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Ansiedade Cultural - Rafael López Pedraza
Ansiedade Cultural - Rafael López Pedraza
Rafael López-Pedraza
Amor e psique
Lopez-Pedraza, Rafael
Ansiedade cultural / Rafael Lopez-Pedraza , [tradução Roberto Cirani] — São Paulo
Paulus, 1997 — (Amor e psique)
Título original Ansiedad cultural
Bibliografia
ISBN 85-349-0835-4
1 Ansiedade — Aspectos sociais 2 Arquétipo (Psicologia) 3 Mito — Aspectos
psicológicos 4 Psicanálise e literatura I Título II Série
96-3242 CDD-809 93355
índices para catálogo sistemático
1 Psicanálise e literatura 809 93355
Título original
Ansiedad cultural
© Rafael López-Pedraza, Venezuela, 1980
Tradução
© PAU LUS-1997
Léon Bonaventure
Agradecimentos
PREFÁCIO
tive a linguagem dos ensaios tão simples quanto possível, às vezes até mesmo
coloquial, para evitar o jargão das escolas de psicologia e a semântica junguiana. Assim
fazendo, penso, propiciei acesso mais fácil às imagens com as quais estava tratando.
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dos da psicologia dos arquétipos, já que representa para mim um aspecto muito
importante e ainda não plenamente explorado da natureza humana. Para tal propósito
tomarei algumas das idéias que apresentei em meus seminários sobre o titânico.
Parece que nunca houve um culto aos Titãs. Os tempos titânicos podem ser
visualizados como um período de transição entre o homem primitivo e o homem culto,
civilizado. Um período durante o qual não existiam nem o ritual, nem o culto do homem
primitivo, nem a imaginação antropomórfica bem definida do homem altamente culto e
religioso. Como todos temos complexos primitivos dentro de nós, que foram bem
estudados pela psicologia junguiana, todos também devemos ter, implicitamente, um
nível titânico na psique: os complexos titânicos, ainda que não tenham sido tão bem
estudados. Uma psicologia mais diferenciada desse nível titânico ainda aguarda o seu
estudo. Existem personalidades nas quais o titânico parece ser predominante e,
acredito, existem comportamentos estranhos e patologias que só podem ser avaliados
em termos de titanismo, algo a que me referirei com mais detalhes no que se sucede.
Estou convencido de que a psicologia do titânico é sumamente importante, em particular
se aceitarmos que esse ingrediente se encontra em todos nós.
Antes de tudo, seja-me permitido clarificar um pouco o campo mitológico em que
reside a figura que iremos enfocar. Mas, a fim de limpar o terreno para obter uma idéia
mais clara do titânico, será necessário observar o que não é titânico. Os Titãs pertencem
ao tempo mitológico de Crono, época da primeira e segunda geração de deuses. Foi o
tempo anterior à guerra de Zeus contra seus progenitores titânicos, que originou uma
nova ordem, um novo ritual, uma nova religião, uma nova cultura e u mu nova
civilização. A era de Zeus provocou uma diferencia-
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qual o homem ocidental pode extrair inesgotavelmente aquilo com que se educar
e recriar a alma. 4
Hòlderlin escreveu: ”Cheio de méritos, mas poeticamente, o homem habita a
terra”.5 Com essas palavras, o poeta nos diz que nossa educação hoje em dia contém o
quo o homem faz tanto por mérito como por intervenção poética. E para refletir sobre a
imagem que irei elaborar, também necessitaremos tanto de mérito como de poesia.
Mas retornemos aos Titãs. Desafortunadamente é muito pouco o que sabemos
sobre eles. A Títanomaquia e dois terços da trilogia de Esquilo sobre Prometeu se
perderam, mas, para os fins que aqui perseguimos, os estudiosos de mitologia deram-
nos uma imagem adequada da antiga raça de deuses. Eis o que diz Kerényi sobre os
Titãs:
Os relatos sobre Titãs são sobre deuses que pertencem a um passado tão remoto
que os conhecemos tão unicamente a partir de histórias de um tipo particular, e só
exercendo uma função particular. O nome Titã, desde os tempos mais remotos, foi
profundamente associado com a divindade do Sol, e parece ter sido originalmente o
título supremo de seres que, com efeito, eram deuses celestiais, mas deuses muito
antigos, ainda selvagens e não sujeitos a lei alguma. 6
Kerényi nos dá um quadro geral da psicologia dos Titãs: não existem leis, nem
ordem, nem limites. Em sua
¹Educar a alma constitui a preocupação de muitos analistas junguianos da atual
geração. O fazer a alma é um dos numerosos temas dos escritos de James Hillman. Veja-
se particularmente Revisioning Psychology, Harper Colophon Hooks, Nova Iorque, 1977.
Também o excelente escrito de Robert Sardello, Educating with Soul, publicado por The
Center for Civic Leadership, Thi’ University of Dallas, Irving, Texas.
5
Tirado de Martin Heidegger, Hölderling e a essência da poesia, trad. Juan David
García Bacca, Universidade dos Andes, Merida, 1968, p. 15.
6
Carl Kerényi, The Gods of the Greeks, trad. Norman Cameron, Thames mui and
Hudson, Londres, 1976, p. 20.
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Titãs são personificados, representados como formas, o que, talvez, nos permita
ampliar nossa visão do antropomorfismo limítrofe (borderline). Pessoalmente prefiro
visualizá-los como figuras mitológicas que representam mimetismo e excesso, já que
não estão contidos dentro das configurações arquetípicas. Para se ter uma idéia desse
mimetismo, deste jargão e deste excesso, é preciso ter um preparo no estudo dos
arquétipos o mais completo possível. Só tendo um conhecimento das formas
arquetípicas bem definidas, como pano de fundo, poderemos ter idéia da natureza
daquilo que, por definição, carece de forma na natureza humana.
Kerényi escreveu seu Prometeu em 1946, justamente após a Segunda Guerra
Mundial, quando, segundo parece, o homem começou a se dar conta de certos aspectos
de si mesmo até então desconhecidos, como se a guerra o tivesse feito refletir sobre
partes alienadas de si mesmo. A própria literatura, desde O estrangeiro de Camus,
publicado durante a guerra (1942), até A laranja mecânica de Anthony Burgess (1962),
nos confirma essa impressão.14 Relaciono o que Camus e Burgess expressa-ram em
seus romances, em termos de mitologia e psicologia, com o aspecto titânico que
estamos procurando no homem: nem leis, nem ordem, nem limites; só excesso. Uma vez
mais, a literatura nos abriu as portas para uma exploração (que nós, em psicologia, só
estamos começando) daqueles aspectos no homem em que espreita o Titã. Mas,
seguindo novamente Kerényi, devemos aceitar que na vida humana o titânico se
expressa em excessos, em desmedidas. Neste sentido, o titânico poderia ser, se não um
arquétipo, pelo menos uma função particular da natureza humana.
14
Ao discutir as manifestações modernas do titânico, desejaria manter-me dentro
dos conteúdos de O estrangeiro e A laranja mecânica.
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pedra de suas celas; mas o estrangeiro respondeu que tentou ver o rosto de sua
noiva, Maria, sem conseguir, e isso nos dá uma base para dizer que Maria, sua noiva,
não existe nele como imagem interior.
A laranja mecânica, ampliando o tema do titânico implícito no romance de Camus,
expressa o total excesso em todas as áreas da existência: golpes, assassínios,
violações etc. Burgess nos dá um quadro de uma sociedade que vive em excessos
titânicos: ”selvagem e não submetida a leis”, como disse Kerényi dos Titãs. A religião se
converteu em simples mimese que o jovem Titã utiliza para o seu próprio interesse. 19 Na
visão que nos dá Burgess, todas as instituições da sociedade estão baseadas no mesmo
excesso titânico. E a psiquiatria, como redentora, com sua tecnologia prometéica, seu
zelo missionário, trata de resolver o enigma titânico em benefício do pobre Titã, da
sociedade e da humanidade como um todo: Prometeu, um Titã mais sofisticado, aparece
de muitas formas, porém a mais próxima de nosso tema é sua aparição como redentor
na figura de um psiquiatra tecnocrata tratando de salvar o Titã. 20
A psique não aprende do excesso titânico. Nesse sentido, devemos estabelecer
uma clara distinção entre o sofrimento, a humilhação, a dor, as feridas da psique — a
partir do que se dá a aprendizagem psíquica, o conhecimento e a formação da alma ou a
iniciação da alma — e o sofrimento repetitivo dos Titãs: esse tédio cotidiano nauseante
do nível existencial de vida; mas ainda que a psique não aprenda nada com isso, deve
tê-lo em conta, deve ser o mais possível consciente de sua existência.
19
Basta pensar nos cultos religiosos, como aquele liderado por Jim Jones, ou
pensar no Titã Menécio, cujo nome significa ”aquele que espera sua pena”, para
visualizar o tipo de zelo religioso que habita o titânico.
20
Talvez devesse mencionar aqui que este excesso titânico não constitui o
interesse exclusivo da psicopatologia. O excesso titânico também tem a ver com o termo
médico stress, mas o interesse médico pelo titânico nos leva muito mais além de nossos
propósitos.
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original, da mesma deusa, a Lua) de modo que ela pudesse sempre encontrá-lo e
beijá-lo em sua caverna.23
Quero que mantenhamos esse quadro de Selene descendo na caverna para fazer
amor com Endímion cada vez que ela deseja, mas mantendo essa imagem tal como é. O
que me interessa é ler a imagem, não sintetizar ou ampliar os seus componentes —
como seria ver a Lua como mãe, a caverna como útero etc. 24
Então, segundo o que nos diz Kerényi, ”Endímion significa ’alguém que se
encontra no interior’, envolvido por sua amada como num traje comum”. 25 Podemos
agora começar a imaginar o que o nome Endímion, ”o que se encontra no interior”, pode
significar. No nível mais óbvio, é bastante comum que se diga de alguém: ”Ah, sim!
Fulano é muito boa pessoa, mas toda sua energia está em seu interior”; ou: ”Parece que
fulano tem muito por dentro, mas não consegue pôr para fora”. Todos temos ouvido
esse tipo de comentário sobre algum amigo ou sobre algum estudante, por exemplo. E
estou certo de que todos podemos recordar algum momento em nossa vida em que
fosse o que fosse que tivéssemos, era só por dentro. E como tivemos de esperar para
que se convertesse em algo mais, à medida que nossa vida ia se desenvolvendo!
Além do significado do nome que nos traduz Kerényi, existe outro nível a partir do
qual podemos refletir sobre Endímion e sua imagem vivendo na caverna com a Lua,
Selene, como amante. Por isso, o amor de Endímion pela Lua — que, apesar de ser uma
titânida, é uma virgem —
23
Ibid., p. 198.
24
Aparece claramente no relato de Kerényi que Selene se reserva o direito d* dar o
primeiro passo em direção a Endímion; o pastor é descrito como recostado
passivamente esperando seus avanços amorosos. Walter Otto acrescenta que é uma
característica das titânidas dar o primeiro passo num encontro erótico,
25
Kerónyi, The Gods of the Greeks, p. 198.
24
O mantém intocável para qualquer outro deus ou deusa, isto é, para outras
possibilidades de vida; ele permanece leal a seu amor pela Lua como Selene.
Poderíamos dizer que Endímion é um precursor de Hipólito, outra figura mitodológica
que amou somente Ártemis: Ártemis se assemelha simbológicamente à Lua, mas já
como uma imagem consiste e bem definida. Endímion está envolvido por sua amada
como num traje comum, o que equivaleria a dizer que ele se mantém virgem. De mais a
mais, acredito podermos ligar excesso interior, tal como aparece na história de Endímion
e da titâbida Selene, como aparece na história de Endímion e da titânida Selene, com um
tipo peculiar de virgindade e com uma patologia, contratando com os Titãs, cujo excesso
é externo.
A imaginação do poeta Licofron foi estimulada a criar uma variante da história de
amor de Endímion. No relato deLícofron, ”o deus Hipnos, o deus alado do sono, se
enamorou de Endímion. Deu ao jovem a capacidade de dormir com os olhos abertos”. 26
Esse relato enriquece enormemente as complexidades de Endímion. Todos nós, creio,
em determinados momentos e muito mais freqüentemente do que pensamos, dormimos
na vida com olhou abertos; trata-se de um estado lunar particular de excesso interior. E
todos podemos recordar aquele longo período de nossa juventude, quando dormíamos
com os olhos abertos, esse estar ”na lua” que desespera a nós mesmos tanto quanto a
quem nos rodeia. Ainda hoje em dia, quando queremos ouvir com atenção uma
conferência interessante, por exemplo, o deus do sono aparece e nos faz dormir um
pouco. Eu mesmo chego a dar uns cochilos de olhos abertos, às vezes, durante os
momentos mais interessantes de minha atividade! Às vezes sucede que a realidade que
temos na nossa frente é tão abrumadora e nos golpeia de tal maneira que, diante de tal
acontecimen-
25
to, ficamos dormindo com os olhos abertos. Há uma retirada para nosso interior
que parece nos proteger da demasiada realidade que existe diante de nós: ”O ser
humano não suporta demasiada realidade”, disse Eliot.
