Você está na página 1de 16

COMIDA DE SANTO E COMIDA DE BRANCO

dossiê
Vilson Caetano de Sousa Júnior

Resumo Abstract
A comida e o comer ocupam funções diver- The food and eating occupy various roles
sas dentro das comunidades de terreiro, on- within terreiros communities, where prepa-
de as comidas dedicadas aos ancestrais pre- red foods dedicated to the ancestors in the
paradas na chamada “cozinha de santo” di- call “kitchen saint” differ, the “treatment” of
ferem, pelo “tratamento” das comidas do dia food very day, or “refined foods”, calls some
a dia, ou das “comidas refinadas”, chamadas houses “white foods”. The foods are consu-
em algumas casas de “comidas de branco”. med in white crowded celebrations of the
As comidas de branco são consumidas em terreiros communities, as in café (“break-
concorridas celebrações dos terreiros, como fast”) dedicated to the deity or to a loved
no “café” dedicado ao orixá ou a um ente one; the hearty lunch provided by religious
querido; no farto almoço oferecido pelos ter- communities; without forgetting the festivi-
reiros; sem esquecer as festividades em que ties they are contracted services buffets. He-
são contratados serviços de buffets. Eis al- re are some examples of the old and close re-
guns exemplos da relação antiga e estreita lations hip between the “white foods” and
entre as “comidas de branco” e as “comidas “foods saint.” The so-called “modernization
de santo”. A chamada “modernização do custom”, accompanied by the display of
costume”, acompanhada pela ostentação de prestige for some leaders are now causing
prestígio por algumas lideranças vêm oca- the replacement of either the disappearance
sionando ora a substituição ora o desapare- of holy food, at the expense of white foods.
cimento das comidas de santo, em detrimen- This article aims to discuss these issues.
to das comidas de branco. O presente artigo
visa discorrer sobre estas questões.

Palavras-chave Keywords
Alimentação ritual. Religiões afro-brasi- Ritual power. African-brazilian. Black cul-
leiras. Cultura negra. ture religions power.

127
1 O comer nas religiões Na comida, ainda se afirma encontrar a
afro-brasileiras energia máxima de uma oferta, o que jus-
tifica a frase: “ninguém é tão pobre que
Nos terreiros de candomblé, afirma-se não tenha o que dar.” Assim, a partir desta
que “tudo come”, do chão, de onde partem ideia, comida como oferenda é um presente
os alicerces, à cumeeira. Em outras pala- através do qual se transmite, revitaliza-se e
vras, tudo recebe comidas especiais, pre- se retribui, ela se torna também sacrifício.
paradas de acordo com as regras prescritas Várias vezes, ouvimos a frase: comida é
pela tradição de cada comunidade. Assim, sacrifício. Sacrifício é entendido, conforme
essas comidas estão presentes no momento sugere o velho Mauss (1981, p. 150), como
da sacralização de portas e janelas, cadei- oblação, mesmo vegetal, todas as vezes em
ras, instrumentos e objetos pessoais. Toda- que a oferenda ou que uma parte da oferen-
via, é no quarto dos orixás, diante destes, da é destruída, embora o uso pareça reservar
também chamados de pejis, que estas co- o termo sacrifício somente à designação dos
midas parecem desempenhar uma de suas sacrifícios sangrentos.
principais funções dentro do universo reli-
gioso de matriz africana, reorganizado no Embora a comida de orixá possa ser
Brasil: a de funcionar como um elo entre a também sacrifício, nem todo sacrifício é
comunidade e a sua ancestralidade. comida de orixá. Sobre isso, as pessoas de
No trabalho intitulado Banquete sagra- candomblé sabem que, embora os elemen-
do: notas sobre os de comer em terreiros tos “pareçam” os mesmos, ao se referir às
de candomblé (SOUSA JÚNIOR, 2009), tive- coisas utilizadas, mudam o “tratamento”
mos a oportunidade de descrever como isso e as palavras de encantamento ditas so-
acontece. A comida é entendida como for- bre essas. E, assim, seguem estabelecendo
ça, dom, energia presente nos grãos, raízes, fronteiras entre comida como sacrifício,
folhas e frutos que brotam da terra. Algo aquelas que servem para comer, e “comi-
cheio de sentido e sentimentos, elementos das” que não servem para comer, presentes
impressos pelo devoto. em alguns sacrifícios. A estas, restringem-
Sobre o conceito de força vital para os se apenas o torrar ou o ferventar ou, ao
africanos, Tempels (1969), em seus estu- menos, a aplicação de cortes transversais
dos sobre os bantu, ocupou-se longamente. no caso de raízes, hortaliças e frutas, a fim
Esta diz respeito a algo presente nos seres, de as dessacralizar. Trata-se de elementos
ou, como prefere o professor Leite (1986, que simplesmente serão “passados” pelo
p. 34), corpo das pessoas (como se costuma dizer
é um instrumento ligado à estruturação da nos terreiros), chamados genericamente de
realidade, consubstanciado-se na figura do ebó. Dificilmente, um consulente sairá de
pré-existente”, entendido como fonte atra- um terreiro levando uma nota, contendo a
vés da qual tudo se expressa e se compreen- expressão “ingredientes”, para fazer uma
de. Daí o porquê de se dizer que “tudo come”. “limpeza”, um “sacudimento”, designação
Segundo a explicação da maioria das lide- popular do tratamento mágico religioso.
ranças religiosas questionadas sobre este fa- Embora a palavra “ingrediente” ainda não
to, “não há nada no mundo que se mantenha tenha adentrado no linguajar dos terreiros,
vivo, sem comer. ainda hoje, parece ser o termo “material”

