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“Piratas do Entorno” – as mulheres do RAP de Brasília: uma proposta


de investigação1

RESUMO
O trabalho a ser desenvolvido tem como proposta inicial analisar de que maneira a
cidade de Brasília aparece em poemas e raps produzidos por mulheres nas cidades
localizadas em torno do Plano Piloto. Partindo do pressuposto de que poesia e música
são produtoras de sentidos, de práticas e não reflexo das impressões de seus
compositores sobre a realidade circundante, a ideia é investigar narrativas sobre a
presença e a circulação das mulheres na cidade de Brasília. Um dos objetivos é dialogar
com olhares e falas sobre a cidade localizados fora do Plano Piloto no intuito de captar
outras perspectivas sobre a vivência nas antigamente conhecidas “cidades satélites” a
partir do ponto de vista das mulheres.
Dialogando com raps de Vera Veronika e do grupo Atitude Feminina é possível
perceber que existem representações plurais sobre a cidade de Brasília, muitas delas
contrastantes com a imagem canônica sobre a cidade modernista, ora símbolo do
planejamento e da organização, terra de oportunidades, ora desprovida de vida e calor
humanos. A experiência das cantoras nas cidades que contornam Brasília aponta para a
existência de uma cidade revelada em seu cotidiano, cujo lugar de satélite se mostra
equivocado, pois a experiência traduzida em poesia desvela uma cidade pulsante, com
organização própria e, em alguns sentidos, autônoma.
Palavras-chave: Brasília; cidades-satélite; história; representação; música; rap;
mulheres.

INTRODUÇÃO
Brasília tem dentre suas principais marcas um planejamento urbano diferenciado
e uma arquitetura modernista que recebeu desde sua construção atenção privilegiada.
Muito se fala sobre a Brasília, cidade ícone do modernismo na arquitetura e urbanismo,
sendo grande parte dos estudos e análises voltados, sobretudo, para o Plano Piloto.
Contudo, Brasília não resume-se ao Plano Piloto. A preocupação com o planejamento
urbano e a alocação dos trabalhadores que atuaram em sua construção remonta as
décadas de 1940/1960 momento que marca o início da preocupação com a ocupação do

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Ada Dias Pinto Vitenti – Doutoranda no PPGHIS/UnB

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entorno de Brasília (Derntl, 2019), podemos dizer então que a possibilidade da criação
de cidades-satélite, ainda que não tenham recebido este nome desde o início, esteve no
horizonte de urbanistas e planejadores da cidade desde antes da sua construção efetiva.

(...) desde fins da década de 40, houve uma significativa preocupação no


sentido de conceber a articulação da nova capital a sua região e definir modos
de sua expansão. Essa preocupação evidenciou-se em determinações para
controlar a ocupação urbana e em planos para dispor uma infraestrutura de
serviços e equipamentos no território. Para isso, mobilizaram-se conceitos e
instrumentos relacionado a um ideário então em voga no campo do
planejamento urbano e regional. (DERNTL, 2019)

