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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE CUIABÁ


INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MESTRADO EM FILOSOFIA

“THE TOOL OF TOOLS”:


UMA REVISÃO DA INFLUÊNCIA DARWINISTA
NA TEORIA DA LINGUAGEM DE JOHN DEWEY

JOÃO BATISTA FERREIRA FILHO

CUIABÁ
2020
JOÃO BATISTA FERREIRA FILHO

“THE TOOL OF TOOLS”:


UMA REVISÃO DA INFLUÊNCIA DARWINISTA
NA TEORIA DA LINGUAGEM DE JOHN DEWEY

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Filosofia, Universidade
Federal de Mato Grosso, exigida para a
obtenção do título de mestre em Filosofia.

Orientador: Dr. Walter Gomide do


Nascimento Junior

CUIABÁ
2020
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

F383t Ferreira Filho, João Batista.


"The tool of tools" : Uma revisão da influência darwinista
na teoria da linguagem de John Dewey / João Batista
Ferreira Filho. -- 2020
92 f. ; 30 cm.

Orientador: Walter Gomide do Nascimento Junior.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato
Grosso, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Programa
de Pós-Graduação em Filosofia, Cuiabá, 2020.
Inclui bibliografia.

1. John Dewey. 2. darwinismo. 3. teoria da linguagem. 4.


pragmatismo. 5. evolução. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a)


autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep: 78060900 -Cuiabá/MT
Tel : (65)99808-1020 - Email : breno.ricardo@gmail.com

FOLHA DE APROVAÇÃO
TÍTULO : "The tool of tools : uma revisão da influência darwinista na teoria da
linguagem de John Dewey."

AUTOR : Mestrando João Batista Ferreira Filho

Dissertação defendida e aprovada em 24/04/2020.

Composição da Banca Examinadora:

Presidente Banca / Orientador Doutor(a) Walter Gomide do Nascimento Júnior


Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Examinador Interno Doutor(a) Mario Spezzapria
Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Examinador Externo Doutor(a) VINICIUS CARVALHO PEREIRA
Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Examinador Suplente Doutor(a) BRENO RICARDO GUIMARÃES SANTOS
Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

CUIABÁ,11/05/2020.
Agradecimentos1

Ao orientador, pela compreensão, por muito que tenho aprendido e por muito
que ainda hei de aprender, sou grato.

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
“He does it with his hands, by experience, first in play
and then through work. The hands are the instruments
of man’s intelligence.”

Dr. Maria Montessori


RESUMO

É notável que, apesar dos inegáveis e incessantes avanços nas investigações sobre
o funcionamento da linguagem e seu valor para a experiência humana, pouco se
tem explorado sobre sua origem e fundamentos naturalísticos. Seguindo a filosofia
do pragmatismo americano, John Dewey (1859-1952) pôde contribuir com um
tratamento da linguagem que a associa às bases naturalísticas do conhecimento. O
presente trabalho tem por objetivo evidenciar como a influência de Darwin sobre o
programa filosófico de Dewey se reflete em sua teoria da linguagem. Para isso, são
apresentados os principais pensadores do pragmatismo e sua estrutura de
pensamento basilar; é discutido o paralelo teórico entre Darwin e Dewey, assim
como suas teses sobre a experiência natural; e, por fim, a teoria da linguagem de
Dewey é sintetizada à luz da influência darwinista e dos parâmetros do
pragmatismo. Espera-se que este trabalho contribua com as investigações sobre a
linguagem de modo que forneça um quadro de aspectos a serem observados na
formulação de uma teoria geral da biossemiótica (ou biossemiologia).

Palavras-chave: John Dewey; darwinismo; teoria da linguagem.


ABSTRACT

It is notable that, despite the undeniable and incessant advances in investigations on


the workings of language and its value for human experience, little has been
explored about its origin and naturalistic foundations. Following the philosophy of
American pragmatism, John Dewey (1859-1952) was able to contribute with a
treatment of language that associates it with the naturalistic bases of knowledge. The
present work aims to show how Darwin's influence on Dewey's philosophical program
is reflected in his theory of language. Thus, the main thinkers of pragmatism and its
fundamental structure of thought are presented; the theoretical parallel between
Darwin and Dewey is discussed, as well as their theses on natural experience; and,
finally, Dewey's theory of language is synthesized in the light of Darwinian influence
and the parameters of pragmatism. It is hoped that this work will contribute to the
investigations on language as it provides a framework of aspects to be observed in
the formulation of a general theory of biosemiotics (or biosemiology).

Keywords: John Dewey; Darwinism; theory of language.


Sumário
Introdução ............................................................................................................... 1

Capítulo 1: Uma breve história do Pragmatismo: Peirce, James e Dewey ......... 3

1.1.: Charles Sanders Peirce e o método científico ............................................... 4

1.2.: Wiliam James e o melhorismo moral ............................................................. 8

1.3.: John Dewey e a experiência natural ........................................................... 16

1.4.: Considerações preliminares ........................................................................ 23

Capítulo 2: O paralelo entre Darwin e Dewey...................................................... 28

2.1.: A virada darwinista ...................................................................................... 28

2.2.: Conhecimento e experimentalismo de Darwin a Dewey .............................. 34

2.3.: Darwin, cognição e linguagem .................................................................... 41

2.4.: Considerações preliminares ........................................................................ 45

Capítulo 3: Dewey e a linguagem sob a perspectiva naturalista ....................... 48

3.1.: Função e significado ................................................................................... 48

3.2.: Significado e condicionantes experienciais ................................................. 52

3.3.: Transações simbólicas ................................................................................ 56

3.4.: Comentário sobre a crítica de Max Black .................................................... 66

3.5.: Considerações preliminares ........................................................................ 71

Conclusão ............................................................................................................. 75

Referências............................................................................................................ 78
Introdução

Entre meados do final do século XIX e a primeira metade do século XIX, uma
nova tendência filosófica surge em solo estadunidense. Conhecida como
pragmatismo americano, procurou divorciar-se das perspectivas filosóficas
tradicionais: com críticas aos pressupostos que sustentavam a filosofia tradicional,
introduziu um novo modo de produzir filosofia que deveria evitar as insuficiências
das filosofias anteriores.

Seu primeiro proponente foi Charles Sanders Peirce (1839-1914): químico por
formação, Peirce nutriu grande interesse pela matemática e pela lógica e fez
importantes contribuições à lógica da ciência, à qual se dedicou por toda a sua vida.
A base para a sua lógica foi a concepção de que, para as ciências, as ideias
funcionam como instrumentos que conduzem a experimentação científica. Assim
surge o princípio de que as ideias (ou conceitos) orientam-se para consequências,
princípio este que se tornou basilar do pragmatismo.

Influenciado pelas aulas de Peirce, William James (1842-1910), psicólogo


behaviorista de origem aristocrática, aderiu à proposta do pragmatismo e reformulou
sua aplicação de forma que o princípio de consequência abrangesse mais do que
somente a prática científica. James tornou-se um ávido promotor do pragmatismo
nos círculos intelectuais da época, assim como foi o primeiro a dar-lhe uma definição
concisa. Para James, as consequências das ideias seriam o critério para solucionar
disputas filosóficas, dando ao pragmatismo a função de conciliador.

Posteriormente, John Dewey (1859-1952), psicólogo behaviorista de família


pequeno-burguesa, produziu uma nova reformulação do programa pragmatista.
Dewey foi um autor prolífico e aplicou o princípio de consequência para avaliar os
mais diversos tópicos. Não somente isso, devido à sus influência darwinista, Dewey
produziu uma investigação da experiência humana que atribui às consequências um
caráter naturalmente fundamental. Notou Dewey que conhecer é experienciar, e
experienciar é interagir, produzir consequências. Da mesma forma, produzir filosofia
deveria significar produzir consequências. Assim, Dewey procurou conduzir uma
reconstrução filosófica em que a filosofia deveria ser valorada pelas consequências

1
práticas que produz, pelas contribuições que fornece à melhoria da existência
humana.

A característica teórica que melhor distingue o trabalho de Dewey dos outros


dois pragmatistas notáveis é sua abordagem naturalista, em especial no que diz
respeito ao conhecimento. Para esta questão, as contribuições de Darwin que
levaram à reforma científica tiveram influência fundamental. Dewey e Darwin
partilharam a crença de que não só o conhecimento é gerado de forma experimental
e, com isso, o conhecimento científico se dá da mesma forma, mas que a
experiência dos organismos com o meio segue a tendência da experimentação,
justificada como uma forma de assegurar a sobrevivência.

Da mesma forma, a linguagem, para Dewey, também seguia a tendência


experimental. Os significados (ou ideias, conceitos) são formas de tratamento das
coisas baseados em que consequências se espera que produzam. Assim, a
linguagem é tratada como um sistema de significados que têm valor funcional e que
seguem protocolos de manutenção e experimentação assim como aqueles
observados por Darwin na evolução por seleção natural.

No primeiro capítulo deste trabalho, Uma breve história do pragmatismo:


Peirce, James e Dewey, os três expoentes já mencionados são explorados com
maior minúcia, com ênfase nos aspectos que marcaram cada uma das três fases da
evolução histórica do pragmatismo americano, e culmina na apresentação das teses
principais de Dewey, nosso objeto de investigação. O capítulo seguinte, O paralelo
entre Darwin e Dewey, é dedicado a compreender a influência de Darwin para a
proposta deweyana, considerando as contribuições de Darwin à ciência em geral e
ao modo de produzir conhecimento baseado em experimentação, assim como suas
notas sobre linguagem. Por fim, o terceiro capítulo, Dewey e a linguagem sob a
perspectiva naturalista, deve sintetizar a teoria da linguagem de Dewey à luz das
observações apontadas nos capítulos anteriores, com enfoque especial no seu
caráter natural e orientado para consequências.

2
1. Uma breve história do pragmatismo: Peirce, James e Dewey

Escrever sobre a obra de Dewey é escrever sobre uma trajetória de propostas


de revisão, superação ou reinvenção de perspectivas ou pressupostos teóricos para
a elaboração de uma filosofia tipicamente americana. Para fazer justiça a isso,
parece ser consenso, dadas as obras aqui consultadas, que o mais adequado seja
começar pela exposição do surgimento e evolução do pensamento pragmatista, aqui
concebido, como pretendeu Dewey em O desenvolvimento do pragmatismo
americano (referido, de agora em diante, como DPA), da fase embrionária pela obra
de Charles Sanders Peirce até o trabalho do próprio Dewey.
Por sua vez, escrever sobre o pragmatismo e suas fundações é, simultânea e
não exclusivamente, escrever sobre uma proposta de novo método de investigação
filosófica e sobre um modo de operação no mundo - ambos com lastro tipicamente
darwinista, o que será minuciado posteriormente. Compreender essa noção
integrada de teoria e prática que constitui o cerne do programa do pragmatismo em
larga escala, e do trabalho de Dewey em especial, faz-se fundamental para a
assimilação das críticas dirigidas por Dewey a algumas escolas de pensamento
anteriores – críticas que frequentemente marcam as razões de Dewey para o
desenvolvimento de sua perspectiva teórica - e para que não se incorra no erro de
considerar porções deliberadamente selecionadas da teoria de Dewey para análises
parciais e deficitárias, como ocorrera em alguns casos que serão ponderados no
decorrer do trabalho – sendo alguns casos sobre os quais Dewey tivera a
oportunidade de esclarecer e outros que compõem interpretações recentes.
Para o empreendimento que proponho, nesta primeira seção será
apresentada, de forma bastante sucinta, a virada intelectual protagonizada por
Peirce e sua relação estreita com a lógica científica, como o primeiro proponente do
pragmatismo; segue-se daí a expansão da abordagem pragmatista orquestrada por
William James para um pragmatismo radicalmente inclusivo e de espírito fortemente
americano; por fim, e com maior riqueza de detalhes, cobriremos os contornos do
pragmatismo deweyano, considerando aquilo que foi preservado das propostas de
seus predecessores, a inegável influência darwinista e a consolidação de um
programa teórico consistente o bastante para simbolizar a fase mais madura do
pragmatismo.

3
1.1. Charles Sanders Peirce e o método científico

Para compreendermos a formulação peirceana do pragmatismo americano, é


preciso resgatar a influência da distinção kantiana entre pragmática e prática
adotada por Peirce. Tal distinção, e a insistência de Peirce em preservá-la, pode
fornecer-nos algum esclarecimento sobre os conflitos intelectuais de Peirce e sua
resistência à expansão do escopo do método pragmatista, posteriormente conduzida
por William James. Dewey nos diz sobre a percepção peirceana da distinção entre
pragmática e prática em Kant que a “pragmática [...] aplica-se às regras da arte e da
técnica que estão baseados na experiência e são aplicáveis à experiência [...]” e que
a “prática [...] aplica-se às leis morais que Kant considera como sendo a priori [...]”
(DEWEY, 2007, p. 228):

[...] para uma “pessoa que ainda pensava mais prontamente em


termos kantianos, praktish e pragmatisch eram tão distantes quanto
dois pólos; o primeiro pertencendo a uma região do pensamento, na
qual nenhuma mente de tipo experimental pode encontrar terreno
sólido sob seus pés, e o último expressando a relação a algum
propósito humano definido. Ora, de fato o aspecto mais premente da
nova teoria era o reconhecimento de uma conexão indissolúvel entre
cognição racional e propósito racional.” (DEWEY, 2007, p. 228)

Seguindo intuições kantianas, para Peirce a instância das ideias e conduta


morais não seria contemplada pela sua formulação da abordagem pragmatista, pois
tais temas estavam relacionados a uma instância ontológica superior, a priori. Assim,
o pragmatismo seria concebido com base numa crítica da mentalidade científica
corrente, da concepção de investigação filosófica orientada por questões
epistemológicas e do status cultural de autoridade racional absoluta gozado pela
ciência que Peirce viria questionar.

O primeiro dos ataques de Peirce foi dirigido à doutrina cartesianista que


dominava o pensamento da época e que era considerada a base da natureza das
investigações filosóficas. Cornel West, em The American Evasion of Philosophy: a
Genealogy of Pragmatism, a quem devemos muito das informações levantadas aqui,
sumariza a crítica de Peirce ao “espírito do cartesianismo” da seguinte forma:
primeiramente, há o problema da dúvida original. Em Peirce, não há dúvida que não
seja objetiva, isto é, toda dúvida repousa sobre aquilo de que a dúvida se faz.
Colocando em termos naturalistas, é a experiência que força a necessidade de
dúvida, não um espaço mental ideal fora de alcance. Tal entendimento de uma
4
natureza condicionalmente relacional do pensamento nos leva à crítica de Peirce a
outro aspecto do cartesianismo, seja este sua rejeição às crenças prévias em favor
de uma busca por critérios irredutíveis de certeza encontrados na consciência
individual. Tal atitude radicalmente subjetivista levaria a uma negligência arbitrária
da relação sujeito-objeto e da experiência humana em si. Terceiro, Peirce não
aceitaria a arbitrariedade do uso do conceito de deus como justificação das raízes
da subjetividade e da realidade. Por último, Peirce argumentaria que o cartesianismo
negligencia a interdependência de ideias em favor da acima mencionada
inalcançável certeza absoluta. Segundo o próprio Peirce:

1. Não temos poder de introspecção, e todo conhecimento do mundo


interno é derivado, por raciocínio hipotético, do nosso conhecimento
de fatos externos.

2. Não temos poder de intuição, e toda cognição é determinada


logicamente por cognições anteriores.

3. Não temos poder de pensar sem signos.

4. Não temos concepção do absolutamente incognoscível. (PEIRCE,


1933-1958, p. 158)i2

Esse primeiro embate entre a mentalidade hegemônica e o criticismo


desafiador da vanguarda é o que perdurará como a novidade e espírito do
pragmatismo até sua fase madura com Dewey. A ruptura representa, em termos
existenciais, uma reintegração da relação sujeito-objeto e uma rejeição ativa de
reducionismos, que lançarão luz sobre a revisão do método científico através dos
contornos do que hoje chamaríamos de falibilismo. Uma vez que não é possível
atingir a certeza absoluta e, por conseguinte, buscar as fundações para a certeza
absoluta se torna um empreendimento frívolo, tudo o que o pensamento pode fazer
é fornecer, baseado nos critérios disponíveis, asserções acerca da natureza das
coisas cuja garantia é assegurada por uma comunidade de pensadores e sua
vigilância do atendimento ao rigor do método que estes acordaram como sendo o
mais eficaz. A diferença aqui, de acordo com Peirce, é que o método científico está
sujeito à mudança, é contingente: se a comunidade de especialistas considera certo
método não mais adequado para conduzir investigações, tanto as conclusões
através deste derivadas como o método em si devem passar por revisões. Isto é,
2
N. do T.: As versões originais dos trechos traduzidos para a língua portuguesa estão disponíveis nas notas de
fim.

5
para Peirce, a ciência é um sistema autocorretivo. Em termos gerais, esse processo
ocorria com a filosofia da época através do pragmatismo, como veremos no decorrer
deste capítulo.

A esta altura, não é difícil notar que há um aspecto notoriamente social


quando se trata da constituição e manutenção do método científico – o que talvez
seja a característica mais distintiva do pragmatismo proposto por Peirce. Isto é, o
método científico é contingente e sua transformação é regulada pela comunidade
que detém autoridade sobre este. Mais que isso, para transformar o método é
necessário que previamente haja um método a ser transformado e que surjam
condições que desafiem sua eficiência: assim, o método científico está ancorado nas
transformações históricas, em influência recíproca. Isso justificará a insistência de
Peirce sobre as crenças prévias, ou a necessidade de considerar o desenvolvimento
histórico dos instrumentos da razão. É interessante parafrasear a brilhante definição
de método científico de Peirce que será melhor compreendida com a explanação a
seguir: o método científico é uma lei da percepção:

Para satisfazer nossas dúvidas, portanto, é necessário que seja


encontrado um método pelo qual nossas crenças possam ser
causadas por nada humano, mas por alguma permanência externa -
por algo sobre o qual nosso pensamento não tenha efeito... esse é o
método de Ciência. Sua hipótese fundamental, reformulada em
linguagem mais familiar, é a seguinte: existem coisas reais, cujas
características são totalmente independentes de nossas opiniões
sobre elas; essas realidades afetam nossos sentidos de acordo com
leis regulares e, embora nossas sensações sejam tão diferentes
quanto nossas relações com os objetos, ainda assim, gozando das
leis da percepção, podemos averiguar, por raciocínio, como as
coisas realmente são; e qualquer homem, com experiência e razão
suficientes, será levado à única conclusão verdadeira. ii (PEIRCE,
1933-1958, p. 242-243)

É interessante notar da passagem acima que Peirce, apesar de investido de


uma atitude empirista, evita uma forma de radicalismo realista (e, também, de um
radicalismo idealista) ao considerar que o método científico deverá lidar com a
objetividade da realidade como um pressuposto, uma hipótese, não como fato, o que
seria, talvez, tanto como dizer que o método científico deveria ter como objetivo
revelar a verdadeira natureza da realidade, muito embora tal natureza seja, por fim,
inalcançável. Esse deveria ser o maior sustentáculo da concepção de Peirce do
método científico, pois se os resultados de uma investigação são considerados

6
verdades inquestionáveis, o método científico não seria revisável. Entretanto,
contrário a tais expectativas, Peirce acreditava que a evolução da ciência seguiria de
tal forma que investigações suficientes comporiam um rico e complexo corpo de
conhecido de leis universais. De acordo com Peirce, através do melhoramento
progressivo da precisão do método científico, estaríamos cada vez mais próximos da
verdadeira natureza da realidade até um ponto em que, pela generalização das
conclusões derivadas da investigação científica, leis universais – etéreas – seriam
reveladas (o movimento aqui é baseado na experimentação de resultados de
investigações localizadas para objetos cada vez mais gerais, uma mecânica que
ecoará posteriormente com algumas ressalvas em nossa apreciação das ideias de
Dewey). O que nos leva a uma das contradições peirceanas: uma vez que as
conclusões derivadas da investigação científica são contingentes e só se sustentam
enquanto forem operacionais, visto que o método em si é contingente, como é
possível, através destes, atingir leis atemporais? Mais que isso, tal reino de
conceitos universais não está destinado somente a princípios morais, onde
“nenhuma mente de tipo experimental pode encontrar terreno sólido sob seus pés”?
Se sim, Peirce não alegava que a abordagem pragmática não deveria ter nenhuma
relação sobre questões de vida prática, mas somente à instância restrita das
atividades intelectuais? Nem Cornell West, nem Dewey forneceram um
entendimento esclarecedor sobre como Peirce lidou com tais problemas – e, até
onde sabemos, nem sequer Peirce. 3 Vale ainda mencionar a intrusão da noção de
consequência como critério de juízo das ideias – cara ao pragmatismo
posteriormente - na defesa de Peirce da cultura cristã:

É tolice que católicos e protestantes entrem em desacordo sobre os


elementos do sacramento se concordam em relação a todos os seus
efeitos sensíveis, aqui e no adiante. [...] Parece, então, que a regra
para atingir o terceiro grau de clareza de apreensão é a seguinte:
Considere que efeitos, que resultados práticos concebíveis nós
concebemos que os objetos de nossa concepção tenham. Então,
nossa concepção desses efeitos é toda a concepção do objeto.iii
(PEIRCE, 1933-1958, p. 257-258)

3
Entretanto, nosso quadro de informações sobre o trabalho de Peirce é limitado e nosso retrato de suas ideias
pode não ser a melhore referência, uma vez que não é nosso objetivo explorar o trabalho de Peirce
minuciosamente.

7
Muito embora Peirce defendera que a abordagem pragmática concebida
baseada no método científico (reformulado como experimentalismo) não deveria ser
estendida para questões da vida prática, o método ainda estava incorporado de um
telos ético: alcançar a concordância de opiniões e, por conseguinte, promover uma
comunidade próspera de homens razoáveis. Para Peirce, tal consequência do uso
apropriado do método científico estava de certa forma ligado a uma evolução social,
comum, baseada na fraternidade, que ele alegava ser naturalmente encontrada no
dogma cristão – daí a insistência de Peirce em preservar a moralidade cristã intacta,
para o que lhe foi encontrada justificação na distinção kantiana. Tais limitações na
concepção do pragmatismo não satisfarão William James, o que o levará a expandir
o conjunto de possibilidades do programa ao mesmo tempo em que delineará
critérios mais rigorosos.

1.2. William James e o melhorismo moral

Muito das fundações do pragmatismo sofreu mudança sob a tutela de James,


a começar pelo fato de que, dentre as três figuras notáveis, James foi o único a
tentar definir a filosofia pragmatista de forma explícita: em Peirce, temos alguém
tateando uma intuição estreita do que seria o método pragmatista circunscrito nas
questões científicas; já Dewey não se prestou a tentar fornecer uma definição
concisa do pragmatismo. Comecemos por destacar as maiores distinções de James
em relação a seu antecessor: em James, temos um pragmatismo centrado na
preocupação com as questões morais; temos um pragmatismo do indivíduo, e não
mais da comunidade; e temos o pensador pragmatista como intelectual público.
Entretanto, as intuições de fundo parecem ter permanecido: que o pragmatismo é,
antes de tudo, uma militância contra os reducionismos das doutrinas vigentes; a
preocupação em aperfeiçoar nossos procedimentos de avaliação; e que a noção de
consequência é o melhor critério de juízo das ideias.

A definição de que falo diz respeito à série de conferências realizadas por


James publicadas em 1907 sob o título Pragmatism. Na primeira destas, James está
preocupado em delinear a atmosfera intelectual de sua época dividindo-a, para fins
didáticos, em duas correntes antagônicas dominantes: o racionalismo e o empirismo.
O objetivo de James com isso é salientar o que chama de temperamento dos
pensadores, isto é, um certo tipo de investimento existencial subjacente às ideias e

8
doutrinas que advogam. Não está claro, entretanto, qual a natureza da relação entre
temperamento e ideias preferidas: se o temperamento é determinante das escolhas
teóricas ou sintoma destas. O que importa para James é que o temperamento deve
ser considerado pois é a marca de como são levadas a cabo as discussões
filosóficas de seu tempo – e de toda a história da filosofia: pensadores antagônicos
que, sob risco de terem seus respectivos sistemas de crenças desestabilizados,
objetam ao sistema oposto visto como de natureza filosófica inferior. Nas palavras
de James:

[...] Qualquer que seja o temperamento de um filósofo profissional,


trata, quando filosofando, de encobrir o fato de seu temperamento. O
temperamento não é a razão convencionalmente admitida, com o
que lança mão das razões impessoais somente para as conclusões.
Seu temperamento, contudo, confere-lhe uma distorção mais forte do
que qualquer de suas premissas mais estritamente objetivas.
Sobrecarrega-lhe a evidência desse modo ou de outro,
estabelecendo uma visão mais sentimental ou mais realística do
universo, justo como esse fato ou aquele princípio o fariam. Confia
em seu temperamento. Necessitando de um universo que se lhe
adapte, acredita em qualquer representação do universo que se lhe
adapta. Sente que os homens de temperamento oposto estão fora de
sintonia com o caráter do mundo, e em seu íntimo considera-os
incompetentes e “por fora” do negócio filosófico, embora mesmo
possam excedê-lo a perder de vista em matéria de habilidade
dialética. (JAMES, 1980, p. 4).

