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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA


BIBLiOTECA CENTRAL DA UNICAMP

Abreu, Nuno Cesar Pereira de.


Ab86b Boca do lixo: cinema e classes populares / Nuno Cesar Abreu. - Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2006.

AGRADECIMENTOS
1. Cinema - História. 2. Cultura popular. 3. Indústria cinematográfica.
4. Filme cinematográfico. I. Título.

COO 791.4309 A Fernão Ramos, Patrícia Campos de Sousa, aos entrevistados


301.2
791.43 e a todos os que tornaram possível a realização deste trabalho.
ISBN 85-268-0672-6 791.4301

índice para catálogo sistemático:

1. Cinema - História 791.4309


2. Cultura popular 301.2
3. Indústria cinematográfica 791.43
4. Filme cinematográfico 791.430 I

Copyrighr © by Nuno Cesar Abreu


Copyright © 2006 by Editora da UNICAMP

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'o bJtlo::lquaisquer sem autorização prévia do editor.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 9

ANTECEDENTES 15

A TOQUE DE CAIXA E A TODO VAPOR: 1970-1975 43

A BOCA DO LIXO ESTÁ NA RUA DO TRIUNFO: 1976-1982................................................... 77

A BOCA DO LIXO ENTRA EM AGONIA 121

PORNOCHANCHADA: ALEGRIAS DO SUBDESENVOLVIMENTO 139

A INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA DA BOCA DO LIXO: UM MODO DE PRODUÇÃO 183

ENTREVISTAS : 217

BIBLIOGRAFIA 219
APRESENTAÇÃO

Este trabalho procura abordar o que chamo aqui de ciclo da Boca do Lixo,
um processo de produção cinematográfica que teve lugar num certo período
de tempo (anos 1970), num espaço determinado (a Boca do Lixo) e, a des-
peito de suas precariedades e contradições, conseguiu efetivar uma aliança
entre seus três vértices - produção, exibição e distribuição - e produzir
um cinema popular com excelente resposta de público. Um processo inserido
no contexto mais amplo de expansão da produção cinematográfica (e da
indústria cultural de uma maneira geral) paulista e brasileira, marcado pela
organização da elite do audiovisual brasileiro em torno da EMBRAFILME-
empresa estatal de fomento à produção -, de certa forma com o mesmo
propósito, período em que as questões do nacional e do popular se apre-
sentavam como o epicentro das motivações ideológicas.
Uma conjugação de fatores pode ser apontada como tendo levado à for-
mação de um pólo produtor paulista - uma "comunidade" -, que de-
senvolveu formas econômicas, artísticas e de relacionamento com caracte-
rísticas próprias. A principal delas, a meu ver, é sua formação a partir da
afluência de um contingente egresso das classes populares que ali se pro-
fissionalizou. Na Boca, tanto aqueles que assumiram posições de relevo na
hierarquia do processo econômico como as equipes de produção - diretores,
roteiristas, fotógrafos - são provenientes desses estratos da sociedade.
A Boca do Lixo sempre me fascinou, exatamente por ser um lugar, um
"endereço" que aglutinava pessoas que queriam fazer cinema. Diferente do
formato empresarial de um estúdio, com jeito de fábrica e comandado por
patrões, ela parecia um gueto de liberdade (se é possível mais essa contra-
dição, entre tantas, que oferece). Exagerando na imagem, talvez fosse mais

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cmelhante a uma frente de trabalho, uma fronteira e n rni ';) li, mes- prim ir apítul deste livro d térn-se nos antecedentes da Boca do
mo, um garimpo. Ao iniciar este trabalho sobre o cinema da Boca, procurei l.ix . Aborda, inicialmente, as iniciativas anteriores de criação de uma
levantar o que havia de pesquisa, estudos ou reflexões sobre o assunto. indú tria cinematográfica paulista, como os grandes estúdios da Vera Cruz,
Encontrei muito pouco (sobre pornochanchada ainda existe algum material), Maristela etc. Em seguida, traça um quadro da intervenção do Estado na
e o que encontrei, em geral, tratava o tema com ironia e distanciamento, reestruturaçâo institucional do cinema brasileiro, de que resultou a cria-
com uma tendência a desqualificar os filmes, as pessoas e o processo. ção da EMBRAFILME,no final dos anos 1960, e na implementação de uma
A matéria-prima desta pesquisa são as 16 entrevistas que realizei entre política protecionista de reserva de mercado. Por fim, relata a formação de
dezembro de 2000 e janeiro de 2002 com produtores, diretores, roteiristas, um núcleo hoje identificado como cinema marginal, a partir da migração
atores e atrizes que trabalharam na Boca do Lixo e viveram o processo de de alguns alunos da Escola Superior de Cinema São Luiz para a Rua do Triunfo,
desenvolvimento daquela indústria, A escolha dos depoentes foi fruto de que, de certa forma, lança as sementes da fórmula dos filmes com apelo po-
contatos, indicações e, principalmente, disponibilidade. De todo modo, pular: erotismo, títulos chamativos, baixo custo. O "pessoal do cinema" aflui
as principais personagens são mencionadas. A remernoração dessa expe- rapidamente para o novo ponto de ebulição do cinema paulista, onde já
riência pelos entrevistados fez aparecer um caldo cultural humanizado, re- fincavam raízes novos produtores interessados em criar um cinema com-
velando uma história social que a cada instante aumentava o meu interesse patível com as necessidades do mercado e capaz de estabelecer contato com
em (relcontar, A ironia transformou-se em um olhar generoso, que permite as classes populares.
investigar com afeição o "objeto". As referências biográficas devem ser leva- No segundo capítulo, busco traçar os caminhos percorridos pela pro-
das em conta até novembro de 2002, data em que este texto foi elaborado. dução da Boca do Lixo entre 1970 e 1975, sob a vigência da lei de obrigato-
Com base em pesquisa bibliográfica, levantamento da filmografia, co- riedade de exibição dos filmes brasileiros, período em que se consolida uma
mentários sobre os filmes e, principalmente, nas entrevistas, pretendi te- "política de produtores" - agentes do processo econômico de um pólo de
cer a trama da história do desenvolvimento do ciclo da Boca do Lixo, com- produção incipiente e precário, mas de grande atividade, impulsionado pela
preender o papel que ele desempenhou na vida cultural brasileira, localizar entrada decisiva do exibidorldistribuidor no investimento dos filmes. Es-
seus produtos no interior da indústria cultural que começava a ganhar truturava-se, então, uma cadeia produtiva de tipo industrial, que seria
complexidade nos anos 1970. aprimorada ao longo dos anos 1970. Para ela aflui toda espécie de profis-
Procurei organizar o texto como um documentário, categoria que talvez sionais "feitos pela vida, formados pela técnica", em busca de um lugar ao
melhor defina este trabalho, tanto em sua analogia com o cinematográfico sol que parecia brilhar para o cinema nacional. Surgem os primeiros "heróis"
como em seu sentido metodológico. Meu objetivo aqui não foi apresentar da Boca do Lixo, reconhecidos por seu sucesso pessoal e financeiro, e também
uma verdade, mas reunir "documentos" - materiais diversos -, enca- seus "trabalhadores culturais", que procuravam dotar o meio de algum
deando-os em uma narrativa que fosse, na medida do possível, isenta, poé- substrato intelectual ou artístico. Assumindo sua diversidade e suas carên-
tica, verdadeira. O leitor encontrará aqui, no contexto de uma reflexão mais cias, a Boca do Lixo deslancha a toque de caixa e a todo vapor, produzindo
ampla, pequenas reflexões pontuando os vários tópicos, levantando questões, o similar nacional- dos filmes de gênero -, enfrentando o produto es-
buscando respostas, fazendo diagnósticos, entrelaçadas às falas dos depoentes trangeiro, ocupando significativo espaço no mercado exibidor, em conso-
ou a reflexões de outros analistas. Penso ter reunido, desta forma, um material nância com a política governamental de substituição de importações.
que assenta um terreno firme, algo seminal, ao mesmo tempo em que aponta O terceiro capítulo acompanha o desenvolvimento da produção da Bo-
para diversas direções, abrindo caminhos para outras abordagens do fenô- ca do Lixo entre 1975 e 1982, período marcado pela consolidação de reputa-
meno da Boca do Lixo. ções e pela entrada em cena de novos personagens - uma "segunda geração"

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bO A uo LIXO APU ENTA AO

de produtores, diretores, atrizes etc., gerados pelo próprio ambi nte da p:lrr ·s. Â primeira pro ura nfigurar a pornochanchada em seus aspectos
Rua do Triunfo -, tornando mais complexas as relações empresariais. .strururais: a aculturação da comédia italiana, a exploração da fórmula
Uma hierarquia de produtores e filmes vai-se firmando, ao mesmo tempo .rotismo + baixo custo + título apelativo, o emprego da paródia etc. Trata-
em que surgem os novos-ricos da Boca. Os produtos procuram maior apuro S . de delinear as convenções e a ideologia do gênero, visto como integrante

técnico, o similar nacional ganha feições próprias e a exibição torna-se do conjunto de formas e da dinâmica cultural de uma época. Por um lado,
mais receptiva e participante, por conta de seus interesses econômicos temos a vinculação da pornochanchada ao regime autoritário e a extensão
evidentes. dessa nomeação para designar mediocridade; por outro, uma visão dos fil-
Neste capítulo, são apresentados recortes dos percursos de diretores que mes como reflexo da onda de permissividade na esfera do comportamento,
fizeram a história da Boca. Um leque que inclui desde o experimentalismo com a tematização da sexualidade apropriada (consumi da e produzida) pelas
consciente de Carlos Reichenbach, passando pelos melodramas de Alfredo classes populares. A segunda parte do capítulo busca especular sobre a rela-
Sternheim, ao cinema de ação de David Cardoso. Entram nessa galeria Jean ção da pornochanchada com o público, em seus aspectos rituais. A relação
Garret, que perseguia um "padrão Boca de qualidade", o cinema naifde dialética entre a oferta e a demanda provendo o contexto cultural no qual
Tony Vieira, imerso no universo cultural popular, e o cinema pragmático o gênero se produz. A rejeição das elites ao cinema brasileiro (generalizado
de Ody Fraga, o ideólogo de olhar crítico com opiniões estéticas e políticas como pornochanchada) como sintoma de rejeição da realidade. A porno-
articuladas. Como suporte desse cinema, figura um star system feminino, chanchada como pedagogia erótica, trazendo a "revolução sexual" para o
com as estrelas cintilando nas telas e nas bilheterias, em cujas filas se ali- universo popular, produzindo o maior fenômeno de bilheteria da história do
nham segmentos das classes populares - os grandes consumidores dos pro- cinema brasileiro. A terceira parte abre espaço para o principal foco de atenção
dutos da Boca do Lixo. Incomodando o cinema brasileiro com seus modos dos filmes, a verdadeira matéria-prima dos "negócios" da Boca do Lixo: as
nada educados e seus filmes de gosto discutível, a Boca, com certeza, es- atrizes. Apresenta um recorte sobre a vida e a carreira de algumas atrizes que
tava na Rua do Triunfo. brilharam no precário, mas eficiente, star system produzido pelo cinema da
O quarto capítulo do livro aborda a agonia do ciclo da Boca do Lixo, Boca do Lixo. Musas, rainhas, deusas, símbolos sexuais que faziam as bi-
no contexto de decadência do cinema brasileiro como um todo - com o lheterias funcionarem e que também andaram enfeitando as revistas mas-
crescente desprestígio da EMBRAFILME e do próprio regime que a sustentava. culinas, acendendo a imaginação dos consumidores.
A potente entrada dos filmes estrangeiros de sexo explícito, num momento O sexto e último capítulo procura configurar o modo de produção do
de esgotamento do modelo da pornochanchada, a desorganização do cinema da Boca, utilizando-se do conceito de "práticas de produção". São
circuito exibidor, com a saída do distribuidor/exibidor da produção, e a analisadas as formas de composição do capital que permite o desenvolvi-
desobediência das leis protecionistas aceleram a rápida decadência do ci- mento da economia da Boca do Lixo e as práticas de produção acionadas
nema paulista de mercado, abalando os frágeis alicerces da Boca, sobretudo pelos produtores, que surgem como agentes de um processo econômico,
ao provocar divisões internas quanto à adesão ou não à produção de filmes responsáveis pela armação de elos interligados que conjuga, harmoniosa-
de sexo explícito como forma de sobrevivência. A produção nacional não mente, a distribuição, a exibição e a produção, envolvendo ainda a captação
consegue competir com o modelo econômico e estético dos filmes bard-core de recursos de investidores, merchandising, apoio de prefeituras e demais
americanos e vai desaparecendo, levando junto as salas de cinema populares facilidades que tornaram possível o desenvolvimento de uma "indústria"
estigmatizadas pela pornografia. cinematográfica na Boca do Lixo. Por fim, procura-se rever as causas do
O quinto capítulo trata da pornochanchada, um abrigo de gêneros que colapso e do fim do ciclo da Boca do Lixo.
ficou indelevelmente ligado à produção da Boca do Lixo. Compõe-se de três

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ANTECEDENTES

CINEMA, ESTADO E MERCADO

Por diversos motivos, os anos 1970 foram especialmente densos e tensos


para a sociedade brasileira. Havia, então, um ambiente de muita energia
em todos os setores, marcado pela ação política radical (tanto para a esquerda
quanto para a direita), pela transformação nas formas de comportamen-
to social (também radicalizadas) e por desdobramentos da inquietação
criativa no campo da produção cultural experimentada pelo país nos anos
1960. Os movimentos vindos das metrópoles internacionais - os ecos de
Maio de 68 na França, a rebeldia pacifista da juventude americana contra a
Guerra do Vietnâ, a contracultura do movimento hippie e antiestablishment,
as drogas lisérgicas, a "revolução" sexual e a liberação feminina, entre ou-
tros - encontram o Brasil cindido pela resistência (luta armada e luta cul-
tural) ao regime militar, que exercia forte repressão em todas as esferas,
especialmente a censura aos meios de comunicação de massa e à produção
artística, e promovia a intervenção estatal nos processos produtivos da arte
e da cultura. Todas as relações sociais são, de certa forma, "politizadas". Neste
ambiente, a produção cultural teve de aprender a viver, com a cabeça no
divã, transitando entre a cultura de massa e a militância de resistência.
_Ao longo da década, a potência transformadora das propostas estéticas
(e políticas) do CPC da UNE, do Cinema Novo e do Cinema Marginal,
dos teatros de Arena e Oficina e do Tropicalismo, movimentos de forte im-
pacto artístico e cultural surgidos nos anos 1960, foi-se diluindo sob a vi-
gência do AI-5 e a violência do regime militar. Neste contexto, a irnple-
mentação de um projeto "modernizador" pelo Estado autoritário provocará
alterações profundas no campo cultural como um todo, e para o cinema

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DU " UU "IAV

111 'r 3 10, 110, mbi nt das práti a administrativas centralizadoras do re-
em especial. Tendo em vista as transformações incisivas nas formas de produ-
ção da arte (e dos meios de comunicação) e nos comportamentos cotidianos, gime. meio cinematográfico participa ativamente deste processo, inte-
o cinema brasileiro é levado, neste momento de (in)definições, a acertar ra rindo estrategicamente com o Estado.
as contas com o passado e ajustar-se às demandas do presente - as pressões
vindas do mercado e de um Estado ditatorial.
Empenhados na legitimação econômica e cultural da atividade e em en- BREVE CRONOLOGIA DAS RELAÇÕES
frentar o predomínio da produção estrangeira, os realizadores, juntando ENTRE CINEMA E ESTADO (PÓS-1964)
pragmatismo e ideologia, procuraram trazer para sua esfera de influência
o controle do curso do processo de "modernização" do setor, tendo em vista A criação do Instituto Nacional de Cinema (INC), uma autarquia federal,
aprofundar a intervenção no mercado, o que implicava transformar as frágeis pelo Decreto-Lei n2 43, de 18 de novembro de 1966, "consolida um programa
estruturas produtivas existentes em sólidas instituições. A aliança então que concentra no Estado a possibilidade de desenvolvimento industrial do
estabelecida entre uma parcela do setor cinematográfico identificada com cinema, visto ser um órgão legislador, de fomento e incentivo, fiscalizado r,
o Cinema Novo e setores governamentais - principalmente com o Plane- responsável pelo mercado externo e pelas atividades culturais". Com o INC-
jamento e a Educação e Cultura -, visando à implementação de um pro- ao qual são incorporados o Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE),
cesso industrial modernizante, voltado para as relações com o mercado (cine- do Ministério da Educação, e o Grupo Executivo da Indústria Cinemato-
matográfico), de certo modo se mostrou vital para a sobrevivência econômica gráfica (GEICINE), do Ministério da Indústria e Comércio -, são criados
do cinema brasileiro naquele momento, ao "abrir um canal sólido para a instrumentos de intervenção no mercado que viriam a se aperfeiçoar com o
manutenção de conversações e a possibilidade de concretização de um tempo, como a obrigatoriedade do registro de produtores, exibidores e distri-
horizonte histórico para o cinema brasileiro". 1 buidores (permitindo dimensionar e controlar a atividade), a obrigatoriedade
Até meados dos anos 1960, a atuação governamental no campo ci- da copiagem de filme estrangeiro em laboratório nacional (visando ao for-
nematográfico limitara-se a um papel legislador e a responder a algumas talecimento da infra-estrutura do cinema) e a competência para legislar so-
demandas do setor, como a criação de mecanismos de proteção, com ênfose bre a obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais. Em 1967, o INC (Re-
na questão da obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais. O cinema solução n2 3) estabeleceu 56 dias de obrigatoriedade de exibição para o
s-omo-set~industrial (cultural) procura inserir-se concretamente na eco- filme brasileiro, os quais foram distribuídos, por intermédio da Resolução
nomia do país ao longo dos anos 1970, com a implementação de uma n2 8/67, em 14 dias por trimestre. Já em 1969, a cota do quarto trimestre
política institucional ditada por agências governamentais voltadas para.o seria aumentada em 7 dias, passando-se para um total de 63 dias anuais, Em
1971, aumenta-se a "cota de tela" para 84 dias/ano.
Ao INC cabia não somente trabalhar pela ampliação e garantia da reserva
de mercado para o cinema nacional, consolidando a aplicação da lei, como
1 Como observa Tunico Amâncio (2000, p. 39): "O 'apadrinhamento' por parte de seg-
incentivar a produção por meio de premiações: o adicional de bilheteria,
mentos militares mais sensíveis à questão cultural foi fundamental para o estrei-
tamento das relações entre os setores da atividade cinematográfica e o Estado. Tanto distribuído a todos os filmes nacionais exibidos em cumprimento da lei de
o coronel Jarbas Passsarinho quanto o coronel Ney Braga, que o sucedeu no Minis- exibição compulsória (os valores variavam de 5% a 20% da renda líquida
tério da Educação e Cultura, lideravam gtupos de pressão bastante influentes junto faturada pelo filme durante os dois primeiros anos de sua carreira comercial),
aos órgãos encarregados do planejamento dos recursos da União. E ambos foram os
e o prêmio de qualidade, no valor de 300 salários mínimos da época (cerca
autores de inúmeras iniciativas na área cultural. O reconhecimento deste empenho
de 20 mil dólares), atribuído anualmente a 12 filmes selecionados por uma
por parte de alguns representantes da área cinematográfica fez selar, simbolicamente,
um pacto firmado entre o cinema e o Estado [... )". comissão (de notáveis). <,

