela cultura punitiva, no entanto sua inexistência aumenta a
discricionariedade dos setores de segurança e as margens de autoritarismo e
opressão. As normativas podem ser instrumentos de “mediação” e vir a alterar as
correlações de forças nestas instituições. Esta ausência é destacada pelos
profissionais que se referem à relação autoritária dos plantões (agentes
socioeducativos), bem como a importância do Serviço Social, de forma coletiva, se
apropriar destes espaços.

E a ausência desta discussão para dentro das Unidades e para além do que
a gente pode discutir. O sistema trabalha com regime de plantão dos
funcionários, então para cada grupo de plantão existe um regime disciplinar
o que é falta grave para um plantão não é para outro e vise e versa, por isso
os adolescentes incorporam isso, em cada plantão eles reagem de uma
forma, fica difícil. (Assistente Social2)
Este tipo de regras vem do sistema penal, né, e é produzido no DEGASE.
(Assistente Social1)
O esvaziamento de discussão é nesse nível. (Assistente Social 3)
De 2011 a 2012, quando a gente discutiu o Plano Político Pedagógico, a
gente não conseguiu avançar quanto ao regimento interno, que é pensar o
plano de organização da Unidade, e quanto ao debate sobre as sanções
não conseguimos avançar. Sempre que se colocava em pauta entrava as
questões da discussão das sanções e benefícios, isto não se conseguia
nunca gerar uma discussão, limitava-se ali sempre em discutir as questões
gerais das Unidades, entendendo que tivesse um recorte deste debate,
como se isso fizesse parte de outro espaço, de outro grupo, outros atores,
realmente é uma discussão a nível de regime disciplinar que é muito pouco
absorvida, pelo menos na minha experiência, não ingressa nas equipes de
trabalho, fica a cargo do disciplinamento mesmo para ser pensado.
(Assistente Social2)

Para além de não ter uma regulamentação sobre estes processos, os


profissionais também pouco conseguem interferir e propor alterações no que se
refere às “sanções”, ou melhor dizendo, castigos. As barreiras que envolvem o não
reconhecimento do trabalho técnico, a não interrupção do atendimento e a
inviabilidade da proposta interdisciplinar são referidas a seguir:
162

O adolescente está sendo acompanhado dois anos pela equipe, ele teve
alguma confusão, teve uma briga, ele é transferido sem que a equipe
técnica saiba, sabe o acompanhamento, sendo legitimado ainda pela nossa
coordenação, que a gente não tem acesso a este menino dentro de outra
Unidade. A gente não pode trocar com a outra equipe, falar quais foram os
acompanhamentos, a gente não pode sentar e conversar com este
adolescente, porque agora ele é de outra Unidade. Quem decide a questão
de disciplinamento, de corpos dóceis, que é falado, esta questão da
normatização deste adolescente, isto não passa pela equipe técnica e
quando passa às vezes é só para cientificar, vai acontecer isso, raríssima
são as vezes que se consegue fazer um debate, vem cá vamos conversar,
vamos pensar nas estratégias, vamos olhar para isso com calma, às vezes
isso até acontece, mas a decisão já está tomada. Ele vai para o isolamento,
que hoje falam que não existe, mas existe, ou então ele tem alguma
sanção, como cortes, deixa de ir para o curso, é retirado do curso e da
escola, isso não pode. (Assistente Social 3)

Os profissionais caracterizam as “sanções” e as rotinas disciplinares como


participantes da construção da “carreira criminosa”, compondo esta “sentença de
vida” dos adolescentes.

O isolamento tem, mas o principal é a Unidade Protetiva é o chamado de


seguro, que é o lugar que ele vai ter problemas no retorno dele para o
território onde ele mora, e aí é um tipo de sanção. E eu acho que este tipo
de isolamento é até pior para o adolescente, subjetivamente porque ele vai
enfrentar muitos problemas depois que ele voltar para o território dele.
(Assistente Social1):
Porque se ele estiver no seguro fica subentendido que é estuprador ou que
denunciou algo, tipo um x9. E vai para além da questão da saúde mental e
outros comportamentos. (Assistente Social 2):

Afirmam ainda que o isolamento é também utilizado no momento que ele


comete uma falta disciplinar ou envolve-se em uma briga:

Sim, é uma sanção! (Assistente Social 3)


Na verdade ele é devolvido para ao GCA, onde não tem pátio, porque na
verdade, devido à superlotação, eles não têm como bancar um isolamento,
pois não tem alojamento para isso. (Assistente Social 1):
Isso em casos mais extremos! (Assistente Social 3)
É devolvido para um lugar de onde não vai sair para nada, nem para tomar
banho, nem atividades e nem para o atendimento. (Assistente Social 1)
No GCA o atendimento é pontual, não tem atendimento sistemático, é um
lugar de triagem, que teoricamente ele deveria ficar 24 horas! (Assistente
Social 3)

Assim, a prática do isolamento e do “seguro” é utilizada também como forma


de reiterar a punição através de mais segregação. São produzidas, assim, novas
“exclusões”, ou seja, um “show de horrores” da barbárie cotidiana nestas
instituições:
163

Fica tudo misturado na verdade, por conta da superlotação, então dentro


deste seguro tem a questão dos homoafetivos, a questão da saúde mental
que apresentou algum tipo de transtorno sem diagnóstico ainda e também
os meninos que cometem atos em relação ao artigo sobre questão sexual e
dependendo do homicídio também. (Assistente Social 3)

Diante dessas reiteradas violações, a situação que fica evidente é a


necessidade de discussão sobre qual é o papel dos assistentes sociais diante de
tantas violações e da reiteração da punição através de castigos, dos isolamentos, da
perda de visita, do impedimento e não acesso aos atendimentos previstos. Tais
aspectos fazem parte da cultura punitiva, como já nos referimos, pois negam os
determinantes sociais, políticos e econômicos, o que certamente irá favorecer a
reiteração da punição. Na reflexão sobre o direcionamento da intervenção
profissional, está a possibilidade de efetivação dos princípios forjados no processo
de reconceituação da profissão. Um profissional afirmou que:

(...) a gente está muito aquém ainda, reconceituação, a gente sabe que
teve, né, um movimento que olha, espera aí, vamos pensar, mas hoje,
2016, a gente percebe que ainda existe colegas que usam o seu relatório
avaliativo como uma arma contra, criminalizando, culpabilizando aquela
família, buscando o perdão, o arrependimento, a expressão do perdão e do
arrependimento daquele adolescente a respeito daquele ato infracional.
Também estamos sendo requisitados, recebendo várias requisições de
inúmeros lugares para a questão da judicialização sobre várias questões,
estou até extrapolando a socioeducação, o Juiz está mandando que a gente
responda sobre um determinado caso. E o que eu faço com isso?
(Assistente Social 3)

Os profissionais expressaram, tanto através da fala acima como no excerto


seguinte, preocupações quanto à culpabilização individual da família e dos
adolescentes e à atuação moralista sobre o sujeito (arrependimento e perdão),
elementos que são constitutivos da cultura punitiva. As falas denotam também a
dificuldade de definir exatamente sobre qual expressão da questão deve orientar a
prática profissional, imprimindo-lhe coerência teórico-metodológica.

