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SUZANO ANO 4 Nº 3 ABR.

2012 REVISTA INTERFACES 11


ISSN: 2176-5227

Práticas institucionais com usuários de drogas


e o acesso à construção de processos simbólicos
Alba Riva Brito de Almeida
Universidade Federal da Bahia/ Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (albarivabrito@yahoo.com.br)
Leny Alves Bomfim Trad
Instituto de Saúde Coletiva - Universidade Federal da Bahia

Resumo
Este estudo enfoca duas experiências de intervenção junto a usuários de álcool e outras drogas numa institui-
ção de referência. Pretende discutir questões relacionadas às práticas de atenção e cuidado a usuários de drogas
e identificar a marca da construção da identidade institucional através das práticas. A metodologia privilegia
a entrevista, análise documental e estudo de caso. Identifica-se que a pluralidade de estratégias e de arranjos
interdisciplinares utilizados pela instituição funcionam como meios alternativos para ressignificação da droga
e revelam as ações face aos modos de assujeitamento dos usuários às práticas com drogas, bem como as leituras
interpretativas acerca dos determinantes psicossociais da adesão.

Palavras-chave: Práticas institucionais; drogadição; sentidos e significados.

Este texto visa trazer à discussão questões relacio- tâncias psicoativas, como também pelas condições
nadas às práticas de atenção e cuidado com usuários socioeconômicas a que estão submetidas e que lhes
de drogas, procurando identificar, nas malhas discur- subtraem o exercício da cidadania.
sivas extraídas de projetos específicos, os processos de Foram entrevistados nove técnicos da instituição,
trabalho que assinalam a identidade institucional. com ênfase na trajetória profissional, motivação e con-
Este estudo parte da premissa de que a produção cepção do trabalho desenvolvido na instituição, além
de estratégias, modeladas pelos novos padrões de in- das experiências concretas com os adolescentes.
ter-relação entre os profissionais e usuários amplia o Os diferentes modelos explicativos descritos pelos
entendimento do agir toxicomaníaco, redesenhando, entrevistados fazem emergir a vertente da operacio-
a posteriori, diretrizes ao estado da arte institucional. nalidade associada à teoria da clínica. Indica, tam-
Um processo de trabalho é, assim, iniciado, inaugu- bém, a polivalência de identidade epistemológica, o
rando a utilização de novos dispositivos e tecnologias que contribui para o exercício da interdisciplinarida-
que culminam por fomentar reflexões concernentes de institucional. A possibilidade de construção de um
aos valores, interesses e perspectivas de produção de entendimento técnico-teórico acerca do mapeamento
responsabilidade dos usuários contumazes de drogas, do social que se delineia e materializa na instituição,
quanto à reordenação de suas vidas. associado aos impasses ou obstáculos operacionais
Num segundo momento apresentaremos, à guisa das terapêuticas, parece ser um dos maiores desafios
de discussão, os extratos teóricos depreendidos da ex- para os profissionais envolvidos nessas práticas.
periência prática, os quais lançam luz sobre a questão
dos estilos de apropriação da experiência com drogas, O Projeto Espaço de Convivência
engendrados pelos sentidos e significados das drogas
e seus usos numa determinada organização social, O Espaço de Convivência foi criado por terapeutas
esta que se desvela como eventos interpretativos no preocupados com as dificuldades no tratamento do to-
acontecer do diálogo, o qual denota a subjetividade do xicômano, cujos vínculos terapêuticos se mostravam,
usuário e seus deslocamentos e os modos de inserção em geral, frágeis. Sua proposta preliminar foi a oferta
dos discursos na ordem do mundo. de uma série de atividades criativas em uma dimen-
A pesquisa centrou-se em dois projetos - o Espaço são sócio-artístico-cultural: teatro, música, artes plás-
de Convivência e o GAIA (Grupo de Atenção e Inves- ticas e outros, para aqueles pacientes que já vinham
tigação da Adolescência) - implantados em um Cen- sendo acompanhados em tratamento individual.
