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Ebook Chapeu Do Mago PDF
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O chapéu do Mago - Italo Marsili
Impresso no Brasil. 1a edição, Novembro de 2020.
M372c.
Marsili, Italo.
O chapéu do Mago / Italo Marsili - Maringá, PR: Real Life Books, 2020.
288 p.
ISBN: 978-65-87926-19-3
1. Psicologia - 150
Direção Geral
Arno Alcântara
Editor
Luíza Monteiro de Castro Dutra Araujo
Revisão
Raíssa Prioste
Matheus Bazzo
Capa
Vicente Pessôa
Diagramação:
Gabriela Haeitmann
Introdução.............................................................. 6
O mago ...................................................................... 24
A papisa ...................................................................... 92
Posfácio...................................................................285
INTRODUÇÃO
7
N
ão escrevi este livro exclusivamente para psicólogos,
psiquiatras, psicanalistas, terapeutas e coaches, mas
também para leigos — pois Psicologia é um assunto
tão interessante e necessário, que não deveria ser propriedade
exclusiva dos profissionais da área.
Conhecer Psicologia pode equipar qualquer pessoa mini-
mamente interessada e capaz com um ferramental que lhe per-
mitirá olhar com mais atenção para suas relações, seu mundo
interior, seus projetos, enfim, para sua instalação no mundo.
Além disso, muitas pessoas fazem terapia sem conhecer mi-
nimamente a linha a que estão sendo submetidas, nem a visão
de mundo de seu terapeuta, nem mesmo o que ele pretende
com aquilo que está fazendo no setting terapêutico. Eu quero
que os leigos — façam eles terapia ou não — também conhe-
çam um pouco sobre as escolas de Psicologia Contemporânea,
sobre as principais linhas terapêuticas.
8
Por isso, o fio condutor simbólico que escolhi para este livro
é o Tarô.
Símbolo e Alegoria
Se você olha para uma lâmina de Tarô, dela deduz um monte
de coisas e nela projeta sua visão de mundo, saiba que isso é
impróprio: é o que se faz com alegorias, não com símbolos.
Mas qual a diferença entre símbolo e alegoria?
Vou dar um exemplo de alegoria: eu, Italo Marsili, ser hu-
mano, dotado de uma certa capacidade intelectual e de uma
certa observação, posso, a partir dessa minha observação e des-
sa minha capacidade intelectual, projetar numa tela em branco
14
Simbolismo natural
e realidades simbólicas simples
Mas o que é um simbolismo natural? Para entendê-lo, pense
no mar.
Apenas uma pessoa muito tosca pode achar que o mar está
ali só para que ela se refresque, pegue umas ondas, pratique
o surfe. O mar tem esse componente material também, mas
não somente. Ele de fato tem uma presença aquosa, salgada
e fluida. Você entra, se molha, se diverte, pode até se afogar e
morrer... Mas o mar é mais do que isso: ele é a presença de uma
outra coisa, de uma fluidez, de um ir e vir infinito, como na
música do Lulu Santos. Quando ele fala daquele “indo e vindo
infinito” das ondas, está captando a presença simbólica do mar,
pois foi capaz de entender que o mar é, além de sua presença
material, símbolo de algo.
O símbolo nos abre uma percepção de presença, abre-nos algo a
mais. O filósofo Heráclito, olhando para um rio, enunciou duas
das primeiras frases registradas na Filosofia: “Tudo flui.” e “Ne-
nhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio.” Ao
observar um rio com muita calma, abriu-se nele uma janela de
percepção: o rio pareceu a ele mais do que sua mera presença física.
Muita gente se alimenta com peixes pescados de um rio;
muita gente com calor se banha em um rio; muita gente lava
suas roupas nas águas de um rio; enfim, muita gente olha para
um rio e vê ali somente a fonte do alimento, o alívio para o ca-
lor, a solução para as roupas sujas. Para Heráclito, entretanto, o
rio é também a presença simbólica de uma fluidez que perma-
nece — e é verdade, porque se você puser sua mão em um rio,
depois retirá-la e a colocar novamente, ela já não será banhada
pela mesma água; já não será, sob certo aspecto, o mesmo rio,
ainda que, sob outro aspecto, se trate do mesmo rio que você
tinha diante dos olhos.
Temos o costume de falar do rio Nilo, do Eufrates, do Da-
núbio, ou mesmo do rio Amazonas, como se eles ainda fos-
sem uma coisa única e estática, embora todas as suas águas
18
1 Quem assistiu às Super Live Series de Psicologia que ministrei no primeiro semestre
de 2020 pelo Youtube, verá aqui organizado muito do que tratei nas primeiras lives.
O MAGO
25
O
primeiro Arcano do Tarô é o Mago.
O Mago é um rapaz jovem que traja uma roupa
colorida e extravagante, como o uniforme da Guarda
Suíça Pontifícia (responsável pela segurança do Papa). Ele se-
gura um bastão, que na maioria dos baralhos aparece na mão
esquerda. Na mesa que fica à sua frente, há alguns elementos
(discos, uma faca desembainhada etc.).
Em todos os baralhos, o Mago é representado com algo so-
bre a cabeça. Em geral, um grande chapéu. Esse chapéu tem a
forma da Lemniscata de Bernoulli, curva algébrica descrita por
Jacob Bernoulli em 1654, como modificação de uma elipse, e
logo depois adotada como símbolo para representar o infinito.
Você com certeza já viu dezenas de lemniscatas em tatuagens,
bijuterias, roupas e objetos decorativos.
26
O princípio do tamanho
do mundo
O professor Olavo de Carvalho inicia seu curso de Filosofia da
Ciência ensinando que há algumas coisas que estão sempre em
nosso campo de percepção e das quais não podemos nos es-
quecer, porque, se delas nos esquecermos ou se as deixarmos de
ver, já não entenderemos mais nada e ficaremos desorientados
no mundo. Essas coisas são os primeiros princípios.
Um desses primeiros princípios essenciais é o princípio do
tamanho do mundo. Essa é a primeira coisa em que precisamos
concentrar a atenção. Para atender um paciente em consultó-
rio, para orientar um filho, para fazer um projeto com o cônju-
ge, para traçar as estratégias de uma empresa, para tudo isso é
preciso ter uma idéia do “tamanho” do mundo.
Alguém que jamais tenha refletido sobre isso poderá apres-
sar-se em dizer que o mundo se limita a este lugar material onde
estamos, àquilo que vemos. Mas será mesmo assim? Ou será
que existe um princípio filosófico indestrutível, que não se pode
negar, chamado infinitude? Qual é o tamanho do mundo? Ele é
limitado ou é ilimitado? É finito ou é infinito? Responder a es-
sas perguntas é fundamental para um bom exercício da Psicolo-
gia e para descobrirmos quem é o homem, qual é o tamanho do
homem e qual é o tamanho do mundo no qual ele está inserido.
Qual é o seu tamanho e qual é o tamanho do seu projeto?
Qual é o tamanho do seu coração, do seu amor? Qual é o ta-
manho possível de todas as suas sensações superiores, de sua
inteligência, de seu saber? É preciso descobrir.
Se dizemos, de modo ingênuo e rápido, que as coisas aqui
são limitadas e pequenas, então temos uma certa visão de mun-
do. Se, ao contrário, dizemos que o mundo é ilimitado e possui
um elemento de infinitude, temos então uma outra percepção
sobre o que é o mundo.
Se existe um limite para as coisas do mundo, o que é que
há na fronteira desse limite? Por definição, o limite já não pode
fazer parte da própria coisa, mas tem de ser uma outra coisa.
28
Um vislumbre da eternidade:
O que aconteceu aconteceu
e não pode “desacontecer”
Precisamos ter noção de dois tamanhos: do tamanho do ho-
mem e do tamanho do mundo no qual o homem está inscri-
to. Para isso, observaremos primeiramente nossos atos. Assim
ficará mais fácil, afinal, estamos constantemente pensando e
fazendo coisas; ou seja, estamos agindo a todo o tempo.
29 o mago
Ato e potência
Tudo o que eu fiz é; tudo o que pensei também é — espero
que ninguém mais duvide disso. Mas e aquilo que não fiz e
em que não pensei? Por incrível que pareça, isso também faz
parte da estrutura do mundo. Se agora estou dando uma aula,
não estou jantando com meu amigo, embora pudesse estar
jantando com ele.
31 o mago
Pois bem, aquele que nos deu o ser também é pessoa. Ele é
pessoa porque, tendo criado pessoas, não poderia ser menos do
que uma pessoa, somente mais, pois ninguém pode dar aquilo
que não tem.
A Tábua de Esmeralda, artefato antigo que se diz ter sido
escrito por Hermes Trimegisto, traz os seguintes dizeres: Quod
est inferius est sicut quod est superius, et quod est superius est sicut
quod est inferius. Traduzindo: “assim como o que está em cima
é o que está embaixo; e assim como o que está embaixo é o que
está em cima.” Assim como o menor, o maior; e assim como o
maior, o menor. Esse é um princípio hermético. Assim como o
Ser em Ato Puro é pessoa, nós também o somos. Assim como
somos pessoas, o Ser em Ato Puro também o é. Mas veja: o que
é menor não pode dar o que é maior. Só o contrário é possível,
pois só se pode dar aquilo que se tem.
Relacionamentos e religião
Outro dia saí para jantar com um amigo. Estávamos discu-
tindo onde jantar, quando ele disse: “Podemos ir ao Shopping
Leblon. Lá tem um restaurante Outback, sei que você gosta”. Como
esse amigo é uma pessoa com quem tenho muita intimidade,
eu imediatamente respondi, com toda a simplicidade de um
irmão: “Cara, eu nem gosto mais de Outback.”
Esse amigo fez uma proposta, porque acreditava que eu ain-
da gostava do Outback; e eu realmente gostava, até um ano
atrás. Hoje, não gosto mais. Seres humanos são assim: instá-
veis. A pessoa humana é instável, imprevisível, e nisso residem
as dificuldades dos relacionamentos humanos.
Porque mudamos o tempo todo, é muito difícil chegar a um
código duradouro de conduta que regule o relacionamento en-
tre os homens. Nosso elemento pessoal não é estável; por isso
é que nossos relacionamentos são dificultosos.
É difícil agradar os seres humanos. Um exemplo: a maioria
das pessoas gosta de chocolate, certo? Mas é possível que uma
pessoa que gosta de chocolate esteja de dieta. Eu mesmo estava
39 o mago
Cale-se!
Você já me ouviu dizer várias vezes um “Não encha o saco!” —
parte do lema “Trabalhe, sirva, seja forte e não encha o saco.”
Esse “Não encha o saco” nada mais é do que uma outra ma-
neira de dizer “Fique quieto”, “Cale-se”. É “ficando quieto” e
“não enchendo o saco” que se alcança a perfeita desatenção
do Mago. O silêncio interior permite transformar o trabalho
em jogo.
Hoje, fala-se bastante em mindflow — e um monte de co-
aches infelizmente entendeu a coisa de modo errado. Quan-
do o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi fala do flow, ele dá
exemplos maravilhosos. Imagine um maestro regendo uma
orquestra, com todos os grupos de instrumentos (as cordas, as
madeiras e os metais). Você acha que ele está pensando a todo
o tempo em cada mínimo detalhe da sinfonia? Se ele pensasse,
não conseguiria reger. Quando um regente move os braços,
ele não está pensando em mais nada — está simplesmente re-
gendo. Ele entra em um estado de flow e adquire uma postura
similar à do Mago da primeira lâmina do Tarô.