James compreende o racionalista como “o devoto dos princípios eternos e


abstratos” e o empirista como “o adepto dos fatos em toda sua crua variedade” e
alerta que “ninguém consegue viver uma hora sem fatos e princípios, com o que é
antes uma diferença de ênfase” (JAMES, 1980, p. 5). Isto é, a preferência por uma
ou outra doutrina, assim sugerido por James, não subtrai o sujeito do universo dos
fatos ou das ideias: é, acima de tudo, uma escolha teórica marcada por uma forma
de ver o mundo que não costuma ser considerada na escolha em si. Também é
interessante notar que já aqui há uma intuição implícita da concepção de James do
pragmatismo como uma proposta conciliatória, o que será melhor explorado adiante.

Assim, James vê sua própria época dividida em pensadores de


temperamentos racionalista e empirista. Prossegue este para descrever alguns
traços característicos de ambos os temperamentos, o que marca a antipatia mútua,
ilustrados pela justaposição das colunas a seguir:

Espírito terno Espírito duro


9
Racionalista Empírico
(que segue “princípios”) (que segue “fatos”)
Intelectualista Sensacionalista
Idealista Materialista
Otimista Pessimista
Religioso Irreligioso
Livre-arbitrista Fatalista
Monista Pluralista
Dogmático Cético

(JAMES, 1980, p. 6).

Recorrendo à inteligência de senso comum de seu público, James afirma que


os tipos não se esgotam nos arquétipos representados nas colunas, mas que estes
existem e que o público já deve tê-los encontrado. Segue-se que há duas formas de
considerar tais tipos: a primeira diz respeito àqueles que de fato personificam o
conjunto total de características de um ou outro lado da coluna e que sustentam o
antagonismo de temperamentos vigente; a segunda, mais branda, é que muitos de
nós cultivamos uma coleção heterogênea de características de ambos os grupos, o
que constitui nossas preferências. Dito de outra forma, trata-se de uma dicotomia
ortodoxo-heterodoxo. Entretanto, continua James, em sua época o espírito empirista
é dominante, muito embora a devoção aos fatos e evidências seja de natureza
quase religiosa, aspecto referente ao lado oposto da coluna. E, tratando-se da
filosofia empírica, temos uma insuficiência que remonta à ortodoxia: programas de
devoção religiosa aos fatos e evidências, mas que, paradoxalmente, nada têm a
oferecer ao espírito senão o escárnio à espiritualidade. Se a insuficiência das
doutrinas empiristas o conduz às doutrinas racionalistas, “[...] Você escapa, na
verdade, do materialismo que acompanha o empirismo reinante, mas paga por sua
escapada perdendo contato com as partes concretas da vida. [...]” (JAMES, 1980, p.
8-9). Tal é o cenário do dilema da filosofia que motiva James e seu empreendimento
como intelectual público: posições aparentemente irreconciliáveis em natureza e
forma, mas insuficientes em si mesmas para atender as demandas do espírito
humano:

Precisa-se de um sistema que combine ambas as coisas, a lealdade


científica aos fatos e disposição em levá-los em conta, o espírito de
adaptação e de acomodação, em suma, mas também a velha
confiança nos valores humanos e na espontaneidade resultante, seja
do tipo religioso ou romântico. E esse é, então, o dilema:
encontramos as duas partes do quesito desesperadamente

10
separadas. Vê-se empirismo com desumanismo e irreligião; ou então
encontramos uma filosofia racionalista que, na verdade, pode
chamar-se religiosa, mas que se mantém fora de toda e qualquer
relação com os fatos concretos e alegrias e tristezas. (JAMES, 1980,
p. 9).

É evidente que James dará prevalência à atitude empirista. Contudo, manterá


reservas sobre qualquer empirismo que seja ortodoxo. James deriva dos amadores,
ou filósofos não profissionais, suas críticas às insuficiências dos sistemas ortodoxos;
considera estes como juízes últimos das necessidades filosóficas. Dessa forma, o
descontentamento comum com o negócio filosófico dos espíritos “cuja soma de
necessidade é a maior” (JAMES, 1980, p. 13) deve servir como sintoma e bússola
para a situação e reforma da filosofia. A filosofia, então, deve atender a demanda
por fatos e evidências, mas deve também dirigir o espírito; deve ser franca com as
alegrias e misérias da realidade do indivíduo comum e ainda assim propor um
horizonte possível; deve considerar a incerteza dos negócios humanos e tirar
proveito do aspecto sedutor dos sistemas ideais. Em suma, deve atender as
demandas daqueles a quem serve, mas não deve servir àqueles que nada querem
ter a ver com os negócios humanos. A solução conciliatória, para James, encontra-
se na capacidade do pragmatismo em entreter todas as hipóteses – e coloca-las à
prova, como ficará definido em sua conferência seguinte.

Até aqui, notamos que o pragmatismo se funda numa atitude de militância


metodológica: em Peirce, vimos uma forte oposição ao reducionismo cartesianista e
à busca por critérios seguros de certeza; em James, essa oposição se manifesta
contra o antagonismo ideológico de seus contemporâneos, reconhecido pelo mesmo
não somente como uma questão de método, mas da subjetividade subjacente às
escolhas teóricas. Por conseguinte, na segunda conferência James apresenta sua
interpretação do pragmatismo e justifica a proposta pragmatista em ser um método
conciliatório de tais tendências antagônicas. Primeiro, é preciso considerar que
James não compreende o pragmatismo como uma doutrina teórica, isto é, que
postula uma hierarquia de conteúdos e formas filosóficas: é, antes de tudo, apenas
um método de avaliação das tendências já existentes que se orienta para a
resolução de disputas. O método pragmático, assim como concebido por Peirce e
preservado por James, tem como princípio a apreciação das ideias a partir das
consequências práticas que delas podemos derivar, seu potencial em gerar produtos

11
eficientes para os empreendimentos humanos. Assim, para qualquer disputa teórica
que pareça indissolúvel em princípio, evocar o princípio de consequência para esta
ou aquela proposição, considerá-la francamente e pô-la à prova sobre que efeitos
práticos dela podemos esperar e com ela podemos produzir, ditará o tom sobre que
ideias devemos preservar e quais são inférteis e descartáveis – ou, pelo menos,
necessitam de reforma. Noutras palavras, a solução pragmática introduz um novo
critério de juízo em que dois critérios conflitantes não levarão a consenso. Segundo
James:

[...] O método pragmático nesses casos é tentar interpretar cada


noção traçando as suas consequências práticas respectivas. Que
diferença prática haveria para alguém se essa noção, de preferência
àquela outra, fosse verdadeira? Se não pode ser traçada nenhuma
diferença prática qualquer, então as alternativas significam
praticamente a mesma coisa, e toda disputa é vã. Sempre que uma
disputa é séria, devemos estar em condições de mostrar alguma
diferença prática que decorra necessariamente de um lado, ou o
outro está correto. (JAMES, 1980, p. 18)

Tal concepção da consequência enquanto critério de juízo deriva da


formulação peirceana, segundo James, de que nossas ideias são, antes de tudo,
regras de ação – noção que ecoará em todo o movimento pragmatista. O
reconhecimento de que as ideias são orientadas para consequências institui esta
como critério de dissolução de problemas visto que esta é, assim, uma condição
primeira das ideias, muito embora James considere também que muito destas
consequências não sejam antevistas, que sejam acidentais. Logo, o pragmatismo se
apresenta como fórmula para que estas sejam ativamente consideradas. Daí dizer
que, baseado na correspondência entre ideia e consequência, o pragmatismo tende
a acolher qualquer hipótese.

Assim, o valor de uma ideia não está mais condicionado em quão eficiente
esta explica o mundo, mas em quão eficientemente ela conduz a nossa experiência.
Entretanto, a definição de James do pragmatismo vai um pouco além: não somente
este é um método de avaliação de ideias sob o princípio da consequência, mas é
também uma teoria da verdade. Tal teoria da verdade é controversa o suficiente
para até mesmo Dewey tê-la desconsiderado posteriormente. James introduziu a
primeira noção de instrumentalismo: as teorias, hipóteses, crenças, ideias em geral
são apreendidas como instrumentos para conduzir nossos empreendimentos. As

12
ideias mais eficientes para este propósito são as verdadeiras. Entretanto, James
quer assegurar o tratamento rudimentar do homem comum sobre a verdade: Eis a
formulação que se segue da teoria da verdade de James: dadas as nossas crenças
prévias, quando um novo fato se apresenta na nossa experiência que desafia a
permanência das nossas crenças prévias, a ideia que melhor ajustar esse fato ao
nosso “estoque” de crenças é verdadeira. Noutros termos, todas as ideias que
adequam nossas crenças anteriores a fim de termos uma relação mais exitosa com
o universo são verdadeiras.

James, assim, identifica o critério de eficiência prática com o critério de


verdade; condiciona a verdade não somente à subjetividade, como também
estabelece que as crenças prévias são determinantes do que é verdadeiro. As
contradições aqui são persistentes demais para serem ignoradas. A primeira, aliás,
diz respeito à militância de James: se só aceitamos as verdades que se conformam
com máximo de adequação às nossas crenças prévias, os temperamentos
racionalista e empirista não estão justificados em seu antagonismo? Mais que isso,
se tudo que tem consequências é verdadeiro e tudo tem consequências, nada é
falso, muito embora, considerando a teoria da verdade de James, é difícil dizer se
ele sequer considerou falsidade. Parece-me que, no intuito de fugir de parâmetros
muito restritivos para a verdade, James dá luz à verdade sem parâmetros. Faltou a
James a intuição de que há ideias convenientes demais para serem verdadeiras.
Sua insistência sobre tal teoria da verdade difícil de sustentar causou desconforto no
seu sucessor.

Por fim, é preciso destacar ainda outra característica da persona de James


que talvez tenha surgido como um aspecto implícito de sua interpretação do
pragmatismo: diferentemente de Peirce que fora uma figura reclusa interessado
principalmente em ciência laboratorial, James foi uma figura pública ativa. Tal fato da
persona de James está relacionado como um aspecto do pragmatismo em função
de sua própria definição de pragmatismo como método reconciliador (e também
porque, a partir de James, isso parece ter se tornado uma marca da tendência
pragmatista, manifestando-se desde a atuação política de Dewey até o neo-
pragmatismo mais recente, com especial destaque a Jüggern Habbermas). Cornell
West sugere o mesmo: ”[the] cultural reading of American capitalist society enables

13
James to conceive of his publicist role; the reading itself is part and parcel of his
mediating function [...]” (WEST, 1989, p. 61). Ciente da atmosfera intelectual e do
cenário cultural de seu contexto, James se investe no papel de intelectual público e
não hesita em promover sua filosofia moral baseada nas forças heroicas individuais
com orientação meliorista.

Sou contra a grandeza e a nobreza em todas as suas formas, e com


as forças morais moleculares invisíveis que funcionam de indivíduo
para indivíduo, penetrando através dos recantos do mundo como
tantas raízes suaves, ou como o capilar escorrendo da água e ainda
rasgando os monumentos mais resistentes do orgulho do homem, se
você lhes der tempo, quanto maior a unidade com que lida, mais
vazia, mais brutal, mais mentirosa é a vida exibida. Portanto, sou
contra todas as organizações como tais, nacionais antes de tudo;
contra todo grande sucesso e grandes resultados; e a favor das
eternas forças da verdade que sempre funcionam de maneira
individual e imediatamente malsucedida, sempre em desvantagem,
até que a história chega, depois que há muito mortos, e os coloca no
topo.iv (JAMES, 2011, p. 90)

Crítico ácido de monismos ou perspectivas singularistas, James endossa um


pluralismo metafísico que o fará reconhecer no indivíduo a unidade concentrada de
potencial de ação transformadora, pois o desejo individual é uma condição da ação.
Segue-se, então, uma filosofia moral que responsabiliza as forças individuais – ou
“the invisible molecular moral forces that work from individual to individual” – pela
realização das consequências desejáveis à realidade, por mais distantes que
possam estar daqueles que as conduzem. Não só reconhecer a agência individual, o
liberalismo de James vai adiante e incentiva o empoderamento dessa agência, um
tipo de despertar de consciência civil e chamado para a ação. A intenção de James
é encorajar os espíritos de sua época para que a multiplicidade de consequências
individuais isoladas, consideradas sistemicamente, produzam a melhoria do sistema
como todo. Vale notar um trecho do pluralismo metafísico de James como sistema –
note como este está implícito em sua filosofia moral:

Os esforços humanos estão diariamente unificando mais e mais o


mundo em caminhos sistemáticos definidos. Encontramos sistemas
comerciais, consulares, postais, coloniais, cujas partes por inteiro
obedecem a influências definidas que se propagam dentro do
sistema, mas não a fatos externos. O resultado são inúmeros cachos
pequenos das partes do mundo dentro dos cachos maiores,
pequenos mundos, não somente de discurso, mas de operação,
dentro do universo maior. Cada sistema exemplifica um tipo ou grau
de união, estando suas partes ligadas àquele tipo peculiar de
relação, e a mesma parte pode figurar em muito sistemas diferentes,
14
como um homem pode ter várias profissões e pertencer a diversos
clubes. Desse ponto de vista “sistemático”, portanto, o valor
pragmático da unidade do mundo é que todas essas redes definidas
existem real e pragmaticamente. Algumas são mais envolventes e
extensivas; outras, menos, superpõem-se umas às outras; e entre
elas todas, não permitem que nenhuma parte elementar individual do
universo escape. Enorme como é a quantidade de desconexão entre
as coisas (pois essas influências sistemáticas e conjunções seguem
rigidamente vias exclusivas), tudo que existe é influenciado, de certa
maneira, por alguma outra coisa, se podemos seguir a trilha
corretamente. Falando despreocupadamente em termos gerais, pode
ser dito que todas as coisas coerem e aderem entre si de algum
modo, e que o universo existe praticamente em formas reticuladas ou
concatenadas, que fazem dele uma função contínua ou “integrada”.
(JAMES, 1980, p. 48).

O mundo por fazer, incompleto, um eterno projeto, é o palco de atuação do


individualismo de James como um chamado para a ação. Muito embora James se
opusesse veementemente contra monismos de qualquer forma, este advoga por
uma forma de coerentismo metafísico baseado num sistema de influências diretas e
indiretas que rejeita a reforma institucional para substanciar o indivíduo na rede de
influências em que está inserido. Por mais virtualmente invisíveis que sejam para o
indivíduo as reverberações de sua ação a nível sistêmico, elas ainda se seguirão
como consequências. A visão de James é uma espécie de holística que trata o
inacabado como eixo e espaço de atuação. Assim, o heroísmo meliorista se
apresenta como uma militância pelo protagonismo individual, e, em reconhecimento
disso, James não falhou em assumir, através do pragmatismo, sua função dentro do
sistema, como conciliador e orientador para consequências desejáveis.

[...] Ele [James] procurava estabelecer um critério que possibilitaria


determinar se uma dada questão filosófica tinha um significado
autêntico e vital, ou se, ao contrário, era trivial e puramente verbal; e,
no primeiro caso, quais interesses estavam em jogo quando alguém
aceitava e afirmava uma ou outra dessas duas teses em disputa.
Peirce era acima de tudo um lógico; enquanto James era um
educador e um humanista que desejava forçar o grande público a
reconhecer que certos problemas, certos debates filosóficos, tinham
importância real para a humanidade, porque as crenças que eles
colocam em jogo levam a modos de conduta bastante diferentes. [...]
(DEWEY, 2007, p. 231)

Há, de fato, muito mais que poderia ser dito de James. Sua atuação
intelectual foi incansável, acadêmica e publicamente. Muito nos escapa aqui pois
nos concentramos em como este contribuiu para a formulação de uma imagem do
pragmatismo.

15
1.3. John Dewey e a experiência natural

Dewey e James foram contemporâneos e atuaram juntos na arquitetura do


que hoje conhecemos como pragmatismo americano. Dito isso, há muito de comum
entre as ideias de ambos, embora Dewey não tenha atuado para a promoção do
pragmatismo em particular como o fizera James. Dewey ficou associado ao
pragmatismo pelo trabalho de refinamento que deu às suas ideias principais: o
princípio de consequência como critério de juízo das ideias, o anti-cartesianismo e
anti-reducionismo em todas as formas, a ênfase na agência, assim como na
responsabilidade sobre a melhoria do mundo. Dewey foi um behaviorista de
inclinação fortemente darwinista, e também um reformista: talvez seja a união destas
duas características que melhor sumarize o seu trabalho.

Dewey é popularmente conhecido pelos seus trabalhos em educação e


política, não surpreendentemente, visto que a sua atuação política enquanto social-
democrata e em defesa da reforma educacional americana foi vigorosa durante boa
parte de sua vida. Entretanto, estes dois tópicos são apenas uma parcela dos temas
a que Dewey se dedicou – e, de fato, não são os mais elementares: todo o trabalho
de Dewey se desdobra de sua teoria do conhecimento (ou “teoria do conhecer”,
como o mesmo preferia) e esta, por sua vez, carrega a influência de seu naturalismo
darwinista.

Talvez a maior distinção metodológica entre Dewey e James seja o que fica
simbolizado na metafilosofia de Reconstrução em filosofia (de agora em diante
tratada como RF). Enquanto que James procurou introduzir o pragmatismo como
uma solução conciliatória em que o princípio de consequência ditaria o valor das
ideias em jogo a partir de sua eficácia em produzir soluções satisfatórias no mundo,
Dewey procurou reformar a filosofia como um todo sob o princípio de consequência.
Uma vez que as ideias, ou significados, são regras de ação, isto é, portam
consequências em potencial, as consequências se tornam condição necessária para
as ideias. Assim, não seria suficiente simplesmente avaliar as ideias disponíveis sob
o prisma de suas consequências potenciais, como o fizera James, quando é
possível que as consequências sejam critério para a formulação de ideias. Dessa
forma, Dewey insistiu na relevância das consequências antevistas como
determinantes do conhecimento e da ação.

16
[...] Tal como James dissera, “toda a função da filosofia deveria
ser encontrar as influências características que você e eu
sustentaríamos em determinado momento de nossas vidas,
caso uma ou outra fórmula do universo fosse verdadeira.”
Entretanto, ao dizer que toda a função da filosofia consiste
nesse objetivo, parece que ele se refere mais ao ensino do que
à construção da filosofia. Pois tal afirmação implica que as
fórmulas de mundo já se encontram dadas, e que o trabalho
necessário a sua produção já estivesse concluído, de modo
que resta apenas definir as consequências que se refletem na
vida a partir da aceitação da verdade de uma ou outra dessas
fórmulas. (DEWEY, 2007, p. 232)

Como sugeri, a resposta a tal limitação de James foi o desenvolvimento da


proposta de reforma metafilosófica em RF. Na obra, Dewey procurou salientar o
modo como as determinações socioculturais poderiam ser determinantes do grau de
avanço técnico e da natureza do avanço intelectual da sociedade grega clássica, o
que se refletia no modo de produzir filosofia. Isto é, Dewey indicou que a forma
como tal sociedade se estruturava, sendo sintoma da mentalidade da época,
também se expressaria na produção filosófica e no desenvolvimento tecnológico da
mesma. Assim, Dewey aponta que, embora os gregos tenham progredido
intelectualmente de forma inestimável, não produziram avanço técnico-tecnológico
significativo. Segue-se que, numa sociedade escravagista e estamental como a
Grécia antiga – isto é, organizada numa hierarquia de classes sociais fixas e sem
mobilidade social –, este descompasso entre desenvolvimento intelectual e
desenvolvimento tecnológico não seria surpreendente uma vez que as artes
manuais, ou laborais, eram consideradas atividades típicas das classes subalternas
e, com isso, indignas da apreciação intelectual dedicada. Segue-se também que não
seria surpreendente que a produção filosófica da época fosse orientada pela crença
de que o universo é formado por uma hierarquia de categorias fixas, e que a
produção intelectual, em oposição às artes manuais, fosse restrita a uma das
classes de distinção social privilegiada. A consequência evidente seria o
investimento no trabalho do pensamento abstrato e a estagnação das formas de
trabalho concreto.

Entretanto, o diagnóstico de Dewey é antes uma justificação para o seu


projeto metafilosófico do que uma crítica aos feitos técnico-tecnológicos dos gregos.
O que Dewey tentará replicar com a RF e que encontra manifesto no fenômeno

17
grego é a íntima conexão entre a mentalidade de época e a produção filosófica.
Desta forma, o plano de reforma filosófica deweyana circunscrita no pragmatismo
americano não procuraria produzir filosofia aos moldes gregos, mas, pelo contrário,
criticou veementemente a permanência dos temas e formas do pensamento
filosófico clássico como tendências dominantes no mundo contemporâneo. Dewey
pretendeu que, a exemplo dos gregos, a filosofia contemporânea fosse forjada sob
os moldes de seu próprio tempo.

[...] Quanto à filosofia, sua profissão de operar com base no eterno e


imutável é o que lhe confere uma função e um objeto, os quais, mais
do que qualquer outra coisa, constituem a razão de seu crescente
menosprezo popular e da falta de confiança em suas pretensões.
Com efeito, a filosofia opera protegida por aquilo que é atualmente
repudiado pela ciência, escorando-se apenas em antigas instituições
cujo tripé – prestígio, influência e vantagens de poder – depende da
preservação da antiga ordem; e isto justamente no tempo em que as
condições humanas são tão conturbadas e instáveis que exigem,
com mais urgência do que no passado, algo como aquela visão
abrangente e objetiva na qual as filosofias históricas se
empenharam. [...]. (DEWEY, 2011, p. 17)

A reforma filosófica de Dewey deveria, então, ter por fundamento os modos


de produzir conhecimento atualizados. Daí que, desde Peirce, o método científico
encarnava, para o pragmatismo, o modo mais confiável de produzir conhecimento e,
da mesma forma, Dewey pretendeu que a filosofia deveria se desenvolver aos
moldes do método científico. Mais que isso, Dewey reconhecia os efeitos que o
progresso científico tem tido sobre a humanidade no decorrer da história e a reforma
do método filosófico, a exemplo da prática científica, implicaria imbuir a filosofia de
maior responsabilidade e relevância uma vez que almejaria efeitos diretos sobre o
curso dos eventos. Tratava-se, antes de tudo, de aplicar o princípio de
consequência à produção filosófica. Nas palavras de West:

[...] Reformar e reconstruir a filosofia é tanto desmistificar quanto


defender o modo mais confiável de investigação na cultura moderna,
a saber, a inteligência crítica, que melhor se manifesta na
comunidade de cientistas. E desmistificar e defender a inteligência
crítica significa torná-la cada vez mais útil para o aprimoramento da
individualidade humana, isto é, a promoção de seres humanos que
melhor controlam suas condições e, assim, se criam mais
plenamente (isto é, promovem a democracia criativa).v (WEST, 1989,
p. 72)

Como justificar o princípio de consequência como condição do conhecimento


– e, subsequentemente, da reforma filosófica aos moldes da prática científica? A
18
resposta é encontrada, antes de mais nada, na interpretação naturalista de Dewey
da experiência humana. Em Logic: The theory of inquiry (tratada de agora em diante
como ToI), Dewey procurou sintetizar sua filosofia da ciência dando ênfase ao
aspecto experimental como base do procedimento científico. Porém, é em
Experience and Nature (EN) que Dewey revela como o modo de conhecer é
naturalmente fundado numa atitude prospectiva basilar da nossa experiência do
mundo, de onde o método científico seria uma forma com critérios mais rigorosos do
mesmo modo de conhecer. Assim, Dewey divide estas duas instâncias em atitude
científica e método científico.

Para Dewey, a experiência é um evento de longa duração que compreende


número indefinido de eventos menores (o fluxo de coisas interagindo entre si).
Assim, a presença do organismo humano diz respeito ao modo como as coisas são
experienciadas. Trata-se, então, de investigar o funcionamento do modo como
experienciamos. No que diz respeito à ciência, a experiência se dá de forma
controlada e dirigida pelo método científico: há limites procedimentais
convencionados pela comunidade científica que visam garantir a razoabilidade dos
resultados. A experiência comum não se organiza sob o mesmo método. Entretanto,
tem por base a mesma lógica da experimentação. Desprovido de conhecimento
sobre o funcionamento das coisas, o organismo humano interage com elas e, com
isso, revela potencialidades que a interação de uma ou outra natureza com dado
ente tende a produzir. Assim formam-se asserções sobre o funcionamento do
mundo garantidas pela experiência com ele (warranted assertions). Tais asserções
são replicáveis: experimenta-se novamente e verifica-se se a sua validade se
mantem. Também são generalizáveis: aplica-se a outros entes um procedimento já
familiar a fim de revelar deste suas potencialidades. De uma forma ou outra, a
interação produzirá asserções garantidas: se o resultado corresponder às
expectativas, é seguro assumir que o ente pode evocar tais efeitos sob estas
condições; inversamente, é seguro assumir que o ente evoca tal outro efeito agora
descoberto sob estas condições. Dito de outra forma, a nossa experiência do
mundo, ou o modo de conhecimento, parte de e gera hipóteses, verificáveis e
generalizáveis por natureza, o que conduz o comportamento humano em todas as
instâncias. Assim, por experimentação, formam-se protocolos de conduta à medida

19
que o conhecimento do funcionamento das coisas é enriquecido com novas
asserções garantidas. 4

É notável aqui o anti-dualismo de Dewey: o conhecimento não é reduzido a


uma propriedade de um ente que reflete sobre a realidade, tampouco é uma
propriedade intrínseca a ser descoberta na coisa em si. Trata-se do fruto de uma
interação qualificada entre o organismo e o meio que transcende ambos e, com isso,
produz um continuum natural entre sujeito e objeto: é o que denominamos
experiência. No que diz respeito à ciência, o instrumento que qualifica tal interação é
o método científico.

