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infoARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE | ARTÍCULO ORIGINAL

doi: 10.5123/S2176-62232010000100005

Uso abusivo de drogas: da subjetividade à legitimação


através do poder psiquiátrico
Drug abuse: from subjectivity to legitimacy through psychiatric discourse

El abuso de drogas: de la subjetividad a la legitimación a través del poder psiquiátrico

Pablo Ornelas Rosa


Núcleo de Estudos Sociais, Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, Ponta Grossa, Paraná, Brasil

RESUMO

A questão do uso abusivo de drogas tem sido assumida pela medicina como um problema médico desde o século passado.
Apesar do desenvolvimento de teorias explicativas e de práticas direcionadas tanto ao tratamento dos indivíduos
dependentes como à abordagem da minimização dos danos provocados pelo uso de tais substâncias, percebemos a
hegemonia do discurso médico; por mais que haja tentativas de compreender os fenômenos relacionados ao uso de
drogas através de modelos teóricos ligados às questões culturais, por exemplo, percebemos que a abordagem médica
muitas vezes acaba considerando equivocadamente o simples uso das substâncias psicoativas como um problema. Esta
relação de poder imposta pela medicina moderna se amplia na medida em que é imposto um juízo de valor pautado no
discurso sobre chamado uso abusivo. Neste trabalho desenvolveremos uma análise sobre as imposições dos discursos
médicos às demais áreas do conhecimento, dentre elas as ciências sociais e humanas, no que se refere à relação entre uso
de substâncias psicoativas (prática cultural) e dependência química (doença). Assim, desenvolveremos a tese de que o uso
de drogas pode e deve ser analisado sob outros pontos de vista que não o reduzem ao foco da doença, mas a processos de
instauração de sociabilidades.
Palavras-chave: Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias; Drogas Ilícitas.

ENTRE VENENOS E MEDICAMENTOS alimentos ingeridas diariamente. Contudo, ainda dentro


deste grupo de substâncias, é preciso distinguir os
Existem dois tipos de substâncias que, quando
compostos que atuam somaticamente (como a cortisona,
introduzidos em nossos corpos por quaisquer vias – oral,
as sulfamidas ou a penicilina) e os que atuam não apenas
epidérmica, venosa, retal, intramuscular, subcutânea –,
somaticamente, mas que também provocam as nossas
podem ser assimiladas e convertidas em matéria para
emoções, alterando nossos estágios de consciência.
novas células, mesmo resistindo a uma assimilação
Segundo Escohotado6, o consumo sistemático de
imediata. Chamamos de "alimentos" tudo aquilo que,
substâncias psicoativas, ou seja, de substâncias que de
introduzido em nosso corpo, é assimilado de forma
alguma forma agem no sistema nervoso, na consciência
imediata, possibilitando a renovação e conservação de
ou na psique humana, sempre esteve presente na história
nossa condição orgânica. Entretanto, dentre as
das civilizações humanas, existindo uma bibliografia
substâncias que não são assimiladas de imediato pelo
bastante extensa e diversificada que enumera as diversas
nosso corpo, devemos distinguir dois tipos básicos:
maneiras como estas substâncias eram colhidas,
aquelas que, como o cobre ou a maioria dos plásticos, por
produzidas, usadas e representadas por diferentes
exemplo, são expulsas intactas sem exercer efeito algum
sociedades ao longo de toda a história. Estes últimos,
sobre a massa corporal ou o estado de ânimo, e aquelas
considerados por diversas culturas antigas e modernas
que provocam uma intensa reação6.
como milagrosos, são, em sua maioria, parentes carnais
Estes segundos tipos são chamados de drogas e atuam das substâncias que trocam mensagens com o sistema
de modo notável, mesmo quando absorvidas em nervoso (os chamados neurotransmissores), recebendo o
quantidades ínfimas se comparadas às quantidades de nome vulgar de drogas7.
Chamados de drogas ou medicamentos – de acordo
com a conveniência – esses componentes podem lesar e
matar em quantidades relativamente pequenas. Eles
Correspondência / Correspondence / Correspondencia: também podem ser chamados de venenos, já que é
Pablo Ornelas Rosa característica de todas as drogas serem tóxicas ou
Universidade Tecnológica Federal do Paraná
Av. Monteiro Lobato, km 4, s/n Ponta Grossa-Paraná-Brasil venenosas. A aspirina, por exemplo, pode ser mortal para
E-mail: pablorosa13@gmail.com adultos a partir de 3 g.

