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Diamantina - MG durante o século XIX e XX. Esse projeto de doutorado insere-se na linha de
pesquisa “História Cultural, Memórias e Identidades”. O interesse nesse objeto para uma
pesquisa em história recai sobre a possibilidade de explorar uma fonte que traga a experiência da
escravidão a partir do ponto de vista do escravo, uma vez que os cantos foram uma das formas
que tais sujeitos encontraram para contar e dar sentido a esta experiência.
Além disso, nos interessa sobremaneira a reelaboração dos vissungos pelos descendentes dos
escravos na região citada, pois nos leva a supor que a rememorização dos mesmos constitui-se
como elemento que conectou os descendentes aos seus antepassados numa relação que
estabeleceu um espaço no qual identidades foram constituídas e reconstituídas, criando assim
instrumentos que delimitaram fronteiras, conferindo-lhes poder de criar sua história, exercendo
no cotidiano estratégias que lhes possibilitassem atuar com autonomia.
Palavras-chave: vissungos, escravidão, experiência, memória, identidade.
1. Introdução
Vissungos são, segundo o etnomusicólogo Marc Antoine Camp, cantos que apresentam
marcas de culturas centro-africanas, e que eram entoados pelos escravos e escravas, em várias
ocasiões e em espaços públicos – como a extração de diamantes – na região do garimpo em
Diamantina, Minas Gerais durante o século XIX. Estes cantos foram recolhidos entre os
descendentes dos escravos e escravas na região citada, em especial nos povoados de Quartel do
Indáia, São João da Chapada, Milho Verde e Serro. A ilustração de Rômulo Costa Vianna nos
fornece uma ideia do espaço geográfico em questão.
O projeto de doutorado ora apresentado insere-se na linha de pesquisa “História Cultural,
Memórias e Identidades”. Pretendemos por meio deste historicizar a elaboração dos vissungos
pelos escravos durante o século XIX e as reelaborações feitas sobre eles pelos seus descendentes
durante o século XX.
Segundo o historiador José Ramos Tinhorão uma das fontes a serem consultadas para
pesquisas sobre a música produzida por escravos no Brasil encontra-se nos relatos de viajantes
estrangeiros durante o século XIX no Brasil. Há notícias desses cantos, por exemplo, nos
informes do botânico e viajante francês Saint-Hilaire em sua passagem pela atual região da
cidade de Diamantina durante o ano de 1833. “[…] um grande número de negros que aí
circulavam ativamente, cantando alegremente, davam vida a esses tristes lugares.” No entanto,
em termos de sistematização de dados, o trabalho do filólogo Aires da Mata Machado se mostra
um dos mais completos sobre o tema. Entre as décadas de 1920 e 1930 o autor empreendeu
pesquisas entre os descendentes dos escravos na região acima citada e os cantos recolhidos foram
compilados no livro O negro e o garimpo em Minas Gerais.
Além dos já citados, vários outros trabalhos sobre esses cantos já foram desenvolvidos,
principalmente nas áreas da fonética, lingüística e etnomusicologia. Em 2004, a pesquisadora
Neide Freitas Sampaio organizou uma publicação que reúne artigos sobre os vissungos. Dentre
os trabalhos reunidos estão: o texto do mestre de vissungos e patrão de catopê, a saber, Seu Ivo
Silvério da Rocha (Milho Verde, Distrito de Serro Frio) e o depoimento do mestre de vissungos
Antônio Crispim Veríssimo (zona rural de Milho Verde). As falas dos cantadores de vissungo
nos deixa entrever que esses cantos possuem significados importantes para as comunidades que
os vivenciam e reelaboram. Tal hipótese nos suscita o interesse em analisar o lugar que os
vissungos ocupam na formação e cotidianidade histórica e cultural dessas comunidades.
Não obstante, para nós convém esclarecer que os vissungos nos foram apresentados por
meio do disco O canto dos escravos gravado em 1982 por Clementina de Jesus, Tia Doca e
Geraldo Filme. A primeira gravação em LP traz quatorze dos cantos que foram registrados no
livro de Aires da Mata Machado Filho. À primeira audição do material nos chamou a atenção a
beleza dos cantos. Em um segundo momento, ao ler o encarte do cd, o qual cita a fonte donde os
cantos foram recolhidos, o já citado livro O negro e o garimpo em Minas Gerais, assaltou-nos o
porquê de Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Tia Doca gravarem um disco intitulado O canto
dos escravos. Afinal o que levou três artistas negros em meados dos anos 1980 a se sentirem
partícipes de uma história e de uma identidade comuns engendradas na experiência da
escravidão?