Uma vez que é constatado que o conhecimento é produzido na interação com


o meio de forma que produz significado funcional sobre as condições de vida e ação,
é possível instrumentalizar novas gerações com o conhecimento já produzido e
atestado pela experiência humana no tempo. Assim, a geração de conhecimento
não se ateria a um movimento circular onde os mesmos experimentos deveriam ser
repetidos por cada nova geração: daí a insistência de Dewey sobre a relevância da
educação, não somente como um instrumento para otimizar a evolução intelectual
individual, visto que o aprendizado é justificado em termos naturalistas, mas como
meio para conduzir o avanço do conhecimento humano, pois dessa forma é possível
produzir modificações nas condições existenciais que tornem nossa experiência com
o mundo mais vantajosa. Voltarei a discutir sobre a base naturalista do aprendizado
no capítulo seguinte.

A experiência, em Dewey, não se encerra em si mesma, isto é, não é um fim


em si mesmo. Veremos no desenvolvimento do trabalho, em especial no capítulo
terceiro, que a experiência é um processo com diversos graus de consequências
que se justificam. Desta forma, a consequência para a educação, por exemplo, pode
ser considerada a evolução intelectual do indivíduo: assim, a consequência justifica
o processo. Segue-se que a consequência da evolução intelectual do indivíduo é a
gestão inteligente de sua condição existencial, que, por sua vez, tem por
consequência a modificação do meio, e assim sucessivamente. Dewey atacou a

4
No capítulo seguinte, assim como no capítulo terceiro, detalharei mais sobre a experimentação como
condição natural do conhecimento.

20
noção de fins em si mesmos, visto que qualquer interação tende a produzir efeitos
que a justificam. O conceito de fim em si mesmo não seria mais que a ausência de
clareza sobre os efeitos que tal ou outra interação tendem a produzir. Assim, uma
vez que se apropria do fato de que qualquer forma de experiência produz efeitos, as
consequências desejáveis podem ser antevistas e a experiência manipulada a fim
de se materializar tais consequências. Com isso, meios podem ser fins, uma vez que
são demandas para consequências ulteriores e estas, por sua vez, são
inerentemente meios para outras consequências/efeitos. A discussão sobre graus de
consequências ficará melhor definida quando abordar o tópico da linguagem, no
capítulo terceiro.

Observemos que a agência em Dewey se baseia na concepção de que as


consequências determinam o tipo de interação que se seguirá, isto é: quando
antevistas (ou a serem descobertas), fazem do conhecimento uma atitude
prospectiva (em oposição a noções mais populares que associam conhecimento e
capacidade de introspecção ou retrospecção). A implicação desse estado do
conhecimento para as asserções garantidas pela experiência é que estas só se
mantêm enquanto as condições que asseguram sua validade se mantiverem ou, dito
de outra forma, enquanto as expectativas de consequências formadas na validação
por experimentação forem atendidas de acordo, o que significa dizer que as
asserções garantidas são contingentes e em estado experimental permanente:
alterações no estado de coisas podem gerar consequências imprevistas, o que leva
à desestabilidade da crença (ou asserção garantida) e à consequente revisão desta
e/ou das condições existentes de operacionalidade. É preciso lembrar que, por mais
complexo que possa parecer o desdobramento desse processo, trata-se de um
protocolo natural do comportamento que ocorre sutil, porém incessantemente, em
qualquer instância da vida humana.

Entretanto, a insistência de Dewey na abordagem naturalista não pretendeu


produzir uma forma de reducionismo darwinista (visto que este é um equívoco
recorrente quando se trata de tentativas de justificar tendências humanas em termos
darwinistas). Como já foi bem mencionado, a proposta do pragmatismo como um
todo, e do pragmatismo/instrumentalismo de Dewey buscou, antes de mais nada, o
empoderamento humano sobre a circunstância. Desta forma, o naturalismo

21
deweyano é uma tentativa de revelar a dinâmica de um processo cujo
funcionamento se reproduz em todas as instâncias – e ao qual a filosofia até então
falhara em atender. Assim, pela descoberta e ciência do funcionamento do
processo, torna-se possível conduzi-lo a produzir as consequências desejadas.

[...] As adaptações feitas pelos organismos inferiores, por exemplo,


suas respostas efetivas e coordenadas aos estímulos, tornam-se
teleológicas no ser humano e, por conseguinte, ocasionam o
pensamento. A reflexão é uma resposta indireta ao ambiente e o
elemento não-diretivo pode tornar-se grande e muito complicado.
Mas ele tem sua origem no comportamento adaptativo biológico e a
função última de seu aspecto cognitivo é um controle prospectivo das
condições do ambiente. A função da inteligência, portanto, não é
aquela de copiar os objetos do ambiente, mas sim de levar em
consideração a maneira pela qual possam ser estabelecidas relações
mais efetivas e mais proveitosas com esses objetos no futuro. [...] em
geral, o “sujeito” de um juízo representa aquela porção do ambiente
na qual a reação deve ser feita; o predicado representa a possível
resposta, ou hábito, ou modo pelo qual alguém deve se comportar
diante do ambiente; a cópula representa o ato orgânico e concreto
pelo qual se faz a conexão entre o fato e sua significação; e,
finalmente, a conclusão, ou o objeto definitivo do juízo, é
simplesmente a situação inicial transformada, uma situação que
implica uma mudança do sujeito original (incluindo sua mente) assim
como uma mudança do próprio ambiente. [...] (DEWEY, 2007, p.
239).

Em linhas gerais, conhecer a realidade implica, inexoravelmente, modificá-la.


Essa “metafísica do devir” de Dewey para quem o futuro influencia o presente que
virá a tornar-se um presente modificado é o que será a base para a proposta de que
as ideias sejam instrumentalizadas. Isto é, para Dewey, a gestão das tendências
naturais da experiência significaria transformar estados de ocorrências espontâneas
e imprevistas em sistemas de funções à disposição para satisfazer os desejos do
agente. Assim, o controle das condições existentes implicaria um continuum na
relação entre sujeito e ambiente cuja interação produz mudanças em ambos e, dado
o pragmatismo, as condições existentes forçam o sujeito a promover a melhoria das
condições ambientes (incluindo a si mesmo) que produz condições existenciais mais
vantajosas para o sujeito que, por sua vez, se adapta a uma realidade transformada
em acordo com suas demandas.

Por fim, é interessante notar a analogia apresentada por Dewey entre os


elementos da sintaxe da língua natural e os elementos da experiência. Como
veremos no decorrer do trabalho, a teoria da linguagem de Dewey difere das

22
tendências contemporâneas que reduzem a linguagem a um sistema de proposições
com valor de verdade. Em James, a noção de falseabilidade para o pragmatismo foi
enfraquecida e, em Dewey, foi de fato descartada – e suplantada pela noção de
“asserções garantidas”. Dessa forma, a linguagem é concebida como um sistema de
funções, isto é, um instrumento com vistas a fins desejados. Com isso, a linguagem
deixa de ser apenas um modelo de representação do mundo e é assumida como um
meio para a ação no mundo.

1.4. Considerações preliminares

Neste primeiro capítulo, procurei apresentar, de forma suscinta, a história da


elaboração do pragmatismo americano. Tomei como referência para representar
suas fases de amadurecimento os três expoentes mais conhecidos – Peirce, James
e Dewey – a fim de destacar os aspectos mais relevantes que cada um destes pôde
fornecer para a formulação do pragmatismo, assim como denotar os aspectos que
marcam divergências entre estes, o que promoveu uma gradual evolução e
refinamento das teses do movimento sem, no entanto, perder de vista os elementos
que lhe conferem unidade. O mesmo percurso textual foi executado por Dewey em
DPA, de onde me inspirei para a estrutura deste capítulo introdutório.5 Nesta seção
pretendo sintetizar os principais tópicos expostos anteriormente.

Primeiramente, apresentei como a Peirce são creditadas a fundação do


pragmatismo americano e a primeira tentativa de aplicação do princípio de
consequência como critério de juízo do valor das ideias. Influenciado por Kant,
Peirce produziu uma revisão da lógica científica baseada no conceito kantiano de
“pragmática”. Assim, o primeiro esboço do pragmatismo se concentrou
exclusivamente na reformulação do método científico. Tal reformulação foi também
marcada por uma crítica anti-cartesianista – visto que o cartesianismo era a
tendência metodológica hegemônica da produção intelectual da época – e, com isso,

5
O recorte histórico de Cornell West, entretanto, a quem recorri como fonte para a história do
pragmatismo, difere no que diz respeito a seus expoentes: West reconstrói o pragmatismo partindo
de Emerson, sendo este a fase “pré-histórica” do pragmatismo americano e, posterior a Dewey,
houve a adição de Richard Rorty e Willard van Orman Quine. Não considerei estes dois últimos pois
esta investigação culmina nas contribuições de Dewey. Quanto a Emerson, considerei que a escolha
por incluí-lo sob o pragmatismo foi única de West, uma vez que Emerson não produziu textos
sistemáticos (sua produção foi, até onde conheci, de natureza poética) e que o termo “pragmatismo”
só surgirá posteriormente com Peirce.

23
pela reintegração da relação sujeito-objeto na experiência e na atividade do
pensamento. Deste modo, as formas de reducionismo que ou sustentavam o sujeito
como fonte absoluta de conhecimento ou o descartavam como fonte segura de
conhecimento foram enfraquecidas pela tese de que ambos, sujeito e objeto, têm
participação inegociável no ato de conhecer.

Peirce sustentou que as ideias, em primeiro momento, gozam de status de


hipóteses. Hipóteses, ou pressupostos, deverão ter sua validade aferida mediante
experimentação. Isto é, a formulação de uma ideia, que em primeiro momento não
possui status ontológico de falsa ou verdadeira, conduz a interação do sujeito com o
objeto, o que revela aspectos da realidade do objeto. Desta forma, conjuntos de
proposições sobre a natureza das coisas vão gradativamente se acumulando, razão
pela qual Peirce defendeu – também em oposição à tendência cartesianista – a
importância de se considerar o processo de evolução histórica dos instrumentos da
razão: estes tendem naturalmente ao refinamento e, com isso, fornecem respostas
cada vez mais precisas sobre a realidade. Assim, a lógica do método científico como
concebido por Peirce sob a perspectiva do pragmatismo considera as ideias (ou
conceitos) por seu valor operacional cuja consequência primeira deve ser produzir
explicações eficientes sobre o mundo.

Outra consequência do método científico pragmatista para Peirce seria a


promoção de uma comunidade concordante de homens razoáveis. Diferentemente
de James, o telos do pragmatismo centrava-se na comunidade, pois o que
asseguraria a eficácia do método seria a comunidade de conhecedores que o
aplicam e que assim devem observar o rigor de sua aplicação e de seus resultados.
Por consequência, com a manutenção e progressiva evolução do método, o
aperfeiçoamento da comunidade se seguiria. O método científico, sendo uma “lei da
percepção”, se corrige através da comunidade e conduz seu avanço intelectual.

O estado de concordância entre os homens que para a ciência deveria ser


alcançado pelo método, Peirce acreditava que, no que diz respeito a proposições
morais, era naturalmente encontrado na comunidade cristã. Daí se segue a razão de
Peirce ter restringido a “pragmática” kantiana ao método científico e reservado a
“prática” a questões morais. Mesmo em face de discordância sobre os elementos do
sacramento, observara Peirce, as consequências destes para o espírito e a conduta
24
da comunidade são as mesmas. Entretanto, o escopo de aplicação do pragmatismo
como concebido por Peirce pareceu limitado para James.

No capítulo seguinte, esboço as contribuições de James ao pragmatismo,


com destaque para o esforço de James em introduzir e promover o pragmatismo
publicamente nos círculos de debate da época. Mais que isso, James procurou
sintetizar uma definição do pragmatismo. Como intelectual público, James foi
sensível à atmosfera da época: notou a tendência de dois temperamentos
dominantes subjacentes às preferências teóricas defendidas que geravam o então
antagonismo insolúvel. Notou, também, o descontentamento do homem comum com
os assuntos filosóficos em razão do crescente distanciamento entre a filosofia e a
vida ordinária. Assim, dado o princípio de consequência, tentou introduzir o
pragmatismo como alternativa para a resolução de discordâncias teóricas ao passo
que assegura algum grau de relação entre estas e a realidade do senso comum.
Pela aplicação do princípio de consequência seria possível revelar, na disputa entre
duas proposições, qual se trataria de um exercício reflexivo exclusivamente abstrato
e qual teria potenciais efeitos existenciais concretos. Desta forma, a que atendesse
a este segundo aspecto seria validada pelo princípio de consequência. Em suma, a
definição do pragmatismo de James seria de um sistema para a dissolução de
disputas filosóficas.

James também tentou fornecer uma noção mais refinada de consequência.


Diferentemente de Peirce, James acreditava que a consequência da aplicação do
pragmatismo para o senso comum seria o melhoramento da performance individual,
visto que as consequências seriam consideradas antes da ação e a ajustariam. Pelo
melhoramento do indivíduo, dizia James que tinha uma apreciação metafísica
sistêmica, este seria capaz de transformar suas relações dentro do sistema de forma
a torná-las mais proveitosas e, com isso, modificaria o sistema em si – e as relações
entre sistemas – como uma consequência acidental. Pela concepção de que as
consequências das ideias devem ser consideradas como critério de seu valor, as
ideias tornam-se instrumentalizáveis. Tal formulação pública do modo como aplicar o
princípio de consequência pelo indivíduo atraiu a atenção de críticos para James (e
o pragmatismo). Uma crítica, em particular, é respondida por Dewey em DPA:

25
William James disse, em uma metáfora feliz, que elas [as ideias]
“devem ser contabilizadas” (must be cashed in) pela produção de
consequências específicas. Essa expressão significa que elas devem
ser capazes de levar a fatos concretos. Mas aqueles que não estão
familiarizados com a fraseologia americana, tomam a fórmula de
James como se as consequências de nossas concepções devessem
estar estreitamente limitadas ao seu valor pecuniário. Assim o Sr.
Bertrand Russell escreveu recentemente que o pragmatismo é
simplesmente a manifestação do espírito comercial americano.
(DEWEY, 2007, p. 236).

A observação de que as ideias, quando consideradas à luz de suas


consequências práticas, tornam-se instrumentos para o aperfeiçoamento da ação e
melhoramento da vida será de grande valor para Dewey, como apresentei na
terceira seção deste capítulo. Dewey notou que o avanço intelectual da Grécia
clássica não fora acompanhado por avanço técnico-tecnológico. A razão disso,
segundo Dewey, é que a organização social e o imaginário do homem grego não
concediam valor às artes manuais que as tornassem dignas da reflexão abstrata,
sendo esta última atividade reservada a um estrato privilegiado da hierarquia social.
Assim, a reforma filosófica proposta por Dewey pretendeu que a filosofia
contemporânea deveria estar em sincronia com as necessidades do mundo
contemporâneo.

A raiz do projeto metafilosófico de Dewey é o modo de produção de


conhecimento, ao qual a filosofia, sendo um modo especializado de produção de
conhecimento, deveria se submeter. Assim sendo, Dewey pretendeu investigar o
funcionamento do conhecimento. Segue-se que o conhecimento é um produto da
interação entre organismo e ambiente: quando o organismo interage com o mundo,
isto é, experimenta com o mundo, forma asserções garantidas pela experiência
sobre o funcionamento das coisas. Assim, o conhecimento não reside no sujeito
conhecedor nem no objeto conhecido, mas transcende a existência isolada de
ambos e revela potencialidades descobertas na interação de um ou outro tipo. Tais
asserções garantidas constituem protocolos de conduta para novas interações que
serão verificáveis por experimentação. Para Dewey, esta é a base do processo de
conhecer, do qual o método científico é um modelo com critérios rigorosos de
verificação (validação).

Desta forma, as consequências são condição da nossa experiência (sejam


antevistas ou a serem descobertas) e, quando apresentam regularidade e
26
previsibilidade, tornam-se funções para a gestão inteligente da vida: se
consideramos as consequências potenciais de nossas interações, podemos conduzir
tais interações de forma a produzir consequências desejáveis. O conhecimento,
dado que é prospectivo, implica a transformação do ambiente: ao agente cabe
avaliar suas demandas existenciais de forma a conduzir tais transformações a seu
favor. À filosofia caberia aplicar a mesma atitude experimental: formular hipóteses
verificáveis para a otimização da performance humana individual e gestão inteligente
das condições existenciais. Isto é, Dewey propôs uma reforma em que a filosofia,
assim como a ciência, produzisse efeitos concretos, e o meio para isso seria
considerar as consequências como condição necessária para a formulação de
proposições experimentáveis: que as ideias fossem instrumentalizadas.

27
2. O paralelo entre Darwin e Dewey

Neste capítulo tentarei responder a estas três questões principais: de acordo


com Dewey, o que deve a cultura científica em geral a Darwin?; o que deve o
pensamento de Dewey a Darwin?; e o que Darwin tem a dizer sobre a linguagem?
Como se nota, são três questões que estão circunscritas uma na outra: tentarei
solucioná-las de forma progressiva. No capítulo anterior ficou entendido que todo o
trabalho de Dewey irradia de sua teoria do conhecimento. Esta, por sua vez, tem por
referência uma base fortemente naturalista.

Considerarei como as duas obras principais para a teoria do conhecimento de


Dewey ToI e EN. Sobre a influência de Darwin no pensamento contemporâneo,
tomarei como referência The influence of Darwin on philosophy (referida de agora
em diante como IoD) e Reconstrução em filosofia (RF), ambos de Dewey. Por fim,
darei voz a Darwin com A origem das espécies (OE) e mais enfaticamente com A
origem do homem (OH). A partir deste último deverá ficar claro como os escritos de
Darwin podem, pelo menos, ter servido de antecedentes para a teoria da linguagem
em Dewey.

As duas primeiras questões serão tratadas mais brevemente, visto que o


montante de trabalhos que exploram a influência geral de Darwin em Dewey é
extenso e tem expandido recentemente: dedicar-lhes espaço aqui deveria ser feito
com parcimônia para não fugirmos de nosso escopo de investigação. As demais
escolhas bibliográfica deverão justificar-se no desenvolvimento da investigação.

2.1. A virada darwinista

A admiração de Dewey pelo trabalho de Darwin está intimamente ligada à


mudança de paradigma nas ciências naturais na qual este se insere – mudança esta
que, posteriormente, Dewey tentará executar na filosofia. Assim, muito embora
densamente naturalista, a teoria do conhecimento de Dewey é de um naturalismo
tipicamente darwinista, em oposição às tradições naturalistas anteriores. A
relevância de tal mudança de paradigma do pensamento contemporâneo – que se
preserva hegemônica na pesquisa científica ainda hoje – fica abertamente expressa
na conferência realizada por Dewey para a Columbia University em 1909, depois
publicada sob o título IoD, menos de vinte e cinco anos antes da publicação de EN.

28
Nesta, Dewey não só expõe a revolução de Darwin para a prática científica, mas
também como a publicação de OE provocou um desequilíbrio em pressupostos
cristalizados na cultura intelectual como um todo. A ruptura do consenso que daí
vem é expressa como um choque entre a tradição e a vanguarda na luta pelo
domínio das premissas que dirigiriam a produção do conhecimento. 6

Segundo Dewey, a tradição intelectual anterior a Darwin, especialmente nas


ciências naturais, se baseava em pressupostos filosóficos que remontam aos
clássicos gregos. Tais pressupostos conduziam a investigação científica em direção
à busca por elementos fixos e finais imaginados como subjacentes aos processos
naturais de transformação. Desta forma, leis e princípios universais eram cultuados
como o objeto de excelência das ciências naturais – assim como na filosofia –
enquanto que os aspectos da transformação dos organismos eram negligenciados
como meras acidentalidades, isto é, caracteres de ordem inferior e transitória que
não poderiam ser dignificados pela atenção científica a não ser em razão de
justificarem a primazia de leis transcendentais. Em suma, a crença na presença de
uma realidade fantasmática organizadora a ser descoberta por trás da realidade
imediata à qual a experiência tem evidente acesso destituía essa mesma
experiência de sua validade. O processo era compreendido como mera contingência
da realização das formas finais, tipos:

Esta atividade formal que opera ao longo de uma série de mudanças


e as mantém em um único curso; que subordina seu fluxo
desordenado à sua própria manifestação perfeita; que, saltando as
fronteiras do espaço e do tempo, mantém indivíduos distantes no
espaço e remotos no tempo em um tipo uniforme de estrutura e
função: esse princípio parecia dar uma visão da própria natureza da
realidade. Para ele, Aristóteles deu o nome de είδος. Este termo os
escolásticos traduziram como espécie.vi (DEWEY, 1909, p. 2)

Diante disso, a noção de espécie como forma final e verdadeira era não só
compreendida como princípio imutável da natureza como, por consequência,
também o objeto legítimo do conhecimento e da lógica da ciência:

6 Vale notar, entretanto, que Dewey não considera exclusivamente Darwin como personalidade do
espírito moderno que desencadeou a revolução científica. Na verdade, uma variedade de outros
expoentes figura na obra de Dewey como exemplos da tendência intelectual em emergência desde o
século XVII, tais como Herber Spencer e, em especial, Francis Bacon. Dado o nosso recorte de
investigação, estes serão evitados discutir.

29
[...] Genuinamente conhecer significa compreender um fim
permanente que se realiza através de mudanças, mantendo-as
dentro dos limites e fronteiras da verdade fixa. […] Visto que, no
entanto, a cena da natureza que nos confronta diretamente está em
mudança, a natureza, como direta e praticamente experimentada,
não satisfaz as condições do conhecimento. [...]vii (DEWEY, 1909, p.
2)

Uma vez que a experiência humana da realidade é primariamente sensorial e,


com esta, somos inundados pelo constante fluxo de mutabilidade da natureza, assim
também a percepção sensorial seria descartada como fonte de conhecimento em
detrimento de um conhecimento puramente ideal. Daí que o conhecimento
verdadeiro só poderia residir numa instância exclusivamente separada da
experiência do mundo, segura de toda a mutabilidade e só possível de ser
alcançada pela fuga do fluxo das coisas.

Com a publicação da OE, Darwin atentou contra esse excesso de idealismo


que negligenciava a realidade concreta e contra as autoridades que preservavam
tais pressupostos como pedra angular do conhecimento: a OE advogou uma
“transferência de interesse” das permanências para as mudanças. Segundo o
testemunho de Dewey, Darwin indicou tanto a impossibilidade, para a inteligência
humana, de compreender ordens transcendentais assumidas como além do
entendimento humano (neste caso, a ideia de design inteligente) quanto o fato de a
questão em si mesma ser injustificada. Dessa forma, seria paradoxal que a
investigação científica buscasse confirmar pressupostos transcendentais a partir de
evidências da experiência e, dada a confirmação destes, descartar a primazia das
evidências que a tornaram possível, ou o que torna o caso mais desonesto:
descaracterizar as evidências que contradizem os pressupostos.