Nós, enquanto assistentes sociais, não conseguimos refletir qual é nosso


papel, olhar para aquele caso, como vamos nos posicionar, e a gente acata,
sem um posicionamento crítico, porque eu estou assoberbada de relatórios,
então eu vou responder o que ele quer, e muitas vezes a gente não tem
elementos para aquela discussão que ele (JUIZ) está solicitando. Até dentro
do próprio DEGASE, o juiz quer que a gente defina, joga para a gente,
várias situações eu já peguei como casos graves de homicídio, o juiz
querendo que a equipe técnica determinasse o tempo de medida daquele
adolescente, um adolescente com reavaliação de três meses, que a soltura
do adolescente caberia à equipe técnica, e aí a família vem e pressiona a
equipe técnica, “a saída do meu filho depende de vocês, se ele ficar aqui, a
culpa é de vocês!” E como a equipe se posiciona em relação a isso,
164

tecnicamente acho que temos muitas fragilidades também, mas infelizmente


essa questão do controle e gostamos! Controle! (Assistente Social 3)

A inserção dos assistentes sociais no campo sociojurídico, como já


mencionamos na introdução deste capítulo, envolve uma atuação que enfrenta no
cotidiano as contradições que surgem ou se “renovam reiteradamente a partir da
relação tensa entre as determinações próprias da sociedade que é regida pelo
capital e o buscar da ‘justiça’” (BORGIANNI, 2013). Neste sentido, ter o objeto de
atuação profissional claro e delineado, principalmente de forma coletiva, pode
reduzir as possibilidades de cairmos na armadilha de tomar uma decisão voltada
apenas pela exigência do Juiz, da Instituição ou da sociedade que clama por
punição. No relatório avaliativo, uma exigência, então do ECA, cabe aos
profissionais se posicionar e sugerir, com base em conhecimento e
acompanhamento prévio, encaminhamentos sobre a saída do adolescente em
liberdade ou sua permanência na privação de liberdade.
Acreditamos, desta forma, que se estas indicações forem elaboradas com
conteúdo apenas vinculado ao ato infracional, sem a compreensão dos
determinantes históricos, culturais, sociais e políticos do delito e da pena, da não
compreensão de uma cultura punitiva, a atuação profissional abre possibilidades de
interferência do Juiz, do promotor, do diretor de unidade, ou seja, a profissão
perderá ainda mais o seu já reduzido espaço de liberdade. Da mesma forma, a
indefinição99 de nosso papel no trabalho com as MSEs também abre espaço para
um distanciamento dos próprios usuários, tanto do adolescente como de sua família,
que vai, sim, direcionar uma possível “culpa” da continuidade da MSEs aos técnicos,
aos assistentes sociais. A defesa do projeto ético-político da profissão não requer a
defesa do crime, muito menos de sua perpetuação. Exigem, sim, a compreensão
das razões e determinações econômicas e sociais do mesmo em nossa sociedade e
nos direciona a fazer escolhas, que devem ser na direção da defesa dos direitos
destes adolescentes e suas famílias, mesmo com a compreensão dos limites
burgueses destes direitos.

99
Consideramos que o documento produzido pelo conjunto CFESS/CRESS, denominado
“Parâmetros para atuação na área sócia jurídica”, é um importante balizador na direção de uma
atuação direcionada para os preceitos do projeto ético-político da profissão, porém acreditamos que o
maior aprofundamento da realidade das instituições, onde se inserem os assistentes sociais, pode
contribuir para uma aproximação ainda maior das entidades representantes com as dificuldades
vivenciadas.
165

Mas você não acha que tem um atravessamento desse controle do aparelho
do Estado em cima do discurso que possa parecer insipiente mas que
ganha fôlego, desta questão da emancipação, da discussão pelo
empoderamento do jovem, da família, do momento que eles estão perante
esta construção de sociedade, do olhar que o profissional tem com
discussões olhando mais para dentro da profissão, mesmo dos profissionais
que atuam, mesmo dos profissionais que apresentam lapso, sobre as
técnicas, o que fazer, e quanto isso é engolido e ou mastigado pela
estrutura que se coloca para a atuação, você tem a representação da
questão social que é ingerida para dentro da instituição que vem pela
prática dos Assistentes Sociais e dos atores que estão atuando e você tem
também a questão do Estado controlador dessas ações e o debate fica
nesse meio e é sobreposto por isto, e não sei se tem um estágio
intermediário onde essa força maior que se sobrepõe a isso e que direciona
para práticas de criminalização do próprio adolescente que comete o ato
infracional e quanto isso avança para a família lá naquele território.
(Assistente Social 2)

O profissional acima assinala a questão sobre os assistentes sociais ficarem


neste “meio”, entre o Poder Judiciário burguês de defesa da sociedade de “bem”, da
sociedade segura, sendo subsumidos pela “estrutura que se coloca para atuação”. O
Serviço Social, neste campo, é desafiado o tempo todo, em um espaço onde
vivenciam a precarização das condições de trabalho100, questão que também acaba
constituindo o arcabouço da cultura punitiva, ou seja, o ambiente precarizado, sujo,
insalubre faz parte do processo punitivo. Mas aqui o profissional acima também está
reconhecendo que possui um controle maior que direciona para a criminalização dos
pobres. Consideramos que este poder maior deve-se à efetivação consensual da
cultura punitiva em sua potência máxima.

(...) Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la


unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial
mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje
existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na
filosofia popular. O início da elaboração da crítica é a consciência daquilo
que é realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do
processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade
de traços acolhidos sem análise crítica. Deve se fazer, inicialmente, essa
análise. (GRAMSCI, 2004, p. 94)

Cabe, então, aos profissionais se reconhecerem e se vincularem à


perspectiva de classe (trabalhadora e subalterna), conduzindo e participando
juntamente com os adolescentes e suas famílias, estimulando suas formas de luta e
organização social. Bem como contribuindo para a construção de uma nova cultura,

100
A precarização está em quase todos os campos sócio-ocupaconais do serviço social, na saúde, na
assistência social, e demais espaços, porém nesta área possuem uma especificidade, o consenso em
torno da efetivação de uma cultura punitiva produz também um consenso da precarização e de sua
naturalização.
166

de uma nova visão de mundo. O trabalho deve também voltar-se para a construção
de estratégias a partir da compreensão dos aspectos que engendram e se
expressam a essa cultura, e talvez aí se possa encontrar um “espaço intermediário”
através de uma direção crítica que desvele e venha por difundir outra forma de
realizar-se a socioeducação. Para buscar o rompimento do círculo da punição,
primeiramente é necessário o reconhecimento do papel dos assistentes sociais
nestes espaços:

A compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de uma luta


de “hegemonias” políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da
ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior
da própria concepção do real. A consciência de fazer parte de uma
determinada força hegemônica (isto é consciência política) é a primeira fase
de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática
finalmente se unificam. Portanto, também a unidade de teoria e prática não
é um dado de fato mecânico, mas um devir histórico, que tem a sua fase
elementar e primitiva no sentimento de “distinção”, de “separação”, de
independência quase instintiva, e progride até a aquisição real e completa
de uma concepção do mundo coerente e unitária. (...) (GRAMSCI, 2004, p.
103).