Apolônio, outro poeta alexandrino, relata segundo Kerényi que o sono eterno de
Endímion foi ”um presente de Zeus, que lhe permitiu escolher a sua própria maneira de
morrer: assim Endímion escolheu o sono eterno em lugar da morte”. 27 Neste ponto,
podemos começar a apreciar como esses três relatos da história de Endímion citados
por Kerényi podem nos proporcionar uma percepção da natureza interior dos níveis
psicológicos aos quais estamos aludindo. Nas complexidades que rodeiam Endímion
encontramos, além da Lua, as figuras de Hipnos, Zeus e da Morte. Dos três relatos,
talvez o de Apolônio seja o mais rico e o que propicie uma visão psicológica mais
profunda, posto que Apolônio descreve em Endímion uma condição patológica grave. Na
versão de Apolônio temos um elemento muito profundo: Zeus, o pai eterno, intervém e,
com a presença da Morte, converte a história de Endímion em ”assunto sério”. É como
se a imaginação de Apolônio nos mostrasse Zeus jogando fatalmente com um mortal,
como gostam de fazer os deuses. Zeus dá a Endímion o privilégio de escolher o modo de
sua morte. Este tema da escolha da própria morte obcecou alguns poetas — em
particular alguns românticos, poetas feridos pelos excessos. Pensar em escolher a
própria maneira de morrer pode-se entender como uma inflação titânico-romântica,
unida à fuga da constante reflexão que a morte leva ao longo da vida: o valor da vida que
provém da reflexão sobre a morte. Aqui confrontamos diretamente a patologia de
Endímion, posto que podemos começar a imaginar o mitologema de Endímion
27
Ibid.
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tiguidade poderíamos dizer que tiveram uma inspiração corporal lunática. Foram
capazes de encontrar a si mesmos desde dentro. E é justamente o resgate desse
aspecto corporal, o aspecto psicofísico, que constitui o objetivo deste ensaio.
Na Bibliografia dos mitos gregos na poesia inglesa, de Helen Law, aparece a
recriação poética do mito de Endímion na obra de quarenta e dois poetas, até 1955; é
que para o homem ocidental a poesia é seu corpo psíquico, equivalente ao inconsciente,
um corpo psíquico que foi rechaçado e reprimido por dois milênios de ascese espiritual
cristã. Na poesia do século XX — sem me referir a re-criações poéticas de Endímion —,
Endímion tem aparecido nas formas mais variadas: nas atitudes, nas explorações e nas
visões poéticas de alguns poetas contemporâneos. André Breton, o grande pontífice do
surrealismo, escreveu em 1928:
Agora evoco Robert Desnos na época que aqueles de nós que a conheceram
chamam de a época dos sonhos. Ele ”dorme”, mas escreve e fala. É noite, no estúdio de
minha casa em cima do cabaré do Céu. Fora, alguém grita: ”Entremos, entremos no Gato
Preto!” E Desnos segue vendo o que eu não vejo, o que só vejo à medida que ele me
mostra.29
Como se sabe, os surrealistas, que floresceram durante o período Ventre deux
guerres, estavam vivamente interessados sobre magia, e sua literatura foi impregnada
dessas noções. Mas, acima de tudo, sentiam-se atraídos pelo ”automatismo psíquico”
de Janet. No primeiro dos vários manifestos surrealistas, Breton equiparou o
surrealismo com o automatismo psíquico, e o definiu como ”puro automatismo psíquico
mediante o qual se propõe a expressão, seja verbal ou de outra maneira, do real fun-
29
André Breton, Nadja, Joaquín Mortiz Editor, México, 1963, p. 22.
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Por último, uma linha de outro poeta. Escutemos como o complexo de Endímion
se torna presente em um momento fortuito na caverna de uma cidade moderna, no
homem de hoje em dia:
Ou como, quando um trem subterrâneo, no túnel, se detém demasiado entre duas
estações. E a conversa se anima e cai lentamente no silêncio E por detrás de cada rosto
vês que o vazio mental se aprofunda Deixando só o crescente terror de não ter nada em
que pensar.37
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T. S. Eliot, ”East Coker”, in, Four Quartets, em The Complete Poems and Plays,
Faber and Faber, Londres, 1969, p. 180.
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ANSIEDADE CULTURAL
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uma fraude parte de minha vida. A essência da Bíblia é o monoteismo: o culto a
um só Deus e o ciúmes e a ira desse Deus perante outro deus ou outro culto. Esta
crença impregnou extensamente o mundo em que vivemos: nossas crenças religiosas,
nosso modo de vida, as idéias de nossa cultura, nossa política, as ciências e, por último,
algo igualmente importante, os estudos de psicologia. O monoteísmo está
profundamente arraigado na psicologia de todo ocidental seja qual for sua geografia,
sua condição social ou sua educação.
Assim, a Bíblia, o livro do monoteísmo, ainda que geograficamente alheia ao
homem ocidental, ocupa lugar tão predominante em sua psicologia, que aqueles que
poderiam HIT considerados como os livros mais genuinamente ocidentais se retiraram
para dentro do que chamamos o incociente, ou são importantes para minorias dispersas.
De fato, a Bíblia está em oposição aos livros ocidentais, oposição que se torna evidente
nos livros de mitologia: os livros do politeísmo pagão, os livros de tantos deuses e suas
imagens, a riqueza de tantas formas de vida. A mitologia grega nos oferece a mais
completa lista de imagens jamais se produziu; e ela tem formado o material do tragédia,
as fontes da poesia e da literatura, tem nutrido a vida poeticamente, povoando a terra
com imagens, e tem dado fundamento à filosofia. Dentro disso devemos incluir também
as outras numerosas mitologias do mundo ocidental: as mitologias nórdicas, as
tradições e lendas ocultas dos celtas, as mitologias, lendas e concepções poéticas dos
povos americanos autóctones etc. Estes são os livros que têm a ver com o que, em
psicologia junguiana, chamamos o inconsciente coletivo. Depois os livros que nos falam
das origens da vida do homem sobre a terra e da evolução do homem; esses livros, com
suas estimulantes discussões sobre as raças humanas e o comportamento do homem,
são os que tra-
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tam da história mais antiga e primitiva do homem e os que, com mais humildade,
não dizem que a humanidade é a obra culminante da criação de Deus, mas simplesmente
outra espécie animal em outro nível de evolução; aqui vemos a grande contradição com
relação à criação da Bíblia.
O homem ocidental escreveu muitos livros ao longo de sua história e todos fazem
parte dos atuais estudos da psicologia: livros que atualizam os velhos mitos, que narram
a trama de sua história vivida, em que está também o grande ganho de sua literatura, em
que se revelam aspectos essenciais de sua psique. Todavia, essa riqueza que está no
nível do inconsciente coletivo não se iguala à Bíblia — o livro que nos chegou do Oriente
— porque esta produz um efeito especial: provoca uma identificação com o texto, uma
identificação coletiva; algo que os outros livros não suscitam, e, se alguma identificação
aparece, permanece, em geral, em níveis individuais ou de pequenos grupos.
Na tradição espanhola medieval parece ter existido certa consciência da
identificação provocada pela Bíblia. A Bíblia foi o livro das massas. Na igreja foi mais um
livro de consulta para os eruditos e uma fonte de amplificação para santos e místicos.
Cervantes, no mais importante livro da literatura espanhola, alerta sobre a loucura em
que a leitura demasiado intensa dos livros de cavalaria precipitou Dom Quixote. Eu intuo
nessa consciência uma antiga e complexa tradição que trata de impedir qualquer
literalização da palavra escrita.
Os ocidentais, sobretudo a partir da Reforma, têm feito uma leitura destes contos
bíblicos orientais e reagido de diferentes formas, que vai desde uma tola identificação
até um rechaço hábil ou brusco que provoca um distanciamento do livro. O fato é que a
Bíblia, com seu ingrediente oriental, desconcerta a psicologia ocidental
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James Hillman diz que os últimos trabalhos sobre o monoteísmo judaico foram
feitos por Freud em Moisés e o monoteísmo 6 e por Jung em Resposta a Jó.7 Ao examinar
isso, Hillman transmite de certo modo uma sensação de tédio, implicando que a fonte
judaica está esgotada e que agora a exploração se deslocou para o politeísmo pagão.
Bem, com satisfação acompanhamos esta mudança de rumo, pois
indubitavelmente é ali que se encontrava armazenado todo um tesouro de imagens e
para onde se deslocaram os estudos eruditos da psicologia. Mas não devemos confundir
o trabalho de erudição — sem afastar sua importância e utilidade — com o objetivo do
estudo da psique, o qual, segundo meu modo de ver, consistiria em concebê-lo como
conflito psíquico internalizado.
Podemos realizar numerosos estudos sobre os mitos pagãos e, apesar disso, não
considerarmos a ansiedade gerada na psique por estas duas forças poderosas do
6
O esqueleto dos estudos de psiquiatria e psicologia se apoiou sobretudo nos
conceitos surgidos de observações clínicas empíricas de enfermidades mentais. Desde
o começo do século o símbolo parecia dominar os estudos do inconsciente. O uso que
Freud fez do símbolo, entendido por Jung como signo e sintoma (semiótica),
evidentemente teve origem em seus estudos sobre convenções histéricas no final do
século. Por outro lado, Jung começou seu trabalho psiquiátrico com pacientes
psicóticos, e isso lhe permitiu levar a cabo sua grande descoberta dos símbolos
religiosos no inconsciente desses pacientes. Aqui a palavra símbolo está corretamente
usada, porque o symbolon original significa a união de algo que previamente se dividiu.
E o símbolo está na base de muitas das idéias de Jung sobre os opostos e a
reconciliação dos opostos. Em seu livro Tipos psicológicos, sinto que Jung usava
indiferentemente o símbolo e a imagem, dando-lhes o mesmo valor. Logo foi mais
específico e mais definido ao tratar as imagens primordiais. As imagens se fizeram mais
diferenciadas, proporcionando-nos hoje um campo de exploração mais amplo, no qual
considero que se desenvolve o trabalho psicológico mais apropriado e no qual o
símbolo é considerado atributo da imagem. com a psicoterapia da imagem se abriu uma
nova perspectiva para a histeria; na psicose sentimos que as respostas imaginárias ao
simbolismo inconsciente do paciente propiciam uma melhor terapia. E uma nova
descoberta da imagem nos padecimentos psicossomáticos prove uma aproximação
completamente nova para esses males.
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James Hillman, Re-Visioning Psychology, Harper Colophon Books, Nova Iorque,
1977, p. 226.
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monoteísta e, como disse antes, isso é o que contribui em grande medida para
essa ansiedade cultural que vivemos. Não podemos continuar especulando sobre a
psique, trabalhando para ”fazer alma”, sem ter uma apreciação das complexidades e
ramificações do monoteísmo em nossa psique e em nossa vida.
Para o analista que pode estar interessado em considerar a ambos, o monoteísmo
e o politeísmo, o desafio consistiria em aprender a conhecer melhor a diferença entre a
retórica monoteísta e a retórica politeísta: forjarse uma memória tão abundante quanto
possível de seus diferentes estilos. Aquilo que para um homem do Renascimento era o
resultado de uma ”memória unificada”, 8 para o analista moderno seria uma
diferenciação, através de sua retórica, do material que surge do lado forte e monoteísta
da cultura e do que emana do lado pagão, mais reprimido. Do ponto de vista da
psicologia de hoje, os ganhos do homem renascentista seriam caóticos para o homem
moderno, porque não existe nenhuma diferenciação básica dentro de sua ansiedade
cultural. A arte da psicoterapia consistiria em refletir sobre o paciente a partir desse tipo
de memória, que pode tanto memorizar quanto diferenciar o monoteísmo e o politeísmo,
abrindo-se caminho dentro da ansiedade cultural do paciente, conscientizando o
conflito.
Se nos deslocarmos da identificação com o ponto de vista do ego e irmos para
uma diferenciação do monoteísmo e do politeísmo na psique, poderemos começar a ter
uma idéia de como a culpa, que em nossa cultura se manifesta nos termos de uma forte
identificação, a partir de uma nova distância psicológica, pode agora ser perce-
8
Refere-se à noção de unificação da memória de Giullio Camillo, uma memória
que abarcava a tradição judaico-cristá e o redescobrimento da imaginação paga e
declarava também o desejo do homem renascentista de haver-se com sua ansiedade
cultural. Ver Francis Yates, A arte da memória, F. C. E.
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como uma retórica. A culpa, com suas infinitas variações de sentimentos de culpa
e suas confusões culpabilizadoras, pode ser tratada como uma das retóricas
fundamentais do monoteísmo; de fato, a mais evidente. Quase se poderia afirmar que o
monoteísmo se iguala à culpa. O peso da culpa acarretada pelo cristianismo provém de
uma dominante hebraica, e surge da identificação religiosa com a tradição judaica (a
ansiedade de manter-se dentro das leis da religião): ”no princípio era a culpa”. Agora,
por exemplo, sabemos que no paganismo grego a culpa não era tão importante. Baseio-
me em Nilsson, que fez notar que a culpa era basicamente alheia ao espírito grego. 9 A
culpa se reduzia a assuntos das seitas, as seitas virginais e puritanas pitagóricas e
órficas. A culpa era um assunto sectário — a ansiedade de manter as regras da Moita.
Mas nunca foi aceita pelos gregos em geral, que rechaçavam as idéias de culpa.
com todas as suas variações, a cultura ocidental é uma cultura inconscientemente
culpabilizante e, conseqüentemente, nossa psicologia tem um aspecto fortemente
culpabilizador. Em nossas vidas, podemos detectar as complexidades da culpa quando
atua de maneira autônoma. Todos conhecemos pessoas de muito êxito, refinadas e
cultas, cuja conversação, qualquer seja o tema, sempre cai sob o domínio da culpa.
Existem pessoas que se ajustam para ver os acontecimentos de suas vidas unicamente
através do espectro da culpa; pessoas que posHuem particular destreza para manter a
culpa em primeiro plano, seja nelas mesmas ou nos outros. Para esHns pessoas a
concepção de uma vida que não esteja profundamente impregnada de culpa é algo que
ultrapassa todas as suas possibilidades. Pode-se ver toda uma vida
9
Martin P. Nilsson, A History of Greeks Religion, Clarendon Press, Oxford,
11149, p. 217.
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alquímico por uma alma capaz de suportar essa confusão; uma alma em níveis
mais profundos, assentada sobre um paganismo suíço, céltico, romano, germânico.