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Certamente, o tóxico ou o veneno de uma substância que o uso crônico de outras. Finalmente, o certo é que
nunca terá essa qualificação abstrata, mas as determinadas cada droga apresenta um sistema particular de vantagens
proporções usadas por e em cada indivíduo. Por isso, e inconveniências.
mesmo sob risco de vida utilizamos com frequência a
aspirina, a quinina e o cianureto de potássio. A proporção DISCURSOS SOBRE AS DROGAS
entre a quantidade necessária para se atingir o efeito
No decorrer da história ocidental moderna, vimos
desejado (dose ativa média) e a quantidade suficiente para
vários discursos construídos em torno das drogas que
causar a morte (dose mortal média) é denominada de
permitiram não somente a criação de leis que proibiam o
margem de segurança de cada uma destas substâncias
uso de algumas destas substâncias e autorizavam outras,
chamadas de drogas ou substâncias psicoativas.
mas também a criação dos estereótipos dos sujeitos
Fundamentalmente, dentro da margem de segurança, o envolvidos com tal consumo. Zorrilla15 nos apresentou três
uso de tóxicos levanta duas questões: o custo dos benefícios tipos de normativas produtoras destes estereótipos, que
e a capacidade do organismo de se adaptar ao estado de servem como fator de coesão e de consenso em torno do
intoxicação. O custo depende dos efeitos colaterais ou bem e do mal, no que se refere ao controle das drogas: o
indesejados, tanto em nível orgânico quanto mental, pois a discurso dos meios de comunicação, o discurso político-
capacidade do organismo de afrontar o intruso depende do jurídico e o discurso médico.
chamado fator de tolerância, ligado a cada composto. O discurso dos meios de comunicação apresenta o
A tolerância e o custo psicofísico se prestam a usuário de drogas como o "drogado" sempre jovem,
julgamentos subjetivos comparados à objetividade da criando o estereótipo cultural. Qualifica este sujeito de
matemática da margem de segurança. Ainda que as viciado e ocioso, e a droga como prazer proibido, veneno
diferenças individuais sejam muito importantes, não se da alma ou flagelo, difundindo também o estereótipo
pode dizer que a margem da heroína seja inferior a 1 por moral que tem sua origem não apenas no discurso dos
20, do LSD a 1 por 650 e da aspirina a 1 por 15. Ao se falar meios de comunicação, mas também no discurso jurídico
de custo, é usual sublinhar certos aspectos em detrimento (produto da difusão do modelo ético-jurídico).
de outros, apresentando um lado do assunto como se fosse Os três estereótipos apresentados por Zorrilla15
a totalidade. Assim, por exemplo, durante décadas a dirigem-se fundamentalmente ao sujeito que faz uso destas
medicina oficial negou qualquer utilidade terapêutica à substâncias, reforçando o discurso jurídico que designa
cocaína devido a quadros de hiperexcitação, insônia e até todas as drogas – agrupadas em estupefacientes e
lesões cerebrais, enquanto receitava generosamente psicotrópicos –, assim como quem as consome e as trafica,
anfetaminas como revigorantes, antidepressivos e como perigosas, minimizando suas importantes diferenças.