Cabe apontar que pensar outra forma de socioeducação não é reinventar a


roda, muito menos uma visão romântica de que os assistentes sociais sozinhos irão
quebrar a estrutura potente dessa cultura punitiva, vinculada à estrutura capitalista e
a suas formas de manutenção e de resolução dos problemas sociais através da
violência e coerção. Mas, sim, trata-se de que com nossa visão crítica de mundo, e
consequentemente crítica sobre o ato infracional e da cultura punitiva, possamos
identificar e definir qual posição defendemos e, a partir daí, coletivamente,
possamos ampliar esta posição para os demais profissionais, rompendo com o
imediatismo. Isto porque o:

Contexto em geral está muito direcionado para que o profissional use a sua
intervenção, seu saber profissional no sentido de dar respostas punitivas.
Porque eu acho que o contexto é muito marcado pelo imediatismo
assoberbado, os profissionais do Degase são divididos em equipes, cada
equipe acompanha às vezes cerca de 50, 60 adolescentes e aí aquela
pressão, né, que a gente sabe de elaboração de relatório, e às vezes a
equipe não consegue nem atender aquele adolescente de fato, coletar o
histórico sociofamiliar daquela família, entender o percurso que aquele
menino fez, se já teve histórico de passagem por instituição de acolhimento,
enfim, de fazer, né, de amarrar, né, e poder elaborar de fato um parecer
social conforme deve ser acerca do caso e acho que este contexto todo
coloca muito para a gente isso, né, a gente vive muito situações nas
instituições e se a gente não parar para refletir sobre o que é pedido, se a
gente não tiver espaço de discussão, se a gente não tiver espaço de troca,
a gente acaba reproduzindo, caindo nisso, nesta coisa de reproduzir a
culpabilização, a criminalização, você acaba fortalecendo algo que na teoria
167

você seria contra, entendeu, acho que é mais ou menos por aí. (Assistente
Social 4)

O profissional acima - além do relato do contexto punitivo - reconhece que na


forma atual de atuação profissional acaba contribuindo com a lógica punitiva.
Portanto, para além do reconhecimento, se faz necessário o conhecimento
aprofundado sobre a história social destes jovens, e se isso não for possível, cabe
um posicionamento coletivo de não emitir opiniões que venham a violar os direitos
dos adolescentes. A busca, então, deve ser na direção de uma contra–hegemonia
da cultura punitiva, para isso faz-se necessário uma:

Autoconsciência crítica significa, histórica e politicamente, criação de uma


elite de intelectuais: uma massa humana não se “distingue” e não se torna
independente “para si” sem organizar-se (em sentido lato); e não existe
organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, ou
seja, sem que o aspecto teórico da ligação teoria–prática se distinga
concretamente em um estrato de pessoas “especializadas” na elaboração
conceitual e filosófica. (GRAMSCI, 2004, p. 104)

Na relação com o Poder Judiciário, o relatório avaliativo acaba sendo parte


central na relação entre assistentes sociais e juiz, que na maioria das vezes
apresenta-se de forma subordinada e tensionada entre exigências judiciais de
assessoria técnica e o objeto de trabalho do assistente social. Essa tensão será
permanente pelo caráter classista do Poder Judiciário, legitimando-se como protetor
dos interesses dominantes, bem como pelo seu discurso jurídico que, através do
processo de criminalização, expressa a ideologia burguesa, questão que os
profissionais, muitas vezes, não têm isso muito claro. Há também a cobrança e a
dúvida de uma tomada de decisão sobre a permanência do adolescente ou a sua
liberdade. Este conflito acaba se expressando entre os profissionais, que possuem
diferentes formas de perceber a finalidade técnica do relatório para os mesmos,
questão que percebemos ser nociva tanto para a categoria como para os usuários
do atendimento. Esta questão é detalhada pelo assistente social abaixo.

Mas para a gente refletir, sobre a ausência, do vazio da resposta do


judiciário ou de quem vai ler nosso relatório, a gente quer que nosso
relatório seja considerado e quando não tem este retorno, isso pode gerar
um certo desânimo, poxa o cara não está lendo, então não vou fazer. Mas
eu acho isso uma grande armadilha, pois se a gente cai nisso, nessa
ausência deste retorno, eu acabo caindo na falta de qualidade desses
relatórios, dessas articulações, porque ninguém me dá o retorno disso, eu
acho que temos que ter muito cuidado com isso, por quê? Eu vivi uma
situação muito esquizofrênica, sempre reclamamos disso, não leu meu
relatório, porque não fez exatamente aquilo que eu escrevi, o que eu
apontei, aquilo que da minha avaliação do acompanhamento eu sugeri e aí
168

em dado momento histórico chega uma juíza que começa a ler os relatórios
e começa a chamar a equipe técnica para conversar e acaba acatando o
que a equipe técnica coloca no relatório, vai para a mídia e aí a juíza fala:
“eu estou baseada nos relatórios das equipes técnicas”. Todo mundo ficou
enlouquecido, pois está querendo colocar na minha conta, ela tem que
assumir, pois quem decide é ela, neste momento nós somos assessoras do
juiz, acho que a gente não entende esse papel dentro do sistema, que o
nosso relatório vai balizar a decisão, isso é assessoramento, se a gente não
entende o que está fazendo ali, fica difícil. (Assistente Social 3)

A expressão dos conflitos e das dificuldades que envolvem o relatório


avaliativo relaciona-se novamente com a questão da ausência do delineamento do
objeto da profissão nestes espaços. Ter claro que os adolescentes em cumprimento
de MSEs são expressões da “questão social”, bem como compreender o ato
infracional para além de um fato jurídico, trazendo para a análise os determinantes
sociais e econômicos, contribui para a clareza do objeto da profissão, bem como o
direcionamento do processo de trabalho, tendo clareza que a direção ético-política
nos desvencilha das amarras da alienação própria da sociedade burguesa que:

(...) quanto mais se desenvolve a produção, mais as relações sociais se


alienam dos próprios homens, confrontando-se como potências externas
que os dominam. Essa inversão sujeito e objeto, inerente ao capital como
relação social, é a expressão da histórica auto-alienação humana. Resulta
na progressiva reificação das categorias econômicas, cujas origens
encontram-se na economia mercantil (IAMAMOTO, 2007, p.30).