A implicação da ansiedade cultural de Jung se faz sentir quando cita Paracelso, ao
dizer: ”... escrevo como pagão ainda que seja cristão”, 11 uma observação que descreve a
ansiedade de muitos homens ao longo da história ocidental. Segundo Jung, a posição
psíquica de ser mais pagão do que cristão contém um sentimento de inferioridade. É a
posição daquele que vive de e para a alma, uma alma que não faz concessões como a de
Joyce ou a de Jung, que não entra em explicações nem conceitualizações. Suponho que
mesmo Jung tinha esse sentimento de inferioridade ao qual fazia alusão. Ele o transmite
em seu desejo de não ter seguidores (”Eu não sou junguiano, eu sou Jung”), em seu
constante eludir a crítica, em seu respeito diante dos complexos dos outros, em sua
conexão com o outro tal como era. Jung nunca viveu na inflação de querer ser o líder. A
resistência que manifestou diante da fundação do Instituto que leva seu nome é bem
conhecida. Sente-se a ansiedade de Jung em seu conflito com o mundo científico tão
alheio à sua alma paga. A noção de Paracelso, de que cada pessoa tem sua estrela,
encontra eco na principal preocupação de Jung: a individuação.
Joyce e Jung se conheciam muito, sofreram e realizaram suas obras sob a
pressão extrema do que gosto de chamar de ansiedade cultural. Ambos tiveram também
essa estranha energia vigorosa que provém do misterioso ingrediente do antigo celta
europeu, e ambos revelam ao
11
CW 13, parágrafo 148. Recomendo a obra de Jung Paracelso como fenômeno
espiritual, para se ter uma compreensão da dupla ansiedade cultural vivida durante o
século XVI: por um lado, o cisma do próprio cristianismo e, por outro, o conflito judaico-
cristão, expresso por Paracelso através do termo ”pagoyum”, um de seus neologismos
favoritos, composto de ”pagão” e da palavra hebraica ”goyim” (parágrafo 148).
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Jung diz que uma das reações à psicopatia é a ira. Ele não culpabilizou os
alemães de maneira manipulardora, tuas com toda a ira honesta e toda a raiva como uma
resposta natural diante do comportamento psicopático. ”Lutando com a sombra”, o
terceiro ensaio, porta um titulo cativante. Se ”Wotan” trata da irrupção de uma figura
arcaica do norte da Europa e ”Depois da catástrofe” (rata do horror do psicopata, então
só podemos nos ’ conectar psiquicamente com o que trata o terceiro ensaio:
a luta com a sombra. Sombra é aquilo que não conhecemos de nós mesmos. É
também um título preciso, em
particular para aqueles de nós que aprendemos a psicologia do estudo da sombra
que, até onde alcança minha vista, é a única maneira de desenvolver o psíquico e aproI u
ndar os estudos da psicologia. A luta com a sombra nos permite sair da visão restrita de
Wotan unicamente como psicose e da catástrofe só como psicopatia. Entre esses dois
extremos — a psicose e a psicopatia — reside a possibilidade psíquica humana de lutar
com a sombra ou, peIo menos, de se dar conta um pouco do que chamamos sombra, o
que não conhecemos da natureza humana.17
Toda essa psicose e toda essa psicopatia tornaram possível a Segunda Guerra
Mundial com seus oitenta milhões de baixas, entre elas seis milhões de judeus. Mas foi o
extermínio desses seis milhões de judeus — o que chamam o holocausto — o que faz da
Segunda Guerra Mundial algo bastante diferente. E o holocausto é central para o lema da
ansiedade cultural, porque sem o extermínio de
17
Comove-nos profundamente a ansiedade cultural de Jung. Ponderando a
maravilha que foi o Renascimento, dizia que se não fosse pelo padre alemão, esse
movimento produziria o mais extraordinário renascimento da cultura antiga. Porém logo
em ”Wotan” argumenta que o protestantismo pode ser a correta resposta cristã. Toda
sua ansiedade cultural reside nesta contradição: sua confusão entre protestantismo e
catolicismo, além de seu desfalecimento Hauptbanhof ao viajar para a Itália.
Desfalecemos presa de ansiedades extremas (Kolb).
55
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57
58
e filosofía ocidental, a maldade permanece dentro das polairidades do bem e do
mal, e este último, em psicologia , é a parte de nossa natureza que não podemos e temos
de rechaçar.
Porém, para nossa sobrevivência pessoal, para a proItecão de nossas almas, a
crueldade é o nível sobre o qual dovomos nos concentrar. É nossa preocupação mais
imediata, um aspecto demasiadamente evidente de nossa vida cotidiana, do mundo e de
nossa prática psicoterapêutica, onde estamos acostumados a ver a crueldade
dissimulada nos diagnósticos e tratamentos psiquiátricos. A crueldade é um elemento
de nossa constante ansiedade cultural. Todos somos cruéis em alguma parte. As
torturas e a.snassínios políticos estão mais perto de nós do que desejaríamos admitir.
Estamos bem longe dos tempos Hocráticos, quando, apesar da crueldade, o interesse
era Eros. Borges foi muito explícito ao dizer que se pode conhecer tudo, até se pode ser
um grande poeta, mas se não se conhece a crueldade não se sabe de nada.
Essa tentativa de diferenciação não suportaria muita crítica, mas o seu propósito é
o de chegar a uma parte da psique em que talvez poderíamos lidar com esse obscuro
aspecto da sombra na natureza humana: concentrar-se na crueldade. Ainda assim,
depois dessa digressão, creio que agora podemos ter melhor perspectiva para
considerar o holocausto como um conflito de sombra, que tem pouco a ver com a
maneira como foi considerado — basicamente um termos de vítimas e perseguidores —,
mas vendo-o melhor como manifestação da crueldade como subproduto da ansiedade
cultural. ”Ser vítima parece ser o destino dos judeus”, 20 disse uma judia moderna, Golda
Meir, a um judeu moderno, Henry Kissinger; como se esse fosse o preço da fantasia de
ser o Povo Eleito. Sua afirmação contém
20
Time, fevereiro de 1982.
59
60
A sombra arrojada por esta loucura de pureza raiai, osta exclusividade, constelou
por sua vez a loucura loinã de pureza racial: a pureza racial, tornando possível o
aparecimento de outra pureza racial. O que a história revelou na Alemanha foi o
assassínio de judeus ”puros” cometido por alemães ”puros”: os puros arianos contra o
povo eleito por Deus. Duas concepções de vida dominadas pela virgindade cuja
conseqüência foi a demência. O impacto de duas psicologias virginais teve por efeito
uma destruição em massa, um massacre. Vítimas e perseguidores, perseguidores e
vítimas, dançando juntos uma dança de morte infernal. E mais, nessa aparição demente
da virgindade jazia o elemento mais destrutivo, ali se centrava aparentemente toda
destruição, quase como se toda essa guerra terrível tivesse sido simples pretexto para
tornar possível o encontro da sombra de suas purezas raciais. 22
Estamos acostumados a não ver loucura na concepção judaica de sua pureza
religiosa e racial. Mas a partir dos estudos de psicologia junguiana, necessariamente
temos de considerá-la como uma loucura. Temos aprendido a ver segundo os termos da
equação junguiana: religião igual a loucura. A partir de nossa religiosidade, sentimos
como a religião é uma rede que pega e retém nossa loucura. Mas Jung também nos
ensinou a ver a religião como o campo do inconsciente em que a sombra está mais à
espreita, em que a ansiedade cultural se torna mais evidente; em outras palavras, o
campo a estudar.
Neste ensaio sugeri uma psicologia do holocausto que, no meu parecer, enriquece
o seu estudo. E uma psicologia bem arraigada no legado de Jung do inconsciente co-
22
Se lemos os documentos da guerra, chegamos à conclusão de que o Alto
Comando nazista estava mais obcecado pelos judeus do que pelo que sucedia IIIIH
frentes de guerra.
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64
REFLEXÕES SOBRE O DUENDE
Nas primeiras linhas de seu escrito sobre o Duende, 1 Garcia Lorca nos transmite,
o que à primeira vista poderia ser uma denúncia, algo que pensado mais tranqüilamente
se torna uma reflexão do ensino, da cultura, da história da cultura; algo que em primeira
ou última instância concerne à alma e à vida do homem moderno. Garcia Lorca começa
seu bate-papo recordando como em seus dez anos de estudante ouviu, no refinado
salão em que agora ele se encontra, ”cerca de mil conferências”, e acrescenta: ”com
desejos de ar e sol, aborreci-me tanto, que ao sair me senti envolvido por uma leve
bruma quase ao ponto de converter-se em uma grande irritação. 2
Sua denúncia é dirigida ao ensino: são essas mil conferências que como roda de
íxion podem se transformar numa repetição infinita e sem sentido. Mil conferências
sobre as quais Garcia Lorca nos faz entrever seu sentimento de irritação, algo que nos
chega como uma maldição — infernal — titânica. Mil conferências que no melhor dos
casos proporciona uma série de informações que jamais serão assimiladas ou vividas e
que, pelo contrá rio, estão ali para aprofundar abismos entre o conhecimento e aquilo
que conhece em nós: a alma.
1
Federico Garcia Lorca, Obras completas, Editorial Aguilar, XIII ed., Madri, 1967.
2
Federico Garcia Lorca, op. cit., p 109.
65
66
que já estava no ambiente, e que era para o homem deste século como uma
necessidade de respirar mais profundamente; mas um respirar que era como tomar ar,
estímuIIIN, imagens, de muito mais além de onde normalmente Hioga o ar aos pulmões.
Pois o que mais nutre nossas necessidades precisa abrir caminho a partir de âmbitos
escasos e marginalizados pela história. O mais precioso vem dali: do corpo.
Os iniciadores destes estudos nos fizeram considerar um problema geográfico
central: eram humanistas que viviam ao norte dos Alpes; alemães imbuídos de uma
tradição que até esse momento, segunda metade do século XIX, não havia dado
importância a Dioniso. E mais, quando por exigência histórica tiveram de estudá-lo,
fixeram-no com os mesmos instrumentos com os quais se formaram na história dos
estudos humanísticos. Entendendo-se por isso considerações históricas, raciais,
geográficas, o que hoje chamamos psicologia transalpina (que eles não tinham presente
em suas consciências como pano de fundo de seus próprios estudos). Filhos e netos de
um protestantismo com fantasias de império, isso os distanciava de posições mais
propícias para vivenciar dentro de si mesmos o que estudavam. Eufóricos, imbuídos de
um poderoso otimismo, começaram a explorar o irracional a partir da mesmíssima
incubadora da vergonha nay.inta; a partir de outra loucura (wotânica) que não tem nada
a ver com a que eles estudavam. De qualquer maneira, das agonias românticas de suas
almas, deixaram
estudos aguçados, uma tradição erudita e, vários deles, algo especialmente
valioso: suas limitações. Walter Otto, por exemplo, nos disse: ”Assim, tentativas
interiores para explicar as orgias da loucura dionisíaca em termos de necessidades
humanas, sejam espirituais, sejam materiais, terminaram em completo fracasso. As
conclusões não apenas inacreditáveis, mas também intoleravel-
67
68
não assentada na cultura, um psicoterapeuta que não tenha uma visão culta da
vida e não saiba que a enfermidade está enraizada nos complexos culturais. Se
aceitamos que enfermidade é essencialmente repressão, repressão de deuses e deusas,
a psicoterapia teria muito a ver com a observação e valorização do aparecimento desses
deuses e deusas, propiciando a reflexão de elementos psíquicos com mundo e vida
próprios. Os deuses pagãos e as formas de vida que personificam são os mais
reprimidos por nossa cultura; por esse motivo, são precisamente eles que propiciam os
movimentos psíquicos mais interiores e profundos.
Se quero falar aqui em repressão, é com um olhar mais profundo, culto, não como
o jargão do século, que entrou em uma linguagem ininteligível do repressivo, e que,
reduzindo-se exclusivamente ao pessoal, coloca-se fora das complexidades histórico-
religiosas da vida culta. Uma psicoterapia centrada em aparatos pessoais não se
aproxima e muito menos penetra nas complexidades da cultura; de qualquer maneira, a
clínica de doentes mentais, o consultório psicoterapêutico, o estudo dos processos
psicossomáticos podem ser observatórios do mundo atual. Assim os consideramos e aí,
às vezes, podemos presenciar a aparição do irracional, saltando as barreiras da
repressão e tratando desesperadamente tornar-se vida.
Garcia Lorca, a partir de seu profundo aborrecimento dessas mil conferências,
propõe outro conhecimento mais revitalizante, por assim dizer, mais de acordo com o
que propõe a psicoterapia e com os estudos da academia (scholarship) moderna. Falo
aqui única e exclusivamente de psicoterapia relacionada aos estudos de psicologia
arquetípica, em que a aprendizagem do psíquico acontece e é possível e em que o
estudo do irracional quer ser visto dentro das normas e dos limites arquetípicos aos
quais pertence.
69
70
Quando E. R. Dodds nos entrega seu precioso tratado sobre o irracional, temos a
impressão de que os campos da psicologia e da cultura se aproximam, de que a
geografia se torna mais acessível e de que o scholar se aproxima mais intuitivamente do
estudo do irracional, respaldando-nos e indiretamente aproximando-nos mais ainda
desse canto do mundo, Andaluzia, lugar de onde Lorca nos transmite o magistral legado
de seu ensaio sobre a Teoria e jogo do Duende.