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ANT D NT S

Um dos pontos principais do decreto de criação do INC era a destinação tlclli n Iministrativa, de modo a capacitar-se para as novas tarefas que
dos recursos obtidos com os depósitos compulsórios das empresas distri- 111. são a ribuídas.
buidoras estrangeiras ao financiamento de filmes de longa-metragem. Efe- , rente com a estratégia econômica dominante no período, de criação
tivamente, entre 1966 e 1969, estabelece-se o primeiro programa de fomento d. .rnpresas estatais de fomento e produção, em pouco tempo o órgão as-
à produção cinematográfica com empresas e realizadores nacionais. As urniu um papel de maior importância, estruturando-se, de fato, como
formas, as regras comerciais e a organização burocrática destas operações, 'lIlpresa. Este perfil se consolida durante a gestão do diretor e produtor Ro-
de certo modo, formaram o embrião das políticas que seriam seguidas mais 11 'no Farias (1974-1979), que assume a direção-geral da empresa com o
tarde pela EMBRAFlLME, empresa que sucedeu o INC. .ipoio da classe cinematográfica, com o objetivo de levar a cabo as propostas
Com a promulgação do Decreto-Lei nº 862, de 12 de setembro de 1969, ti. reestruturaçâo do aparelho estatal cinematográfico contidas no PBC.
pela Junta Militar que então governava o país, formaliza-se a Empresa Essa ação política é fortalecida pela aprovação da Lei n2 6.281, de 9 de
Brasileira de Filmes S.A. (Embrafilme), empresa de economia mista vin- I "lembro de 1975, que extingue o INC e transfere à Embrafilme a respon-
culada ao INC. O novo órgão tinha como objetivos: a distribuição e pro- v.ibilidade pela coordenação das atividades no setor cinematográfico, in-
moção de filmes brasileiros no exterior; a realização de mostras e a organi- cluída a distribuição. Para tanto, a empresa obtém um significativo aumento
zação da participação de filmes nacionais em festivais internacionais; a ti . capital, passando a compor seu orçamento com os seguintes recursos: do-
difusão do cinema brasileiro em seus aspectos culturais, artísticos e cien- tações da União, contribuição advinda de taxa sobre título de filme para
tíficos, podendo ainda exercer atividades comerciais ou industriais relacio- -xibição, empréstimos, subvenções, produtos de multas, vendas de ingressos
nadas ao objeto principal de sua atividade. Seu primeiro diretor-geral foi r borderôs padronizados, juros e taxas de financiamento, parte do imposto
Durval Gomes Garcia, ex-presidente do INC. ti . renda devido pelas empresas estrangeiras. Como observou Carlos Augusto
A partir de 1970, a.Embrafilme.assumiu efetivamente o Iinanciamenjq .alil, que ocupou cargos de direção na EMBRAFILME desde 1979 e foi diretor-
de filmes, o que promoveu o fonalecimento de suas atividades e de seu M.ra] da empresa de 1984 a 1986,
poderio financeiro. Em novembro de 1972, a realização, no Rio de Janeiro,
do I Congresso da Indústria Cinematográfica Brasileira (OCB), patrocinado a segunda EMBRAFILME, aquela que absorveu o INC em 1975,. foi cri~da p.ara
iniervir diretamente no mercado. Resultado da coincidência do projeto nacionalista
pelo INC, teve influência direta na orientação então assumida pela empresa.
dos cineastas de esquerda com a geopolítica dos militares de direita, estava protegida
O congresso funcionou como uma plataforma política para o grupo de
pela ideologia da identidade cultural, comum a ambos os grupos. Veio para subs-
cineastas e produtores que, mais tarde, assumiria a direção da EMBRAFILME. Iituir as pequenas distribuidoras privadas nacionais, incapazes de enfrentar o
Nele, foi discutido e aprovado o documento Projeto Brasileiro de Cinema poderio econômico das congêneres estrangeiras.
2

(PBC), endossado pelos principais representantes dos produtores e reali-


zadores de São Paulo e Rio de Janeiro, como Alfredo Palácios, Walter Hugo Em 1976, com a Lei nº 6.281, a EMBRAFlLME
consolida suas atribuições,
Khouri, Luís Carlos Barreto, Roberto Farias, entre outros. assumindo os seguintes objetivos gerais: \
Em fevereiro de 1973 é nomeada, pelo ministro Jarbas Passarinho, uma
comissão integrada pelo presidente do INC e pelo diretor-geral da Em- a) incentivo ao desenvolvimento da indústria cinematográfica em seus
brafilme, além de altos funcionários do MEC, para promover a reformulação aspectos técnicos, artísticos e culturais, através da concessão de finan-
administrativa dos órgãos estatais do cinema brasileiro, a criação do Conselho ciamento, da comercialização, distribuição e divulgação dos filmes nos
Nacional de Cinema (CONClNE)e a fusão do INC à Embrafilme. Em 27 de mercados interno e externo;
setembro, a EMBRAFILME obtém autorização para atuar na distribuição de filmes
em território brasileiro. A empresa passa, então, por uma reestruturação 2 Ismail Xavier, 1996, p. 66.

18 19
ANT o NT S
811 11 IIW

b) registro de fatos socioculturais, pesquisa documental, prospecção, recupera- A BOCA DO LIXO ENTRA NA HISTÓRIA
ção e conservação de filmes, visando à preservação da memória nacional;
c) produção e difusão de filmes educativos, técnicos e científicos. As p líricas de proteção e fomento implementadas pela EMBRAFILME e pelo
: N lNErevelaram-se eficazes. O setor cinematográfico como um todo viveria,

.I() longo dos anos 1970, um animado processo de acumulação de capital fi-
Ao CONCINE,reservou-se o setor de fiscalização, cadastramento e suporte
burocrático à regulamentação protecionista que, com o incisivo amparo nanceiro, artístico e cultural. Em termos de mercado, o período 1972-1982
de sanções aos infratores, dotava o sistema de alguma credibilidade (e pode- pode ser considerado uma "época de ouro" para o cinema brasileiro.
res) para enfrentar a ocupação estrangeira. Para tanto, o Conselho buscaria O aumento de público para o filme brasileiro não foi um fenômeno
conhecer estatisticamente os procedimentos da produção, distribuição e isolado. A reorganização das forças produtivas, no decorrer da década,
relação com o exibidor. provocou modificações na dinâmica econômica da produção de bens cul-
Até o final da década, novas resoluções sedimentam a conquista de espaço rurais no país, promovendo uma ampla expansão do consumo em todos
no mercado cinematográfico para o filme brasileiro. A política protecio- os setores. Desempenhos expressivos são registrados na indústria fonográfica,
nista prossegue com a Resolução n 10 do CONCINE,de 15 de março de 1977,
Q que, ao final dos anos 1970, torna-se o sexto mercado do mundo, bem como
que aumenta para 112 dias por ano a cota obrigatória de exibição do filme no campo editorial, com a expansão e a diversificação da produção (e con-
brasileiro de longa-metragem, e a Resolução n 24, de 19 de janeiro de 1978,
Q sumo) de livros e revistas. Neste período, registram-se também a imple-
que estabelece normas para a exibição de filmes de longa-metragem, deter- mentação das redes nacionais de televisão, a decisiva implantação da cor
minando a obrigatoriedade de o filme "virar a semana" (exibição na semana c um vertiginoso aumento do número de aparelhos existentes no país. O
subseqüente) caso seu faturamento seja igualou superior à média sema- cinema brasileiro irá acompanhar este processo, dobrando sua presença no
nal de faturamento da sala em que está sendo exibido. Cabe lembrar, ainda, mercado e expandindo a produção."
a promulgação da Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978, regulamentando Ao lado dos filmes produzidos com a participação da EMBRAFILME,
as profissões de artista e de técnico em espetáculos de diversão. Não se tratava observa-se, ao longo do período, a efetiva presença no mercado de um certo
de lei específica para o cinema, mas representava uma efetiva conquista tipo de filmes com um leque remático que converge para a exploração do
trabalhista para o setor. Dentre as medidas tomadas para preservar o mercado erótico e marcado pela busca do "gosto popular", que rapidamente se estru-
de trabalho de artistas e técnicos brasileiros, destacam-se a obrigatoriedade turou como uma forma de produção. Eram filmes produzidos exclusiva-
de copiagem de filmes estrangeiros na bitola 16 mm. em laboratórios brasi- mente com dinheiro privado, em São Paulo, num lugar que se convencionou
leiros (Resolução n 36 do CONCINE,de 5 de dezembro de 1978) e a du-
Q chamar "Boca do Lixo", um espaço urbano definido entre os bairros de Santa
blagem obrigatória em território nacional de filmes destinados à exibição Cecília e Luz, zona de meretrício próxima às estações ferroviária e rodo-
em televisão (Resolução nº 55 do CONCINE,de 29 de agosto de 1980). viária - o que facilitava o transporte das latas de filmes para o interior, desde
A partir de 1982, tornam-se visíveis os sinais de enfraquecimento dos as primeiras décadas do século -, onde estavam instalados os escritórios
poderes da EMBRAFILME e do CONCINE.Algumas leis "não pegam", outras de distribuidores, exibidores nacionais e estrangeiros e, depois, dos produ-
são revogadas. De modo geral, a fiscalização não se verifica com o mesmo tores nacionais.
vigor, as leis não são cumpridas, ou têm a validade discutida por manda- Estimulados pela lei de obrigatoriedade, os produtores, artistas e téc-
dos de segurança. A contra-ofensiva das distribuidoras estrangeiras leva o nicos da Boca do Lixo faziam cinema para o mercado exibidor. Malgrado
setor cinematográfico a se desorganizar. a intenção que tivessem, seus produtos foram identificados pela mídia (e

3 A este respeito, ver José Mário Ortiz Ramos, 1987, P: 402.

21
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ANT CEDENTES

a im passaram para a história) sob o rótulo "pornochanchada", uma de-


I uliural r' i trada nc te p ríodo, como a criação do Museu de Arte de
nominação que se acabou estabelecendo, gerando um (relcorte deprecia-
\10 Paul ,d Teatro Brasileiro de Comédia e da Bienal Internacional de São
tivo, intolerante e preconceituoso para referir tanto um foco apelativo de
1'.1111, in ma também foi alvo de investimentos, com a fundação, em
exploração da nudez e do "erotismo" como um produto mal realizado, um
II>fJ ,da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, para produzir filmes
cinema medíocre. Era uma produção que ocorria à margem da maioria dos
em bases industriais, com tecnologia e técnicos de nível internacional,
enfoques culturais (acadêmicos, de vanguarda, da mídia etc.), dos quais foi
ornandada pelo cineasta Alberto Cavalcanti e capitaneada pelo industrial
objeto de críticas - uma espécie de "bode expiatório" do cinema nacional.
l'ranco Zampari. A empresa foi instalada em São Bernardo do Campo,
Para seus críticos (as elites financeira, política e intelectual, por assim
que já se anunciava como pólo industrial do estado. Auto-suficiente,
dizer) e detratores (a imprensa, setores do cinema "culto", ligas de decência),
li .svinculada dos movimentos anteriores do cinema brasileiro, a Vera Cruz
a produção da Boca do Lixo trabalhava em sentido contrário, denegrindo
I .ve uma vida de opulência e turbulência, até fechar as portas, em 1954,
a imagem positiva do cinema brasileiro que se procurava construir. Uma
I .ndo realizado alguns documentários de curta-metragem e 18 filmes sem
aparente contradição, já que o sucesso de público obtido pelos filmes da
onseguir encontrar-se com o público."
Boca, sobretudo junto às classes populares, era seu melhor avalista.
O surgimento da Vera Cruz, jogando luzes sobre um setor econômico
Amparada no êxito comercial, a Boca do Lixo desenvolveu uma vida
inexplorado, com retorno social (e mundano), estimulou a criação de outras
própria, uma "identidade", ainda que atravessada pelas mesmas questões
grandes empresas - como a Companhia Cinematográfica Maristela, a
que mobilizavam os outros segmentos da produção cinematográfica _ cria-
Kinofilrnes (efêmera substituta da Maristela), a Multifilmes - e, poste-
tividade, censura, relações com o mercado, modo de produção etc. _, com
riormente, a emergência de vários produtores independentes.
os quais manteve relações conrlitanres e contraditórias. Voltada explicita-
A Maristela foi inaugurada em 1950, contando com cerca de 150 con-
mente para "atender a uma demanda" e, assim, premida pelo bom desem-
I ratados, entre artistas e técnicos, e um forte aparato de produção insta-
penho de "bilheteria" (termo que equivale a "aceitação popular"), produ-
lado em grandes estúdios no Bairro do Jaçanã, em São Paulo. O capital prin-
ziu entretenimento e arte, marcando sua posição pragmática, "mesmo que
.ipal foi bancado pela família Audrá - industriais, proprietários de ter-
com armas toscas", na expansão da indústria cultural dos anos 1970.
ras e de uma companhia de transporte -, que acreditou no potencial
Verdadeiro "saco de pancadas", filha enjeitada do cinema nacional,
.ornercial do cinema. O produtor-geral era o italiano Mario Civelli, que
batizada pela polícia, a Boca do Lixo, como uma sábia feiticeira, encantava
propunha fazer filmes de menor custo e realização mais rápida - o que
muitos, desesperando outros. Rezando para Deus e vendendo a alma ao
nem sempre foi possível. A Maristela produziu cinco filmes que, a despeito
Diabo, a Rua do Triunfo sonhou ser a nossa Hollywood.
da intensa atividade social e de divulgação realizada, não obtiveram ren-
tabilidade suficiente para criar horizontes promissores para a empresa.
Em meados de 1951, a família Audrá ve~deu o empreendimento à Ki-
BURGUESIA E CINEMA: O CASO SÃO PAULO
nofilmes, uma nova companhia produtora comandada pelo cineasta Alberto
Cavalcanti, egresso da Vera Cruz, apoiado por um grupo de capitalistas.
A atividade cinematográfica em São Paulo no final dos anos 1940 até o
Os problemas, porém, persistiram; a empresa não conseguiu fazer face aos
final dos anos 1950 foi marcada pela implantação de grandes estúdios,
compromissos financeiros e, em fins de 1954, devolveu aos Audrá os es-
que surgem do espírito empreendedor da burguesia industrial paulista, túdios e os equipamentos.
principalmente do emergente capital da migração italiana (num processo
legitimado r de sua nova posição econômica e social), alimentado pela ideo-
logia desenvolvimentista da época. Ao lado de outras iniciativas no campo 4 A esse respeito, ver Maria Rira Galvão, 1981.