Quando os tenistas Roger Federer e Rafael Nadal jogam
tênis, não ficam pensando no que estão fazendo; apenas fazem.
O trabalho vira jogo, e isso fica muito claro, porque eles estão
mesmo jogando, o jogo flui. Eles são atletas de alta performan-
ce, não charlatães.
Até então, falamos de atividades práticas, como a do ma-
estro e a do tenista. Pensemos agora em uma atividade espiri-
tual, interior. É nesse campo que se abre um grande leque de
charlatanismo; e eu vi algumas pessoas na Internet caírem por
isso recentemente. Elas não atingiram estado algum de flow,
antes tentaram criar um estado de desconcentração absoluta.
43 o mago
“Ai, Italo, mas é claro que Deus quer falar comigo”. É você quem
está dizendo... Na verdade, você nem sabe qual plano Ele tem
para você. Pense em São João da Cruz, por exemplo. Indepen-
dentemente de sua religião, você há de convir que ele foi um
sujeito grandioso, excelente. Sabe quanto tempo Deus ficou sem
falar com ele? Quarenta anos. Por quarenta anos ele não ouviu a
voz de Deus. Esse período, ele o chamou de “noite escura”.
Se, por vezes, Deus deixa de falar mesmo com homens des-
se calibre — e Ele tem suas razões para isso, ainda que não as
compreendamos —, é claro que essa história de que “Deus quer
me ouvir” é coisa da sua cabeça. Talvez seja algo que você está
apenas repetindo, pois ouviu em uma pregaçãozinha por aí,
feita por alguém que também não sabia o que dizia.
No silêncio, você não necessariamente ouvirá a voz de Deus.
O que o silêncio lhe proporcionará certamente é o aquietar da
sua substância difusa.
você discute com sua esposa, com seu marido, com seu (sua)
namorado (a), com seu filho, com seu patrão, em geral, está
falando desse eu social, o eu das expectativas. Esse eu social, de
algum modo, é alienante — e é normal que seja assim. Quando
ele entra em cena, nós tiramos do horizonte de consciência
esse eu profundo, que abarca tudo.
A consistência do eu, porém, não pode ser apenas a expec-
tativa que os outros têm sobre mim, e a que eu tenho sobre os
outros. É claro que tenho uma expectativa sobre você que lê
este livro — se não tivesse, nem o escreveria. Tenho a expec-
tativa de que você aprenda algo do que ensino sobre Psico-
logia. Se tivesse outra expectativa sobre você, estaria falando
sobre futebol ou sobre qualquer outra coisa, mas existe afinal
um ajuste de expectativa social, então eu lhe apareço com esse
eu social.
Embora seu eu social esteja saliente em muitas situações, é
preciso lembrar que você não se limita a ele. Você é o eu pro-
fundo — do qual, aliás, procedem o eu narrativo e o eu social.
A maior parte das coisas que lhe acontecem, acontecem não
por circunstâncias do ambiente nem porque o outro acha isso
ou aquilo de você, mas porque você é esse eu profundo. Você, na
verdade, é muito mais profundo e complexo do que seu eu social
e seu eu superficial podem aparentar.
Quando nos desligamos do eu profundo (e esse desligamen-
to é generalizado), surge a necessidade de terapia. Na terapia
habilmente conduzida, o terapeuta ajuda uma pessoa a se lem-
brar daquilo que ela é de fato — não superficialmente ou con-
forme as expectativas alheias. A terapia, sozinha, não dá conta
de tudo, mas já é um bom início do processo.
A escrita de um diário é um outro elemento do processo.
Ao escrever um diário, você tenta tanger seu eu profundo. Ob-
viamente não será possível abrangê-lo em sua totalidade, pois
o ser humano é uma criatura complexa e maravilhosa e o eu
profundo é todo um universo do qual geralmente não falamos.
Agimos, o mais das vezes, a partir do eu narrativo ou a partir
do eu social. E isso é especialmente verdade para as pessoas que
47 o mago
Arte tradicional X
arte contemporânea
O verdadeiro artista preocupa-se em saber o que as coisas são,
e não em imprimir sua marca na obra. Isso fica claríssimo no
60
Essa história de “Não quero ter razão, quero ter paz” é coi-
sa do mundo pré-sofista. Se essa é a sua tese, meus parabéns!
Você regrediu três mil anos na história da humanidade, você
não é sequer um sofista, pois ainda está no mundo da estabili-
zação simbólica. Não há paz na ignorância.
Obviamente, não há mal em usar essa expressão em tom
jocoso, mas, se levada a sério, ela revela um grande erro: o que
traz a paz não é a ignorância, senão a luta, sobretudo a luta
pela Verdade. Si vis pacem para bellum, diz o adágio latino. “Se
queres paz, prepara-te para a guerra.”
A paz é fruto da guerra pela Verdade, da guerra para que se
possa conhecer a substância mesma das coisas. O sujeito que pre-
tere a razão em favor de uma suposta paz até poderá conseguir
um pouco de tranqüilidade, mas apenas enquanto não surgir um
tirano para controlar-lhe a vida, já que ela não tem estrutura nem
estabilidade. Muitos regimes tirânicos foram erigidos por conta
de concessões como essa, feitas pelo mundo contemporâneo.
Hoje, não há mais ninguém interessado na Verdade. Minto:
alguém está, e esse alguém o dominará, porque você é só um
idiota desinteressado que acredita em qualquer porcaria. Você
é a porta do regime tirânico e não pode reclamar do nazismo
ou do comunismo, porque é quem permite a entrada deles.
Sempre que fizermos concessões à Verdade, seremos tirani-
zados, individual e socialmente. Esse é o resultado do acúmulo
de idiotice e de ignorância. Foi das perversões filosóficas e me-
tafísicas que nasceu a possibilidade de tiranos dominarem boa
parte do Ocidente.
Só uma Europa enfraquecida poderia ver a ascensão de um
regime como o nazismo, pois uma Europa fortalecida pela
Verdade teria um antídoto na sociedade para que, por exemplo,
Hitler jamais fosse eleito — muitos não se lembram, mas ele
foi eleito democraticamente. Lula também foi eleito democra-
ticamente — aliás, por quatro vezes consecutivas, se contarmos
que a Dilma é uma espécie de Lula; ou ainda, por seis vezes
consecutivas, se considerarmos também que Fernando Henri-
que Cardoso foi uma espécie de proto-Lula.
66
4 ADLER, Mortimer. Aristóteles para todos. São Paulo: É realizações, 2010, p. 163.
67 o mago
6 A base para o entendimento dos três discursos (poético, retórico e dialético) está
no livro “Aristóteles em nova perspectiva - Introdução à Teoria dos Quatro Discur-
sos”, de Olavo de Carvalho. Vale a pena lê-lo para ter uma visão mais aprofundada e
completa do assunto. (CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva. São
Paulo: É realizações, 2006.)
7 Recomendo a edição bilíngue grego-português da “Metafísica” em três volumes, a
cargo de Giovanni Reale. (ARISTÓTELES. Metafísica. 3 volumes. Ensaio introdu-
tório, texto grego com comentário de Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine.
São Paulo: Loyola, 2002.)
8 Para melhor compreender a “Metafísica” de Aristóteles, recomendo também o
“Comentário à Metafísica de Aristóteles”, escrito por ninguém mais, ninguém menos
que Santo Tomás de Aquino. (TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de
Aristóteles. 3 volumes. Campinas: Vide Editorial, 2016, 2017 e 2020.)
72
O que é? Exemplo
O bronze de que
CAUSA De que algo é feito?
uma escultura é
MATERIAL Qual a sua matéria?
feita.
Qual a forma ou
A “esculturidade”. O
essência de algo?
CAUSAL (Não confunda com
que faz a escultura
FORMAL o mero formato de
ser uma escultura e
não outra coisa.
uma coisa.)
O escultor (agente
Quem ou o que fez
que deu àquele
algo? Qual o agente
CAUSA responsável por dar
bronze a forma de
EFICIENTE início ao movimento
escultura) e a arte de
produzir esculturas
ou à transformação?
de bronze.
Causa material
Causa formal
Causa eficiente
Causa final
Foi fácil? Imagino que não. Mas com o tempo você vai pe-
gando o jeito.
Observe agora a seguinte organização desses quatro ele-
mentos, em forma de cruz:
PARA ALGO
MÁRMORE “HOMEM”
(matéria) (forma)
ALGUÉM FEZ
75 o mago
Causa final
Causa eficiente
chapéu é símbolo? Pois bem, sem essa visão — que passa também
pela habilidade de detectar essas quatro causas que acabo de men-
cionar —, você não conseguirá exercer a “magia”. Não será capaz
de entender o mundo — muito menos de orientar alguém, pois
ela é um dos princípios do entendimento de todas as coisas.
jamais poderá dizer “Eu sinto frio”, “Eu quero comer”, “Eu acho
que vou morrer”, “Eu estou apaixonado pela cadela da casa ao lado”
ou “Eu sinto falta do meu dono”. Um cachorro reage. Ele sente
frio, mas não sabe que está sentindo frio. Ele sente falta do
dono, mas é incapaz de declará-lo.
Já ouvi de alguns donos de gatos a seguinte constatação:
“Eu não consigo mais ser apegado a esse gato como já fui uma vez.”
É como se compreendessem que aquele afeto que seus felinos
parecem manifestar na verdade são reações ao afeto que lhes é
dado pelos donos.
Se você é pai ou mãe de pet, não fique com raiva de mim.
Você pode, sim, derramar seu afeto e seu amor por seu bichi-
nho, porque essas criaturinhas são de fato amáveis. Um filhote
de husky siberiano é quase tão fofo quanto o Ângelo, meu filho
mais novo — talvez seja até mais fofo do que ele. Ao olhar para
um filhotinho de husky, você imediatamente deseja ter vários
deles, brota uma vontade repentina de lhe fazer carinhos, de
pegá-lo no colo... Um filhote de cachorro nos amolece o co-
ração — mas é ele quem recebe o nosso afeto. O que ele nos
dá não é afeto nem amor, senão apenas uma reação da espécie.
Quando se trata de seres humanos, porém, não se pode mais
falar meramente em “reação da espécie humana”.
Todo agente age segundo o que é. O cachorro sempre age
como cachorro. Ele é estereotipado, padronizado. Um labrador,
no Brasil, no ano de 2019, é igual a um labrador, em Portugal,
no ano de 1384. Eles não são o mesmo indivíduo, mas sempre
reagem conforme está prescrito no “código” de sua espécie. Os
seres não-racionais, como os animais, tendem a um fim deter-
minado apenas “por causa da ordenação inscrita em sua na-
tureza. É essa ordenação que determina os meios a empregar
para realizar o fim da natureza, e eles lhe obedecem passiva-
mente, de forma espontânea — e não mecanicamente, como um
autômato.”11 Quando seu cachorrinho rola uma bolinha para
você, ele é o agente, a causa eficiente desse movimento, certo?
11 JOLIVET, Régis, Tratado de filosofia. Tomo III: Metafísica. Rio de Janeiro: Agir,
1972, p. 312.
86
A
segunda lâmina do Tarô é a Papisa, uma espécie de
versão feminina do papa. Ela é geralmente represen-
tada sentada, segurando um livro aberto, apoiado em
seus joelhos, e inclinando levemente a cabeça na direção dele.
Traja uma túnica azul e uma capa pluvial de cor vermelha,
como o mantum papal. Uma fina faixa com cruzes bordadas
atravessa seu tronco: é um pálio, vestimenta eclesiástica que
até o séc. VI era usada exclusivamente pelo papa, como sím-
bolo da plenitude do ofício pontifical. Um véu cobre seus
cabelos. Por trás da cabeça e dos ombros, um outro véu parece
velar ou separar a Papisa do plano de fundo. Na cabeça, ela
traz uma imponente tiara com três coroas.