No entanto, a construção da nova capital do Brasil se deu em meio a muitos


conflitos. Ainda que se projetasse a ideia de uma metrópole polinuclear, a interligação
do espaço urbano foi feita de maneira irregular, privilegiando o centro, ou seja o Plano
Piloto, em detrimento aos espaços que vieram a ser conhecidos como cidades-satélites,
inclusive, a própria palavra “satélite” expõe o ideário que orientou a sua concepção e de
várias maneiras resultou na concepção da história de suas representações, ou seja,
cidade que dependem do centro, não possuem autonomia, dependentes do Plano Piloto.
Segundo Aldo Paviani, “A estrutura urbana do Distrito Federal foi implantada como um
reflexo da ação sistemática de erradicação de favelas e da construção de grandes
conjuntos habitacionais, localizados em pontos distanciados do principal centro de
empregos e da sede dos poderes da República, o Plano Piloto (PAVIANI, 2010: 16).”.
Devido ao surgimento de várias bandas de rock, como Aborto Elétrico, Legião
Urbana, Capital Inicial durante a década de 1980, Brasília recebeu, dentre outros, o
epíteto de “capital do rock”. Embora a cena musical de Brasília seja bastante plural,
diversificada e fértil, as histórias das bandas e/ou movimentos musicais brasilienses
estiveram durante muito tempo concentrados nas iniciativas vindas do Plano Piloto.
Devido a esse fato, a proposta desse trabalho é analisar movimentos musicais e artistas
que estão falando do entorno. Ainda em caráter exploratório, as análises aqui se
concentrarão nas formas pelas quais a cidade de Brasília, e mais especificamente as
cidades-satélites, aparecem em poemas e raps produzidos por mulheres nas cidades
localizadas em torno do Plano Piloto. Partindo do pressuposto de que poesia e música
são produtoras de sentidos, de práticas e não reflexo das impressões de seus
compositores sobre a realidade circundante, a ideia é investigar narrativas sobre a
experiência vivida nas cidades que supostamente orbitam em torno do Plano Piloto.

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Embora não faça aqui uma análise específica de gênero, a escolha é colocar em
foco o ponto de vista das mulheres, pois percebo a necessidade de dialogar com olhares
e falas sobre a cidade localizados fora do centro da capital do país no intuito de captar
outras perspectivas sobre a vivência nas antigamente conhecidas “cidades satélites” a
partir da experiência das mulheres que habitam esses espaços, pois essas falas podem
trazer novas nuances à investigação proposta, afinal corpos femininos e masculinos
possuem representações diferentes e consequentemente experimentam e retratam os
espaços de forma diferenciada.
Dialogando com raps de Vera Veronika e do grupo Atitude Feminina é possível
perceber que existem representações plurais sobre a cidade de Brasília, muitas delas
contrastantes com a imagem canônica sobre a cidade modernista, ora símbolo do
planejamento e da organização, terra de oportunidades, ora desprovida de vida e calor
humanos. A experiência das cantoras nas cidades que contornam Brasília aponta para a
existência de uma cidade revelada em seu cotidiano, cujo lugar de satélite se mostra
equivocado, pois a experiência traduzida em poesia desvela uma cidade pulsante, com
organização própria e, em alguns sentidos, autônoma.

APORTES TEÓRICOS/METODOLÓGICOS
A arte é entendida como fonte quando levamos em consideração que a mesma
carrega uma forma (dentre outras várias possíveis) de apreensão da realidade a qual se
refere. Como coloca Sandra Pesavento,
“Imagens pictóricas, discursos poéticos e lendas são
representações do mundo que se oferecem ao historiador como
portas de entrada ao mundo das sensibilidades da época que as
engendrou. Se a definição aristotélica as coloca do lado das
coisas não verdadeiras, por contraste à história, narrativa do
acontecido, tais representações, contudo, não deixam jamais de
ter o real como referente. Seja como confirmação, negação,
ultrapassagem, transformação, inscrição de um sonho, fixação
de normas e códigos, registro de medos e pesadelos,
exteriorização de expectativas, a arte é um registro sensível no
tempo, que diz como os homens representavam a si próprios e
ao mundo.” (Pesavento, 2002)

A música como fonte para pesquisa em história justifica-se: pela pluralização


das noções que existiam sobre o que poderia ser ou não uma fonte de análise
historiográfica entre as décadas de 1960 / 1970. Tal abertura habilitou uma maior
variedade de registros da atividade humana, inclusive as manifestações artísticas em sua