anorexígenos (no combate à obesidade). As anfetaminas Ao mesmo tempo, legitima a diferença entre o bem e o mal
podem ser estimulantes consideravelmente mais custosos ao declarar ilegal apenas as condutas que sejam referentes
que a cocaína em curto, médio e longo prazos. aquelas drogas definidas por esse mesmo discurso como
ilegais14.
Até meados do século XX, os farmacologistas
entendiam que a familiaridade com estas substâncias Zorrilla15 ainda percebeu um quarto tipo chamado de
decorreria na diminuição da intoxicação, fazendo com que estereótipo criminoso, presente desde o surgimento das
o uso mais razoável dos tóxicos passasse por um costume legislações sobre drogas, mas que atualmente se
gradativo. Entretanto, a partir da criação de leis mais converteu em estereótipo político-criminoso, na medida
repressivas, viu-se o contrário, pois se deixou de em que recorreu ao discurso político para legitimar-se
compreender que o fator de tolerância possuía como como discurso jurídico (produto da difusão do modelo
característica a capacidade de uma droga entrar em geopolítico). Para o modelo geopolítico, a droga é vista
contato com o organismo sem causar graves efeitos como inimiga, e o traficante – objeto central de interesse
nocivos – e se passou a perceber como medida apenas a desse discurso – como invasor, conquistador, ou mais
propensão ao abuso, ou seja, deixou-se de perceber que a especificamente como narcoterrorista e narcoguerrilheiro,
frequência no uso possibilitaria uma melhor adequação ao apesar de o traficante poder ser não apenas um indivíduo,
organismo, entendendo agora que esta frequência mas um país ou uma nação.
tornaria o indivíduo cada vez mais dependente e que
necessitaria consumir quantidades cada vez maiores da Para Karam12, foi a partir da guerra contra as drogas
droga para obter o mesmo efeito. que se adicionou à expressão "tráfico" o uso radical da
palavra inglesa narcotics, que, estando presente também
Uma droga com a qual o indivíduo pode ir se em outros idiomas, permitiu, ao mesmo tempo, uma
familiarizando (com um fator de tolerância alto, como o uniformização de linguagens e uma maior carga
café ou o álcool) apresenta riscos muito menores de emocional, referida às atividades de produção e
intoxicação aguda do que uma droga com um fator de distribuição das drogas qualificadas de ilícitas. A expressão
tolerância baixo (como os barbitúricos e outros soníferos), "narcotráfico" passou, então, a ser acriticamente repetida e
cujo uso contínuo não amplia significativamente a interiorizada, sem que se perceba – ou se queira perceber –
margem de segurança. Ao mesmo tempo, é certo também o descompromisso com a realidade e com a ciência
que existe a possibilidade de ampliação de doses para embutido em tal distorcido e funcional uso da linguagem.
alcançar a mesma ebriedade, meio pelo qual o risco de Para criar o útil e exacerbado clima emocional, passa-se
intoxicação aguda resvala no risco de intoxicação crônica. tranquilamente por cima do fato de que o alvo principal da
Entretanto, o uso crônico de certas drogas é muito mais política proibicionista era e continua sendo a cocaína, que,
nocivo – para o sistema nervoso, fígado, rins, e outros – como não se pode ignorar, não é um narcótico (substância