94
13 Essa divisão das sociedades em quatro estratos se faz sem prejuízo da enorme e
maravilhosa heterogeneidade humana e sem ignorância dos fatos de que cada indiví-
duo é único e cada cultura tem suas peculiaridades. A esses estratos sociais correspon-
dem certos temperamentos e tipos caracterológicos, o que quer dizer que as pessoas
têm certas propensões ou tendências a participar de um desses estratos.
97 a papisa
14 SANTOS, Mário Ferreira dos. A Crise no Mundo Moderno. Palestra no Centro
Convivium (transcrição), 1964.
98
15 Para uma visão aprofundada da aplicação das quatro castas à história e à dinâmica
dos ciclos culturais, ver SANTOS, Mário Ferreira dos, As fases cráticas na História.
In: Filosofia da crise. São Paulo: É Realizações, 2017 (apresentação resumida da tese) e
SANTOS, Mário Ferreira dos, Filosofia e História da Cultura. Volume III. São Paulo:
Logos, 1962 (apresentação detalhada da tese).
99 a papisa
“Está na Bíblia, foi Deus quem disse.” Sim, mas como é que
você sabe, se não crê que o conhecimento é possível a partir da
analogia dos entes?
“Ora, Italo, eu percebo as coisas e chego lá.” Bem, se você perce-
be as coisas e chega lá, então você não é protestante de verdade.
Um protestante crê que sua capacidade de refletir a majestade
divina está lesada, e que ele, portanto, só pode receber o conhe-
cimento das coisas pela Palavra. Volto a perguntar: com que
razão você crê nisso?
O protestantismo é uma manifestação religiosa impossível,
é um edifício filosófico rompido na base. É óbvio que existem,
entre os protestantes, pessoas maravilhosas, muito boas, fazen-
do o bem, se ajudando, querendo até descobrir a religião e a
fé — mas as que de fato são assim não estão dentro do protes-
tantismo, mas fora dele. Estão no domínio da tiara, embora o
neguem com a boca. Sem sabê-lo, são católicos implicantes; e
digo isso com todo o amor do mundo. Estou dando a razão de
ser da religião protestante.
Protestantes não acreditam que é possível, através do poli-
mento dos olhos, refletir a presença do ente superior; e disso
deriva todo o seu conjunto de crenças. Toda a noção de hierar-
quia se perde, porque a hierarquia é a organização progressiva
do que está acima até o que está abaixo. É daí que vem, por
exemplo, a idéia protestante de que não existem santos.
Somente a razão dá conta de hierarquizar as coisas. Como
não há hierarquia no protestantismo, eles dizem: “Ou todo o
mundo é santo, ou ninguém é santo” (a depender da denominação,
é exatamente isso). É como se dissessem: “Ou somos todos iguais
à Virgem Maria, ou a Virgem Maria é igual a todo o mundo.” Para
eles, não há hierarquia na intimidade com Deus — mas buscar
a santidade é exatamente buscar ascender na hierarquia da in-
timidade com Deus.
Assim como existem os mais ágeis, os mais inteligentes, os
mais belos e os mais fortes — e isso ninguém nega —, existem
também os mais “místicos”, isto é, os mais íntimos de Deus.
O protestantismo, portanto, não tem razão de ser, ao menos
não fora do domínio da crítica social, porque, apesar de tudo,
104
Pedro e Caifás
Queria ainda falar sobre um outro símbolo que a dupla nature-
za do olhar tem para nós, símbolo este preservado na tradição
simbólica da Escritura Ocidental.
Refiro-me a dois olhares rigorosamente distintos dirigidos a
uma mesma realidade, a dois olhares de duas personagens que
aparecem ao mesmo tempo, em uma mesma cena. São os olhares
de Pedro e de Caifás no momento da condenação de Jesus.
Cristo estava morrendo. Fora amarrado, maniatado e flage-
lado. A Verdade aparecia ali, rasgada, trucidada, dando indí-
cios de que morreria — como de fato veio a morrer, mas para
ressuscitar depois de três dias, pois a Verdade é indestrutível e
sempre vem à tona, mesmo quando nos parece absolutamente
morta.
Quando, então, a Verdade estava sendo trucidada, rasgada,
destruída, quando estava pronta para morrer, dois olhares di-
rigiram-se a ela: um olhar de pomba e um olhar de serpente.
O olhar de pomba era o de Pedro, o discípulo que herdou o
poder temporal da atividade do Cristo.
114
“Pedro nega o Cristo três vezes antes que o galo cante, logo o Cristo
pergunta três vezes para zerar a conta.”
Essa é uma interpretação amputada, que carece de enten-
dimento dos símbolos e que não compreende a grandiosidade
do que estava acontecendo ali. Deus não calcula! Você acha
mesmo que Ele ficaria com continhas a essa altura do campe-
onato? Ele sabia que Pedro estava machucado, Ele sabia que
Pedro chegara a pensar que tudo estava acabado.
Estavam os dois discípulos andando no caminho de Emaús,
desiludidos, dizendo ao “forasteiro”: “Não sabes o que aconteceu
por aqui nestes dias? A razão da nossa esperança e do nosso amor
foi-se embora, morreu. Não acreditamos mais em nada.” Você acha
mesmo que Deus não sabia o que tinha acontecido? Não tenha
uma visão amputada do que aconteceu ali, naquela cena à mar-
gem do lago! Deus não calcula. Basta um único movimento de
arrependimento para que Ele nos cubra com seu manto de amor.
Na parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32), o filho que
retorna à casa do pai pensava em voltar na condição de mero
servo, mas é recebido calorosamente: recebe uma túnica e um
anel no dedo, põem-lhe sandálias nos pés e fazem para ele um
banquete com direito a um vitelo gordo. O amor de Deus ao
longo de toda a Escritura é sempre desproporcional, então não
me venha com essa de “foi para zerar a conta”.
Com Pedro também a recepção foi calorosa como aquela da
parábola do filho pródigo. Por que, então, Cristo fez a pergunta
três vezes ao reencontrar o discípulo?
Nesse momento, Cristo estava fazendo a alquimia perfeita,
como quem diz: “Vamos fazer um último ajuste, vamos terminar
de polir seus olhos para que você possa ascender.” O símbolo é per-
feito; tanto o é que, depois disso, Pedro recebeu uma tiara e foi
promovido a papa.
Como as coroas da tiara da Papisa, também três são as pergun-
tas que Cristo dirigiu a Pedro. Na primeira pergunta, o original
grego traz a pergunta Agapas me? (“Tu me amas?”). Cristo usou o
verbo agapao. O amor agape é um amor superior, transcendente e
divino. Portanto, na primeira pergunta, o que Cristo questionava
119 a papisa
era se Pedro O amava com esse amor agape, divino, como o amor
de Deus por nós. Mas Pedro respondeu meio sem jeito...
Então o Cristo perguntou mais uma vez: “Pedro, agapas
me?”, como se perguntasse: “Pedro, tens certeza de que és capaz
de me amar com um amor divino? Ora essa, ainda és um inocen-
te…” E Pedro uma vez mais não respondeu satisfatoriamente.
Ainda restava dúvida.
Por fim, o Cristo lhe perguntou: “Pedro, phileis me?” — e
essa é uma das perguntas mais bonitas de todo o simbolismo
dos versículos. Lembre-se de que um versículo é a condensa-
ção simbólica de uma realidade. Cristo empregou o verbo phi-
leo, que sugere um amor humano: “Tu, então, me amas com esse
amor humano, que é aquilo que me podes dar?” Ali, Cristo estava
perguntando a Pedro se ele tinha o olhar polido, pois somente
assim poderia receber a tiara.
Naquele momento, Pedro poderia ter se tornado uma ser-
pente como Caifás, poderia ter respondido “Não. Tu me aban-
donaste. Agora, não deixarei que ninguém mais faça isso comigo!
Abominarei a pomba que havia em mim e me converterei em ser-
pente!” Sabemos que, quando nos sentimos traídos ou aban-
donados, as dores podem nos transformar de pombas em ser-
pentes. Podemos ir da inocência à degeneração total, se não
articularmos as coisas no meio do caminho.
Isso poderia ter acontecido com Pedro. Naquele momento,
poderia ter ocorrido a perda total de sua inocência; ele poderia
ter saído do pólo da inocência e passado ao pólo de desespe-
rança, poderia ter se transformado em um outro Caifás.
Mas Pedro respondeu: “Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que
Te amo.” Naquele momento, houve um alinhamento: os dois
olhares polidos, de pomba e de serpente, foram perfeitamente
ajustados na alma daquele que virou o espelho do Cristo na terra.
A Verdade, em seguida, lhe disse: “Então vai e apascenta
minhas ovelhas”. O Pastor transfere sua autoridade para aquele
que, a partir de então, passa a deter o olhar capaz de enxergar e
distinguir as ovelhas dos lobos. Se o Pastor deixasse um sujeito
com olhar de pomba cuidar de suas ovelhas, correria um sério
120
Ajustar é a chave
Ajustar os dois olhos e poli-los é a primeiríssima etapa, mas
não se anime tanto ao conseguir fazê-lo, pois esse é apenas o
passo inicial sem o qual não se pode começar a refletir as reali-
dades superiores.
Uma vez de olhos alinhados e polidos, será possível dar iní-
cio ao processo de percepção dessas realidades superiores, re-
presentadas pelos círculos da tiara: as realidades mística, gnós-
tica e mágica. Antes de ajustar a visão, não há como enxergar a
realidade com profundidade e clareza; antes de polir os olhos,
não há como refletir essa realidade, fazendo-se espelho dela.
Quando, porém, você adquire um olhar polido e começa a ver
o mundo, surge uma primeira chance de alcançar esse patamar.
A realidade não é somente apreendida por seus olhos, mas tam-
bém refletida por eles — e uma reflexão especular só pode ocorrer
em superfícies lisas e polidas.Toda a atividade reflexiva só começa
a acontecer a partir daí. Até então, você está em um domínio infe-
rior, da confusão, da matéria, onde ainda não há reflexão.
Perceba que o olhar da Papisa fica entre o livro e a tiara. Ela
quer ver o que faz, como quem pega aquelas realidades da tiara
e as lança para o livro. O olhar dela está quase no livro, mas não
se fixou nele ainda. Está no meio do caminho, em movimento.
121 a papisa
Experiência mística,
a primeira coroa da tríplice tiara
O círculo superior da tiara da Papisa representa a experiência
mística, mas não se pode ter experiência mística lendo um livro
e tentando olhar para dentro de si. Para começar, livros não são
a realidade, são apenas registros de palavras que podem refletir
a realidade — isso se você tiver a experiência mística.
Se você não tem o duplo olhar, se não é uma superfície lisa,
se não articulou em si a pomba e a serpente, você olha para o
mundo, mas não o enxerga. O que você vê é uma outra coisa.
O mundo não é feito nem só de ovelhas nem só de lobos; mas
de ambos.
Se você olha para o mundo sem esse duplo olhar, aquilo que
você acha que vê é apenas fruto da sua mente. Sem uma super-
fície polida, o mundo não reflete em você; e, assim sendo, você
não capta o ser das coisas.
Imagine uma xícara. Alguém (causa eficiente) a fez, e a fez de
porcelana (causa material), com forma de xícara (causa formal) e
com a finalidade de acolher líquidos para que os bebamos (causa
final). Ela não existia, até que, em um dado momento, foi criada.