Como foi sugerido, a noção de "tipos" conduzia a investigação dos


naturalistas na época de Darwin. A OE pode ser interpretada como uma monografia
de revisão da categoria ontológica dos tipos. Na obra, Darwin discute
exaustivamente, contrapondo os evidentes dissensos nos relatórios dos naturalistas,
o caráter do que se compreendia como "espécie" em sua oposição com "variedade".
É comum, nos trabalhos levantados por Darwin, que o que alguns naturalistas
consideravam "espécie", outros consideraram "variedade" e vice-versa. Para ficar
claro aqui, "espécies" eram consideradas categorias fixas, imóveis, a priori;
"variedades" eram acidentalidades, formas provisórias. Segue-se o problema de que
30
quando novas formas eram descobertas, ou seriam classificadas como variação de
espécie por uns, ou nova espécie por outros: a segunda implicando que tal forma
descoberta sempre existira como razão do ser, e a primeira que sua existência não
expressa permanência, isto é, que se trata de uma ocorrência acidental que a
natureza, regida por suas leis imanentes de perfeição e harmonia, se encobrirá de
extirpar, visto que somente os tipos são permanentes. Darwin observara com isso o
problema de definição das classificações em si e a crença que residia por trás do
dilema, crença esta que Dewey destacou como herança do pensamento clássico:

[…] O mundo em que os filósofos de antigamente se baseavam era


fechado; consistia, internamente, num limitado número de formas
fixas e, externamente, se possuía fronteiras bem definidas. O mundo
da ciência moderna é aberto, indefinidamente variável, sem a
possibilidade de ser circunscrito em sua constituição interna; um
domínio que, externamente, se estende além de qualquer fronteira.
Em segundo lugar, o mundo em que até os homens mais inteligentes
de épocas anteriores julgavam viver, era um mundo fixo, um domínio
em que qualquer mudança somente acontecia dentro de limites
imutáveis de inércia e permanência; em que a imobilidade, como já
observamos, era superior, mais importante em qualidade e
autoridade, do que o movimento e a mudança. Enfim, aquele que os
homens viam, retratavam na imaginação e reproduziam em seus
planos de conduta, era um mundo de reduzido número de classes,
espécies, formas distintas e separadas por qualidade (como devem
ser as formas e espécies) e dispostas numa ordem graduada de
superioridade e inferioridade. (DEWEY, 2011, p. 70)

A força da destituição do status ontológico transcendental do conceito de


"espécie" impõe a questão de como os tipos se constituem. Dizer que são o estágio
perfeito de autorrealização do indivíduo em sua forma final não seria suficiente, pois
a própria ideia de tipo derivava da observação de semelhanças e dissidências e se
cristalizara como princípio transcendental em vez de conceito operacional. Não era
assim, uma questão de se os organismos evoluem, visto que a ideia de evolução
remonta a Aristóteles, mas sim de superar a ideia de que há uma forma final que
dirige a evolução de maneira independente e ordenada. O curso que Darwin tomou
foi o de apontar que é (1) mais razoável acreditar que há um conjunto de variáveis
que forçam o surgimento, variação, desaparecimento, permanência e,
principalmente, acumulação de características individuais e comuns que, dada a
devida passagem de gerações, distanciará ou não os indivíduos de seus ancestrais
em maior ou menor grau; e que (2), considerando (1), não é razoável conceber a
ideia de "tipo" ou "espécie" senão como uma instrumentalidade classificatória, uma

31
vez que o aspecto de imprevisibilidade nas variações do organismo mina o
argumento da "autorrealização dos tipos" – estes pontos deverão ficar mais claros
adiante. Tomemos o trecho seguinte para sumarizar a visão de Dewey sobre a ideia
clássica de evolução que se contrastará com Darwin:

[…] O desenvolvimento refere-se apenas ao curso de mudanças


percebidas num indivíduo particular da espécie; é só um nome para o
movimento predeterminado que vai do fruto ao carvalho. Verifica-se,
não nas coisas globalmente tomadas, mas só em algum dos
indivíduos numericamente insignificantes da espécie “carvalho”.
“Desenvolvimento”, “evolução” nunca significam, tal como acontece
na ciência moderna, origem de novas formas, mutação de velhas
espécies, mas apenas a passagem monótona de um ciclo de
mudanças previamente planejado. Do mesmo modo, a palavra
“potencialidade” não significa, como na vida moderna, possibilidade
de inovação, de invenção, de desvio radical, mas somente o princípio
em virtude do qual o fruto se transforma em carvalho. Tecnicamente
é a capacidade de movimento entre polos opostos. […]
Potencialidade, em vez de implicar o aparecimento de qualquer coisa
nova, significa meramente a facilidade com que uma coisa em
particular repete os processos periódicos de sua espécie e, sendo
assim, se torna um caso específico das formas eternas, nas quais e
pelas quais todas as coisas são constituídas. (DEWEY, 2011, p. 72)7

O que é evolução para Darwin, então? A conclusão a que podemos chegar


até aqui é que, em certa medida, os tipos são contingentes: tipos permanecem, ou
perecem, ou novos tipos surgem. A sobrevida dos tipos está condicionada ao grau
de adequação do organismo às condições ambientes às quais está submetido.
Alterações nas condições ambientes forçam o organismo a desenvolver-se em uma
ou outra direção de forma a preservar a existência da espécie em face do desafio da
sobrevivência. Os organismos que desenvolvem variações eficazes para a
sobrevivência prevalecem. O acúmulo de sucessivas e permanentes variações que
satisfaçam as necessidades do organismo em relação às condições existentes
determina a manutenção da vida assim como tende a gradualmente promover a sua

7 Para melhor ilustrar a diferença nas implicações científicas dessas duas formas de conceber o
processo evolutivo, trago o exemplo seguinte: na versão aristotélica, a descoberta da evolução
explicaria, por exemplo, o fato de que os exemplares adultos de certas espécies de insetos que
passam por metamorfose são a forma final de um processo que se inicia com o inseto em forma larval
(assim, de larva a adulto); já na versão darwinista, não é somente o caso de que larvas se
desenvolvem em formas distintas de si, mas também há a descoberta de que a forma larval nem
sempre foi uma fase existente no ciclo de vida de grande número de espécies que hoje por ela devem
passar para se transformarem em formas adultas. Na verdade, hoje é consenso que, no processo
histórico de evolução dessas espécies, a forma larval surgiu posteriormente como uma fase
destinada exclusivamente à nutrição do organismo, como adaptação a condições adversas
necessária para a maturação do organismo.

32
mutação em uma nova espécie. Entretanto, frente à necessidade de adaptação
imposta por novas condições ambientes ao indivíduo, há o caso de organismos que
não variam de forma adequada, ou não variam de forma alguma, ou desenvolvem
variações que não se preservam nas gerações posteriores: segue-se assim a sua
gradual extinção, o que Darwin nomeou de seleção natural. Assim, podemos dizer
que o significante da variabilidade são as condições ambientes nas quais o indivíduo
se encontra, ou como Darwin coloca, “[…] As alterações nas condições de vida têm
a mais relevada importância como causa de variabilidade porque estas condições
atuam diretamente sobre o organismo [...]” (DARWIN, 1979, p. 46).

Essa breve síntese que descrevi aqui do processo evolutivo apresentado em


OE nos serve para evidenciar a mudança elementar de foco no pensamento
científico: antes orientado para a revelação dos princípios gerais transcendentais,
agora se orientaria para a observação das contingências na relação entre indivíduo
e meio na busca por sua própria manutenção. Em suma: a ordem transcendental e
as formas finais foram substituídas pela contingência e relação indivíduo-meio. Com
isso, o que Darwin ofereceu à ciência de sua época, bem como à cultura intelectual
em geral, foi uma forma de produzir conhecimento regulada exclusivamente pela
observação de variações individuais e experimentação ativa. Dewey resume tal
“mudança de interesse” no pensamento científico da seguinte forma:

[…] O interesse muda da indiscriminada essência por trás de


mudanças específicas para a questão de como tais mudanças
servem e derrotam propósitos concretos; muda de uma inteligência
que moldou as coisas de uma vez por todas para as inteligências
particulares para as quais as coisas estão tomando forma até mesmo
agora; muda de um objetivo final do bem para os incrementos diretos
de justiça e felicidade que a administração inteligente das condições
existentes pode gerar e que o descuido ou a estupidez presentes
destruirão ou renunciarão.viii (DEWEY, 1909, p. 5)

Há um teor profundamente pragmatista na declaração acima de Dewey:


voltaremos a ela posteriormente. A digressão anterior na OE nos serve aqui para
remontar uma das contribuições de Darwin: o reconhecimento das fronteiras da
inteligência humana. Tal fato, como fica explícito no capítulo anterior, foi um dos
pilares das críticas dos pragmatistas à filosofia – muito embora a influência de
Darwin se expressa de forma acentuada em Dewey, particularmente – e marca o

33
ponto de convergência fundamental entre Dewey e Darwin: a atitude experimental
como geradora de conhecimento.

2.2. Conhecimento e experimentalismo de Darwin a Dewey

Na seção anterior, tentei fornecer um panorama geral que pudesse elucidar o


primeiro dos problemas propostos no início do capítulo, isto é: de acordo com
Dewey, como Darwin contribuiu com a cultura científica? Um relato mais enriquecido
referente ao processo da virada científica na qual Darwin representou uma ruptura
de mentalidade resultante da controvérsia que seguiu a publicação da OE pode ser
revelado numa investigação mais minuciosa. Sigo a orientação, entretanto, de evitar
questões que não contribuam diretamente com a nossa proposta de trabalho.

Uma questão primordial a ser tratada, e que abordarei nesta seção, diz
respeito à relação que se pode estabelecer entre a OE e a teoria do conhecimento
de Dewey – assim como a OH nos servirá em questões mais específicas sobre a
inteligência humana. Tal discussão, por consequência, deverá lapidar arestas que
podem ter permanecido sobre o choque de mentalidades apresentado na seção
anterior. À medida que exploremos o percurso metodológico e conclusões das
investigações de Darwin ou, melhor dizendo, em como este chegou à sua
formulação da teoria geral da evolução, será possível compreender a forte analogia
que existe entre este e Dewey no que diz respeito ao modo de produção de
conhecimento.

Mencionei na seção anterior que um dos destaques da obra de Darwin é a


introdução da experimentação ativa enquanto método científico. Isso representou,
também, reconhecer que os efeitos da agência estão implicados nos resultados da
investigação científica. Dito isto, é também na teoria do conhecimento de Dewey que
a atitude experimental é reconhecida como elementar: mais que isso, Dewey propôs
que mesmo a filosofia fosse de caráter experimental, isto é, que as formulações
filosóficas fossem passivas de teste empírico. Uma vez que a metafilosofia de
Dewey é um dos produtos de sua teoria do conhecimento, trataremos primeiramente
de sua fundação em relação ao experimentalismo e em como este está associado
com Darwin enquanto ponto de partida comum.

34
Em EN, no intuito de formular sua proposta de método que nomeou como
método (empírico) denotativo, Dewey parte de uma distinção tópica de dois tipos de
experiência: experiência primária e experiência secundária. A primeira diz respeito
ao contato que temos com os fatos da realidade imediata anterior à reflexão
dedicada, isto é, qualquer das impressões indistintas e interações físicas do
organismo com o meio. A segunda trata do exercício intelectual, que produz
distinção, identificação, classificação, associação de fatos e, especialmente,
especulação: em resumo, que trata de procedimentos abstratos. Tal distinção é
facilmente identificável: a controvérsia das tradições filosóficas estava, entretanto,
segundo Dewey, em relacionar estes dois tipos de experiência. A tendência dualista,
por exemplo, legatária de Descartes, reduzira experiência à experiência primária,
tomara os dados da experiência primária como dotados de vícios incontornáveis e,
assim sendo, não confiáveis, elevando, assim, os dados da experiência secundária
ao status de únicos produtos seguros para o conhecimento. Em EN, Dewey formula
uma icônica crítica ao subjetivismo cartesiano, dada a sua obviedade:

[…] Para ilustrar a natureza da experiência, aquilo que a experiência


realmente é, um autor escreve: “Quando olho para uma cadeira, digo
ter experiência dela. Mas o que realmente experiencio são tão-
somente alguns poucos dos elementos que constituem a cadeira, a
saber, a cor que pertence à cadeira sob as atuais condições
particulares de luz, a forma que a cadeira exibe quando visada a
partir deste determinado ângulo, etc.”. […] Claro está, a cadeira
desaparece e é substituída por certas características sensoriais
presentes no ato da visão. Não há mais nenhum objeto, muito menos
a cadeira agora desaparecida, que esteja colocado em um
alojamento e seja utilizado para que se sente nele, etc. […] (DEWEY,
1980, p. 14-15)

Reduz-se, assim, a totalidade da experiência com o objeto a um conjunto de


impressões derivadas de uma habilidade sensorial – a visão –, destitui-se o objeto
de sua existência objetiva enquanto, paradoxalmente, ela é pressuposta em toda a
análise. Esse trecho marca a discussão de Dewey sobre os riscos de se selecionar
deliberadamente um conjunto de aspectos da experiência para fins de investigação
e reificá-los. Dito de outra forma, Dewey atentou para o fato de que, quando
empreendida uma investigação, é natural que a análise se desenvolva sobre
características particulares da experiência. Assim, cria-se o objeto científico (em
Dewey, a noção de “objeto” é compreendida como um ente abstrato, criado a partir
de característica(s) particular(es) salientadas que comporão os critérios de

35
objetualidade). Desta forma, no seio das coisas que existem em um fluxo de
interações, um “recorte” é realizado para criar um objeto. Quando tal recorte não é
denunciado de antemão na investigação científica, isto é, quando a seleção não é
claramente justificada, uma das possíveis consequências é tomar o resultado de um
inquérito parcial como total. 8 Confunde-se um objeto operacional para fins
específicos com um referente existencial.

Não entraremos em maiores detalhes sobre o problema da seleção


inconsciente no argumento cartesiano. O fato é que Dewey tentara, com a sua
versão do método empírico, evitar tal erro. É evidente, entretanto, que nenhuma
investigação cobrirá a totalidade dos fatos da realidade. O que Dewey propôs foi
que, com o método empírico, toda a instrumentalidade e procedimentos aplicados
numa investigação filosófica fossem, assim como na pesquisa científica posterior a
Darwin, declarados e justificados: tratava-se de tornar os meios e os fins antevistos
de uma investigação transparentes a ponto de seus resultados serem passíveis de
serem testados por outrem. A meta-filosofia de Dewey propunha que os produtos da
investigação reflexiva deveriam ser verificáveis, que seu valor deveria ser aferido a
partir da experimentação.

[...] O novo método de conhecimento é funcionalmente autocorretivo,


aprendendo tanto com os fracassos como com os sucessos. O
âmago do método é a descoberta da identidade da pesquisa por
meio da própria descoberta. [...] (DEWEY, 2011, p. 26)

No cerne da proposta de Dewey está a relação entre os dois níveis de


experiência mencionados anteriormente. Enquanto que no argumento cartesiano a
experiência secundária é confundida como primária, em Dewey a experiência
secundária é derivada da experiência primária. Isto é, não é possível que haja
qualquer experiência intelectual sem que tenha havido experiência física com o
mundo: “[…] a menos que haja quebra de continuidade histórica e natural, a
experiência cognitiva tem de ter sua origem a partir da experiência de tipo não
cognitivo. [...]” (DEWEY, 1980, p. 18-19). Mais que isso: a experiência secundária
não encerra em si mesma. Dewey denunciou que nas tradições filosóficas havia um
”vício” em se tratar os produtos da reflexão como fins em si mesmos. Entretanto, é

8 Tal vício cognitivo é hoje denominado viés de seleção. Trata-se de quando os resultados de
pesquisa são de antemão inconscientemente pré-determinados pela amostra que compõe a
pesquisa.

36
natural que a abstração faça o retorno à experiência primária a fim de verificar suas
inferências ou modificar as condições existentes. Tal retorno, que marca a atitude
intelectual do experimentalismo, é o que Dewey tentou introduzir na investigação
filosófica.

O que significa dizer que o retorno da experiência secundária à experiência


primária é natural? É preciso esclarecer esse ponto para que entendamos porque
Dewey e Darwin se encontram no experimentalismo. Em Dewey, o conhecimento
emerge naturalmente de uma atitude experimentalista. Dito de outra forma, nós
conhecemos porque experimentamos e, conforme experimentamos e verificamos,
produzimos asserções asseguradas (warranted assertions) sobre o mundo que, por
sua vez, conduzem nossa experiência no mundo. Assim, Dewey diz que tanto a
investigação especializada quanto o senso comum, apesar de graus diferentes de
rigor, partem de uma mesma base lógica comum: a atitude experimental (ou atitude
científica). Assim, a filosofia, tomada como uma forma de produzir conhecimento,
deveria seguir o mesmo padrão de investigação.

[…] A substância do pensamento, tanto científico quanto filosófico,


não consiste na eliminação da escolha, mas no torná-la menos
arbitrária e mais significativa. E ela perde seu caráter arbitrário
quanto suas características e consequências são tais que se
recomendam a si próprias para a reflexão de outros, após estes se
haverem transportado até as situações indicadas; e se torna mais
significativa quando as razões determinantes da escolha se revelam
fortes, e suas consequências importantes. Quando a escolha é
confessada, outros podem reconstituir o curso da experiência; trata-
se de um experimento a ser testado, não de um dispositivo de
segurança. (DEWEY, 1980, p. 23)

Há pelo menos três pontos de comunhão entre o destaque da atitude


experimental como pedra angular do conhecimento em Dewey e o trabalho de
Darwin. Primeiramente, veremos que em OH a atitude experimental é, de fato,
caracterizada como parte do protocolo natural de inteligência do organismo para a
sobrevivência; segundo, que não somente o conhecimento é um instrumento para a
evolução, como está sujeito aos princípios reguladores evolutivos – que é
hologramático; terceiro, que a produção científica de Darwin foi experimentalista,
logo, concordante com a compreensão de Dewey de método científico.

Boa parte das conclusões de Darwin na OE é derivada de seus experimentos


em seleção artificial ou de testemunhos recolhidos de criadores experientes ao redor
37
do mundo. Foi por meio do estudo da variabilidade em organismos domésticos que
Darwin pôde inferir a estreita relação causal entre a alteração das condições
ambientes e o seu efeito sobre o organismo. Dito de outra forma, manipulando as
condições existenciais do indivíduo, Darwin pôde observar mutações resultantes,
variações distintivas de conformidade de alguns organismos entre si numa espécie
(ou até mesmo numa variedade de espécie), o que o levou a inferir que a natureza
das condições é um fator determinante de variabilidade.

Entretanto, a natureza das condições existenciais não é razão suficiente para


variabilidade, visto que alterações nas condições ambientes – que por menor que
sejam podem ainda ser suficientemente significantes, dado o grau de vulnerabilidade
do organismo a elas – podem levar o organismo ou até mesmo a espécie à extinção
quando não variam. É notável, então, que a variabilidade depende, antes de tudo, da
natureza do organismo em sua disposição para se adaptar adequadamente às
novas condições, de “responder” às mudanças existenciais de forma eficiente – e na
sua capacidade de transmitir hereditariamente os caracteres adquiridos.

A ênfase sobre o agente e sua capacidade de aperfeiçoamento frente a


condições adversas está presente em todo o pragmatismo como sua insígnia (com
maior destaque para James e Dewey): em Peirce, pelo aprimoramento da conduta
científica; em James, pelo empoderamento das forças heroicas; em Dewey, pela
otimização dos poderes criativos. É interessante notar que, antes destes, algo como
uma “proto-agência” é germinado em Darwin, visto que a responsabilidade de
aperfeiçoamento recai sobre o indivíduo. Na OE, Darwin tratou dessa disposição
exclusivamente em relação à variabilidade de caracteres físicos em animais
inferiores e plantas. A OH nos é paradigmática pois fornece o estudo de Darwin
sobre variabilidade de caracteres cognitivos (em sentido estrito) ou culturais (em
sentido lato) em humanos – e animais inferiores, para fins comparativos – segundo
os princípios apresentados na OE.

Assim, a alteração das condições existenciais não estabelece quais variações


devem ocorrer, apenas impõe a necessidade de variação. Segue-se o problema já
mencionado de que alguns organismos podem produzir variações que não tenham
efeito para a sua sobrevida ou variações que a dificultam, ou não variam de forma
alguma. Desta forma, outra função das condições existenciais é “validar” ou não as
38
variações que sejam vantajosas para o organismo, que se expressa pela
manutenção deste em seu contexto. Isto é, de certa maneira, as variações são
experimentações: o sucesso não é garantido de antemão.

Quanto ao experimentalismo, o fenômeno da variabilidade só pôde ser


detectado uma vez que Darwin comparou o grau de variação entre indivíduos
observados em estado selvagem e indivíduos em estado doméstico. Estes últimos,
constatou Darwin, apresentavam grau muito mais diversificado de variedades. O
fator decisivo de tal diferença é a intervenção humana: no estado doméstico, as
condições existenciais do organismo cativo são manipuladas pelo criador, assim
como também a seleção de organismos que apresentem características desejáveis
de serem reproduzidas hereditariamente são articulados para a reprodução – em
oposição aos organismos que, segundo o juízo do criador, não sejam úteis e, com
isso, sejam excluídos da reprodução – (seleção artificial). Em resumo, o criador gere
as condições existenciais que podem estimular ou preservar variações no
organismo; seleciona e reproduz os organismos que apresentem variações
desejáveis para acumulá-las e preservá-las, assim conduzindo o melhoramento da
variedade de espécie. Logo, a situação é experimental – ou, parafraseando Dewey,
“a situação que é incerta”: seu desenvolvimento esperado está assegurado somente
enquanto suas condições estiverem asseguradas pelo criador e o organismo
responder de forma adequada.

[...] O poder de seleção e acumulação que o homem possui é a


chave deste problema; a natureza fornece as variações sucessivas,
o homem as acumula em certos sentidos em que lhe são úteis.
Assim sendo, pode-se dizer que o homem criou para seu proveito
raças úteis. (DARWIN, 1979, p. 39)

[...] Um homem conserva e faz reproduzir um indivíduo que


apresenta qualquer pequeno desvio de formação; ou então dispensa
mais cuidados do que faria comumente para adornar os seus mais
belos exemplares; fazendo isto, aperfeiçoa-os, e estes animais
aperfeiçoados espalham-se lentamente pela vizinhança. [...]
(DARWIN, 1979, p. 46)

A agência no método científico e o modo como a qualidade da interação do


agente com os elementos do experimento afeta seu resultado foram marcos
descobertos na prática por Darwin e posteriormente sintetizados teoricamente por
Dewey. Assim, a ciência é liberta para funcionar a partir de hipóteses que conduzem
à descoberta por experimentação. Não se trataria mais de procurar na natureza os
39
fenômenos que verificam crenças prévias, mas de manipulá-la a fim de revelar suas
potencialidades estabelecendo interações não usualmente observadas. Ou melhor
dizendo, a constatação dos limites intelectuais da ciência não constrangeu a sua
prática, mas libertou o pesquisador pela consideração franca de sua
instrumentalidade para a intervenção criadora.

A continuidade entre o método darwinista e a proposta deweyana (e de


James e Peirce, de certa forma) talvez já tenha ficado evidente. A “modéstia” que
aperfeiçoou a prática científica, Dewey desejou forçar sobre a filosofia:

O apelo a formular a priori a constituição legislativa do universo é,


por natureza, um apelo que pode levar à elaboração de
desenvolvimentos dialéticos. Mas é também aquele que remove
essas mesmas conclusões da sujeição ao teste experimental, pois,
por definição, esses resultados não fazem diferença no detalhado
curso dos eventos. Mas uma filosofia que baixa suas pretensões ao
trabalho de projetar hipóteses para a educação e a conduta da
mente, individual e social, é, portanto, sujeita a teste pela maneira
pela qual as ideias que ela propõe funcionam na prática. Ao ter a
modéstia forçada sobre ela, a filosofia também adquire
responsabilidade.ix (DEWEY, 1909, p. 5)

A filosofia, para Dewey, deveria ser considerada como uma ferramenta


cognitiva para a dissolução de situações indeterminadas, tal como o foram e são
quaisquer outras ferramentas aplicáveis pelo organismo no processo evolutivo.
Desta forma, Dewey advogava por uma filosofia que se responsabilizasse pelo que
pode oferecer para a melhoria da existência humana frente a condições adversas, e
de cuja eficácia derivasse seu valor: pela formulação de hipóteses testáveis. Isto é, a
filosofia deweyana almejava ser um instrumento (em termos bastante darwinistas),
não um fim.

Embora a filosofia seja um instrumento cognitivo sofisticado, ainda funcionaria


sob o princípio de instrumentalidade que governa os demais instrumentos cognitivos,
tal como a experimentação com vistas a fins úteis. A atitude do organismo em face
de uma situação indeterminada será sempre experimental uma vez que tal situação
se apresente como obstáculo existencial que engatilhe sua auto-atualização em
qualquer medida. A natureza da adaptação que deve ser realizada através da
experimentação pode ser tanto física quanto cognitiva, o que determina o modo
como a experimentação em si é executada. Em termos de modificações físicas para
o ajustamento a novas condições existenciais, não podemos atribuir algum grau de
40
agência aos animais inferiores, isto é, não podemos considerar a ativa intenção de
modificação física no self (contam apenas com o uso repetitivo e reforço de
determinadas habilidades exigidas para a sobrevida nas novas condições
existenciais, que por consequência demandam e conduzem modificações corporais).
Não é o mesmo, entretanto, para adaptações cognitivas (ou mesmo adaptações
físicas em humanos). Seja como for, transformações cognitivas, ou operações
cognitivas, podem levar a transformações físicas e vice-versa. Como Darwin apontou
em OH, o contínuo uso e complexificação da linguagem levou à melhoria física do
cérebro humano, o que, por sua vez, conduziu a uma maior complexificação da
linguagem e ao surgimento acidental de outras habilidades cognitivas. 9 Detalharei
sobre a interpretação de Darwin sobre linguagem na seção seguinte.