71
com uma visão mais acertada e mais profunda, com urgências históricas e
interesses que transcendem o âmbito das universidades. E se o ensaio de Lorca é uma
obra fundamental, ele o será mais ainda se considerarmos certo que grande parte das
aborrecidíssimas mil conferências que ele denuncia nas primeiras linhas de seu escrito
versa sobre o tema da criatividade, que se presta às especulações e divagações de uma
subjetividade que não pertencem nem aos deuses nem ao daimon; puerilidades que
tratam de profetizar gênios criadores: histerias aceitas como revelações divinas. É uma
criatividade concebida através do suor titânico, dando voltas no mesmo lugar como as
mil conferências já citadas, e que na maioria terminam em cansaço não reconhecido, um
breakdown irresgatável; mas se o que se estabelece hoje é ensinar, educar com alma, a
criatividade se iguala a gerar a alma. Já vimos o ensaio de Lorca como uma obra
fundamental, como uma fonte de referência que nos inicia em novos estudos,
insinuando que devemos estudar os mesmos tratados, mas aproximando-nos deles com
outra visão, visão que está em nós mas que foi encoberta por milênios. Chegar até esse
canto de Andaluzia, o ambiente de Lorca, e ter a sorte de sentir o Duende, é como ir a um
reservoir das velhas iniciações mediterrâneas, onde o iniciático do Duende se conjura a
passos de ritual que não pode ser aprendido.
72
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nha direito. Hoje em dia essa arte não está em voga; com isso não quero dizer que
no dia de amanhã ela não recupere o que lhe pertence, porque perfilar-se, inclinar-se
sobre o touro na distância exata, com o olhar em seu cangote, e fazendo a cruz cravar a
espada em grande estilo e sair com dignidade, lentamente, pela lateral do touro, com o
chifre a milímetros do corpo, é algo que desafia qualquer concepção de tempo e espaço
que sejamos capazes de imaginar. Uma arte viva e um reativar-se a imagem primordial
da morte do touro: a missa primordial. Há a possibilidade de que reapareça o ritual em
sua essência, que, como disse dom Luis, vejamos com nossos próprios olhos como a
espada vai entrando no lugar exato, no cangote do touro, com uma lentidão admirável e
que então o Duende apareça. Mas todos sentimos que a morte do touro na arena vai
muito além do virtuosismo de um bom matador num momento dado. Existem touros que
morrem na arena e, enquanto estão morrendo, nesse momento de agonia entre a
estocada final e a morte, há um tempo justo e um temple, e um espaço que move nosso
sentir, pois — por que não dizer? — existem touros que morrem de maneira magnífica,
como se estivessem dando uma lição do morrer para a arena inteira.
Como já dissemos, hoje em dia é difícil ou quase impossível que apareça o
Duende na estocada; todavia, para dar uma idéia ao leitor, podemos trazer como
referência os comentários que o grande tratadista da arte de tourear, dom José Maria de
Cossío, nos deixou em sua famosa enciclopédia Los toros. 10 Sobre Diego Mazquiarán
”Fortuna”, um grande artista do volapié nos tempos de Lorca, ele nos conta:
”Indubitavelmente, Diego Mazquiarán ’Fortuna’ é um dos bons matadores que marca e
há de marcar a história da arte de tourear. É talvez o melhor de
10
José Maria de Cossío, Los toros, 6a ed. Ed. Espasa-Calpe, Madri, 1969.
74
sua época ou o mais importante dela; época que coincide quase totalmente com a
época gloriosa de dois colossos, Joselito e Belmonte. ’Fortuna’ foi um estilista, um
virtuoso da estocada a volapié. Dominava e executava os movimentos dessa arte com a
maior perfeição. Marcava todos os tempos dela como talvez ninguém o tenha feito.
Colocava-se a matar na distância que pediam as qualidades do touro, mostra indubitável
de seu perfeito conhecimento dessa arte, já que muitos matadores, que gozam de bom
cartaz como matadores que são, tiveram o defeito de se colocarem sempre na mesma
distância — longe ou perto — no momento supremo. Tudo isso, e seu tipo, tornava esse
momento uma beleza e uma altivez insuperável, motivando as delirantes ovações que
tanto lhe ofereciam”.11 Consideremos o momento em que o toureiro entra para matar
como marco de referência propiciatório para o aparecimento do Duende. Como já disse,
isso quase desapareceu nos momentos atuais; mas o que pode nos acontecer hoje é
outro aparecimento do Duende nos touros tal como se refere Lorca. Em 9 de setembro
de 1979, na Plaza de Ias Ventas de Madri, José Luis Vazquez, filho do matador de mesmo
nome, fazia uma primeira aparição como matador de novilhos. Lançou-se com sua capa
em seu primeiro touro e lhe deu seis verônicas e meia. De pronto me senti suspenso no
ar, com o rosto inundado de lágrimas; mole, parei sentindo um não sei o quê. Não
recordo se gritei, mas o que sei é que quando voltei a praça inteira parecia que
compartilhava do mesmo delírio; velhos aficcionados ao meu redor se entregavam ao
mesmo frenesi com seus rostos também inundados de lágrimas. O Duende havia feito
sua aparição nessa série de verônicas que não se pode definir de nenhuma maneira. No
dia seguinte o cronista se reportava ao que lhe contou um ve-
11
José Maria de Cossío, op. cit., vol. Ill, p. 575.
75
76
essência. É também algo que podemos sentir quando, às vezes, ouvimos outra
música que nos apetece por ser dionisíaca em sua essência, quando o cantor de blues
ou de jazz ou os coros dos spirituals cantam com os sons negros a que se refere Lorca,
e com um temple ajustado à lentidão que lhes correspondem, transmitindo-nos assim
sua emoção e seu Duende. Temple é nervo central e seu aparecimento em psicoterapia
nos assinala constelações dionisíacas, fala-nos claro do psíquico em movimento interior
e da constelação do corpo dionisíaco, ainda mais se sabemos e aceitamos que a
tradição assimilou Dioniso e seu par Ariadne com o par Eros-Psique. Assim, quando em
psicoterapia há uns segundos de temple entre paciente e psicoterapeuta, estes nutrem
mais, são mais importantes e falam mais à psique do que todo o resto da hora de
interpretações redutivas, amplificações inflacionárias e infinitas associações. Porém os
taurinos já sabem disso e sobretudo essa minoria que vai às arenas para ver se
acontece o milagre desses segundos inefáveis. E mais: para referir-se a isso, usam
como metáfora o atributo simbólico mais próximo à Psique (o frasco de perfume). Esse
tipo de aficcionado aos touros pode se contentar com muito pouco, e o seu usual
comentário depois desses instantes de embriaguez psíquica que justificam todos os
seus zelos taurinos é: ”o frasco se destampou”. É que as essências do psíquico
penetram pelos sentidos. José Bergamin, poeta e taurino que escreveu um importante
livro sobre touros, sentia a música quieta da tourada. 14
Também havia temple naquelas seis verônicas e meia que deu José Luis Vazquez.
Seis verônicas e meia com temple que tornaram possível o aparecer do Duende e que
tocaram o Duende dos espectadores e do velho, que se sentiu reviver.
14
José Bergamín, La música callada dei toreo, 3 ° ed., Ed. Turner, Madri, 1985.
77
O aparecimento do Duende como nos traz Lorca, ou como eu pretendi explicar
com a imagem anterior e com as que se seguem, é o aparecer explosivo, expansivo,
aberto, e que se dá em casos extremos. Mas creio que náo devemos passar por cima de
outros aparecimentos que quero atribuir ao Duende, pois se dão no mesmo contexto e
correspondem às emoções mais íntimas, privacidades dos que as sentem. E é quando,
tanto nas imagens taurinas como na imagem feita música de flamenco, chegam
sentimentos que nos tocam anteriormente, como se movessem algo em nós,
umedecendo nossos olhos, mas conseguimos manter a compostura. Como dizem os
andaluzes, o que acontece é ”por los bajines”, e acompanhando isso, sentimos que
nossa psique se move e nossa alma vai se forjando. O flamenco nos oferece
possibilidades mais íntimas do que as dajuerga; 15 pode-se ver dois amigos sentados em
uma mesa com uma garrafa de vinho, cantando um para o outro em sussurros... ”por los
bajines”. E isso nos mostra uma imagem muito antiga, muito mediterrânea, da beleza de
um Eros: o diálogo de duas almas tendo por veículo o flamenco, um Eros contido em
seu próprio refúgio. Há imagens na poesia flamenca que podemos associar facilmente
com o sonho. A imagem sucede como no sonho, como se viesse dessa zona
desconhecida de onde vêm os sonhos e chegasse ali onde sonho e imagem poética se
tornam um. Há outro aparecimento do Duende que tampouco podemos deixar de lado; é
quando nos desconcerta: é o que o andaluz chama ”pasmo”. Em tudo isso já sentimos
como se Dioniso fosse dando a mão a Hermes: é uma rajada, um instante irrepresável,
algo como um fantasma que fez sua aparição súbita e se desvanece tal como apareceu.
Da mesma maneira apare-
15
Encontro festivo de várias pessoas, acompanhado de canto, dança e bebidas.
(N. do T.)
78
79
que dom Antonio Chacon, quando a um dos juerguistas ocorreu chamar Manuel
Torre a Andaluzia. Nós imaginamos que Torre chegaria a Madri pelo menos no dia
seguinte. Chegou Manuel Torre àjuerga e sentou-se em um canto para ouvir os outros
juerguistas cantar, até que um deles cantou uma estrofe, e aqui Manuel Torre se
levantou e cantou uma única linha da estrofe e junto com essa linha a loucura do
Duende se apoderou dos presentes. Essa imagem de Torre é semelhante à que nos
passa Lorca do prêmio dado num concurso de dança em Jerez de la Frontera a uma
velha de oitenta anos: ”só pelo fato de levantar os braços, erguer a cabeça e dar um
golpe com o pé sobre o tablado”. Essa imagem nos move a outras direções, pois
evidencia a psique do corpo dionisíaco presente na velhice, e nos ajuda a penetrar
melhor no sentido do baile dos anciãos, Tiresias e Cadmos, em As bacantes de
Eurípedes. com essa imagem, evidencia-se claramente que a psique-corpo dionisíaca
chega à velhice; e mais — e isso confirmaremos adiante —, as mais profundas
complexidades dionisíacas só se desvelam na velhice. Sempre me chamou a atenção o
fato de Eurípedes escrever As bacantes — o testemunho mais expressivo do dionisíaco
— exilado de sua querida Atenas na Macedonia e quase aos oitenta anos.
Por tudo isso, a única coisa a que poderia me referir aqui é ao rito, ao rito
propiciatório do Duende no flamenco. É através dajuerga que se propicia
espontaneamente o suceder da festa. A alma necessita do Duende como algo nutritivo,
mas a alma se nutre do acontecer, do suceder espontâneo. É assim que ajuerga começa:
se bebe e se come e se põe a cantar, move-se de um lugar para outro, encolhe-se e se
impõe aos concorrentes; tudo isso como um rito dionisíaco propiciatório à espera de
que o conjuro, o vinho, a intenção do canto façam aparecer esse minuto de Duende que
revive, que dá sentido ao suceder: ”A
80
chegada do duende pressupõe sempre uma mudança radical nas formas dos
velhos planos, dá sensações de desembaraço totalmente inéditas, com uma qualidade
de rosa recém-criada, de milagre, e chega a produzir um entusiasmo quase religioso”. 17
Tanto no flamenco quanto na tourada esse reviver e a morte não são coisas distantes.
Quando na concepção do Duende se fala de um renascer, de um reviver, a experiência
vivida está conectada com imagens que pertencem especialmente à imagética da morte.
Assim, o renascer, sem esta imagética que nos associa à morte, é inconcebível.
Viver o perigo na tourada ou um canto profundo que nos vem do ”obscuro e
estremecido” faz-nos sentir que a imagem que nos chega procede do âmbito
arquetípico, dali de onde a vida recebe o sentido e revive com a morte. A dança flamenca
em suas acepções mais profundas alude à morte; a imagem, que nos apresenta o
dançarino e a dançarina quando o Duende aparece, fala de um rasgar, de um
desmembramento dionisíaco, da essência da loucura dionisíaca. E aqui já estamos no
âmbito de uma loucura da imagética da morte, que nos ensina a morrer. É dessa forma
que sentimos essas lamúrias, esses prantos, esse rasgar a roupa a que se refere Lorca.
Estão por se explorarem as relações entre loucura dionisíaca e morte; mas
deixemos isso só na referência e, ajustando-nos ao texto de Lorca, sintamos a influência
da imagem, de uma imagem em oposição a essas mil conferências. Isso nunca foi mais
bem dito do que pelo escritor taurino venezuelano Carlos Villalba. Em julho de 1976, o
jornal El Nacional de Caracas publicou magníficos artigos a respeito da morte de
Heidegger, que se ajustam tremendamente ao que trato aqui. Villalba nos diz que dois
chifres de touros falam mais sobre a morte do que
17
Idem, p. 113.
81
toda a obra do filósofo sobre o ser para a morte. Diz com suas palavras que os
filósofos não sabem o que tratam ao falar da morte; que os mestres do ensino, da
aprendizagem e da iniciação da morte são os toureiros: os imaginantes da morte. Pois
uma só imagem nos dirá mais sobre a morte que todos os tratados de filosofia. Também
para Villalba a tourada é um agregado de ”ensino da morte”, e parece que o Duende
rondou suas palavras.
Já no nível de Duende e morte, permito-me apresentar ao leitor uma personagem
que é figura relevante na obra de Lorca. O pranto pela morte de Ignacio Sanchez Mejías 18
é um clássico de nosso século. O público leitor conhece Ignacio Sanchez Mejías através
do grande poema de Lorca, o poema mais importante que se escreveu sobre algo que foi
fonte de inspiração para os poetas, como são os touros e os toureiros. Aproximar-se de
alguns traços da personalidade de Sanchez Mejías, que com sua morte inspirou tal
poema, creio que é de interesse para aproximarmo-nos do lugar em que o Duende e a
morte se roçam. Um pranto feito poema, um poema com Duende e nesse caso com dois
protagonistas: o toureiro que morre e o poeta. Néstor Luján em Historia dei toreo nos
diz: ”Ao chegar à biografia de Ignacio Sanchez Mejías, forçosamente se tem de empregar
um torn distinto do de qualquer outro toureiro que tenha existido. Porque Ignacio
Sanchez Mejías foi sem igual como toureiro e como homem”. 19 Delinear uma
personalidade tão complexa ”como toureiro e como homem”, como é a de Ignacio
Sanchez Mejías, e com a intenção de aproximar o leitor das entranhas de Lorca e das
vivências do Duende não é nada fácil.