128 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


mais utilizado. Dessa maneira, ao utilizar ser sempre algo reservado. Fora da comu-
tal palavra, em vez de “chamar” direta- nidade, por ocasião de uma festa, caso isso
mente o nome dos grãos, o sacerdote está aconteça, deve ser acompanhado pela dis-
mesmo estabelecendo esta fronteira ou, ao crição, a fim de se evitar comentários cons-
menos, demonstrando os diferentes senti- trangedores.
dos que a oferenda pode cumprir dentro do A partilha da comida nos terreiros é hie-
seu universo. rarquizada. Como se come está diretamen-
Por fim, nas comunidades de terreiro, a te relacionado à posição que o indivíduo
comida é a força que alimenta os ances- ocupa dentro do grupo no qual está inse-
trais e, ao mesmo tempo, o meio por qual rido. Para o consumo de algumas comidas,
a comunidade alcança o mais alto grau de a supressão dos talheres é obrigatória, e há
intimidade com o sagrado, através da con- ocasiões em que apenas algumas pessoas
sumação. Quando indagadas sobre “os de podem utilizar talheres. Há comidas que
comer” nos terreiros, essas comunidades, podem ser consumidas por todos, mas há
para além de questões nutricionais, colo- também as destinadas apenas aos iniciados.
cam-nos diante de visões de mundo e re- Até estas são divididas segundo a ordem
alidades complexas, construídas ao longo iniciática. Assim, segue a comida cum-
do tempo, redefinidas a cada momento, de prindo uma de suas funções mais antigas,
acordo com funções ou “realidades” que se sociologicamente falando, a de reforçar
deseje instaurar, expressas nas múltiplas papéis sociais, realçar níveis hierárquicos,
formas, maneiras e diferentes modos de manter status e exibir prestígio e poder.
preparar e fazer a comida.
3 Das distinções da comida quanto à
2 O que não se come e o não comer, origem e ao azeite de dendê
com quem se come, como se come e
quando se come Nos terreiros de candomblé, podemos
ainda encontrar uma distinção relacionada
Para além de questões conceituais, o povo à origem da comida. Chama-se de comida
de candomblé, quando questionado sobre “os de ejé, a de origem animal. Ejé, na língua
de comer”, tem em mente um universo ali- yorubá, significa sangue. A expressão “co-
mentar mais amplo, que compreende: o que mida de ejé” refere-se, assim, às comidas
não se come e o não comer; com quem se oriundas do sacrifício de animais consa-
come; como se come e quando se come. grados aos orixás. É digno de nota observar
Enquanto “o que não se come” diz res- que, geralmente, as carnes consumidas nas
peito aos tabus alimentares, sobre os quais comunidades de terreiro, em sua maioria,
vários autores já se dedicaram, o “não são provenientes dos sacrifícios, tema que,
comer” diz respeito a ocasiões especiais, na contemporaneidade, tem alcançado de-
como, por exemplo, durante o período do bate significativo nos estados brasileiros. Há
luto ou o desenrolar de cerimônias dedica- também as comidas secas, aquelas à base de
das ao morto, quando se abstém de carne. grãos, raízes, hortaliças e frutas. Em linhas
Com quem se come está intimamente gerais, as comidas secas acompanham as
relacionado com a identidade da comuni- comidas provenientes do sacrifício, mas há
dade. Fato é que, o comer no terreiro deve ocasiões em que as primeiras “substituem”

Comida de santo e comida de branco 129


as segundas, ou melhor, desempenham a po. Findado esse momento, a vida do terrei-
função das segundas com a mesma “força.” ro volta ao “normal”, os orixás retornam ao
Isso acontece em ocasiões especiais. corpo de seus filhos e filhas que estavam de
Há ainda as chamadas “comidas bran- erês para agradecer, mais uma vez, pela festa
cas” que não podem ser confundidas com e pela comida, reforçando, assim, os laços
as “comidas de branco”, das quais nos ocu- com a comunidade.
paremos a seguir. Diz-se daquelas que não
levam azeite de dendê, que, mais do que um 4 A cozinha ritual
elemento da cozinha ritual, é um dos símbo-
los mais emblemáticos de nossa identidade É na cozinha do axé que as comidas dedi-
negro-africana reconstruída na diáspora. As cadas aos orixás são feitas. O professor Lima
“comidas brancas” estão presentes nos ritos (2010) referia-se a ela como “cozinha ritual
de passagem e no culto aos orixás chamados dos candomblés.” A cozinha ritual dos can-
funfum, brancos, aqueles ligados aos pri- domblés merece atenção especial. Até mes-
mórdios, ao tempo em que os primeiros gru- mo naquelas comunidades onde, por razões
pos partiram em direção aos quatro cantos espaciais, as comidas do dia a dia são prepa-
do mundo para povoar a terra. As “comidas radas no mesmo ambiente, no momento da
brancas” diferenciam-se das “comidas de preparação das primeiras, acontece uma se-
azeite”, referendadas também como comi- paração feita não por limites externos, mas
das quentes, pois estas ora levam o azeite de internos, representados por atitudes, ações e
dendê, ora “pegam” pimenta, como se diz. diferentes formas de uso e manuseio dentro
Uma vez preparada a comida e separa- do próprio espaço. A cozinha ritual extrapo-
da a que será partilhada entre os convida- la noções como as de espacialidade e se in-
dos, a parte reservada aos orixás constitui- sere, algumas vezes, em momentos vividos,
se verdadeiros banquetes a eles dedicados. quando acontecem, para além da separação
Nos terreiros de candomblé da Bahia, por de utensílios, mudanças de atitude diante da
exemplo, é hábito preparar muita comida. comida que está sendo preparada num espa-
Após as rezas dedicadas aos orixás, algumas ço recriado, onde tudo participa do sagrado:
comunidades costumam consultá-los sobre panelas, travessas, pratos, fogão, bacias, ces-
o destino de tais pratos. É comum, nessas tos, peneiras, colheres de pau, ralos, pilão,
ocasiões, a comunidade realizar a chamada frigideiras, formas de assar, mas também
mesa fria. A mesa fria, ritual que tende a aparelhos eletrodomésticos e, sobretudo, as
desaparecer, consiste na divisão da comida pessoas que nela transitam. É desta separa-
oferecida aos orixás no dia seguinte à festa. ção das demais comidas que depende, num
Talvez venha daí a expressão “mesa fria”. primeiro momento, a sua “condição” de co-
A dificuldade em mantê-la está no fato de mida de santo.
ser realizada num dia em que a maioria das
pessoas precisa retornar aos seus afazeres. A 5 Comida de santo e comida
mesa fria serve ainda como um momento de de branco
descontração, quando algumas tensões pró-
prias do ritual são relaxadas ou algumas re- Chama-se comida de santo, expressão
lações são flexibilizadas através da presença rejeitada por alguns autores, a comida vo-
dos erês que fazem brincadeiras a todo tem- tiva dedicada aos orixás. Ao longo de suas

