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Quem foi Maria Quitéria, mulher que se

vestiu de homem para lutar na


Independência do Brasil
 Guilherme Henrique
 De São Paulo para a BBC News Brasil

22 janeiro 2022

CRÉDITO,DOMENICO FAILUTTI
Legenda da foto,
Mesmo depois de ter a mentira descoberta, Maria Quitéria recebeu a permissão para
continuar combatendo por causa de suas habilidades com armas de fogo
A Independência do Brasil completa 200 anos em 2022. A data que marca
o bicentenário em torno do 7 de Setembro, quando país deixou de ser
colônia portuguesa, é cercada de discordâncias em torno de sua real
importância para a nação que começava a se formar, assim como
personagens ainda pouco explorados nos livros didáticos.
Esses dois temas estão relacionados à história de Maria Quitéria de Jesus
(1792-1853), que se vestiu de homem, com a alcunha de 'soldado Medeiros',
para participar das lutas independentistas em seu Estado, a Bahia, contra as
tropas portuguesas resistentes às mudanças regimentais na política brasileira
daquele período.
Primeira mulher a integrar as Forças Armadas, Maria Quitéria foi condecorada
por D. Pedro 1º como heroína, exaltada pelo Exército a partir da década de
1950 e rosto emblemático na luta de organizações femininas pela anistia
durante a Ditadura Militar brasileira (1964-1985).
CRÉDITO,REPRODUÇÃO/BIBLIOTECA NACIONAL DA AUSTRÁLIA
Legenda da foto,
Em 1823, Quitéria comandou um grupo de mulheres civis na resistência baiana às
tropas portuguesas
As disputas na Bahia
Para entender a história de Maria Quitéria e sua entrada nas lutas
independentistas, é preciso contextualizar o 7 de Setembro. A data, que marca
o grito de D. Pedro 1º às margens do rio Ipiranga, não representa o que
aconteceu de fato no Brasil, segundo alguns pesquisadores. O escritor
Laurentino Gomes, no livro 1822, diz o seguinte:
"As demais províncias ou ainda estavam sob controle das tropas portuguesas,
caso da Bahia, ou discordavam da ideia de trocar a tutela até então exercida
por Lisboa pelo poder centralizado no Rio de Janeiro, caso de Pernambuco,
que reivindicava maior autonomia regional", diz a obra.
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Patrícia Valim, professora de História da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), corrobora essa versão. "O 7 de Setembro é a nossa primeira grande
derrota enquanto país, ou na formação de um, porque é uma data fruto de um
acordo feito em São Paulo. Muito diferente do que houve na Bahia e do
contexto no qual a Maria Quitéria está inserida", afirma.
As lutas na Bahia se intensificaram em fevereiro de 1822, quando tropas
portuguesas e soldados brasileiros travaram conflitos em torno do comando da
província da Bahia, na contenda entre o português Luís Madeira de Melo e o
brasileiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães.
As disputas perduraram até julho de 1823, quando os portugueses se
renderam. Nesse meio tempo, há a figura de Maria Quitéria, cuja presença na
guerra de independência não foi nada simples.
CRÉDITO,REPRODUÇÃO/ BOLETIM MARIA QUITÉRIA
Legenda da foto,
Na Ditadura Militar, a baiana deu nome ao boletim informativo do Movimento
Feminino pela Anistia de São Paulo
Contrariando a família
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Maria Quitéria nasceu em São José das Itapororocas, antiga Freguesia de
Nossa Senhora do Porto da Cachoeira, atual município de Feira de Santana, a
segunda maior cidade baiana. Seu pai era o lavrador Gonçalo Alves de
Almeida, e a mãe era Quitéria Maria de Jesus.
Boa parte do que se sabe sobre a trajetória de Maria Quitéria está em
biografias escritas na década de 1950, quando comemorações em torno de seu
centenário se avolumaram. O livro de Pereira Reis Junior, de 1953, é um
exemplo.
Esses relatos partem de registros de jornais da época e também da escritora
britânica Maria Graham, que escreveu um livro sobre sua viagem ao Brasil
entre 1821 e 1823, intitulado Journal of a Voyage to Brazil, de 1824.
A partir daí, é possível saber que a mãe de Maria Quitéria teria falecido quando
a filha ainda era criança, e que o pai casara-se uma porção de vezes nos anos
seguintes.
O patriarca era proprietário da Fazenda Serra da Agulha, onde plantava
algodão, criava cabeças de gado e detinha duas dezenas de negros
escravizados. "Eles não eram ricos, mas também não tinham dificuldade",
afirma Valim, da UFBA.
Maria Quitéria cresceu sendo criada por madrastas e pouco afeita aos
trabalhos de casa, condição imposta às mulheres daquele período. "A família
queria que ela bordasse, mas ela se recusava. Maria Quitéria gostava de
montar a cavalo, cavalgar. Também manejava armas de caça, como
espingarda, algo fora dos padrões", conta a historiadora.