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psicoativa depressora do sistema nervoso), tratando-se, ao Assim, o estudo das interações entre os doentes e as
contrário, de um evidente e conhecido estimulante. pessoas saudáveis comporta uma diversidade de aspectos
que nos possibilita estimar a importância das atividades
O discurso político-jurídico, mais conhecido como
fundamentadas sobre a ciência e a técnica nas sociedades
geopolítico, difundido fortemente no continente
industriais, fazendo-nos assistir ao surgimento de uma
americano a partir da década de 80, concorda com a
forma diferenciada de organização do trabalho: a da
incorporação dos postulados de Segurança Nacional,
profissão, acompanhada da autoridade específica do
identificando quem são os inimigos e buscando
especialista. Sob esta ótica, o caso da medicina tem um
veementemente combatê-los.
valor geral cujo alcance transcende a simples questão do
Já o discurso médico (produto da difusão do modelo cuidado dedicado aos fenômenos orgânicos1.
médico-sanitário), ao considerar o sujeito que faz uso de
Na medida em que foi adquirindo plena autoridade
substâncias psicoativas um "drogado" ou doente e a droga
sobre as doenças e monopólio sobre seus tratamentos, a
um "vírus", uma "epidemia" ou uma "praga", cria o
medicina científica moderna, tributária do ativismo médico,
estereótipo médico, mais especificamente o estereótipo da
foi conquistando poder. A essa evolução acrescentou-se a
dependência ou da doença, centrando o problema na
conquista de uma posição privilegiada, ainda hoje em
saúde pública. Será sobre o discurso médico, e mais
efeito, que a sociologia designou pelo termo de ascensão
especificamente sobre o poder médico e psiquiátrico,
à condição de profissão. São os médicos que determinam
extremamente presente no interior deste discurso, que
o currículo dos chamados estudos médicos e foram eles
desenvolveremos este trabalho.
próprios que redigiram os códigos de ética médica
Para Foucault9, o poder psiquiátrico se apresenta como reconhecidos pelos Estados, ou seja, eles dependem de
um poder no qual e pelo qual a verdade não é posta em suas próprias associações (Conselhos de Medicina).
jogo. Sendo assim, o saber psiquiátrico não tem por função Portanto, sua regulamentação é essencialmente uma
fundamentar em verdade uma prática terapêutica, mas, em autorregulamentação que faz com que eles imperem no
vez disso, a de marcar, acrescentar uma marca suplementar campo da saúde, pois as outras atividades desenvolvidas,
ao poder do psiquiatra; em outras palavras, o saber do como a dos enfermeiros e fisioterapeutas, por exemplo,
psiquiatra é um dos elementos pelos quais os dispositivos dependem diretamente da atividade médica e são
organizam em torno da loucura o sobrepoder da realidade. considerados de categoria inferior.
Nas sociedades tradicionais, as representações da A mobilização dos médicos, a sua luta coletiva, é,
doença acabavam se relacionando mais com as portanto, também determinante: em cada circunstância,
concepções do universo, dos deuses, da pessoa, das eles souberam valorizar, junto às elites e às camadas
relações dentro de uma mesma linhagem, etc. nas quais as populares, o progresso de seu saber, a importância de seus