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plenitude. Então a música, entendida como parte do conjunto das manifestações


artísticas, fala sobre o seu momento de feitura, carrega marca de historicidade e seu uso
como fonte.
No entanto, é imprescindível ressaltar que a música como fonte de pesquisa é
vista como produtora de sentidos, de práticas e não como reflexo das impressões de seus
compositores sobre a realidade circundante, pois lemos e ouvimos tais textos cujo
alimento e o imaginário compartilhado, instituido e instituinte das representações
reatualizadas cotidianamente. Ao mesmo tempo, não podemos perder de vista questões
de cunho metodológico, pois se a arte é uma tradução poética, literária, pictórica ou
musical da realidade a mesma possui linguagens próprias. Desse modo, ainda que a
estudemos em ligação com outros testemunhos utilizáveis, não podemos perder de vista
que a arte, em todas as suas manifestações, possui linguagem específica. Desse modo,
ainda que a estudemos em ligação com outros testemunhos utilizáveis, não podemos
perder de vista que a arte, em todas as suas manifestações, possui linguagem específica.
Como nos atenta a historiadora Sandra Jatahy Pesavento o pesquisador que tem
na arte seu objeto de estudo não precisa necessariamente conhecer profundamente os
elementos que constituem, mas é necessário que o mesmo não apenas conheça seus
elementos básicos como respeite as especificidades da mesma. O olhar sobre o
repertório dos artistas e compositores que falam de Brasília parte do pressuposto de que
o a linguagem musical enquanto “expressão do mundo, diz o real de outra forma,
falando por metáforas que se referem as formas de pensar, agir, sonhar de uma época.”
(Pesavento, 2002)
O historiador que pretende trabalhar com música deve estar atento para o fato de
que ainda que seu trabalho não esteja na área da musicologia é fundamental tentar
buscar um equilíbrio entre não menosprezar os aspectos formais/estéticos de sua
musicalidade, mas também não fugir ao propósito que é o de investigar no material
escolhido as impressões forjadas sobre sua realidade, o diálogo travado entre as
representações coletivas e individuais, os sentidos possíveis de seu discurso, a
historicidade de sua música.
Ao historiador que pretenda utilizar a música como fonte de pesquisa e que por
ventura não tenha intimidade com a linguagem musical é possível propor uma
aproximação com a canção a partir de uma escuta intuitiva, a qual atente para
pluralidade de interpretações possíveis das canções por ele estudadas.

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BRASÍLIA FOI SÓ CAPITAL DO ROCK?


É importante lembrar que embora carregue o epíteto de “capital do rock”
Brasília não produziu e produz apenas rock. A capital do país desde a sua criação abraça
uma grande diversidade de gêneros musicais que vão do erudito, passando pelo choro,
reggae, samba, rap e hip hop. Nessa direção, não poderíamos deixar de mencionar O
Câmbio Negro, banda que misturava rap, com rock e hip hop, surgiu em 1990, em
Ceilândia. Seu primeiro álbum foi lançado em julho de 1993, intitulado Sub-Raça. Em
1996, o grupo lançou seu segundo disco: Diário de um Feto, vendendo duas mil cópias
nos primeiros quinze dias. No mesmo ano, concorreu ao Video Music Brasil, na
categoria Melhor Grupo de Rap, fato que se repetiria no ano seguinte. Somente
na edição de 1999 é que o grupo conquistou o prêmio, além de concorrer na categoria
de Melhor Direção, com a música "Círculo Vicioso". (OLIVEIRA, 2017)
Antes de adentrar na especificidade do assunto tratado aqui, uma breve
explanação sobre a história do RAP se faz necessária. Uma das teorias de onde essa
sonoridade se originou é a Jamaica nos anos 1960, por causa dos sounds systems que
eram instalados nas periferias da ilha. Segundo José Carlos Gomes da Silva (1998), foi
o jamaicano Clive Campbell, mais conhecido como Kool Herc quem pela primeira vez
usou os sounds systems acompanhados de rimas nas ruas de Nova York configurando a
base do Rap, som e poesia, no entanto segundo Janotti (2003), “O surgimento da cultura
hip-hop é creditado ao músico Afrika Bambaataa que, na década de 1970 formou o
grupo “The Zulu Nation” como uma tentativa de canalizar a raiva dos adolescentes do
Bronx”, e por consequência, ocupar o tempo destes meninos para que não se
envolvessem no mundo do crime em um país que ostentava a segregação racial.
No Brasil, em 1964, ano da instauração da Ditadura Civil Militar, apontam-se
alguns trabalhos isolados que codificariam uma linha rapper, que aumentaram
gradativamente: nos anos 1970, dançarinos de break se apresentavam nas ruas de São
Paulo, até que foi proibido pela polícia, pois as performances causavam aglomerações e
eram consideradas subversivas. Em meados de 1980 os amantes do gênero musical
descobriram a Estação de Metro São Bento e demarcaram-na como ponto de encontro
para se dançar e fazer rap, mas ali também o lazer seria proibido tendo pois, os rappers,
b-boys e b-girls2 conectavam o cabo de som na tomada pública para que gerasse energia
suficiente para promover o evento, então os jovens protestaram utilizando latas de lixo
para “fazer o som” (SILVA, 1998).
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Dançarinos de breaking/street dance.