Uma vez que ganhou o ser, ela é, e nunca deixará de ser.
Você pode achar tudo isso muito lindo e interessante, mas
só será capaz de captar o ser da xícara se tiver os olhos alinha-
dos e polidos.
Sem o olhar ajustado e polido, ainda que você contemple uma
montanha por semanas, não terá a experiência mística dela —
o ser da montanha não ficará impresso em você. A experiência
mística é um dos sentidos; ela é o impacto do ser em você.
Estamos acostumados a ouvir “sentidos” e já pensar em
visão, olfato, paladar, tato e audição, que são nossos sentidos
externos; mas agora vamos falar de “sentidos” em uma outra
acepção. As coisas são conhecidas por quatro vias, por quatro
sentidos. O primeiro deles é o místico.
A experiência mística é o primeiro sentido do conheci-
mento, e é a mais alta das coroas da tiara; é o reflexo do Ser.
122
Veja bem: você não é o Ser, você é reflexo do ser daquilo que
está apreendendo. Não existe uma fusão do Ser em você, ao
contrário do que prega o panteísmo. A cosmologia panteísta
sintetiza-se na afirmação de que o Ser está fundido em tudo;
de que existiria apenas um Ser, e de que tudo teria esse Ser.
O panteísmo é uma visão cosmológica interessante, mas
que fica estagnada na primeira etapa da percepção das coisas;
não vai além disso. É insuficiente, pois não explica tudo — e
por isso dizem que ela está errada, mas não precisamos invali-
dá-la por inteiro.
“Tudo tem Deus”, afirmam os panteístas, e nisso estão certos.
Tudo tem Deus, mas tudo não é Deus, como eles dizem que
é. O problema do panteísmo é que não há uma passagem do
conhecimento para a prática e depois para a Filosofia (que é o
livro da Papisa).
Se você tiver a superfície polida, se tiver os dois olhos po-
lidos, conseguirá refletir o Ser dentro de si. Isso é experiência
mística — mas ela só acontece no silêncio. Este é outro motivo
pelo qual praticamente ninguém tem experiência mística hoje
em dia: ninguém fica em silêncio.
Você não abarcará as três etapas da coroa assistindo a uma
aula ou lendo um livro. Hoje em dia, toda experiência que o
pessoal pretende mística ou superior consiste na leitura de li-
vros. Mas enquanto você não tiver um olhar polido, a leitura de
livros não lhe dará tanto fruto.
No caso do exercício da Medicina, por exemplo, é necessário
ler alguns livros, como esses manuais de Fisiologia e Patologia,
mas, muitas vezes, os estudantes os lêem apenas para passar em
uma matéria. Um livro pode lhe passar um conhecimento ime-
diato de como prescrever um remédio, mas somente um pro-
fessor lhe ensinará a prescrever o remédio certo na hora certa.
Outras coisas, você só aprenderá no exercício da Medicina —
durante a residência, por exemplo —, no contato direto com
os pacientes, ao se deparar com a complexidade da realidade.
Não se aprende a consertar um motor de carro por meio da
leitura, aprende-se consertando-o. Medicina, nutrição e enfer-
magem são coisas aprendidas com a prática — e a prática já é
123 a papisa
fosse mau em si, mas para que o homem, ao menos, nesta pe-
quena coisa, obedecesse a uma ordem tão-somente por ser
dada por Deus. Assim é que comer do fruto da mencionada
árvore tornou-se um mal. Aquela árvore (...) foi chamada de
árvore da ciência do bem e do mal, não porque possuísse uma
força causadora de ciência, mas devido ao que aconteceu após
ter sido comido o seu fruto. Tendo-o comido, o homem apren-
deu por própria experiência a diferença que existe entre o bem
da obediência e o mal da desobediência. 17
17 AQUINO, São Tomás de. Compêndio de Teologia. Tradução de Dom Odilão
Moura. Rio de Janeiro: Presença Edições, 1977, p. 111.
130
que, no final das contas, se tornou algo com o que você pôde
aprender e refletir.
Trigo e joio cresceram juntos, você não soube diferenciá-los
e acabou fazendo uma farinha de joio com trigo, que ficou su-
per amarga (porque o joio é mesmo muito amargo). Ao inge-
rir um pão feito daquela farinha horrível, você vomitou, botou
tudo para fora, e obviamente ficou com um gosto horrível na
boca, pois todas as ações irrefletidas deixam um gosto amargo.
Quando você vomita, precisa comer alguma coisa para tirar
o gosto do vômito, o gosto da ação irrefletida. Essa outra coisa,
material e simbolicamente, é o pão. É o pão que irá nutri-lo
e limpá-lo ao mesmo tempo. Se você finalmente aprendeu a
separar joio de trigo, precisa agora pensar em como colocar em
prática esse aprendizado e conseguir, enfim, fazer um bom pão.
Espelhos quebrados,
sepulcros caiados
Um grande problema surge quando alguém abdica da tiara e
resolve se orientar somente — e prematuramente — pelo livro.
Sem o olhar ajustado, sem os olhos polidos, sem um celeiro
preparado, sem a mínima noção da diferença entre trigo e joio,
sem prática, de que servirão as palavras do livro?
Começar direto pelo livro é receita para uma jornada fracas-
sada. Se não percorrermos a mística, a gnose e a magia, as ver-
dades contidas no livro escaparão à nossa percepção. Sem esse
processo, nós nos cristalizaremos e haveremos de nos tornar
como que sepulcros caiados, apegados à letra da lei. Verdadei-
ros livros ambulantes, mas completamente desconectados da
Verdade e incapazes de bem interpretar situações concretas e
reais. Como espelhos quebrados, nada será visto refletido em
nós senão uns fragmentos desconexos da realidade.
Imagine um sujeito que leu alguns livros sobre Teologia Mo-
ral. Ele entende tudo sobre o assunto: sabe o que é pecado, o que
são erros, o que são virtudes morais... Ele é perfeitamente capaz
132
de fazer uma prova sobre o assunto e tirar uma boa nota; talvez
consiga até ser professor de Filosofia ou reitor de um Seminá-
rio. Ele entende dessas coisas, e por isso consegue escrever uns
textos bonitinhos na internet. Quando, porém, uma situação
concreta se lhe apresenta, ele apenas faz matar a Verdade no
coração das pessoas, porque está apegado à letra de uma lei
morta, tal como um fariseu hipócrita, e assim faz justamente
porque está descolado da mística, da gnose e da magia.
O sujeito que somente lê livros não quer saber sobre a re-
alidade, não se interessa por ela. Tem, ao contrário, receio de
sujar suas puras e limpas mãozinhas e seu livro caso dela se
aproxime demasiado.
Ora, o símbolo das mãos limpas já nos foi dado há dois
mil anos. Houve um sujeito na história cuja única intenção
de vida era lavar as próprias mãos: Pôncio Pilatos. Tendo
a Verdade à sua frente — uma Verdade chagada, aberta e
pulsante, uma Verdade viva que era, ela própria, o caminho
e a vida —, Pilatos não a quis defender nem condenar: lavou
as mãos.
No entanto, aquele era o sangue da Verdade, e quem limpa
suas mãos do sangue da Verdade realiza uma limpeza abomi-
nável, caricatural e cética, a limpeza daqueles que se trancam
em laboratórios e nada querem com a realidade da vida.
A segunda lâmina do Tarô mostra-nos, assim, o crime dos
sujeitos cujas principais preocupações são não contaminar as
próprias mãozinhas com o sangue da verdade e manter uma dis-
tância segura da realidade, tomando-a por um corpo pestilento.
Se você não suja as mãos com o sangue da verdade — e ele
se nos apresenta na vida —, você está preso à letra da lei: é um
fariseu hipócrita. Nenhum dos que forem lhe procurar sairão
vivificados. Sairão, antes, oprimidos por aquela assepsia de um
Pilatos que lava suas mãos.
Há muitas pessoas assim por aí, cujo único ofício é manter
as mãos limpinhas. Não caia nesse erro.
Repito para que você não se esqueça: dedicar-se ao “livro”
sem passar antes pelos três domínios da tiara (o místico, o gnós-
133 a papisa
A
terceira lâmina do Tarô é a Imperatriz. Com as duas
primeiras, ela forma um ternário, resumido na seguinte
fórmula (que você provavelmente já ouviu em algum
lugar): o caminho, a verdade e a vida.
138
Somos livres!
Quando a criança ainda é muito nova, ela tem por operação
básica rejeitar o que lhe incomoda e aderir àquilo que não lhe
incomoda. Até os dois anos, a criança vive entre prazer e des-
prazer; tudo nela se baseia nisso. Esse par é a chave para en-
tender tudo o que ela quer e faz. Se há muito barulho, o bebê
se incomoda e chora; se tem fome, ele se incomoda e chora;
se a água do banho está muito fria ou muito quente, ele se
incomoda e chora; se nasce um dente novo, ele se incomoda e
chora. Quando cessam a dor e o incômodo, é comum que ces-
se também o choro. A vida infantil opera, enfim, no binômio
incômodo-prazer.
O sujeito freudiano não é muito diferente disso. Ele é um ho-
mem “deformado”, que é puro afeto, que está sempre fugindo da
dor e buscando o prazer. Para Freud, tudo se explica por pulsões
(uma pulsão sexual, uma pulsão de desejo, uma pulsão de pra-
zer). Contudo, meras pulsões não explicam como “funciona” um
adulto — ao menos, não um adulto maduro. Um adulto maduro
tem muitas outras motivações que transcendem a vontade de
transar, a vontade de ter muito dinheiro ou a vontade de comer
duas barras de chocolate de uma só vez.
Muita gente pensa que o homem é movido por pulsões ou
por instintos, mas, em geral, há grande imprecisão quando se
fala em “instintos humanos”. Enquanto nos animais o instin-
to é forte e imperativo, no homem, as tendências instintivas
são muito fracas e raramente se manifestam em estado “puro”
depois de passada a primeira infância.
140
Veja bem: não é para repassar um filme dos seus tantos anos
de vida, com tudo o que lhe aconteceu, porque isso também
não seria a história da sua vida, senão apenas as coisas que lhe
aconteceram. É preciso saber selecionar o que incorporar ou
não ao seu eixo narrativo.
Em que medida seu almoço de hoje serve para contar quem
você é? Em que medida a dor de cabeça que você teve há três
horas entra na seleção da sua história? E quanto àquele moto-
boy que passou rápido pelo seu carro e arrancou seu retrovisor,
fazendo-o perder quatro horas do seu dia pensando só naqui-
lo? Em que medida esse evento tem a ver com quem você é?
Alguns responderão: “Italo, isso tem tudo a ver com quem eu
sou.” Outros, um pouco mais sensíveis, dirão: “Não sei se eu de-
veria escolher essas coisas para integrarem meu eixo narrativo, por-
que, afinal, não sei se elas importam ou não.”
Quem, então, é você? Conte-me sua história, conte-me
quem você é. Se você não for capaz de fazê-lo em poucas fra-
ses, então você ainda não tem eixo narrativo.
Pense bem. Aposto que você é capaz de narrar a vida de
outras pessoas em poucas frases. “Meu vizinho estava ferrado na
vida, entrou na Hinode e hoje tem um Land Rover.” Eis uma his-
tória curta, com começo, meio e fim, com personagens, clímax
e desafio: o sujeito estava ferrado, conheceu as testemunhas do
marketing multinível e ganhou uma Land Rover porque virou
“triplo diamante”. Isso de fato acontece.