Romper com a alienação e ter clareza de nosso papel nas MSEs, também
contribui para romper com uma postura passiva em relação à visão do Juiz, tendo o
foco do trabalho no vínculo com o adolescente, questão que o profissional menciona
abaixo:

E quando a gente não tem este retorno, poxa eu me esmerei tanto, eu fiz
uma análise, eu juntei elementos e não se traz, mas a gente esquece que o
nosso usuário, antes da gente confeccionar o relatório ele sai do trabalho
que a gente faz junto com o nosso usuário, e a gente fez um trabalho com
nosso usuário mesmo que o juiz não tenha lido a gente está exercendo
nosso papel junto ao nosso usuário, fortalecendo, porque esse vai ser
nosso retorno, de repente ele pode ficar mais seis meses, mas um dia ele
vai sair e aí durante estes seis meses que ele vai ficar eu vou continuar
fortalecendo, apontando, articulando, propondo dentro dos meus encontros
com ele eu vou estar fortalecendo tudo aquilo que eu coloquei no relatório e
não teve o eco que eu gostaria que tivesse tido, pois a gente quer ouvir que
o juiz acatou, o defensor acatou, promotor acatou, mas a gente esquece
que quem está ali no nosso lado, quem construiu aquele relatório na
verdade, quem é esse cara que está ali? Que construiu comigo, foi uma
construção coletiva, né! Qual foi o impacto na vida desse usuário? Isso a
gente tem retorno! (Assistente Social 3)
169

Para além das questões colocadas acima, os profissionais também indicam a


dificuldade e o pouco debate e sistematização sobre o trabalho profissional,
referindo sobre os aspectos relacionados ao pouco espaço e pouco diálogo entre os
colegas na instituição, e o quanto a troca, a construção coletiva, pode vir a ser uma
saída coletiva:

(...) não sei se os colegas percebem isso, de muito pouca produção, fica
aquela perspectiva de que a repercussão do trabalho é a produção do
relatório e essas outras formas de mostrar esta intervenção se efetivar,
estes outros espaços podem acontecer de acordo com os perfis
profissionais e as formas de atuação e a sistematização dessa prática é
muito pouco estimulada, muito pela dinâmica do trabalho. No período que
eu fiquei por dois anos trabalhando dentro de uma unidade de internação,
os espaços de discussão que se tem dentro das equipes, eles favorecem a
ampliação do debate, porque se você está em uma equipe de trabalho, as
temáticas vão surgindo e você tem oportunidade de se colocar ou não. Um
espaço que surgiu para se poder pensar as repercussões desta atuação
dentro das unidades, era, por exemplo, os espaços de construções das
propostas do projeto pedagógico de cada uma das unidades. E o momento
que passa a ser entendido como um instrumento que vai favorecer, nortear
as ações, as propostas de trabalho, a forma de interação e aí a importância
da coletividade na construção, mas tem outros atores de outras áreas que
não só da equipe técnica e aí se constituem em um espaço de fomento para
este debate que não tem. Então não tem como mensurar o resultado disto,
assim como sobre o relatório avaliativo, você não tem como mensurar se o
que você coloca o Juiz entende aquilo que você sugeriu ou não, que é uma
coisa mais plausível de você entender, mas mensurar a sua intervenção
para os outros atores é um pouco mais difícil, e consegue então identificar
dentro do serviço quem são, os que se colocam disponíveis para o debate e
os que não se colocam disponíveis para isso, então fragmenta mesmo.
(Assistente Social 2)

Com pouco espaço de debate sobre o trabalho e das dificuldades de se criar


estratégias na direção de uma qualificação profissional nestas instituições, muitas
vezes o que acaba acontecendo ou estimulando o encontro para o debate são as
sanções, reproduzindo, então, o trabalho na direção da cultura punitiva, como a
profissional expressa abaixo:

Eu acho que os espaços de discussão teórico-metodológicos da profissão


estão cada vez mais esvaziados dentro do sistema, a gente não senta hoje
com a equipe mesmo com os meus pares e não fala sobre aquele caso,
cada um faz o seu relatório, o pedagógico, o psicológico e o social para falar
da mesma pessoa sem ter conversado e às vezes quando vai para o
judiciário para o sistema de justiça, o juiz olha, o MP olha e questiona que
relatório é esse? Estão falando de pessoas diferentes? E assim, é o
momento, o espaço de discussão de caso entre as miniequipes, em uma
discussão de caso mais ampliada que é onde são os casos que você diz:
poxa, eu já esgotei todas as possibilidades, vamos levar para a equipe?
Vamos pensar juntos qual é alternativa? Isso não se tem. O que se tem de
discussão é a resolução de conflitos de adolescentes, quais são as atitudes
e as sanções que vão ser tomadas, mas a parte técnica tem um
esvaziamento. Sancionatória de punição, se vai cortar a visita da família.
(Assistente Social 3)
170

A importância da sistematização da prática e/ou do próprio relatório avaliativo,


na área da criança e do adolescente, já era apontado por PINHEIRO ainda na
década de 1940 (inquérito social), tanto na importância do conhecimento da
realidade que envolvia os jovens, como parte intrínseca do objeto profissional do
serviço social em relação às demais categorias profissionais, conforme o referido
pela autora:

O problema da infância desajustada, de todos os lados nos cerca, nos


envolve, nos domina; ora, ao interrogar os menores; ora, ao conhecer a vida
de seus pais; ora, ao descobrir chagas morais que mal escondem na
miséria dos andrajos. Inquéritos sociais que colham os dados necessários
ao estudo da situação real da vida familiar são de imensa utilidade.
(PINHEIRO, 1985, p. 101)

O que nos parece é que a importância da sistematização teórico-prática no


âmbito da categoria profissional acabou reduzida e/ou sem a devida importância
para a avaliação do trabalho, para a busca da qualidade dos serviços prestados e
para a visibilidade de boas práticas. Considerando especificamente o trabalho junto
às MSEs, a sistematização pode ser um instrumento potente de visibilidade da
cultura punitiva existente nestes espaços e também imprimir visibilidade às
dificuldades decorrentes da precarização vivenciada.

Juízes, psicólogos, educadores, médicos, sociólogos precisam conhecer


os fatores circunstanciais vivos que influíram na expressão humana da
criança–problema para cabal desempenho da sua missão. Resulta de
tudo isso a necessidade do auxílio do Serviço social. (PINHEIRO, 1985,
p 82)

Destaca-se que ao longo do processo evolutivo da categoria foi-se capaz de


“forjar certas rotinas e procedimentos de registro de suas atividades prático-
interventivas, que não conseguiu, porém, imprimir aos mesmos a marca de um
esforço de sistematização, quer da realidade social como das respostas
profissionais formuladas que determinam a sua atividade profissional, o seu trabalho
em sentido amplo” (ALMEIDA, 2006, p. 02).
Na particularidade do objeto estudado, a sistematização da prática além de
possibilitar a visibilidade das atrocidades que ocorrem em decorrência da persistente
cultura punitiva, também é um potente instrumento da construção crítica e
investigativa da realidade que se apresenta no cotidiano institucional. A partir desse
processo, também se pode contribuir para uma compreensão de que a mudança se
efetiva no rompimento da seletividade social e penal e da criminalização dos pobres.
171

Destaca-se a necessidade de conhecimento profundo de como se engendra a


cultura punitiva e do rompimento de sua naturalização, para a construção de uma
nova cultura nas MSEs, questão que, de forma coletiva, os assistentes sociais
podem contribuir, ainda que dentro dos limites restritos pela totalidade social. Neste
sentido, o autor abaixo se refere à importância do processo de sistematização da
prática:
A geração de uma série de dados primários, particularmente ligados às
condições de vida e de reprodução da população, à implementação
cotidiana das políticas sociais, aos traços culturais e político de diversos
segmentos sociais, é facilmente reconhecida no trabalho do assistente
social. Estes dados, todavia, podem passar anos sem serem trabalhados,
ou mesmo virem a ser utilizados por outros profissionais em atividades de
cunho investigativo. (ALMEIDA, 2006, p. 02)

A relevância do processo de sistematização da prática se apresenta tanto


para a construção e/ou efetivação dos direitos dos usuários, mas também para a
profissão que se constrói neste processo. Esta perspectiva reafirma o papel e a
centralidade teórica do Serviço Social, e a partir disso recupera a dimensão
intelectual dos profissionais, questão imprescindível para a construção de outras
propostas para além da cultura punitiva.