práticas dos diagnósticos e tratamentos acabavam serviços e apresentá-los como superiores aos dos
incluindo sempre elementos mágico-religiosos: sessões de concorrentes, conseguindo afastá-los ou reduzi-los a uma
adivinhação para a identificação das causas do problema, posição subordinada. Por fim, resta o papel crucial do
sacrifício aos deuses ou gênios, exorcismos para expulsar Estado: no final do século, o interesse pela saúde da
da pessoa o demônio ou a entidade causadora da doença. população o torna sensível às reivindicações dos médicos.
Quase sempre o terapeuta era também feiticeiro ou Mas este interesse, por sua vez, aumenta pela percepção
sacerdote e, em certos casos, esses três sujeitos eram de que o desenvolvimento médico e científico pode trazer
considerados como igualmente capazes de tratar ou curar respostas eficientes.
as doenças que tanto perturbavam.
Nas sociedades industriais contemporâneas, a doença
Com o desenvolvimento da medicina científica implica um contato direto com a medicina, pois consultar
moderna, percebemos uma mudança paradigmática um médico e seguir suas prescrições é uma atitude quase
caracterizada por uma orientação crescentemente empírica, que imediata de quem se percebe doente ou sente algo
pela especialização do papel do médico e pela busca de diferente em seu organismo. Antes da Segunda Guerra
um saber racional bastante sofisticado. Todas as medicinas Mundial, o médico era procurado apenas em situações
das sociedades antigas ou tradicionais incluíam elementos consideradas graves. Entretanto, a evolução para a atual
empíricos; por conseguinte, na medicina ocidental também situação de uma sociedade "medicalizada" levou séculos,
é possível notarmos remanescentes de aspectos religiosos. pressupondo a rejeição da visão da doença como mal
Em latim, o termo professio, origem da palavra profissão, incontornável.
designando o exercício da medicina, tem este sentido:
A partir do século XX, a noção de medicalização da
realiza uma professio aquele que afirma a sua fé e emite
sociedade traduz o fato de que o modelo médico,
votos ao assumir o estado eclesiástico ou monacal1.
fortemente marcado pelos conhecimentos psicológicos, se
A doença pode e deve ser definida também em termos impôs na definição e no tratamento de outros numerosos
sociais, porque cada sociedade reconhece doenças problemas sociais e públicos contemporâneos. Conrad e
específicas. As sociedades sempre buscaram desenvolver Schneider5 mostraram como a designação de práticas
respostas diferentes ao infortúnio que constitui a doença e compreendendo: alcoolismo, homossexualidade, doenças
as variadas formas de atendimento e tratamento dos mentais, abusos de crianças, drogas, dentre outras, foram
doentes. Entretanto, foi somente nas sociedades modernas transferidas, ao longo do tempo, de condenações
que a doença acabou dando lugar à emergência de religiosas ou criminais para registros médicos. Assim, o que
papéis, de profissões e instituições extremamente era considerado ato condenável (badness) passou a ser
diversificadas e complexas, como os da medicina científica. considerado como doença (sickness).