Agora, se eu lhe pedisse para me contar a sua história, mais
ou menos como você contaria a desse vizinho, você provavel-
mente logo no início confessaria: “Desse jeito, eu não consigo. Soa
falso, artificial.” Aí é que está o ponto.
Você tem de achar a verdade da sua história e contá-la bem.
Não estou falando de achar o seu propósito, mas de tentar res-
ponder a perguntas como estas: quem você é? Quem são as
pessoas ao seu redor? O que você está fazendo? Aonde você
quer chegar? De onde você veio? O que está acontecendo com
você? Na sua vida, quais são as tramas principais e quais são as
periféricas? Quem são os personagens secundários?
149 a imperatriz
Largando as fraldas
Nossa vida cognitiva ativa tem duração muito curta. Ela não
começa aos dois ou três aninhos, quando começamos a con-
tar as primeiras historinhas, mas sim por volta dos treze anos,
quando, pela primeira vez, pensamos: “Caramba! Eu tenho uma
função no mundo. O que será que eu deveria estar fazendo?”.
Há um momento na puberdade em que o sujeito olha para
si e vê que tem uma história própria, que já não é mais a his-
tória do bandido, do mocinho, do astronauta, ou do jogador de
futebol das brincadeiras fantasiosas da infância.
O próprio “brincar de casinha” das menininhas nada mais
é do que inventar uma vida que não é a delas. Isso é muito
importante para as crianças — na verdade, é só o que importa
em termos de educação infantil. A criança brinca de casinha,
de polícia e ladrão, de boneca, de super-herói, de mocinha, de
médico, de bruxa, de professora, até que chega um momen-
to em que ela começa a notar que as brincadeiras já não lhe
preenchem mais, que ela já não consegue (nem quer) brincar
como antes — e então ela cai em uma espécie de limbo, em um
grande vazio.
151 a imperatriz
O jovem então nota que não tem mais uma vida ficcional e
infantil, e que precisa contar uma história real. Mas ele se frustra
no primeiro dia, porque não sabe se fez ou não o que tinha que
fazer. Frustra-se também no segundo. Até que, no terceiro, ele não
completa mais essas micro-vidas chamadas dias, não perfaz a vida
cotidiana, porque não sabe que história é essa que está contando.
Mesmo o jovem mais ou menos bem educado, que escolhe
ser bom, que tem religião e que deseja viver eticamente, acaba
se apegando a símbolos externos, a peripécias, e vai pautando
sua vida em alcançar essas coisas externas, pois tudo assume
um sem-sentido monstruoso e interminável. Não basta querer
ter virtudes de maneira genérica; virtudes, em si e tomadas
genericamente, não são nada. Há virtudes que, para uns, serão
mais fáceis de cultivar, para outros, mais difíceis; no caso con-
creto do nosso rapazinho, será preciso dedicar mais atenção
a certas virtudes que a outras. E há alguns vícios e defeitos
contra os quais ele terá de lutar por toda a vida, porque, do
contrário, eles poderão destruí-lo.
Ele poderá, afinal, chegar ao final de um dia e dizer: “Eu fui
muito pontual hoje. Estou de parabéns.” Beleza, mas o que isso
tem a ver com tudo o mais? Em tese, ser pontual é melhor do
que não ser, mas, dependendo do caso, apegar-se demasiado
à pontualidade é péssimo, porque significa matar vários ele-
mentos de caridade, de atenção ao outro, de relaxamento, de
“presença” em dado lugar. Na maioria dos casos, cinco ou dez
minutos para cá ou para lá não fazem qualquer diferença. Lu-
tar para “ser pontual” pode significar lutar por algo que, talvez,
não tenha nada a ver com a pessoa.
E para saber quais dessas coisas têm maior ou menor rele-
vância em sua história, a primeira pergunta que você deve se
fazer é: “Qual é o meu eixo narrativo?”
Uma vez que a substância da vida humana é a narrativa (a
história que se conta a respeito de si próprio), o sujeito que não
tiver um eixo narrativo claro nunca será bom, mas, no máximo,
bonzinho. Quer dizer, dentro da normalidade humana, ele não
será bizarro, não será um monstro. Mas “não ser bizarro” não
preenche ninguém, e todos sabem disso.
153 a imperatriz
Caindo na real
Mas a anestesia de um mundo gourmetizado não dura muito
tempo. Uma pessoa que vive de buscar prazer e conforto e de
repelir dor e sofrimento é presa fácil para as frustrações. Eis
que o rapaz — que já não é mais tão jovem assim —, con-
quistando seu dinheirinho, decide curtir as férias de verão nas
praias da Indonésia. Se a sua narrativa vital for encontrar pra-
zer e repelir incômodos, ele será acometido pelo fenômeno que
atinge a classe média em geral, qual seja: suas viagens serão um
porre.
Mesmo que ele se hospede em um hotel 5 estrelas, não terá
ali o aconchego de um lar. E o hotel provavelmente estará em
manutenção (porque eles sempre estão). A água do chuveiro
não estará suficientemente quente, a bagagem será extraviada,
a carne não virá no ponto desejado, a comida não agradará
muito, ele brigará com a namorada por causa de uma boba-
gem…
Suas férias asiáticas serão um porre, seu dia-a-dia lá será um
inferno e, no entanto, ele precisará voltar ao Brasil fingindo que
tudo foi uma maravilha, porque gastou um dinheirão e esteve
em um lugar paradisíaco que muitos sonham em conhecer.
Ele pode, então, desejar ardentemente ter um carrão, e pode
até acabar arranjando um. Ao cabo de uns meses, porém, já não
gostará mais tanto do veículo. O possante não será tão bom
quanto ele pensava que seria, o seguro será mais caro do que
ele imaginava e a franquia, então, será um absurdo. Ele logo se
arrependerá de ter gastado tanto dinheiro.
Isso acontece, porque essa forma de viver e contar a própria
história não é decente, não é digna, e é incapaz de dotar uma
vida de sentido, porque é simplesmente impossível. Viver a vida
na base do comer, beber, trepar e repetir tudo de novo é uma
grande enganação que não preenche a vida de ninguém.
Sempre haverá água gelada no chuveiro, um criado mudo
para dar uma topada com o dedo, um sinal vermelho quando
se está atrasado, um extravio de bagagem com todas as suas
156
Seria como dizer: “Sou filho de Deus, mas me masturbo nas horas
vagas”, ou então “Sou filho de Deus e quero servir a boa Igreja,
mas gosto de fazer umas fofoquinhas, afinal ninguém é de ferro”.
Ora, Graciliano, então você soltava presos, mas tentemos
ser um pouquinho mais precisos. Por que raios você os soltava?
Quais pontos de sua história estão integrados, e quais estão
desconexos? Não é à toa que você, aos 56, escreveu que queria
morrer aos 57. Até eu desejaria morrer logo se, a essa idade,
não soubesse contar minha história, se tivesse um auto-retrato
fragmentado e sem argumento como esse.
Mas esse é o ponto mais alto a que as pessoas chegam hoje
quando se dispõem a contar sua própria história: a tentativa
de um auto-retrato. Provavelmente é como você começará, e
então verá que sua história ainda está muito fragmentada. Por
isso é que eu recomendo, em meus cursos, o diário de situação
— um diário de auto-retrato, que tende, contudo, a uma certa
integração.
Outro modo de contar uma história, não raro escolhido por
pessoas obsessivas, é a crônica, uma narrativa curta, cujos te-
mas são situações e fatos do cotidiano, muitos dos quais corri-
queiros. Há uma crônica genial de Machado de Assis, na qual
ele noticia a morte do sineiro João, que repicava os sinos da
Glória. Faz então, uma breve nota biográfica do falecido:
04 de novembro de 1897
18 ASSIS, Machado de. Crônicas Escolhidas. Seleção, introdução e notas de John
Gledson. São Paulo: Penguim, 2013.
162
As quatro narrativas
possíveis ao ser humano
Novamente o tamanho do mundo
Para entendermos o enquadramento das quatro narrativas pos-
síveis, voltaremos a um assunto do qual já tratei anteriormente:
o tamanho deste mundo no qual vivemos.
Muita gente entende este mundo como sendo meramente
material. Talvez você seja uma dessas pessoas — ou conheça
algumas dezenas delas. Elas pensam nas situações comuns de
seu cotidiano e enxergam ali apenas a materialidade das coisas.
“Quando vou almoçar, coloco comida no prato, pego os talheres, corto
a carne e como. Aquilo é comida, é matéria.” Tudo bem. Isso é uma
parte da realidade. Mas será que a realidade se limita a isso?
Não podemos ser triviais e vulgares quanto ao tamanho do
mundo, porque estamos diante de vidas. Atendemos pessoas em
consultório, lidamos com nossos amigos, com nossos filhos, com
nossos cônjuges, com nossos pares, com a nossa própria vida.
Imagine que tenho um charuto em minhas mãos agora. E
que estou prestes a acendê-lo com um isqueiro, mas isso ainda
166
19 AQUINO, Santo Tomás de. O ente e a essência. Tradução de Mário Santiago de
Carvalho. Covilhã: LusoSofia, 2008. (Segundo o doutor angélico, Avicena teria dito
o mesmo no início da Metafísica.)
167 a imperatriz
20 AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica, Questão 85, Artigo 5.
21 Então quer dizer que quando vejo, por exemplo, um poste na rua, eu imediata-
mente reconheço sua essência (ou quididade) e guardo esse conceito geral e abstrato
em uma realidade paralela, em um mundo das idéias? Não! Quando reconhecemos a
essência (ou quididade) de uma coisa material, o que apreendemos não é um conceito
geral que não tem correspondência alguma na realidade sensível. Se assim fosse, nós
teríamos uma dificuldade tremenda para abstrair o universal da matéria individual,
para reconhecer que aquela longa coluna de concreto é um poste e compartilha com
outros postes algumas características e possibilidades. Na realidade, não existe uma
essência separada das circunstâncias concretas.
Ao ver um cachorro na rua, não abstraio dali uma mera idéia geral de cachorro,
separada da realidade concreta e individual; o que acontece é que eu percebo uma “es-
sência” (nesse caso, uma cachorridade) naquele ente concreto e particular. Posso apon-
tar para o animalzinho e dizer a meu filho: “Veja, filho, isto é um cachorro.” Ao fazê-lo,
estarei dizendo que esse cachorrinho em particular compartilha com todos os outros
cachorros uma série de possibilidades; que ele tem uma “essência” que não é apenas
uma fórmula lógica, mas uma fórmula que faz parte da própria existência daquele cão
em particular — e de todos os outros cães; e que ele é o que é, e não é uma outra coisa
(ou seja, não é um elefante, nem uma espada, nem um bicho de pelúcia).
168
Função
Presença
Fundo Espiritual
Olhar Olhar
objetivo subjetivo
Mundo material
170
Função
Presença
Fundo Espiritual
Olhar Olhar
objetivo subjetivo
VAIXÁS SUDRAS
Mundo material
Se, ao final do dia, ele não tiver conseguido servir ninguém,
ainda assim aquele dia terá feito sentido, porque o vaixá sabe
que está vivendo uma história possível. Ao final do dia, ele ao
menos terá sobre o que falar, seja de um sucesso, seja de uma
tragédia. Refletindo sobre as experiências bem ou mal sucedi-
das, terá meios para operar melhor no dia seguinte.
O problema de viver uma vida apegada ao mundo material é
que você pode confundi-la com a vida de um bicho. Pode pen-
sar: “Vou expandir território, fazer um ninho e cuidar dos filhotes.”
Isso é o que ursos e cães fazem.