O esforço de sistematização como um componente central do trabalho do


assistente social não significa, portanto, apenas a geração de dados e
informações, mas um processo que envolve a produção, organização e
análise dos mesmos a partir de uma postura crítico-investigativa. Trata-se,
na verdade, de um esforço crítico, de natureza teórica, sobre a condução da
atividade profissional, constituindo-se como um esforço problematizador
sobre suas diferentes dimensões em relação às expressões cotidianas da
realidade social, mediatizadas pelas políticas sociais, pelos movimentos
sociais, pela forma de organização do trabalho coletivo nas instituições e,
sobretudo, pelas disputas societárias. A sistematização no trabalho do
assistente social é antes de tudo uma estratégia que lhe recobra sua
dimensão intelectual, posto que põe em marcha uma reflexão teórica, ou
seja, revitaliza e atualiza o estatuto teórico da profissão, condição social e
institucionalmente reconhecida para a formação de quadros nesta profissão.
(ALMEIDA, 2006, p. 04)

Os elementos que compõem a cultura punitiva e se expressam nas MSEs


precisam ser enfrentados não apenas como uma questão técnica, sobre a qual os
assistentes sociais irão trabalhar. Identificá-la, reconhecê-la e, assim, torná-la visível,
rompendo com a invisibilidade que não permite a construção de uma contra-
hegemonia. Questão que se apresenta como um desafio ético-político, vinculados a
valores, como liberdade, justiça social e a democracia, encontrando-se também no
ECA a mesma direção, mesmo que limitada no âmbito da prática. Nesta direção,
172

pode-se evitar a vulnerabilidade que o Serviço Social está exposto de incorporar


aspectos conservadores no cotidiano do processo de trabalho, como, por exemplo,
pela história da profissão estar vinculada a um conservadorismo moral, “pode estar
vulnerável à sua reatualização; por sua inserção em campos institucionais propícios
ao estabelecimento de relações hierarquizadas, tais como as prisões, o sistema
judiciário, etc., pode enfrentar ou assimilar tais relações” (BARROCO, 2009, p. 180).
Compreender a dimensão cultural como parte constitutiva do conjunto de
determinantes sociais, de certa totalidade histórica, é fundamental para a construção
de outra cultura socioeducativa, e os assistentes sociais, através de seu
conhecimento e referencial teórico-metodológico crítico, podem contribuir nessa
perspectiva:

Se no âmbito da superestrutura, contudo, Gramsci aponta a possibilidade


das classes subalternas visualizarem as contradições que partem do mundo
econômico e espraiam-se na totalidade das relações sociais, por outro lado
a esfera cultural e a transformação das visões de mundo e dos modos de
pensar constituem-se em fatores decisivos para os que lutam por uma nova
hegemonia. (SIMIONATTO & COSTA, p. 70, 2014)

Torna-se imprescindível, desta forma, o reconhecimento da cultura punitiva


como geradora de valores vinculados à defesa da hegemonia dominante. Para tanto,
é fundamental decifrar a tensa relação que se apresenta nestes espaços, vivenciada
pelos assistentes sociais, entre defender direitos e a lógica da perpetuação punitiva,
na busca coletiva de construção de uma nova cultura.
173

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A hegemonia é então não somente o nível articulado superior da “ideologia”,


nem são as suas formas de controle apenas vistas habitualmente como
“manipulação” ou “doutrinação”. É todo um conjunto de práticas e
expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de
energias, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema
vivido de significados e valores – constitutivos e constituidor – que,
experimentados como práticas parecem confirmar-se reciprocamente
(WILLIANS, 1979, p. 113).

O estudo apresentado buscou desvelar alguns determinantes presentes na


relação das MSEs com a permanente e recrudescida cultura punitiva que, no Brasil,
tem na criminalização dos pobres uma importante expressão. A análise buscou
decifrar esse processo na perspectiva da totalidade social, destacando essa cultura
presente no âmbito das MSEs.
Nesta direção, é imprescindível ressaltar que, no período de realização dessa
investigação, ficou evidente que o grau de perversidade da luta de classes tem se
intensificado no Brasil. Vivenciamos um momento mediado por uma complexificação
da conjuntura social e econômica e por intensa instabilidade política. O
recrudescimento da barbárie, relacionada às forças destrutivas ativadas para
efetivação de projetos excludentes de civilização, ganha maior funcionalidade no
atual estágio do capitalismo. A administração dos sobrantes e inúteis ao mercado
depende do alargamento do sistema punitivo, colocando como evidência a face
penal do Estado, sendo uma das expressões do Estado neoliberal.
Estes aspectos foram verificados por meio da apresentação de alguns dados
sobre a atual realidade brasileira, no que se refere aos altos índices de homicídios,
principalmente de jovens pobres e negros, por via da extrema violência policial e
pelo encarceramento seletivo em massa. Estes índices também foram verificados na
execução das MSEs, por meio do aumento do número de adolescentes privados de
liberdade, ocasionando a superlotação das unidades. Destaca-se, neste período, a
retomada da proposta de redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos de idade
em fevereiro de 2015 (PEC 171/1993). O texto da proposta foi aprovado na Câmara
dos Deputados e aguarda a votação no Senado Federal. Caso seja aprovado,
atingirá ainda mais os jovens pertencentes às classes subalternas. As lideranças
174