18
Idem, p. 537. Brian Vickers, em sua obra Towards Greek Tragedy, p. 88, nos diz:
”It is remarkable how much of Greek Tragedy — and how much of the greatest poetry —
is in essence a lament for the dead”.
19
Néstor Luján, Historia del toreo, Ed. Destino, Barcelona, p. 294.
82
Ignacio Sanchez Mejías nasceu de família rica e foi filho de médico, coisa rara
entre toureiros, pois, salvo raras exceções, eles surgem das classes baixas, ”dos
derrotados sociais”. Lorca chamou Ignacio de ”o bem nascido”. Apesar de ter começado
a tourear desde menino na arena da granja de sua casa, com Joselito, nada mais nada
menos que o maior toureiro de todos os tempos e, com o passar dos anos, seu amigo e
cunhado (Ignacio casou-se com Lola, a irmã menor de Joselito), pode-se dizer que não
nasceu toureiro, no sentido que usualmente se dá a tal palavra. Ele teve de se fazer, teve
de aprender o que aprendeu, e a cada aparecimento na arena foi uma luta contra ele
mesmo e contra um público que o empurrava ao inverossímil. ”Um toureiro mais bruto,
de gesto dionisíaco e de uma temeridade desmandada. Foi um toureiro com autoridade
na praça e de uma vida aventureira e inquieta. Espírito forte e vital, dedicou-se aos
touros porque, no momento sevilhano em que nasceu, a única saída gloriosa e
romântica para um herói era a tourada. Em outro momento talvez tivesse sido um
conquistador, contrabandista ou guerrilheiro...Viveu uma vida de fábula entre os
dançarinos, toureiros e poetas e, além disso, Ignacio foi um dos entusiastas mais
fervorosos e eficazes da magnífica geração de poetas anteriores à Guerra Civil”. 20 Isso já
nos faz entrever uma personalidade que se faz sentir com sua presença, que estimula e
é capaz de mover a alma dos poetas. Grande mecenas do flamenco, protegeu as velhas
dançarinas e conseguiu que readquirissem uma relativa confiança: La Malena, La
Macarrona (imortalizada por Picasso), a velha e estropiada Fernanda voltaram ao
tablado. Sua fazenda era um refúgio do mais puro flamenco, onde se ouvia o último
grande cantor, graças a quem o flamenco se torna mi-
20
Néstor Luján, op. cit.
83
tologia: Manuel Torre. Conta-se que ele fez uma chamada telefônica a Lorca, de
madrugada, para que ouvisse o sapateado da Argentinita. Como escritor, estreou em
Madri em 1928 seu drama Sem razão; e nos diz Cossío: ”O toureiro não aborda um
pequeno tema burguês, tangente mais ou menos ao ambiente taurino, senão que,
voluntariamente, enfrenta um problema de loucura ou razão e se desenvolve
elegantemente entre seus obstáculos”, 21 com o qual o tratadista nos está dizendo que
Ignacio andava cômodo com o irracional. Escreveu também uma comédia, Zayas, que
estreou no mesmo ano em Santander. Como toureiro conviveu com ”os melhores de seu
tempo, isto é, ao lado dos melhores de todos os tempos”. Como bandarilheiro 22 foi
excepcional, genial. Aqui sua personalidade e seu valor apareciam ao máximo: desafiava
as possibilidades, provocava a dificuldade e isso nele era risco e emoção. Ali aparecia
seu Duende aproximando-nos do imaginário da morte. Ignacio Sanchez Mejías, dizem os
que o conheceram e o viram nas touradas, ”não reconheceu o perigo”, como se a
equação perigo-morte não existisse para ele. Hemingway, que o conheceu, disse-nos
que um ano antes de ele morrer os ciganos flamencos de ”Villarosa” de Madri intuíam a
morte que ele levava dentro de si. Quando seu filho quis ser toureiro, ele se enfureceu e
disse: ”O único que entra nesta casa morto por chifres de touro sou eu”. Isso é para mim
suficiente para traçar as linhas de uma personalidade, mas também para refletir o
dionisíaco a partir de seus extremos mais exaltados e vitais.
Garcia Lorca também era dionisíaco. O mundo em que se ajustava era o dos
poetas, toureiros e flamencos. Lorca era poeta, músico, homem de teatro. Seu talento se
21
José Maria de Cossío, op. cit., p. 875.
22
Bandarilheiro: toureiro que clava dardos no touro. (N. do T.)
84
85
Isso foi dito por Ortega y Gasset que, quando ia aos touros, dizia: ”you ver como
anda a Espanha”. Eu prefiro a loucura que expresso com isso às outras loucuras com
que tem sido vista a Guerra Civil Espanhola, pois não necessitamos pular fora da
interioridade de nossa psique nem nos dividir em frações para referir-nos aos
acontecimentos do mundo nem necessitamos tomar partido para nos expressar. A
maldição de tomar partido está em optar e concordar com uma loucura de fácil acesso
(loucura maldita, titânica), a difícil é a outra...
Recordemos agora as primeiras linhas do ensaio sobre o Duende, para mim
incandescentes, pois me fazem sentir a batalha de Lorca para arrancar de sua alma a
esterilidade titânica daquelas ”mil conferências” e desprender-se de tudo o que caia
sobre o que chamamos ideologia, e reconheçamos que isso também é dionisíaco. 27
Circunscrever a morte de Garcia Lorca aos limites dos bandos em conflito na
Guerra Civil Espanhola me parece muito simplista. A consciência do homem de hoje está
suficientemente distante do romantismo político dos anos 30; há quase meio século de
distância que torna possível a reflexão. Deixar o conflito no âmbito dos bandos me
pareceria, no melhor dos casos, como indicar ou localizar a loucura de um modo cheio
de repetições titânicas, loucura que, como já dissemos, é arena e cenário propício para
matar outras loucuras. Arquetipicamente, Dioniso será sempre o perseguido e o
desmembrado, o mais reprimido de todos os deuses (conta Euripides, que foi reprimido
em Tebas, onde mitologicamente havia nascido sua mãe), não importa o regime político
em que se vivia; isso pertence à sua essência.
27
Para mim é impossível conceber Dioniso apregoando ideologias. Sua epifania,
quando se dá no coletivo, sucede entre um grupo de mênades, em umajuerga, antes da
batalha de Salamina, ou na Festa Nacional de Espanha, em uma praça de touros, ou na
alma feita corpo do homem de sempre.
86
É precisamente aqui que este tema de nossos dias me soa como uma
reatualização histórica de um mitologema de sempre: a perseguição e morte de Dioniso
pelos titãs mais o fuzilamento de um grande poeta. 28 Assim me chega a morte de Garcia
Lorca como fundamento de consciência. Os elementos históricos se tornam um marco
de referência, campo em que o drama mitológico de novo se atualiza. A imagem
mitológica de perseguição e desmembramento de Dioniso pelos titãs me salta como
imagem primordial. Se deixássemos tal fato só nos terrenos da luta de frações políticas,
cairíamos numa grande ingenuidade, pois seria como, por exemplo, deixar dentro dos
conflitos raciais ou sociais algo que na realidade constela sombras, conflitos
psicológicos, batalhas mitológicas muito antigas e de sempre. Aqueles são conflitos que
tornam possíveis, como estamos tratando nessas páginas, a perseguição e a morte por
desmembramento de Dioniso pelos titãs. É dentro das complexidades desse
mitologema, e querendo conter dentro de mim as imagens que aqui discuto, que trato de
me aproximar vivencialmente do acontecer da morte de um ser humano hoje em dia,
neste mundo em que vivemos; um mundo cuja história tem sufocado as imagens que
nos serviriam de acesso e nos nutririam e sustentariam no ”momento da verdade”,
nesse ”momento supremo” que é a morte. As imagens propiciatórias para o acontecer
de uma vida que se acaba estão em retirada, em menosvalia, em franca derrota (mas o
dionisíaco sempre esteve em fuga, em menosvalias vergonhosas, em derrota, como
seus atributos essenciais). Mas se temos alguma conexão com elas seria em um canto
de nossa alma que se assemelharia, na geografia de nossa natureza (alma em corpo e
nature-
28
Bunuel, em sua autobiografia Mi último suspiro, disse ao referir-se a Lorca: ”Ele
foi o melhor de todos nós”.
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88
atual, pois são vivências da alma de sumo interesse para ele e, certamente, para a
psicoterapia que, em vez de deter-se em especulações ingênuas e incultas sobre a
infância e o trauma inicial — no fim nascemos como nascemos, nos criamos como foi
possível dentro das complexidades históricas que tocaram a cada um, e funcionamos na
vida com mais de um pé no mistério da natureza que somos —, dá mais valor à morte e
sua imagética que às puerilidades de nascimento e infância, visão esta que nos faz
sentir o esforço dos pioneiros como algo distante. Temos a morte diante de nós, e
sentimos, e pelo sentir sabemos que as relações interiores que temos com a morte nos
contam muito mais sobre nossos conflitos psíquicos, e muito mais ainda sobre a
obscuridade psicossomática que somos, do que todos os rastreamentos redutivos que
possamos fazer sobre nossa infância.
Se ajustarmos mais essas reflexões, que são da psicoterapia atual, à equação
morte-Duende que viemos tratando, abriremos nossa alma para a avaliação pelo sentir: o
spectrum da catarse. É uma grande pobreza que na psicoterapia catarse só tenha
sentido se ligada a confissão. Emoções catárticas aparecem no Duende, assim como na
tragédia grega,30 ante a perfeição de certas formas. Eu limito aqui formas ao dionisíaco.
Ivan Linforth, em seu excelente Desmembramento de Dioniso, 31 estabelece que Dioniso
sempre é o corpo. Em qualquer coisa que chamemos psicoterapia, as emoções-catarses
se dão no corporal e são de valor essencial, porque já sabemos que o que chamamos de
corpo psíquico é habitado pelos deuses mais reprimidos pela história: por isso, o que
nos
30
Não há dúvidas de que a tourada e a tragédia grega se associam no essencial de
suas formas. Para os dois, medo e pena são emoções básicas (Aristóteles).
31
Ivan Linforth, The Arts of Orpheus, Arno Press, Nova Iorque, Times Co.,
1973.
89
vem dali é de importância capital; coisa que pela psicologia dos opostos
compensaria a repressão histórica do corpo psíquico, procurando equilíbrios
psicossomáticos, tornando possível o equilíbrio saúde-enfermidade.
Em qualquer coisa que se trate hoje em dia e que tenha a ver com as vivências da
alma do homem atual, o importante é se em seu morrer há um toque, umas poucas gotas
de essências dionisíacas, que façam aparecer alegria em seu morrer. E isso, mitológica
e arquetipicamente falando, está em oposição irreconciliável com a máquina infernal
prometéico-titânica e seu surgimento nos tempos atuais: o cientificismo tecnológico.
Mitológica e poeticamente falando, Dioniso e os Titãs são dois aspectos da natureza
humana em oposição irreconciliável, e a imagética é a de um Dioniso em constante fuga,
tratando de fugir, esconder-se e defender-se da agressão e do excesso titânico. A
intromissão do titanismo no morrer, o morrer tecnológico com pretensões médicas de
”prolongar a vida”, nega, ou em todo caso distorce, um morrer que poderia dar sentido a
toda uma vida.
No Prometeu de Esquilo, o titã Prometeu diz claramente: ”Eu fiz com que os
homens se esquecessem da morte”. E isso nos fala da depreciação titânica pelo morrer.
Bem, isso já sabemos e também sabe qualquer pessoa, já que é notícia da atualidade,
coisas dos jornais e da conversa mais coloquial. E se podemos entender a intromissão
ou a agressão do Titã em algo que não lhe pertence, o mais difícil de entender, e o que
aparece como camuflagem e dissimulação do horror, é quando começamos a ouvir falar
de morte (falar e dar conferência sobre a morte em alguns círculos está em moda) com o
mesmo aborrecimento daquelas mil conferências a que se refere Lorca em seu escrito.
Assim, ouvimos coisas como as prescrições de ”morrer aceitando a morte com
naturalidade”, ou HO pretende ensinar e aprender a ”manejar” a morte, como
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91
CONSCIÊNCIA DE FRACASSO
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são de clareza e aceitando a obscuridade que tem. Pode ser que nisso sejam os
psicoterapeutas os mais aptos para entender o que quero dizer, já que me parece muito
insensato o psicoterapeuta que se identifique com os seus ”sucessos” e tem uma
atitude triunfalista, pois, se age assim, não terá outro remédio senão o de identificar-se
também com os fracassos, a não ser que divida essa mecânica de sucesso e fracasso
como quem divide uma maçã e conceba ingenuamente que os sucessos são seus, e os
fracassos, do paciente. O modelo que proponho apareceu em meu livro Hermes e seus
filhos: é o do psicoterapeuta que está a serviço de um processo regido por arquétipos
consteíados na psicoterapia; arquétipos através dos quais a natureza humana se
expressa psiquicamente, e num processo em que nem sempre há uma concordância do
tempo interno e externo na relação terapeuta-paciente. Duas alquimias distintas e de
complexidades insondáveis e que ainda assim tornam possível o suceder
psicoterapêutico.