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Em 1984 ocorrem o lançamento de três grupos de RAP, um deles era


conhecido como Buffalo Girls, formado por mulheres, e estas eram brancas da classe
média; todavia, “O primeiro disco de rap foi lançado no Brasil, em 1987, chamado de
"A Ousadia do Rap" [...]. No ano seguinte foi lançada a coletânea "Hip Hop cultura de
rua" cuja vendagem atingiu 25.000 cópias” (CONTIER, 2005, p. 04). Em 88,
aconteceu o lançamento do disco “Consciência Black/ Volume I, em 89, foi criada a
MH2O, que futuramente se transformaria em uma ONG pelas manifestações culturais
de Hip-Hop no Brasil, em meados de 97 os Racionais MC’s, lançaram o álbum,
“Sobrevivendo no Inferno”, considerado pela revista Rolling Stone como o 14º melhor
álbum brasileiro produzido em toda história musical do país até aquele momento. É
notável que os anos 1990 possam ser apontados como o marco de disseminação do Rap,
pois foram gravados LPs, Videoclipes, fitas-demo, foram fundadas rádios comunitárias,
surgiram as primeiras “escolas de rap” e as primeiras gravadoras formadas pelos
próprios MC’s e DJ’s.
Um episódio apontado com orgulho pelos adeptos da cultura Hip-Hop tem
relações com a TV Cultura que anunciou pelo jornal “Estadão” o fim do programa
“Manos e Minas”, o único lazer televisivo voltado para adeptos da cultura hip-hop,
então, pessoas de todas as classes que tinham em comum o apreço pelo movimento,
organizaram-se em uma manifestação frente à Assembléia Legislativa de São Paulo;
este gesto fez com que a emissora voltasse na decisão antes dos manifestantes saírem às
ruas, mas ainda assim organizado sob uma pauta política, os manifestantes se
aglomeraram no local, tornando um marco histórico onde prevaleceu a vontade popular.
Em Brasília, o RAP possui uma trajetória que remonta o início da década de
1990, e grande parte da produção musical localiza-se nas cidades-satélites, podendo
citar bandas emblemáticas como “Câmbio Negro”, Ceilândia em 1990; “Cirurgia
Moral”, Ceilândia em 1993; “GOG”, Sobradinho em 1993; “Álibi”, Ceilândia em 1995
e “Tribo da Periferia”, Planaltina-DF em 1997. Existem ainda vários outros grupos que
poderiam ser mencionados, mas dado o espaço reduzido do artigo, escolhi os nomes
mais representativos dos grupos de RAP oriundos das cidades-satélites.

O RAP emerge das novas identidades, sobretudo, de valorização da


comunidade local, das experiências e vivências cotidianas nas periferias. São
os filhos dos nordestinos, entre outros, em busca de melhores condições de
vida que vão fazer as rimas do RAP-DF, uma maioria de jovens negros que
escreve em primeira pessoa suas críticas, seus sonhos, suas opiniões políticas,

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tendo como referência a história das cidades onde vivem (OLIVEIRA,


2017:38)