“O sentido da minha vida é cuidar da minha família”, dizem
alguns. Certo, mas uma abelha também cuida da sua família.
Ao final da sua vida, você poderá fazer a terrível constatação
de que viveu como uma abelha, embora seja um ser humano.
(E, ainda assim, esse apetite meio animalesco já é melhor do
que o do sudra.)
Se, portanto, você vive no quadrante do olhar objetivo e do
mundo material, poderá tender a buscar as mesmas coisas que
um animal (expandir território, proteger a família e conseguir
alimento para si e para os seus, ou seja, a prosperidade de seu
173 a imperatriz
Função
Presença
Fundo Espiritual
BRÂMANES XÁTRIAS
Olhar Olhar
objetivo subjetivo
VAIXÁS SUDRAS
Mundo material
É possível ter
mais de um argumento vital?
Há quem, não tendo ainda clareza quanto ao próprio argu-
mento vital, sinta que tem dois ou três argumentos dentro de
si. Há quem se sinta, por exemplo, simultaneamente brâmane
e xátria. Isso é de fato possível. Entretanto, é um problema.
Se você tem em si todos os argumentos, provavelmente os
tem desarticulados e, portanto, terá uma vida desequilibrada e
inclinada ao fracasso.
182
Os cinco
tipos humanos
Vimos anteriormente que há vários argumentos vitais possí-
veis e que cada um se identifica por uma busca distinta: o eixo
brâmane busca sabedoria e conhecimento, o eixo xátria busca
honra e glória, o eixo vaixá busca prosperidade e o eixo sudra
185 a imperatriz
O tipo irônico
(e uma pergunta necessária)
O primeiro personagem possível é o tipo irônico. Ele está sem-
pre abaixo da situação. Ele não é um pária, até porque o pária é
uma das narrativas possíveis (e não um dos personagens possí-
veis, não confundam as duas coisas). O irônico é sempre o mais
burro da roda, aquele que não está entendendo nada.
É um tipo muito presente nos romances de Franz Kafka,
por exemplo. O personagem K., protagonista de “O Processo”,
é um tipo irônico: chegam a sua casa e o prendem, mas ele não
sabe por que está sendo preso, não sabe o que está acontecendo,
é um perdido.
Imitativo Imitativo
Irônico Romanesco
baixo elevado
A mentira cientificista
M
uitos esperam de mim, como médico que se dispôs
a ensinar Psicologia, uma abordagem majoritaria-
mente cientificista. Esperam que eu trate de temas
da neurociência, que fale de neurotransmissores, que recomen-
de artigos científicos de publicações internacionais e aborde
linhas terapêuticas validadas por estudos científicos contem-
porâneos. Na cabeça dessas pessoas está o seguinte juízo: só
há validade naquilo que tem comprovação científica. Ao que não
tem comprovação científica dariam um rótulo como macumba,
magia, esoterismo ou pseudociência.
Eu poderia perfeitamente encher as notas de rodapé deste
livro de indicações de artigos científicos. Porém, não o fiz e o
porquê disso precisa ser esclarecido.
Qualquer pessoa que trabalhe em laboratório, ou que te-
nha passado por um mestrado ou doutorado, sabe que existe
198
O simbolismo mitológico
na teogonia grega e seu
fundo psicológico
Quando olho para uma pedra, penso em algo estático, presen-
te, estável. A pedra não tem uma narrativa, não tem um drama.
É um factum, não um faciendum.
O mito grego, ao contrário, é um faciendum, é um gerúndio.
O mito conta uma história, e essa história é um verbo no ge-
rúndio, pois expressa algo que corre, como a minha vida e a sua.
Essa foi a grande sacada de Ortega y Gasset. Foi ele quem
disse que a grande virada de chave acontece quando descobri-
mos que nossa vida não é um verbo estático, mas uma narrati-
va, um faciendum, algo que está acontecendo. “A vida é um ge-
rúndio e não um particípio: um faciendum e não um factum.”25
E os mitos servem justamente para entendermos melhor nossa
vida acontecendo.
Toda Psicologia que se preste a ir ao fundo da questão, em
vez de olhar para o homem como para uma pedra, volta-se
para os mitos, porque eles — sobretudo os gregos — são a
Não estamos mais com fome, nossa barriga já não dói, enfim,
já comemos... Mas ainda queremos comer. É a tal “vontade de
comer”.
Outro exemplo: quem nunca, em algum momento da vida,
teve vontade de ser bom, de ser justo, de ser fiel, de fazer o
certo, de ensinar alguém, de aprender? Nenhuma dessas coisas
acontece na matéria. Neste presente momento, em que lê este
livro, em que busca aprender, você está contrariando um prin-
cípio de Gaia na Teogonia.
Para os gregos, no início havia uma primeira terra — sel-
vagem, cheia de erupções vulcânicas, regida pela força bruta
da natureza material e ainda não havia vida. Esse é o reino de
Gaia, constituído por um princípio de matéria natural selva-
gem. Quando sente vontade de aprender, você contraria esse
princípio material, que preferiria que você estivesse dormindo,
comendo ou fazendo qualquer outra coisa mais propriamente
material. Quando estamos fazendo algo chato, mas importan-
te, e bate aquele cansaço, aquela vontade de jogar tudo para
os ares e descansar, está agindo em nós esse mesmo princípio
bruto da matéria.
Assim sendo, é claro que deve existir um outro princípio,
que rege essas outras vontades imateriais; um princípio espiri-
tual. Não entenda “espiritual” no sentido religioso. Não estou
falando de Deus, estou falando de você. Existe, em você, um
movimento que não é bem da matéria, mas vem de outro lugar.
Ora, no princípio da Teogonia grega, conforme a versão que
nos deixou Hesíodo, primeiro havia o Caos, ou seja, o que pri-
meiro havia é um grande mistério, que está além da compre-
ensão do homem. Depois do Caos, o que aparece então é Gaia,
Terra de amplo seio, princípio material, de Mãe e de Terra.
Esta, desejando ter alguém que a cobrisse totalmente, gerou
Urano (Céu), princípio espiritual, de Pai e de Espírito.
Urano então passou a cobrir Gaia com sua chuva torren-
cial. E Gaia não o aceitou senão passivamente. Como veremos
melhor adiante, trata-se de uma união, mas também de uma
oposição. Gaia (princípio material) desejava ser coberta ou
204
Os frutos da união
entre Gaia e Urano
Mas voltemos à narrativa da Teogonia. Imagine a união entre
céu e terra que se dá quando Urano cobre Gaia com sua chuva
torrencial. No mito semítico, judaico-cristão, temos o mesmo
princípio: o vento sopra do alto, inflamando a lama, o barro,
e, da conexão entre barro e vento, o homem é formado. Ora,
o barro é o resultado de uma terra cujo princípio inferior foi
moldado por um princípio superior, que o vento se encarregou
de terminar de animar, formando então Adão. Há muitas se-
melhanças nos simbolismos dessas duas narrativas, mas o mito
206
que você cede apenas se quiser, porque eles estão de certa for-
ma organizados, como a vontade de dormir com a mulher do
próximo, ou de tomar um sorvete fora de hora. Há quem ceda
logo a movimentos como estes, mas eles não são tão urgentes,
fortes e “primordiais” como os primeiros. Dito de outro modo:
há níveis de materialidade.
De volta à Teogonia, temos uma história que se repete: to-
dos os frutos da união entre Crono e Réia são devorados por
Crono. Pois, como Urano, ele também temia ser destronado
pelos filhos. E não é assim? Podemos mesmo dizer que o tem-
po devora seus filhos, que aquilo que é gerado no tempo even-
tualmente acabará, será comido, irá se decompor. Tudo o que
está no tempo se decompõe. Achar que o que fazemos nesta
terra perdurará é uma esperança vã. Não permanecerá; será de-
vorado. Mas que isso não nos arranque a esperança — a razão
para não perder as esperanças, eu a dou evocando novamente
o exemplo da pedra.
A pedra é presença de uma estabilidade, de algo que perma-
nece; ela aparece e reaparece milhares de vezes na mitologia,
nos textos sagrados e nos textos poéticos. Já diziam as Escritu-
ras: “Aquele que não tiver pecado, que atire a primeira pedra.”
Em lugar de pedra, as Escrituras poderiam ter apresentado ou-
tra coisa, como areia ou cuspe. Mas a escolha foi a pedra.
Nós só nos mantemos de pé em um chão sólido, de pedra.
Ora, se você perde seu tempo, arrancando as pedras sob seus
pés — que são aquilo que o faz ficar de pé — para atirá-las ao
outro, perderá o chão. Se você perde o tempo que deveria usar
para construir solidamente seu caminho biográfico neste mun-
do, julgando os outros, você será o primeiro a cair.
O símbolo da pedra não foi evocado à toa naquela passa-
gem. Pedra é símbolo de solidez, de constância, de durabilida-
de e, de algum modo, de esperança — também não é à toa que
Réia fez o que fez ao olhar a brutalidade de Crono com seus fi-
lhos, devorando-os todos ainda bebês, logo após o nascimento.
Eventualmente, ela resolve dar um basta àquela conduta.
Nasce um novo bebê, mas ela diz: “Este não.” Pega uma
209 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
Midas,
um homem banal
Refiro-me ao rei Midas, famoso por seu toque de ouro. Há
várias versões do mito, mas uma das mais conhecidas está no
livro XI das Metamorfoses do poeta romano Ovídio.
A narração do mito tem início quando Dionísio (ou Baco,
para os latinos) e seu cortejo seguem para os vinhedos, mas ele
se dá conta da falta de Sileno, sátiro que fora seu preceptor.
Sileno tinha se embriagado de vinho e sido levado por cam-
poneses frígios até o rei Midas, que o recebeu como hóspede
durante dez dias. Ao cabo desse período, Midas levou Sileno
para Dionísio.
O deus do vinho, dos prazeres e do excesso — mas também
o deus da piada e da zombaria — ofereceu-lhe uma recompen-
sa. Ele poderia escolher qualquer coisa. O desejo de Midas era
tornar-se rico, muito rico. Tudo o que queria eram riquezas.
De modo que pediu a Dionísio que tudo o que tocasse se con-
vertesse em ouro. “Com tantas maravilhas no mundo, esse imbecil
quer dinheiro!”, é o que o deus deve ter pensado. Embora per-
cebesse a tolice do pedido, Dionísio o concedeu. O escárnio
do deus estava justamente nessa concessão: “Quer que tudo vire
ouro? Tudo bem. Tudo quanto você tocar se tornará ouro.” Midas
julgava estar pedindo uma bênção, mas recebeu uma maldição.
Em dado momento, ele se deu conta de que havia sido víti-
ma de uma galhofa de Dionísio, pois absolutamente tudo que
tocava se tornava ouro. Tocava um pão e ele se convertia em
ouro. Mas de que serve um pão de ouro, quando se está com
fome? Comida é o que sacia a fome, não o dinheiro. Tampouco
se dorme com dinheiro, mas com um outro ser humano. O
dinheiro é o símbolo da banalização total, porque, no fim das
contas, é algo que não serve para nada. O que é bom no mundo
não é o dinheiro. O dinheiro é apenas uma das formas de con-
quistar certas coisas, mas há outras.