[...] Admite-se em geral que os animais superiores são dotados de


memória, atenção, associação e também de uma certa imaginação e
razão. Se estes poderes, que diferem muito nos diversos animais,
são possíveis de desenvolvimento, então não parece demais
improvável para as faculdades mais complexas que as mais altas
formas de abstração, autoconsciência, etc., tenham evoluído através
do desenvolvimento e da combinação das mais simples. [...].
(DARWIN, 1974, p. 105)

Assim, o contínuo exercício de uma habilidade subdesenvolvida


gradualmente favorece o seu desenvolvimento. Uma vez que não há como
estabelecer o que é o limite, ou a forma final de uma habilidade, nós devemos
assumir que qualquer forma estará sempre sujeita a desenvolvimento posterior. Em
animais inferiores, o que cessa seu desenvolvimento é a permanência das
condições vigentes. Desta forma, qualquer habilidade ou forma se manterá enquanto
as condições que asseguram sua necessidade se mantiverem. Já em termos
deweyanos, o homem sempre contará com o potencial aperfeiçoamento e poderá
ordenar tal aperfeiçoamento uma vez que o mesmo tem o poder de manipular suas
condições de existência: a isto, a filosofia prestaria recurso. Seja em Darwin ou
Dewey, aperfeiçoamento se traduz em sobrevivência.

2.3. Darwin, cognição e linguagem

9
Tal mecânica é brilhantemente sintetizada por Edgar Morin sob o rótulo de organização recursiva
(ou lógica recursiva) em Introdução ao pensamento complexo. Em linhas gerais, define o modo como
o produto de um sistema altera o sistema que o produz. Este conceito é interessante para uma
compreensão mais didática do presente trabalho e somente foi evitado tratá-lo com mais dedicação
para mantermos o foco da investigação.

41
Não é surpreendente que ao tocar em tópicos relacionados a habilidades
cognitivas Darwin eventualmente abordaria a questão da linguagem e que, ao fazê-
lo, consequentemente discutiria sua função para a unidade social do homem. Na
verdade, em OH há um subcapítulo dedicado exclusivamente à relação entre
linguagem e evolução biológica. Entretanto, é preciso destacar que o conceito de
linguagem em Darwin é o de um pesquisador do início do século XIX, isto é, anterior
ao advento da semiótica e de seus desdobramentos como hoje concebemos: Darwin
identificava linguagem com língua, exclusivamente. Isso diferirá em certa medida do
conceito de linguagem em Dewey, como veremos no capítulo subsequente, uma vez
que para este o conceito de linguagem estaria mais próximo do que hoje
denominamos semiologia (o estudo das atribuições sêmicas em qualquer domínio),
enquanto que para Darwin seria a linguística clássica (o estudo da expressão
verbal).10

Em Darwin, a linguagem é uma habilidade adquirida que é aperfeiçoada pelo


exercício contínuo (o mesmo que quaisquer outras habilidades). Seu emprego
frequente, sugere Darwin, levou à expansão da capacidade cognitiva do homem
que, por consequência, levou à sofisticação da linguagem em si. Assim, como
parece ser consenso entre teóricos cognitivistas, o uso da linguagem foi responsável
pelo desenvolvimento da capacidade de raciocínio necessária para a gestão
inteligente da vida.

Há pelo menos três formas de se considerar a linguagem na perspectiva


evolucionista: primeiro, a linguagem evolui historicamente, enquanto sistema;
segundo, a linguagem evolui a nível individual, isto é, o indivíduo é dotado de
potencial para desenvolver e aprimorar sua competência linguística; terceiro, a
linguagem é um instrumento necessário para a evolução da espécie. Estas três
formas se organizam de forma hologramática sob os princípios da seleção natural:
variabilidade, adaptação, uso e desuso, eficácia, transmissão generacional, etc.

10
A definição que apresento para semiologia pode causar desconforto aos semióticos mais
experientes pois, para aqueles que se aventurarem a investigar o tópico, descobrirão, assim como eu,
que os teóricos da linguagem ainda encontram dificuldade em chegar a um consenso sobre a
distinção entre semiologia e semiótica (ou, até mesmo, entre semiologia e linguística). Nos trabalhos
de Umberto Eco, por exemplo, os termos frequentemente se confundem, embora seja um dos
melhores referenciais em semiótica de nosso tempo. Tratando-se de linguística clássica, me refiro
especialmente ao trabalho de Ferdinand de Saussure e a abordagem estruturalista.

42
Assim, a evolução histórica da linguagem implica sua evolução a nível individual e
vice-versa, assim como ambas implicam a evolução da espécie e vice-versa (seja
pelo aprimoramento ou geração de habilidades cognitivas ou pelo refinamento dos
aparatos sociais). Em síntese, há a seleção natural das formas biológicas e a
seleção natural das formas linguísticas:

Da mesma maneira que uma espécie, uma linguagem, uma vez


extinta, conforme observa Sir C. Lyell, não reaparece mais. Uma
mesma linguagem não tem dois lugares de nascimento. Duas
linguagens diversas podem cruzar-se ou mesclar-se. Vemos
variabilidades em toda língua e novas palavras sobrevêm
continuamente; mas, dado que o poder da memória tem um limite, as
palavras tomadas individualmente como as línguas inteiras vêm
gradualmente se extinguindo. Conforme Max Müller muito bem
observou: ‘A luta pela vida vai constantemente contra as palavras e
as formas gramaticais em toda língua. As formas melhores, mais
breves e mais fáceis estão constantemente ganhando terreno e
devem seu êxito à sua virtude intrínseca’. A estas causas mais
importantes da sobrevivência de certas palavras podem ser
acrescentadas simples novidades e modas; com efeito, na
mentalidade do homem existe um forte amor pelas pequenas
mudanças em todas as coisas. A sobrevivência ou a conservação de
certas palavras favorecidas na luta pela existência é a seleção
natural. (DARWIN, 1974, p. 112-113)

Nota-se a direta analogia entre espécie e linguagem na perspectiva de


Darwin. Segue-se que os princípios aplicáveis à espécie, que tornam sua sobrevida
sujeita à dinâmica da seleção natural, são também aplicáveis à linguagem: a
linguagem está sujeita a variabilidade; desenvolve, preserva ou perde atributos de
forma a se ajustar às demandas das condições existentes; pode ser extinta por
estas mesmas condições; sofre cruzamentos com outras variedades (o que tende a
torná-la melhor adaptada às adversidades) e mutações espontâneas; é transmitida
de uma geração à outra; e o sucesso da sua sobrevida depende de sua eficiência.
Tratando-se exclusivamente de linguagem, sua eficiência diz respeito à eficiência
comunicativa – ou expressiva. Em termos deweyanos, a sobrevida de qualquer
instrumento depende da sua eficiência funcional: a função da linguagem é a
comunicação – ou expressão (isso será detalhado no capítulo seguinte). Assim,
formas linguísticas dotadas de melhor desempenho para sua função acabam por
gradativamente suplantar formas menos adaptadas. O que há de elementar para a
seleção natural destas duas formas (biológica e linguística) é que o que força o seu

43
processo de transformação ou extinção são as condições existenciais às quais estão
sujeitas, e que validam ou não sua existência em um novo cenário.

Apesar de a analogia ser suficientemente adequada para explicar a dinâmica


da “vida” da linguagem, ela não deve ser tomada literalmente: Darwin nunca reificou
a linguagem, nunca a concebeu como um ente metafísico dotado de existência
autônoma: para este, era apenas um sistema que acontece de obedecer ao
protocolo da seleção natural (seria de fato absurdo concebê-la como um ente
autônomo uma vez que Darwin identificava linguagem e língua). A linguagem é um
sistema que se desenvolve enquanto nós a desenvolvemos individualmente. O único
aspecto tipicamente intrínseco em relação à linguagem, com toda reserva ao termo,
é a necessidade humana de expressão. Ainda assim, o desenvolvimento de formas
articuladas de expressão e até mesmo dos órgãos físicos necessários para sua
performance só seria adquirido pelo exercício contínuo de formas expressivas
rudimentares. Dito de outra forma, o aparato necessário para o desenvolvimento da
linguagem só se desenvolverá na experimentação da linguagem que, por sua vez, é
uma resposta à demanda humana por expressão:

Ainda mais relevante para Darwin é o papel primordial já mencionado que a


complexificação da linguagem teve no melhoramento do intelecto:

No desenvolvimento do intelecto deve ter-se realizado um grande


passo, tão logo entrou em uso a semi-arte e o semi-instinto da
linguagem, de vez que o continuado uso da linguagem deve ter agido
no cérebro e provocado um efeito hereditário o qual, por sua vez,
deve ter agido no melhoramento da linguagem. Conforme muito bem
observou Chauncey Wright, a grandeza do cérebro do homem em
relação ao seu corpo, quando comparada com aquela dos animais
inferiores, pode ser atribuída sobretudo ao uso primitivo de alguma
forma simples de linguagem, essa máquina maravilhosa que
identifica com palavras todos os objetos e qualidades e suscita
concatenações de pensamento que jamais surgiriam da simples
impressão dos sentidos ou que, mesmo que surgissem, nunca
poderiam ter um prosseguimento, um avanço. As superiores
faculdades intelectuais do homem, como as do raciocínio, da
abstração, da autoconsciência, etc., provavelmente derivam do
contínuo melhoramento e exercício de outras faculdades mentais.
(DARWIN, 1974, p. 702)

Para Darwin, o processo de sofisticação da linguagem teve relação direta


com a expansão das habilidades cognitivas do homem, o que, por consequência,
gerou produtos acidentais como o senso estético, o senso de humor, o pensamento

44
abstrato e os bens morais, como a empatia e a magnanimidade, aos quais Darwin
atribui o surgimento do senso de comunidade. Na verdade, há uma extensa
discussão em OH sobre o senso moral, na qual Darwin procura justificar o
surgimento e importância dos bens morais em termos evolutivos. Assim, podemos
inferir que a posse destes atributos seria indicativo de que o homem está em estágio
avançado no processo de evolução cognitiva, e o meio para alcançá-lo é, antes de
tudo, o desenvolvimento da linguagem. Ademais, note o paralelo entre a origem
destas habilidades e o movimento das já discutidas experiência primária e
secundária em Dewey. Note também o uso do termo “máquina” em referência à
linguagem: Dewey usará a mesma analogia, como veremos no capítulo seguinte,
para tomar a linguagem como um sistema de partes e funções interdependentes.

Por fim, muito embora Darwin não tenha explorado a natureza pragmática da
linguagem em termos de instrumento sêmico e sua relação com a agência, uma nota
em OH sugere que havia estudos sendo realizados intuindo a existência de
instâncias consciente e inconsciente no desenvolvimento da linguagem, assim como
sua relação com graus diferentes de consequências, o que será de fundamental
significância na elaboração da teoria da linguagem de Dewey:

Confira observações sobre o assunto do prof. Whitney, em Oriental


and Linguistic Studies, 1873, pg. 354. Ele mostra que o desejo de
comunicação entre os homens é uma força viva que, no
desenvolvimento da linguagem, 'trabalha tanto conscientemente
quanto inconscientemente; conscientemente com relação ao fim
imediato a colimar, e inconscientemente, com relação às últimas
consequências do seu agir'. (DARWIN, 1974, p. 107)

2.4. Considerações preliminares


Na primeira seção, procurei apresentar o embate ideológico entre a nova
ciência de Darwin e as formas tradicionais de pensamento naturalista através da
perspectiva de Dewey, para que assim ficasse mais claramente encaminhado o
projeto teórico do mesmo. Isto é, destilar as ideias de Darwin em Dewey é tarefa
complexa, assim optei por traçar um paralelo entre os empreendimentos de Darwin
na renovação científica e de Dewey na reinvenção filosófica, ambas conduzidas pela
mesma razão natural de que Darwin foi protagonista. Dos pontos destacáveis da
virada darwinista, podemos notar a transferência (1) da busca por leis
transcendentais imutáveis para a acumulação de evidências observáveis, (2) da
confirmação de crenças prévias para o contexto de descoberta, (3) das ontologias
45
fixas para os conceitos operacionais na lógica científica, (4) dos tipos como formas
finais transcendentais organizadoras da vida para tipos como produtos de variação e
adaptação na luta pela sobrevivência e (5) do descaso pelas contingências
existenciais para a consideração da influência recíproca entre organismo e meio
como relação fundamental para a variabilidade. Em resposta ao primeiro problema
que nos propus, de acordo com Dewey, o que deve a cultura científica em geral a
Darwin?: a virada darwinista introduziu uma mudança na forma de pensar como a
vida se organiza e em relação a que se organiza, o que só pôde ser possível pela
revisão do método científico e formulação de uma nova abordagem.

Dediquei a seção seguinte, Conhecimento e experimentalismo de Darwin a


Dewey, a tentar revelar a correspondência entre o método científico empregado por
Darwin e suas notas sobre a inteligência humana com a teoria do conhecimento e o
projeto metafilosófico de Dewey, tendo como ponto de partida a afinidade de ambos
com a atitude experimental. Assim, pude explorar como Dewey identificou a atitude
experimental como sendo a gênese natural do conhecimento, o que assegura dizer
que nossos protocolos comportamentais mais elementares não são inatos, mas sim
adquiridos pela experimentação com o mundo. Desta forma, a natureza da relação
entre organismo e meio se torna determinante das transformações que podem vir a
ocorrer, tal como as condições existenciais, ou contextos, passam a ter a dupla
função de promover ou manter estas transformações e validá-las ou não. A
metafilosofia de Dewey procurou operar sob o princípio do experimentalismo, assim
como o fora o método empregado por Darwin para a formulação da teoria geral da
evolução por seleção natural. Ademais, também foi possível revelar que a cognição,
uma vez experimental, opera sob os princípios darwinistas de evolução e para a
evolução: que é hologramática. Em síntese, a evolução é um processo que ocorre
pelo sistema de seleção natural, e ambos são análogos ao modo de funcionamento
do conhecimento.

Por fim, na seção Darwin, cognição e linguagem, procurei aprofundar a


discussão sobre cognição no que diz respeito particularmente à sua relação com a
linguagem, tópico apresentado por Darwin em OH, o que permitiu apresentar as
consequências do uso da linguagem para o desenvolvimento da cognição, assim
como o surgimento de demais habilidades cognitivas. Pude também apresentar o
conceito de linguagem em Darwin, e a relação análoga entre o seu funcionamento
46
enquanto sistema e a teoria da evolução por seleção natural. A partir disso, é
possível revelar que a linguagem, um sistema dentro de um sistema, ao
desempenhar papel determinante no desenvolvimento da cognição, está
intimamente ligada à evolução da espécie. Desta forma, mesmo que nunca tenha
aplicado o termo à linguagem, fica subentendido em Darwin que a linguagem seria
de natureza instrumental, uma vez que a sua existência é justificada pelas
consequências de seu uso.

47
3. Dewey e a linguagem sob a perspectiva naturalista

3.1. Função e significado

Uma das grandes dificuldades em se escrever sobre o trabalho de Dewey


talvez seja sintetizar seus conceitos (para não mencionar solucionar suas
ambiguidades) – exercício para o qual o próprio Dewey parece ter apresentado
resistência. Tratando-se de suas asserções sobre linguagem, não fora diferente.
Mais que isso, Dewey nunca chegou a escrever uma teoria da linguagem
propriamente dita, isto é, nenhum trabalho foi especialmente dedicado a discutir a
linguagem (o que torna o trabalho aqui executado ainda mais penoso): seus
comentários sobre a natureza e função da linguagem estão diluídos nas obras ToI e
EN, especialmente no capítulo quinto desta última, onde se concentra sua
investigação sobre a natureza da comunicação e do significado. Tomemos este texto
como expressão máxima da perspectiva de Dewey sobre linguagem.

Assim como a totalidade de seu pensamento pragmatista, a teoria da


linguagem de Dewey se divorcia de perspectivas tradicionais sustentadas por
aqueles a quem chamara de empiristas dogmáticos e transcendentalistas, a quem
Dewey nunca poupara críticas sobre a negligência arbitrária do caráter social em
suas considerações. No texto Nature, Communication and Meaning (de agora em
diante tratado como NCM) a primeira destas críticas foi dirigida aos filósofos
empiristas, a quem Dewey acusara de uma falta de consideração sobre a linguagem
enquanto fenômeno fundamental da experiência objetiva; a segunda, aos
transcendentalistas, acusados de conferirem ao significado um status privilegiado
desconectado da realidade empírica e às palavras, mera contingência operacional
da substância semântica do pensamento. Nas palavras de Dewey:

A ligeira consideração prestada a tipos maiores e mais difundidos de


objetos empíricos por filósofos, mesmo por empiristas professos, é
aparente no fato de que, embora tenham discursado tão
fluentemente sobre muitos tópicos, pouco discursaram sobre o
próprio discurso. [...]

No geral, os transcendentalistas professos têm sido mais cientes do


que os empiristas professos do fato de que a linguagem faz a
diferença entre animalidade e humanidade. O problema é que eles
careciam da concepção naturalista de sua origem e status. Logos foi
corretamente identificado com a mente; mas o logos, e, portanto, a
mente, foram concebidos sobrenaturalmente. Desse modo, a lógica
foi concebida como tendo sua base no que está além da conduta e
48
dos relacionamentos humanos e, em conseqüência, a separação do
físico e do racional, do real e do ideal, recebeu sua formulação
tradicional.

[...] O discurso é assim considerado como uma conveniência prática,


mas não de significância intelectual fundamental. Consiste de "meras
palavras", sons, que estão associados a percepções, sentimentos e
pensamentos que são completos antes da linguagem. Assim, a
linguagem “expressa” o pensamento como um tubo conduz a água, e
com ainda menos função transformadora do que a exibida quando
uma prensa de vinho “expressa” o suco de uvas. O ofício de signos
na criação de reflexão, previsão e lembrança é ignorado. Em
consequência, a ocorrência de ideias se torna uma misteriosa adição
paralela às ocorrências físicas, sem comunidade e sem ponte de
uma para a outra.x (DEWEY, 1958, p. 168-169)

Posteriormente, Dewey aprecia a atitude filosófica dos gregos antigos em


“descobrir o discurso”, para em seguida tecer a seguinte ressalva:

[...] Mas eles tomaram a estrutura do discurso como a estrutura das


coisas, e não como as formas que as coisas assumem sob a pressão
e oportunidade da cooperação e troca social. Eles ignoraram o fato
de que os significados como objetos do pensamento podem ser
chamados completos e últimos apenas porque não são originais, e
sim o resultado feliz de uma história complexa. [...] Eles ignoraram o
fato de que a importação de essências lógicas e racionais é a
consequência das interações sociais. [...] Por isso, eles conceberam
significados ideais como a estrutura última dos eventos, na qual um
sistema de substâncias e propriedades correspondia a sujeitos e
predicados da proposição proferida.xi […] (DEWEY, 1958, p. 170-
171)

Não será avaliada aqui a validade de tais acusações, uma vez que o
propósito deste trabalho não é fornecer um estudo comparado da perspectiva de
linguagem de Dewey com perspectivas tradicionais anteriores. Tais críticas nos
servem, como serviram a Dewey, para pontuar abordagens filosóficas das quais
Dewey procurou se distanciar e sobre as quais baseou as razões para propor sua
nova abordagem. A natureza da interdependência entre linguagem e meio será
melhor explorada na próxima seção.

Em NCM, Dewey propõe descrever a linguagem a partir da natureza do


significado e da comunicação como fenômenos que emergem da experiência com
implicações e relevância tipicamente sociais, isto é, como fruto e elemento
constitutivo da interação prospectiva agente-meio. Num primeiro momento, então,
procuremos definir o que Dewey compreende como origem e atributo do significado.
Para isso, retrocedamos ao ponto em que a relação integrada agente-meio se faz

49
clara: em Dewey, a experiência se constitui numa interação funcional entre agente e
meio em que o primeiro manipula elementos das condições existentes com vistas a
estabelecer condições existenciais mais satisfatórias. 11Nos objetos, então, são
reconhecidas funções a partir da experimentação de suas potencialidades em
satisfazer as novas demandas existenciais (considerando, também, as demandas
agenciais em relação à operação do objeto). Quando um objeto qualquer, a partir da
experimentação, atende as expectativas funcionais, isto é, exerce com sucesso a
função antevista, idealizada a partir de uma especulação prospectiva de uso, diz-se
que tal objeto passa a ter uma natureza dupla: concreta em sua materialidade
objetiva e abstrata. A isso Dewey dá o nome de transubstanciação.

O que há de divergente aqui de algumas perspectivas anteriores, como


interpretadas por Dewey, é que nem o objeto porta em si alguma espécie de
significado oculto imanente que há de ser descoberto pelo observador 12nem o
sujeito opera na realidade a partir de conceitos fundamentais inatos: o que há é que
o reconhecimento de determinada função no objeto depende da sua capacidade em
satisfazer as demandas do agente que executa uma operação manipulando o objeto
com vistas a um fim específico antevisto para criar um estado de coisas mais
satisfatório. Logo, qualquer objeto pode receber atribuições variadas de funções
(assim como também pode perder status como objeto adequado para tal ou tal
função).

Aqui podemos estabelecer a distinção entre função e significado que nos


encaminhará para uma definição de significado e como funções são condições
necessárias para significados. Funções são fugazes: seu valor encerra no instante
em que satisfaz as expectativas operacionais do agente. Dito de outra forma,
nenhum objeto qualquer poderia ser operado mais que uma vez para atingir o

11
A discussão sobre a noção de satisfação de condições existenciais é realizada no texto Teoria da
Valoração de Dewey. Para uma compreensão clara e superação de algumas lacunas percebidas na
teoria do significado aqui explorada, parece eficiente levantar algumas questões desse que é
consensualmente considerado como um texto sobre filosofia moral. Como é sabido, todo o
pensamento de Dewey irradia de sua teoria do conhecimento. Entretanto, nalguns textos mais que
outros (como entre os trabalhos tardios e os iniciais), certas noções parecem estar menos opacas:
Daí que tomemos algumas para a investigação executada aqui.
12
O uso do termo “observador” aqui não é acidental e faz referência à objeção ativa de Dewey ao que
ficou conhecido como Spectator Theory of Knowledge, que desconsiderava o aspecto agencial na
produção de conhecimento em detrimento de uma noção de observador passivo que “descobre” o
conhecimento disponível na realidade objetiva.

50
mesmo fim antevisto se o reconhecimento de sua função não se fixasse num
domínio abstrato, isto é, se o evento não fosse transubstanciado: se não se tornasse
significado. As conclusões preliminares a que chegamos são que (1) o
reconhecimento de funções é condição necessária para a atribuição de significados
e que (2) os significados são condição necessária para a permanência temporária de
funções. Para ilustrar a relação entre objeto e significado, exploremos o exemplo
seguinte levantado por Dewey em NCM:

A linguagem é uma função natural da associação humana; e suas


conseqüências reagem sobre outros eventos, físicos e humanos,
dando-lhes sentido ou significância. Eventos que são objetos ou
significativos existem em um contexto em que adquirem novos
modos de operação e novas propriedades. Palavras como moedas e
dinheiro são ditas. Agora, ouro, prata e instrumentalidades de crédito
são, antes de tudo, antes de serem dinheiro, coisas físicas com suas
próprias qualidades imediatas e finais. Mas, como dinheiro, são
substitutos, representações e designações, que incorporam relações.
Como substituto, o dinheiro não apenas facilita a troca de
mercadorias existentes antes de seu uso, mas também revoluciona a
produção e o consumo de todas as mercadorias, porque gera novas
transações, formando novas histórias e ligações. A troca não é um
evento que pode ser isolado. Marca o surgimento da produção e do
consumo em um novo meio e contexto em que adquirem novas
propriedades. Da mesma forma, a linguagem não é uma mera
agência para economizar energia na interação dos seres humanos. É
uma liberação e amplificação de energias que entram nela,
conferindo-lhes a qualidade adicional de significado. A qualidade do
significado assim introduzida é estendida e transferida, real e
potencialmente, de sons, gestos e marcas, para todas as outras
coisas da natureza. Eventos naturais tornam-se mensagens para
serem desfrutadas e administradas, exatamente como a música, a
ficção, a oratória, o aconselhamento e a instrução. Assim, os eventos
passam a possuir características; eles são demarcados e notados.
Pois a característica é geral e distinta.xii (DEWEY, 1958, p. 173-174)

Há alguns pontos a se considerar sobre essa longa exposição sobre a


natureza da linguagem. Primeiramente, aqui Dewey estabelece o que podemos
inferir como um aspecto adicional do significado, sendo este que (3) o significado é
uma qualidade atribuída ao evento. Aqui, a relação função-significado parece se
tornar mais clara. Entretanto, tal exemplo, que para leitores da ontologia social de
Searle pode lembrar a dependência ontológica definida pelo mesmo, carrega uma
contradição performática fundamental: Dewey estabelece que instrumentalidades de
crédito são qualidades atribuídas a materiais com suas próprias qualidades
intrínsecas. Não serão estas supostas qualidades intrínsecas também atribuições de
significado? Isto é, não é a intenção aqui afirmar que tais materiais não portem suas
51
devidas propriedades sensoriais, mas antes apontar que atitude está implícita em
atribuir a estes materiais em especial e não a outros qualidades significantes. Que o
ouro e a prata tenham certo valor pois são raros, por exemplo, é plausível. Mas a
raridade reconhecida nestes depende da interação agente-meio. O exemplo
levantado por Dewey é traiçoeiro, muito embora não torne a premissa inválida, mas
pelo contrário: torna possível expandi-la.