É importante mencionar que os encontros de MC’s se tornaram cada vez mais


populares, como os que ocorrem nas adjacências do Museu do Plano Piloto de Brasília e
nas imediações da Praça do Relógio em Taguatinga Norte. Nesses encontros
denominados Batalha de Rap ou Slam e mais especificamente na “Batalha do Museu”
que ocorre sempre aos domingos frente ao Museu no Plano Piloto de Brasília e em
Taguatinga que ocorre nas quintas-feiras na Praça do Relógio, os envolvidos se colocam
em disputas ao vivo e com tempo determinado para fazer suas rimas e dar suas respostas
em assuntos que poderão ser pré-estipulados ou não, são segundos de interpelações para
cada rapper ou rimador sob uma mesma (ou inexistente) base acústica, nessas batalhas
muitos assuntos são abordados como as políticas de sexo e sexualidade, partidárias e
religiosas, fala-se muito do preconceito de classe e racismo, tudo com uma linguagem
característica do movimento; frequentando esses lugares é possível perceber as
inúmeras demonstrações da filosofia hip-hop na linguagem corporal, no vestir e no
falar, configurando o rap como a transmissão linguística desse esquema cultural
(OLIVEIRA, 2017:40)

PIRATAS DO ENTORNO: AS MULHERES DO RAP DE BRASÍLIA


O Hip-Hop e o RAP tem uma história marcada pela protagonismo masculino,
ponto inclusive de críticas ao movimento por suas caracteríticas, de um modo geral,
machistas e misóginas. Logo, embora não faça aqui uma análise de gênero específica,
escolhi dialogar com mulheres do RAP para analisar as cidades-satélites sob um ponto
de vista nem sempre privilegiado, o das suas habitantes.

Considerado um espaço majoritariamente masculino, ainda é um desafio falar


da participação feminina no movimento Hip Hop como um todo. É como se
estivesse determinado que o movimento fosse um espaço apenas para
homens. Este processo configura-se como uma construção histórica do
machismo que tem em seus objetivos excluir e silenciar a participação
feminina em todas as atividades sociais e culturais da história. (OLIVEIRA,
2017:95)

Brasília hoje conta com nomes de mulheres impostantes no RAP, como Vera
Verônika, Atitude Feminina, a dupla BellaDona, coletivo Batalha das Gurias, MC
Marciana MC Lis, MCs Kayne Araújo e Morena Araújo, Layla Moreno. Dentre as

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várias opções, optei por fazer um recorte mais preciso e analisar fragmentos discursivos
de raps de Vera Verônika e do grupo Atitude Feminina.
Vera Verônika nasceu em Brasília, mas foi morar em Valparaíso, cidade do
entorno do DF, no bairro São Fernando, conhecido como Posto 7 ainda criança. Pode
ser considerada a primeira mulher a entrar na cena do rap da capital do país. Além da
sua música, pois através do RAP ela narra suas vivências, seu cotidiano especialmente
as concernentes à condição de mulher negra, moradora de periferia e as implicações
dessas realidades, sua atuação como pedagoga e ativista social é muito importante. Em
suas palavras, "A gente que trabalha com o rap, canta o que vive, as questões sociais
que passamos. O rap é abordar os problemas que existem, para que tenha uma
transformação rítmica e social das pessoas"3.
Um dos muitos pontos em comum na produção do RAP em Brasília, sejam eles
compostos por homens ou mulheres, é a polarização centro-periferia, no caso Plano
Piloto e Entorno. Essa dualidade é narrada de forma recorrente nas canções de Vera
Verônika e Atitude Feminina. Percebo que seus relatos tratam do cotidiano nas cidades-
satélites, por elas também chamadas de periferia. Como na canção “Nossa Quebrada” de
Vera Veronika.

Faço da rima a minha reflexão


Entorno sul, Rap é o tema!
Curte um Rap do bom
Na humildade na fé, aí não vou parar
Entorno sul minha quebrada é aqui
Onde me criei, cresci, aprendi de tudo um pouco, curti
Alegrias e dores, dias bons e ruins
Gente indo e chegando e eu sempre me renovando
O Rap é música, revolução
Através das palavras, enquanto jovem era disso que eu precisava
Valparaíso a cidade
São Bernardo o bairro
Posto sete o codinome marcado
Dona Diana e seu orfanato
Com o Rap a mulherada missionárias cúmplices de sina
Meu primeiro ato, vários parceiros a postos e a molecada
A loja black style, bailes na festival
A capoeira, chibata o grupo tocaia
Muitas história no Rap eu vivi
Sou Vera Verônica, me sinto bem aqui!