que protagonizaram esta aprovação na Câmara dos Deputados pertencem a grupos


de policiais, ex-policiais, delegados e demais opositores aos direitos humanos, tendo
como denominação: “bancada da bala”. Estes políticos estão vinculados a propostas
contrárias ao Estatuto do Desarmamento e defendem o direito da população de
buscar sua defesa individual, além dos interesses da indústria armamentista. A
proposta de redução da maioridade penal obteve grande apoio popular,
expressando o consenso existente na sociedade brasileira sobre a ampliação das
formas punitivas. Porém cabe referir que existem resistências e forças contrárias a
estes processos, contudo ainda incipientes e com propostas limitadas diante da
amplitude da barbárie apresentada. Estes movimentos conjunturais se apresentaram
na mediação com o objeto estudado, na atualização de seus determinantes, com
clara ampliação do alcance da cultura punitiva. Quanto mais nos aprofundávamos,
mais ficava evidente a consensual e histórica hegemonia do punitivismo presente
em nossa sociedade.
Foi, então, possível confirmar que, se as diferentes formas de abordagem aos
adolescentes pobres ao longo da história aconteceram como “tragédia”, na
atualidade as MSEs apresentam-se como uma “farsa”. Por sua vez, esta farsa fica
evidente pelas análises que atestam que o sistema de garantia de direitos contido no
ECA não se efetiva, especialmente para aqueles adolescentes pobres envolvidos na
prática do ato infracional. A dissimulação se concretiza na relação com os discursos
jurídicos e técnicos que projetam idealmente a “efetivação” da socioeducação.
Dessa forma, é necessário reconhecer essa farsa (com grandes pitadas de
tragédia!) e assumir que as práticas ditas pedagógicas, na verdade se efetivam pelo
viés da cultura da punição, em que formas arcaicas, as quais o processo civilizatório
queria ver superadas, como a tortura, por exemplo, são banalizadas por grande
parte da sociedade. Na identificação das contradições nas MSEs, foi possível
perceber o recrudescimento desta realidade para além da socioeducação. O
contexto econômico e político brasileiro indica também que “tanto a judicialização da
política quanto a politização da justiça” (ANTUNES, 2016, p. 2) ocorre com apoio de
grandes corporações da mídia e da maioria do Parlamento, representante dos
interesses burgueses. A mídia apresenta-se fundamental na manufatura de
consensos, contribuindo com a naturalização da violência seletiva do Estado e da
negação das razões da criminalidade, favorecendo a criminalização dos pobres.
Este processo tem ainda como partícipe o Poder Judiciário, que, por sua vez,
175

acompanha o adensamento da hegemonia punitiva, ficando óbvia a sociabilidade do


direito na defesa da propriedade privada, expressões das formas jurídicas do capital.
Isso resulta da avassaladora radicalidade das políticas neoliberais 101, que
aparecem como um rolo compressor esmagando direitos já conquistados. As
consequências chegaram com vigor à área social, com cortes de gastos, restrição e
precarização dos investimentos nas políticas sociais. A instabilidade econômica e
social vem acompanhada por um maior grau de letalidade da violência policial, por
organização de facções criminosas e milícias. Vem à tona também a crise do
sistema penal, com a barbárie sendo televisionada e respondida com maior
repressão. A precarização foi igualmente percebida nas unidades de cumprimento
de MSEs, pela ausência de suas condições físicas e materiais e também pelo
acirramento da violência institucional, com constantes denúncias de práticas de
torturas e mortes de adolescentes. Ou seja, fica claro que a instabilidade política, a
precarização e os cortes no orçamento das políticas públicas representam, no
momento, avanços da classe dominante, autoritária e conservadora. Os
investimentos públicos passam, então, a priorizar a segurança pública através de
mecanismos retrógrados de coerção e punição.
Destaca-se, neste contexto, os cortes orçamentários para as políticas sociais,
que afetam os usuários e o conjunto de profissionais a elas vinculados. Um exemplo
disto é o Novo Regime Fiscal (NRF)102, o qual alterou a forma como o orçamento
público brasileiro é elaborado. Estudo prospectivo desenvolvido pelo IPEA (2016)103

101
Um dos exemplos foi que recentemente o Brasil votou contra uma resolução do Conselho da ONU
que renovava o mandato da ONU para monitorar os impactos das políticas fiscais sobre os direitos
humanos, argumentando que a medida é contrária às reformas econômicas do governo. O voto foi
uma mudança brusca de posicionamento, pois o Brasil não costumava votar contra resoluções no
conselho, no máximo se abstém, bem como já havia apoiado essa mesma resolução em 2008, 2011
e 2014. (Jornal Folha de SP, 23/03/17) Acesso em:
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/03/1869055-por-austeridade-brasil-vota-contra-resolucao-
de-direitos-humanos-na-onu.shtml
102
A Emenda Constitucional nº 95, de 16/12/2016: “Altera o Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências”. Impôs um Novo Regime
Fiscal (NRF) no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, deverá vigorar pelos
próximos 20 anos, estabelecendo um limite para as despesas primárias, individualizado por cada um
dos poderes. No novo regime proposto, o crescimento anual do gasto não poderá ultrapassar a
inflação, o que implicará num congelamento, em termos reais, destas despesas até 2036, nos
patamares de 2016.
103
(...) primeiro ano de vigência, o NRF imporia uma redução importante de recursos do MDS: o teto
estimado garantiria apenas R$ 79 bilhões ao invés dos R$ 85 bilhões necessários para fazer frente às
políticas socioprotetivas, ou seja, representaria uma redução de 8%. Estas perdas tenderão a
176

indicou que esta redução irá atingir de forma importante o financiamento da política
de assistência social por meio da restrição dos investimentos no Benefício de
Prestação Continuada, no Programa Bolsa Família e nos serviços
socioassistenciais, como é o caso das MSEs em meio aberto. Este atendimento já
acontece de forma precarizada e com baixo orçamento, apesar de possuir
fundamental importância para a redução das MSEs de privação de liberdade
(SINASE, 2012), indicando a desresponsabilização e retrocessos do Estado. Nesta
direção, o que temos no horizonte é o recrudescimento das expressões da “questão
social” e a tendência de um maior investimento orçamentário nas políticas de
segurança pública, pela via da cultura punitiva.
A Constituição Federal de 1988 chegou de forma concomitante com a
mundialização do capital e com a efetivação de políticas neoliberais, o que trouxe
impactos para a concretização dos direitos recém-positivados, constituindo uma
relação dialética entre conquistas e perdas. Neste sentido, reconhecemos que - com
o advento do ECA - diversos aspectos da doutrina menorista puderam ser revistos;
da mesma forma, o SINASE trouxe alguns avanços de direitos na particularidade
dos adolescentes que praticaram atos infracionais. Porém a mudança legal por si só
não representou a alteração ideológica e social sobre o processo de criminalização
destes segmentos, já que a instrumentalidade da cultura da punição se ampliou,
sendo maior que o ECA. Não foi possível imprimir uma nova sociabilidade e, muito
menos, superar as desigualdades sociais e a consensual hegemonia da cultura
punitiva que atravessa a juventude pobre, especialmente diante de uma realidade de
extermínio, genocídio e neutralização dos “inúteis” à lógica mercadológica. Isto
porque, “para o fundamento material desumano da sociedade moderna, as massas
que sobram tem a mesma plasticidade de coisas entulhadas, que estorvam quando
não reduzidas à passividade” (MENEGAT, 2009, p. 39). Neste sentido, se os direitos
humanos (individuais e sociais) já não tinham “força para limitar o capital na sua fase
expansiva, em que as formas civilizatórias, apesar de dividirem permanentemente o
espaço social com as formas de barbárie, eram {pré} dominantes, o que pensar
quando isso se inverte? (MENEGAT, 2009, p. 39).
No Brasil, são inúmeras as razões para que não se verificasse um
rompimento das questões acima apontadas. Ao longo do processo de sua expansão

aumentar de maneira progressiva, alcançando 54% em 2036. (IPEA, 2016, p. 6) Acesso em:
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28588
177