Neste momento é importante enfatizar que a primeira edição do livro de Aires da Mata
Machado é de 1938. Na introdução o autor explica que iniciou suas pesquisas em 1928, o que
nos levou a supor que em torno de quarenta anos após a abolição da escravatura no Brasil esses
cantos continuaram a ser reelaborados pelos descendentes dos escravos na região. Nesse sentido
acreditamos que tais reelaborações foram possíveis pelo sentimento de pertencimento a uma
coletividade cuja história encontrava-se atrelada à experiência da escravidão: um exercício de
identificação possibilitada pelos cantos.
Desse modo, pensamos os vissungos como um dos elementos de reconhecimento do
grupo, cuja memória é constitutiva da identidade histórico-social e cultural dos escravos do
garimpo mineiro. Assim, o interesse nesse objeto para uma pesquisa em história recai sobre a
possibilidade de explorar uma fonte que é expressão de identificação e de pertencimento desse
grupo.
Além disso, nos interessa sobremaneira a reelaboração dos vissungos pelos descendentes
dos escravos na região citada. Argumentamos, portanto, que os cantos em questão constituíram-
se como uma memória que conectou antepassados a descendentes, em uma relação que
estabeleceu um espaço de constituição e reconstituição de identidades e memórias, exercendo no
cotidiano a demarcação de seus lugares de sujeitos.
2. Revisão da Literatura
Acreditamos que a pertinência desta pesquisa reside na elaboração de uma perspectiva
sobre o escravo que o coloque como protagonista histórico. É importante ressaltar que este é um
dos eixos norteadores das pesquisas historiográficas sobre escravidão no Brasil empreendidas a
partir da década de 1980. Como bem coloca João José Reis:
3. Justificativa
Em 1928, ou seja, quarenta anos após a abolição, Aires da Mata Machado dá início a sua
pesquisa. Esse lapso de tempo nos levou a pensar na sobrevivência dos vissungos, tendo em
mente que revoltas, lutas e manifestações por liberdade fizeram parte das práticas de resistência
dos escravos no Brasil. Desse modo, pensamos que a reelaboração e vigência desses cantos pelos
descendentes de escravos sinaliza para a importância dos mesmos enquanto forma de demarcar
um espaço, estabelecer identidades e buscar liberdade, ainda que essas demandas se
diferenciassem da lógica das elites, como muito bem nos coloca Maria Cristina C. Wissenbach,
4. Objetivos
4.1. Objetivo Geral
O objetivo primeiro é refletir sobre a elaboração dos vissungos pelos escravos e escravas
na região mineira e mineradora. Pretendemos pensar nos sentidos possíveis que esses cantos
comportam, partindo do pressuposto que os mesmos fazem parte do cotidiano de uma
coletividade que vive e narra suas experiências e compartilha as vivências de seus sujeitos, estes
produtores de sua história.
O segundo, mas não menos importante objetivo desse projeto, é pensar as estratégias dos
escravos e de seus descendentes a partir de suas políticas de localização e de identificação
comum, traduzidas em práticas como esses cantos. Ao estabelecermos diálogos entre as fontes
recolhidas, o referencial teórico-metodológico e a historiografia o que visamos é historicizar os
vissungos criados e usados na construção de um sentimento identitário de pertencimento.
5. Metodologia
O presente projeto delineia-se, entre outros, no âmbito da História Cultural, que tem como
uma de suas principais características a interdisciplinaridade, ou seja, a articulação de diversas
áreas do conhecimento na investigação de um determinado objeto histórico. Segundo Chartier, o
objetivo da História Cultural é tentar identificar como uma realidade social é construída em
determinados momentos e espaços, não podendo ser dissociada das representações que a
permeiam, pois como numa via de mão dupla a coletividade imprime sentidos à realidade, ao
mesmo tempo em que ela própria é criada a partir desses sentidos. Dessa forma é interessante
não se separar os discursos dos locais onde são proferidos.