Com um tom de autobiografia, nesse fragmento a rapper narra sua história de


vida, desde sua infância na cidade de Valparaíso de Goiás. Os versos “O Rap é música,
3
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2017/03/08/interna_cidadesdf,579236/mulher
es-que-cantam-rap-lutam-por-espaco-e-respeito.shtml

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revolução/Através das palavras, enquanto jovem era disso que eu precisava/ Valparaíso
a cidade/São Bernardo o bairro/Posto sete o codinome marcado” falam de como o RAP
é um meio privilegiado para cantar suas experiências, além de evidenciar na canção seu
lugar de pertencimento, sua territorialidade, afirmando a cidade de Valparaíso como
parte integrante do Distrito Federal. Segundo Paviani, “Em Luziânia, a explosão dos
loteamentos deu origem a novos municípios – Cidade Ocidental, Novo Gama e
Valparaízo, cujos vínculos com Brasília os fazem participar, funcionalmente, da Área
Metropolitana de Brasília (AMB).” (PAVIANI, 2009:81)
Em outro trecho da mesma canção Vera Verônika diz “Piratas do Entorno para
dizer como é/Nossa quebrada hospitaleira de Marias e Josés/De um povo que luta
sempre e não desiste nunca/Maioria do nordeste fugindo da vida dura”. Aqui o eu-lírico
aciona a ideia de pirataria, ou seja, de quem vive no Entorno ocupa um espaço outsider,
não por escolha própria, mas pela própria história da cidade e sua organização, que
realocou os trabalhadores que participaram da construção da capital e seus descendentes
fora do centro, do Plano Piloto. Como bem coloca a historiadora Viviane Ceballos,

As cidades satélites seriam, assim, vistas como esse espaço periférico


destinado a abrigar a massa trabalhadora da cidade. Para muitos, uma
desvirtuação do que fora planejado para a cidade tida como referência de
planejamento e intervenção urbana no Brasil; para outros, parte constituinte
dela. (CEBALLOS)

O grupo de RAP e Hip Hop Atitude Feminina foi formado pelas amigas Jane,
Hellen, Giza Black e Aninha na cidade de São Sebastião, no Distrito Federal em 2000.
Devido ao pouco espaço que historicamente as mulheres tiveram, e ainda têm, na cena
do RAP e Hip Hop no Brasil, o Atitude Feminina possui dentre suas principais
características letras que narram o pouco envolvimento feminino no hip-hop nacional, a
violência doméstica e a discriminação com as mulheres.4

O grupo de RAP formado por Jane Veneno, Hellen, Giza Black e Aninha, em
sua maioria, mulheres negras da cidade de São Sebastião, foi formado em
2000 e lançou seu primeiro álbum em 2006 com o nome Rosas. Atitude
Feminina87 indica não somente o nome do grupo, mas também as conquistas
do movimento de mulheres no Brasil no ano de 2006. (OLIVEIRA, 2017:
104)

Embora uma das bandeiras mais importantes levantadas pelo Atitude Feminina
seja a da violência doméstica, o tema aqui analisado é de que maneiras o grupo canta
4
https://www.letradamusica.net/atitude-feminina/biografia-artista.html

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sua territorialidade e responde à dicotomia centro-periferia, pois como já colocado


anteriormente, é tema recorrente nos RAPs de/sobre Brasília. Na canção Cidade Deus,
as poetas falam sobre São Sebastião, seu lugar de pertencimento.