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11 A 110 LIXO
ANT o NT

Em 1955 a Maristela ressurge, sob o comando de Mário (Marinho) (BONS)


ANTECEDENTES DA BOCA DO LIXO: O PAGADOR
Audrá, que lhe imprime maior dinamismo ao investir em produções e co- D PROMESSAS E O BANDIDO DA LUZ VERMELHA BEBEM NO SOBERANO
pro~uções nacionais e estrangeiras, participando com seu patrimônio _
equipamentos e técnicos. Em 1956, tendo realizado sete filmes, a com- Fmb ra não seja um cineasta identificado com a ética, os procedimentos
panhia associa-se à Columbia Pictures, mantendo a parceria até 1958, , .IS práticas da Boca do Lixo, Walter Hugo Khouri (São Paulo, 1929) pro-
quando encerra suas atividades como produtora. Interessante anotar a j,'t()U sua personalidade artística sobre aquele cinema, tornando-se, para
participação da Columbia Pictures, como distribuidora ou sócia, no en- muitos, uma espécie de referência de qualidade em todos os níveis: pelos
terro de dois ambiciosos empreendimentos nacionais - a Vera Cruz e I 'mas, pelos filmes, elenco, equipe, pelo conhecimento cinematográfico.
a Maristela. I~pelo sucesso.
A produtora Multifilmes foi a última grande iniciativa da elite industrial Contemporâneo da implantação dos grandes estúdios, Khouri abando-
e financeira paulista no setor cinematográfico. Formada em 1952 como IIOU a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) para se

sociedade anônima, sua diretoria era um verdadeiro painel de brasões fami- d .dicar ao cinema, iniciando sua prática como assistente de Lima Barreto
liares ligados ao capital: dois membros da família Assunção, quatro da na preparação da produção de O cangaceiro (1953), nos estúdios da Vera
Jafet, um da família Racy e outro da Lutfalla, tendo na presidência An- Cruz. Realiza seu primeiro filme, O gigante de pedra, entre 1952 e 1954,
thony Assunção. O produtor-geral era, novamente, o controvertido Mario orn recursos próprios, sem o amparo de um grande estúdio ou de uma
Civelli. -strutura de distribuição, Khouri carrega a influência do corte clássico dos
A empresa instalou-se no município de Mairiporã, vizinho a São Paulo, filmes da Vera Cruz, porém o emprega com mais leveza. Seu segundo fil-
onde foram construídos quatro grandes estúdios, um laboratório de som me, Estranho encontro, foi lançado em 1958 no prestigiado Cine Ipiranga,
e até uma fábrica de refletores. Contando com 200 contratados, dentre eles na capital paulista, com "refletores iluminando a fachada do cinema, cine-
vários técnicos egressos da Vera Cruz, a Multifilmes venceu dificuldades, grafistas filmando as estrelas de televisão, banda de música etc.". Trabalhando
promoveu alguns lances delirantes - como trazer ator, produtor e diretor .orn uma estrutura de produção melhor, Khouri delineia neste filme o estilo
americanos para realizar O americano, um investimento prematuro em que marcará sua obra: o mundo da burguesia, poucos personagens, den-
film,agens em cores -, mas acabou encerrando suas atividades em 1955. sidade psicológica, explorando a solidão e o vazio existencial.
E importante observar que, no mundo ocidental, a década de 1950
foi um período de valorização do cinema como instituição cultural. A ati- No caso desta fita, o estilo excessivamente carregado, beirando o maneirismo
vidade cinematográfica legitima-se como expressão artística, encontrando vazio (overdose de rebuscamento sem substância), dá ao filme certa "aura" espe-
lugar entre as artes Ca sétima") e tornando-se objeto de reflexão no campo cialmente atraente aos olhos de hoje. Paulo Emílio Salles Gomes [... ] chega ao
d.a cultura, nos meios intelectuais, como demonstra o surgimento de cerne da questão com relação ao filme de Khouri: Estranho encontro nos dá, às
vezes, a impressão curiosa de um estilo à prOCL)rade um autor.?
cineclubes, festivais e publicações especializadas. Para o cinema brasileiro,
especialmente, este foi um período de intensa e construtiva atividade
Em seguida, Khouri dirige Fronteiras do inferno (1958) e Na garganta
ideológica e legislativa, com a realização de congressos, a formação de
do diabo (1960), este vencedor do prêmio de melhor roteiro do Festival de
comissões e grupos de trabalho, o surgimento de uma produção crítica
e de associações de classe. Mar del Plata daquele ano. Em A ilha, lançado em 1963, trata dos conflitos,
exacerbados pela ambição e pela carência, de um grupo de grã-finos iso-

5 Cf. Fernão Ramos (org.), 1987a, p. 314.

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IIN I ~U.N II

lados repentinamente numa ilha deserta. É um roteiro exemplar do uni- I 'Ol'lll:l, . ~Iturma passou para outro bar, o osta do Sol, na Rua Sete de
verso ficcional do autor: um ambiente fechado no qual o drama é explo- lu iI, p rto d s iários Asso iados, da Sociedade dos Amigos da Cinemateca
rado com um número restrito de personagens e uma situação extraordinária (qu . originaria a Cinemateca Brasileira) e da Galeria Metrópole, um dos
tensiona as personalidades, fazendo emergir os conflitos pessoais. IH 111105 badalados da intelectual idade e da boemia paulistana dos anos 1960
Em 1964, Khouri realiza Noite vazia, filme que o consagra definitiva- I 11)70. A Boca do Lixo, por força das distribuidoras e produtoras ali ins-
mente como autor, exibido no Festival de Cannes em 1965. Neste filme, r.ilndas, pela circulação permanente de "coisas de cinema', começou a exercer
o cineasta parece ter encontrado um estilo, colocando-se como "um dire- ~('IImagnetismo, atraindo essa população. A partir de 1966, com a criação

tor próximo da narrativa moderna do cinema europeu da época', tanto nos do INC e o cumprimento efetivo da lei de reserva de mercado, a produ-
temas dos filmes como no tratamento da linguagem (em que se observa a 1,,10 de filmes aumenta significativamente, e a Boca do Lixo consolida-se
positiva influência do diretor italiano Michelangelo Antonioni). Um rit- I orno base territorial para os negócios da arte e do comércio cinematográ-

mo lento acompanha o desenvolvimento de personagens imersos nos di- , I .os. Abarcando o social e o profissional, por ela passa a circular gente de

lemas do vazio existencial, na solidão da realidade urbana da metrópole. I inema de toda espécie.

Um modo de realizar que desenvolveria nos filmes seguintes: O corpo ar- Por volta de 1967-1968 o Soberano, um bar localizado à Rua do Triunfo,
dente (1965), um episódio de As cariocas (1966) e As amorosas (1967). II 145, a principal artéria da Boca do Lixo, começa a receber estudantes,
U

Em As amorosas, Khouri - que, para seus críticos, especialmente os inéfilos (cineclubistas), jornalistas, profissionais e candidatos a profissionais, I
ligados ao Cinema Novo, fazia um cinema alienado - reflete sobre a efer- interessados em discutir e realizar cinema. Faziam parte desse grupo Jairo Fer-
vescência ideológica do final da década de 1960. Neste filme, surge o per- I' .ira (que, durante anos, exerceu a crítica na imprensa, principalmente no
sonagem Marcelo - uma espécie de alter ego do diretor, que o acompa- jornal São Paulo Shimbun), Antonio Lima (então no Jornal da Tarde), Carlos
nhará em todos os filmes seguintes -, um estudante universitário irônico Oscar Reichenbach Filho, João Callegaro, Carlos Ebert, José Agripino, João
e niilista, dividido entre os apelos da realidade social e as mulheres. SilvérioTrevisan, entre outros. Era um pessoal jovem, disposto a "fazer cinema'
O palácio dos anjos, uma co-produção francesa de 1970, é uma história com a perspectiva de convivência com o mercado e, como bons enteados
sobre a prostituição de luxo, em que os personagens femininos projetam- r .beldes, de "ruptura com a linguagem européia e elitista do Cinema Novo".
se com mais consistência, adensando o importante papel que sempre ti- Pelo Soberano, mistura de restaurante, escritório, agência de empregos
veram nos filmes de Khouri. Nos anos 1970, o diretor se aproxima de pro- . afins, já circulava Ozualdo Candeias (Cajubi, SP, 1922), um diretor con-
dutores da Boca do Lixo, com relevo para Convite ao prazer, produção siderado "marginal entre os marginais". Filho de agricultores, Candeias
de Galante e Palácios. E, de certo modo, começa a diluir seu estilo. trabalhou no campo, depois foi militar, motorista de caminhão e chofer
de táxi, entre várias ocupações. No início da década de 1950, já morando
na cidade de São Paulo, comprou uma câmera 16 mm., com a qual filmava
A AFLUÊNCIA :1 família, parentes e amigos. Iniciou a profissionalização em cinema ofe-
recendo seus serviços para o registro de casamentos, aniversários e batizados.
o pessoal de cinema de São Paulo sempre gravitou em torno de pontos de Realizou também documentários e reportagens cinematográficas, experi-
encontro. No início da década de 1960, reunia-se (principalmente os téc- mentando as várias funções de uma equipe: fotógrafo, editor, roteirista.
nicos) no Honório Martins, tradicional locador e provedor de equipamentos, Buscando ampliar seus conhecimentos, cursou o Seminário de Cinema do
na Rua Rego Freitas, durante o dia. Nos fins de tarde e à noite, com uma MASP e da Fundação Álvares Penteado.
clientela mais ampla e candentes discussões, as reuniões eram levadas num Depois de dirigir alguns curtas-metragens, Candeias realiza, em 1967,
bar chamado Touriste, perto da Biblioteca Municipal. O bar entrou em A margem, seu primeiro longa-metragem de ficção, sobre os deserdados

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.u~~ UU LIAU
ANT D N1 J

sociais da cidade de São Paulo. Feito com parcos recursos, equipe técnica III 1.11.1 I. a in distri, pr dur r e distribuidora de swaldo Massaini, que
reduzida e um elenco formado por iniciantes - um traço que se tornaria I IlIlIl" Ulançando comédias ligeiras com Dercy Gonçalves, Ankito e Arrelia,
característico de seus filmes -, A margem trazia uma estética despojada, porém 111 1\ an s J 950. A partir do sucesso de crítica de Absolutamente certo (Anselmo
"faminta", trabalhando com criatividade as carências materiais, a serviço de I >twle, 1957), Oswaldo Massaini (e sua produtora) adquire crescente pres-
uma narrativa ousada e ao mesmo tempo simples. Por este trabalho, Candeias I I',i , onsagrando-se com a realização, novamente com Anselmo Duarte,
recebeu do INC a, "Coruja de Ouro" de melhor diretor do ano.
,
li.· pagador de promessas, filme vencedor da "Palma de Ouro" no Festi-
Em 1969, Ozualdo Candeias dirigiu Meu nome é Tonho. A idéia do pro- .11 de Cannes, em 1962. Os anos 1960 foram uma década brilhante para
dutor era trabalhar na linha do spaghetti western (bangue-bangue italiano), I Cinedistri. Os novos projetos da empresa e as opiniões de Oswaldo Mas-
então no auge da popularidade, mas Candeias acabou realizando um fil- .iini - "um Selznic dos trópicos", alçado à posição de liderança da elas-
me que dialogava com a cultura do interior de São Paulo. Com lançamento ( - ganham espaço garantido nos jornais.
numa festa no cenário-buffit do Soberano, o filme fez boa carreira comercial. Na Boca também já estavam instalados Alfredo Palácios e Antonio Pala
Meu nome é Tonho foi produzido por Augusto Cervantes (Manuel Au- ,alante, que se associam em 1968 para formar a produtora e distribuidora
gusto Sobrado Pereira, Chantada, Espanha, 1928-1988). Radicado em São Snvicine - Serviços Gerais de Cinema, empresa que vem pautar um mo-
Paulo, Cervantes trabalhou no setor imobiliário, aproximando-se do cinema d ·10 de produção para a Boca do Lixo. Embora de origens totalmente di-
no final dos anos 1950, inicialmente como ator, adotando o nome de Au- lrrentes, ambos foram formados no ambiente industrial dos estúdios pau-
gusto Pereira. Logo passa a produtor, associando-se a José Mojica Marins lisianos, nos anos 1950 - Maristela Cinematográfica, Kinofilmes, Multi-
na Apoio Cinematográfica, pela qual produziram o bangue-bangue caboclo, filmes -, e nas empresas nascidas para o mercado institucional e publicitário
em cinemascope, Sina de aventureiro (1957) e o melodrama Meu destino (' eram dotados de aguçada visão comercial, importante capital nas ne-
em suas mãos (1961), ambos sob a direção de Mojica. A parceria entre o pro- gociações com os outros dois vértices do mercado cinematográfico: a dis-
dutor e o diretor se repetiria em À meia-noite levarei tua alma (1964), o t ribuiçâo e a exibição.
primeiro filme do personagem Zé do Caixão, criação de Mojica, de expres- Alfredo Palácios (São Paulo, 1922-1997) era um homem de cinema,
sivo sucesso popular. Pouco depois, Augusto Cervantes funda a Ibéria Ci- .uuante em várias funções do processo cinematográfico por mais de 40 anos.
nematográfica, que produz os filmes de terror Esta noite encarnarei no teu Formado em direito, iniciou-se no ramo como crítico em rádios ejornais,
cadáver (1966) e O estranho mundo de Zé do Caixão (1967), sucessos de bi- quando ainda era estudante universitário. Depois de trabalhar com publi-
lheteria dirigidos por José Mojica Marins. Instalado na Boca do Lixo desde 'idade e importação de filmes em empresas cinematográficas estrangeiras,
o final da década de 1960, Cervantes torna-se um produtor atuante e res- ingressou, em 1950, na Cinematográfica Maristela, como relações públi-
peitado neste ambiente cinematográfico. Meu nome é Tonho, de Ozualdo cas da companhia, além de redigir o material publicitário distribuído à
Candeias, na linha de sucesso popular dos faroestes italianos, foi a primeira imprensa. Logo, Palácios passou a administrador-geral dos estúdios da
produção da Maspe Filmes, pela qual Cervantes produziria mais 16 filmes.6 Maristela, permanecendo no cargo quando estes passaram para a Kinofilmes
Antes da entrada em cena destes personagens, já se havia produzido (do final de 1952 a meados de 1954) e, também, depois que a companhia
bastante naquele quadrilátero dos bairros de Santa Cecília e da Luz. Ali estava foi restabelecida. Ainda na Maristela, fez incursões como (co-Iroteirista e

6 Dentre os filmes produzidos por Augusto Cervantes, destacam-se: Sina de aventureiro (1976); Noite em chamas (1977); Mulher, mulher (1980); Palácio de Vênus (1980); A
(1957); Meu destino em suas mãos (1961); À meia noite levarei tua alma (1964); Esta flmea do mar (1980); A/ome do sexo (1981); O sexo nosso de cada dia (1981); Eróti-
noite encarnarei no teu cadáver (1966); O estranho mundo de Zé do Caixão (1967), Pelo ca: flmea sensual (1983); Volúpia de mulher (1984); Gozo alucinante (1984); Senta
produtor, por intermédio da Maspe Filmes: Meu nome é Tonho (1969); Dgajão volta no meu que eu entro na tua (1984); Mulheres taradas por animais (1986); Lazer, ex-
para vingar (1971); A virgem e o machão (1973); Como consolar viúvas (J 975); Excitação citação sexual (1986),

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l D sn

arriscou a direção de Getúlio, glória e drama de um povo (1956), Casei-me


A g,r~lncl' virada na vida de alante a onteceu com a produção de Vidas
com um xavante (1957) e Vou te contd (1957). Mas sua atividade principal
11/1/1" /11m que, de certo modo, contém os ingredientes básicos que, em
foi mesmo a produção de filmes - como investidor, diretor de produção ",I olll~div r os, iriam compor o perfil de produção - ou de certas práti-
ou produtor executivo -, tendo a seu crédito: Simão, o caolho e Mulher I I dos filmes da Boca do Lixo: visão de mercado, espontaneísmo, ero-
de verdade (Alberto Cavalcanti); Carnaval em ld maior (Adhemar Gonzaga);
II 111 ,baixo custo, entre outros. Conforme relata o próprio Galante, Vi-
Mãos sangrentas (CarIos Hugo Christensen), Quem matou Anabela? (Didier
) ,!'" nuas foi uma grande jogada de oportunidade:
Hamza), pelo qual recebeu o Prêmio Governador do Estado de melhor
produtor; A doutora é muito viva (Ferenc Fekere); Arara vermelha (Tom Por volta de 1966 me apareceu um filme chamado Erótica do Ody Fraga, que
Payne). De 1962 a 1968, produziu O vigilante rodovidrio, o primeiro se- 1110 .stava terminado, faltavam 30 minutos. Essa foi a minha primeira produçã ,
riado nacional da televisão brasileira, com 38 episódios, dirigidos por Ary qllt' U comprei, eu com o Sylvio Reinoldi. E deu resultado o filme. Gostei. O
Fernandes. Em mais de uma oportunidade, foi eleito presidente do Sin- (\vio entrou como montado r, dirigiu o resto e tinha 20%. Eu fiquei com os 80%.
dicato dos Produtores da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo." Naquela época o filme custou, se não me engano, 500 mil cruzeiros, quer dizer,
6rfão de pai e mãe, Antonio Polo Galante (Itambi, Sp, 6/1111934) es- ,IlO ruzeiros. Nós mudamos o título de Erótica para Vidas nuas. E fez sucesso.
teve sob os cuidados do Juizado de Menores desde 2 anos de idade. Aos 19 1'1 ou quatro semanas em cartaz no cine República, um cinema enorme, uma
I uv 'ira de burro para o cinema nacional. Mas eu arrisquei e deu sorte. Em quatro
anos, após cumprir o serviço militar, empregou-se na Cinematográfica Ma-
r-manas deu 14 milhões, 14 mil. Era uma senhora renda."
ristela, contratado por Alfredo Palácios. Galante assim relata o episódio:

