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dossiê
Vilson Caetano de Sousa Júnior
Resumo Abstract
A comida e o comer ocupam funções diver- The food and eating occupy various roles
sas dentro das comunidades de terreiro, on- within terreiros communities, where prepa-
de as comidas dedicadas aos ancestrais pre- red foods dedicated to the ancestors in the
paradas na chamada “cozinha de santo” di- call “kitchen saint” differ, the “treatment” of
ferem, pelo “tratamento” das comidas do dia food very day, or “refined foods”, calls some
a dia, ou das “comidas refinadas”, chamadas houses “white foods”. The foods are consu-
em algumas casas de “comidas de branco”. med in white crowded celebrations of the
As comidas de branco são consumidas em terreiros communities, as in café (“break-
concorridas celebrações dos terreiros, como fast”) dedicated to the deity or to a loved
no “café” dedicado ao orixá ou a um ente one; the hearty lunch provided by religious
querido; no farto almoço oferecido pelos ter- communities; without forgetting the festivi-
reiros; sem esquecer as festividades em que ties they are contracted services buffets. He-
são contratados serviços de buffets. Eis al- re are some examples of the old and close re-
guns exemplos da relação antiga e estreita lations hip between the “white foods” and
entre as “comidas de branco” e as “comidas “foods saint.” The so-called “modernization
de santo”. A chamada “modernização do custom”, accompanied by the display of
costume”, acompanhada pela ostentação de prestige for some leaders are now causing
prestígio por algumas lideranças vêm oca- the replacement of either the disappearance
sionando ora a substituição ora o desapare- of holy food, at the expense of white foods.
cimento das comidas de santo, em detrimen- This article aims to discuss these issues.
to das comidas de branco. O presente artigo
visa discorrer sobre estas questões.
Palavras-chave Keywords
Alimentação ritual. Religiões afro-brasi- Ritual power. African-brazilian. Black cul-
leiras. Cultura negra. ture religions power.
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1 O comer nas religiões Na comida, ainda se afirma encontrar a
afro-brasileiras energia máxima de uma oferta, o que jus-
tifica a frase: “ninguém é tão pobre que
Nos terreiros de candomblé, afirma-se não tenha o que dar.” Assim, a partir desta
que “tudo come”, do chão, de onde partem ideia, comida como oferenda é um presente
os alicerces, à cumeeira. Em outras pala- através do qual se transmite, revitaliza-se e
vras, tudo recebe comidas especiais, pre- se retribui, ela se torna também sacrifício.
paradas de acordo com as regras prescritas Várias vezes, ouvimos a frase: comida é
pela tradição de cada comunidade. Assim, sacrifício. Sacrifício é entendido, conforme
essas comidas estão presentes no momento sugere o velho Mauss (1981, p. 150), como
da sacralização de portas e janelas, cadei- oblação, mesmo vegetal, todas as vezes em
ras, instrumentos e objetos pessoais. Toda- que a oferenda ou que uma parte da oferen-
via, é no quarto dos orixás, diante destes, da é destruída, embora o uso pareça reservar
também chamados de pejis, que estas co- o termo sacrifício somente à designação dos
midas parecem desempenhar uma de suas sacrifícios sangrentos.
principais funções dentro do universo reli-
gioso de matriz africana, reorganizado no Embora a comida de orixá possa ser
Brasil: a de funcionar como um elo entre a também sacrifício, nem todo sacrifício é
comunidade e a sua ancestralidade. comida de orixá. Sobre isso, as pessoas de
No trabalho intitulado Banquete sagra- candomblé sabem que, embora os elemen-
do: notas sobre os de comer em terreiros tos “pareçam” os mesmos, ao se referir às
de candomblé (SOUSA JÚNIOR, 2009), tive- coisas utilizadas, mudam o “tratamento”
mos a oportunidade de descrever como isso e as palavras de encantamento ditas so-
acontece. A comida é entendida como for- bre essas. E, assim, seguem estabelecendo
ça, dom, energia presente nos grãos, raízes, fronteiras entre comida como sacrifício,
folhas e frutos que brotam da terra. Algo aquelas que servem para comer, e “comi-
cheio de sentido e sentimentos, elementos das” que não servem para comer, presentes
impressos pelo devoto. em alguns sacrifícios. A estas, restringem-
Sobre o conceito de força vital para os se apenas o torrar ou o ferventar ou, ao
africanos, Tempels (1969), em seus estu- menos, a aplicação de cortes transversais
dos sobre os bantu, ocupou-se longamente. no caso de raízes, hortaliças e frutas, a fim
Esta diz respeito a algo presente nos seres, de as dessacralizar. Trata-se de elementos
ou, como prefere o professor Leite (1986, que simplesmente serão “passados” pelo
p. 34), corpo das pessoas (como se costuma dizer
é um instrumento ligado à estruturação da nos terreiros), chamados genericamente de
realidade, consubstanciado-se na figura do ebó. Dificilmente, um consulente sairá de
pré-existente”, entendido como fonte atra- um terreiro levando uma nota, contendo a
vés da qual tudo se expressa e se compreen- expressão “ingredientes”, para fazer uma
de. Daí o porquê de se dizer que “tudo come”. “limpeza”, um “sacudimento”, designação
Segundo a explicação da maioria das lide- popular do tratamento mágico religioso.
ranças religiosas questionadas sobre este fa- Embora a palavra “ingrediente” ainda não
to, “não há nada no mundo que se mantenha tenha adentrado no linguajar dos terreiros,
vivo, sem comer. ainda hoje, parece ser o termo “material”