Outro aspecto do significado explícito na passagem é que (4) o significado


amplia as potencialidades e relações de eventos para novas consequências. Isto é,
dada a transubstanciação, em que eventos da experiência imediata recebem
qualificações equivalentes num domínio abstrato, novos processos de
experimentação, revisão e associação são possíveis (a nível especulativo), que por
sua vez geram novos objetos abstratos e hipóteses que são passíveis de
experimentação objetiva, produzindo transformações tanto na experiência, quanto
nos objetos concretos e nos sistemas de significação em si. Em suma, os produtos
semânticos da interação agente-meio têm potenciais consequências na mesma.

As potencialidades do objeto são assim exercitadas por sua "presença em um


novo meio" abstrato, exercício ao qual Dewey confere a qualidade de "discurso
preliminar denominado pensar". Um aspecto destacável dessa topologia existencial
é que sua dependência da interação agente-meio é original, mas não restritiva. Diz
Dewey que um evento qualquer, quando transubstanciado, pode ser referido e
operacionalizado através da linguagem mesmo "quando ele não existe": ele pode ser
(re)combinado e reconfigurado com componentes estranhos a si e distantes no
espaço e no tempo, abstraídos de outras experiências, estabelecendo novas
relações testáveis. Logo, (5) o significado possibilita experimentação livre de
situações localizadas, o que nos leva aos procedimentos de generalização, que
serão discutidos na seção seguinte.

3.2. Significado e condicionantes experienciais

Do que foi dito até o momento, ainda não está claro o que é a expressão de
diferença entre significado e função no que diz respeito à permanência do primeiro.
Foi estabelecido em (2) que o significado assegura uma estabilidade provisória das
expectativas funcionais do objeto, mas ainda não foi definido como isso ocorre – de

52
outro modo, a transitoriedade da relação função-objeto pode ser atribuída também
ao significado. O que nos falta é a razão de o significado gozar de maior resistência
que a função. Neste momento podemos destacar a relevância das associações
humanas para o tipo de interação que se estabelece na e para a emergência e
sustentação das relações significantes. Em Dewey:

[...] Os seres humanos apresentam os mesmos traços de


singularidade e conexão imediatas, de relações, assim como outras
coisas. [...] Tudo o que existe na medida em que é conhecido e
conhecível está em interação com outras coisas. É associado, além
de solitário, único. O enlace de indivíduos humanos em associação
não é, portanto, um fato novo e sem precedentes; é uma
manifestação de um lugar comum da existência. A importância reside
não no simples fato de associação, portanto, mas nas conseqüências
que decorrem dos padrões distintivos da associação humana.
Novamente, não há nada novo ou sem precedentes no fato de que a
conjunção de coisas confere à conjunção e seus constituintes novas
propriedades por meio do desbloqueio de energias até então
contidas. A consideração significativa é que a conjunção de seres
humanos orgânicos transforma sequência e coexistência em
participação.xiii (DEWEY, 1958, p. 175)

Notamos aqui a defesa de Dewey de uma noção naturalista e integrada de


indivíduo e coletivo no cosmos metafísico, ao passo que discrimina que as
associações tipicamente humanas comportam características peculiares em relação
aos demais tipos de associações, isto é, relações que não envolvem agentes. Seres
humanos, assim como quaisquer objetos da realidade, existem simultaneamente
individualmente e em associação com outros objetos. Entretanto, o que há de
distintivo é que as associações tipicamente humanas são fundamentalmente e
potencialmente significantes, isto é, os entes não coexistem paralelamente de forma
estática de modo que transformações só sejam possíveis a partir de casualidades
arbitrárias, mas se afetam reciprocamente de forma transformadora e prospectiva.
São fundamentalmente significantes pois a interação agente-meio demanda a
geração de produtos semânticos que são basilares de suas associações; são
potencialmente significantes pois as especulações prospectivas dirigem a ação, que
por sua vez pode alterar o status semântico previamente estabelecido nas relações:
a criatividade e a inventividade humanas têm lugar privilegiado na teoria de Dewey,
não somente como dispositivos retóricos, mas como forças dirigentes inerentes aos
procedimentos humanos. Quando o fator humano está presente na associação, os

53
objetos compõem uma atitude participativa da qual significados são produtos que
operam como funções que, por sua vez, têm efeito sobre novas interações.

No caso da sustentação de relações significantes, assim como nas práticas


de conhecimento para Dewey, a atitude experimentalista tem caráter fundador e
também determinante e, a partir disso, poderemos observar como a linguagem se
constitui como uma experiência compartilhada considerados os condicionantes
experienciais de significação. Nenhuma relação funcional pode ser compartilhada se
não se tornar significado e nenhum significado pode se sustentar como significado
sem estar sujeito ao procedimento que Dewey chama de generalização:

Assim, todo significado é genérico ou universal. É algo comum entre


locutor, interlocutor e aquilo a que o discurso se refere. É universal
também como um meio de generalização. Pois um significado é um
método de ação, uma maneira de usar as coisas como meios para
uma consumação compartilhada, e método é geral, embora as coisas
às quais é aplicado sejam particulares. O significado, por exemplo,
de portabilidade é algo em que duas pessoas e um objeto partilham.
Mas a portabilidade, depois de apreendida, torna-se uma maneira de
tratar outras coisas; é estendida amplamente. Sempre que há uma
chance, ela é aplicada; a aplicação cessa apenas quando algo se
recusa a ser tratado dessa maneira. E mesmo a recusa pode ser
apenas um desafio para desenvolver o significado de portabilidade
até que a coisa possa ser transportada. Significados são regras para
usar e interpretar coisas; interpretação sendo sempre uma imputação
de potencialidade para alguma conseqüência. [...] a generalização é
realizada espontaneamente até onde for plausível; geralmente muito
além do que realmente irá. Um significado recém-adquirido é imposto
a tudo o que obviamente não resiste à sua aplicação, como a criança
usa uma nova palavra sempre que tem uma chance ou como brinca
com um novo brinquedo. Os significados se transportam para novos
casos. No final, as condições forçam a moderação dessa tendência
espontânea. O escopo e os limites da aplicação são determinados
experimentalmente no processo de aplicação.xiv (DEWEY, 1958, p.
187-188)

Das funções do significado, está claro em (2) que este é responsável por fixar
provisoriamente as relações funcionais e em (5) que este funciona como modo de
operação para novas experiências. O que há de novo aqui, entretanto, é o critério
que limita a experimentação semântica: (5-a) um significado atribuído se sustenta
enquanto não houver resistência intransponível quanto à sua atribuição. Considere o
caso de um agente que aprendera experimentalmente que o objeto denominado
“carro” tem a função de transportar. O mesmo agente vem a ter experiência similar
com o que denominamos “ônibus”. O agente equivocadamente passa a denominar o

54
objeto do evento segundo “carro”, pois o significado que o agente atribuíra ao objeto
do evento primeiro também é observado no evento segundo, e assim o seria para
todos os eventos posteriores que atendessem a expectativa funcional de transportar
pessoas. O que ocorre é que, entretanto, eventualmente o agente é confrontado
com resistências linguísticas: o uso equivocado do termo “carro”, indexado ao
significado atribuído através da experiência do agente, para objetos que
consensualmente não são denominados “carro”, dificulta ou até mesmo impede
interações posteriores. O agente deve, então, aprender que o que é denominado
“ônibus” não é denominado “carro”, pois, apesar de compartilharem propriedades
semelhantes no significado rudimentar atribuído pelo agente, também portam
propriedades que os distinguem, o que faz destes dois objetos funcionalmente
semelhantes, mas não idênticos. É condição para o sucesso do intercurso social que
o agente revise seu sistema de significação, o que, por consequência, torna esse
mesmo sistema mais elaborado e os atos consumatórios mais eficientes. A
instituição dos significados e relações significantes se dá através da emergência e
validação coletiva de sistemas simbólicos (sistemas linguísticos).

O caso mencionado descreve o modo de operação típico de agentes em fase


inicial de inserção num dado sistema linguístico (sejam crianças aprendendo códigos
linguísticos ou até mesmo agentes adultos num contexto não nativo). Entretanto, é
preciso considerar como funciona o procedimento de generalização quando a
sustentação do significado não tem possibilidade de validação coletiva, isto é, como
permanece o significado em uma situação de interação não social, ou
exclusivamente agente-objeto. Aqui ainda prevalece o princípio de validação. Porém,
uma vez que a validação do significado atribuído não depende necessariamente de
outros agentes, tal responsabilidade recai sobre o próprio objeto na sua capacidade
em satisfazer as expectativas funcionais com sucesso e mantê-la em interações
futuras, consolidando assim uma relação funcional duradoura. Quando o objeto sofre
de perder tal capacidade, também sofre ressignificação. Assim ocorre com qualquer
objeto do qual esperamos que execute sua função antevista adequadamente e que,
quando operado, não atende as expectativas.

No processo de experimentação, também outras potencialidades podem ser


descobertas, que por sua vez passam a constituir os novos significados atribuídos.

55
Dewey não chega a comentar minúcias sobre como, por exemplo, significados
podem ganhar ou perder propriedades. Isso pode ser justificado da seguinte forma:
relações funcionais podem perder significado, mas significados não perdem
propriedades. Dito de outra forma, significados podem ganhar propriedades
negativas assim como positivas (o que os torna mais refinados), mas não perder
propriedades. O objeto denominado “carro” no caso anterior não deixa de ter o
significado de ser usado para transportar pessoas quando confrontado com o objeto
denominado “ônibus” – e vice-versa –, mas pode antes ser ressignificado como
objeto usado para transportar pessoas que não comporta mais que quatro pessoas,
ou objeto usado para transportar pessoas que não é alimentado a diesel, e assim
por diante, significados estes que irão orientar a ação do agente em novas
interações com ambos os objetos. A composição do significado será sempre aditiva
e sempre sujeita a resistências atributivas em potencial.

Está claro, então, que para Dewey a tendência generalizadora existe a priori
somente na condição de potencialidade objetiva, uma vez que esta só é identificável
em relação aos objetos da realidade que demandam sua funcionalidade. Para
descobrir uma relação funcional é preciso projetar consequências potenciais na
interação com o objeto e agir em razão delas para atingir a satisfação das
expectativas funcionais, e a manutenção das relações funcionais é a razão de ser do
significado que, por sua vez, está sujeito a potenciais transformações sofridas na
experimentação. Logo, o significado em Dewey tem natureza dinâmica e funcional,
com vida útil regulada pela experimentação. Uma vez que a natureza do significado
e seu vínculo original com as relações funcionais parecem razoavelmente
esclarecidos, podemos avançar a discussão para aspectos concernentes
propriamente à sua operacionalidade e condições de autonomia em seu lugar de
excelência, a ordem simbólica, que será explorada na seção seguinte.

3.3. Transações simbólicas

Podemos inferir até o momento que, para Dewey, os símbolos têm função de
marcadores de significados, muito embora a natureza dessa relação funcional não
seja concebida como uma noção reducionista de correspondência direta entre
símbolo e coisa em si, nem tampouco que a coisa em si está ausente na geração do
significado que a ela pode vir a ser atribuído: a origem e permanência dos
56
significados são determinadas por um movimento dinâmico prospectivo, isto é, a
natureza destes não é estática. Está entendido também que as designações
simbólicas são condição material da linguagem visto que têm uma função
fundamental na validação ou fixação de significados e que, por essa razão, não
devem ser ignoradas em investigações sobre linguagem, especialmente como
ocorre com algumas correntes que tendem a desconsiderar a relevância dos
elementos linguísticos em detrimento do significado. Logo, assim como os aspectos
referentes a relações funcionais e significado se aplicam à operacionalização de
objetos da realidade imediata, o mesmo ocorre com significados e seus
representativos simbólicos.

A linguagem, em Dewey, é “tanto instrumental quanto consumatória” (o que


será melhor evidenciado nas transações simbólicas), uma instrumentalidade
potencialmente consequente determinada por condicionantes experienciais. Por sua
vez, a comunicação é uma atividade possível somente através da existência e
exercício de sistemas simbólicos (ou linguagem) que podem ser afetados pela
atividade em si, uma vez que a comunicação é fim e condição dos sistemas
simbólicos. Dito de outra forma, a necessidade de comunicação gera sistemas
simbólicos e o exercício destes sistemas constitui a comunicação, sua razão de ser.
Uma vez que a validação coletiva do significado está assegurada, isto é, as
designações simbólicas estão convencionadas, a comunicação pode ocorrer como
desdobramento do uso eficiente de signos e símbolos. Das funções-efeito da
comunicação apresentadas por Dewey, talvez a mais elementar seja o que chamou
de “ato consumatório”, como veremos a partir do caso a seguir:

A solicita a B que lhe traga algo, para o qual A aponta, digamos uma
flor. Existe um mecanismo original pelo qual B pode reagir ao
movimento de A ao apontar. Mas, nativamente, tal reação é ao
movimento, não ao apontar, não ao objeto apontado. Mas B aprende
que o movimento é um apontar; ele responde a isso não por si
mesmo, mas como um índice de outra coisa. Sua resposta é
transferida do movimento direto de A para o objeto para o qual A
aponta. Assim, ele não apenas executa os atos naturais de olhar ou
perceber que o movimento pode instigar por sua própria conta. O
movimento de A atrai seu olhar para a coisa apontada; então, em vez
de apenas transferir sua resposta do movimento de A para a reação
nativa que ele pode dar à coisa como estímulo, ele responde de uma
maneira que é uma função da relação de A, real e potencial, com a
coisa. O aspecto característico da compreensão de B sobre o
movimento e os sons de A é que ele responde à coisa do ponto de
57
vista de A. Ele percebe a coisa como ela pode funcionar na
experiência de A, em vez de apenas egocentricamente. Da mesma
forma, A ao fazer a solicitação concebe a coisa não apenas em sua
relação direta consigo mesmo, mas como algo capaz de ser
percebido e manuseado por B. Ele vê a coisa como ela pode
funcionar na experiência de B. [...] B, ao ouvir A, faz uma reação
preparatória de seus olhos, mãos e pernas em vista do ato
consumatório da posse de A; ele se envolve no ato de apanhar,
transportar e oferecer a flor para A. Ao mesmo tempo, A faz uma
resposta preparatória ao ato consumatório de B, o de carregar e
proferir a flor. Portanto, nem os sons proferidos por A, seu gesto de
apontar, nem a visão da coisa apontada são a ocasião e o estímulo
do ato de B; o estímulo é a partilha antecipada de B na consumação
de uma transação na qual ambos participam. [...]xv (DEWEY, 1958, p.
178-179)

O caso levantado por Dewey serve como paradigma para destacar algumas
condições implícitas que devem ser satisfeitas no decurso da atividade comunicativa
com vistas à realização do ato consumatório. Aqui, o ato consumatório opera como
fim e diretriz do exercício de sistemas simbólicos na comunicação. Isto é, o fim
antevisto é também a razão pela qual ambos agentes se comunicam. Logo, em
Dewey, a função primeira das transações simbólicas é provocar uma reação. Assim,
o significado pressupõe uma intencionalidade que, num contexto de transação
simbólica, tem de se fazer inteligível a fim de se produzir a reação desejada. A
adequação de tal reação com o resultado desejado (por meio de significados
compartilhados e antecipação) é o critério de sucesso do ato comunicativo ou da
comunicabilidade da intenção. Podemos destacar como condições implícitas para o
sucesso do ato consumatório que haja uma ação co-operativa em que (a) A e B
compartilhem o mesmo sistema simbólico; (b) A entenda as potencialidades
consequentes da interação de B com o objeto; (c) A entenda as condições agenciais
de B e demandas possíveis; (d) A antecipe a potencial reação de B à solicitação de
A; (e) A sinalize de forma simbolicamente adequada a B suas expectativas; (f) B
entenda a relação funcional de A com o objeto; (g) B entenda a relação funcional
entre B e o objeto reconhecida por A; (h) B entenda as expectativas de A sobre B
através do ato simbólico; (i) B reaja em razão das expectativas funcionais de A sobre
B com vistas a um fim.

É possível que nem todos os eventos destacáveis na ocorrência observada


no caso anterior tenham sido mencionados. Não obstante, tais aspectos implícitos
da transação simbólica nos servem para evidenciar que a comunicação acontece

58
enquanto “dois centros de comportamento” se deslocam virtualmente um ao outro
para assim estabelecer expectativas que são traduzíveis no ato comunicativo, isto é,
tanto A quanto B devem, através de expectativas funcionais compartilhadas,
antecipar a ação e reação de um e outro. O propósito da sinalização de A é evocar
uma reação em B como resposta a um estímulo. A reposta de B ao estímulo é
determinada pela antecipação de consequências. Por meio de uma referência
cruzada, B reage não ao estímulo em si, mas às consequências desejadas por A
expressas pela sinalização que funciona como estímulo para a ação de B. Por sua
vez, A só poderá sinalizar de forma adequada com vistas a produzir um estímulo
eficaz em B se reconhecer e operar a partir de pressupostos inteligíveis a B. Esta é
a constituição de uma forma de transação simbólica elementar.

B, ao reconhecer a intenção de A, reconhece também a atribuição de


significado de A ao objeto, isto é, sua potencialidade. Desta forma, “the flower is
contemporaneously portable though not now actually in movement” (DEWEY, 1958,
p. 128), sendo a portabilidade uma potencialidade consequente que pode ser
atribuída a tantas outras interações. Logo, a flor, uma vez dado o sucesso do
empreendimento de B (e A), soma aos seus atributos a qualidade de ser portável,
qualidade esta que é compartilhada com outros objetos em fato e potencialidade. Há
uma ilustração mais familiar apresentada por Dewey que diz respeito aos efeitos
socialmente consequentes do significado de normas legais:

[…] A força reguladora dos significados legais fornece uma ilustração


conveniente. Um policial de trânsito levanta a mão ou apita. Seu ato
funciona como sinal para direcionar movimentos. Mas é mais do que
um estímulo episódico. Ele incorpora uma regra de ação social. Seu
proximate meaning são suas consequências imediatas na
coordenação de movimentos de pessoas e veículos; seu permanente
ulterior meaning – essência – é sua consequência em relação à
segurança dos movimentos sociais. A não observação do sinal
sujeita uma pessoa à advertência, multa ou prisão. A essência
incorporada no apito do policial não é uma realidade oculta
sobreposta a um fluxo sensível ou físico e à parte disso; uma
subsistência misteriosa de alguma forma alojada dentro de um
evento psíquico. Sua essência é a regra, abrangente e persistente, o
hábito padronizado, da interação social, e pelo qual o apito é usado.
[...]xvi (DEWEY, 1958, p. 190)

Neste caso, ao sinalizar levantando a mão ou soprando o apito, o oficial de


trânsito espera que uma reação – diga-se cessar o movimento – decorra como
produto no tráfego. Já os transeuntes, ao reagirem adequadamente às expectativas
59
antevistas pelo oficial quanto ao estímulo que deseja produzir e aos efeitos
desejados desse estímulo provocado pela sinalização, isto é, ao efetivamente e por
tal razão cessarem o movimento, revelam ao oficial de trânsito que participam no
significado socialmente convencionado por este signo nessa situação em especial.
O significado do ato do oficial de trânsito só estará completo uma vez que o conjunto
de ações que deste se espera serem produtos tiverem o efeito esperado – e, mesmo
que não sejam, consequências antevistas da não participação na rede significante
se seguirão. Logo, o ato consumatório é o desfecho ou conclusão de uma ação
coordenada pelo significado numa transação simbólica que também opera como
validador ou mantenedor das relações significantes.

Ainda há outras duas noções mencionadas por Dewey neste caso que
merecem ser exploradas: “proximate meaning” e “ulterior meaning”. Como foi visto,
proximate meaning diz respeito às reações imediatas esperadas de uma sinalização
– no primeiro caso, pode-se dizer que o equivalente seria o ato efetivo de B em
manejar a flor a A; já no segundo caso, cessar o movimento do trânsito próximo ao
oficial. Com efeito, o atendimento adequado ao proximate meaning indica como seu
efeito e razão de ser um significado superior, cuja manutenção depende do exercício
correto de proximate meaning e que o justifica: o ulterior meaning. Este último,
considerando o primeiro caso, podemos especular que seu equivalente seja
satisfazer os desejos de A; no segundo, como visto, manter a ordem e eficiência do
fluxo de trânsito.

Nota-se que a relação destas duas instâncias de significado é


interdependente (não sendo necessário ou conveniente, para o propósito deste
trabalho, investigar qual destas é original). É relevante observar que o exercício de
uma preserva a existência de outra e vice-versa. Dito de outra forma, a ação que
decorre como efeito de proximate meaning valida-o em sua funcionalidade
significante, ao mesmo tempo que valida, como seu produto legitimado, a
funcionalidade de um significado maior, o ulterior meaning. Assim, somente através
da existência e manutenção deste último poderá haver o efeito esperado do
proximate meaning e este, por sua vez, só terá efeito enquanto houver consenso e
participação coletiva na norma que o legitima. Observe que há um complexo de
significados e relações de dependência entre significados em ocorrências sociais:

60
neste exemplo em particular, até mesmo o reconhecimento da autoridade funcional
do oficial de trânsito sugere uma atribuição de significado. Entretanto, é curioso que
Dewey não tenha chegado a explorar essa relação de interdependência com maior
minúcia, o que seria fortuito para explicar, por exemplo, o caso comentado na
primeira seção deste capítulo em que instrumentalidades de crédito são justificadas
pela preciosidade atribuída a alguns minerais em especial, enquanto que tal
significado atribuído – preciosos ou raros – só tem efeito enquanto justifica os
primeiros. A rejeição de uma destas duas instâncias, neste caso em particular,
afetaria prejudicialmente a validação do significado da outra. Diz-se então que
significados justificam significados.

É o caso, também, de novos significados serem gerados a partir da


(re)combinação com outros significados, como foi sugerido nas discussões sobre as
tendências generalizadoras, uma vez que os significados têm potencial para serem
liberados de seu contexto definitivo, resultando em novos fins reguladores das ações
e relações. A condição para que isso ocorra é imposta pela necessidade de
coordenar o estado de coisas corrente com vistas a fins de ordem social. Logo, o
que difere a generalização da combinação como procedimentos experimentais de
produção de significados é que a primeira se manifesta como uma tendência
espontânea, regulada apenas pelos limites da experimentação em si; já a segunda é
uma demanda que se impõe pela situação que emerge das associações humanas
que exigem a geração de significados mais elaborados com o propósito de
estabelecer sistemas de valoração e orientação da conduta mais rigorosos. O
resultado disso é o surgimento de novos entes sociais e novas relações que os
sustentam e mantêm sua funcionalidade. Assim, em nenhum caso tais significados
permanecem sem a efetiva interação humana como sua causa original e razão de
ser. A evidência da funcionalidade de um ente social como produto de combinações
de significados é a sua aderência pelo coletivo, seu validador. Há dois exemplos
apresentados por Dewey sobre tais considerações que merecem ser destacados.
Vejamos o primeiro:

[...] Suponha que uma pessoa no estado de Nova York atire uma
bala na linha de Nova Jersey e mate alguém nesse estado; ou envia
doces envenenados por correio para alguém na Califórnia que morre
por comê-los. Onde o crime foi cometido? A pessoa culpada não está
sob a jurisdição do Estado onde a morte resultou; portanto, seu

61
crime, por definição, não foi cometido naquele Estado. Porém, como
a morte não ocorreu onde ele estava presente no momento, nenhum
crime ocorreu naquela jurisdição, sendo o lócus definido em termos
da presença corpórea do agente. A essência, extradição, não se
aplica porque não há crime pelo qual extraditá-lo. Em resumo, devido
ao significado aceito de jurisdição, nenhum crime foi cometido em
lugar algum. Esse resultado é evidentemente prejudicial à integridade
e segurança das associações e relações humanas. Assim, o
elemento de transação em um ato é destacado; um ato iniciado
dentro de uma determinada jurisdição se torna um crime quando
suas conseqüências desagradáveis ocorrem noutro lugar. O lócus do
ato agora se estende de Nova York à Califórnia. Assim, dois eventos
particulares independentes capazes de observação direta, juntos por
uma conexão entre eles que é inferida, não diretamente observável,
são agora incluídos em um significado tão simples quanto o do lócus
de um ato. [...] Além disso, um sistema de significados legais é
desenvolvido modificando diferentes significados com vistas à
consistência ou ordem lógica. Assim, os significados se tornam mais
independentes dos eventos que os criaram; eles podem ser
ensinados e expostos como um sistema lógico cujas partes estão
dedutivamente conectadas umas às outras.xvii (DEWEY, 1958, p.
198-199)

Note que o problema central não é se houve ou não crime, isto é, se há


condição para atribuição do significado "crime". Como toda atribuição de significado,
"crime" pressupõe o conjunto de uma ação e suas consequências. Neste caso em
particular, o significado designa o produto de uma relação de eventos distantes no
espaço e tempo – que, por sua vez, podem ser fragmentados em séries cada vez
maiores de eventos menores, o que não nos cabe discutir no presente momento. O
caso trata do significado que justifica o significado "crime", isto é, "jurisdição". Assim,
a necessidade imposta pela situação – seja esta de gerar um estado de segurança
mais eficiente – como seu ulterior meaning ou fim demanda que o significado "crime"
seja ajustado, o que só é possível se o significado que o justifica, "jurisdição",
também for ajustado como efeito do primeiro. Tal combinação de significados
catalisada pela necessidade imposta pelo estado de coisas existente e expectativa
de satisfação de novos fins projetados acaba por modificar todos os significados
envolvidos na trama relacional com vistas a serem suficientemente eficientes para a
gestão de ocorrências futuras: estes novos significados tornam-se
instrumentalidades potencialmente consequentes.