130 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


pesquisas, Lima alternou tal expressão com zia isso se valendo da revisão que fez do
outras como “comida de obrigação”, “co- pequeno ensaio de Querino (2006), A arte
mida de orixá”, “comida de preceito”, “co- culinária na Bahia. Profundamente conhe-
mida sacralizada” ou simplesmente “dieta cedor de sua cultura, descendente de afri-
sacrificial.” Talvez nenhum outro autor canos, Querino – nascido em Santo Amaro
tenha se dedicado tanto a essas comidas da Purificação, em 1851 – separou os ali-
quanto o professor Lima (2011), ao menos mentos de seu tempo em “alimentos pu-
com referência aos candomblés baianos. A ramente africanos” e “algumas noções do
publicação da obra intitulada A comida de sistema alimentar da Bahia.” No entendi-
santo numa casa de Queto da Bahia, dedi- mento de Vivaldo da Costa Lima, a cozinha
cada à ialorixá Olga do Alaketu, com quem ritual dos terreiros de candomblé – contra-
nutria relações de afeto e amizade, é ilus- riando alguns pesquisadores, folcloristas,
trativa do minucioso trabalho de respeito e como Câmara Cascudo, que minimizavam
dedicação às coisas da Bahia ou, ao menos, a importância dessa cozinha no processo
aos “de comer dos santos dos candomblés de formação da chamada comida baiana ou
baianos.” Esta expressão, tive o privilé- cozinha de azeite – teria sido decisiva na
gio de ouvi-la algumas vezes do professor confecção, manutenção e originalidade de
Vivaldo da Costa Lima, ao ler, para mim, alguns pratos que hoje integram as comi-
anotações escritas a tinta, algumas apaga- das típicas da cidade de Salvador.
das pelo tempo, que haviam sido ligeira- Nos terreiros de candomblé, as comi-
mente escritas na sua caderneta de campo, das de santo eram iguarias ortodoxamen-
em 1965, quando iniciou a sua pesquisa, te preparadas e resistentes à substituição
ditadas por Mãe Olga do Alaketu, uma in- e ao acréscimo de novos ingredientes. Tal
formante que, como outras de seu tempo, resistência configura-se como uma reivin-
não gostava de ter a sua voz gravada. Após dicação, uma espécie de forma simbólica
quarenta anos, ao retornar àquela sábia e ostensiva, de exprimir o ideal rigoroso dos
ilustre sacerdotisa, “respeitada por toda a velhos tempos, quando ainda se cozinhava
gente da Bahia” e uma das “mais antigas a lenha e em panelas de barro, ou ainda
mães de santo da nação Queto”, a fim de em que africanos e africanas, profunda-
verificar algumas notas e termos africanos, mente conhecedores de suas culturas, res-
o que entre os antropólogos é um privilé- tabeleceram e reconstruíram seus espaços
gio, o velho mestre conclui: simbólicos, suas religiões e a “cozinha dos
Não quero disfarçar metodologicamente mi- santos”, substituindo e trocando ingredien-
nha admiração ao ouvir, mais de quarenta tes. Por essa razão, algumas pessoas ainda
anos depois, das primeiras entrevistas [fei- resistiriam a cozinhar para os seus orixás
tas em 1965] as mesmas palavras, os mesmos incorporando alguns equipamentos para
comentários, além de alguns acréscimos for- preparar a comida ritual.
necidos pela espantosa memória da ialorixá. Mas a comida que se dava aos santos era
(LIMA, 2011, p. 8). também a comida cotidiana do africano nas
suas terras distantes. Só, que, naturalmen-
Lima, através de uma leitura histórica, te, quando comia, de sacrifício, de oferenda,
insiste na ideia de que as comidas de san- era feita com mais cuidado e requinte. E esse
to eram, de fato, iguarias africanas. E fa- cuidado de outrora, transformado num pa-

Comida de santo e comida de branco 131


drão de fidelidade saudosista, é mantido nos mudanças e criações, quanto para introdu-
terreiros da Bahia, quando “comem” os san- zi-las e promover transformações, que vêm
tos poderosos dos nagôs e jejes, e quando as afetando a dieta sacrificial dos terreiros. Isso
iguarias rituais são ortodoxamente prepara- nos remete à fala ouvida de uma ialorixá se-
das, sem substituição de ingredientes, sem xagenária na ocasião do assentamento de um
acréscimos lusitanos ou indígenas (LIMA, determinado orixá:
2010, p. 36). no meu tempo, se fazia assim, hoje já acos-
tumamos o orixá quando nasce a comer des-
Ainda hoje, em alguns terreiros de can- ta maneira.
domblé de Salvador, é possível se encon-
trar, num canto da cozinha, o antigo fogão Ela referia-se ao acaçá, que, no tempo
a lenha, feito de barro, substituído pelo car- de Querino, era feito na pedra de ralar, após
vão vegetal. A utilização do fogão a lenha o milho ficar de molho na água e, depois
é mais comum nas comunidades terreiros de ralado, era cozido e envolto em folhas
do interior, onde não somente a comida de bananeira. A pedra de ralar, ou pedra
de obrigação, mas toda ela é preparada na do aló foi colocada de lado com a chega-
trempe sobre chamas mantidas acesas a da do moinho, inicialmente manual, depois
todo tempo. Comum mesmo é deixá-lo à motorizado. Em algumas comunidades, este
amostra ou utilizá-lo em ocasiões especiais. mesmo moinho já cedeu lugar a eletrodo-
Há comunidades que chegam a dedicar um mésticos como o liquidificador e o multi-
dia de festa para a cozinha. Nesta ocasião, processador. Todavia, a ialorixá já estava
o fogão é todo enfeitado e recebe comidas se referindo à farinha de milho branco, pre-
específicas. Em seu estudo realizado sobre sente no mercado há mais de vinte e cinco
a Casa das Minas do Maranhão, Ferretti anos. Talvez não estejamos aqui diante da
(2009) observou que as comidas de santo utilização de elementos antigos para elabo-
são preparadas por métodos tradicionais. rar novas tradições para fins bastante ori-
Cozinha-se em caldeirões de ferro ou alumí- ginais, como nos diria Hobsbawm (1997).
nio, colocados sobre três grandes pedras no Nos terreiros de candomblé, a expressão
chão, chamadas tucuruba, ou trempe, entre “comida de branco” é reservada ora aos “de
os quais se coloca a lenha. O chão da cozi- comer” do cotidiano – por exemplo, o tradi-
nha tem que ser de terra batida. Não se usa cional feijão com arroz –, ora àquelas comi-
fogão a gás, liquidificador ou outros apa- das consideradas sofisticadas. Como já cha-
relhos modernos. Muitos ingredientes são mamos a atenção, estas não podem ser con-
socados em pilão de madeira ou de pedra. fundidas com aquelas chamadas pelo sistema
(FERRETTI, 2009, p. 199). de classificação dos alimentos dos terreiros de
candomblé como “comidas brancas.”
Se é verdade que a invenção, a adaptação As comidas de branco não são novidade
e a substituição de ingredientes foram feitas nos terreiros de candomblé, ao contrário,
de forma contemporânea às tradições, que é provável que sejam contemporâneas à
cuidadosamente tentaram conservar os “de constituição da própria “religião africana
comer” de suas divindades, é digno de nota no Brasil.” Na maioria das vezes, elas estão
que esta premissa valha também nos dias intercalando alguns momentos. Na Casa
atuais, tanto para entender a resistência às das Minas como nos candomblés da Bahia:

132 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


Nos dias de toque de tambor, algumas vezes, suco, pães, bolacha e o café. O mesmo vale
oferece-se aos participantes um jantar antes para o almoço dedicado ao ente querido no
do toque. Em diversas festas, após a ladainha último dia da cerimônia chamada axexê. Nos
se oferece uma mesa com bolo, doces e re- candomblés da Bahia, três pratos são obriga-
frigerantes, que são servidos aos visitantes. tórios: a frigideira de bacalhau, o arroz com
Mais tarde, nos intervalos dos toques, tam- leite de coco e o feijão de leite. Gostaríamos
bém costumam oferecer um copo de mingau de chamar a atenção que se trata de três pra-
de milho branco, feito no leite de coco. Es- tos que não levam azeite de dendê.
tes alimentos também são servidos em ou- Verdade é que a grandiosidade dos cafés
tros terreiros. Algumas vezes, é costume uma e almoços oferecidos aos orixás, às pessoas
xícara de café, ou de chocolate com biscoito. e ente queridos está diretamente relaciona-
(FERRETTI, 2009, p. 200). da não somente ao prestígio, mas ao po-
der aquisitivo daqueles que lhes preparam
Tomei parte, em certa ocasião, na cida- e oferecem, desta maneira, como os his-
de de Olinda, em Pernambuco, num terreiro tóricos banquetes cumprem a função, não
Xambá, de um café que marcava o encer- apenas de agradar os santos, mas distinguir
ramento da festa, ao mesmo tempo em que os homens. Em outras palavras, como nos
fui informado ser aquele momento obriga- sugere Montanari (1998, p. 109):
tório em todas as celebrações naquela casa. O banquete é, portanto, não apenas o es-
De fato, os cafés dos terreiros são algo que paço por excelência onde se expressam as
ainda está para ser estudado, o que será identidades, mas também, o da mudança
apenas possível através de uma etnografia social, conforme o mecanismo antropológi-
cuidadosa e específica. Não apenas os cafés co bem conhecido do dom e de sua contra
que encerram algumas festas, mas aqueles partida, que confere, à oferta de alimentos,
que abrem o dia consagrado a determinado valores sempre diferentes em função da po-
orixá, a exemplo do café de Oxóssi, do café sição que ocupa o oferente. [...] O banquete,
de Oxalá, do café de Obaluayê e assim por expressão da comunidade, representa tam-
diante. O café nos terreiros – iniciado ora bém as hierarquias e as relações de poder
após a missa católica, ora após o sacrifício no seu interior [...].
dos animais – é sempre temático: no café de
Oxóssi, por exemplo, há muitas frutas; no Outro elemento que deve ser acrescen-
de Oxalá, embora não se utilize café, por ser tado nessa discussão é que a expressão
considerado tabu para este orixá por algu- “comida de branco” também é atravessada
mas casas, predominam as comidas brancas; de significados construídos na conflitante
e no de Obaluayê, abundam as deliciosas relação entre negros e pobres e não negros
iguarias enroladas na folha da bananeira. no Brasil. Em outras palavras, ao se referir
Isso vale também para o café do morto, à expressão “comida de branco”, não é de
momento obrigatório da festa dedicada ao se estranhar que se esteja falando também
ente querido, quando se podem apreciar: cus- numa comida associada a grupos dominan-
cuz de arroz, inhame, milho, tapioca, bolo tes ou a classes mais abastardas. Comidas
de vários sabores, não podendo faltar o de que remetem a lugares, onde homens e
puba ou carimã e o bolo de aipim, banana mulheres negras, ao longo da história, vêm
da terra cozida, batata doce, leite, chocolate, lutando para ocupar. Não se trata, assim,

Comida de santo e comida de branco 133


de uma comida popular, mas uma comida gostos e à moda. Todavia, ele continua sen-
considerada de rico, sofisticada, comida do uma massa de farinha assada.
chique, ao menos para aqueles que a con- Os bolos fazem parte do cotidiano e
sideram desta maneira. É, pois, esta comida estão presentes em todas as celebrações.
que vem adentrando nos terreiros. Ferretti (2011) registrou no terreiro de Pai
Airton, no Maranhão, um bolo de mandio-
6 Petit Four como comida Votiva ca, feito de massa de mandioca, mistura-
da com ovos e açúcar para o vodun Nochê
Se é verdade que comidas como o aca- Naê. Não há quem imagine uma festa de
rajé, por exemplo, passaram para cele- candomblé sem ele. Em alguns terreiros, o
brações de classes afluentes (LIMA, 2010) bolo é um dos itens obrigatório que pode
como friandise – guloseimas servidas entre ser visto em local em destaque. O bolo, ain-
canapés, salmão e patês – é digno de nota da hoje, é um dos itens mais caros da festa
observar também que, agora, temos um ca- e ainda é assim para os terreiros. Graças
minho semelhante. Canapés, patês, caviar, à sua popularidade e aceitação, o mercado
escalope, kani e petit four adentrando os oferece bolos confeitados de vários tipos,
terreiros e intervindo, às vezes, de forma tamanhos e preços.
sutil, na dieta sacrificial dos orixás. Na atualidade, o bolo de orixás é um pro-
Exemplo dessa intervenção são os bolos duto oferecido por qualquer pessoa que tra-
confeitados. A história do bolo parece ser balhe com pâtisserie. Os bolos de orixás tem
contemporânea à história da própria huma- se constituído como verdadeiras obras de ar-
nidade. Sua primeira notícia data de 4.000 tes nas mãos dos chamados cakes designers.
a.C. no Egito, ao lado de cereais, quando Algumas vezes, pode-se assistir a alguns des-
os bolos de trigo surgem sempre associados a tes bolos misturados às comidas de obriga-
rituais mágicos e litúrgicos com formas hu- ção, fazendo parte das comidas de preceito.
manas e animais, cujos nomes, formas e in- Segundo as doceiras, o bolo de can-
gredientes mudavam com o tempo, com as domblé reveste-se de particularidades. Ge-
variações do gosto e da moda (MONTANARI, ralmente, escolhe-se uma massa que não
1998, p. 71). leve leite de coco e se dispensa o recheio
de frutas como morango, abacaxi e pêsse-
Os romanos teriam conservado este sen- go. Prefere-se mesmo a massa conhecida
tido e preparavam a massa com ingredien- como pão de ló, e o recheio é feito de doce
tes utilizados como oferenda aos deuses. de leite ou goiabada. Estas recomendações
Freyre (1987) teria encontrado em Portugal, são para que o bolo “ature mais”, em ou-
em Monte Real, por ocasião da festa dedi- tras palavras, tenha a sua vida prolonga-
cada à Rainha Santa Isabel, bolos de fari- da. Conheci comunidades onde o bolo é
nha de trigo como ex-votos que enchiam as partido a partir do quinto dia, e outras,
prateleiras dos andores. onde ele segue no terceiro dia, junto com
É provável que o bolo, tal qual conhe- as demais comidas votivas, para o local
cemos hoje, esteja muito distante dos pri- indicado pelos orixás.
meiros que temos notícias; ao longo dos Quando se indaga sobre o significado
tempos, seus ingredientes básicos foram se que o bolo confeitado vem alcançando em
modificando, a fim de atender aos novos algumas comunidades terreiro, é comum