CRÉDITO,REPRODUÇÃO/MUSEU PAULISTA
Legenda da foto,
Maria Quitéria teve o pedido para participar da guerra recusado pelo pai, e então
travestiu-se de homem
O Soldado Medeiros
Maria Quitéria soube da guerra quando emissários de uma Junta Provisória
instalada para governar a Bahia em meio às disputas com Portugal chegaram
ao Recôncavo Baiano à procura de homens para participar da luta armada a
favor da independência do Estado.
Ao saber da notícia, Maria Quitéria tentou convencer seu pai a deixar que ela
participasse da guerra, mas o pedido foi prontamente recusado. Então, Quitéria
foi à casa de uma das irmãs, Teresa, e pegou a roupa de seu cunhado, José
Cordeiro de Medeiros, além de cortar os cabelos. Nascia, então, o "Soldado
Medeiros".
A versão corrente entre os biógrafos é que Maria Quitéria teria se apresentado
ao Batalhão Nº 3 de Caçadores do Exército Pacificador como filho de seu
cunhado, já que usava vestimenta masculina. A mentira deu certo.
"Ela assumiu a identidade masculina com muita propriedade. Apesar de ser
iletrada, ela tinha um conhecimento militar de montaria, tiro ao alvo, que fazia
diferença naquele contexto de conflito. Eram habilidades irrecusáveis pelos
militares brasileiros", diz Valim.
Pouco tempo depois do sumiço da filha, Gonçalo, o pai, é informado pela irmã
de que Maria Quitéria decidira se juntar às tropas disfarçada. Gonçalo vai à
cidade de Cachoeira, encontra a filha e informa o major José Antônio Silva
Castro de que o soldado Medeiros, na verdade, era uma mulher. "O pai pediu
que ela voltasse imediatamente, sob pena de ser amaldiçoada, mas ela não
retornou", conta Valim.
O major permitiu que Maria Quitéria continuasse no Batalhão, já que possuía
habilidades destacáveis com armas de fogo. Ela tinha 30 anos na época. Em
março de 1823, um registro de Portaria do Governo Provisório da Vila de
Cachoeira mostra que o Major pediu ao Inspetor dos Fardamentos, Montarias e
Misteres do Exército que enviasse "saiotes, e uma espada" para que ela fosse
devidamente fardada como mulher.
Registros apontam a participação de Maria Quitéria em ao menos três
combates. Enquanto a independência era gritada em São Paulo por D. Pedro
1º, os conflitos cresciam na Bahia. Maria Quitéria participou do primeiro deles
em outubro de 1822, na região da Pituba. Depois, em fevereiro do ano
seguinte, em Itapuã. Nesse período, ela foi promovida a 1º cadete.
Em abril de 1823, Maria Quitéria comandou um grupo de mulheres civis que se
uniram para lutar contra os portugueses na Barra do Paraguaçu, no litoral do
Recôncavo. A resistência vitoriosa foi fundamental para garantir não só a
independência baiana, mas também para alçar a figura de Quitéria como
heroína da pátria.
Os conflitos seguiram até 2 de julho, quando os últimos portugueses que ainda
resistiam decidiram abdicar do combate. A data é celebrada como o dia da
independência da Bahia até hoje. "Essa celebração marca uma oposição ao 7
de Setembro e a história criada em São Paulo. História mantida até hoje, com o
que é contada no Museu Paulista e centraliza a narrativa em torno da
independência", ressalta Valim.
Com o fim da guerra, Maria Quitéria vai ao Rio de Janeiro em agosto de 1823
para ser recebida por D. Pedro 1º. Ela foi condecorada com a insígnia de
Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, medalha criada como símbolo do
poder imperial como forma de homenagear brasileiros ou estrangeiros que
tenham lutado pela independência do país.
CRÉDITO,REPRODUÇÃO/JOURNAL OF A VOYAGE TO BRAZIL
Legenda da foto,
Primeiros retratos de Maria Quitéria a mostram com feições mais caucasianas. Já nas
pinturas de 1920 ela aparece fenotipicamente mais próxima de negros e indígenas

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