Sócio de Galante no empreendimento, Sylvio Renoldi relata as peripécias


Foi um acaso. Eu estava jogando futebol - modéstia à parte, eu jogava
bem - e tinha um eletricista, o Carioca, que me disse: "Cê quer trabalhar em do projeto:
cinema?". Eu disse: "Puxa, que bacana trabalhar em cinema". E fui para os es-
túdios da Maristela. E lá me botaram como faxineiro. Tudo bem, eu achava aquilo O Galante comprou um monte de material usado de estúdio de filmagem,
bonito, nunca tinha visto aquelas coisas. Tinham acabado o filme Mãos sangrentas II . li ma produtora que fazia um Jornal da tela. Ele gostava de negociar estes trecos.
e estava começando o Leonora dos sete mares. O Palácios me deu o chão para la- hsa produtora tinha um longa-metragem interrompido, começado a produzir
var, refletores para limpar. No filme seguinte, Quem matou Anabela?, eu fui o dé- "111 1962. Pegamos o copião, demos uma olhada. Eu disse: "Olha, tem que fil-

cimo oitavo eletricista. Até que cheguei a chefe." 11I.lr uns trinta por cento desse filme." Aí, nós compramos e eu comecei a me-
cr no filme, colocando mais ou menos na ordem. Eu e o Galante saíamos nos
11I1S de semana, filmando por aí. Inclusive o galã brigou comigo, se recusando
Em 1957, Galante foi trabalhar como eletricista na Jota Filmes, com
,I fazer o resto do filme. Aí, eu achei um cara na rua - parece incrível - igual-
Jacques Deheinzelin. Lá, começou o aprendizado de assistente de câmera,
linho a ele. Eu disse a este cara: "Olha, você vai perder umas horas com a gente
estreando na função no filme A ilha, de Walter Hugo Khoury. Já conhe-
(' tal". Fizemos ele entrar e sair de boates, andando na rua etc. Terminamos. Mas
cedor das "coisas de cinema", trabalhou na Documental, com Galileu Garcia,
o filme ficou uma merda tão grande!
e depois na Lynx Filmes, na produção de filmes comerciais. Paralelamen- Bom, o filme estava pronto, mas não mostramos pra ninguém. Eu fiz um
te, desenvolveu alguns trabalhos como fotógrafo para a Escola de Comu- pllta trailer, que exibimos para o cara da Sul-Paulista [rede de cinemas]. Ele disse:
nicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo. "Porra, que puta filme! Eu quero assistir". Nós ficamos enrolando, enrolando,
.ué levarmos a cópia para a Censura. Exibimos em São Paulo e, depois, ven-
? Cf. Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda (orgs.), 2000. demos para um exibidor do Rio.
8 "A. P. Galante. O Rei do Cinema Erótico", enr'r.evista concedida a João Silvério Tre-
visan em 1982 e publicada na revista Filme Cultura. Cf. Trevisan, 1982, p. 72. O) Idem, op. cit., p. 73.

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1(11/,//'/11I' • lnn 'am () P" UUL 111 n rrn u es o de públi o. Neste caso,
Paulistano do Jaçanã, Sylvio Renoidi (1942) morava numa chácara ao
lado da produtora Maristela. Ainda garoto, começou a freqüentar os es- " hlm . inv ntou pr dut r, uma loucura possível na época.
I) 'pois de Vidas nuas, Galante inv~ste em Trilogia ~~ terro: (19~8?, filme
túdios, cujo pessoal era quase todo formado por italianos. Convidado a tra-
balhar na empresa em 1957, "em vez de ficar enchendo o saco aí pelo es- ,I, tr S .pisódios, dirigidos por três diretores, no qual entret de SOClOe me
túdio", foi encarregado de fazer os rótulos, a limpeza, e de acompanhar o , 1I1~'I'I' ,i até a cabeça. Era o Candeias, louco; meu amigo Person, malucão;
I II Mojica, bêbado. Fiz um filme até sério demais, me estrepei, perdi tudo,
trabalho na sala de montagem, logo aprendendo os procedimentos de mon-
» 10
tagem e edição de filmes. Segundo seu depoimento: 1111 para a estaca zero .
A 'ervicine de Galante e Palácios, constituída em 1968, tornou-se uma
Eu não tenho nenhuma cultura aprendida na escola. Tudo o que aprendi, d,l~ mais sólidas empresas da Boca do Lixo, devido, principalmente, a vín-
aprendi na batalha. Trabalhei de projecionista, assistente de som, eletricista, mi- Idos estabelecidos com fortes grupos exibidores, visando ao cumprimento
crofonista ... Fiz de tudo. Não pensava em dirigir. Eu gostei, e gosto, de montagem. d.1I ·i de obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros. A em~resa t~a-
I
h.tIhava com a estratégia da venda antecipada (ou adiantamento de bllhete~la)
Na Maristela, Renoldi trabalhou como assistente de montagem de Cara 111.xibidor, o que permitia a continuidade das produções, em geral de baixo
defogo (1957), de Galileu Garcia, e de O grande momento (1965), de Roberro IIISLOe (talvez por isso) com bons resultados financeiros. Com algumas
Santos. Com o fechamento da companhia, foi trabalhar com Glauco v.rriações, este modo de operar tornou-se um modelo s.eguid,o por .o~tras
Mirko Laurelli na Ale, como técnico de sonorização em séries dubladas p -quenas produtoras da Boca do Lixo (por vezes assoClad~s a ~ervlcl~e).
para a tevê - Rin Tin Tin, Lanceiros de Bengala etc. -, fazendo sincro- A empresa também operava como distribuid~ra no terntó~lO ?a~lista,
nização, acabamento, os anéis e gravações. Em seguida, foi para a Lince h.rxicamente dos próprios filmes - apenas ocaslOnalmente distribuía fil-
Filmes, depois para a Lynx Filmes - importante produtora de filmes co- IIIl'Sde outras produtoras. Em seus primeiros anos, na virada da déc~da de
merciais, institucionais e documentários -, tornando-se logo o principal 11)70, período considerado o mais efervescente e heróico da ~oca, inves-
montador da empresa, com trabalhos destacados. Iili em projetos de possíveis talentos, abrindo espaço para realizadores es-

Com a montagem de Viramundo (1965-1968), de Geraldo Sarno, epi- Ircantes, novos fotógrafos, montadores, roteiristas, elenco etc. Deste pe-
sódio do filme Brasil verdade, Renoldi alcança certa notoriedade. Em se- I rodo são os filmes O cangaceiro sanguinário (Osvaldo de Oliveira, 1969),

guida, vieram A hora e a vez de Augusto Matraga (1965), filme com o qual lpanema toda nua (Líbero Miguel, 1970), O pornógrafo (João Callegar~,
ganhou o prêmio de melhor montador no Festival de Brasília, o terceiro 11)70), Paixão na praia (Alfredo Sternheim, 1970), O homem que descobriu
episódio de As cariocas (1966) e O homem nu (1967), todos de Roberto li nu invisível (Aldir Mendes de Souza, 1973) eA selva (Mareio Souza, 1973).

Santos. Com Maurice Capovilla, trabalhou em Bebel, a garota-propagan- I)entre os realizadores co-produzidos por Galante e Palácios, figuram nomes
da (1967) e O profeta da fome (1969). Em 1968, consagrou-se pela mon- que se tornariam relevantes na história do cinema brasileiro, como Rogério
tagem de O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, com o qual Sganzerla (A mulher de todos, 1969), Sylvio Back (A guerra dospelados, 1970)
ganhou o Prêmio Governador do Estado de melhor montagem e o Prêmio . Walter Hugo Khouri (Último êxtase, 1973).
lNC de 1968. Dentre os profissionais atraídos para a Boca do Lixo, destaca-se Osvaldo
A aventura de Galante e Renoldi com Vidas nuas ilustra, de maneira de Oliveira (São Paulo, 1931-1990), que se tornou "homem de confian-
exemplar, como era possível, naqueles dias, realizar empreendimentos no ça" dos produtores Galante e Palácios, seus companheiros dos estúdios da
campo cinematográfico. Dois técnicos - um eletricista (Calante) e um Maristela, onde Osvaldo, apelidado "Carcaça", começou em 1951, traba-
montador (Renoldi) - compram o material de um filme inacabado, fil-
mam cenas noturnas da cidade de São Paulo, inserem quatro números de 10Ibidem.

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ANT O NT

lhando como maquinista. Ali teve seu aprendizado, como assistente de Idlll(' () /;ffllrLirlodl1 L/lZ oermelhn, d Rogério ganzerla, que marca uma
câmera de Rodolfo Icsey. Com o fim da produtora, trabalhou como assistente 1111 "h"tO, LIum r mpimento, com os procedimentos éticos e estéticos pro-
dos diretores de fotografia Tony Rabatoni e Ricardo Aranovich. Sua pri- 1"1'.IOS p 10 inema Novo. O bandido tornou-se uma interface para o Ci-
meira direção de fotografa foi em O vigilante rodovidrio, série para a tevê, 1\ IILI N vo, para o cinema brasileiro e para a própria Boca do Lixo.

também produzida por pessoal formado nos estúdios do Jaçanã: o produtor l'ro luzido quase ao mesmo tempo, As libertinas (1969), filme de três
Alfredo Palácios, o diretor Ary Fernandes e o ator Carlos Miranda. Curio- I 111 \(') Iios, dirigidos por Antonio Lima, Carlos Reichenbach e João Callegaro,
samente, Herança sangrenta (Glauco Mirko Laurelli e Jeffrey Mitchell, 1965), 11110 primeiro trabalho em longa-metragem realizado por aquele grupo "de

seu primeiro trabalho para cinema, foi realizado em cores, numa época em jllV 'I1S intelectuais" que se reunia no Soberano, mediante formas coope-,

que predominava o preto-e-branco. Desde então, trabalhou como fotógrafo I 11 ivas de produção. Os dois filmes visavam claramente a um diálogo com

com diretores diversos, como Luís Sérgio Person, Sylvio Back, Carlos Manga 11 111 .rcado exibido r - e com seus filmes B -, em atitude de provocação
e Anselmo Duarte. / I/ltica epolítica, procurando explorar temas "agressivos" como a violên-
NO' início da atuação da Servicine, Osvaldo "Carcaça" de Oliveira 11.1,a avacalhação, a ironia e o deboche - elementos típicos do Cinema
fotografou e dirigiu filmes na linha do cangaço - O cangaceiro sangui- M.\I'ginal-, mas também com humor, mulheres bonitas e erotismo-
ndrio (1969) e O cangaceiro sem Deus (1969) - e sertaneja - Sertão em 111{!,redientes de apelo popular que fundariam a pornochanchada.
festa (1970), No Rancho Fundo (1971) e Luar do sertão (1971) -, de gran- As libertinas buscou atrair o público com uma divulgação apoiada em
de sucesso popular. Logo ele se torna uma das figuras mais populares, h.rses promocionais apelativas, parecendo criar um estilo. Os anúncios
um verdadeiro "cidadão" da Boca do Lixo, trabalhando nas mais variadas pllblicados na imprensa escancaram: "Um filme SEXO de João Callegaro
produções. II h -xo-diretor), Carlos Reichenbach (sexo-diretor) e Antonio Lima (sexo-
Q Q
A Boca do Lixo, como território cinematográfico, em seus vários sen- .lircror) [...] Três sexo-histórias: 1 sobre sexo; 2 sobre sexo, 3 sobre sexo
Q

tidos possíveis, aparece como personagem e locação em dois filmes. Sua 1 1 Todos gostam da beleza! Todos apreciam a ousadia! Todos vão gostar

existência e seu cinema foram poeticamente anunciados em 1968, pelo ti As libertinas".

indomável (foro) (1973); O marginal (foro) (1974); Gente que transa (Os imorais)
II Filmografia de Osvaldo de Oliveira: O vigilante rodoviário (foto) - dois episódios: (foro) (1974); A noiva da noite (Desejo de sete homens) (foro) (1974); Cada um dá o
"O contrato" e "O fugitivo" (1962); O vigilante contra o crime (foto) (J 963); O vigi- que tem _ 3~ episódio: "Grande vocação" (foro) (1975); O casal (foto) (1975); O
lante e os cinco valentes (foto); O vigilante em missão secreta (foto) - quatro episódios: roubo das calcinhas - 2" episódio (foro): "I love bacalhau" (1975); O homem de pa-
"Aventura de Tuca", "O aventureiro", "A experiência" e "Terra de ninguém" (1964); pel (Volúpia do desejo) (foro) (1975); Kung Fu contra as bonecas (foro) (1975); fá não
Herança sangrenta (foto) (1965); O mistério do Taurus (foto) - quatro episódios: "Fór- se foz amor como antigamente - três episódios (foro): "Oh, dúvida cruel"; "O n~i-
mula de gás", "Café marcado"; "O suspeito"; "O garimpo"(1965-1968); O caso dos vo"; "Flor-de-Lys" (1975); As meninas querem ... os coroas podem (foro e direção)
irmãos Naves (foto) (1967); Viagem ao fim do mundo (foto) (1967); Trilogia do terror (1976); Elas são do baralho (foro) (1976); Internato de meninas virgens (foro e dire-
(foto), 2" episódio: "Procissão dos mortos" (I 968); Panca de valente (foto) (1968); O ção) (1977); O crime do Zé Bigorna (foro) (1977); Pensionato das vigaristas (foro e
agente da lei (foto) (1968); O cangaceiro sanguinário (foto e direção) (1969); Corisco, o direção) (1977); O bem-dotado, o homem de Itu (foro) (1977); Fugitivas insaciáveis
diabo loiro (foto) (1969); O cangaceiro sem Deus (foto e direção) (1969); O pornógrafo (foro e direção) (1978); A filha de Emanuelle (foro e direção) (1978); O caçador de
(foto) (1970); Sertão em festa (foto e direção) (1970); Guerra dos pelados (foto) (1970); esmeraldas (direção) (1978); Os trombadinhas (foto) (1978); Histórias que as nossas ba-
O homem do corpofechado (foto) (1970); No Rancho Fundo (foto e direção) (1971); Luar bás não contavam (foro e direção) (1979); Bordel, noites proibidas (foto e direção) (1980);
do sertão (foto e direção) (J 971); Cassy fones, o magnífico sedutor (foto) (1972); Rogo A prisão (foro e direção) (1981); Curral de mulheres (foro e direção) (1982); A fêmea da
a Deus e mando bala (foro e direção) (1972); Os garotos virgens de Ipnnema (Purinhas praia (foto) (1983); Bacanais da ilha das ninfetas (foto e direção) (1984); Ilusão san-
do Guarujá) (foto e direção) (1973); A superfêmea (foro) (1973); Mestiça, a escrava grenta (foto) (1985-1987); Presença de Marisa (foto) (1986-1988).

3S
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ANI tiO Nf
nu " UII LI~II

Neste início do "cinema de invenção", 12 filmes como O bandido da luz 1111 S,IO Paulo, ar! s s ar Rei hcnba h Filho (Porto Alegre, 1945) cursou
vermelha, As libertinas e O pornógrafo tiveram um público surpreendente. 1 h .ola upcri r de inema ão Luís (1966-1967), buscando embasar uma
As libertinas ficou 40 semanas em cartaz, em cinemas do centro de São Paulo. I Idl ura inematográfica com as leituras apaixonadas dos Cahiers du Cinema
A proposta agressiva de inserção no mercado de As libertinas será ten- 1 .1 parti ipação nas sessões da Sociedade Amigos da Cinemateca. Em de-
tada em outros filmes de forte apelo erótico realizados no início dos anos \,!lim nto, ele revê sua trajetória:
1970, com financiamento (de baixo custo) levantado junto a pequenos pro-
dutores da Boca do Lixo. Eram filmes que procuravam dialogar com o 'lenho a sensação de que, de certa forma, em São Paulo, o Cinema Marginal,
mercado exibidor, sob as tensões do regime, É possível perceber, neste tipo di invenção, pós-Novo, ou mesmo Boca do Lixo, nasceu nos arredores da Escola
de estratégia, um deslocamento dos protocolos da ética cinemanovista, no di Cinema da Faculdade São Luís, uma experiência do padre Lopes. A São Luís
, umcça a juntar pessoas - na Avenida Paulista -, por causa de Luís Sérgio Person,
que se refere ao relacionamento com o público. Os dilemas desta relação,
1'.1\110 Emílio Salles Gomes e Roberto Santos. A inteligência cinematográfica de
vivenciados pelo Cinema Novo, são vistos agora sob a ótica "marginal-ca-
,I\) Paulo estava lá. Alguns cineastas que estavam começando a carreira freqüen-
fajeste" - um modo de expressão provocante e confrontador -, sobre-
r.ivarn a São Luís.
tudo no enfrentamento do "lixo cinematográfico americano" (o que incluía A Boca já existia. Houve um contato entre a São Luís e a Boca. O pessoal trouxe
os spaghetti westerns, os kungfu, as comédias italianas, os policiais, os fil- (I,lra a escola o Mojica Marins, o Candeias, e aquelas pessoas que freqüentavam
mes de ação etc.). No folheto promocional de O pornógrafo (1970), intitulado I Sfto Luís, mas não freqüentavam a Rua do Triunfo, começaram a ter conta-
"Manifesto do cinema cafajeste", seu diretor, João Callegaro, define alguns IIl. a ter admiração por esses cineastas formados pela vida, feitos pela técnica.
pontos da estratégia: trata-se de abandonar as "elucubrações intelectuais 1',11 fui levado à Boca do Lixo por Luís Sérgio Person, quando ele resolveu fazer

responsáveis por filmes ininteligíveis e atingir uma comunicação ativa com 11111 filme com os alunos.
o grande público, aproveitando os 50 anos de mau cinema norte-americano
devidamente absorvido pelo espectador". Os filmes deste período acabaram plantando sementes em terrenos
Para Carlos Reichenbach, o "Manifesto do cinema cafajeste" refletia a liversos. Por um lado, o enlaçamento de uma certa cultura cinematográ-
idéia de fazer um cinema autoral, popular e, por que não, comercial: I1 'a com a ironia e o deboche lapidados por atitudes da contracultura -
(lIja síntese está no mote político do Bandido da Luz Vermelha: "Quando
Esta era a proposta. E tem muito a ver com o momento que o país estava nao dá para fazer nada, a gente avacalha e se esculhambà' - sedimentou
vivendo naquele momento. Tem tudo a ver com o Tropicalismo e o teatro do Zé lima vertente que produziu um cinema rotulado de marginal (ou "de in-
Celso. A música, o teatro, os filmes, vinham de uma censura, uma repressão muito v .nção"), que também germinou, com cores locais, no Rio de Janeiro, em
grande, e neste momento trocam, a meu ver, a subversão da música de protes- Minas Gerais e na Bahia. Em São Paulo, após uma interessante e relativa-
to, do Cinema Novo, do Teatro Opinião, pela transgressão. Assumir a proposi- mente pequena produção, essa vertente se dissolveu, e seus integrantes aca-
ção do Hélio Oiticica: seja bandido, seja herói. Assumir a Boca do Lixo, normal- baram tomando rumos diversos. O advento do filme em cores ajudou a
mente. No Tropicalismo, assumir o cafonismo, a barbárie ... Quem assumiu a Boca
matar o cinema marginal- em preto-e-branco -, pois ao exibido r (em
foi a minha geração. Era um lugar neutro e libertário.
nome do público) interessavam os filmes coloridos.
Por outro lado, as novas formas de produção engendradas pelos "mar-
Daquele grupo "marginal", Carlos Reichenbach foi quem manteve as
iinais" (e pelos produtores emergentes) iriam também adubar o terreno para
relações com a Rua do Triunfo, vindo a realizar um percurso singular. Criado
.1 realização de filmes com a oferta instigante de conteúdo erótico, numa

linha nitidamente comercial, com um movediço background ideológico,


12 Designação proposta por Jairo Ferreira, 1986. reitos por profissionais "formados pela vida", ancorados numa cultura cine-