Atitude feminina, São Sebastião


quebrada kabulosa fica esperto meu irmão
mexeu com maloquero se ferrou já foi morreu
se ligue ñ vacile na cidade de deus
eu sou a Jane veneno ta lembrado de mim
eu sou aquela que faz a adrenalina subir
pequena no tamanho mais gigante na ideia
humilde ate umas horas
sou filha de Jose, foi guerreira minha mãe
sempre foi, tem que ser
pois so sendo lutadora pra sobreviver
na quebrada kabulosa que o governo esqueceu
são sebastião de rocha, cidade de deus
onde o ferro é brinquedo na mão de pivete
onde quem mata mais é o heroi dos muleques
o esporte preferido, pergunte pra qualquer um
é aventura pular muro, nas mansão do lago sul

Ao contrário da canção de Vera Verônika analisada, onde há a exaltação do


Entorno Sul, nesse fragmento do Atitude Feminina não há uma valorização da
“quebrada”, embora o grupo afirme de forma contundente sua territorialidade. O eu-
lírico denuncia o esquecimento desse lugar pelo governo, retomando uma narrativa de
como as cidades-satélites em Brasília foram construídas com descaso, apartadas da
lógica planejada do Plano Piloto.

No entanto, “o polinucleamento se deu pela segregação da população que


morava em acampamentos provisórios, em ‘grandes invasões’ (favelas), estas
próximas ao Plano Piloto e foram desconstituídas sem muito critério.” Assim,
nascem as cidades satélites como um processo de improvisação, não
condizente com o processo de consolidação de uma cidade planejada. Pelo
menos não como pensavam seus “artistas oficiais”. (CEBALLOS)

No fragmento “na quebrada kabulosa que o governo esqueceu/são sebastião de


rocha, cidade de deus/onde o ferro é brinquedo na mão de pivete/onde quem mata mais
é o heroi dos muleques/o esporte preferido, pergunte pra qualquer um/é aventura pular
muro, nas mansão do lago sul” além de evidenciar o descaso do governo, o eu-lírico
canta a violência do espaço onde vive, em uma alusão à Cidade de Deus, favela carioca
muito importante, compara São Sebastião a essa comunidade, onde crianças andam

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armadas e o esporte favorito da “mulecada” é pular os muros do Lago Sul, bairro nobre
localizado no Plano Piloto. Essa aventura de adentrar espaços proibidos do centro ressoa
a ideia de pirataria já cantada por Vera Verônika.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito há o que se analisar e investigar sobre o RAP produzido por mulheres em


Brasília. Os temas mais caros às poetas, grupos e coletivos. Por ora pontuarei algumas
questões que estão no horizonte e ainda deverão ser respondidas. A primeira delas é o
lugar das cidades-satélites no planejamento da capital do país, pois embora sua
existência surja nos primeiros projetos que antecedem à construção da cidade, sua
história posterior ficou marcada, em grande parte por narrativas que evidenciam o
descaso do governo com seu desenvolvimento. Nas palavras da arquiteta Fernanda
Derntl,

Além disso, as cidades-satélites se desenvolveram de maneira muito menos


controlada do que o Plano Piloto e receberam muito menos recursos em
infraestrutura urbana. No entanto, como se procura ressaltar aqui, a
concepção das cidades-satélites articulou-se a um esforço de direcionar a
ocupação dos territórios do Distrito Federal e foi objeto de planos
urbanísticos desde fins dos anos de 1950.
Na época da construção de Brasília, discursos produzidos por autoridades
políticas e seus apoiadores enfatizaram a atuação do governo na criação de
cidades-satélites, mas foram ambivalentes quanto a considerá-las parte
intrínseca da Capital e do seu desenvolvimento. (DERNTL, 2018)

Outro ponto que deverá ter maiores desdobramentos é justamente a investigação


das diferenças de narração que os grupos de mulheres do RAP de Brasília falam da
ocupação da cidade e da relação centre-periferia, pois mesmo que a pulsação Plano
Piloto e Entorno seja comum a rappers homens e mulheres, a violência urbana, o direito
à cidade, os empregos, a jornada de trabalho, entre outros, provavelmente figuram de
maneira diversa na experiência de gênero, a qual deve ser levada em consideração para
alcançarmos outras dimensões que o RAP pode revelar da história de Brasília.

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