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Foi desta forma que o saber médico conquistou valor atribuem uma doença, geralmente chamada de
normativo diante dos demais setores, cada vez mais dependência química, àqueles que muitas vezes fazem
variados, da vida individual e coletiva, definindo e apenas um uso eventual de substâncias psicoativas,
avaliando não somente questões referentes à saúde física, gerando uma intervenção na vida destes sujeitos, que
mas também aos problemas sociais. Esta situação, acabam sendo considerados desviantes ou problemáticos
permeada pelo ponto de vista das relações entre os por não se adequarem a certa normalidade subjetivada
médicos e os pacientes individuais, produziu como pelos próprios médicos ou psiquiatras, e legitimada pelo
consequência a concepção de que será o médico quem poder que estes profissionais detêm.
definirá que necessidades do doente será possível e
Quando se diagnostica que uma pessoa tem problemas
legítimo responder. Entretanto, foi exatamente esta
decorrentes do uso abusivo de drogas, percebe-se que a
diferença entre os saberes e as competências
mensuração feita nesta imputação decorre, em grande
especializadas que se transformaram, concomitantemente,
parte, de forma subjetiva, na qual o médico atribuiu um
em distanciamento e em dominação sobre os corpos.
problema ao sujeito a partir do que considera
Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto (subjetivamente) simples uso ou uso abusivo e problemático.
de investimentos tão imperiosos e urgentes: em qualquer Desta forma podemos reconhecer enormes equívocos,
sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito pautados na criação de possíveis problemas onde de fato
apertados, que lhe impõem limitações, proibições e não existem. Os limites das medidas que distinguem um
obrigações. Muitas coisas, entretanto, são novas nessas simples uso eventual de um uso abusivo estão centradas no
técnicas. A escala, em primeiro lugar, não se trata de cuidar poder médico ou psiquiátrico, que pressupõe a
do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma subjetividade do profissional da medicina no diagnóstico
unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; da doença chamada de dependência química.
de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo
De forma alguma estamos querendo dizer que não
ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, atitude,
exista uso problemático de substâncias psicoativas.
rapidez: poder infinitésima sobre o corpo ativo5.
Concordamos plenamente que existem numerosos casos
de descontrole no uso de tais substâncias. O que estamos
A NOÇÃO DE USO ABUSIVO DE DROGAS NA afirmando é que o termo "uso abusivo de drogas" possui
MEDICINA uma enorme lacuna, na medida em que se utiliza da
A questão referente ao uso abusivo de substâncias subjetividade ou do juízo de valor do profissional da
psicoativas tem sido assumida pela medicina como um medicina – do médico ou psiquiátrico – na mensuração do
problema médico desde o século passado, reforçando a que seria um simples uso eventual, de um uso abusivo de
idéia de controle sobre os corpos, conforme as análises de drogas e assim, uma patologia. Além disso, este termo se
Foucault10. Apesar do desenvolvimento de teorias mostra insuficiente porque, de fato, não apresenta
explicativas e de práticas direcionadas tanto ao tratamento necessariamente os sintomas sentidos pelos indivíduos,
dos indivíduos dependentes como à abordagem da mas sim as representações que os médicos ou os
minimização dos danos provocados pelo uso de tais psiquiatras fazem em suas análises subjetivas.
substâncias, percebemos a hegemonia do discurso médico
Em toda cultura, em um determinado momento,
e psiquiátrico, que propõe a negação da autonomia dos
privilegia-se um certo número de representações (que
sujeitos em detrimento da idéia de cura; por mais que haja
podem ser chamadas de dominantes), em detrimento de
tentativas de compreender os fenômenos relacionados ao
outras representações que nem por isso estão ausentes, mas
uso de drogas por meio de modelos teóricos ligados às
são marginalizadas com relação às precedentes e, algumas
questões culturais, por exemplo, percebemos que a
delas, descartadas (definitiva ou momentaneamente), ou
abordagem médica e psiquiátrica, muitas vezes, acaba
seja, eliminadas do campo social atual. Toda sociedade,
considerando, equivocadamente, o simples uso das
toda época é obcecada pelo que considera causa por
substâncias psicoativas como um problema. Esta relação
excelência da doença13.
de poder imposta pela medicina científica moderna se
amplia na medida em que há uma imposição de juízos de Como em todas as sociedades, as doenças, e
valor do profissional médico ou psiquiatra sobre o principalmente algumas delas, são interpretadas de
chamado uso abusivo. maneira específica – estando fortemente presente no
Ao diagnosticar uma doença, enfim, o médico imaginário coletivo, como a própria associação entre uso e
simplesmente decodifica um estado orgânico. Ao declarar dependência química nas sociedades modernas. A própria
que uma pessoa está doente, ele faz um julgamento que noção de doença serve também de suporte para a
transcende seu estado orgânico e que, repercutindo sobre expressão de crenças e valores mais amplos. Assim, a
sua identidade, lhe determina um lugar na sociedade. Pelo interpretação coletiva da doença efetua-se sempre em
estudo das instituições e profissões médicas e de seu termos que envolvem a sociedade, suas regras e a visão
funcionamento, podemos perceber, portanto, como uma que dela temos. É desta forma que a concepção que temos
ciência, colocada diariamente em prática por profissionais, de saúde e doença manifesta a nossa relação com a ordem
interfere na sociedade1. social. Por isso, cada vez mais percebemos uma enorme
dificuldade em desconstruir os paradigmas tão
Assim, a utilização do termo "uso abusivo de drogas" consolidados da medicina científica moderna, que
acaba sendo bastante problemática na medida em que reivindicam e possuem a posição de detenção da maior
percebemos que o juízo de valor está fortemente presente verdade científica, no que se refere às questões sobre os
nas práticas e diagnósticos propostos pelos médicos, que usos e/ou abusos de substâncias psicoativas.