e modernização capitalista, o Estado e a sociedade civil se desenvolveram em uma


lógica patrimonialista e extremamente autoritária, expressando um nítido pacto entre
as elites, que detêm o poder político e econômico, e alijam o povo de suas decisões,
temendo por seus interesses e pela manutenção do poder. O movimento das elites
esteve em todo o processo de formação social e política brasileira, com diferentes
formas de apropriação privada da riqueza socialmente construída. Esta questão
evidencia que as formas jurídicas brasileiras são balizadas pela seletividade de raça
e de classe social no domínio e na preservação de seus interesses. Estes aspectos
se transmutam como seletividade penal, já que “Direito Penal, tal como o Direito em
geral, é uma forma de relação entre sujeitos egoístas isolados, portadores de um
interesse privado autônomo, ou entre proprietários ideais” (PACHUKANIS, 1988, p.
135).
Considera-se, assim, a importância do reconhecimento da cultura punitiva
que se efetiva também por meio de um processo intenso de banalização da vida,
cujos impactos nas MSEs são ainda maiores pela própria fragilidade dos sujeitos
que a vivenciam. Os dados estatísticos sobre mortes de adolescentes e jovens não
chocam a sociedade brasileira, e pouco são noticiados pela mídia brasileira 104, não
sendo problematizado o horror que a realidade expressa. A cultura punitiva não foi
sepultada, sendo gestada principalmente pela escravidão, que plantou sementes de
barbárie e de aversão contra os negros ou aqueles contrários à ordem vigente.

104
As notícias e os dados cruéis não sensibilizam a opinião pública, fruto da construção do medo das
“classes perigosas”, também produzido pela mídia, como trabalhamos na tese. Consideramos que a
mídia burguesa brasileira contribui na engrenagem da cultura punitiva criando consensos e
incentivando a punição. Porém a mídia do exterior tem noticiado com mais ênfase notícias sobre a
centralidade das violações de direitos e a violência nas instituições. Conforme recente matéria do
Jornal inglês “The Guardian” (03/03/17), foi destacada que “Nas últimas semanas, mais de 140
presos morreram em decorrência da violência entre facções no Brasil. Mas, longe das manchetes,
uma catástrofe vem se desenrolando paralelamente nos centros de detenção juvenil do país, com os
ativistas exigindo reformas e advertindo que as propostas para endurecer as sentenças para jovens
infratores poderiam agravar a crise no sistema penal. De acordo com a lei existente, os adolescentes
com idades entre 12 e 18 anos devem ser tratados por meio de serviços comunitários ou de
educação, com pena máxima de até três anos em um centro de detenção para os crimes mais
graves. Na realidade, no entanto, os jovens que cometem infrações menos graves são muitas vezes
presos em instalações superlotadas com escassas oportunidades de reabilitação e educação, ou
proteção contra maus-tratos, afirmam os ativistas. De acordo com a Human Rights Watch, em 2014,
cerca de 22 mil jovens no Brasil estavam internados em centros de detenção juvenil, que foram
concebidos para manter um máximo de 18.000. Mas a superlotação é apenas um dos aspectos de
um regime que as inspeções consideraram brutal, com jovens presos por horas em quartos
semelhantes a celas com poucas oportunidades de recreação - condições que provocaram
frequentes tumultos”. Acesso em: www.theguardian.com/global-development/2017/mar/03/brazil-
crime-rates-brutal-treatment-young-offenders
178

Portanto, o processo punitivo é fundamental para a perpetuação da hegemonia


dominante, camuflando as persistentes desigualdades sociais decorrentes da luta de
classes.
Se no final do século dezenove no Brasil, a criança era vista pela perspectiva
tutelar, moralizante e adaptadora, em um ideário que a projetava como o futuro do
país, na atualidade nem mesmo esta perspectiva ideal e limitada é verificada. Não
se trata mais de “reeducar e reintegrar” para o trabalho (mesmo para ocupações e
posições subalternas), ao exemplo do que a FUNABEM dizia buscar, hoje
recrudesce a repressão e a violência.
Por conseguinte, torna-se fundamental o desvelamento crítico das formas que
se engendram à cultura punitiva na atualidade, para todos que buscam uma
sociabilidade para além da punição, como é o caso dos assistentes sociais. Temos a
clareza que a defesa dos adolescentes como “sujeitos de direitos” se vincula à
defesa do atual projeto ético-político da profissão, na direção de uma possível
emancipação política. Considera-se assim que a intencionalidade teórica e prática é
também um exercício político, por instrumentalizar e afirmar um determinado projeto
de sociedade. A pesquisa, ao contar com a participação de assistentes sociais, pôde
constatar que em alguns momentos o trabalho profissional não está isento das
suscetíveis armadilhas conservadoras, podendo reproduzir práticas punitivas,
perpetuando os consensos de sustentação da hegemonia burguesa. É necessário
aprofundar a compreensão da prática do ato infracional com a criminalização dos
pobres, inserindo esse processo no contexto da totalidade social.
A reiteração da punição se expressa em rotinas institucionalizadas, como
castigos, isolamentos, perda da visita familiar por “indisciplina”, disciplinamento
militarizado, violação de correspondências e práticas de tortura como forma de
disciplinamento ou de neutralização dos adolescentes, impactando também a
autonomia relativa dos assistentes sociais. Neste sentido, consideramos que o
trabalho deve estar direcionado para a busca de estratégias coletivas de superação
da relação de subordinação ao Poder Judiciário. O processo de trabalho deve voltar-
se à compreensão de quem são os adolescentes atendidos, seus modos de vida,
sua cultura, na explicitação das expressões da “questão social”. As práticas devem
buscar romper também com a lógica de um “aprisionamento” do processo de
trabalho onde os assistentes sociais estão inseridos, buscando, então, a “liberdade”
para fora dos muros das instituições, tendo como princípio a incompletude política e
179

institucional do ECA/SINASE, construindo parcerias com outras instituições e


profissões. Ademais, é preciso ressaltar que existe uma nítida relação entre
execução de MSEs e o sistema penal para adultos, a qual precisa ser aprofundada,
pesquisada e publicizada pelos profissionais. Devem ser desenvolvidas estratégias
no âmbito do processo de trabalho, juntamente à organização da sociedade civil
para realização de denúncias aos organismos de defesa de direitos humanos no
âmbito nacional e internacional.
Há de se considerar também que as concepções que envolvem a análise e a
compreensão sobre estes adolescentes - tais como risco social e vulnerabilidade
social - negam o ato infracional como expressão da “questão social” e com isso
fortalecem o consenso punitivo. O uso de novas metodologias de intervenção, como
as propostas de alternativas de resolução de conflito, como a justiça restaurativa, o
incentivo individual ao empoderamento dos adolescentes e a busca de um processo
de arrependimento, em uma concepção conservadora, acabam negando as
violações sofridas nas instituições, bem como negando a luta de classes. Por isso, a
centralidade da análise da realidade deve estar nas expressões da criminalização
dos adolescentes pobres pela via da cultura punitiva e a partir dessa eleger como
prioridade o cessar das formas vingativas de punição. Cabe frisar também a
importância de ampliação do conhecimento crítico sobre as instituições de
cumprimento de MSE, cabendo um destaque para as práticas seletivas do Poder
Judiciário, que persistem como estruturas de “caixas pretas”, favorecendo a
instrumentalidade da cultura punitiva.
Ao trazermos na elaboração da tese a importância do tema da sistematização
da prática, buscamos demonstrar o quanto fica evidente a atualidade dessa temática
para a profissão. Bem como a pouca produção crítica na área da infância e
adolescência, considerando que este foi um campo pioneiro na profissão. No
processo da pesquisa, ficou evidenciada a precariedade da produção e publicização
de dados especialmente sobre o perfil socioeconômico dos adolescentes.
Consideramos, desta forma, que este seria um papel importante para o Serviço
Social na atual conjuntura, pois contribuiria para a comprovação e reconhecimento
da criminalização destes sujeitos. A lógica da criminalização aparece nos discursos
dos profissionais, é também percebida no atendimento dos adolescentes, porém
precisa ser explicitada no âmbito das MSEs. Esse processo contribuirá para
alimentar propostas contra-hegemônicas, bem como para alcançar uma maior
180