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uv " UU LIAQ

matográfica de filmes B e com potencial para ocupar espaços, atendendo Á partir do dcs .jo (c da vontad ,) de e tabele er contato com o públi-
à demanda criada pela reserva de mercado para a produção cinematográ- 1 li as Ia populare -, omeça a fermentar, na Boca do Lixo, uma
!i ca brasileira - garantida por lei e feita cumprir pelo governo militar. _
ur.issa rfli a que buscará enfrentar a seu modo as tensões entre os cam-
A exploração do erotismo no cinema não era, evidentemente, uma in- I'OS da criação e do entretenimento; da arte e da linha de produção. No
venção brasileira. Desde meados da década de 1960, o cinema erótico es- IId .io da década de 1970, já era possível perceber a estruturação de um consis-
tava na pauta do público, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, com 1 -nic potencial produtivo marcado por uma relação objetiva/pragmática
boa resposta de bilheteria, refletindo um momento de intensas transfor- 111111 o "mercado" e a afinação de certos instrumentos na orquestração de
mações comportamentais no campo da sexualidade. Aqui, não poderia ser 11111 projeto informal/conjuntural de adesão ao "gosto popular". Para a
diferente, e a produção nacional, que sempre se relacionou tanto com o I\o'a do Lixo afluía toda espécie de "pessoal". Ali, o cinema era uma paixão
produto estrangeiro quanto com a realidade brasileira, responderá, como 1 omungada, com seus pecados, suas confissões e seu perdão. Esta cornu-
(in)fiel tradutora das ondas internacionais, ao nosso "jeito". 1111:10 fazia a história de um jogo sem regras chamado aventura, atraindo
Certamente, um fator decisivo para a materialização de um "pólo produ- "profissionais" em busca de trabalho e reconhecimento. Todos, de certo
tor" na Boca, do Lixo foi a implementação pelo INC, a partir de 1967, de modo, começavam.
políticas protecionistas e de fomento à produção, distribuição e exibição É o caso de Cláudio Portioli (Presidente Prudente, Sp, 1935), um dos
de filmes nacionais. A reserva de mercado no circuito comercial representava principais fotógrafos da Boca. Antes de se dedicar à fotografia, Portioli foi
:'uma garantia mínima de sobrevivência ao cinema brasileiro" e, mais que eletricista no filme O Cabeleira (Milton Amaral, 1962) 13 e exerceu outras
ISSO, provocou o surgimento de um mercado que "solicitava" filmes. Com [unções técnicas, principalmente a de maquinista, ganhando notoriedade
a ampliação da reserva de mercado para exibição e outros sinais de estru- por sua contribuição criativa ao clássico de Roberto Santos, A hora e a vez
turação do amparo à produção cinematográfica brasileira, emanados do '/1' Augusto Matraga (1965), ao improvisar uma grua de madeira utilizada
poder, consolida-se uma expectativa por filmes nacionais. Por outro lado, ('111 vários momentos da filmagem. Em 1971, radica-se na Boca do Lixo e
deve-se ter em conta o regime de exceção em que o país vivia então, sob 1:1'/. o seu primeiro trabalho como diretor de fotografia em Cio, uma uerda-
o Ato Institucional nº 5 (a partir de dezembro de 1968), o que fazia da Cen- drlra história de amor, dirigido por Fauzi Mansur, parceria que se manteria
sura uma "co-produtora" da indústria cultural.
por vários filmes. Em seguida, fotografa o primeiro filme (os anteriores eram
Se As libertinas já apontava o movimento da produção paulista em di- de episódios) inteiramente dirigido por Carlos Reichenbach, a comédia juvenil
reção ao cinema erótico, a Rua do Triunfo entra em alerta (já tendo assis- corrida em busca do amor (1971), e o drama A casa das tentações (1973), do
ti.do a Os p.aqueras, produção carioca de Roberto Farias dirigida por Re- t rítico e cineasta bissexto Rubem Biáfora. Sobre a época, comenta:
glllaldo Faria) com Audácia, afUria dos desejos (I 970), filme em três episódios
de Carlos Reichenbach e Antonio Lima, uma espécie de start do processo, No começo, só tinha o Massaini e o pessoal das distribuidoras (estrangeiras).
fundamentando a fórmula "produção de baixo custo + erotismo + título () primeiro acho que foi o Galante, que montou escritório. O pessoal foi indo
apelativo" . p.tra lá. Aí, o que acontece? Todo mundo foi para lá. Aí virou aquele monstro.
Na Boca do Lixo, este modelo logo começou a tomar forma e a dar lucro.
Enquanto as práticas do cinema marginal paulista esmaeciam, germinava
l!Q1 cinema popular brasileiro, plantado no erótico, que logo seria enqua- I\ O Cabeleira é um filme de cangaço, em cores, produzido por Nelson Teixeira Mendes,
uma das últimas produções realizadas por empresas do interior paulista. Interessante
drado em um gênero abrangente rotulado por seus opositores de "por-
observar que, nele, estiveram envolvidos profissionais que marcariam sua presença na
nochanchada", alcunha depreciativa, utilizada inicialmente pela imprensa,
Boca do Lixo: Pio Zamuner, Oswaldo de Oliveira, Ozualdo Candeias e John Doo,
pelos formadores de opinião e, depois, pela sociedade em geral. entre outros.

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AN I IltiNf'

Aí vAirouuma Hollywood, porque se fazia filme lá. Na Boca era gostoso, porque
I 1I"lt) ,10 til/O ri" cinema paulista '/11 1980, en aia uma definição que parece
voce estava num bar e, às vezes, em meia hora resolvia fazer um filme:
II I ,ido xirr ntc na épo a.
- O que você tem?
- Eu tenho a câmera.
( :i11'ma da Boca não existe. O que existe é um cinema paulista que se estru-
- Eu tenho dez latas de negativo.
11111111 d .ntro de uma realidade e dentro de uma necessidade de mercado, que tem
- E você, o que é que tem?
1111101 ara terística perfeitamente diferente da do Rio. [00'] A chamada Boca, a rua
- Ah, eu tenho uma notinha aqui.
dll'll'iunfo, nada tem a ver com o nível das produções. A rua, esse local, esse quar-
- O Ody Fraga faz o roteiro. Fulano vê o que é que tem pronto. 11 11,10,têm uma função que pode ser profissional e social, e cada um faz a fita que
~ s~ía o filme. Agora, se os filmes não tinham muita qualidade, não tinham '1"1 I. ti fita do Massaini não tem muito a ver com a fita, por exemplo, de um Cus-
multo I.SSO ou aquilo ... Mas era um cinema que dava um impulso, dava empre- IIldio Comes ou de um Wilson Rodrigues. E, no entanto, se diz que tudo é Boca.
go. Multa gente aprendeu a fazer cinema, muita gente aprendeu a iluminar, muita I )( :~dante fazendo uma fita, se ele faz com o Khouri é uma coisa, se ele vai fazer
gente aprendeu a ser eletricista, assistente de câmera. Muita gente aprendeu a ser 111111 11mtal de Agenor é outra. [00'] Aqui há uma produção ligada às necessidades
um monte de coisa. di 111.rcado e mais ou menos assim dentro de uma linha industrial, que não
di 11onde do dinheiro do Governo.14

RUA DO TRIUNFO ESQUINA COM VITÓRIA Iloje, porém, com alguma distância no tempo, acredito ser possível
nlcntificar, no movimento geral do cinema brasileiro, um "ciclo da Boca
Desenvolve~do forma~ de produção e produtos "independentes", desligada 1I1Ilixo", que procuro apresentar e analisar por meio de uma narrativa tecida
dos estratos intelectuais dominantes, a Boca do Ljxo - ou Rua do Triunfo 1111110
uma trama a partir das biografias, dos depoimentos concedidos e do
e.squina com Vi~~ria. - pode ser considerada um "lugar" em que se pra- m.ucrial bibliográfico disponível sobre seus principais atores/agentes. Tendo
ticou uma experrencia específica de produção num setor da indústria cul- I III vista alcançar uma maior compreensão de aspectos fundamentais desse
t~ral- o ci~ema. U~a experiência diversa daquela desenvolvida pelas I Irlo - a base econômica (as condições materiais), os filmes (uma ampla
elites culturais (e do cinema), amparadas pelo investimento estatal. Um I desigual produção), as relações estabelecidas com a sociedade -, este foi
cinema voltado, basicamente, ao entretenimento das classes populares e dividido, algo arbitrariamente, em três períodos.
realizado por pessoal egresso dessas mesmas classes. Trata-se, certamente, Um primeiro tempo compreende os anos de 1970 a 1975, quando a
de uma produção desigual, em que se pode reconhecer uma certa hierar- I 11:1do Triunfo se torna um pólo de atração para o pessoal que quer "fazer
quia de produtores, diretores, técnicos, elenco etc., diferenças que per- I i11c ma" , período em que predominam uma certa aventura artística, uma
passam todo o processo de produção-distribuição-exibição. produção sustentada por uma economia de capital "selvagem" e relações

Uma questão recorrente e controversa, desde sempre, é que "nem tudo d . trabalho solidárias e primitivas. Procurando enfrentar a ocupação es-
t r:,ngeira na exibição, atendendo a diversos segmentos do mercado, numa
é Boca"_ - o que significa tentar marcar as diferenças entre os tipos de
política (informal) "de substituição de importações" (como propunham
produç~~, pretensões autorais; hierarquizar; separar o joio do trigo. Al-
guns rejeitavam o rótulo e preferiam algo um tanto épico, como "Cinema
I).~ PNDs - (Planos Nacionais de Desenvolvimento) I e 11, implementados
da,~ua do Triunfo"; outros achavam que tudo não passou de ajuntamento
p -10 regime militar), realizam-se filmes - "similares nacionais" - a toque
r/r' caixa e a todo vapor.
caot.lco, semelhante a um garimpo. Ser ou não ser Boca do Lixo parece
ter Sido uma questão de procedimentos cinematográficos e de relação com
1 Trechos de depoimento de Ozualdo Candeias, Cadernos da Cinemateca 4 - 30 anos
o público. Ou uma ética. O depoimento de Ozualdo Candeias à publi-
de cinema paulista. Fundação Cinemateca Brasileira, 1980, p. 86.

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IIU A UU UXU

Um segundo tempo, digamos assim, na história da Boca do Lixo foram


A TOQUE DE (AIXA E A TODO VAPOR
os anos entre 1976 e 1982, período em que a produção (o capital) tende
a se ~oncentrar e os produtos, a se hierarquizar. Uma "segunda geração", 1970-1975
surgida na própria Rua do Triunfo, amplia a ocupação de espaços no co-
mércio cinematográfico, produzindo filmes formalmente mais cuidados
e consolidando, em seu âmbito, reputações artísticas e financeiras. Como
todo o cinema brasileiro, a Boca do Lixo é também marcada pela entrada
em cena, de forma atuante, da EMBRAFILME - uma espécie de Outro cine-
matográfico da Boca.
A partir de 1983, com a crise que se abate sobre a economia brasilei-
ra de maneira geral e o setor cinematográfico em especial, abre-se um ter- ) impulso da Boca do Lixo em direção à produção de filmes com temas
.. ce~ro tempo na história da Boca, marcado pela dissolução de suas (frá- , ,61 icos" teve forte influência de duas comédias cariocas que haviam al-
geIS) estruturas, em decorrência do esgotamento da lógica que lhe regulava ,.'Il~·ado grande êxito no mercado, gerando uma forte onda na produção
a produção e os gêneros produzidos, e pela tentativa, com base na mes- utnlnstream (por oposição a "marginal"): Os paqueras (1969), primeiro
ma lógica, de enfrentar o rude golpe da entrada indiscriminada, no mer- I' .ibalho de direção de Reginaldo Faria, e Memórias de um gigoLô (1970),

cado .brasileiro, dos filmes de sexo explícito estrangeiros. Um tempo de ti iri rido pelo veterano Alberto Pieralise, com atuação e produção de Jece
agOnIa para a Boca do Lixo. .iladão. Esses filmes, juntamente com Adultério à brasileira (1969), filme
, ,ti três episódios realizado por Pedro Carlos Rovai, em São Paulo, podem

(', considerados os fundadores de um "gênero".' Exemplares típicos das


111 i 111 eiras comédias eróticas, misturavam ingenuidade e malícia, "os dile-
III,ISdo dar e do comer", segundo os chavões contestadores (juventude/
hh .rdade versusconservadorismo/repressão) no campo do comportamento
dos anos 1960 e 1970. Com um tratamento cinematográfico convencional,
'I,~ fll mes traziam alguns cuidados na elaboração do roteiro, na escolha
do elenco, e eficiente trabalho de direção.
Ao se analisar as fichas técnicas das produções dos anos 1970-1975, ob-
na-se a existência de um conjunto de filmes "deste tipo", realizados-
principalmente no Rio de Janeiro - por produtores, diretores, elenco e equipe
mais tarimbados, numa espécie de recrutamento de certa competência que

I Logo depois, Pedro Carlos Rovai transfere-se para o Rio de Janeiro, criando a Sincro
Filmes, por intermédio da qual produzirá trabalhos influentes - pelo sucesso comer-
ial e pelo empenho no acabamento profissional e criativo - na fixação e desenvolvi-
mento do "gênero" pornochanchada (neste caso, "comédias eróticas" seria o termo mais
apropriado): A viúva virgem (Pedro Rovai, 1972); Os mansos (Aurélio Teixeira, 1973);
Ainda agarro essa vizinha (Pedro Rovai, 1974); Gentefina é outra coisa (Antonio Calmon,
1977); Nos embalos de Ipanema (Antonio Calmon, 1979); ArieLla (John Herberr, 1980).