134 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


ouvir explicações não sobre o bolo em si, em algumas ocasiões, podemos encontrá-lo
mas sobre o doce, uma espécie de evoca- facilmente oferecido como bebida sagrada
ção à metáfora do doce. É comum ouvir: diante de orixás como Ibeji, os gêmeos. Ver-
“o doce é bom”; “o doce chama”; “o doce dade é que ainda estão para ser realizadas
atrai”; “o amor é doce”. Como nos dicio- reflexões sobre a adoção de bebidas como
nários, em que o termo “doce”, além de se a cerveja, os destilados e os espumantes em
opor aos termos “amargo”, “azedo” e “sal- substituição às bebidas fermentadas, bem
gado”, significa também aquilo que é terno, como sobre o processo através do qual isso
aprazível, agradável, suave, brando etc. aconteceu e acontece nos dias atuais.
Raciocínio semelhante é utilizado para
explicar o porquê de se ter dedicado os do- 7 A culinária ritual e a indústria
ces ao orixá Oxum, símbolo do amor. Em de alimentos
certa ocasião, cheguei a presenciar uma
festa para Oxum, onde as pessoas carrega- Outros fatos que contribuíram decisiva-
vam cestas sobre a cabeça, contendo suspi- mente para algumas intervenções na cozi-
ros, manjar, quindim, beijinho, brigadeiro, nha sacrificial dos orixás foram o advento e
bem casado, doces variados. Ainda como o avanço da indústria de alimentos. Os ali-
ilustrativo desta questão, transcrevo abaixo mentos fornecidos pela indústria alimentí-
um depoimento sobre cupcakes dos orixás: cia são fruto de modificações ocorridas nos
Recebi neste final de semana uma encomen- últimos 150 anos (POLLAN, 2008). Coube
da um tanto curiosa, encantadora, cupcakes a esta indústria, combinando tecnologia e
amarelos, verde água e azul celeste (foi co- comodidade, modificar milhares de pro-
mo foi feito o pedido), pois era uma festa pa- dutos alimentícios populares, intervir no
ra saudar a Orixá Oxum (das águas doces dos tempo de preparação dos alimentos, imitar
rios e cachoeiras, da riqueza, do amor, da produtos naturais e criar novos alimentos.
prosperidade e da beleza1. Tudo isso feito à custa do marketing, que
orientava a mudança radical de nossos pa-
É certo que, a partir desse pedido, o blog drões alimentares. Ou, em outras palavras,
de culinária Fófis, incorporou, dentre os pro- “liberar a comida da natureza”.
dutos oferecidos, os “curiosos” cupcakes dos O sonho de liberar a comida da natureza é tão
orixás. Em todo o Brasil, multiplica o núme- antigo como o próprio ato de comer. As pes-
ro de profissionais que oferecem buffet em soas começaram a processar a comida para
festas religiosas. Uma procura em qualquer tentar impedir que a natureza a tomasse de
site de busca revela números significativos volta: o que significa, afinal de contas, o apo-
destes. Certamente, para responder a uma drecimento de um alimento senão que a na-
demanda que vem crescendo sensivelmente. tureza, agindo por meio de seus microrganis-
E como não falar dos refrigerantes? Estes mos, está reprocessando nossa refeição obti-
parecem que foram adotados de uma vez por da a duras penas?. (POLLAN, 2007, p. 102).
todas pela maioria do povo de candomblé. E,

1. Disponível em: <fofiscupcakes.blogspot.com.br/2010/08/cupcakes-dos-orixas.html>. Acesso em: 13.


jan. 2014.