(...) Desta forma, pode pensar-se uma história cultural do social que tome por
objeto a compreensão das formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das
representações do mundo social – que, à revelia dos atores sociais, traduzem as
suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente,
descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que
fosse.
Como já foi dito, o objetivo dessa pesquisa é historicizar a elaboração e reelaboração dos
vissungos pelos escravos e seus descendentes na região do garimpo em Diamantina – MG. A
Nova História contribuiu muito para a flexibilização da noção que se tinha sobre o que poderia
ser ou não uma fonte da análise historiográfica. Tal abertura habilitou uma maior variedade de
registros da atividade humana, inclusive as manifestações artísticas em sua plenitude. Dito isso,
afirmamos que a música e o objeto sonoro podem ser entendidos como uma fonte legítima para a
pesquisa em história, posto que como qualquer outra possui subjetivo e pode ser passível a
interpretações múltiplas. Utilizamos as palavras do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr.
para sustentar tal afirmação:
No entanto, por serem as discussões em torno do caráter artístico da escrita histórica uma
questão polêmica e complexa, apenas gostaríamos de assinalar que, se contemporaneamente a
história admite as artes como documentação válida para pesquisa, quanto mais trabalhos tiverem
a música como fonte, melhor poderemos discutir e afinar a criação e os usos da mesma, uma vez
que, ironicamente, enquanto os historiadores debatem sobre a condição artística de seu ofício, os
musicólogos tentam afirmar o caráter científico de seu objeto, como bem avalia Moraes, ao
refletir sobre essa relação,
Gostaríamos de enfatizar que defendemos a utilização da música como fonte que nos
permite acessar a experiência passada, a associando à uma prática discursiva produtora de
sentidos, de um texto, de uma forma de linguagem e não como reflexo da realidade circundante.
Afinal lemos e ouvimos tais textos musicais a partir de um imaginário compartilhado, instituído
e instituinte de sentidos à realidade e, nela, as relações sociais estabelecidas ritualizadas
cotidianamente. No prefácio de seu livro O som e o sentido, José Miguel Wisnik propõe um
entendimento sobre a música que é aqui para nós muito caro.
Por ser este um trabalho de história e não de musicologia, pretendemos fazer a análise dos
vissungos a partir da busca por um equilíbrio entre não menosprezar os aspectos da sua
musicalidade, mas também não fugir ao propósito que é o de investigar o material escolhido.
Reiteramos que tal material não está fora da história, encontra-se atravessado de historicidade,
indicando as suas condições históricas de produção. Por não sermos músicos ou musicólogos
nossa aproximação com os cantos se deu a partir de uma escuta intuitiva, na qual atentamos para
a pluralidade de interpretações possíveis dos mesmos.
Para o historiador que está relativamente distante dos debates acalorados, das
angústias científicas e discussões estritas da musicologia e da música
propriamente dita, naturalmente se coloca como primeiro problema às
investigações lidar com os códigos e a linguagem musical. Certamente esse é
um problema sério, não o único, mas que deve ser superado. Essa dificuldade
não pode ser impeditiva para o historiador interessado nos assuntos relacionados
a cultura popular, como não foram, por exemplo, as línguas desconhecidas, as
representações religiosas, mitos e histórias e os códigos pictóricos. Na
realidade, essas linguagens não fazem parte de fato do universo direto e
imediato do historiador, mas nenhuma delas impediu que esses materiais fossem
utilizados como fonte histórica para desvendar e mapear zonas obscuras da
história. Deste modo, mesmo não sendo músico ou musicólogo com formação
apropriada e específica, o historiador pode compreender aspectos gerais da
linguagem musical e criar seus próprios critérios, balizas e limites na
manipulação da documentação (como ocorrem, por exemplo, com a linguagem
cinematográfica, iconográfica e até no tratamento da documentação mais
comum).
Com efeito, a pouca intimidade com a linguagem musical não impossibilita o trabalho do
historiador com a música como fonte de pesquisa. No entanto é fundamental estarmos alertas
para a especificidade desse tipo de fonte, para os códigos e a linguagem musical. Os cantos
representam o casamento de letra e música, logo a análise dos mesmos tem que levar em
consideração tal interação, não ficando o pesquisador ligado somente a letra ou a melodia. Além
disso, por ser a música um artefato cultural, a mesma tem os seus sentidos moventes, não
podendo ser apreendida dentro de somente um significado.