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A r U D AlIA A rODO VArI1R. 1970·191

permite a legitimação do gênero erótico - a rigor, comédias de costumes " 11/1\ til' LlIl/lpirf() (19 6), A Mllrlol'la de cedro (1968), entre outros. Em
com doses atualizadas de malícia e, digamos, erotismo. Devido ao suces- ",lli Ia,
I i pr dui r xe utivo d filme Corisco, o Diabo Loiro (1969),
I 111111 ~111I oimbra. Em 1972, em sociedade com Olivier Perroy, produziu
so comercial, esses filmes iriam exercer grande influência no mercado ci-
I IIIfirlelidade ao alcance de todos, filme em dois episódios - "A transa",
nematográfico, iluminando o caminho da produção da Boca do Lixo.
Pode-se dizer que a comédia erótica tecnicamente bem produzida e bem ti 111!!,i10 por Massaini, e "A tuba", dirigido por Perroy - com roteiro de
I 1111'0 ésar Muniz (e com Clodovil, então expoente da haute couture na-
distribuída comercialmente começa a ser realizada na Boca do Lixo por inicia-
tiva de Aníbal Massaini Neto, filho de Oswaldo Massaini, da tradicional Cine- i IIl11al, omo figurinisca). No ano seguinte, produziu, dirigiu e foi co-
1111·irisca (com Adriano Stuart) de A superflmea, estrelado por Vera Fischer,
distri, que adere ao movimento em direção aos temas picantes, ao co-produzir,
com a Sincro Filmes, de Pedro Carlos Rovai, Lua de mel e amendoim (1970), 11111:\átira ao mundo da publicidade que lhe valeria alguns prêmios pela

filme em dois episódios com direção de Rovai e Fernando de Barros. I"odução. Revela Massaini:
Pedro Carlos Rovai acabara de em placar Adultério à brasileira, um es-
Era sempre uma coisa curiosa [como os filmes surgiam]. Eu estava em casa
touro de bilheteria que a Cinedistri distribuiu. O filme, com três episódios,
i-ndo o Jornal Nacional quando aparece uma entrevista do médico Euzimar
foi lançado no Cine Paulistano - na esquina da Avenida Paulista com a
t 'ourinho em que ele falava, naquela época, 1973, do anticoncepcional mascu-
Avenida Brigadeiro Luís Antônio -, uma sala de freqüentadores exigen-
ltno. Eu pensei: "PÔ, que puta idéia!" E, na ocasião, havia um sucesso, O supermacho
tes na qual seria "uma loucura pôr um filme deste lá"; depois, foi para o [uma comédia italiana], com o Lando Buzzanca. Pronto! Olha aqui a idéia! Va-
Cine Iguatemy. O boca-a-boca promoveu o filme e preparou o "clima" para ItlOS fazer uma sátira à publicidade: como atingir o homem através da mulher.
sua exibição nas telas mais populares do Cine Olido e de outros cinemas I' 11 I inha visto um filme do Person, o Cassy[ones, com um tipo de humor aparen-
do centro de São Paulo. Diz Aníbal Massaini: u-mcnte desconectado, os filmes do [Richard] Lester, e construímos uma história
em uma estrutura narrativa muito linear. A censura prejudicou muito A su-
Era uma coisa maluca. O Rovai ia para a cabine de projeção e mudava a or- /,rr(pmea, que teve 23 cortes.
dem dos episódios a cada cinema: "Esse é mais popular, é melhor para encerrar
o filme no centro". Em 1974, amparado pelo êxito de A superfêmea, Massaini assume as
[unçôes executivas na Cinedistri. Neste mesmo ano, produz As delícias da
O lançamento de Lua de mel e amendoim foi extravagante, incluindo uirla, dirigido por Maurício Rirtner e protagonizado novamente por Vera
outdoors, o que era pouco comum na época. Antecedendo a estréia do filme, I'ischer, também na linha da comédia erótica, e investe em O exorcismo negro,
foram distribuídas porções de amendoim japonês numa embalagem em 10m José Mojica Marins/Zé do Caixão, na onda de seqüelas deixadas pelo
que era reproduzida a foto do cartaz. Enfim, um trabalho de lançamento. lilme americano O exorcista. Em seguida, retoma o veio principal de contato
A chamada para o filme, na mídia, referia-se "à malícia das comédias ita- 10m o público em Cada um dá o que tem (1975), filme em três episódios.
lianas, à classe das comédias americanas e ao humor bem brasileiro". Ou Massaini havia encontrado o filão:
seja, mesmo com uma produção de primeira linha, as referências são as
do cinema estrangeiro, uma espécie de aval de qualidade: os italianos en- A atividade era economicamente atraente. Era viável. Então, o que acontece?
tram com a malícia, os americanos, com a classe e nós, com o humor. Você tinha um mercado de 3.500 salas, na época, amplamente distribuídas pelo
Criado nos escritórios do pai, Aníbal Massaini Neto (São Paulo, 1945) país. Eram cinemas do centro de cidades, de periferia, do interior. E, principal-
acompanhava os movimentos da produção cinematográfica desde a ado- mente, das regiões populares, onde o cinema brasileiro tinha uma preferência muito
lescência. Começou a trabalhar profissionalmente como gerente de pro- ~rande. E isso associado aos incentivos - os prêmios adicionais de bilheteria do
INC. Aí é que entram os distribuidores e exibidores, associados a produtores na
dução nos filmes de Carlos Coimbra - O santo milagroso (1966), Canga-

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44
A IOQIII) AIXA A 101)1) VAI'OM: 19/0·19/

produção, que cresce por isso. [...] É só pegar os números para constatar que che-
gamos a atingir quase 40% de público anual, de salas. Os filmes brasileiros se
,'li dl' V '11th :1111 ' ipndu, .spé ie de 50 iedade com exibi dores e distri-
lima

sobrepunham aos filmes estrangeiros. O cinema brasileiro apresentava resultados. ,


IIIIIdol"s,a ,. rVllI1cpr
. d L1Z,
" de 1969 a 1975 , uma variada . gama
, . de filmes,O
I . d
III~qll:lISSC estacam, entre oucros.?. O cangaceiro sangumarzo
_ (1969); ).
De fato, a resposta do público comprovava a eficácia de nossos filmes, 1111I~llteJro . sem D eu s (1969)' , As gatinhas (1970); Sertao emfesta . _ (1970 . ,
e a Boca do Lixo revelou-se um terreno fértil para produções que seguissem I/II//ltma toda nua (1970); No Rancho Fundo (1971); Paixão na praz~
( 11) 7 I ); Luar do sertão(1971); Rogoa Deus e mando bala (1972); As ~~as (1:72),
a fórmula realização rápida + baixo custo + erotismo, abarcando os diversos
gêneros - comédia, drama, faroeste, policial, aventura, melodrama etc, I)\ ,~IIrotos virgens de Ipanema (Purinhas do Guarujá~ (~973); O ultimo extase

lnteragindo (para o bem e para o mal) com os campos temáticos e esté- (11)73); As cangaceiras eróticas (1974); Trote de sadzcos,(.1974).

ticos trabalhados, no imaginário cinematográfico popular, pela produ- Cabe notar a estratégia inteligente de Galante e Palácios, de desdobrar
ção estrangeira, o cinema da Boca do Lixo dispunha-se a disputar o mer- 11,1 pro d uçao - de modo a oferecer produtos diversificados a parcelas defi- ibi
cado exibidor com o cinema americano como um todo _ até mesmo I'
Itll .IS
. de público . É esta oferta contínua de filmes de gênero que pOSSl
. dú . . 1-
filmes de ação de segunda linha -, as comédias eróticas e os spaghetti lu.irã ao público (consumidor) perceber a existência de uma in ustna cme-
westerns italianos, os filmes de lutas marciais orientais importados de Hong m.uogrãfica. A Servicine pensava o mercado ~o~~ forneced~r~ de produtos.
Kong ... E o que mais viesse. I~importante destacar, nesta produção inicial da Servicine, os filmes
Cabe lembrar que, neste período, o sistema de exibição/mercado exi- wnanejos, de grande aceitação popular durante as ~é~adas de 1960 e 1970.
bidor não era tão fortemente dominado pela distribuição americana _ 1"I"lmfitas que tratavam de temas regionais, de CaIpIraS do Sudeste, com
Columbia, Warner, Paramount, Fox, United Artists, RKO _, embora esta I:":hlico certo - espectadores que, procuran~o ~iversão, encon~ravam
fosse hegemônica. Uma maior diversidade de filmes era oferecida aos con- ,II1.nuid ad e- nas cidades do interior e na penfena das grandes Cidades,
sumidores (cuja demanda também se diversificava) por distribuidoras que /1I:íoque entra em decadência com a "nossa" modernidade, mas que Mazza-
faziam circular filmes europeus (a francesa Franco-Brasileira, a inglesa lopi" cultivou até os anos 1980 com enorme sucesso. . . .
Rank e as independentes nacionais Fama, Condor, Art, Paris Filmes, entre No Rancho Fundo e Luar do sertão, ambos fotografados e dlf1~l~oS por
outras, que também distribuíam os nossos filmes), japoneses (Tohei, Toho, ( >Svaldode Oliveira, apresentavam uma estrutura básica de cornicidade e
principalmente no estado de São Paulo) e mexicanos (PelMex). Nos anos rornantismo envolvida por canções, aproximando-se da form~ de filme
1970, multiplicam-se também as médias e pequenas distribuidoras vincu- . I
III1ISlca, "A simpli cidade da vida do campo; as .canções
. sertaneps
_ em ce-
ladas a circuitos exibi dores (Haway, Ouro etc.), que comercializavam ex- lias inesquecíveis; Tonico e Tinoco, com as mal.s lindas cançoes, ap~esen-
clusivamente filmes brasileirox.? Essa abertura da distribuição iria inten- r.indo a beleza e a simplicidade da vida sertaneja; um filme que reune os
sificar-se no decorrer da década, acompanhando o aumento da produção.
Neste processo é que cresce a Servicine - Serviços Gerais de Cine- \ Filmes produzidos ou co-produzidos pela Servicine de 1969 a 1975: As armas dl96~);
ma - de Alfredo Palácios e Antonio Polo Galante, empresa que procurou O cangacezro
. . , '0 (J 969)' , O cangaceiro sem Deus (1969); A mulher
sanguznarz e to d os
trabalhar com um leque diversificado de produtos, buscando atender aos (1969); As gatinhas (1970); O pornógrafo (1970); Sertão em festa (1970); Guerra os
vários segmentos de mercado com filmes de gênero _ de cangaço, ser- elados (1970); Ipanema toda nua (1970); Lucia McCartney, uma garota_de progr~ma
~1970)' No Rancho Fundo (1971); Paixão na praia (1971); Luar dO,sertao (1971): As
tanejos, comédias, melodramas -, marcados pelo progressivo apelo do
d '(1972)' Os garotos virgens de Ipanema (Purinhas do GuaruJa) (1973); O ulti-
erotismo (como se pode observar nos títulos). Utilizando-se da estraré- eus~s (19'73)' O homem que descobriu o nu invisível (1973); A selva (1973); As
mo extase , . d (1975)
cangaceiras eróticas (1974); Trote de sádicos (1974); Lucíola: o anJo pe~a or .
2 CE. Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda (orgs.), 2000, p. 174. A respeito da inserção da obra de Mazzaropi no mercado cinematográfico, ver Nuno
Cesar Abreu, 1982.

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47
"IU,",U U "I"" "IV'" Ynrv.. ,-rf •.•..,~,.

maio.res"cômicos do repertório popular como Simplício, Saracura, Nhá I kpois ti . P(lixfio 1/(1 prni« (1971), um melodrama protagonizado por
Bar~ma -, er~m ~lg~mas das frases promocionais sugeridas pelos folhetos ~JIIIIII:1 B '11 '11, c rnheirn foi convidado pelo produtor Elias Cury Filho
destmados a dIstnbUlção desses filmes,
1111.1 I' .alizar o egundo filme, O anjo loiro (1972), um drama inspirado no
Segundo Carlos Reichenbach ,
I I. \.,i 'o anjo azul (de Josef von Sternberg). Para o papel principal, ele
1IIIlVi lou a iniciante Vera Fischer, "enfrentando os preconceitos de que ela
EI~s.[?alante ~ Palácios] produziram alguns dos melhores filmes caipiras que
I I I ~Ó mais uma miss Brasil cheia de beleza, mas chatinha e sem talento".
o Bras~1Ja produziu. Sertão em festa foi um sucesso estrondoso, com Tião Carrero
( ) tll/)o loiro foi um sucesso extraordinário e "Vera provou o contrário, já
e Pa:dI~ho, os melhores cantores de música sertaneja que São Paulo já viu. [...]
~qUllo e o supra-sumo. Eles são o Tom jobim do sertanejo. Eu filmei com eles urnstrando paixão pelo cinema, paixão pelo trabalho, contagiando toda a
inclusive. ' I I1II ipe". Em seguida, dirige Rossana Ghessa, também atriz com sex appeal,

I 111 Purezaproibida (1974), um melodrama - a história de uma freira com


Além de .seabrir a vários gêneros, a Servicine apostou em diretores es- 11111 amor reprimido, roteiro da atriz Monah Delacy - produzido pela
treantes. FOI o caso de Alfredo Sternheim (Alfredo Davis Sternheim, São I'I<~priaRossana.
Paulo, 1942~, que debutou na direção de cinema com Paixão na praia, ) maior desafio para o diretor veio com Luciola, o anjo pecador (1975),
uma pr~duçao de Galante e Palácios, mantendo uma atuação consistente r.rlvcz a mais ambiciosa produção da Servicine. Adaptação do romance
como diretor no ambiente de produção da Boca. I 11 rlola , de José de Alencar, também protagonizado por Rossana Ghessa
Apó~ uma experiência cinedubista,5 Sternheim, apaixonado por cinema (, 0111 Helena Ramos como coadjuvante), o filme, co-produzido e distri-
desde a Juventude, foi levado a trabalhar como crítico de cinema no jornal hufdo pela EMBRAFILME, teve expressivo resultado comercial. Segundo
O Estado .d~~. Paulo pelo crítico Rubem Biáfora. Ao mesmo tempo, com rcrnheim,
l~ a~os, rrucia-se na prática do cinema como continuísta (assistente de
dlfeçao)
. de Walter Hugo Khouri ' em A ilha (1962) e , denoiepOIS, em lvotte I\T . l.uciola [... ] é o único filme de época que eu fiz, um drama de época. Foi uma
vazza (1964). Em seguida, dirige os documentários de cuna-metragem 111.1 muito difícil de fazer em 35 dias - o prazo que o Galan te deu. A gente teve
Noturno (1967), Flávio de Carvalho (1968) e Issei-Nissei-Sansei (1970). 11(' alugar carruagens, havia cenas com 80 figurantes, vestidos como no século XIX.
1\ procura de ambientes foi difícil, pegamos locações complicadas - Teatro
Municipal,Paláciodos Campos Elíseosetc, Cada coisaera filmada num pedacinho.
, Eu fui p~a Boca do Lixo porque meu projeto de vida era fazer cinema, e era
Ia que se fazia. Era lá que estavam os produtores. Todo mundo afluía para a Boca. 1'~1Iamei fazer este filme. E Lucíola teve uma coisa legal, que aconteceu inespe-
I .idamente: o filme foi para o Festival de Teerã. Foi bom, não só por viajar, como
[...] E quando me propus a fazer um longa-metragem em 1970 f .
. . . . " Ul procurar por me permitir ver a reação de um público completamente diferente do nosso
o Gala~te, que tinha sido e1etn,CI.stade A ilha e estava começando como pro-
,I um filme meu.
dutor, Junt~ ~om o ~f~edo Palácios. Eu levei o roteiro de Paixão na praia. Na
hora, o Palácios, principalrnenre, se entusiasmou, porque era uma fita barata
com suspense. [...] Embora mascarada, a uestão autoral - uma questão da arte cine-
N~_Bocanão havia grandes rivalidades.Todo mundo confraternizava nos bares ll1atogclfica q~ ma~va70rtemente aquele período - sempre permeou
da regiao. Claro, como em todo lugar havia uma competição, saudável,sem grandes ,\ pauta da Qrodu _ã.Q...aJJJ:Ü.<:
. . eira, im ..2,!gnando as formas ins-
embates. Cada um queria conquistar o produtor com seu roteiro. Iitucionais.di cinema brasileiro. Como ideologia, norteou as formas de
investimento da EMBRAFILME: o (cinema) autoral aproxima-se do artís-
5 Alfredo Sternheim freqüentou o Cineclube Dom Vital, freqüentado também por I ico - por algum critério - e, neste sentido, deve ser priorizado pelo Es-
Gustavo Dahl, Jean-Claude Bernardet e juan Bajon, entre outros. lado, ao qual cabe financiar a arte. Efetivamente, podemos dizer que a

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49
" rugu~ u "I~" "IVUV v"rVIII ,.,.-rv I.,r