Comida de santo e comida de branco 135


Segundo Pollan (2008), o refinamento de 80 produtos. Outra empresa alimentícia
dos grãos, a partir do advento dos moinhos que se destaca no mercado é a Yoki, fun-
laminadores – os quais tornaram possível dada em 1960, por Yoshizo Kitano. Esta
remover o germe e, depois, moer finissima- empresa, atualmente, agrega 7 marcas. To-
mente a grande massa de amido e proteína davia é a Oya Alimentos que se apresenta
de uma semente – constitui passo decisivo como “indústria alimentícia especializada
para a dieta moderna. Iniciado na Revolu- em produtos semiprontos da culinária afro
ção Industrial, o hábito de consumir cereais -brasileira”. Esta empresa, localizada em
refinados significava prestígio e riqueza, e Jandira, cidade do interior paulista, há mais
poucos se davam a este luxo. A mós, tradi- de 15 anos, vem atendendo aos setores de
cional moinho de pedra, todavia deixava a varejistas, atacadistas, food service e cultu-
farinha branca até certo ponto e não con- ra afro-brasileira e chega a exportar seus
seguia retirar o germe ou embrião, rico em produtos para a Argentina e os Estados
óleo e nutrientes, o que só foi possível com Unidos. Dentre os produtos em destaque, ao
os moinhos laminadores. lado do azeite de dendê e da mistura pre-
Refinar os grãos prolonga a sua vida nas parada para vatapá, estão o feijão fradinho
prateleiras [...] e os torna mais digeríveis pe- quebrado descascado e a farinha de feijão
la remoção da fibra que normalmente retarda fradinho. A empresa chega a produzir 30
a liberação de seus açúcares. E quanto mais toneladas de farinhas por mês. Estes pro-
fina a farinha for moída, maior sua área ex- dutos podem ser encontrados em redes de
posta às enzimas digestivas, portanto mais supermercados, feiras livres ou na Casa da
depressa os amidos transformam em glicose. Baiana, empreendimento especializado na
(POLLAN, 2008, p. 122). venda de produtos culinários afro-brasilei-
ros. A Casa da Baiana – como as Casas do
A farinha branca teria sido, assim, um dos Norte, espalhadas nas regiões Sudeste e Sul
primeiros alimentos industriais modernos. do Brasil – talvez tenha sido uma das em-
O problema era que esse deslumbrante pó presas do ramo alimentício, ao menos nesta
branco era nutricionalmente inútil, ou qua- área, mais criativo dos últimos vinte anos.
se isso. O mesmo acontecia com a farinha de Além dessas empresas, há um número
milho e o arroz branco, cujo polimento foi significativo de outras que, embora não se
aperfeiçoado mais ou menos na mesma épo- coloquem no mercado como representan-
ca. Onde quer que se difundisse o uso des- tes do segmento alimentício afro-brasileiro,
sas tecnologias, logo ocorriam epidemias de- são demasiadamente conhecidas pelo povo
vastadoras de pelagra e beribéri. (POLLAN, de terreiro, que, diga-se de passagem, “não
2008, p. 125). consome marcas, mas comida”, como ouvi,
certa feita, de uma ialorixá. Verdade é que,
As farinhas refinadas de milho branco, se, de um lado, há pessoas que resistem em
arroz e feijão fradinho já transitam entre os fazer o bolinho de feijão consagrado ao
candomblés há mais de 50 anos. A Granfi- orixá Yansã, utilizando a farinha de feijão
no, empresa de gênero alimentício especia- fradinho, há Yansã que nunca conheceu
lizada em refino, venda de fubá e farinha o acarajé feito de outra maneira. Isso nos
de mandioca, está presente no mercado remete à sábia explicação que nos deu a
desde os anos 50. Atualmente, oferece mais ialorixá a qual já nos referimos: “É preci-

136 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


so acostumar o orixá a comer deste jeito.” reservas. Em primeiro lugar, escolhe um
O que pode significar uma quebra dos pa- “freguês”, termo equivalente a fornecedor,
drões de fidelidade ou da suposta ortodoxia não a consumidor. O “freguês” é sempre
– termos que nós, antropólogos, adoramos uma pessoa de sua confiança. Na escolha
imputar nas religiões de matrizes africanas desse fornecedor, a história, a simpatia e a
– pode também ser visto como uma conti- confiança serão juntadas a aspectos como
nuidade através de intervenções criativas. boa educação e higiene.
Isto é, todavia, um debate que estamos ape- A adoção ou não destes novos modos
nas iniciando. No terreiro de Pai Itaparan- de preparar a comida dos orixás é um de-
di, no Maranhão, mistura-se a farinha de bate que está apenas iniciando dentro das
feijão à massa de feijão socada no pilão de comunidades terreiros, até porque os sa-
madeira (FERRETTI, 2011). cerdotes que vêm adotando essas interven-
Ainda sobre a apropriação, pelo povo ções pouco falam sobre isso, assim como
de candomblé, dos benefícios ofertados os que resistem, resguardam-se, omitindo
pela indústria de alimentos, além das fari- opiniões. Afirmam que “cada terra tem seu
nhas processadas, há as “massas prontas”, dono” ou ainda que “cada pai cria o filho
como se costuma dizer, utilizadas no pre- à sua maneira” e sabem que as comidas
paro do acarajé e do abará. A lavagem do sacrificiais de seu terreiro constituem um
feijão fradinho para remover a casca era foro íntimo de cada comunidade. Assim, ao
considerada, antes, uma das etapas mais mesmo tempo em que informações a res-
demoradas no processo de preparação des- peito de tais comidas podem ser faladas,
sas duas iguarias africanas. Além disso, a ditas e sabidas, há o fundamento, “conceito
moagem dos grãos no moinho, que teria último do conhecimento teológico do can-
substituído a pedra do aló, além de for- domblé, associado às complexas cadências
ça, o que foi solucionado com a motori- dos rituais de santo, da tradição ancestral
zação do moinho, demandava tempo. A revivida no cotidiano dos terreiros” (LIMA,
disponibilidade dessa massa no mercado, 2010, p. 9).
a qual pode ser facilmente adquirida nas As pessoas, ao lançar mão da utilização
feiras livres, ou mesmo sem sair de casa, de tais produtos, fazem isso observando
através de serviços delivery, como o disk critérios baseados em suas tradições, a fim
massa de acarajé, além da comodidade, de que essas intervenções não possam ser
tentou intervir em um dos maiores proble- tomadas como “novidade”, palavra pejo-
mas da contemporaneidade: o tempo. Este rativa no contexto afro-brasileiro. Ou, no
não permite que as pessoas passem mais mínimo, insistem que “os orixás mudam,
horas em frente ao fogão, dedicando-se às porque as pessoas mudam”, frase que ou-
suas comidas. Diga-se de passagem que o vimos de Gaiaku Luíza, para nos explicar
termo delivery tem alcançado grande al- o porquê de não mais se exigir que uma
cance e gozado de prestígio entre o povo mulher fique tomada por seu vodun, dei-
de candomblé, que já faz uso da expressão tada no chão, do lado de fora, por um dia.
“candomblé delivery.” Talvez isso nos ajude a pensar que uma das
É digno de nota observar que algumas concepções que mais tem mudado nos ter-
pessoas do santo, quando se utiliza de tais reiros de candomblé seja mesmo a de tradi-
produtos, quase sempre o faz com algumas ção como algo imutável e invariável.