definição do papel dos assistentes sociais nestas instituições. A questão da


desigualdade social e econômica - que subjaz na prática dos atos infracionais -
precisa ser compreendida não como uma concepção de que os pobres cometem
mais delitos, mas porque este determinante é elemento de seletividade do sistema
sociojurídico.
Para tanto, é imprescindível reconhecer e destacar as contradições
vivenciadas por estes profissionais, vulneráveis às determinações que envolvem a
cultura punitiva, nestes espaços de trabalho precarizados. Ou seja, os assistentes
sociais que trabalham com as MSEs vivenciam a tensão entre duas requisições: se
por um lado lhes é atribuída a responsabilidade de garantir direitos, por outro lhes
cabe a manutenção da “ordem social” pela via de práticas e instrumentos de coerção
e “controle social”, que integram “a natureza e as funções precípuas das instituições
empregadoras (...)” (SILVA, 2010, p. 150). Este reconhecimento torna-se
fundamental no trabalho com as MSEs e consequentemente para a construção de
propostas contra-hegemônicas.
Destacamos ainda a importância do aprofundamento sobre a formação de um
“lunpem contemporâneo” na vinculação com o tráfico de drogas, nas formas e
razões para a inserção dos adolescentes e jovens nestas atividades. Trata-se de
sujeitos que buscam alternativas de sobrevivência e de acesso a bens materiais pelo
consumo na sociedade burguesa, sendo “reconhecidos como “sujeitos”
legitimamente existentes apenas como “consumidores manipulados” de
mercadorias” (MÉSZÁROS, 2002, p. 611). Cabe ainda o destaque para o
aprofundamento sobre a forma como a construção ideológica das “facções
criminosas” ingressa nas MSEs, desvelando o que pode ter por trás e a quem
interessa esta construção reforçada pelo próprio Estado.
Portanto, consideramos que os direitos humanos devem adquirir uma nova
funcionalidade diante da conjuntura de barbárie atual, sendo apropriados como
instrumentos legais de resistência, ainda que seu alcance esteja no limite da
emancipação política. Isto porque: “quando a desumanidade do capitalismo começa
a se tornar patente, o apelo ao Homem não é mais uma retórica, mas um argumento
contra a sociedade que um dia prometeu realizar tal ideia e a traiu. (MENEGAT,
2009, p. 40)
Por fim, consideramos que o debate, o conhecimento e desvelamento das
formas como se expressa a cultura punitiva nas MSEs, no Brasil, precisam estar
181

vinculados às demais reinvindicações dos movimentos sociais, que, por sua vez,
lutam pela efetivação do direito à saúde, à terra, à moradia de qualidade, à
educação pública de qualidade. Estes movimentos também acabam sendo alvos da
criminalização e da neutralização por lutarem por direitos. Para tanto, nossa
proposta segue na direção do comprometimento da profissão com o
aprofundamento da temática da cultura punitiva, que perpassa a questão das MSEs.
Torna-se evidente que a cultura punitiva possui uma centralidade nas MSEs
para além da neutralização de um crime ou “criminoso”. Apresenta-se feroz pelas
formas que se reproduz na atualidade, como um poderoso instrumento ideológico de
eliminação dos sujeitos sociais. Por isso, compreendemos este tema imprescindível
para a formulação de resistências diante da barbárie que se apresenta. Entre a “dor
e o amor”, pesquisar sobre a permanente cultura punitiva nas MSEs foi também
trazer a centralidade destes sujeitos (adolescentes) que a vivenciam. Ao finalizarmos
esse estudo, temos clareza dos desafios presentes para construção de uma contra-
hegemonia, capaz de romper com a naturalização e instrumentalidade do
punitivismo em nossa cultura. Deste modo, é importante registrar que essa tese
encerra um ciclo para a abertura de novos ciclos de reflexão.

E assim chega-se ao final, com a certeza de que, agora, foi alcançada


aptidão para o começo. Mas, se assim é, o começo é recomeço, o fim torna-
se suposto, e a jornada pode prosseguir, melhor e mais ampla. Fecha-se
um círculo, e provavelmente, de um círculo de círculos. (CHASIN, 1978, p.
356)
182

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APÊNDICE A – Termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE)

Grupo focal com Assistentes Sociais

Eu, ______________________________, fui informado de que o objetivo desta


atividade de pesquisa é “Contribuir com conhecimento crítico sobre a execução das
medidas socioeducativas (MSEs) através da problematização do processo de
trabalho dos Assistentes Sociais inseridos no contexto das MSEs, desvelando as
contradições presentes nos princípios de proteção do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) e a relação destas com o Estado e a sociedade burguesa”.
Objetivamos contribuir com o fazer profissional, identificando os limites e
possibilidades de sua ação no cotidiano de trabalho com adolescentes em
cumprimento de MSE. A mesma é complementar para elaboração de tese de
Doutorado em Serviço Social do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Serviço Social da UERJ/RJ.
Recebi informações específicas sobre a utilização deste material, que constará de
participação em grupo de discussão denominado “grupo focal”.
Estou ciente que as falas durante o debate do grupo serão gravadas em fita de
áudio e posteriormente transcritas.
O conteúdo do grupo poderá ser utilizado e publicado, em parte ou na totalidade,
tendo garantido o sigilo e preservando a identidade do participante.
Também fui informado que mesmo após o início do grupo, posso a qualquer
momento, recusar-me a participar, sem que isto venha a meu prejuízo, pois se trata
de livre participação.
Se necessitar contatar com a responsável pela pesquisa, o contato pode ser feito
pelo telefone (21)985808751, ou pelo endereço: Rua República do Peru 355/701 –
Copacabana, Rio de Janeiro. Caso você tenha dificuldade em entrar em contato com
o pesquisador responsável, comunique o fato à Comissão de Ética em Pesquisa da
UERJ: Rua São Francisco Xavier, 524, sala 3018, bloco E, 3º andar, - Maracanã –
Rio de Janeiro, RJ, email: ética@uerj.br – Telefone: (21) 2334-2180.

Rio de Janeiro_____, de___________de 2016.

Participante da pesquisa _____________________________________

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