Ainda assim é necessário destacar novamente que a razão de ser de todo


procedimento de geração ou transformação de significados através de
recombinações somente possíveis pela liberação de contexto definitivo é o conjunto
62
de interações humanas sobre a qual terá efeito. Isto é, a força regulativa, validade
ou permanência depende das suas consequências no intercurso social. Em síntese,
a razão de ser dos procedimentos de (re)combinação dos significados é a
determinação de um ordenamento mais eficiente da ação. O seu sucesso e
permanência é medido pela efetiva aderência das partes sobre as quais estes
operarão e através das quais as consequências antevistas terão efeito. Deste modo,
os significados operam como modos de ação. Essa relação de dependência
condicional pode ficar mais clara se examinarmos o segundo dos casos
mencionados agora há pouco:

[...] O que é uma corporação, uma franquia? Uma corporação não é


um estado mental nem um evento físico específico no espaço e no
tempo. No entanto, é uma realidade objetiva, não um reino ideal do
Ser. É uma realidade objetiva que tem inúmeras consequências
físicas e mentais. É algo a ser estudado como estudamos elétrons;
exibe, como este último, propriedades inesperadas e, quando
introduzido a novas situações, comporta-se com novas reações. É
algo que pode ser conduzido, facilitado e obstruído, exatamente
como pode ser um rio. No entanto, não existiria nem teria significado
e potência sem a interação dos seres humanos entre si, uma
interação na qual coisas externas estão implicadas. Como essência
jurídica, ou método acordado de interação regulada, a corporação
tem sua própria carreira em desenvolvimento.xviii (DEWEY, 1958, p.
197)

Observe, então, que agir em conformidade com o significado na condição de


pressuposto é o que lhe confere força institucional, como fica evidente neste último
exemplo. Desta forma, o significado não é nem uma existência puramente mental
nem puramente física, mas possui uma fase psíquica com consequências tanto
físicas quanto mentais. Sobre esse status intermediário do significado, é preciso
notar uma insuficiência na teoria da linguagem de Dewey que pode ser inferida do
mesmo exemplo: Dewey negligenciou o fato de que, especialmente nas transações
simbólicas, não é condição necessária que o “agente” tenha ciência (plena, ao
menos) da rede de significação na qual está inserido e através da qual opera para
agir em razão da mesma. Resgatemos um caso concreto: o valor, isto é, o
significado da unidade quilograma fora recentemente alterado por um grupo de
especialistas. Podemos apenas especular o alcance da reação em cadeira e os
institutos que sofrerão efeito como consequência da ressignificação deste que é um
símbolo universalmente convencionado. Mais que isso, tal modificação afetará tanto
os agentes responsáveis pela mesma – os especialistas que, investidos da
63
autoridade deste contexto definitivo, produziram a ressignificação – quanto os
agentes que tiveram ciência da modificação por via puramente testemunhal como
também aqueles que em momento algum foram e possivelmente não serão
informados desta. Todos estes agentes agirão em razão do novo significado
instituído como valor do símbolo “quilograma”, muito embora, parece seguro afirmar,
que poucos estarão cientes que o fazem. Assim, a sustentação de um significado
convencionado de fato exige que se opere em razão deste, mas não exige que haja
ciência – em maior ou menor grau – das razões dessa operação. Logo, em sua fase
psíquica, o significado funciona como um pressuposto para a ação e alterá-lo produz
efeitos nas formas de ação.

Podemos observar também como isso ocorre entre contextos definitivos: agir
de forma legal não demanda que sejam conhecidos os sistemas legais com
profundidade, assim como o uso de determinados produtos de natureza química não
exige que se conheça sua formulação. O domínio instrumental de um ou outro
destes e demais contextos definitivos fornece vantagem operacional no mesmo, a
ponto de novas potencialidades poderem ser exercitadas em uma ou outra destas
instâncias. Porém, mesmo que um agente A, dotado de toda a instrumentalidade de
contexto definitivo X, não goze do mesmo status em contexto Y, ainda está sujeito
aos efeitos dos significados contemplados pelo contexto Y. A corporação ou franquia
do caso anterior possivelmente dotará de significações distintas de acordo com o
nível hierárquico dos agentes envolvidos no empreendimento. Uma vez que cada
nível de agência supõe relações funcionais distintas com o mesmo objeto e, tanto o
topo da hierarquia – isto é, o agente que idealmente estará mais familiarizado com o
ulterior meaning do empreendimento, o líder – quanto a base – os liderados –,
ambos fundamentalmente necessários para a permanência do todo significante,
terão acesso limitado ao significado atribuído por um e outro, ao contexto definitivo
de um e outro em relação ao mesmo objeto. O sucesso da transação simbólica está
em que, apesar de tal situação de acesso limitado aos contextos definitivos que
geram o significado, os agentes envolvidos produzem seu efeito, seu valor.

Destaquemos também que, como Dewey bem lembrara em alguns


comentários esparsos, o exercício da linguagem produz algumas formas distintas de
linguagem no que diz respeito às suas respectivas funcionalidades – como é o caso

64
mencionado anteriormente sobre linguagem legal e científica. Assim, a linguagem e
a comunicação podem ser apreciadas como fins em si mesmos – como é o caso
comum das artes e da filosofia e mais incomum de textos científicos. Entretanto, tal
atitude valorativa estética a respeito de formas discursivas mais elaboradas não
descaracteriza a instrumentalidade da linguagem, mesmo que seja seu efeito
apenas uma reificação da linguagem (muito embora em Dewey a arte tenha como
propósito mais plausível a orientação dos valores estéticos e morais de uma cultura,
seja este de preservá-los, transformá-los ou superá-los). Isto é, a apreciação
puramente estética de formas de linguagem tem, como pelo menos uma de suas
consequências, o reforço não intencional do caráter instrumental da linguagem, de
seu uso funcional regido por uma finalidade que é seu efeito. Perguntar-se quais são
os efeitos de tratar determinadas formas de linguagem como puramente estéticas
talvez revele, para a satisfação do pensamento pragmatista, a razão de ser dessa
atitude em si mesma enquanto um dos possíveis efeitos dessas formas e em como a
linguagem nesse contexto, apesar de considerada fim, opera como meio. 13

Por fim, também é explícito em NCM que, para Dewey, a linguagem é


condição necessária para a emergência da consciência, como veremos na
passagem seguinte retirada de um comentário de Max Black:

Mas Dewey vai mais longe. A linguagem é uma condição necessária,


segundo ele, para a existência da consciência individual: homens
sem discurso seriam animais incapazes de pensar – estúpidos nos
dois sentidos da palavra. "A comunicação", diz ele, "é uma condição
para a consciência" (EN 187), e todos, exceto o mais primitivo e
inarticulado dos "eventos psíquicos", têm "a linguagem como uma de
suas condições" (EN 169). Como a linguagem é um produto social e
a consciência pressupõe a linguagem, a atividade mental é
parcialmente um produto social: "a mente surge" quando a conversa
é transformada em solilóquio (EN 170). Quanto "mais alto" o
processo mental, mais complexo e sofisticado, mais íntima é sua
dependência da linguagem: as palavras têm a função de "criar
reflexão, previsão e lembrança" (EN 169, itálico inserido); a
linguagem tem "a função especial... de efetuar a transformação do
biológico em intelectual e potencialmente lógico" (L 45). xix (BLACK,
1962, p. 506)

13
O artista, assim como o publicitário ou demais profissionais da comunicação social, talvez seja
aquele que melhor compreenda, mesmo que intuitivamente, a instrumentalidade da linguagem, sua
capacidade de contemplar uma função com vistas a fins dentro de um sistema, uma vez que é
inerente a sua atividade considerar os fins da atividade discursiva como determinantes de sua
formalização.

65
O que pode soar aqui como um whorfianismo desmedido em Dewey é, na
verdade, uma consideração razoavelmente segura sobre as condições para a
consciência. Note que Dewey não reduz a consciência à linguagem como algumas
interpretações da teoria de Benjamin Lee Whorf tendem a propor, mas assume a
linguagem como uma de suas condições necessárias em paralelo com o que
chamará em Teoria da valoração de “tendências orgânicas”, sejam estas aspectos
biológicos que existem antes de qualquer atribuição de significado – sensações tais
como dor, frio, fome, medo, entre outras.14 Mais que isso, esta passagem apresenta
uma resposta aos partidários da noção de “linguagem privada”: em Dewey, nenhum
tipo de exercício linguístico interno – o solilóquio, aqui – é possível sem antes o
exercício linguístico de fato. Dito de outra forma, é preciso antes que o agente esteja
inserido num código linguístico e que assimile a linguagem que servirá como
“sistema mental”, e não o inverso. Também há algo de muito semelhante à
Semântica Geral formulada por Alfred Korzybski no que diz respeito ao grau de
complexidade das abstrações do agente e sua dependência aos instrumentos
linguísticos.15 O que procuro demonstrar com tais comentários é que Dewey estava,
assim como teóricos anteriores e posteriores a ele – podemos lembrar também de
Noam Chomsky – ciente da estreita relação existente entre linguagem e mente,
muito embora não tenha incorrido no equívoco de reduzir uma à outra nem
tampouco de desconsiderar a linguagem como fenômeno tipicamente social. Dos
produtos da linguagem, este seja talvez o mais controverso ainda hoje e talvez
tivesse sido de grande fortuito se Dewey nos tivesse deixado uma discussão mais
volumosa sobre consciência.

3.4. Comentário sobre a crítica de Max Black

Nesta seção, assumimos como encerrada a apresentação da teoria da


linguagem de Dewey e conduziremos a discussão dos tópicos explorados por seus
comentadores. Não há um volume substancial de trabalhos concernentes à

14
Pode-se objetar a respeito de tal relação condicional com especulações sobre a consciência em
animais sub-humanos. Porém, as discussões sobre o tema surgiram muito recentemente e a noção
de consciência para a academia da época de Dewey ainda se limitava ao estritamente humano.
15
Faço referência aqui às obras Language, Thought, and Reality de Benjamin Lee Whorf e Science
and Sanity: An introduction to Non-Aristotelian systems and General Semantics de Alfred Korzybski.
Uma vez que não é nosso objetivo no presente trabalho, pormenores das teorias destes autores não
serão explorados. Posteriormente num trabalho mais tópico, talvez seja interessante investigar a
relação mente-linguagem comparando as contribuições de tais perspectivas.

66
abordagem de Dewey sobre a linguagem, talvez pela razão mesma de Dewey ter
tratado o tema como apenas um apêndice de suas preocupações mais urgentes.
Logo, para a investigação conduzida aqui, consideraremos este trabalhos seminal: o
artigo produzido por Max Black em 1962, Dewey’s philosophy of language, que
servira de inspiração para a realização deste trabalho. Nos debruçaremos no
trabalho de Black.

Black oferece sínteses de questões bastante pontuais para Dewey e algumas


críticas que, por vezes, falham em fazer justiça aos textos do nosso autor objeto. Já
nos primeiros parágrafos de seu texto, esclarece que seu método será o de colocar
o instrumentalismo como escrutínio de si mesmo. Se tal empreendimento teve
sucesso, isto é, se a compreensão de Black sobre o que implica o instrumentalismo
e se conseguira sustentar o instrumentalismo enquanto ferramenta de análise será
explorado no decorrer da discussão. O objetivo primeiro de Black será tentar
delimitar com precisão o que Dewey compreendia como “linguagem”. Em nota, que
muito bem poderia ter composto a parte substancial do texto, Black afirma
acertadamente que em Dewey “linguagem” se aplica a “all means of communication
such as, for example, monuments, rituals and formalized arts” (BLACK, 1962, p.
505). Alguns aspectos da teoria de Dewey foram muito bem identificados como, por
exemplo, sua “abordagem funcional” baseada em uma noção teleológica, a intenção
de Dewey de fornecer uma “visão sinóptica” da dinâmica da linguagem e sua relação
com a instituição das atividades humanas e regulação de dimensões socioculturais:

[...] a abordagem funcional, como podemos rotular o procedimento de


Dewey, é certamente uma maneira legítima de chegar a uma visão
sinóptica e abrangente de uma estrutura. [...] Estou considerando
Dewey como empenhado em mostrar como a linguagem funciona, ou
seja, como o caráter e a organização dos elementos linguísticos e
sua posição no contexto da atividade humana contribuem para a
execução de tarefas pessoais e sociais. [...]xx (BLACK, 1962, p. 507)

Assim, pode parecer plausível, à primeira vista, que as considerações de


Black seguirão os princípios esclarecidos na seção anterior que dirigem toda a
compreensão de Dewey sobre linguagem – princípios estes que não são mais que
uma aplicação tópica das ideias gerais do pragmatismo. Entretanto, ao construir
suas críticas à teoria da linguagem, fica evidente que tal reconhecimento da
abordagem de Dewey pode ter sido superficial. Black, filósofo de tradição analítica,
busca delimitar com a minúcia típica de sua tradição, noções que não podem ser
67
concebidas de forma não relacional. Isto é, a definição de uma ontologia imóvel será
um desafio para a leitura de Black sobre Dewey como poderemos ver a seguir:

A ênfase sustentada de Dewey no contexto em que as palavras são


usadas me parece totalmente admirável. Mas pode-se duvidar se o
simples paradigma de resposta aos desejos expressos de outra
pessoa de Dewey nos leva muito longe. Quando a mãe quer que o
bebê mostre quão esperto ele é ao pegar a bola, a situação é clara o
suficiente. Mas há uma enorme lacuna entre isso e, digamos, a
familiar performance linguística de dizer as horas a alguém. Qual é
aqui o "propósito comum"? Dizer que é o objetivo de informar e ser
informado sobre a hora correta é trivial e pouco esclarecedor. Pois o
que está em questão é exatamente que tipo de coisa é dizer a hora.
Certamente, já sabemos a resposta, de uma maneira que dificilmente
poderia ser melhorada pela descrição verbal; sabemos como "dizer
as horas" e podemos enumerar os detalhes do procedimento com
duração cansativa. Mas o que se acrescenta à nossa compreensão
de senso comum desse tipo de situação se nos dizem que é um
exemplo de ação cooperativa, de um objetivo comum partilhado e
assim por diante? Nesse ponto, a fórmula filosófica do significado
como atividade social ameaça degenerar em um brilho automático.
Considere um caso mais complexo, diga o de fazer uma promessa.
Aqui, a ênfase na cooperação, propósitos compartilhados e afins
pode desviar nossa atenção de aspectos da situação de prometer
que valem a pena serem notados – quero dizer, coisas como a
existência de uma instituição subjacente, a relevância de
pressupostos compartilhados, a conexão entre o ato de prometer e
conseqüências subsequentes em termos de culpa, desculpa e assim
por diante. A atenção a esses fatores pode nos levar a uma visão
mais clara do que significa prometer; e, nesse caso, suspeito que a
estrutura de Dewey possa ser um obstáculo. xxi (BLACK, 1962, p. 514)

Informar as horas é uma atividade na qual pelo menos dois agentes


participam (talvez seja muito óbvio afirmar que informar as horas a alguém requer
que este alguém pergunte as horas). Assim, o ato de perguntar as horas, a questão
em si mesma, é baseado numa expectativa de resposta: ele cria o estímulo para
uma resposta – ele é funcional. Isto somente pode ocorrer porque há consequências
esperadas regulando o ato em si mesmo. Por sua vez, deliberadamente informar as
horas pode ter razões não tão facilmente identificáveis, porém, satisfazer às
expectativas do agente que pergunta pode ser a razão mais evidente. Inquirir sobre
quais são as consequências que há para a atividade como um todo pode ser mais
bem compreendido se questionarmos quais são os efeitos da atividade – ou os
efeitos da recusa em participar na atividade. Nós podemos especular, por exemplo,
que informar as horas quando solicitado está enraizado num sistema de significados
morais cuja consequência antevista é assegurar um estado de civilidade ou

68
cordialidade (Dewey comenta, mais especificamente, sobre como small talks e
outros rituais comunicativos cotidianos preservam um estado de fraternidade dentro
de uma comunidade).

No trecho citado, parece-nos que Black insistiu muito veementemente em


encontrar uma qualificação definitiva e positiva para common purpose nos trabalhos
de Dewey quando, na verdade, atitudes prospectivas diferentes numa mesma
circunstância podem levar a conjuntos de consequências imediatas que comporão
um resultado comum para os agentes envolvidos na situação em si (veja, por
exemplo, o caso já discutido na seção anterior sobre corporações). Estejam estes
plenamente cientes de tais consequências regulativas ou não, a atividade ainda
gerará, se adequadamente performada, as consequências que por fim preservam-
na. Dito de outra forma, muito dos hábitos comunicativos geram efeitos (ou
consequências) “acidentais” – na falta de termo menos estigmatizado – que são, na
verdade, o sustentáculo destes mesmos hábitos em uma cultura. Como já
mencionado em nota, um melhor entendimento das dinâmicas da ação, fundamental
para uma compreensão razoável da teoria da linguagem de Dewey, é encontrado
em Teoria da valoração, trabalho este que Black não chega sequer a mencionar.

O segundo caso abordado por Black é ainda mais evidente de sua deficiência
em fornecer uma leitura justa da teoria de Dewey: atos de fala, até onde podemos
dizer, talvez sejam as materializações linguísticas de funcionalidade mais evidentes.
Pois prometer envolve alguém que promete, alguém a quem é prometido, e algo
sobre o que é prometido: o aspecto da associação como uma condição está claro o
suficiente. O que está ausente nas considerações de Black é a compreensão de que
o objeto da promessa é sempre transcendente, é sempre algo que é esperado que
aconteça como razão da promessa. Seu significado não reside na promessa em si,
mas na ação que deve ocorrer causada pelo ato de prometer, nas expectativas que,
no momento do ato de prometer, não estão ainda consumadas, mas que devem ser
consumadas em razão da promessa. Para tornar mais simples: atos de fala são atos
de fala porque são modos de ação, são estritamente funcionais. Black parece falhar
com as premissas mais fundamentais do pragmatismo de Dewey.

A motivação para a crítica de Black sobre o common purpose talvez seja


compreensível uma vez que qualquer leitor de Dewey se deparará com o tom
69
despudoradamente otimista até em seus escritos de teor mais técnico. Entretanto, é
bastante visível que Dewey intercambiava termos sinônimos com grande
naturalidade, como se sua preocupação maior da atividade de escrita fosse
assegurar que reiterações não ocorressem (tal preocupação talvez seja lugar
comum para aqueles que se dedicam à escrita técnica em humanidades que se
orientam a uma escrita aprazível). A pretensão analítica de definição quase cirúrgica
de termos por Black não é compatível com a fluidez dos textos de Dewey e, muito
embora seu otimismo possa ter tido influência sobre sua escolha de termos, parece
mais sensato que a avaliação dos conceitos que estes termos buscam designar seja
realizada considerando tais conceitos dentro da lógica dos textos deweyanos. De
outra forma, o que supomos ser uma crítica válida pode não passar de uma
superficial disputa de termos entre dois contextos definitivos diferentes, o que é claro
para aquele que tenha compreendido a noção instrumentalista de contextos
definitivos.

Em nota, Black comenta que “an ampler discussion of Dewey’s view of


language would require an examination of the important part played by the notion of
possibility” (BLACK, 1962, p. 512). Ora, como poderia Black – ou qualquer outro
estudioso de Dewey, em particular, e dos pragmatistas, em geral – pretender ter
uma compreensão razoável de Dewey sem considerar a noção de possibilidade, a
força motriz de todo o argumento de Dewey? Essa deficiência fundamental ecoa no
decorrer de todo o trabalho de crítica de Black, em especial, na sua exigência
insistente pelo princípio de correspondência. Veja, por exemplo, o que é assumido
quando este se dedica à distinção entre signo e símbolo em Dewey: Black concorda
que signos operam como correspondentes de reações que destes devem derivar,
isto é, que são potencialmente consequentes; mas não concede o mesmo aos
símbolos. Mas, citando da obra mais recorrente nos comentários de Black, Dewey
diz em ToI que “[...] a ideia ou significado, quando desenvolvido no discurso, dirige
as atividades que, quando executadas, fornecem o material probatório necessário.”
(DEWEY, 1980, p. 64). Aqui temos evidência de que o exercício simbólico tem ao
menos uma consequência-meio destacável, a saber, a validação do significado. A
distinção entre signo e símbolo em Dewey não é tão relevante uma vez entendido
que ambos são instrumentalidades comunicativas: que são regidos pelo princípio de
funcionalidade; ambos produzem estímulos para reações, com diferenças na
70
extensão de suas possibilidades consequenciais, uma vez que os efeitos da
atividade simbólica são mais discretos pois símbolos existem em relação com outros
símbolos com os quais se combinam com vistas a fins, enquanto que signos estão
em relação apenas com a reação a que conduzem. Mais que isso, tanto signos
quanto símbolos requerem um sistema significante para que tenham efeito. É seguro
sumarizar da seguinte forma: todo signo é um símbolo, mas nem todo símbolo é um
signo.

3.5. Considerações preliminares

Este terceiro capítulo é particularmente importante pois constitui o


desdobramento do que procurei apresentar nos capítulos primeiro e segundo. Sendo
assim, marca a aplicação dos princípios e processos discutidos anteriormente à
linguagem, o que torna os capítulos anteriores fundamentais para o claro
entendimento deste. Desta forma, aspectos como o princípio de consequência e a
natureza prospectiva da interação agente-meio tornam-se basilares para a teoria da
linguagem em Dewey e revelam sua íntima relação com o pragmatismo e o
darwinismo.

Na primeira seção, Função e significado, fica estabelecido o que há de mais


divergente entre a teoria da linguagem deweyana e o tratamento dado pelas
perspectivas tradicionais à linguagem: novamente anti-reducionista, Dewey negou
propostas que concebiam o significado como uma substância subjacente a ser
descoberta na realidade objetiva, assim como as que concebiam o significado como
uma realidade exclusivamente psíquica. Em Dewey, o significado não é original de
eventos puramente mentais, tampouco puramente físicos: emerge de uma interação
experimental do agente com os elementos do ambiente.

Também ficou estabelecida a distinção e necessária relação entre função e


significado, sintetizada em (1-5). Em suma, o agente experimenta com os elementos
do ambiente com vistas a satisfazer uma demanda existencial, isto é, interage com o
objeto a partir de uma expectativa de função que o objeto deva desempenhar; dado
o caso de o objeto, nesta particular interação, atender à expectativa funcional do
agente (satisfazer sua demanda), há uma função. Entretanto, apesar de condição
necessária para a atribuição de significado, a função somente se torna significado
quando a relação funcional se preserva no tempo, isto é, quando o objeto tende a
71
atender a mesma expectativa funcional com sucesso, verificada por subsequentes
usos do agente. Sendo assim, o significado é um atribuição abstrata provisória –
pois se mantém enquanto a relação funcional se mantém – que transcende os
limites existenciais tanto do sujeito quanto do objeto: é um atributo do evento. Outro
aspecto do significado é que permite associações e experimentações com outros
significados, que tende a gerar novos significados que conduzem a novos
experimentos e relações funcionais. Desta forma, uma vez são que baseados em
funções, significados são orientados para consequências.

A seção seguinte, Significado e condicionantes experienciais, apresentou os


elementos da experiência que são determinantes para a manutenção de
significados. Primeiramente, Dewey discrimina as associações humanas (em
contraste com associações sem agentes) como baseadas em relações de
significados. Isto é, as associações humanas demandam significação, o que, por sua
vez, tende a transformar o estado original de coisas. Por experimentação com os
objetos sensíveis, são exercitadas relações funcionais que se tornam significados
uma vez que tais relações funcionais se preservem no tempo.

Também destaco o procedimento que Dewey denominou generalização: diz


respeito à tendência do agente de aplicar experimentalmente um significado
estabelecido previamente a novos elementos da experiência. A atribuição de tal
significado a tais novos elementos ocorre uma vez que satisfaçam as expectativas
funcionais que o significado designa, isto é, que validem o significado. No caso de as
expectativas funcionais serem frustradas, o significado demandará revisão,
adquirindo novas propriedades (positivas ou negativas). Assim, tanto os objetos
sensíveis quanto o intercurso social executam a validação de significados pela
moderação da tendência de generalização, o que, por sua vez, favorece a gradual
formação de sistemas de significados complexos.