Comida de santo e comida de branco 137


8 Comida de santo por encomenda adentrar nas casas de vizinhos conhecidos
que fornecem essas comidas por encomenda
Não poderíamos finalizar esta discussão a alguns terreiros, mas uma rápida pesquisa
sem trazer à tona outro fato curioso que em sites gratuitos de anúncios colocou-me
presenciei: uma comida de santo por en- diante de buffets, na cidade de Salvador, que
comenda. A liderança da comunidade jus- lá estão oferecendo “caruru completo.” Ora,
tificava que comidas como o acarajé e o uma leitura atenta dos itens oferecidos neste
abará demandavam muito tempo e, diante tipo diferenciado de caruru (caruru, vatapá,
da redução do seu grupo religioso já há al- arroz, feijão de azeite, xinxim de galinha,
gum tempo, teria optado por encomendar farofa de azeite, banana da terra frita, feijão
a uma vizinha do seu terreiro tais produ- preto, milho branco, bombom de mel, rapa-
tos. Comumente, afirma-se que as comidas dura, pipoca, acarajé e abará) logo nos leva
de orixás devem ser preparadas dentro do a perceber que estamos mesmo diante da
terreiro, num espaço destinado para isso: a comida votiva oferecida aos santos gêmeos.
cozinha ritual, a qual nos referimos. Comi- Todavia, é possível encontrarmos anúncios
das de orixás são assim comidas mais ela- como “Preparamos caruru de Cosme e Da-
boradas que pressupõem, além do conheci- mião sob encomenda” ou, ainda, entre ou-
mento e técnicas específicas, fundamentos tros itens: “feijoada, moqueca de peixe com
ditados pela “lei do santo.” Daí a impor- ou sem acompanhamento, pratos diversos,
tância da iabassé nos terreiros. A iabassé caruru de Cosme.”
ou, literalmente, a velha que cozinha é a A presença de comidas de preceitos nos
grande sacerdotisa da comida, que, além buffets, ao menos, ajuda-nos a pensar a
de tudo entender sobre as predileções dos partir das leis que regem o mercado: se a
orixás, é guardiã dos segredos capazes de oferta existe, é porque há uma demanda
transformar a comida dos homens em co- por tal produto. É verdade que cabe apenas
mida de orixá. Um estudo minucioso sobre aos orixás deliberar sobre esse assunto. Co-
tal figura foi realizado por nós no livro O nheço casos em que estes aceitam comidas
banquete sagrado (SOUSA JÚNIOR, 2009). que vêm de fora, e casos que não. Será que
Certa vez, uma velha mãe de santo resu- os santos não estão mais tão exigentes?
miu esta questão, dizendo: “comida de ori- Ainda em cidades como Salvador e
xá não pega sol, nem passa encruzilhada.” Rio de Janeiro, a oferta de comidas como
Fato era que, na comunidade a que estamos acarajé, abará, vatapá, dentre outras, é
nos referindo, havia comidas rituais que algo que vem crescendo nos últimos anos
vinham de fora. Segundo a sua liderança, através de serviços delivery. Recentemen-
“acarajé e abará vinham da rua.” te, um representante de vendas de mas-
Intrigado com tais questões, passei a ob- sas congeladas montou uma empresa de
servar mais e, para minha surpresa, ao con- acarajés e abarás congelados e se destacou
trário do que havia se afirmado, a presença neste ramo alimentício no cenário nacio-
das comidas de santo na rua poderia signi- nal. O Acarajé da Bahia, nome da empresa,
ficar uma espécie de “profanação” ou “se- já está presente em 11 estados brasileiros,
cularização” desta comida. Percebi o inver- nos aeroportos, nas redes de supermerca-
so, ou seja: a rua passava a ofertar comidas dos, nas delicatessen e tem a meta de pro-
sacralizadas. Confesso que ainda não pude duzir 60 mil produtos por mês.

138 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


Não é de se estranhar o fato da utili- as pessoas enjoam comidas repetidas, os
zação de tais produtos como oferenda aos orixás também se cansam de receber as
orixás, pois os que assim resolverem fazer, mesmas comidas sempre.” Eis a justifica-
certamente, formularão explicações bastan- tiva da autora para, nessa obra, ocupar-se
te convincentes sobre si próprios e as suas em elaborar o que chama de “uma comi-
comunidades, bem como sobre o que irá da alternativa para os orixás”, lançando
acontecer quando as comidas de orixás se mão de hortaliças como cenoura, brócolis,
tornarem, de uma vez por todas, fast food. chuchu, rabanete e batata inglesa, ao lado
de frutas como mamão, carambola, caqui,
9 À guisa de conclusão abricó, laranja da terra e laranja lima, bem
como de “temperos” sugeridos por ela, a
Essas questões e outras relacionadas a exemplo do açúcar cristal, do orégano, do
problemas de saúde (câncer, problemas car- cominho, da salsa e da cebolinha. A cozi-
díacos, diabetes e obesidade), produzidas pela nha alternativa dos orixás, de Mãe Deusa,
incorporação de novas práticas alimentares, sugere a incorporação, na dieta sacrificial
pela adoção de produtos disponibilizados dos orixás, de jujubas e outros doces de
pela indústria alimentícia, em substituição goma industrializados, ao lado de água
de antigos métodos de preparar os alimentos, mineral com gás.
ainda nem sequer entraram na pauta de dis- Aos poucos, também adentram nas co-
cussão das comunidades terreiros. munidades de terreiro reflexões sobre a “ali-
Frente à chamada modernização dos mentação saudável”, expressão em moda,
costumes e racionalização do tempo, as- que vai pondo em cheque os saberes tradi-
siste-se à introdução de novos hábitos ali- cionais sobre a comida, o comer, bem como
mentares e comensalidade. A novidade está noções relacionadas ao corpo, à saúde e à
no fato de que, nos últimos anos, novos há- ancestralidade. Esse fato abre uma série de
bitos alimentares estão cada vez mais pre- questionamentos. Nada contra os buffets
sentes entre as comidas de obrigação. Não organizados por algumas comunidades de
obstante, o bom gosto e o requinte com que terreiro. Afinal, a máxima de que a comi-
estas comidas são apresentadas ao público, da exibe prestígio, poder e status social vale
tal acontecimento vem acompanhado por também para o candomblé. O questiona-
uma série de discursos depreciativos sobre mento está no desaparecimento das comidas
as “comidas de azeite”, ora evocando sim- de santo em detrimento das comidas sofis-
plesmente que “fazem mal”, ora simples- ticadas em algumas festas. Na maioria das
mente justificando ser a substituição destas vezes, as primeiras ficam restritas aos orixás
algo que diz respeito único e exclusiva- “que comem sozinhos.”
mente ao “gosto”. Não estamos certos de que a popularida-
Recentemente, encontrei uma justifi- de das “comidas de azeite”, em dias como a
cativa bastante curiosa para a adoção de sexta-feira, ou mesmo a presença dos res-
novas comidas rituais num livro intitula- taurantes de “comidas típicas” na cidade de
do A cozinha alternativa dos orixás (BAR- Salvador, por exemplo, seja suficiente para
CELLOS, 2010). Trata-se de um trabalho explicar o abandono da degustação das co-
escrito por uma ialorixá, no qual, logo midas de azeite ou das comidas sagradas
na apresentação, lê-se que “assim como em alguns terreiros.