tro de atenção integral aos usuários de drogas e seus O Espaço de Convivência esteve preocupado com o
familiares, cujas concepções encerram a promoção da aumento do consumo de substâncias psicoativas en-
inclusão social dessa população estigmatizada, mar- tre pessoas de diferentes camadas sociais e das mais
ginalizada e excluída, não só pelo consumo das subs- diversas faixas etárias, assim como permanece atento
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à gama de novas substâncias decorrentes da oferta do modo que permitam o engajamento dos próprios
mercado. Seu interesse está vetorizado para a necessi- adolescentes e jovens adultos usuários de SPA nos tra-
dade de revisão constante de práticas de intervenção balhos realizados nas oficinas, os quais têm motivado
nesta área: os pacientes na construção de novos laços sociais, até
então apagados pelos efeitos da substância utilizada
A experiência institucional apontou para a e muitas vezes pelo envolvimento em atos delituosos
necessidade da estruturação de ações inte- que retroalimentam esse consumo. A grande parte
gradas que permitissem oferecer mudanças desses pacientes não tem qualquer vínculo institucio-
mais efetivas na relação dos pacientes com nal e encontra-se brutalmente identificada como “vi-
as drogas, como também oferecer novas pos- ciados”, “marginais”, em situação de exclusão e, conse-
sibilidades de inclusão no contexto social e quentemente, exposta a distintos riscos à sua saúde
cultural em que estão inseridos. (Fala de um física e mental.
coordenador). Seus objetivos específicos são:
• Acolher pacientes cujo perfil demande um pro-
As consequências diretas e indiretas do uso abusi- grama de atenção e cuidados mais intensivos;
vo de substâncias psicoativas são percebidas não ape- • Promover atividades que reafirmem os laços so-
nas no contexto da rede pública de saúde, mas princi- ciais do paciente e seu reconhecimento social através
palmente nas interfaces da vida social: na família, no da produção artístico-cultural;
trabalho, no aumento de criminalidade e na dissemi- • Estimular a escolha particular da(s) oficina(s), fa-
nação do vírus HIV entre usuários de drogas injetáveis. cilitando o deslocamento do objeto droga;
Segundo os entrevistados, com o advento do crack, em • Ocupar, de forma criativa, o tempo de espera do
1998, houve demanda significativa de tratamento na paciente, entendendo-se essa espera como etapa da ins-
instituição, passando a ser incluídas, nos seus estudos, talação da transferência à instituição e/ou ao terapeuta,
as categorias de exclusão e marginalização. A grande vínculos estes essenciais na clínica psicanalítica;
maioria dos participantes é de poliusuários, que se • Propiciar ao paciente um suporte adicional ao
referem à utilização de várias substâncias ao mesmo tratamento individual e/ou grupal;
tempo, sejam elas lícitas ou ilícitas. • Incentivar a produção artística como um novo
A construção das práticas inscritas no Espaço de instrumento de escolha que possibilite o deslocamen-
Convivência foi orientada pela constatação do exercí- to do objeto droga;
cio contínuo de atitude crítica e reflexiva dos profissio- • Ampliar as possibilidades de inserção sócio-
nais sobre os eixos constitutivos de suas intervenções, cultural de adolescentes e adultos jovens usuários de
nas perspectivas de atenção e cuidados praticados drogas através de projetos de expressão e criação;
pela instituição. Portanto, é baseado na especificidade • Oferecer recursos para que os participantes iden-
das demandas das populações de usuários abusivos tifiquem novos interesses e talentos;
de drogas que o Espaço de Convivência efetivou suas • Assegurar uma atenção mais contínua em situa-
atuações, adequando as suas estratégias, as quais não ção de abstinência ao uso de substâncias psicoativas;
cessam de emergir do seio das próprias estratégias em • Criar um espaço permanente de informação e pre-
voga, e que surgem a partir das iniciativas dos técnicos. venção de riscos e danos para os usuários de drogas.