(I • I Il' t" • rt :1
. I)
(r J11 a, I n u l ,
ti CJ· de "fazer o meu filme" implicava
.
sen-
EMBRAFILME,em muitas de suas práticas (de avaliação de projetos, por
1I1111'/,arpr du ore a investir, na expectativa do lucro. A llllguage~ e a
exemplo), de certo modo pôs em marcha uma política autoral
11Il'ss50 pessoal estavam voltadas a garantir um mÍni~o de. quahdade
11.1I1.lliva para o filme, para que este rendesse bastante dlllh.el~~. O ren-
que ressaltava a individualidade da obra de alguns cineastas que, independen-
temente das pressões do sistema de produção, conseguiam garantir a unidade .luucut financeiro significava um aval do público e a posslblhd,a~e, ~o
de sua produção. O objetivo do movimento era claro: [... ] distinguir arte de 1111
IlOS, de realizar outros filmes. O faturamento era. o ~e.lhor crttico .a
indústria; destacar o papel decisivo do autor individual sobre a equipe; declarar 110 :t do Lixo e rendia tanto dinheiro quanto respeltab~hdade no meio
a independência da invenção em face das pressões do produtor; decretar a I Um "autor" reconhecido
fissi
1'10 ISSlOna .
era aquele que sabia fazer e ganhar
autonomia da imagem em relação ao roteiro; encontrar, enfim, na linguagem
.Iruh iro.
cinematográfica, os elementos de sua legitimação enquanto obra de arte." Aos diretores da Boca do Lixo talvez restassem as tensões decorrent~s
.1.1"autoria" _ ser responsabilizado pelo sucesso o~ pelo .fracasso de bi-
Um bom exemplo são as fichas técnicas dos filmes que constam dos lhercria de um projeto. Ali, tratava-se, discutia-se, fazia-se clllema,o tem~o
anuários publicados pela empresa, que não trazem os nomes dos produ- 111 10, mas o eixo eram o mercado e a competência em enfrenta-Io, nao
tores, dos executivos e/ou dos diretores de produção dos filmes, valori- I discussão de propostas, ou a percepção intelec~ual de um proce.sso ~ul-
zando exclusivamente a direção - "um filme de" - e os créditos arrís- 1\1ral, características de movimentos autorais. O cinema da Boca fOl basica-
ticos. No contexto de produção do filme culto, a idéia de realizador impli-
11\.nte um movimento de produtores.
cava a experimentação da linguagem cinematográfica e a expressão pessoal.
O diretor! autor e seu filme não tinham como referência importante a rela-
ção com o público, ao menos em termos numéricos e empresariais. A crí-
A EMERGÊNCIA DOS PRODUTORES
tica favorável, nacional e internacional, prêmios em festivais, repercus-
são nos meios intelectuais eram objetivos não declarados, mas que sig- )s produtores da Boca do Lixo eram figuras centrais de ~n: ~rocesso eco-
nificavam "o sucesso". Ilômico que envolvia a produção, a distri.buiçã~ e a exibição de filmes.
Evidentemente, as pretensões autorais também se projetavam sobre :aptadores de recursos, administradores, lllvestldor~s, nego.Cladores, en-
os realizadores da Boca do Lixo. Porém, fazer o "seu" filme passava por t re outras habilidades (com alguns adjetivos não murto elog~osos),. foram
critérios bastante objetivos. A indústria da Boca do Lixo nunca investiu os responsáveis pela circulação do capital e do crédit~, p~lo lllvest~me~to
diretamente numa política autoral (de diretores), preocupando-se mais -rn meios de produção - câmeras, material de il~mlllaçao, maqulllana e
em adaptar-se como fornecedora de produtos, para atender a demandas 'd· e também por problemas rrabalhistas. Esse papel do pro-
:H é estu lOS- " .. .
do público/mercado. No contexto de produção do filme popular e de mercado do Lixo revestia de um verniz industrial o pro-
l Iutor, na esca Ia da Boca ,
·esso produtivo ali praticado. .
Entretanto, era usual a subordinação do produtor aos interesses dos
6 A partir dos anos 1950, a noção de autor impõe-se na crítica cinematográfica, fruto
distribuidores e exibidores. Formava-se, assim, uma corrente em que o
da ofensiva de um grupo de jovens críticos do Cahiers du Cinema que se tornaria a
constelação de primeira grandeza da nouvelfe vague. O movimento pretendia lançar cxibidor determinava (segundo óbvios critérios de faturamento) a e~co-
bases para distinguir o cinema autoral do conjunto da produção cinematográfica. A menda ou. aceitava propostas já orientadas; o produt~r executav~ o projeto
intenção era elevar o cinema à categoria de arte. Para isso, ressaltava-se a individua-
lidade da obra de alguns cineastas que, independentemente das pressões do sistema
comprimindo a aplicação dos recursos (o q~e envol~la.a regulaçao = con~
dições de trabalho e dos salários), e os artistas e tecnicos - o que l~cl~l
de produção, conseguiam garantir a unidade de sua produção. A esse respeito, ver
o diretor _ realizavam-no. De modo geral, como ocorre na produção ci-
Jean-Claude Bernardet, 1994.

Sl
50
~ IUQiU U 'UA" "IVUU 'I\rv I~rv ITI

nematográfica de al lati d .
, . ~u quer atitu e, os Interesses dos produtores e dos arrisr
N t ti ' s pr dut r 'S p ravam d me mo modo. Era freqüente,
'1l1
e tecll1c~s ~ram dIferentes: uns queriam fazer cinema, outros ueria as
zer co~erclO. Mas a qualidade dos filmes dependia muito ma1 d m fa- I IllIb .m, pr dutor omeçar investindo sozinho e, depois, associar-se
111111 xibidor (e/ou distribuidor), visando à finalização do filme e à ga-
os realIzava ~o ,qu~ do objetivo do produtor _ com exceções, ~ c~a!uem
r.uuia da exibição. De certo modo, agindo desta maneira, o produtor as-
dEssa ;onvlv~ncla entre produtor e distribuidor! exibidor seria apri~o-
('gllrava certa liberdade de ação, o filme era mais "seu". Os compromissos
ra ~ ao ~ngo os anos 1970, tornando algumas rodutoras e
vinham depois do trabalho artístico realizado, podendo obter maiores
:-In~estpldlores) em uma espécie de fornecedoras! filmes de e~!:~~~:-
torno o o Galante o midas da R d 1]' c . v.llllagens - investimentos maiores, circuito exibidor de primeira linha
do (seu) d d duzi ua o nunro, esclarece alguns pontos (I • - se tivesse para oferecer um produto com mais qualidade e com
mo o e pro uzir na Boca:
ui.iior potencial de performance de bilheteria.
Eu sou um produtor bem-sucedido, os meus fil _ Manoel Augusto Sobrado Pereira, o Cervantes da Maspe Filmes, por
mes
porque eu tenho um esquema diferente de prod . E todos dao resultados, I'X .mplo, levava a produção, até o final das filmagens, com seu próprio
Eu produzo fil . uzir, u nunca produzo sozinho
o I me com meu dInheiro e vendo 50o/c ibid . dinheiro, dando bastante importância ao still- a fotografia de cena. Quan-
Prod;.ÇãhO..Aí ele me paga a produção e 50% é dele. lá a:o:~ç: :~:r:I~I:sto da do terminavam as filmagens, fazia um álbum com as fotos de cena do fil-
esse in erro e com o lançamento garantido. e com 111 • e, com este material, negociava o acabamento e o lançamento - có-
[... ] Normalmente, quem distribui meus fi! - pias, publicidade, circuito etc. - com os distribuidores.
ou a Paris Filmes. Ou qualquer distribuidora, :~~:aqo u: ~;çaPln'esa~~I-Pauli.sta
em 50% E ' d egocro comIgo Para Alfredo Sternheim, diretor que trabalhou sob contrato com os mais
de cinema. ~ so pro uzo. Eu sou o camarada que dá mais trabalho ao pessoal .uuantes produtores da Boca, quem melhor personificava a figura do pro-
duror era Alfredo Palácios, "que conciliava a imagem tradicional- do
I ipo que a gente conhece pelos livros, nos moldes hollywoodianos - com
asp~c70~ntreVista concedida a lnimá Simões, ele explicaria melhor este .IS exigências da Boca do Lixo". Rigoroso nos prazos, mas paternalista,

Palácios muitas vezes trazia a idéia para o filme e encomendava o rotei-


10. Sternheim destaca também, como bastante representativo do sistema,
Eu tenho um certo crédito porque eu entre o filme no
profissionais responsáveis, pago à altura do ~e d prazo marcado, Contrato ":1 ias Cury Filho, que, tendo ingressado no mercado cinematográfico pela
o dia que ele precisa cumprir o decreto Esq ,pe em e tenho filme pronto para distribuição, era reconhecido pelo tino comercial, por sua habilidade "es-
. se e o meu sucesso 50o/c 'G I
quem paga a minha produção é o exibidor.8 . o e a ante; petacular" em trabalhar o lançamento dos filmes, criando um clima de
-xpectativa com material de publicidade em jornais, orientando a con-
fecção dos cartazes, "fazendo" as salas exibidoras.
di ~bci~e,:na da ~~ca da Lixo era feito de elos interligados _ produção
istri Ulçao e eXIbIção - d '. ' No espectro de produtores da Boca do Lixo, é possível distinguir, nes-
d . ' uma ca ela produtiva de tipo industrial O
Ia primeira fase (1970-1975), uma gradação que vai de um pólo mais eliti-
(:J:~~ent~~ d~ ~alante sintetizam bem esse sistema de produção: crédit:
zado, "de classe", como a Cinedistri de Osvaldo Massaini e Aníbal Massaini
, . erro a e~o, tem~o de filmagem reduzido, compressão de custos
espinto profissional e lei da obrigatoriedade Emb 1 d ' Neto, até empresas e produtores como o experiente e ousado Manoel Au-
processo de acumulação. . a a os por um selvagem gusto Cervantes, os sagazes investidores Alfredo Palácios e A. P. Galante,
Elias Cury Filho (da Brasecran), Alfredo Cohen (da Brasil Internacional),
; Cf. João ~i1vério Trevisan, 1982, p. 73. Adone Fragano (Olympus Filmes), Cassiano Esteves (E. C. Distribuido-
Cf. Inlma F. Slmões, 1981a, p. 29. ra e Importadora e Marte Filmes) e vários outros menores.
Assim comenta Sternheim:

52
53
A lOOU D tAIXA A IODO VAI'OR: ,Q70·191

Havia realmente uma hierarquia. Havia produtores classe A, como o Oswaldo M,ldlll/fl de cedro (1 (
), r 'alizLl em 1969 .sel~primeild'o fi)lmd~,.~euda1;;;:-
Massaini, que se sentia um rei, com uma certa razão, porque era o único produtor di ~ Nelson Telxelra Men es, mglO o
IrI "/I/I~fl("() (em 0- ireçao com ." di do na prática
que tinha uma Palma de Ouro no escritório. Na ante-sala do escritório dele havia , C". 1d f e considera seu apren iza
\11 111:1 montagem tina alta, qu . d .c, ~ no
uma vitrine com a Palma de Ouro. Quem é que podia ter isto? ' .. ~ " Ainda em 1969, dirige a comédia 2000 anos e conJ'"saoe, ,
I
, I, I II ÇLl . . - de Dede
'. A 'lha dos Paqueras ambos com roteiro e atuaçao
11111 ~ 'gulOte, z ' 1 d di t mas
A partir de 1975, quando passa a atuar mais agressivamente no mercado . d b r d a expressão pessoa, e Icou-se a e
1I1(In'1 A partir ai, uscan o um d d. .
como distribuidora, a EMBRAFILMEacaba por incorporar em suas práticas . . li d 1971 Cio uma ver a eira
,11.llldricos com clima erótico, rea izan o, em , ,
alguns métodos da Boca do Lixo, como, por exemplo, "o avanço sobre a
J,/I(lfria de amor. . d Clá diafil
distribuição", isto é, o adiantamento da receita ao produtor, que poderia Cio uma verdadeira história de amor é o primeno ~ ~e e .au
utilizá-Io na feitura do filme. Esse método - trabalhar com dinheiro adian- l'ort ;ol'i como diretor de fotografia. A parceria Fauzi e Portl.oli renderia umda
tado pelo distribuidor/exibidor -, utilizado no setor privado, foi, como . . d dentre os quals os sucessos
A e
I I i ' de filmes dos mais vana os generos, fi (1972)
vimos, fundamental para o êxito alcançado pela Servicine. Paradoxalmente, . al um aceno da crítica, Sinal vermelho - as emeas ,
IlIlhllco, e, com g . S d ~ (1974) filme bem produ-
depois de Lucíola, o anjo pecador, filme com que, pela primeira vez, con-
'111. lançou Vera Fischer como atnz, e e uçao . ' rblico " S 1"
tou com recursos e serviços - avanço sobre a distribuição - da estatal . . atrau um pu ICO zona u ,
/1(10, com pretensões artísticas, que visava
EMBRAFILME,
a Servicine se desfez. Separados, Palácios e Galante continuaram I um Sandra Bréa e Ney Latorraca no elenco.. , . _
produzindo, o primeiro com a Kinoarte Filmes e o segundo com a Produções ....
1 de Cio uma verdadeira histeria de amor era do nova
O roteno micta , . -
Cinematográficas Galante. 111l.uiz Castillini. que trabalhava na área operacional- câmera, proJeçao,
vidcoteipe - da antiga TV Tupi. Diz ele:

FEITOS PELA VIDA, FORMADOS PELA TÉCNICA F' ma coisa engraçada. Eu trabalhava na antiga TV Tupi, na á~ea opera-
0 1 :as
fazia algumas tentativas de escrever, já que estava num I~~lO em que
1
\ U)I1a, a im ortante. Numa ocaSlao, surge o
Os produtores provêem a base econômica, mas quem realiza os filmes .1 .scrita - novela, teleteatro etc, - er. P" . r . eu tenho uma idéia
são os artistas e técnicos. No início dos anos 1970, estava em curso o S.tlatiel Coelho (que era sonoplasta) me dizendo: Ca.stlI1l11, y, pra A

. tem um produtor querendo filmar, mas eu não.sel escrever. oce esc::: fita
desenvolvimento de um mercado de trabalho para profissionais (e ini-
ciantes) de formação e origens diversas, que encontraram no efervescente mim?" Eu nunca tinha lido um ro~ei~o: mas ~es~lvI enca.r:~i~:~:Se:ae~iViSãO do
. . da com as linhas gerais da hlstona, mais a gumas I
ambiente da Rua do Triunfo um campo para se afirmarem. Em sua ava
M: ~ então eu escrevi Uma verdadeira história de amor, que, com algl.umdas
maioria, eram trabalhadores - diretores, roteiristas, fotógrafos etc. - i cxto. b fil d Fauzi Mansur bem rea iza o,
modificações no texto, resultou num om I me o '
que estavam sendo "feitos pela vida, formados pela técnica" no caldo
bem dirigido.
cultural da Boca do Lixo.
Um dos profissionais atraídos para a Boca foi Fauzi Mansur (Fauzi , . d TV Tupi onde permaneceu
Antes de ser contratado como recmco a ,
Abdalla Mansur, São Paulo, 1941). Tendo assistido aos cursos da Comissão danos Luiz Casrillini (Barretos, SP, 1944) trabalhou com~ pro-
Estadual de Cinema e da Escola Superior de Cinema São Luís, nos anos ~10~ ~Zt de 'salas de cinema em Barretos, sua cidade natal e, depOIS, em
)CClOI11Sa . . a Boca do
1960, Mansur iniciou-se profissionalmente na atividade fazendo assis- -o Paulo Depois de Cio, sua carreira como rotemsta n
,S antos e S a . d oreiros
tência de montagem de Glauco Mirko Laurelli, em Riacho de sangue (Fer- T balhando por encomen a, escreveu os r
Lixo começou a engrenar. ra , . d .D _
nando de Barros, 1965) e Anjo assassino (Dionísio Azevedo, 1967). Assis- d iblico de Tony Vieira (Sob o dommzo o sexo, e
de alguns sucessos e pu . h' (O oderoso çaranhiio)
tente de direção de Carlos Coimbra em Cangaceiros de Lampião (1966) . 'b'do.Traídaspelodesejo),AntoOloB.T orne p b
seJoproz z ,

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54
A 10QUI Dl AIXA A IODO VAVON: lQ10·191

e Ro~e~to Mauro (As mulheres sempre querem mais; Desejo violento). E uma
"I \ 1l1\.IS". m cs riior luuno-arn
I 111livros, 1 .airo
'ri an pre isa se re ignar com seus cenários.
ou filmes só tem sua miséria para vender. 10
comedia (O sexo mora ao lado), em parceria com o principal roteirista da
Boca, Ody Fraga - que dirigiu o filme. Para Fauzi Mansur, escreveu A noite I~n(lm, conforme anotou Rey, "muito forasteiro entrou no Soberano para
do desejo, um filme cuja exibição foi proibida pelo regime militar. Sobre
'1lIlIprar cigarros e acabou faturando um cachê numa ponta. Bastava do-
o filme, comenta Castillini:
111.11a esquina para ter physique du rôle".
l.ssc retrato das formas de recrutamento evidencia a grande mobilida-
A noite do desejo conta a história de dois operários - interpretados por Ney
1II dos profissionais entre áreas afins com o cinema - como o teatro, o circo,
L~torraca e Roberto Bolant - que, alienados do sistema, trabalham o mês in-
\I I. lio, a televisão -, típica de uma indústria incipiente e precária. Evi-
telr~ p~r uma noite de farra. A história começa com os dois recebendo o salário
dl'll 'ia, também, que as especializações (a divisão de trabalho) da produ-
na fabnca onde trabalham e saindo pela noite paulistana, onde enfrentam coisas
terríveis. Os dois vão sofrendo e passando por coisas de que eles não têm a menor 1.111.ulcural ainda não estavam bem definidas. II Contido nessa mobilidade
noção, pr~curan.~o diversão e encontrando um mundo surpreendente. Dentro I d o acaso, recorrentemente referido pelos entrevistados como o motivo
de um regime militar ferradíssimo, complicadíssimo, ingenuamente eu fui escre- 1,.1 ra "entrar para o cinema". Esse movimento em direção ao ambiente cine-
vendo o que achei qu~ podia escrever. O filme foi para Brasília e a Censura proibiu. IIl.llográfico também era motivado pela percepção do setor como de um
Era u~ filme.esse~~lalmente político, mas não um filme graficamente político. p.lIamar artístico mais relevante e moderno.
A pol:tlca era implícita, Não chegou a ponto de ter prisões, mas tivemos de prestar Tony Vieira e Oavid Cardoso são dois exemplos de carreiras bern-su-
depoimento, essa coisa. 'I'didas na Boca do Lixo. Embora com percursos de vida e de obra com-
I'lrlamente diferentes, eles construíram carreiras de certo modo simétricas,
Como Castillini, outros trabalhadores da Boca do Lixo foram recrutados IOlnando-se figuras lendárias neste universo. Ambos começam como atores,
nas emissoras de televis~o.- na perseguida TV Excelsior, que, em seu auge, dl'~cnvolvem personagens "machões" - marcados por características ar-
chegou a alugar os estúdios da Vera Cruz e cujas atividades foram encer- I.ligadas no imaginário popular -, em filmes de aventura com "mulher
radas em 1969, e na decadente TV Tupi, que fechou suas portas em 1980.9 IH'1.1dà', e depois enveredam pela produção e pela direção. São "heróis Boca
Marcos Rey, conhecido escritor no campo da literatura de massa - com do Lixo" para o público, pelos tipos que construíram nos filmes, e para a
~ítulos. d_esucesso junto ao público juvenil- que também foi atraído pela 1'1 ópria Boca, pelo que representavam como exemplos de êxito pessoal e
maldição da Rua .do Triunfo", onde trabalhou como roteirista profissio- I1 n.mceiro _ valores fundamentais para o meio da Rua do Triunfo. Heróis
nal, faz uma descnção que sintetiza, com certa amargura, a condição dos populares que se inserem no imaginário processado pelas telas grandes do
trabalhadores que afluíam ao mercado de trabalho da Boca do Lixo (repre- 11•1ís nos anos 1970. Cidadãos exemplares - pelo trabalho e esforço -, para
sentado pelo Bar Soberano, espaço fundamental para aquela "indústria"): 11ntétier cinematográfico da Boca do Lixo, pelo que representam com suas
1 r.ijetóriasde sucesso e enriquecimento.
À tarde de~cansava indo ao Soberano, onde tomava café em copo, testava a Aos 12 anos, Tony Vieira, aliás Mauri Queiroz de Oliveira (1938-
grossura de minhas cenas e travava contato com o infinito e variado elenco da
11)1)0), deixou a casa dos pais para acompanhar um circo que passava por
Boca: gente do falecido rádio-teatro, descontratados da TV, artistas de um circo
'lia cidade natal, Dores do lndaiá, em Minas Gerais. Nele, trabalhou como
que empenhava a lona, velhas caras da Atlântida, promessas do teatro amador
e~tras crôn.icos : até atores e atrizes de valor comprovado. Com aquele material
Fitzgerald pmals poderia escrever "O último tubarão" , nem Mail ai er "O parque 111
Apud José Mário O. Ramos, 1995, p. 24. Cf. Marcos Rey, 1980, pp. 92-94. Ver tam-
bém, deste autor, o romance Esta noite ou nunca, 1985.
1I Conceitos desenvolvidos por Renato Orriz, op. cit., pp. 80-86.
9 A esse respeito, ver Renato Ortiz, 1991, e Fernão Ramos, 1995.