Comida de santo e comida de branco 139


Até os anos 80, podiam-se comer essas Temos de refletir como as comidas vo-
comidas, chamadas “comida de azeite”, em tivas estão dialogando com os ingredientes
ocasiões especiais como aniversário, casa- produzidos pela indústria alimentícia. Certa
mento, páscoa etc. Com o passar do tem- ocasião, por exemplo, deparamo-nos com
po, algumas delas foram desaparecendo, uma comunidade de terreiro que havia “de-
inicialmente, porque foram consideradas saprendido” a técnica de enrolar o acaçá,
“comidas de pobre” e, depois, “comidas também chamado de ekó, massa de milho
que fazem mal”, por conta de problemas obtida após os grãos descansarem, atra-
ou outras “doenças que estão na moda” vés da trituração. Tal iguaria representa o
e que, por isso, devem ser evitadas antes corpo, porção de massa individualizada na
mesmo de passarmos pelos profissionais folha de banana. Sobre este assunto, sugi-
de saúde que decidem o que devemos co- ro a leitura do livro do babalorixá Cido de
mer, a quantidade e a hora. Juntou-se a Oxun Eyn, sacerdote baiano radicado em
isso uma indústria que oferece alimentos São Paulo, que produziu um livro sobre o
processados e farinhas obtidas através do assunto, intitulado Acaçá, onde tudo come-
refinamento de grãos, antes conseguidos çou. Na comunidade, a que nos referimos,
apenas através de técnicas tradicionais a massa era despejada numa assadeira ou
pelas comunidades terreiros, juntamente sobre uma pedra de mármore e cortada de
com inovações que reduzem ao máximo a forma triangular.
presença das pessoas na cozinha. Se é certo que as comunidades de terreiro
Refletir sobre essas questões, juntamen- ainda não estão preparadas para entender o
te com as comunidades de terreiro, permite processo que envolve os alimentos duran-
ampliar as discussões pertinentes à preser- te o seu cozimento, vale ressaltar que elas
vação do universo afro-brasileiro legado estão desafiadas a pensar que a introdução
por homens e mulheres, quando, desafian- de alguns elementos ou a adoção de certas
do o seu tempo, deram respostas, a partir de práticas na sua comida ritual deve ser acom-
suas tradições, às situações e aos desafios a panhada de reflexões, afinal, como sugere
que foram expostos. Isso não significa dizer Louis-Vicent Thomas, citado por Lima (2010,
que entendemos a tradição como algo imu- p. 39), “a cozinha é uma linguagem que se
tável, ao contrário, a recriação, em alguns deve saber interpretar para melhor compre-
momentos, dá-se não para recompor algo ender os costumes de um povo.” Todavia,
fragmentado, mas para exibir prestígio ou um fato é inegável. Permitam-se, aqui, fa-
simplesmente carisma de suas lideranças. zer uma “brincadeira” de “bom gosto” com
Carisma, aqui, é entendido no sentido em- as palavras do mestre. Se for verdade que
pregado pelo velho Weber (1991, p. 158): “os santos africanos comiam a comida dos
[...] uma qualidade pessoal considerada ex- homens e que os homens comem a comida
tracotidiana [...] em virtude da qual se atri- estilizada dos santos”, agora, estamos assis-
buem a uma pessoa poderes ou qualidades tindo aos santos comerem as comidas estili-
sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo me- zadas dos homens.
nos, extracotidianos específicos ou então se
a toma enviado por Deus, como exemplar e,
portanto, como líder.

140 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


REFERÊNCIAS POLLAN, Michael. Em defesa da comida. Rio de
Janeiro: Intrínseca, 2008.
BARCELLOS, Deusa Costa. A cozinha alternativa POLLAN, Michael. O dilema do onívoro. Rio de
dos orixás. Rio de Janeiro: Pallas, 2010. Janeiro: Intrínseca, 2006.
CASCUDO, Luis da Câmara Cascudo. História da QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia.
alimentação no Brasil. 3. ed. São Paulo: Global, Salvador: Teatro XVIII, 2006.
2004.
RÉGIS, Olga Francisca. A comida de santo numa
CUPCAKES dos Orixás. Salvador, 2010. Dispo- casa de queto da Bahia. Salvador: Corrupio,
nível em: http://fofiscupcakes.blogspot.com. 2011.
br/2010/08/cupcakes-dos-orixas.html. Acesso em:
18 fev. 2014. ROBERTS, Paul. O fim dos alimentos. Rio de
Janeiro: Campus, 2009.
EYN, Cido de Oxun. Acaçá, onde tudo começou.
São Paulo: Arx, 2002. SOUSA JUNIOR, Vilson Caetano de. O banque-
te sagrado: notas sobre a comida e o comer em
FERRETTI, Sergio. Comida ritual em festas de terreiros de candomblé. Salvador: Atalho, 2009.
tambor de mina no Maranhão. Dossiê: Religião e
Cultura, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 242-267, TEMPELS, Placide. Bantu philosophy. Paris: Pré-
2011. sence Africaine, 1969.

______. Querebentã de zomadonu, etnografia WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília,


da casa das minas do Maranhão. Rio de Janeiro: DF: Editora Universidade de Brasília, 1991. v. 1.
Pallas, 2009.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 4. ed.


Rio de Janeiro: Graal, 1984.
NOTA SOBRE O AUTOR
FREYRE, Gilberto. Açúcar. 3. ed. Recife: Funda-
ção Joaquim Nabuco, 1987.
Vilson Caetano de Sousa Júnior é antropólo-
HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. 7. go, Pós Doutor em Antropologia pela Universi-
ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997. dade Júlio Mesquita e Professor da Universida-
de Federal da Bahia, onde desenvolve pesqui-
LEITE, Fábio. Valores civilizatórios em sociedade
sas na área de Alimentação e Cultura.
negro-africanas. ______. Introdução ao estudo
sobre a África contemporânea. São Paulo: CEA/
USP, 1986.

LIMA, Vivaldo da Costa. A anatomia do acarajé


e outros escritos. Salvador: Corrupio, 2010.

______. Notas. In: RÉGIS, Olga Francisca. A co-


mida de santo numa casa de queto da Bahia.
Salvador: Corrupio, 2011.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. 2. ed.


São Paulo: Cosac Naify, 2003.

MONTANARI, Massimo. História da alimentação.


2. ed. São Paulo: Liberdade, 1998.
Recebido em: 05/01/2014
Aprovado em: 28/03/2014

Comida de santo e comida de branco 141


142 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014

Você também pode gostar