A resposta ao porquê de o fracasso negar-se tanto a ser reconhecido deve ser
procurada nas complexidades da natureza humana, dentro das quais colocamos o que
podemos conhecer como estudos de psicologia, com toda sua infinita e infernal
terminologia, pois tudo isso que cai dentro da terminologia psicoterapêutica como
Consciência, Espírito, Persona, Psique, Alma, Inconsciente etc. são concepções que em
todos os casos pertencem à natureza humana, dona ainda de maiores complexidades e
mistérios. Se há uma luta por uma consciência, esta consciência seria produto de uma
batalha dentro das complexidades dessa natureza, consciência de nossa natureza, e não
algo mais abstrato. Eis o ponto crucial, do qual nós, psicólogos, não podemos olvidar.
Não percamos de vista o fato de que, tratando com o chamado material psicológico,
estamos tratando da natureza humana.
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cípios do século aos estudos de psiquiatria por Jung, que notou que nos
pacientes psicóticos e esquizofrênicos havia uma falha, que Janet denominou function
du reel. No que convém a este ensaio, desejo manter a mesma acepção e uso que lhe
deu Jung em seus trabalhos sobre psicose e esquizofrenia, para que nos sirva de pano
de fundo em que possamos ver o elemento de loucura que tem o que aqui chamo
carência de realidade terrena. Uma loucura não encontrada na maioria das vezes em
hospitais psiquiátricos, mas uma loucura que se faz patente na visão que nos oferece a
autonomia triunfalista no mundo em que vivemos. De qualquer forma, não é difícil de
aceitar que essa falta de realidade é parte da chamada personalidade normal, mas que
somente é diagnosticada como tal ao irromper em grande escala, alterando então a
personalidade. É assim que a conseguimos observar e registrá-la. Dado que essa
realidade psíquica existe como ”normalidade”, dependerá dos critérios de quem observa
estabelecer o que a afeta física e psicossomaticamente e se ela toma parte no equilíbrio
da saúde e da existência dessa ”normalidade”.
No que chamamos consciência coletiva e suas demandas não entra a
possibilidade de fracasso. Quando acontece um revés que poderíamos sentir como um
fracasso do qual aprender e refletir, fugimos desse revés rapidamente com o pretexto de
outra fantasia fútil, indo irremediavelmente ao encontro de outro fracasso; pois o que
possivelmente nos preveniria de novos fracassos seria tomar consciência deles: o
fracasso provendo reflexão. Mas não, a demanda de sucesso é tão avassaladora que não
nos prove do tempo nem do ritmo interior necessário para que a reflexão seja possível.
A demanda de sucesso como um complexo autônomo nos impele à repetição. Entre as
grandes contribuições da psicologia deste século está a teoria dos complexos, que nos
diz que complexo (pedaço
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de história) sobre o qual não se reflete e do qual não se l.oma consciência, repete-
se e aparece em nós potencializado e de maneira hipertrofiada.
Nas etapas da infância e adolescência, a dinâmica psíquica é de concorrência
competitiva e triunfalista: sucesso nos estudos, nos esportes, entre o grupo de amigos,
na vida. A competição, a rivalidade, a inveja, a concorrência têm na adolescência sua
idade biológica legítima e é campo no qual o sucesso e as fantasias triunfalistas
imperam. Essas fantasias do adolescente abrigam certo futurismo que é próprio dessa
etapa: terminar a faculdade, casar-se, fazer pós-graduação, constituir família e ter
sucesso na vida. Estas são fantasias e projetos constitutivos da psicologia dessa idade
e são válidos, ainda que muitos tenham de refazê-los antes de chegar aos trinta anos: o
casamento fracassou, o sucesso na profissão não é tão fácil como se supunha, e se
evidenciam sinais inequívocos de depressão e inclusive de destruição, com uma
imagem totalmente oposta à triunfalista.
Assim, as fantasias e projetos que são importante combinação na média dos
adolescentes (saiba o leitor que deixo de lado muito de destrutivo que tem a
adolescência) algumas vezes passam para a via adulta. Elas se perpetuam no ser
humano e vemos homens na idade adulta, no final dos trinta ou já na casa dos quarenta,
ou até depois dos cinqüenta anos, vivendo a mesma fantasia que talvez fosse válida na
adolescência. Querer ter os mesmos impulsos e igual velocidade de antes deixa-nos
claro que houve falhas, paralisia no processo de iniciação psíquica para a vida adulta.
Estes processos a que me refiro aqui foram vistos a partir da perspectiva
evolucionista por William Sheldon, que escreveu sobre isso nos anos anteriores à
Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo que discutia em Zurique com C. G. Jung
estas noções. Referindo-se a William
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James, Sheldon nos diz: ”Ele descobriu que um crescimento mental é algo muito
raro nas últimas décadas da vida; que um intelecto maduro aparece como uma
curiosidade”. Trinta anos depois Sheldon dirá:
Hoje em dia a situação é aparentemente pior. Os dias de juventude às vezes
pululam com sonhos prematuros, planos enobrecedores; mas a mente humana aos
quarenta anos está comumente atrofiada, morta, com suas melhores horas mal
aproveitadas, freqüentemente envenenada com álcool ou drogas. Mas ainda existem
alguns que progridem para um completo crescimento mental. Aos vinte anos não
sobressaem particularmente em nada, exceto em que eles com freqüência se mostram
socialmente imaturos para sua idade. Mas ao trinta e cinco anos ou quarenta anos nos
damos conta, por meia dúzia de sentenças, de que aqui existem mentes ainda vivas. A
filosofia é por tentativas e sensitiva, os interesses estão em expansão e há desejos de
novos conhecimentos.
As pessoas que mostram essas qualidades na meia-idade se inclinam a continuar
seu desenvolvimento mental pelo resto do caminho, às vezes mostrando avanços e
competências ainda nas décadas finais. Para elas, um ano nos setenta e oitenta pode ser
valioso, com realizações tanto afetivas como cognitivas, muito mais que um ano de
juventude. Estes poucos vivem mais para a segunda metade da vida do que para a
primeira. Eles se mostram mais felizes e intrinsecamente mais fortes na velhice do que
na juventude. Suas vidas sugerem uma nada fácil intuição que nos diz que onde a
juventude é um desproporcional período feliz, a vida pode ser um grande fracasso.
Assim, pois, o que aqui estamos tratando pertence ao espírito da idade, na qual
existe mais do que uma consciência que sabe apreciar o fracasso como fonte de nova
consciência. Assim, a educação, a academia, a universidade são espaços regidos por
Apoio, o deus que personifica a unilateralidade do brilhantismo e da visão do sucesso
que domina a vida. Não obstante, conheço um senhor,
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subterrâneo. Por isto entendemos os movimentos herméticos cuja dominante é o
gravitacional: um Hermes que nos aproxime mais das intuições exploratórias do
inconsciente como corpo humano e natureza.
Existem três elementos fortes na natureza humana: o Puer Aeternus, a histeria e o
componente psicopático, que têm a aceleração como traço dominante de sua expressão,
traço intimamente ligado à irreflexão. Quando os três elementos dominam a
personalidade, esta termina identificando-se com eles, perdendo a capacidade de mantê-
los à distância que permitiria o estímulo à reflexão. Aqui consideramos a reflexão como
um dos cinco instintos que, segundo Jung, habitam o ser humano, a saber: fome,
sexualidade, fazer coisas, reflexão e criatividade. Temos de diferenciar o instinto de
reflexão do que se chama reflexão espiritual; esta consiste em refletir dentro dos limites
de uma tradição religiosa e dentro das normas de vida do que chamamos ”homem
civilizado”. A reflexão a que me refiro aqui, a instintiva, é central na psicoterapia
junguiana, psicoterapia que se apoia nas bases instintivas da reflexão. Em nossos dias,
Alfred Ziegler, referindo-se a ela, disse: ”é, com efeito, hermenêutica, a arte das
interpretações fenomenológicas, e tão fácil como difícil. A um só tempo, parece ser a
coisa mais simples e a mais complexa do mundo”. 1 Porém é preciso um mínimo de
tempo para que a reflexão ocorra, e que esse tempo considere o ritmo interno, a lentidão
em que a reflexão acontece. E isso só é possível dentro das complexidades da natureza
de cada um.
Os três elementos que vamos discutir são vistos como parte integrante da
natureza humana, provocam hybris (transgressão) e, como assinalamos, são de difícil
refle-
1
Archetypal Medicine, trad. Gary V. Hartman, Spring Publications, Dallas, l!w:», p.
45.
100
xão. Dois deles são arquetípicos: o Puer Aeternus e a histeria, e por isto
entendemos que pertencem a configurações arquetípicas de nossa natureza; enquanto o
terceiro, o componente psicopático da personalidade, mesmo não sendo arquetípico,
não tendo formas que o contenham, também pertence à natureza humana. Esses três
componentes podem ser estudados e vivenciados de várias maneiras. Em muitos casos,
os três se confundem e ocorre de observarmos pacientes em psicoterapia ou
personalidades do mundo em que vivemos que apresentam uma verdadeira confusão
destes três componentes. Em outros, um dos componentes destaca-se do resto. Outros
casos, quando temos observado com tempo suficiente, começaram em sua juventude
com a dominante do Puer reforçada em excesso por hístrionismos histéricos e depois,
na maturidade, caíram no repetitivo psicopático.
O Puer Aeternus, o eterno adolescente, rege arquetipicamente a vida da criança e
do adolescente. O Puer, com seu brilho e velocidade, aparece em estudos arquetípicos
de distintas maneiras: para os fins que aqui interessam, em oposição ao Senex, isto é, à
idade senil, com suas limitações pela idade, sua lentidão, sua doença cronológica, sua
existência no umbral da morte. No que concerne a esse trabalho, devemos deixar de
lado a sua relação com a mãe. Mas temos sempre de levar em conta que por mais
evidente e complexa, conflitiva e caótica que seja, a relação do Puer com a mãe é
arquetípica e, por isso, incomensurável. Vista assim, é uma relação que contém as
infinitas possibilidades que lhe confere essa ordem, e isso também deixa claro o
absurdo de qualquer redução. Sabemos que mãe e filho são figuras centrais na religião e
tema de estudos de religiões comparadas. Essa criança que contemplamos no altar nos
braços da virgem mãe é o Puer Aeternus como nos oferece o cristianismo. Às vezes, a
101
criança sustenta em sua mão, como atributo simbólico, uma bola coroada com
uma cruz. Essa criança em seu relacionamento essencial com sua mãe, fato central no
mundo religioso e também em nossa psique e corpo emocional, é a versão cristã
transformada daqueles Pueri das mitologias da antigüidade, amantes da grande mãe:
Tamuz, Ormu, Marduc na Mesopotamia, Adonis na Fenícia, Átis na Ásia Menor e Osiris
no Egito. No legado clássico grego, Kerényi e Jung trabalharam o Puer levando em conta
que todos os deuses eram Pueri, crianças divinas. A criança divina é central na cultura
do Ocidente e, se é central tanto religiosa como psiquicamente, é central, certamente, na
patologia do homem ocidental. E assim vivenciado sentimos nele uma longa e profunda
história, pano de fundo dos complexos que todos carregamos.
Para o que nos interessa, temos de abranger outros opostos, Puer-Senex:
juventude-idade senil. Visto assim, o Puer e o Senex formam um arquétipo de duas
cabeças, em uma polaridade essencial, que os torna um e o mesmo, dois lados da
mesma medalha, pois não existe um sem o outro; não existe Puer sem Senex nem Senex
sem Puer. Dessa maneira, são considerados em estudos junguianos sobre os arquétipos
em sua polaridade essencial. Para nossos propósitos, eles correspondem a pressas e
velocidades juvenis e a lentidões e limitações da velhice; marcam o calendário da vida,
isto é, fazem-nos sentir, com maior ou menor exatidão, nossa idade cronológica e nossa
idade psicológica. Estão ajustando constantemente a velocidade tanto psíquica como
física de nossa vida. Outra manifestação ocorre quando dominam a personalidade, que
então cai na limitação estreita de ver quaisquer outras possibilidades de vida somente a
partir da consciência Puer/Senex. O domínio do arquétipo Puer /Senex bloqueia
completamente qualquer acesso
102
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A psicologia do Puer se desenvolve numa velocidade tal que não pode conectar-
se com o aspecto gravitacional da terra, com as lentas velocidades terrenas. Para que as
altas velocidades do Puer toquem a terra, é necessário um processo de descida, planar
pouco a pouco até que haja uma reconciliação com a realidade terrena. Isso é o que
deveria ocorrer ”em um caso normal”, porém muitas vezes a descida se dá
bruscamente; algo ocorre na vida do Puer que o força para as lentas velocidades
terrenas e a confrontar-se de um dia para outro com a realidade terrena que sua natureza
tratou desesperadamente de evitar. Esse reajuste brusco estará isento de traumas muito
fortes e profundos ou de dolorosas mudanças na personalidade. Mas nem sempre acaba
nisso, pois, às vezes, a psicologia do adolescente se perpetua além dos limites fixados
pelos ciclos da natureza. com o respaldo de sociedades nas quais predominam
perigosamente os ideais juvenis, toda a fantasia e imagética se projetam a partir do
âmbito do adolescente; assim temos hoje em dia sociedades nas quais desde o comer, o
vestir, a estética pessoal etc., todo o viver é regido pela fantasia e imagética do
adolescente. Mas sociedades em que predomina o adolescente como ideal coletivo e
individual não consideram o seu pólo terreno oposto, e quando o fazem, geralmente de
maneira destrutiva.