Na penúltima seção, Transações simbólicas, procurei explorar as condições


de operacionalidade dos significados em sua relação com seus designadores
simbólicos, especialmente no que diz respeito às interações entre agentes em
contexto. Diferentemente de algumas outras tendências filosóficas, o fim primeiro e
razão de ser da linguagem, para Dewey, é a comunicação. Dito de outra forma, a
consequência do exercício da linguagem é a comunicação efetiva. Sendo assim,
72
Dewey considerou as designações simbólicas como fundamentais na investigação
da linguagem, particularmente pela sua função em notar modos de valoração e ação
no mundo, assim como suas consequências necessárias na formação da
consciência e do raciocínio, e da manutenção da cultura.

O primeiro ponto a ser destacado é o que Dewey chamou de ato


consumatório. Em linhas gerais, o ato consumatório é o desfecho de uma transação
simbólica bem sucedida e, por esta razão, o que valida o exercício simbólico
eficiente: no processo comunicativo, o entendimento entre locutor e interlocutor deve
ser a consequência necessária de ambos exercitarem sistemas simbólicos
mutualmente inteligíveis adequadamente. Assim, pelo entendimento, as
consequências antevistas que justificam o exercício comunicativo validam-no
quando satisfeitas. Numa transação simbólica, o locutor, através do discurso, visa
provocar uma reação no interlocutor. Tal expectativa funcional, quando satisfeita, se
manifesta na conduta do interlocutor. Desta forma, para que o locutor conduza o
interlocutor à reação desejada, deve notar o objeto a partir do ponto de vista do
interlocutor, isto é, a partir do significado estabelecido por este com o objeto – e
vice-versa – e traduzir suas intenções de acordo com o sistema simbólico deste. A
linguagem opera como instrumento cuja função é o ato consumatório.

Dewey também apontou que os atos simbólicos apresentam dois níveis de


consequências no intercurso social: proximate meaning e ultimate meaning. O
primeiro diz respeito às consequências diretas de um ato simbólico, as reações
imediatas que este tende a provocar; o segundo, às consequências convencionadas
como sistema das normas socioculturais. Ambos se justificam mutuamente: o
exercício eficaz de proximate meaning assegura a manutenção do sistema (ultimate
meaning) que dele depende e este último, por sua vez, é a diretriz que torna o
exercício de proximate meaning uma convenção normativa. Em suma, é a adequada
participação coletiva antevista dos agentes (expectativa funcional) para estas
instâncias de significado que os torna necessários e os valida. Por esta razão, novos
significados podem ser gerados e instituídos como norma social pela recombinação
de significados prévios com vistas a produzir um estado de coisas mais satisfatório
para o coletivo.

73
Também foi apresentada a noção de Dewey sobre contextos definitivos: um
mesmo elemento da realidade pode receber atribuições de significados diferentes
em contextos diferentes, o que implica que o mesmo ente pode ter determinadas
funções enfatizadas ou, sequer, exclusivas, dado o contexto em que é
operacionalizado. Uma vez que as atribuições de significado determinam a natureza
das consequências do uso dos elementos da realidade, um mesmo ente, como, por
exemplo, água, pode ter aplicações diferentes para um agente de senso comum e
para um especialista, como, por exemplo, um químico. Não significa dizer que as
atribuições de significados em diferentes contextos definitivos implicam que o ente
seja materialmente diferente, mas sim que potencialidades diferentes do ente são
exercitadas.

Ao fim da penúltima seção, é mencionado brevemente como a linguagem,


para Dewey, produz, como consequência acidental, a emergência da consciência,
assim como a gradual complexificação da linguagem conduz igualmente a um
gradual avanço da faculdade de raciocínio e valoração. Sendo a linguagem um
fenômeno tipicamente social, é possível inferir que a consciência deve ter o
intercurso social como uma das condições necessárias para sua emergência.

Para a quarta seção, procurei comentar a crítica de Max Black sobre a teoria
da linguagem de Dewey. A escolha pelo texto de Black se justifica por ter sido o
primeiro a dedicar-se a uma avaliação exclusivamente sobre o tratamento de Dewey
da linguagem – abundam comentadores de Dewey; entretanto, talvez em razão de
Dewey não ter escrito um texto estritamente sobre linguagem, os comentadores
costumam avaliar outros tópicos. O que pode ser observado na crítica de Black foi a
falta do entendimento sobre funcionalidade, aspecto fundamentalmente importante
para a compreensão da teoria da linguagem de Dewey. As críticas que Black
apresenta refletem o típico modo de investigação da tradição analítica (logic-based),
o que dificultou-lhe uma compreensão melhor ajustada de um pensador de tradição
pragmatista (performance-based).

74
Conclusão

O objetivo deste trabalho foi evidenciar como a linguagem é concebida do


ponto de vista naturalista na teoria da linguagem de Dewey a partir da influência
darwinista no seu programa filosófico. Para isso, fez-se necessário apresentar
brevemente as bases do pragmatismo americano e sua evolução histórica a fim de
fornecer um panorama da estrutura de pensamento na qual o trabalho de Dewey,
em especial sua abordagem sobre a linguagem, está inserido. Também foi
necessário notar em que medida e de que forma pode-se estabelecer a relação
entre os escritos de Darwin e o trabalho de Dewey. Com isso, espero que tais
tópicos tenham sido razoavelmente esclarecidos: a ênfase na agência; o princípio de
consequência como critério de juízo do valor das ideias justificado naturalmente; a
abordagem funcionalista; a interação entre agente e meio como condição necessária
do conhecimento; a tendência experimental como procedimento natural do
comportamento e base do ato de conhecer; a ênfase sobre a ação com vistas à
melhoria das condições existenciais; e a instrumentalização dos elementos e
relações do ambiente, assim como dos objetos da razão.

Uma vez apreendidos os tópicos mencionados, torna-se possível notar a


linguagem do ponto de vista hologramático: um sistema (de significados) inserido em
um sistema maior (evolução por seleção natural) dirigido pelos mesmos protocolos
que este segundo, ambos assegurando seu desenvolvimento e manutenção
recíproca. A sobrevivência do indivíduo no meio depende da sua capacidade em
atribuir significados funcionalmente eficientes, o que a própria interação com o meio
irá determinar. Desta forma, o meio impõe o mecanismo de seleção tanto ao próprio
organismo quanto aos significados. O resultado (bem sucedido) da seleção
semântica imposta pelo meio é a superação de condições existenciais desafiadoras
e emergência de um novo e mais vantajoso estado de existência. Em suma, a
manutenção e evolução do organismo implica significação orientada para
consequências desejáveis, isto é, pelo refinamento da inteligência pela experiência.

Note no quadro seguinte como a linguagem pode ser comparada nas


perspectivas de Darwin e Dewey e como a abordagem darwinista não somente
influenciou a deweyana, mas a complementa:

75
Darwin Dewey
Linguagem identificada com língua Linguagem identificada com
(expressão verbal). significação (habilidade sêmica).
Mais próximo da linguística. Mais próximo da semiótica e da
semiologia.
Produto da evolução e Produto natural da experimentação
desenvolvimento estrutural do com os elementos do ambiente.
cérebro.
Favoreceu, através de seu uso, o É condição necessária da consciência
desenvolvimento do cérebro, o que e do raciocínio e favorece a evolução
gerou o surgimento de outras individual e social por meio de
habilidades cognitivas. atribuições de significados que sejam
funcionalmente eficazes, o que
transforma a própria rede de
significados
Segue a lógica da organização Segue a lógica da organização
recursiva (para o organismo e a recursiva (para o indivíduo e o
espécie). sistema).
Favoreceu o estabelecimento de Mantém a unidade sociocultural e
modos de vida mais cômodos, assim homem, tal como suas instituições,
como a unidade sociocultural do normas de conduta e valoração, e
homem. também promove seu avanço.
É uma habilidade aperfeiçoada pelo É uma habilidade aperfeiçoada pelo
exercício contínuo. exercício, experimentação e
validação.
É um dispositivo para a evolução da É um instrumento para a gestão
espécie. inteligente da vida e o avanço
humano.
Evolui historicamente, enquanto Evolui historicamente, enquanto
sistema, e individualmente, em efeito sistema, e individualmente, em efeito
recíproco. recíproco.
É hologramática quanto à evolução É hologramática quanto à evolução
por seleção natural. por seleção natural.

76
Observe que está implícito no tratamento de ambos sobre a linguagem que
esta, apesar de ser um atributo da experiência secundária, tem sua origem na
experiência primária. Mais que isso: note que o exercício da linguagem tem efeitos
sobre a experiência primária (em Darwin, a complexificação do cérebro; em Dewey,
a transformação dos elementos do meio), o que sugere que Darwin teve ciência do
retorno da experiência secundária à primária posteriormente sintetizado por Dewey.
Outros pontos de comunhão que devem ser notados são a compreensão de que o
exercício da linguagem tende a transformar os próprios meios que tornam seu uso
possível (o cérebro; o sistema) – organização recursiva – e que a linguagem é um
sistema que está sujeito às mesmas diretrizes do grande sistema em que o
organismo está inserido, a evolução por seleção natural – é hologramática.

A discussão conduzida neste trabalho nos fornece um esboço para a possível


elaboração de uma teoria geral da biossemiótica – ou, melhor dizendo,
biossemiologia. Entender o funcionamento das atribuições e manutenção de
significado, assim como de sua comunicabilidade e funcionalidade em contextos
organizados simbolicamente, pode prover um paradigma para a compreensão do
funcionamento da linguagem em espécies não humanas, ou até mesmo para a
descoberta de habilidades sêmicas ainda não observadas em diversas espécies.
Assim, como consequência de tais aplicações, o próprio paradigma pode vir a ser
gradualmente refinado, o que produzirá o avanço do entendimento da natureza da
linguagem em todas as suas manifestações através de uma teoria inclusiva e
suficientemente precisa que considere o agente do discurso como tradutor de
intenções e produtor de significados. Compreender os fundamentos da linguagem é,
antes de mais nada, assumir o controle do instrumento dos instrumentos.

77
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n. 19. 1962.

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Scientiae Studia. V. 5, n. 2. 2007.

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78
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London: MacMillan. 1989.

WHITE, Morton G. The origin of Dewey’s instrumentalism. New York: Columbia


University Press. 1943.

i
1. We have no power of introspection, but all knowledge of the internal world is derived by
hypothetical reasoning from our knowledge of external facts.

2. We have no power of intuition, but every cognition is determined logically by previous


cognitions.

3. We have no power of thinking without signs.

4. We have no conception of the absolutely incognizable.


ii
To satisfy our doubts, therefore, it is necessary that a method should be found by which our
beliefs may be caused by nothing human, but by some external permanency – by something
upon which our thinking has no effect... such is the method of science. Its fundamental
hypothesis, restated in more familiar language, is this: there are real things, whose
characters are entirely independent of our opinions about them; those realities affect our
senses according to regular laws, and, though our sensations are as different as our
relations to the objects, yet, by taking advantage of the laws of perception, we can ascertain
by reasoning how things really are; and any man, if he have sufficient experience and reason
enough about it, will be led to the one true conclusion.
iii
It is foolish for Catholics and Protestants to fancy themselves in disagreement about the
elements of the sacrament, if they agree in regard to all their sensible effects, here and
hereafter. […] It appears, then, that the rule for attaining the third grade of clearness of
apprehension is as follows: Consider what effects, that might conceivably have practical
bearings, we conceive the objects of our conception to have. Then, our conception of these
effects is the whole conception of the object.
iv
I am against bigness and greatness in all their forms, and with the invisible molecular moral
forces that work from individual to individual, stealing in through the crannies of the world like
so many soft rootlets, or like the capillary oozing of water, and yet rending the hardest
monuments of man’s pride, if you give them time, the bigger the unit you deal with, the
hollower, the more brutal, the more mendacious is the life displayed. So I am against all bit
organizations as such, national ones first and foremost; against all big success and big
results; and in favor of the eternal forces of truth which always work in the individual and
immediately unsuccessful way, under-dogs always, till history comes, after they are long
dead, and puts them on the top.
v
[...] To reform and reconstruct philosophy is both to demystify and to defend the most
reliable mode of inquiry in modern culture, namely, critical intelligence best manifest in the
community of scientists. And to demystify and defend critical intelligence is to render it more
and more serviceable for the enhancement of human individuality, that is, the promotion of

79
human beings who better control their conditions and thereby more fully create themselves
(i.e. advance creative democracy).
vi
This formal activity which operates throughout a series of changes and holds them to a
single course; which subordinates their aimless flux to its own perfect manifestation; which,
leaping the boundaries of space and time, keeps individuals distant in space and remote in
time to a uniform type of structure and function: this principle seemed to give insight into the
very nature of reality itself. To it Aristotle gave the name είδος. This term the scholastics
translated as species.

[…] Genuinely to know is to grasp a permanent end that realizes itself through changes,
vii

holding them thereby within the metes and bounds of fixed truth. […] Since, however, the
scene of nature which directly confronts us is in change, nature as directly and practically
experienced does not satisfy the conditions of knowledge. […]

[…] Interest shifts from the wholesale essence back of special changes to the question of
viii

how special changes serve and defeat concrete purposes; shifts from an intelligence that
shaped things once for all to the particular intelligences which things are even now shaping;
shifts from an ultimate goal of good to the direct increments of justice and happiness that
intelligent administration of existent conditions may beget and that present carelessness or
stupidity will destroy or forego.
ix
The claim to formulate a priori the legislative constitution of the universe is by its nature a
claim that may lead to elaborate dialectic developments. But it is also one that removes
these very conclusions from subjection to experimental test, for, by definition, these results
make no difference in the detailed course of events. But a philosophy that humbles its
pretensions to the work of projecting hypotheses for the education and conduct of the mind,
individual and social, is thereby subjected to test by the way in which the ideas it propounds
work out in practice. In having modesty forced upon it, philosophy also acquires
responsibility.
x
The slight respect paid to larger and more pervasive kinds of empirical objects by
philosophers, even by professed empiricists, is apparent in the fact that while they have
discoursed so fluently about many topics they have discoursed little about discourse itself.
[…]

Upon the whole, professed transcendentalists have been more aware than have professed
empiricists of the fact language makes the difference between brute and man. The trouble is
that they have lacked naturalistic conception of its origin and status. Logos, has been
correctly identified with mind; but logos and hence mind was conceived supernaturally. Logic
was thereby supposed to have its basis in what is beyond human conduct and relationships,
and in consequence the separation of the physical and the rational, the actual and the ideal,
received its traditional formulation.

[…] Speech is thus regarded as a practical convenience but not of fundamental intellectual
significance. It consists of “mere words”, sounds, that happen to be associated with
perceptions, sentiments and thoughts which are complete prior to language. Language thus,
“expresses” thought as a pipe conducts water, and with even less transforming function than
is exhibited when a wine-press “expresses” the juice of grapes. The office of signs in creating
reflection, foresight and recollection is passed by. In consequence, the occurrence of ideas
becomes a mysterious parallel addition to physical occurrences, with no community and no
bridge from one to the other.

80
xi
[…] But they took the structure of discourse for the structure of things, instead of for the
forms which things assume under the pressure and opportunity of social cooperation and
exchange. They overlooked the fact that meanings as objects of thought are entitled to be
called complete and ultimate only because they are not original but are a happy outcome of a
complex history. […] They overlooked the fact that the import of logical and rational essences
is the consequence of social interactions […] Hence they conceived of ideal meanings as the
ultimate framework of events, in which a system of substances and properties corresponded
to subjects and predicates of the uttered proposition.
xii
Language is a natural function of human association; and its consequences react upon
other events, physical and human, giving them meaning or significance. Events that are
objects or significant exist in a context where they acquire new ways of operation and new
properties. Words are spoken as coins and money. Now gold, silver, and instrumentalities of
credit are first of all, prior to being money, physical things with their own immediate and final
qualities. But as money they are substitutes, representations, and surrogates, which embody
relationships. As a substitute, money not merely facilitates exchange of such commodities as
existed prior to its use, but it revolutionizes as well production and consumption of all
commodities, because it brings into being new transactions, forming new stories and affairs.
Exchange is not an event that can be isolated. It marks the emergence of production and
consumption into a new medium and context wherein they acquire new properties. Language
is similarly not a mere agency for economizing energy in the interaction of human beings. It
is a release and amplification of energies that enter into it, conferring upon them the added
quality of meaning. The quality of meaning thus introduced is extended and transferred,
actually and potentially, from sounds, gestures and marks, to all other things in nature.
Natural events become messages to be enjoyed and administered, precisely as are song,
fiction, oratory, the giving of advice and instruction. Thus events come to possess characters;
they are demarcated, and noted. For character is general and distinguished.

[…] Human beings illustrate the same traits of both immediate uniqueness and connection,
xiii

relationship, as do other things. […] Everything that exists in as far as it is known and
knowable is in interaction with other things. It is associated, as well as solitary, single. The
catching up of human individuals into association is thus no new and unprecedented fact; it is
a manifestation of a commonplace of existence. Significance resides not in the bare fact of
association, therefore, but in the consequences that flow from the distinctive patterns of
human association. There is, again, nothing new or unprecedented in the fact that
assemblage of things confers upon the assembly and its constituents, new properties by
means of unlocking energies hitherto pent in. The significant consideration is that
assemblage of organic human beings transforms sequence and coexistence into
participation.
xiv
Thus every meaning is generic or universal. It is something common between speaker,
hearer and the thing to which speech refers. It is universal also as a means of generalization.
For a meaning is a method of action, a way of using things as means to a shared
consummation, and method is general, though the things to which it is applied are particular.
The meaning, for example, of portability is something in which two persons and an object
share. But portability after it is once apprehended becomes a way of treating other things; it
is extended widely. Whenever this is a chance, it is applied; application ceases only when a
thing refuses to be treated in this way. And even the refusal may be only a challenge to
develop the meaning of portability until the thing can be transported. Meanings are rules for
using and interpreting things; interpretation being always an imputation of potentiality for
some consequence. […] generalization is carried spontaneously as far as it will plausibly go;
usually much further than it will actually go. A newly acquired meaning is forced upon

81
everything that does not obviously resist its application, as a child uses a new word
whenever he gets a chance or as he plays with a new toy. Meanings are self-moving to new
cases. In the end, conditions force a chastening of this spontaneous tendency. The scope
and limits of application are ascertained experimentally in the process of application.
xv
A requests B to bring him something, to which A points, say a flower. There is an original
mechanism by which B may react to A’s movement in pointing. But natively such a reaction
is to the movement, not to the pointing, not the object pointed out. But B learns that the
movement is a pointing; he responds to it not in itself, but as an index of something else. His
response is transferred from A’s direct movement to the object to which A points. Thus he
does not merely execute the natural acts of looking or grasping which the movement might
instigate on its own account. The motion of A attracts his gaze to the thing pointed to; then,
instead of just transferring his response from A’s movement to the native reaction he might
make to the thing as stimulus, he responds in a way which is a function of A’s relationship,
actual and potential, to the thing. The characteristic thing about B’s understanding of A’s
movement and sounds is that he responds to the thing from the standpoint of A. He
perceives the thing as it may function in A’s experience, instead of just ego-centrically.
Similarly, A in making the request conceives the thing not only in its direct relationship to
himself, but as a thing capable of being grasped and handled by B. He sees the thing as it
may function in B’s experience. [...] B, upon hearing A, makes a preparatory reaction of his
eyes, hands and legs in view of the consummatory act of A’s possession; he engages in the
act of grasping, carrying and tendering the flower to A. At the same time, A makes a
preparatory response to B’s consummatory act, that of carrying and proferring the flower.
Thus neither the sounds uttered by A, his gesture of pointing, nor the sight of the thing
pointed to, is the occasion and stimulus of B’s act; the stimulus is B’s anticipatory share in
the consummation of a transaction in which both participate. [...]
xvi
[…] The regulative force of legal meanings affords a convenient illustration. A traffic
policeman holds up his hand or blows a whistle. His act operates as signal to direct
movements. But it is more than an episodic stimulus. It embodies a rule of social action. Its
proximate meaning is its near-by consequences in coordination of movements of persons
and vehicles; its ulterior and permanent meaning – essence – is its consequence in the way
of security of social movements. Failure to observe the signal subjects a person to arrest,
fine or imprisonment. The essence embodied in the policeman’s whistle is not an occult
reality super-imposed upon a sensuous or physical flux and imparting form to it; a mysterious
subsistence somehow housed within a psychical event. Its essence is the rule,
comprehensive and persisting, the standardized habit, of social interaction, and for the sake
of which the whistle is used. […]
xvii
[...] Suppose a person in New York State shoots a bullet across the New Jersey line, and
kills some one in that state; or sends poisoned candy by mail to some one in California who
dies from eating it. Where is the crime committed? The guilty person is not within the
jurisdiction of the State where the death resulted; hence, his crime by definition, was not
committed in that State. But since the death did not occur where he was bodily present at the
time, no crime occurred in that jurisdiction, locus being defined in terms of the abode of the
agent. The essense, extradition, does not apply because there is no crime for which to
extradite him. In short, because of the accepted meaning of jurisdiction, no crime has been
committed anywhere. Such an outcome is evidently prejudicial to the integrity and security of
human association and intercourse. Thus the element of transaction in an act is noted; an act
initiated within a given jurisdiction becomes a crime when its obnoxious consequences occur
outside. The locus of the act now extends all the way from New York to California. Thus two
independent particular events capable of direct observation, together with a connection

82
between them which is inferred, not directly observable, are now included in so simple a
meaning as that of the locus of an act. [...] Furthermore a system of legal meanings is
developed by modifying different ones with a view to consistency or logical order. Thus the
meanings get more independent of the events that led up to them; they may be taught and
expounded as a logical system, whose portions are deductively connected with one another.
xviii
[...] What is a Corporation, a Franchise? A corporation is neither a mental state nor a
particular physical event in space and time. Yet it is an objective reality, not and ideal Real of
Being. It is an objective reality which has multitudinous physical and mental consequences. It
is something to be studied as we study electrons; it exhibits as does the latter unexpected
properties, and when introduced into new situations behaves with new reactions. It is
something which may be conducted, facilitated and obstructed, precisely as may be a river.
Nevertheless it would not exist nor have any meaning and potency apart from an interaction
of human beings with one another, an interaction in which external things are implicated. As
legal essence, or concerted method of regulated interaction, corporation has its own and its
developing career.
xix
But Dewey goes further. Language is a necessary condition, according to him, for the
existence of individual consciousness: men without speech would be animals unable to think-
dumb in both senses of the word. "Communication," he says, "is a condition for
consciousness" (EN 187), and all but the most primitive and inarticulate of "psychic events"
have "language as one of their conditions" (EN 169). Since language is a social product, and
consciousness presupposes language, mental activity is partly a social product: "mind
emerges" when conversation is transformed into soliloquy (EN 170). The "higher" the mental
process, the more complex and sophisticated it is, the more intimate is its dependence upon
language: words have the function of "creating reflection, foresight and recollection" (EN 169,
italics inserted); language has "the special function . . . of effecting the transformation of the
biological into the intellectual and the potentially logical" (L 45).
xx
[...] the functional approach, as we may label Dewey’s procedure, is certainly one
legitimate way of arriving at a synoptic and comprehensive view of a structure. […] I am
taking Dewey to be engaged in showing how language works, i.e., how the character and
organization of linguistic elements and their position in context of human activity contribute to
the execution of personal and social tasks. […]
xxi
Dewey’s sustained emphasis upon the context in which words are used seems to me
wholly admirable. Only it may be doubted whether Dewey’s simple paradigm of response to
the expressed wishes of another will take us very far. When mother wants baby to show how
clever he is by reaching for the ball, the situation is clear enough. But there is an enormous
gap between this and, say, the familiar linguistic performance of telling someone the time.
What is here the “common purpose”? To say that it is the purpose of informing and being
informed about the correct time is trivial and unilluminating. For what is in question is just
what kind of thing telling the time is. Of course, we already know the answer, in a fashion that
could hardly be bettered by verbal description; we know how to “tell the time” and could
enumerate the details of the procedure at tiresome length. But what is added to our common-
sense understanding of this kind of situation if we are told that it is an instance of cooperative
action, of a shared common purpose, and so on? At this point the philosophical formula of
meaning as social activity threatens to degenerate into an automatic gloss. Consider a more
complex case, say that of giving a promise. Here, emphasis upon cooperation, shared
purposes, and the like may deflect our attention from aspects of the promise-giving situation
that are worth noticing – I mean such things as the existence of a background institution, the
relevance of shared presuppositions, the connection of the act of promising with subsequent

83
consequences in the way of blame, excuse, and so on. Attention to these factors can lead us
to a clearer view of what promising amounts to; and in such case, I suspect Dewey’s
framework might be a hindrance.

84

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