Segundo os entrevistados, o trabalho desenvolvido
pelo Espaço pôde ser apresentado em mostras públi- A grande maioria dos participantes nunca
cas organizadas pelos próprios participantes, junto realizou qualquer tratamento anteriormen-
com a coordenação e produção cultural do projeto. te. Isso denota a dificuldade de muitos de-
Além disso, os integrantes participaram de encontros pendentes buscar ajuda quando necessário,
regulares sob a forma de fórum, quando puderam bem como aponta para a importância desse
discutir aspectos relativos ao consumo de drogas, às primeiro contato institucional com o depen-
relações familiares, ao conceito de arte e cultura e, so- dente de drogas. Essa importância se dá pela
bretudo, ao exercício da cidadania. necessidade do estabelecimento de vínculos
O Espaço de Convivência visa criar um lugar de significativos nesse primeiro contato, uma
permanência, propiciando ao usuário de drogas um vez que essa população é muito susceptível
atendimento adicional e alternativo que lhe possibi- a rupturas, com dificuldades de retorno ao
lite realizar, de forma mais eficiente, a entrada e/ou acompanhamento. (Fala de um coordena-
continuidade do tratamento. É um lugar não circuns- dor).
crito numa geografia, mas na dinâmica de atividades
de acolhimento aos usuários de drogas. Desde a admissão do usuário no projeto, questio-
A experiência institucional aponta para a neces- nou-se sobre a possibilidade do mesmo estar ligado
sidade de estruturação destas ações integradas, de a alguma instituição, ter algum vínculo de trabalho
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ou estar inserido em algum programa institucional. nico desses pacientes, mas também relativas a uma
Verificou-se que significativo contingente dos partici- compreensão mais ampla da relação entre esses jo-
pantes encaminhados não exerce qualquer atividade, vens e a droga. Envolve instituições governamentais
nem possui qualquer tipo de vínculo com instituições. e não governamentais que trabalham com crianças
Constatou-se que muitos dos participantes jovens se e adolescentes, estudantes e pessoas interessadas no
encontram em situação de ruptura escolar e que, além tema, promovendo a interlocução com técnicos que
do uso de substâncias psicoativas, estão envolvidos atuam no Serviço e convidados de diversas áreas do
no tráfico, inclusive sob ameaça de morte por parte de conhecimento.
traficantes ou policiais. Na faixa etária adulta, alguns Esses encontros têm visado não só discutir aspec-
participantes nunca exerceram atividades, ou se des- tos relativos ao binômio Adolescência x Drogas, mas
vincularam destas por conta do uso abusivo de subs- também estreitar relações entre as instituições parti-
tâncias psicoativas. cipantes e com a instituição, buscando ampliar o inter-
O Espaço de Convivência propôs e realizou Oficinas câmbio e os encaminhamentos entre as instituições
de expressão e criação que, no seu desenvolvimento, participantes. Estabelece, de forma conjunta, algumas
foram acrescidas ou modificadas de acordo com o linhas de ação que possam auxiliar nas articulações
grau de resposta dos usuários do Centro. A arte apren- de encaminhamentos e trajetórias dos pacientes. Fo-
dida na Oficina pode abrir perspectivas de algum re- ram fortalecidas e expandidas as possibilidades de
torno financeiro para os pacientes que se interessem incremento das discussões técnicas e contatos dire-
pela comercialização de seus produtos. tos entre os técnicos das instituições parceiras, con-
tribuindo para a entrada de novos adolescentes e sua
permanência no grupo.