Não obstante, o eterno adolescente está em todos nós e cumpre uma função em
nossa vida psíquica; e, além disso, sua esfera de criatividade tem sido estudada, e tem
se manifestado em certos gênios: recordemos Heisenberg, aos dezenove anos, tomando
sol no telhado de sua casa em Berlim, nos tempos da República de Weimar, quando lhe
veio sem mais nem menos, acompanhada por disparos antitumulto, a teoria da
indeterminação. Recordemos também a Rimbaud, que na idade de dezenove ou vinte
anos já havia escrito sua obra poética. E tanto na ciência
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com tudo o que cai dentro dos limites de nossas representações mentais, e a
segunda ao que está reprimido, seja no campo pessoal ou coletivo, ou ainda naquilo que
está esperando para ser vivido). Mas ao longo da vida, até chegar a uma maturidade e
uma velhice que se considerem produtivas, observa-se um movimento rotativo e lento
desses opostos. E onde antes havia velocidade na consciência, esta começa a tornar-se
mais e mais lenta, até obter uma lentidão adaptada ao ritmo do evento psíquico que vem
de dentro e ao evento com o qual depara no mundo externo. A consciência diminui sua
velocidade porque o Senex a está ocupando gradualmente e, enquanto isso ocorre, as
velocidades da consciência do Puer vão se movendo para ocupar um papel importante
no inconsciente. Assim, podemos imaginar como ao longo da vida as imagens do Puer e
do Senex, no ritmo de um relógio de areia, invertem-se e nos oferecem outra realidade
vital na maturidade e velhice: a de uma consciência lenta, lentíssima, mas um
inconsciente rápido e ativo que é capaz de conectar-se com a memória nele armazenada,
na velocidade necessária para isso. O processo de iniciação na segunda metade da vida,
o que Jung chamou metanóia, é de importância capital para nossos estudos, pois nunca
devemos esquecer que as mudanças na metade da vida é que dão perspectiva,
dimensão e profundidade à concepção junguiana de vida e, é claro, à psicoterapia. É
isso que preserva a visão analítica de fixações causais.
Se creio ter dado ao leitor os elementos do eterno adolescente funcionando no
momento em que lhe pertence, enriquecendo a vida ou querendo se perpetuar além de
seu tempo arquetípico, emperrando uma personalidade por excesso de identificação
com esses elementos, quero agora referir-me a outro elemento psíquico arquetípico que
distorce a personalidade e indica aceleração psíquica. Este componente se caracteriza
por não encorajar descobertas
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fácil terapia, pois devemos aceitar que não é. A única coisa capaz de mover a
histeria psiquicamente e salvá-la das repetições fatigantes é precisamente o que provém
das mesmas complexidades arquetípicas, misteriosas e profundas às quais a histeria
pertence. Devemos nos limitar a visualizar a imagem arquetípica da mãe e da filha:
Deméter protegendo a sua filha Perséfone de um provável raptor e, nesse proteger,
identificamos a sufocação como causa arquetípica da histeria. O que remete ao
mitologema da mãe e da filha, dando origem à expressão de Kerényi: ”o milagre grego”.
O milagre de haver concebido ritual e iniciaticamente o arquétipo da mãe e da filha: os
mistérios de Elêusis.
Assim, apesar de sua irreflexão, e precisamente por causa disso, a terapia da
histeria deve conter o que mencionamos anteriormente como reflexão, porém sabendo
que o que chamamos reflexão instintiva não tem nada a ver com os clichês com
pretensão de reflexão. Refletir sobre a histeria deve centrar-se em captar a imagem da
sufocação, para que o paciente se familiarize com ela até que se torne mais ou menos
psíquica. Isso só como base psicoterapêutica, porque na realidade a dificuldade da
psicoterapia da histeria como dominante é que ela não permite a possibilidade de que se
criem os opostos, que é onde a psicoterapia começa a tornar-se profunda, a tocar
profundamente nos complexos e na natureza do paciente.
No mitologema da mãe e da filha, aparece como oposto à sufocação da filha pela
mãe o rapto da filha pela divindade subterrânea Plutão-Hades. Na longa lista de raptos
do legado grego, esse é um rapto específico, já que é a própria morte imaginada. É
Plutão, personificação da morte, quem rapta Perséfone. Podemos aqui igualar rapto com
morte, e rapto que aparece na psique como oposto compensatório da superficial
polarização histérica. E isso
112
sim, podemos dizer, é que transporta a vida dos perigos da superficialidade
repetitiva e destrutiva para profundidades em que a vida psíquica pode começar a
participar do corporal, abrindo a possibilidade de uma consciência que já pode tomar
distância da mãe, do que antes era uma identificação histérica sufocante. O rapto é
central na psique e nas origens da cultura.
A lista de raptos nas origens culturais do Ocidente é imensa: o rapto de Europa
por Zeus foi experienciado em seus inícios e em seu reaparecimento no Renascimento
italiano como a essência da religião, não da religião tornada, lei, com suas formas e ritos
que a sustentam, mas como atributo central da vida religiosa. E desse ponto, até o rapto
das Sabinas, em que o mito abre espaço para a imagem externalizada, é o principal
componente da fundação da cidade e da cultura. Sim, quando imaginamos o rapto, não
podemos omitir-lhe os antecedentes primordiais e primitivos, com o fato real do homem
que parte em disparada de sua tribo e rapta uma mulher de outra tribo. Que se tome todo
esse primitivismo como a base mítica do rapto na origem da cultura. O rapto subjaz no
fundo do legado grego; diríamos dele como a fonte do conhecimento psíquico grego,
dada a profusão de suas ocorrências; é fundamental na Ilíada e na Odisséia de Homero,
cuja inspiração original fora o rapto de Helena, rapto cuja intervenção extremamente
complicada da divindade resultou na sedução de Helena por Paris, ela que é a
personificação terrestre de Afrodite.
Agora, o que chamamos rapto psíquico é um acontecimento de profunda
importância na natureza psíquica, que ocorre quando o mito do rapto, neste caso o rapto
de Perséfone por Plutão, acontece na psique; e isso é algo que por sua natureza
arquetípica não é possível fomentar ou induzir e, muito menos, mimetizar. É um
acontecimento na natureza psíquica onde a psicoterapia só pode
113
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trar também o pano de fundo de algo que vemos na vida diária e que em
psicoterapia se observa com lente de aumento, quando a sufocação se torna altamente
possessiva. Qualquer psiquiatra ou psicoterapeuta experiente pôde ler mais de uma vez,
em situações semelhantes, a origem de muitas psicoses e esquizofrenias e também o
que se encaixa dentro do termo psicossomático. you me referir ao caso de uma paciente
esquizofrênica de diagnóstico precoce. Quando falei com a mãe, ela me confessou que
sua atitude com a filha foi sempre a de protegê-la e guardá-la ”como se estivesse em
uma caixinha de cristal”. Podemos mencionar essa imagem verbal como exemplo
daquilo a que estou me referindo: a sufocação levada a níveis de possessão primitiva.
Mas sem cair nesses extremos, quem não presenciou alguém em sua função política, de
magistério ou outra, em que a sufocação histérica atingiu níveis possessivos primitivos,
deixando transparecer em seu exercício o toque dimensional que vem dos complexos
mais antigos? Assim, no político que nos dirige, no sacerdote que consola nossa alma,
no médico que cura nossas doenças físicas, no mestre que nos ensina, no banqueiro
que negocia com nosso dinheiro e no psicoterapeuta para quem relatamos os nossos
conflitos psíquicos, em todos se manifesta a histeria com suas múltiplas e às vezes
sutis manifestações. Em tudo que se relaciona ao casal, como instituição básica da vida,
bem sabemos que a histeria está sempre presente, manifestando-se sob alguns
pretextos corriqueiros em um rompante aqui e ali. É escusado dizer que muitas
separações se dão quando um dos cônjuges já não consegue suportar uma vida regida
pela histeria. Ao observar por alguns anos a histeria que ocupa o centro da vida dos
casais, uma vida denominada ”normal” pela consciência coletiva, certo respeito se
impõe e obriga-nos a repensar acerca do que se poderia chamar de mistérios de um
relacionamento regido por mútua sufocação. Mas é na
115
116
Io da histeria. É sem dúvida válido qualquer quadro que possamos formar a partir
da diagnose junguiana da histeria hebefrênica, seja ela pessoal ou cultural.
Os aspectos culturais aqui mencionados provêm de imagens em minha prática
clínica, de uma visão antecipatória da sociedade ocidental e, por fim, da obstinação de
teorias psicológicas infantis que dominam a mente de muitos psicólogos. Tais
psicólogos, parece, retêm essas teorias a vida inteira, como se estivessem numa
casamata poderosa, não atentando para o fato de que a pessoa que estão tratando está
numa idade com uma realidade psíquica muito distante da da infância. Para uma
personalidade dominada pela histeria, a vida é para ser vivida segundo sua concepção
histérica, e qualquer coisa que não tenha a ver com essa ilusão carece de validade. O
estudo da conexão entre certos tipos de personalidades histéricas e aquilo que a
psicologia junguiana chama de psicologia de contos de fada está ainda por ser feito.
Conhecemos personalidades históricas para as quais a fantasia do castelo encantado
chega ao máximo, não admitindo discussão nem reflexão; o castelo encantado está em
suas mentes como única forma de se viver, e isso já os diferencia substancialmente dos
casos em que a psicologia de contos de fada admite reflexão e movimento psíquico para
níveis mais consistentes da psique.
Quero também mencionar outra importante concepção que nos levaria a ver mais
ajustadamente a diferença e a relação entre histeria e animus. O animus foi descoberto,
por assim dizer, por Jung e seus seguidores da primeira geração. Ele aparece como um
pseudologos, algo que permite que a mulher aprenda o que foi concebido e criado pelo
logos masculino. Aqui essa concepção de animus é vista como um instrumento da
mulher, é algo de tremenda importância no mundo de hoje — um mundo em que a
mulher muitas vezes trabalha no mesmo
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ritmo e condição dos homens — e é o utensílio que faz com que a mulher, na
história atual, da noite para o dia, conheça o homem em quase todas as suas atividades,
inclusive naquelas que, historicamente, eram reservadas só a ele. É visto como um
instrumento da mulher. Mas o animus, dentro das maiores complexidades que contém,
tem uma que concerne igualmente à mulher e ao homem e que aparece hipertrofiada no
mundo atual, como um clichê, quase sempre grotesco: o lado ”opinante” do animus.
Vivemos num mundo de opiniões que influenciam nossa vida diária, opiniões que
cobrem todos os aspectos da vida: opiniões que têm grande peso para o homem atual e
afetam tanto a sua alimentação como sua vida erótica, sem contar com a política e sua
relação com a sociedade em que vive, e que chegam a influenciar seus costumes e
hábitos até o ponto de alterar e destruir suas tradições familiares e religiosas mais
íntimas. Por mais conscientes que possamos ser, essas opiniões superficiais,
concebidas a partir desse pseudologos que é o animus, são tragadas e passadas para
nosso sistema de vida. O fato é que também esse aspecto ”opinante” do animus aparece
muitas vezes como elemento possessivo. Assim vemos personalidades que estão
possuídas não por forças inconscientes ou irracionais de procedência arquetípica, mas
por opiniões que defendem até o fim. Não creio que seja difícil observar como estas
opiniões combinam perfeitamente com a sufocação histérica, e a sufocação não é
somente algo que está dentro dos limites arquetípicos aos quais nos referimos, mas
também aparece de forma alarmante através de opiniões.
Sentimos que vivemos numa época de grande histeria o que existe um exagero em
nossa vida; exagero que «•m poucos anos — nos últimos quarenta anos — tomou
proporções maiores do que em todo tempo anterior da
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aceitar que apenas se sabe de sua função e do porquê da om nossa natureza (se
não nos agarrarmos hisIni Iminente a reduções superficiais). Colocando-a como parte
integrante de nossa natureza nos parece um passo limito válido, pois ali está o mistério.
O mistério arquetípico dos mistérios eleusianos.
Porém há algo mais que é importante nisso: é que a histeria é capaz de utilizar-se
de qualquer instrumento pura ser o seu veículo de manifestação. Parece que um dos
instrumentos mais à mão da histeria é a culpa, algo que vem à mão da histeria como o
anel ao dedo. Assim, mais vezes podemos observar o espetáculo da histeria fazendo uso
da culpa com refinamento e insinuações e outras vezes em que nos aflige com seu
descaramento. E isso nos aproxima do porquê a histeria é tão importante para o tema
que estou tratando: se ela maneja a culpa com habilidade característica, estou dizendo
que ela tem à sua disposição um espectro infinito de possibilidades para culpabilizar
qualquer um ou qualquer coisa, não aceitando assim a consciência de fracasso. A
histeria, ao culpabilizar, destrói a imagem do acontecer psíquico.
O terceiro elemento, que não reconhece o fracasso e que aparece como o mais
perigoso, é o que cai dentro do conceito de transtornos da personalidade, que aqui
consideramos como componentes psicopáticos da personalidade, dando-lhe um
significado mais geral. São componentes que também todo ser humano abriga, mesmo
quo não sejam arquetípicos, o que já os caracteriza de maneira mais específica e aponta
para sua poriculonidade. Não sendo arquetípicos, carecem, por ÍHHO, do imagem e
forma; irrompem na personalidade como manifestação do excesso e falta de limites do
ser luunnno lOles estão em oposição radical às formas iininHipir.-iH da vida, porque,
como já dissemos, são elemontoH que; carecem de forma. Mas permitam-me es-
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tende fazer psicoterapia com base em teorias que ele mostra interesse em aplicar,
mas sem remotamente conceber que o suceder psicoterapêutico é um produto da
própria psique, da inter-relação psíquica entre terapeuta e paciente; e que as teorias,
qualquer uma, são irrelevantes e, na maioria dos casos, obstruem a manifestação
natural da psique.
E por isso que prefiro apoiar-me nas contribuições da literatura e na reflexão que
nos prove a mitologia, para usá-las como instrumento mais plástico e imaginativo.