Os estudos sobre Análise de Discurso, especialmente os trabalhos de Eni P. Orlandi,
revelam-se orientações promissoras na análise da linguagem musical, em razão da nossa escolha
metodológica de cruzamento entre as fontes escolhidas. Em outras palavras, propomos a leitura
da linguagem musical e também da linguagem escrita das narrativas históricas e memorialísticas
no intuito de acessar e descobrir os sentidos possíveis nela produzidos. A análise dos vissungos
torna-se um meio para historicizar a experiência dos escravos do garimpo mineiro e, nesse
movimento, apreender os sentidos dados à mesma, isto é, às práticas diárias/ações destes
escravos em seus tempos e lugares. Todo discurso é engendrado historicamente, como ressalta
Orlandi:
Sob tal perspectiva, entendemos que toda fonte pode ser vista dentro de um quadro mais
amplo sem que nos esqueçamos que a mesma também é formadora desse quadro, pois os
enunciados são determinados cultural, histórica e socialmente, ou seja, eles são parte constituinte
e também constituída na/das condições de produção de uma época.
Ressaltamos que, para nós, todo discurso historiográfico é um repertório com múltiplas
possibilidades de leituras. As formas de interpretação variam desde a orientação teórica e
ideológica do autor/leitor quanto ao tempo e espaço no qual o mesmo está inserido. Assim como
todo autor/texto possui uma historicidade, assim também é o olhar de quem o observa. Não há
isenção nem neutralidade na leitura. O que lemos também revela como nos posicionamos diante
das interrogações de nosso tempo, as perguntas feitas ao passado são anseios do presente. Somos
assim limitados pelas condições de produção do nosso próprio discurso. Como bem nos ensina
Michel de Certeau:
Outro ponto relevante é de que os vissungos que pretendemos analisar têm conteúdos
variados como saudação à natureza, narração do regime de trabalho – como canto para ir
trabalhar, canto para a hora do almoço, para a marcha de volta do trabalho. Além destes, segundo
o antropólogo José Jorge de Carvalho, vários cantos também narram a fuga de escravos para
quilombos e outros ainda podem carregar sentidos transcendentais. Sobre o sentido
transcendental notado pelo antropólogo, percebemos a presença constante nestes cantos de
elementos ligados a religião, ora de matriz africana, ora católica. Em outras palavras, trata-se de
um canto localizado na e da história da escravidão. Sobre o Vissungo 64 “Iáuê ererê aiô gumbê /
com licença do Curiandamba / com licença do Curiacuca / com licença do sinhô moço / com
licença do dono de terra”, José Jorge de Carvalho coloca,
Os vissungos aqui se configuram como uma das portas de acesso à leitura da escravidão
nas Minas Gerais e da experiência de escravos/as sob outro ângulo. Contudo, não somos
ingênuos para pensar que tais cantos trazem a vivência dos/as escravos/as tal qual se passou,
nossa intenção é refletir sobre a mesma através de um suporte não muito utilizado para fazê-lo.
Ao invés de pensar a experiência das populações escravizadas e de seus descendentes a partir de
dados produzidos sob a ótica da classe senhorial, tentaremos pensá-la sob múltiplos olhares, a
partir de diversos registros que, de alguma maneira, explicitam outras faces da vivência no
cativeiro.
7. Referências
• Fontes
Essa pesquisa utilizará como fontes as notas deixadas por viajantes estrangeiros do século
XIX, especialmente do francês Saint-Hilaire em seu livro “Viagem pelo distrito dos diamantes e
pelo litoral do Brasil”, os cantos recolhidos no livro “O negro e o garimpo em Minas Gerais” de
Aires da Mata Machado Filho, os cantos reatualizados ou pelo menos a narrativa sobre eles e o
disco “O canto dos escravos” de Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Tia Doca. Portanto, a
princípio esta pesquisa tem como balizas cronológicas 1833 – tempo presente e o recorte espacial
a região de Diamantina, em especial os povoados de Quartel do Indáia, São João da Chapada,
Milho Verde e Serro.
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