O Projeto GAIA
Assinala-se, na proposição dos temas do Fórum
O projeto GAIA (Grupo de Atenção e Investigação Interinstitucional, assim como nas oficinas do Es-
da Adolescência) surgiu no intuito dos profissionais paço de Convivência (estas mais ligadas ao fazer
de estabelecer estratégias e situar as questões levan- operativo), a repetição de situações concernentes ao
tadas pelo consumo de substâncias psicoativas pelos mal-estar existencial do adolescente: situações de
adolescentes, além de ampliar as possibilidades de preconceito social e violência urbana, dificuldades
respostas dadas pela instituição e a capacidade de de inserção escolar, paradoxos do reconhecimento
atendimento aos jovens que demandam ajuda. da lei e vicissitudes do exercício da transgressão,
questões ligadas ao risco à saúde e ao risco de morte,
A necessidade de novos dispositivos para a interveniência da mídia e dos outros recursos da tec-
criação de um espaço diferenciado de circu- nologia, evidências das problemáticas familiares e
lação de significantes a partir do tema “con- outros impasses e dificuldades com que os jovens se
sumo de substâncias psicoativas” incentivou deparam nas questões sociais da contemporaneida-
a busca de elementos teóricos que funda- de, decorrentes da inexistência de políticas públicas
mentassem o fenômeno da adolescência, da coerentes e afinadas com as necessidades dos jovens
maneira como é posto pelo discurso contem- como sujeitos e cidadãos.
porâneo. (Fala de um técnico). A circulação da palavra, que oscila entre o saber for-
mal e o saber próprio de cada participante, como au-
O GAIA surgiu como resposta à significativa de- tores das cenas enunciativas, teve nesses Fóruns seu
manda de adolescentes que buscavam atendimento ponto de ancoragem, visto que os participantes são
no Serviço e à constatada especificidade de tal popu- convidados a falar nesta convergência de interesses
lação no que diz respeito às formas de encaminha- e atividades comuns, no âmbito do tratamento e das
mento, no estabelecimento do vínculo institucional, ações educativas e preventivas, no campo da drogadi-
na formulação da demanda de tratamento. São rele- ção. Sujeitos retomados em seu discurso sobre o olhar,
vantes as diversas implicações do sujeito adolescente o elaborar e o saber-fazer na dimensão de engenho ins-
com o objeto droga, na singularidade do caso a caso, tituinte, metáforas incorporadas pela instituição atra-
no nível de aderência tanto à instituição quanto ao vés da produção de trabalho interinstitucional concre-
acompanhamento ambulatorial propostos, além da to; confluência de discursos que visam acompanhar a
consideração sobre os diferentes contextos familiares magnitude dos movimentos das singularidades dos jo-
e sociais nos quais se inserem. vens nas formações sociais que funcionam como causa
O Fórum Interinstitucional sobre Adolescência e e dobradiça das reconstruções anunciadas pelos temas.
Drogas, outra importante atividade do GAIA, nasceu Estes encontros culminaram por construir um grande
das demandas de instituições encaminhadoras de painel de sentidos e significações, exibidos pelas diver-
pacientes adolescentes para a instituição, que levan- sas racionalidades através dos enunciados inscritos ao
tavam questões não só pertinentes a atendimento clí- longo de cada apresentação.
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Discussão - Contexto estrutural e suas alter- o sentido é atravessado pela intenção de referência
nativas interpretativas do locutor” (idem, p. 28). O discurso refere-se ao seu
locutor que, ao falar, se refere ao mundo, a um modo
A experiência institucional com usuários de subs- de compreender o mundo e, dentro do nosso foco, o
tâncias psicoativas e seus familiares suscita, entre os fato da drogadição. A concepção de que somos apre-
técnicos que lidam com essa população, uma série de endidos nas malhas da linguagem desde o ingresso
questões teóricas e práticas. As respostas são múlti- no mundo convida a uma reflexão preliminar acerca
plas entre os que tratam desse fenômeno, impondo da equivalência entre linguagem e existência, no que
a necessidade de se vislumbrar modelos estruturais concerne à pertinência ao mundo, mediada pelo eixo
novos, para dar conta da especificidade dessa mani- do discurso.