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Bourdieu3 acredita que a inovação científica não e a explicação deve levar em conta, simultaneamente, esses
ocorre sem rupturas sociais com os pressupostos em vigor dois aspectos. Entretanto, o peso relativo de um e de outro
(sempre correlativos de prerrogativas e de privilégios). O varia muito segundo o campo e a posição no campo: quanto
capital científico "puro", ainda que esteja em conformidade mais os campos são heterônomos, maior é a defasagem
com a imagem ideal que o campo quer ter e dar de si entre a estrutura de distribuição no campo dos poderes não-
próprio, é, pelo menos na fase de acumulação inicial, mais específicos (políticos); por um lado, e por outro, a estrutura
exposto à contestação e à crítica, "controversial", como da distribuição dos poderes específicos – o reconhecimento,
dizem os anglo-saxões, do que o capital científico o prestígio científico3.
institucionalizado, e pode ocorrer, em algumas disciplinas,
que os grandes inovadores (Braudel, Lévi-Strauss, Dumézil, CONCLUSÃO
por exemplo, no caso das ciências sociais) sejam
Na atual sociedade ocidental contemporânea
marcados por estigmas de heresia violentamente
percebemos que as políticas de saúde têm sido orientadas
combatidos pela instituição.
pela medicina científica moderna no sentido de difundir a
Assim como é perceptível que, nas sociedades onde informação na busca por mudanças de comportamento
prevalece a medicina científica moderna, o saber médico dos indivíduos em matéria de alimentação e
transmite a todos os conceitos e as explicações sobre a principalmente no consumo de álcool, cigarro e demais
natureza e as causas de grande parte de seus problemas, substâncias psicoativas tanto lícitas quanto ilícitas.
também se torna perceptível o fato de que as Entretanto, percebemos que tais mudanças se tornam
representações criadas acerca da dependência química objetivos bastante difíceis, além de serem violadores da
imputadas ao usuário eventual de drogas poderão individualidade das pessoas, na medida em que impõe um
produzir estigmas que possivelmente serão mais comportamento "normal" ou adequado e um
prejudiciais do que o próprio uso de tais substâncias. comportamento "desviante" ou inadequado.
Desta forma, o poder médico ou psiquiátrico poderá Regras sociais são criações de grupos sociais
reforçar estigmas que possivelmente produzirão efeitos específicos. As sociedades modernas não constituem
mais danosos à saúde social do que à saúde física dos organizações simples em que todos concordam quanto ao
sujeitos. que são as regras e como devem ser aplicadas em
Para Goffman11, é provável que o indivíduo situações específicas. São, ao contrário, altamente
estigmatizado sinta que está "em exibição", e leve sua diferenciadas ao longo de linhas de classe social, linhas
autoconsciência e controle sobre a impressão que está étnicas, linhas ocupacionais e linhas culturais. Esses
causando a extremos e áreas de conduta que supõe que os grupos não precisam partilhar as mesmas regras e, de fato,
demais não alcançam. Além disso, o indivíduo frequentemente não o fazem. Os problemas que eles
estigmatizado também poderá sentir que o esquema usual enfrentam ao lidar com o seu ambiente, a história e as
que utilizava para a interpretação de acontecimentos tradições que carregam consigo, todos conduzem a
diários se encontrasse enfraquecido. Seus menores atos, evolução de diferentes conjuntos de regras. À medida que
ele sente, podem ser avaliados como sinais de as regras de vários grupos se entrechocam e contradizem,
capacidades notáveis e extraordinárias nessas haverá desacordo quanto ao tipo de comportamento
circunstâncias11. apropriado em qualquer situação dada2.
Por mais que as abordagens das ciências humanas e As imposições destes princípios permeados pela ideia
sociais busquem questionar não somente o poderio da de normalidade imposta pelas regras da medicina
medicina científica moderna no que se refere à concepção científica moderna acabam por culpabilizar os próprios
de dependência química apenas como doença – indivíduos pelos comportamentos prejudiciais à sua saúde,
desconsiderando muitas vezes aspectos absolutamente violando a liberdade de escolha das pessoas. Contudo,
relevantes, tais como as práticas culturais do uso de temos visto que o maior interesse desta ciência, que tem
substâncias psicoativas, por exemplo – mas também a sido legitimado pelo poder médico e psiquiátrico, é a
idéia de que se deve ampliar a longevidade da vida, longevidade da vida das pessoas e não a qualidade da
deixando para segundo plano a qualidade desta vida destas. Isso acaba nos demonstrando que estamos
longevidade, percebemos a enorme dificuldade de diante de uma ausência absoluta de autonomia, situação
superação do conflito entre o poder médico e psiquiátrico bastante perceptível já que as nossas vidas acabam sendo
e as interpretações culturais. controladas contemporaneamente pelo poder médico e
psiquiátrico através das imposições de estilos de vida
Foucault8 não propõe o conflito de uma medicina pautados na subjetividade destes profissionais que, além
contra outra, ou contra a medicina, por uma ausência de de prescreverem os medicamentos que acham mais
medicina. O que busca é extrair da espessura do discurso adequados para o tratamento das doenças físicas,
as condições de sua história. O que conta nas coisas ditas prescrevem normalidades na busca do tratamento do que
pelas pessoas não é tanto o que teriam pensado aquém ou subjetivamente consideram "doenças sociais".
além delas, mas o que desde o princípio as sistematiza,
tornando-as, pelo tempo afora, infinitivamente acessíveis a Portanto, quando a política se torna biopolítica e toma
novos discursos e abertas à tarefa de transformá-los. a saúde e, por extensão, a vida como objeto de
intervenção preventiva total, priva-a de sua dimensão de
É importante entendermos que estes conflitos intelectuais abertura, restringindo-a ao ditame do privilégio à
são também, sempre, de algum aspecto, conflitos de poder. longevidade biológica. Os mecanismos de proteção e
Toda estratégia de um erudito comporta, ao mesmo tempo, preservação da saúde passam a consistir na negação da
uma dimensão política (específica) e uma dimensão científica, vida e na sustentação da sobrevida. Para viver muito tempo,