Quando, pois, viu seu palácio, sua comida e sua própria fi-
lha transmutados em ouro, Midas clamou por Dionísio. Nesse
213 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
Édipo, o nervoso
Um dos frutos da união de Tifeu e Équidna foi a Esfinge, figu-
ra de que você deve se lembrar por conta da história de Édipo,
Cristo no exílio
Essa terra de exílio foi frequentada por todos os sujeitos ar-
quetípicos que são exemplos para nós. O próprio Cristo ficou
em uma terra de exílio até os doze anos; depois, ficou em outra
223 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
O nosso exílio
O exílio voluntário para a terra de Urano e Gaia é necessário
para vencer a banalidade, mas pode ser que esse seja um do-
mínio desconhecido do seu espírito, da sua vida. Lembre-se
de que você ainda não tem uma autobiografia, porque sua vida
ainda não tem uma unidade. Isso quer dizer que, no seu caso,
tentar fazer um exílio como o de Zeus ou os de Cristo (ou
seja, por trinta dias, por seis meses, por um ano, por dez anos)
224
não funcionará. Fazê-lo seria afetação, pois você não sabe o ta-
manho da sua vida, não sabe qual é a sua história. E se ela durar
só mais seis meses? Então, por definição, você não conseguirá
completar esse seu ano sabático, esse seu exílio de um ano.
O exílio não é algo que faremos em bloco, porque não temos
uma autobiografia. Se você não souber contar sua história em
duas linhas, não souber qual é o seu argumento vital, então sua
vida não tem uma unidade, é tudo uma confusão.
Uma coisa, porém, você tem: um dia. Você tem hoje, e tem
amanhã. Sem esse papo de “Não sei se tenho amanhã, só Deus
sabe.” É óbvio que você terá, sim, amanhã, até o dia em que
estiver errado, mas até lá você terá acertado todos os outros
dias em que disse “Eu tenho amanhã.” Na média das apostas, se
você tem menos de noventa anos, a chance de acertar é grande.
Um dia ao menos você tem, então vá para o exílio, para a
terra de Urano e Gaia, para o deserto do Cristo, para os anos
ocultos Dele, cada um desses dias. Do contrário, você não forjará
a arma de Zeus, não terá o raio, e acabará por cair no mundo
de Midas, da banalização.
Midas é um rei, e um rei nunca vai para o exílio, a não ser
que seja destronado. Essa é a nossa vaidade; nós achamos que
somos reis: das nossas idéias, das nossas opiniões, dos nossos
relacionamentos, das nossas empresas, da nossa família; quan-
do a verdade é que ninguém nos presta ouvidos, porque somos
como Midas.
Poderia ser qualquer outro sujeito a falar com Dionísio: um
camponês, um guerreiro, um outro deus, mas era um rei, com
um reinado próprio. Era alguém que nunca está em exílio. E
Dionísio, sendo um deus, olha para aquele rei com desprezo,
tal como olharia para qualquer rei da terra: “Você é rei de quê?
Dessa meia dúzia de hectares aí? Dessas pessoas que não servem
para nada? Desse gado que vai morrer? Você é rei disso? Banal.”
Midas somos eu e você, que nos pensamos reis das coisi-
nhas que temos. No seu reinado, você tem domínio de tudo.
Todo o mundo tem seu controlezinho sobre alguma coisinha,
ainda que somente sobre os próprios pensamentos. Se não
225 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
que, ao olhar para a pedra, ele diz que aquilo não é pão, senão
pedra. E que não o comerá, pois quem come pedras é o tempo.
Foi Crono quem comeu uma pedra pensando ser seu filho.
O tempo não distingue o que é metal, o que é pão, o que é pe-
dra — ele tudo consome. Se for para o império do tempo, você
será saciado com pedras, que encherão seu estômago.
Cristo, todavia, estava no exílio, e meditou: “Estou em exílio.
Se adorar esse sujeito e ele me der este domínio, eu me tornarei rei
deste terreno; logo, sairei do exílio.” O Cristo compreendeu as
palavras do demônio e percebeu que ele, na verdade, queria
dizer que faria com que Cristo reinasse sobre um reino que era
seu convertendo-o a um rei medíocre como Midas. O ato da
meditação só pode acontecer no exílio. Ele não pode ser feito
em um reino próprio; por isso, tornar-se “rei do exílio” foi a
segunda das três tentações do Cristo.
Na seqüência, temos o terceiro movimento da tentação do
Cristo, que é óbvio. Se você transforma pedra em pão, e se é
rei deste terreno todo, inclusive do exílio, nada mais lhe fal-
ta. Francamente, você já pode até se jogar do pináculo — é o
terceiro sopro demoníaco, dizendo para que Ele se jogasse do
alto, pois certamente seus anjos o salvariam. Mas não: quem se
joga do alto cai em um buraco de terra, onde poderá confessar
que é um asno, que está destruído, que não tem mais uma bio-
grafia, que é um junco cuja história vai para onde sopra o vento.
Nada disso aconteceu com o Cristo, porque ele estava em um
ato meditativo no exílio, então pôde resistir.
Para nós, esse exílio deve acontecer não durante um ano,
não durante a quaresma, não durante dezoito anos, não du-
rante um final de semana de retiro. Você não sabe o tamanho
da sua história; o que você por certeza tem é um dia. Em um
dia, portanto, você marchará para o deserto e extrairá da pedra
aquilo que ela é: pedra.
Para fazer isso na prática, você deve separar dez minutos do
seu dia para ir ao exílio. Não é um exílio radical, é um exílio
diário, porque não sabemos o tamanho da nossa vida. Nesse exí-
lio diário, vá pegando “pedras” (entre aspas, não pedras reais)
227 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
e meditando sobre elas, num terreno onde você não está acres-
centando nada, porque não tem domínio sobre ele. Simples-
mente fique quieto, feito Zeus. Quem fez a arma do deus olím-
pico não foi ele próprio, mas outros, que estavam lá há mais
tempo. Zeus deixou que a sabedoria deles o iluminasse.
Precisamos nós também forjar as armas de Zeus para fugir
do domínio de Crono. Pegue uma idéia, um parágrafo sobre
um assunto excelente, leia-o por dois ou três minutos, e fique
sete minutos em exílio, fermentando, fazendo nada, deixando
que aquele “princípio de lava” o ilumine sozinho.
De início, por ser matéria bruta, você não distinguirá nada,
apenas se queimará. Não fará nada com aquilo e o ato será
cansativo. Porém, com o tempo e a prática, a lava irá lhe dando
luz e as coisas irão se esclarecendo.
Faça isso dez minutos por dia, todos os dias. Se ficar com
sono, não tem problema; o sono pode ser sua terra de exílio, o
sonho é que não. Basta não dormir. Meditar com sono funciona
do mesmo jeito, porque assim você não tem perfeito controle
sobre seus pensamentos — lembre-se de que você é rei de seus
pensamentos, que ou são ridículos, ou se voltam para alguma
utilidade. Nesse caso, as duas coisas são ruins.
Utilidade serve para fazer café, para ganhar dinheiro e para
um monte de outras coisas, mas não para acessar um certo lu-
gar de iluminação do seu espírito, onde você vira uma espécie
de Zeus. O reino da utilidade é o reino do dinheiro, é o reino
de Midas.
Portanto, vá para o território de exílio, fique quieto, e deixe
aquilo fermentar em você. Não é para “se esvaziar” e “não pen-
sar em nada”. É o contrário. Você deve se preencher. Com a
prática, a coisa vai encaixando no lugar certo.
Os textos excelentes, que serão suas pedras, são os que ex-
traem a luz das coisas, que não deixam você se confundir na
matéria. Busque textos sobre Justiça, sobre Caridade, sobre
Lealdade, sobre Fortaleza, sobre Trabalho, sobre Honra, sobre
Família etc., que são as operações básicas, a substância mesma
da nossa vida.
228
Eu sou eu
e minhas circunstâncias
A vida de muita gente acaba não dando certo por conta disso;
ou, mesmo quando dá certo, ainda é possível melhorar em al-
gum ponto importante. Isso ocorre porque, quando as pessoas
pretendem um autoconhecimento, elas ficam muito focadas na
parte “Eu” da equação “Eu e minhas circunstâncias”, ou seja,
estão muito interessadas em saber sobre si mesmas e pouco
interessadas em saber sobre suas circunstâncias.
Sejamos um pouco mais poéticos e profundos para che-
garmos mais perto do que importa. Não podemos entender
por “circunstância” somente o território no qual nos movemos
(nosso emprego, nossa família, nossa aparência). Sua circuns-
tância é muito superior a isso; ela é composta pelos seus dese-
jos, pelas suas aspirações, pelos conceitos que lhe aparecem e
229 MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
As armas da Imperatriz
Ninguém vai para o exílio sem bagagem ou descalço, à toa.
Veja o Mago, a Papisa ou a Imperatriz — todos eles carregam
algo. O Mago tem seu chapéu e seus itens sobre a mesa. A
Papisa tem seu livro e sua tiara. A Imperatriz tem seu escudo e
seu cetro, que são símbolos da vida acontecendo.
230
J
á abordei as três primeiras lâminas que compõem o nos-
so eixo condutor do Tarô. Tratarei agora de um assun-
to acessório ao nosso eixo e, no entanto, essencial em
termos de ajuste de narrativa: a culpa. Ela é causa de um
grande desajuste biográfico, porque pode tanto lhe paralisar
quanto acelerar sua ida para um lugar para onde você não
deveria ir.
Não gostaria de começar conceituando “culpa”, uma vez
que a culpa é uma percepção interna muito difícil de definir
universalmente. Dito isso, iniciarei abordando a culpa a partir
de um lugar que você reconhece como próprio. Mais adiante,
tratarei sobre um lugar da culpa que, embora você até possa
reconhecer, não o consegue nomear (e, geralmente, os fracassos
biográficos vêm desse segundo lugar).
Vimos anteriormente que há quatro narrativas possíveis
para desenvolvermos nossa vida. Dentro de uma dessas narra-
234
quando criança, mas isso não tem nada a ver comigo; além do mais,
é muito difícil chegar a ser astronauta. E, pensando bem, a vida
de um astronauta deve ser muito triste. O que quero mesmo é ser
médico (ou arquiteto, ou cineasta, ou engenheiro, ou contador).”
Quantas pessoas não andam culpadas hoje por modelos de
sucesso irrealizáveis? Pensemos, por exemplo, na idéia de “ficar
rico”. Antes de mais nada, guarde bem isto: não estou dizendo
que não é possível ficar rico, mas apenas que ficar rico não de-
pende só de você. Isso é muito esquisito, porque vai contra uma
idéia burguesa estúpida, mas que parece absolutamente correta
e moral hoje em dia, chamada “meritocracia”. Por ela, ascende-
-se pelo “mérito”: se você trabalhar duro, chegará lá, ficará rico
e prosperará. Isso é coisa de gente que nunca percebeu como
a vida funciona. Há muitas pessoas obstinadas, que trabalham
duro a vida inteira e jamais ficam ricas. Não é assim que se fica
rico, e, sinceramente, “ficar rico” não é algo ensinável ou que
tenha um método certo. Existem tantas variáveis sobre as quais
não se tem controle, que enriquecer é um processo irreprodu-
zível — e qualquer rico com um mínimo de honestidade vai
lhe dizer isso.
“Italo, isso não é verdade. Eu sei como ficar rico definitivamente.
Basta fazer o que fiz: estudar tudo sobre a bolsa de valores, sobre de-
rivativos, renda fixa, opções de venda, opções de compra etc., e aplicar
seguindo o método.” Certo, mas você, que enriqueceu assim, pro-
vavelmente tomou conhecimento sobre a bolsa a partir de um
princípio que não controla: alguém por acaso lhe contou, e você
por acaso estava com disposição para ouvir naquele dia, e assim
pôde pesquisar mais a fundo depois. Calhou ainda de ter algu-
ma sorte, pois você poderia ter perdido todo seu dinheiro ou,
pior ainda, ficado devendo muito dinheiro. Sei que pode parecer
frustrante, mas a verdade é que ninguém sabe como ficar rico.