festação e dos impasses que se anunciam na oferta de Uma demonstração desta função enunciativa das
assistência integral. práticas é explicitada pelo GAIA e pelo Espaço de Con-
vivência, os quais se distanciaram de atividades sus-
É importante se colocar em ação os operado- tentadas, dentre outros, pelo discurso de combate a
res da linguagem, neste trabalho com usuá- uma “teoria do desvio”, que acentua a dimensão mo-
rios de drogas. Isso porque a estereotipia do tivacional do desvio decorrente do comportamento
seu discurso e sua fragilidade no exercício do desviante concebido numa perspectiva patologizante.
simbólico exigem uma abertura, por parte O atravessamento dos conceitos de desvio e segrega-
dos profissionais que lidam com eles, de com- ção, contribuição efetiva da antropologia no seio da
preensão sobre a multiplicidade dos sentidos instituição, foi afiançado pelo discurso psicanalítico,
das drogas e do modo como cada um se en- na leitura da singularidade da apropriação do mal-es-
caixa neste universo de sentidos tão diversifi- tar inerente aos jovens na contemporaneidade. Nesta
cados. (Fala de um coordenador). direção, o “coração do problema” (BIBEAU; PERREAULT,
1995) seria o reflexo, na subjetividade de cada adoles-
A captação desses dados, que reverberam desde cente, dos lugares sociais que ocupa e das intensida-
a estrutura da ordem social, é feita através do discur- des psíquicas que lhe sobredeterminam. O enfoque
so, como um dos eventos da linguagem. Para Ricoeur empregado nas atividades do GAIA e do Espaço de
(1976, p. 20), “[...] um ato de discurso não é simplesmen- Convivência procura delimitar como a estrutura social
te transitório e evanescente [...] preserva uma identida- e cultural produz a pressão que propicia a construção
de própria, a qual se aloja na estrutura de linguagem, e apresentação de comportamento socialmente des-
articulada a outras redes de significações”. A natureza viado sobre indivíduos situados de maneiras distintas
complexa da linguagem aqui se faz representar, visto naquela estrutura. Trata-se de compreender, na es-
que a linguagem é o próprio fundamento e a explicita- teira de Becker (1973, p. 23), que “[...] os grupos sociais
ção da materialidade de uma causalidade estrutural. criam o desvio ao estabelecer as regras cuja infração
Por outro lado, Foucault (1998, p. 112) já nos alertara constitui desvio”. Por este ponto de vista, o desvio não
para o fato de que “[...] a clínica constitui uma das ten- é a condição do ato que a pessoa faz, mas a consequ-
tativas de ordenar uma ciência pelo exercício e deci- ência da aplicação por outrem de regras e sanções ao
sões do olhar [...] um olhar que escuta e um olhar que “transgressor” (BECKER, 1973, p. 8-9).
fala: a experiência clínica representa um momento de Se a linguagem é capaz de transcender a realida-
equilíbrio entre a palavra e o espetáculo”. O olhar to- de cotidiana (BERGER; LUCKMANN, 1966) pensamos
mado pelo evento e como concepção prévia: olhar so- ser possível constituir-se, como objetivo do GAIA e do
bre o processo e sobre os sujeitos que operam segun- Espaço de Convivência, uma ratificação das possibi-
do as diferentes perspectivas ou modelos, oferecendo lidades de inserção sociocultural e de posição subje-
alguns meios (estratégias) para tornar possível essa tiva no resgate da temporalidade do sujeito e do en-
operação. Esta necessidade de transparência do olhar gendramento de novos sentidos para o mundo que
pode ser também aludida quando das contradições ele constrói e vivencia objetivamente, desprovida da
inerentes à problemática da exclusão ou segregação mistificação da realidade da droga, dissecando as fun-
do campo das toxicomanias, no sistema de saúde do ções sociais da droga. O deslocamento da relação do
Estado. paciente com a droga ressignificará, como realidade
Ainda segundo Ricoeur (1976, p. 23), “[...] o evento tangível, as marcas de um exílio no campo das rela-
não é apenas a experiência enquanto expressa e co- ções sociais mais amplas, principalmente no âmbito
municada, mas também a própria troca intersubjeti- dos responsáveis pelo controle social: família, estado,
va, o acontecer do diálogo [...]” e o que se transfere, se escola, uma vez que sua compreensão da realidade
desloca através dos discursos, é o seu sentido públi- encerra o atar e desatar pontual dos nós de lingua-
co. Para ele, “[...] referir é o uso que a frase faz numa gem, apresentados nos dialetos sedimentados pelos
certa situação e em conformidade com um certo uso; segmentos da realidade definidos como comunidades
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de compartilhamento da droga. objeto de demanda dos sujeitos que acorrem à mes-


Se os significados das drogas são diferentes (do ma. A concepção de um objeto cabível àquele que su-
ponto de vista psicológico, médico, ideológico, policial postamente o apreendeu, parece ser o próprio funda-
etc.), os efeitos serão diferentes para aqueles que es- mento da relação do sujeito com a droga, posto que é
tão sob condições sociais diferentes. Por conseguinte, em torno dessa “coisa”, inacessível em seu fundamen-
os sujeitos drogaditos não podem ser contados pelas to, que ele se orienta.