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é imprescindível a vigilância extensiva e normalizadora que paradoxal da sentença e da condenação culposa sem
acaba impedindo a possibilidade de transcendência. Viver delito como estratégia de afastamento dos riscos à
sob a égide biopolítica é perpetuar a vida através do sobrevida, que, para ser mantida sob esta forma, passa a
sacrifício existencial do ser vivente, reduzindo-o ao âmbito ser achatada aos limites somáticos ao preço da negação do
biológico. Na saúde persecutória, vive-se sob o primado mais humano que há na vida4.

Drug abuse: from subjectivity to legitimacy through psychiatric discourse


ABSTRACT
Drug abuse has been considered a medical issue by practitioners of medicine since the 20th century. Several explanatory
theories and practices directed at both the treatment of addicted individuals and the minimization of the damage caused by
the use of such substances have been developed. However, medical discourse is still dominated by the theory that the mere
use of psychoactive substances a problem, even though there have been several attempts to understand the phenomena
related to the use of drugs through theoretical models associated with cultural issues. The views imposed by modern
medicine continue to expand because of value judgments based on the discourse on drug abuse. In this paper, we analyze
the impositions of the medical discourses on other fields of knowledge, including the social sciences and humanities,
regarding the relationship between psychoactive substance use (cultural practices) and addiction (disease). We advance a
thesis that the examination of drug use can and must be focused from other points of view that do not reduce the issue to the
assessment of the disease but that rather analyze the relevant social and cultural issues.
Keywords: Substance-Related Disorders; Street Drugs.

El abuso de drogas: de la subjetividad a la legitimación a través del poder psiquiátrico


RESUMEN
La cuestión del uso excesivo de drogas ha sido considerada por la medicina como un problema médico desde el siglo
pasado. A pesar del desarrollo de teorías explicativas y prácticas dirigidas tanto al tratamiento de personas adictas, como
al planteamiento que reduce al mínimo los daños causados por el uso de dichas sustancias, se observa que predomina el
discurso médico. Aunque haya intentos de comprender los fenómenos relacionados con el uso de las drogas mediante
modelos teóricos relacionados con cuestiones culturales, por ejemplo, vemos que el enfoque médico, a menudo
erróneamente, acaba considerando el simple uso de sustancias psicoactivas como un problema. Esta relación de poder
impuesta por la medicina moderna se amplía a medida que se impone un juicio de valor regido por el discurso referente al
llamado uso excesivo de drogas. En este trabajo se desarrolla un análisis sobre las imposiciones de los discursos médicos a
los demás campos del conocimiento, entre ellas las ciencias sociales y humanas, en cuanto a la relación entre el consumo
de sustancias psicoativas (práctica cultural) y la adicción química (enfermedad). Así, desarrollamos la tesis de que el uso de
drogas puede y debe analizarse desde otros puntos de vista distintos, que no lo reduzcan a la óptica de la enfermedad,
pero a procesos de creación de sociabilidad.
Palabras clave: Trastornos Relacionados con Sustancias; Drogas Ilícitas.

REFERÊNCIAS 8 Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro:


1 Adam P, Herzlich C. Sociologia da doença e da Forense Universitária; 2004.
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Recebido em / Received / Recibido en: 27/5/2009
Aceito em / Accepted / Aceito en: 14/10/2009

32 Rev Pan-Amaz Saude 2010; 1(1):27-32

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