Assim, podemos ver outra obra-prima, O estrangeiro, de Albert Camus, que nos fala
desse estrangeiro que todos temos dentro de nós. O título da obra já nos diz do que se
trata: é algo estranho a nós. Também o livro de Camus nos oferece com dramatismo
direto, única e profundamente sentido, o vazio interior do psicopata: essa carência de
formas interiores concebida por Camus em Mersault, a personificação do estrangeiro.
Sempre nos surpreenderá a primeira página dessa novela — obra mestra da literatura
moderna — cada vez que lemos que Mersault recebe um telegrama anunciando a morte
de sua mãe, porém nele não existe uma resposta que tenha relação com o imaginário
que corresponda a essa notícia.
Perdoe-me o leitor por repetir esses dois exemplos da literatura atual, mas melhor
do que simples repetições seria considerá-los como variações sobre o mesmo tema.
Embora eu pudesse trazer outros exemplos, nenhum teria a convincente expressão
dessas duas obras. Minha intenção é enfatizar algo que sinto ser de interesse e
necessidade essencial, pois o tema é tão importante que o mais aconselhável seria
agarrar-nos às figuras que melhor sirvam de acesso ao que queremos apreender; e o
que queremos apreender é de difícil acesso, pois não tem ínnuas. Tendo isso presente,
remeto o leitor a Luchino Visconti, para quem este tema é central e com muitas
variações riquíssimas na totalidade de sua obra cinematográfica.
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Espero que com esse breve relato o leitor perceba que o componente psicopático
que funciona em excesso, que não se ajusta a limites e formas, nos evidencia a
existência de falhas na natureza humana. O excesso de um psicopata ou o componente
psicopático não pertence a nenhum arquétipo nem se sujeita a nenhuma forma. Como
vimos em O estrangeiro, a falha que aparece na primeira página nos diz que o arquétipo
da mãe — que nesse caso seria visto como um arquétipo de duas cabeças (a mãe e o
filho, o filho e a mãe) — parece que não existe. Ao remeter o leitor às obras citadas,
passo-lhe uma visão viva, prática, da personalidade psicopática nas vertentes externas e
internas, uma visão de fácil acesso a realidades tão cruéis do ser humano. Também,
com isso, permitome sair de tamanhas complexidades e me limitar ao que tenho de dizer
sobre o mimetismo, para mim essencial ao estudo da psicopatia, tanto quando domina a
personalidade, como quando o concebemos como um componente.
O psicopata é a viva expressão disso que podemos dizer de algumas pessoas:
que ”não têm nada por dentro”. Tudo está fora, emprestado e captado por processos de
fácil acesso. Nesse mimetismo do mundo exterior, a personalidade psicopática ou o
componente psicopático se adapta ao evento que se lhe apresente. Todos necessitamos
de certo grau de mimetismo e parece que é por isso que a natureza nos dotou dele;
necessitamos dele para adaptar-nos a uma situação extrema, desconhecida para nós.
Mas não há dúvida de que na história de nossos dias, nas sociedades atuais, há um
aumento dessas necessidades prementes de adaptações externas e pode ser que por
isso tais componentes se hipertrofiaram de maneira tão notável em um mundo como o
de hoje, no qual estamos constantemente encontrando coisas que não podemos
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aprender, pois embora nos excitem e devamos nos adaptar a elas por causa de
sua ocorrência diária, são ainda muito estranhas para o nosso processo de
aprendizagem. Isso faz com que o histrionismo mais imediato da histeria e o fácil
mimetismo psicopático sejam dois instrumentos que a história, por necessidade, nos
tenha feito desenvolver. Parece que o homem ocidental tem certa consciência desse
aspecto a partir do seu legado clássico, pois Platão em Timeu nos fala do que aqui nos
interessa. Se existe uma alma com seus arquétipos, imagens, formas e inteligência,
também existe a necessidade (ananke) que precisamos para responder a algo que não
tem forma conhecida para nós. As respostas são infinitas e podem variar desde
mimetismos que aparecem diante de situações desconhecidas até os extremos da
maldade. Há um velho refrão que diz que se fores a Roma aja como um romano, ou como
me disse um amigo: se me atiram de um páraquedas na China, para sobreviver eu tenho
de fazer algo, e a primeira coisa que me ocorreria seria sorrir como os chineses. O
exemplo é claro e nos faz ver com humor isso que Timeu, em seu discurso em Atenas no
século V a.C., chamou de Necessidade, mas também nos deixa claro o absurdo
superficial dessa necessidade. Para o chinês, o sorriso é algo que vem de dentro, um
sorriso que, como dizem os entendidos, é uma linguagem em si de uma tradição milenar,
e chega até a expressar sabedoria. Assim, por mais que o amigo exercite esse sorriso,
não conseguirá fazê-lo como um chinês; seu sorriso será uma manobra que no melhor
dos casos pode tornar possível sua sobrevivência entre os chineses.
Perdoem-me ter usado uma anedota chinesa para pnssar-lhes uma imagem de
acesso, diríamos coloquial, daquilo que foi reflexão tão profunda nas origens do
Ocidente, como é o Timeu. Mas também sentimos profundaiiinil o que o que aqui estou
falando são urgentes necessi-
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Desde já podemos nos dar conta de que para ”triunfar” em qualquer coisa naquilo
que chamamos sociedade moderna, tanto o histrionismo histérico como o mimetismo
psicopático são moedas de uso corrente, legal e efetivas de imediato. E começamos a
sentir como esses componentes que se caracterizam um por sua superficialidade, outro
por seu excesso — este, seguido de um vazio, de um nada —, passam a ser de
importância superior. Também esses componentes estão nos dizendo que sua única
meta é o sucesso, que os valores desse sucesso não são nem remotamente relevantes e
que qualquer coisa que pensemos deles nos leva de imediato a sentir que são um
bloqueio constante ao acesso da consciência de fracasso.
Temos de saber, pois sentimos assim, que o que chamamos de consciência de
fracasso é algo interior e muito obscuro. Quando nos referimos à consciência de
fracasso, nunca estamos nos referindo a algo a que podemos chegar mediante
esquemas de fácil acesso. A consciência de fracasso pertence, e creio que isso estamos
compreendendo agora, a áreas obscuras nas quais se move nossa interioridade. Quando
nos referimos à consciência de fracasso estamos nos referindo a estados médios e
lentos da alma: Anima Media Natura. Pois nesse estado da alma não existem
triunfalismos, simplesmente porque há uma alma ou psique que é consciente, que não
concebe as acelerações necessárias para as concepções do Puer, nem do histrionismo
histérico, nem do mimetismo psicopático. Esta é uma alma que não sofre os tormentos
da busca do sucesso, mas também é uma alma que não anula o pólo oposto: o fracasso
feito realidade; esse fracasso que aparece de vez em quando e se infiltra na enfadonha
cantilena liiHtórica do ”eu me sinto fracassado”, com esse toque de histeria e repetição
depressiva psicopática, além de ser
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um fracasso projetado para fora. Um ”sinto-me fracassado” que quer dizer ”sinto-
me fracassado por não poder cumprir as metas do triunfalismo vigente”. Consciência de
fracasso é outra coisa, é algo mais precioso e muito psíquico, é evasiva, vem e vai, e
com isso nos indica suas características mercuriais. É uma consciência, como já
dissemos, média e obscura, cujo sítio é o umbral e sua luz crepuscular. Mas é nesse
lugar que nos reconciliamos com nossas mortais limitações e, fazendo isso, encaixamo-
nos nos limites definidos do nosso ser e dentro da realidade que somos. É isso que
torna possível a imagem com suas possibilidades de uma vida culta.
Já desde aqui e graças a nossa reconciliação com a consciência de fracasso,
entramos inadvertidamente no âmbito da imagem, e a imagem, como diz o poeta, é
possibilidade. Um pensamento de Lezama Lima diz: ”A hipótese da imagem é a
possibilidade”. E as possibilidades são do imaginário, o que torna possível o exercício
daquele que trabalha a imagem, e essa capacidade de imaginar é já uma atividade
terrena e limitada, por estar dentro dos limites arquetípicos consistentes que lhe
pertencem. Por limitada quero dizer super abundante, como também estabelece Lezama.
Quando falamos da imagem já começamos a falar de superabundância, porém sem
aceitarmos que uma só imagem é mais que suficiente para preencher toda essa vivência.
Quando a imagem a que pertencemos começa a emergir, já existe movimento psíquico,
rico e muito distante, pois nada tem a ver com o movimento repetitivo psicopático-
titânico. Sim, e isso tem de ser repetido: ”A hipótese da imagem é a possibilidade”; a
imagem que nos faz possível, e na possibilidade da imagem estamos um tanto distantes,
ainda que nunca imunes, do horror intolerável dos opostos sucesso-fracasso. É na
imagem e a partir da imagem que encontramos o repouso dos opostos sucesso-
fracasso.
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A este ponto podemos começar a ler um poema de Rafael Cadenas, cujo título é
Fracasso, e que apareceu em minha vida dando uma bela forma poética a pensamentos,
idéias que estavam comigo, como disse no início, por muitos anos, e que eu vivenciava
como consciência de fracasso, mas que agora, graças a isso que chamamos de arte,
podem estar contidos em um recipiente adequado, esse que contém vivência interna
expressa e dada com generosidade exemplar.
Tudo o que tomei como vitória é só fumaça. Fracasso, linguagem do fundo, pista
de outro espaço mais exigente, é difícil ler a tua letra nas entrelinhas. Quando punhas
tuas marcas na minha fronte, jamais pensei na mensagem que trazias, mais preciosa que
todos os sucessos.
Teu flamejante rosto me perseguiu e eu não soube que era para me salvar.
Para meu próprio bem relegaste-me aos cantos, negasteme fáceis êxitos,
fechaste-me as saídas. Era a mim que querias defender, não me outorgando brilho. De
puro amor por mim dirigiste o vazio que tantas noites me fez falar febril a uma ausente.
Para me proteger cedeste o passo a outros, tens feito com que uma mulher prefira
alguém mais determinado, afastaste-me de tarefas suicidas. Tu sempre vieste para me
salvar.
Sim, teu corpo chagado, cuspido, odioso, recebeu-me em minha mais pura forma
para me entregar à nitidez do deserto.
Por loucura eu te maldisse, te maltratei, blasfemei contra ti.
Tu não existes.
Foste inventado pela delirante soberba. Quanto te devo!
Promoveste-me a uma nova classe, limpando-me com uma esponja áspera,
lançando-me a meu verdadeiro campo de batalha, cedendo-me as armas que o sucesso
abandona. Conduziste-me pela mão para a única água que me reflete. Por ti eu não
conheço a angústia de representar um pa-
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é perseguido pelo deus que queima e salva. Somos perseguidos por aquilo que é
tão alheio à nossa natureza consciente, que para ela é difícil aceitar ou tolerar. A
consciência é ignorante e temerosa, e um rosto flamejante só pode causar temor. É
assim que os deuses se disfarçam; aqui a imagem é inequívoca: com o horror vem a
salvação. ”Teu flamejante rosto me perseguiu e não soube que era para me salvar”.
Aceitando o horror vem a salvação, e o fracasso começa a impor seus limites que se
ajustam à configuração de uma personalidade em estado de consciência de fracasso;
limites muito precisos: ”Para meu próá prio bem relegaste-me aos cantos, negaste-me
fáceis êxitos, fechaste-me as saídas”.
Existe uma outra linha que se encaixa perfeitamente ao anteriormente escrito, e é
quando nos diz: ”Tens feito com que uma mulher prefira a alguém mais determinado”.
Isso é fácil de conectar com aquela Anima Me-
dia Natura. Essa mulher que trazemos dentro e que, ao mesmo tempo, é
companheira da alma. É uma mulher que não se deixou levar por alguém mais
determinado, que não se entrega à vitória e ao êxito, mas que desfruta de sua natureza
média. Uma anima que não nos empurra para o êxito, mas que também nos livra de
”tarefas suicidas”, das depressões suicidas às quais já nos referimos.
Quando Cadenas diz da consciência de fracasso ”tu sempre vieste para me
salvar” (tu siempre hás venido ai quite), está nos passando um sentimento de confiança,
como se a única coisa em que se pudesse confiar fosse na consciência de fracasso. A
linha é muito taurina, relativa à arte de lidar com touros, e está cheia do colorido da
festa. O ”quite” se dá quando há momentos de perigo na corrida de touros, quando
estamos em perigo, e é a consciência de fracasso que o faz aparecer. Na tradição taurina
o ”quite” é visto como uma intervenção da Divina Provi-
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dência. Existem ”quites” que são como se a capa do toureiro fosse levada pela
mão da providência, que o salva de um perigo iminente. Para o poeta é assim que
aparece o fracasso: para salvá-lo do perigo. Sentimos aqui como se a consciência de
fracasso fosse um movimento interior que termina em profundas realidades, em
verdades nuas e na apoteose da alegria.
Perdoe-me o leitor por me atrever a passar-lhe minhas vivências sobre algumas
linhas do poema de Rafael Cadenas, mas nisso creio estar manifestando o grande
contentamento que produziu em mim o encontro com o poema Fracasso. Contentamento
que se afirma, que se vive em estado de consciência superior, que aparece da profunda
consciência de fracasso. Pois é difícil encontrar uma linha que nos fale tão
ajustadamente da realidade que somos quando Cadenas diz: ”Eu não te canto pelo que
és, mas por aquilo que não me deixaste ser. Por não me dar outra vida. Por haver-me
limitado”.
Isso é realidade de individuação, adaptação a si mesmo e limitação aos próprios
contornos. Aqui já estamos nus ante nós mesmos. ”Deste-me apenas nudez”, realidade
limitada e verdade nua. Realidade e verdade indispensáveis para sentir a alegria. Alegria
que em Cadenas é apoteose interior e que alegra esse mundo interior e torna possível a
consciência de fracasso. Alegria que se pode sentir como uma consciência maior que
contém a alegria e o fracasso num abraço paradoxal.
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ÍNDICE