semelhanças. Faz-se mister advertir que não é a droga como o
A consideração única das drogas como uma re- produto em si mesmo, mas a droga-coisa, algo que, no
presentação globalizada e homogeneizada do mun- campo do humano, pode desembocar na impossível
do contemporâneo culmina por apagar os traços de realização de uma satisfação e na igualmente impos-
identidade e o reconhecimento da singularidade dos sível adequação perfeita do sujeito aos seus objetos.
usuários de drogas. As concepções teóricas vigentes O característico do agir toxicomaníaco é tentar re-
na instituição envolvem a noção de sujeito, a qual enviar o sentido para o lado do significado, na medida
está intrinsecamente vinculada à perspectiva do ser em que descreve o objeto de sua satisfação como coi-
humano como um projeto articulado às idiossincra- sa acessível; o objeto toma uma materialidade, uma
sias de cada um. Como projeto sempre renovado, não substância, dá-se a crença de que é possível gozar des-
fica subsumido por modelos prévios, porque se ancora de que dele se aproprie. O sujeito percebe o objeto (o
na questão de que as drogas são instrumentalizadas para sujeito faz a droga), dá-lhe sentidos, os quais possuem
finalidades diversas: afetiva, subsistência, afirmação de uma natureza sempre ficcional.
identidade, negação, reconhecimento, pertença e outros. Portanto, a droga comparece no contexto institu-
O sujeito drogadito é responsável pela produção cional não como pura exterioridade da qual se deveria
que estabelece na montagem com o objeto-droga. livrar para iniciar-se um tratamento, mas como par-
As noções de responsabilidade e ética apontam para te integrante do indivíduo. Disso resulta que a droga
o desejo do sujeito como elemento a ser construído passou a desempenhar um papel central na organiza-
e tornado permanente no discurso. O sentido do ser ção desse sujeito, ocupando lacunas importantes na
(como subjetividade) e o estar (como estrutura pree- sua estrutura (esta que se imiscui no campo social),
xistente) no mundo se fundem na modelagem do uso tornando-se, assim, o próprio fundamento da sua sub-
metódico de uma substância psicoativa, o que reduz a jetividade,
tendência à dicotomia presente em algumas análises Conforme sinalizamos, os significados sociais do
fenomenológicas ou pragmáticas. uso de droga, naquilo que não pode ser compreendi-
O recuo diante dos movimentos de inteligibilidade do como estando em função de determinadas causa-
ou de construção de modelos justapostos a uma úni- ções, numa ideação fenomenológica da presença, tão
ca vigência de pensamento sobre a relação do sujeito somente, serão sempre especificados pela dialética do
com a droga permite o redimensionamento do fato, sujeito com o simbólico. Qual a relação interpretati-
hoje denominado toxicomania, trazendo para o cen- va que mantenho com o outro social, este que porta o
tro da cena a singularidade de cada sujeito em sua re- imperativo do consumo? Espera-se que a condição de
lação com o objeto, estruturalmente grampeado pelos submetimento estagnante a este imperativo venha
paradoxos sociais. Essa particularidade de relação en- se esboçar no horizonte de um tratamento, quando o
cerra o mapeamento das razões mínimas de funcio- sujeito perceber as modalidades de respostas deno-
namento da relação do sujeito com o mundo: tadas pelo seu comportamento, pelas desmotivações
para o estudo, trabalho ou sexo e “fissuras” pela droga,
Um traço comum nos discursos que circulam expondo a sua modalidade de relação com o produto
nas oficinas é o apego ao produto que, sa- a várias leituras possíveis, sinalizando os movimentos
bemos, não é o problema. O produto é a coi- de interpretação acerca dessas posições no mundo.