O modelo que as pessoas têm na cabeça é: “Ficarei rico e
terei muito sucesso, basta eu ser uma pessoa esforçada”. De fato, à
exceção dos sortudos e dos herdeiros, só ficará rico quem se
esforçou muito, quem trabalhou muito. Mas não seja estúpido:
existem pessoas que trabalham muito mais do que você, que
244
Metafísica e esterilidade:
o eu diante da morte
As Doze Camadas da Personalidade são uma tecnologia muito
profunda. Subindo, de camada em camada, vamos aos poucos
255 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
(...)
(...)
Ele tentou contar uma história que não era a dele, vestiu
o traje errado, deixou que a máscara se colasse em sua cara.
Quando finalmente arrancou a máscara, viu que já tinha enve-
lhecido e já havia se esquecido como vestir aqueles trajes — e
acabou como um cão tolerado pela gerência. Todo o esforço
do ser humano consiste em não deixar com que essa máscara
se cole em sua cara e a vida passe sem que você a tire. Consiste
em não deixar de fazer de si o que poderia fazer.
“Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
tirado.” O dominó é um tipo de roupa. Veja o drama: ele não o
sabia mais vestir, mas tampouco o tirou. Ele queria ter vestido
esse dominó, mas alguém o vestiu nele, de modo que agora já
não sabe mais como desfazer a situação, porque foi privado de
uma vida de atos.
Por que você imagina que, para o poeta, esse tal Esteves
não tem metafísica? Em primeiro lugar, porque o poeta não
tem os olhos polidos e não consegue captar o ser das coisas.
Na verdade, todo ser humano tem “metafísica”, pois todo ser
humano tem um sentido que não está limitado à realidade ma-
terial. Toda vida humana tem sentido e é interessante se for bem
contada.
Se o poeta diz que Esteves não tem metafísica, é porque ele
próprio está contando sua vida sem metafísica, como já vimos
nos versos anteriores.
O poeta está no drama terrível da Oitava Camada, percebe?
“Ele morrerá, eu morrerei”. É um diálogo terrível, e ele aposta
no cavalo que vai perder, em uma vida sem ato, em uma vida
de quem se reclina para trás e segue fumando enquanto lhe for
concedido fumar.
266
Drummond
e a máquina do mundo
“Tabacaria”, contudo, é um poema muito pesado e um tanto
exagerado para o gosto do brasileiro, que não é nem tão ufanista
nem tão desesperançoso quanto Álvaro de Campos. Lembre-
mo-nos de que Fernando Pessoa estava imerso em uma atmos-
fera ocultista e vivia numa Europa decadente. Na voz deste seu
heterônimo, vemos a disputa incrível entre ser filho do admirá-
vel povo português (que rasgou oceanos, cruzou mares, enfren-
tou dragões dos horizontes, inflou velas com a esperança de seu
coração e de sua fé e desbravou o mundo, levando o Cristo e a
cruz para além-mar) e ser nada (ser aquele homem da mansar-
da, aquele gênio que se concebe gênio para si mesmo, mas cuja
genialidade talvez jamais encontre a luz do dia).
Nós não somos assim. Somos apenas “mineirinhos”, como
nos retrata Drummond em “A máquina do mundo”, um de seus
ápices poéticos. No poema, ele canta uma das nossas maiores
tragédias, a saber, a do homem que olha para as doze camadas
e quer nelas ascender, que entende que precisa se pessoalizar,
que conhece as quatro narrativas possíveis e, embora sabendo
de tudo isso, tem trespassada em seu espírito uma espada ne-
gra, envenenada, a qual mina sua energia e arranca a esperança
mesma que o habita.
É um poema razoavelmente grande e de leitura difícil, que
dialoga — apenas pela estrutura — com a “Divina Comédia”
de Dante. Gostaria de comentar alguns de seus versos. Mas
peço que você o leia integralmente três ou quatro vezes antes
de passar aos meus comentários.
O eu lírico começa o poema dizendo que caminhava lenta-
mente, como bom mineirinho, por uma estrada pedregosa, sob
um céu escuro e sombrio, que só não era mais escuro do que
os montes e seu “próprio ser desenganado”. Ele caminhava por
uma espécie de “selva escura”, como aquela de Dante. Mas aqui
o homem viu escuridão fora e dentro de si. Estava cansado e
sem esperança.
267 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Metafísica possível
Retificar não é trocar de cônjuge, de profissão ou de país; é
transformar os versos de Drummond e de Pessoa nos versos do
grande espanhol Antonio Machado.
Toda a obra dos espanhóis do início do século XX revolve a
morte, revolve isso de que estamos tratando aqui. Quando, en-
tão, Pedro Salinas, por exemplo, inaugura seus poemas de amor
e de romance, ele não está simplesmente querendo ficar com
certa dama por um ou dois dias, ele a está querendo para sem-
pre, não como uma possessão humana, mas como quem quer
conviver com ela na mesma casa no céu.
Em “Antropologia Metafísica”, Julián Marías diz que o des-
tino do homem se faz ao responder a uma pergunta dupla em
que, quando uma aparece, a outra se anula. Quando me per-
gunto “Quem sou eu?”, esqueço-me para onde vou. E quando
intento responder “Para onde vou?”, já me esqueço de quem
sou. É o equilíbrio da vida que tende para algo. Ou, ainda,
quando Gustavo Adolfo Bécquer, em um versinho tão podero-
so e rápido como um trovão, nos diz: “Al brillar un relámpago
nacemos / y aún dura su fulgor cuando morimos; / ¡tan corto es el
vivir!” (“Ao brilhar de um relâmpago nascemos, e ainda dura
seu fulgor quando morremos: tão curto é o viver.”, você deve
se perguntar: “Diante dessa realidade, sou como o eu lírico do po-
ema de Drummond, ou como o do poema de Antonio Machado?
271 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Retrato
Veja como ele não tem afetações de religião. Não diz conhe-
cer tudo sobre a Trindade nem se jacta de que Deus lhe fale
intimamente em orações demoradas e profundas. O que diz
é que conversa com o homem que segue sempre com ele. Ele
sabe que, em seu peito, existe essa conexão entre ele e o Ser em
Ato Puro, mas não se exibe como quem já chegou aos píncaros
da glória.
275 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
que ele ainda não sabe quem é, e que bem pode ser ele próprio
(embora espere falar a Deus um dia). E termina com seu últi-
mo dia.
Um dia será certamente o seu último dia. Pode ser que seu
último dia seja amanhã; pode ser que seja hoje mesmo. E se An-
tonio Machado fosse tomado de assalto por esse último dia, veja
como ele seria encontrado: “ao chegar ao último dia de viagem,
me encontrareis a bordo do navio que nunca há de regressar, com
uma bagagem leve, quase nu, como os filhos do mar.” Quando o
último dia chegar (e ele chega para todos, sem exceção), Macha-
do será encontrado como aquele sujeito que agiu.
Você acaso já se fez essa pergunta? Quando seu último dia
chegar, como você será encontrado? E você, psicólogo, já fez
essa pergunta a seus pacientes?
O ato humano é o ato de quem não fica esperando: não entu-
lha sua mochila de quinquilharias, ou seja, de esperanças malfa-
dadas. E não nutrimos muitas vezes esperanças que se frustram
a todo o tempo? “Vou agir assim, e espero que...” “Espero que me
reconheçam...”, “Espero que batam palmas...”, “Espero que minha
poesia seja sublime e alcance leitores e ouvintes atentos...”, “Espero
que meu filho não seja um drogado...”, “Espero ficar rico...” Esse “es-
pero que”, é justamente o inverso do “ligero de equipaje”. “Ligero
de equipaje” significa “com bagagem leve”. Para a última viagem,
não devemos levar malas pesadas. Tudo quanto levamos está
dentro do nosso peito, em nossa biografia. Você pode e deve ser
encontrado de peito aberto, como os filhos do mar.
Imagine um bom navegante que sai em uma perigosa e de-
morada viagem e então retorna. A bagagem dele é um coração
que viveu intensamente. Machado é perfeito quando diz que,
chegando o dia de sua morte, o navio que partirá sem jamais
regressar o encontrará pronto, leve, quase nu, como os filhos do
mar. Pois, como lembrou Jó (um homem a quem praticamente
tudo foi tirado), saímos nus dos ventres de nossas mães e nus
também haveremos de perecer.
Essa é a resposta que deveríamos dar diante da morte.
278
Confissão
John Carroll é muito preciso quando fala de culpa existencial,
aquela que você sente ainda quando faz tudo de modo “corre-
to”. Em “A máquina do mundo”, o eu lírico não fala nada acer-
ca de seus erros; ele pode muito bem ter vivido “bem”, como
um rapazinho muito bem comportado.
No poema “Retrato”, por outro lado, Machado confessa seus
erros: “mi historia, algunos casos que recordar no quiero”. Ele as-
sume que, embora não tenha sido nenhum Don Juán, o Cupi-
do lhe deu algumas flechadas e, aquelas que podiam recebê-lo
em suas casas, estas ele amou.
Por isso é que aquela moral kantiana, do certo e do errado, é
uma primeira coisa a ser quebrada. Francamente falando, todo
o mundo sabe diferenciar o que está certo do que está errado.
Machado não quer se recordar de sua juventude, mas se gaba
de ter conhecido algumas garotas. Isso, para a moral da época,
é algo extravagante.
Quando diz, em seguida, que é “bom, no bom sentido da
palavra”, em que sentido ele o está dizendo, se acabou de con-
fessar que, na juventude, se deitou com mocinhas? Segundo a
moral de nossos tempos, parece não haver nada de errado em
ter relações sexuais antes do matrimônio, mas à época dele
não era assim. Mas a questão é simples: ele é bom, porque não
nega sua vida, não nega seus erros, mas antes se põe diante
deles.
Machado diz que tem sangue jacobino, o que quer dizer
que poderia ter “tocado o terror”. Mas seu verso brota de um
manancial sereno, porque sabe o que quer da vida, e ele não irá
se trair.
Mas o caminhante da “Máquina do mundo” não aponta
nada que tenha feito de errado: ele falseia a própria história.
Mesmo diante de sua própria morte, ele não consegue elaborar
uma confissão clara, concreta e concisa, como fez Machado
nas duas primeiras estrofes do “Retrato” — observe como Ma-
chado confessa rapidamente, sem dar voltas ou tentar justificar
más condutas do passado.
279 CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
A
s lâminas do Tarô e a mitologia têm ainda a nos ofere-
cer muito mais do que apresentei aqui. Porém, o esco-
po deste livro não me permitiu avançar mais na análise
de outros mitos e de outras lâminas do Tarô além daquelas do
Mago, da Papisa e da Imperatriz. Desejo futuramente dar con-
tinuidade a este trabalho, bebendo do riquíssimo simbolismo
presente nos demais arcanos do Tarô (e em outros mitos de
civilizações antigas), chaves de compreensão para outras reali-
dades complexas e difíceis, com as quais nos deparamos cons-
tantemente na prática clínica e na vida cotidiana.
Espero ao menos que, ao final desta leitura, tenha fica-
do claro para você que a Psicologia não é uma caixa de fer-
ramentas que se procura no almoxarifado da clínica ou na
despensa de casa, em busca de uma chave com que apertar
meia dúzia de parafusos soltos na cabeça de alguém. Em pri-
meiro lugar, porque as cabeças das pessoas não têm parafusos;
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