sa inerte; ele só vai exercer suas funções na A expressão “sujeito afetado pelos objetos”, versão
medida em que alguém o toma e ele usa ou recitativa da hegemonia dos objetos sobre o sujeito,
abusa, quer dizer, segundo os modos de uso. O diz respeito à crença de que os objetos podem ser in-
fato é que o objeto-droga significa a totalida- tegralmente consumidos; o “nada a faltar”, apregoado
de dos interesses desses jovens, não restando pelo discurso capitalista, parece sintetizar o atual mo-
o espaço vazio que poderia ser ocupado com delo social de mercado, que tem uma função precípua
outros investimentos no mundo. (Fala de um na oferta dos chamados “gadgets”, objetos descartá-
coordenador, 2005). veis que têm correlato com a ciência e seus avanços
tecnológicos, o que culmina por determinar um tipo
O que se constitui permanentemente nessas com- de organização da realidade social, esta que estamos
plexas dimensões racionais e tecnologias utilizadas neste estudo definindo como circunscrita ao impera-
na instituição em estudo é a linha da identificação do tivo GOZA! (LACAN, 1982).
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O sujeito plasmado no objeto “[...] ilustra não so- Saúde (CONEP/CNS/MS), constituindo-se como estudo de caso para
mente a renúncia à mais-valia e ao seu desconheci- tese de doutoramento. Não houve financiamento institucional e/ou
privado para sua consecução.
mento, mas, pelo menos no início, o seu descrédito”
(CHEMAMA,1997, p. 67). É importante considerar este
aspecto da posição do usuário na configuração social,
posto que o “[...] mundo do sujeito e o do social consti-
Referências Bibliográficas
tuem um único e mesmo universo” (idem).
BECKER, Howard. Outsiders. New York: The Free press,
1973.
Considerações finais BERGER, Peter L., LUCKMANN, Thomas. Os fundamen-
tos do conhecimento na vida cotidiana. In: A Cons-
A oposição à estereotipia dos discursos sobre a trução Social da Realidade. São Paulo: Vozes, p. 56-57,
droga, além da consideração das concepções diferen- 1966.
ciadas do uso, abuso e dependência, forma o ponto de BIBEAU, Gilles, PERREAULT, Michel. Comprendre la
partida decisivo para o alcance do projeto institucio- ‘marge’ pour agir au coeur du problème. Montreal:
nal, o qual se atualiza permanentemente nas práticas Boréal, 1995.
devido às aporias do seu funcionamento com os con- CENTRO DE ESTUDOS E TERAPIA DO ABUSO DE DRO-
dicionamentos políticos internos e externos. GAS. Relatório anual de atividades do Espaço de Con-
Como prática que visa à abordagem pluridimen- vivência. Salvador. 2005
sional da adolescência e suas vicissitudes, margeadas CENTRO DE ESTUDOS E TERAPIA DOABUSO DE DRO-
pela relação com a droga, o GAIA e o Espaço de Con- GAS. Relatório anual de atividades do GAIA. Salvador.
vivência se dedicaram a buscar a aproximação com 2005-2006.
outras instituições que também se dedicam a ado- CHEMAMA, Roland. Um sujeito para o objeto. In:
lescentes, com o intento de aprimorar estratégias de Goza! Capitalismo, Globalização, Psicanálise. Ricardo
intervenção para os problemas relatados pelos jovens. Goldemberg (Org.). Salvador: Ágalma, 1997.
O que nos parece relevante destacar é a adequação do FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. São Pau-
formato das atividades àquelas especificidades que lo: Forense Universitária, 1998.
integram o universo dos jovens, qual seja, o incentivo LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20:Mais, ainda.
à produção artística através das oficinas de expressão Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982.
e criação. RICOEUR, Paul. A fala e a escrita. In:Teoria da Inter-
Não obstante as diferenças teóricas e metodo- pretação – O discurso e o excesso de significado. Lis-
lógicas, a instituição objeto desse estudo pretende boa: Edições 70, p. 20, 23, 28 e 33, 1976.
funcionar como um decifrador das estruturas subli-
minares referentes ao consumo de drogas, mediante
os saberes que se mostram qualificados para opinar Informações sobre as autoras
sobre essa relação específica do sujeito com a droga.
Embora pautada em controvérsias, esta sua posição Alba Riva Brito de Almeida
dá suporte à condição de descontinuidade, ou seja, de Psicóloga. Mestre em Teoria Psicanalítica pela Uni-
manutenção do hiato no lugar da verdade absoluta e versidade Federal do Rio de Janeiro (2001). Doutora
derradeira sobre os sentidos das toxicomanias. Isso em Saúde Pública pelo Instituto de Saúde Coletiva da
ocorre porque a linguagem não se reduz à trama dos Universidade Federal da Bahia (2008). Atua no núcleo
discursos, ao formalismo dos seus enunciados ou na de Ações Comunitárias e da Pós-graduação do CETAD/
tentação de converter-se, meramente, num paradig- UFBA (Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Dro-
ma panfletário de saberes especializados, esperando, gas). Professora da Escola Bahiana de Medicina e Saú-
com esta lógica, que a verdade da diferença se inscre- de Pública, no Curso de Psicologia, e Vice-Coordena-
va e se expresse. dora do Curso de Especialização em Teoria da Clínica
Psicanalítica pela Universidade Federal da Bahia. Vem
pesquisando sobre práticas institucionais, modelos de
O projeto inicial desta pesquisa foi apresentado ao corpo insti- atenção integral em álcool e outras drogas e sobre a
tucional, explicitando-se a sua natureza (problemática, problema de
investigação e objeto), os objetivos e o método. Obteve-se a aprova-
clínica com usuários de drogas e seus familiares.
ção e a concordância dos informantes em participar de forma volun-
tária, mediante consentimento livre e esclarecido, como também fi- Leny Alves Bomfim Trad
cou assegurado o acesso aos documentos e relatórios disponíveis na
Psicóloga. Doutora em Ciencias Sociales y Salud - Uni-
instituição, mediante autorização escrita do coordenador-geral, sem
evidências de conflitos de interesses ou concepções. A pesquisa foi versidad de Barcelona (1996). Pós-doutorado em An-
conduzida dentro de padrões éticos exigidos pela Comissão Nacional tropologia da Saúde na Universitat Lumière - Lyon 2
de Ética em Pesquisa / Conselho Nacional de Saúde / Ministério da (2006). Professor associado II do Instituto de Saúde Co-
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letiva - Universidade Federal da Bahia, onde coordena


o Grupo de Pesquisa e Cooperação Técnica FASA: Co-
munidade, Família e Saúde. Tem experiência na área
de Saúde Coletiva, com ênfase em Ciências Sociais e
Saúde e Planejamento & Gestão, atuando principal-
mente nos seguintes temas: comunidade, família e
saúde; avaliação qualitativa de programas e políticas
de saúde; abordagem etnográfica em saúde; humani-
zação em saúde, etnicidade e saúde. Possui Bolsa de
Produtividade em Pesquisa nível PQ2 pelo CNPq .

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