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A lOQUE O AIXA E A TODO VAPOR: 1970-1975

baleiro, apresentador e trapezista, conhecendo as manhas do picadeiro e das ;ringo, T ny Vieira interpretou, produziu e dirigiu cerca de
\ ) -pois de
estradas do interior. A partir de 1960, já em Belo Horizonte, foi locutor \ , I.lm ·s de "faroeste brasileiro" e policiais. Misturando sexo e aventura
de parque de diversões e animador de programas de telecatcb na tevê. Tra- I III produ ões de baixo custo e forte apelo para as "c 1asses popu l"ares,
balhava na TV ltacolomi enquanto fazia o curso do Teatro Universitário. 11 lunaiou para o cinema nacional uma versão do herói solitário - a ser-
Em 1968, mudou-se para São Paulo e passou a atuar em novelas da TV 1\0 da justiça e do bem -, do mocinho justiceiro, que nasce no =»:
Excelsior, em que representou o papel principal no seriado Psiu, taxi, sob 1111 -ri ano e, nessa época, andava circulando com sucesso nos spaghettl
a direção de José Vedovato. No cinema, começou em pequenos papéis, como I/,,'\/{'rn italianos e nos policiais classe B americanos.
nos dramas A vida quis assim e Enquanto houver uma esperança, de Edward Em seus filmes, sempre referenciados no cinema B estrangeiro, certos
Freund. Em seguida, atuou como coadjuvante, principalmente em filmes Idll/.l"universais - vingança, resgate da honra, solidarie~ade humanitária
com temas sertanejos, como Panca de valente (Luís Sergio Person, 1968), I u . _, resolvidos pela violência, coragem e desprend1mento, recebem
Corisco,o Diabo Loiro (Carlos Coimbra, 1969), Uma pistola para Djeca (Ary 11111 tratamento cinematográfico primário, plenamente adaptado às con-
Fernandes, 1969). Passou a protagonista nos faro estes Um pistoleiro cha- dl~()esde produção da Boca. Neste "imaginário de revista de quadrinhos",
mado Caviúna (1971) e Quatro pistoleiros em fúria (1972), ambos sob a \olly fez par romântico com Claudete Joubert em gran~e parte d~s fil-
direção de Edward Freund.12 111 .S, completando com Heitor Gaiotti, em papéis cômicos, um trio de
Tony Vieira é alçado ao papel de galã de filme romântico emAs mulheres .IV ·ntureiros. Com este esquema, realizou Sob o domínio do sexo (1973),
. 13
amam por conveniência (Roberto Mauro, 1972), filme que tem uma sinopse I >mjo proibido (1973) e A filha do padre (1975,) dentre muitos outros.
sugestiva:

1\ 1\ obra completa de Tony Vieira, abarcando seus trabalhos como ator, produtor
A história de um idealista que está fazendo um filme numa cidade do interior, l: diretor, incl LIi mais de 40 filmes: A vida quis assim (1966); Enquanto houver uma
onde conhece uma jovem de rara beleza. Ele se apaixona por ela, julgando ter I'sperança (1968); Panca de valente (1968); Corisco, o Diabo Loiro (1969); Uma pzs-
encontrado a pureza que tanto procurava, mas descobre que a jovem foi amante tola para Djeca (1969); Um pistoleiro chamado Caviúna (1971); Quatro pistoleiros
de um bandido e tivera outros homens em sua vicia. O romance continua, mas l'rnfúria (1972); Gringo, o último matador (O matador erótico) (ator e dir., 1972);
ela o abandona, voltando para os braços do marginal e mergulhando no submundo. Sob o domínio do desejo (ator, prod. e dir., 1973); Desejo proibido (ator, prod. e dir.,
Ele faz sucesso em sua carreira, tornando-se um diretor consagrado, mas vai 1973); O exorcista de mulheres (ator, prod. e dir., 1974); A filha do padre (ator,
procurar reconquistá-Ia para a sociedade e para a vida. prod. e dir., 1974); Os pilantras da noite (Picaretas sexuais) (ator, prod. e dir., 197~);
Traidas pelo desejo (ator, prod. e dir., 1976); Torturadas pelo sexo (ator, prod. e dir.,
1976); As amantes de um canalha (ator, prod. e dir., 1977); Os violentadores (ator,
De galã, Vieira passa a diretor com Gringo, o último matador (O matador prod. e dir., 1978); Os depravados (ator, prod. e dir., 1978); O matador sexual (prod.
erótico) (1972), valendo-se de sua experiência e de uma oportunidade, c dir., 1979); Liberdade sexual (prod., 1979); O último cão de guerra (ator, prod. e
conforme relata Ozualdo Candeias: dir., 1979); A dama do sexo (É hora de saber que a sua mulher quer sair da rotina)
(prod., 1979); Tortura cruel, fêmeas violentadas (ator, prod. e dir., 1980); Um me-
nino ... uma mulher (ator, 1980); Condenada por um desejo (prod. e dir., 1981); As
Havia um filme que era para o Freund dirigir, mas o Comendador (Francisco
taras de uma mulher casada (O amor uniu dois corações) (prod., 1981); As amantes
de Assis Soares, produtor) brigou com ele. Então o Comendador convidou o Tony,
de Helen (prod. e dir., 1981); Suzy ... sexo ardente (prod. e dir., 1982); Neurose sexual
que aceitou. E deu certo. A fita deu muito dinheiro. O Tony encheu o Comendador
(prod. e dir., 1982); Desejos sexuais de Elza (prod. e dir., 1982); A cafitma de ment-
de mulher - um monte delas - e fez cinema até o fim da vida. nas virgens (O kapanga) (ator, 1982); Corrupção de menores (~tor, pro~: e dir.,
1983); Meninas de programa (Pornogirls) (prod. e dir., 1983); Prostituidas pelo VICIO (prod.
e dir., 1984); Banho de língua (prod. e dir., 1985); Venha brincar comigo (prod. e
12 Cf. Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda (orgs.), op. cit., p. 568. dir., 1985); Garotas da boca quente (prod. e dir., 1985); Meninas da b... doce

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A lOQU D AIXA E A lODO VAPON: '''0-19/

Tony Vieira é um caso exemplar de diretor "gestado, parido e solado" 14


11 p.I1':IO 'Xl .rior". 'Icvc um (11m .rn qu rn cinho passava a cavalo por duas
na Boca do Lixo. Em 1975, associado ao comerciante e industrial cornen- 1111It! .tas: uma in li ando Brasil, outra México. [...] Ele fazia o que a gente chamava
dado r Francisco de Assis Soares, já co-produror de seus filmes, fundou a de tuestern feijoada.
produtora MQ Filmes. MQ, além das iniciais de seu nome, significava
"marca e qualidade". Os filmes eram realizados num esquema de produ- Além de para as peripécias dos filmes e das filmagens, Castillini chama
ção bastante precário, mas rentável o suficiente para permitir a continuidade I .rt .nção para um ponto que, acredita, não tem recebido a devida aten-
das atividades da empresa, atraindo investidores. O desempenho comer- e .to quando se aborda o popular (e o nacional) no cinema brasileir~, .que
cial de alguns trabalhos foi surpreendente até mesmo para o produtor. I ,I produção elaborada, de fato, por realizadores - diretores, rotemstas
I I .,- vindos das camadas populares. Tony Vieira era o perfeito represen-
Vou dar um exemplo. A pior fita, a mais ordinária que eu já pude fazer, foi r.mte de um tipo de cinema que, de certo modo, representava seu públi-
Sob o domínio do sexo. Nesta fita eu tinha só 25% e foi feita em duas semanas, I 1), Segundo Castillini,
com quatorze latas de negativo. Todo mundo na pior. Eu não tinha dinheiro, estava
começando, e foi tudo no sufoco [... ] e foi a fita que mais rendeu, que mais deu
essas coisas podiam ser reanalisadas, mas sob um ponto de vista ... Como uma
o que falar. Tem até uma cena em que apareço dizendo "corta" e eu peguei aquilo
lurrna popular, como uma forma folclórica, um tipo de cabeça que agia den-
e dublei "segue em frente". No fim foi o maior sucesso, deu muito dinheiro. Então,
I1 () do cinema brasileiro. E que deve ter gente agindo por aí, hoje. Aquele ra-
você vê, quando a gente pensa que sabe das coisas ... Depois eu melhorei, me
p,I"I., bombeiro lá de Brasília, o Afonso Brazza ... Ele até casou com a Claudette
aperfeiçoei, mas não fiz o mesmo sucesso de Sob o domínio do sexo [...] Quem pode
explicar isso? Ninguém. 15 [oubert [ex-rnulher do Tony]. Era fá. Então, pegou tudo, não é? Deve ter ou-
I ros por aí.

Escritor de vários roteiros de filmes protagonizados, produzidos e di-


Na época dos spaghetti westerns, um filão correspondente desenvolveu-
rigidos por Tony Vieira, dentre eles o que parece ter sido uma "trilogia do
vc na Boca do Lixo. Os faroestes brasileiros made in Boca tiveram uma
Sob o domínio do desejo (1973), Desejo proibido (1973) e Traí-
desejo" -
íorte e contínua produção. Entre outros, Edward Freund, Rubens da
daspelo desejo (1976) -, Luiz Castillini revela que a parceria entre eles era
Silva Prado e Custódio Gomes foram realizadores assíduos no gênero.
realizada por meio de um gravador: Tony Contava a história, registrando-
(;ênero que, pelo talento de seus praticantes, acumulou pérolas do
a numa fita de áudio, e ele passava para o papel, mudando alguma coisa
folclore do meio cinematográfico, conforme relatam alguns de seus con-
e dando uma feição de roteiro. Sobre o tipo de cinema realizado por Vieira,
icrnporâneos.
Castillini comenta, carinhosamente:
Ozualdo Candeias:

E os filmes de caubói dele? Tem um que é um clássico da fala kitsch: o per-


Este cara, o Freund, em meados de 1950, começou a dirigir uma fita, em
sonagem entra no escritório de um despachante e diz: "Eu quero um passapor-
Campinas, chamada Santo Antonio e a vaca. Ele fazia televisão tam~ém e e~a um
pé no saco. Mas, em determinado momento, quando a Boca SurgIU, ele pIntou
lá e começou a fazer fitas com o Comendador (e com o Tony). Ele era polonês
(pro d. e dir., 1986); Eu adoro essa cobra (prod. e dir., 1987); A famosa língua de
, era um cara letrado. Mas era muito ruim para dirigir. E metido a fotógrafo
ouro (prod. e dir., 1987); Calibre 12 (ator, prado e dir., 1987);julie ... sexo à vontade
(prod, e dir., 1987); Scandalous das libertinas (prod. e dir., 1987). também. Depois, fez uma fita com o David Cardoso como ato: p~incipal ~ lV!eu

14 Conforme definição de Ozualdo Candeias. "Solado", explica ele, "é o termo usado nome é Trindad -, porque o bangue-bangue, principalmente o italiano, os Trinitys
pelos instrutores de vôo para indicar que o aluno está preparado para voar sozinho". e tal, ainda davam pé.
15 "D' de T ..
eporrnenro e lony Vieira ao IDART,em 1978", in Inimá F. Simões, 1981a.

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ATOOU U AI"XA A -'UUO VAI'UM: IVlVolvr

1IIIIIl',!>,IIIl' notar que 'SLa linha de filmes tem uma certa tradição no
Claúdio Portioli:
I I ll, qllt' I assa P ,I drarna sertanejos e, principalmente, pelos filmes
I , IIII',,\~'(),n s anos 1950 e 1960, que aculturaram a narrativa do western
~nclusive tem uma cena fantástica com o Carlos Bucka, que era aquele ator
multo gordo. Ele teve de montar num cavalo, e o cavalo arriou, caiu. Em vez de 1'111IIIIIH:5 raizes regionais. Porém, neste momento em que a proposta
o Freund usar esta cena no filme, com o Bucka levantando o cavalo nas costas I 111,11
() .upar o mercaclo, fornecendo produtos que satisfaçam as expec-
ele cortou tudo e jogou fora. Era uma comédia, tinha que aproveitar! ' I 111d\ \' .radas no público por décadas de consumo de filmes estrangeiros,
I 11I1IItI . de substituição por similar nacional leva à imitação". Em outras
Luiz Castillini: I ti I I,IS, no processo de substituição da produção estrangeira na áreado
I, lI/lI comercial, ao invés da estratégia de atrair o público oferecendo
~odo mu~do sabia que tinha um pouquinho de Ed Wood dentro de si. E até I, IIIl'I1l0S cinematográficos que o filme estrangeiro não podia oferecer
gostava~~s dls~o..A gente até curtia. Tinha coisas maravilhosas, geniais, nos filmes li' IIIo\Sbrasileiros, ambientações marcadamente regionais, elenco com a
de caubói brasileiros. Por exemplo: o mocinho entra no saloon, abrindo aquela 1111\,1 feição), optou-se, na maior parte das vezes, por simplesmente co-
porta de vaivém. A garçonete entra em campo e pergunta: "O que é que o senho \1111,mimetizando o modelo estrangeiro. Mas, como somos incapazes de
desAe. p.
," O moc,lll
. ho responde: cc Eu quero uma mesa". Ela sai, ele fica parado ali,r
1III'i.lr. ..
a camera tambem. A garçonete volta e põe uma mesa na frente dele.
I kve-se atentar para os mecanismos da relação da produção da Boca
dI, Lixo com a produção internacional, o modo como a produção nativa

G
Nesta lin~a de produção revela-se, de modo exemplar, a prática da Boca
II se apropriando de temas e ambientações estrangeiros, "atualizando-se".
de s~ apropna.r ~a produção estrangeira e realizar seu produto calcada na
1111\exemplo claro são os filmes de cangaço. Tendo atravessado os anos 1960
~ealtdade ~rasllelfa, efetuando uma verdadeira política de substituição de
1 l om as características de um gênero - com temas, ambientações, icono-
importaçoes. Neste momento, os modelos de cinema estrangeiro a ser
\'1.ifia e personagens definidos -, esses filmes, cuja produção acabaria
! enfl~ntados não ~ão mais os originais, mas suas versões B ou C, uma pro-
1'r. 11icamente restrita à Boca do Lixo, irão sofrer uma "adaptação" no início
duçao fok~ que d.Issolve (e pulveriza) o imaginário cinematográfico - te-
.los anos 1970, com os cangaceiros sendo substituídos pela imitação dos
mas, ambientes, iconografia, conteúdos ideológicos etc. Neste caso a refe-
1',1ingos, Trinitys e Djangos dos spaghetti western italianos (por sua vez,
rência não é mais o autênticowestern do cinema americano, mas o já de- I, "perversões" do modelo americano original). Os personagens desses fil-
gradado (com exceções) western de produção italiana (muitas vezes falado
IIH:Sdespem-se das roupas de couro e passam a usar poncho. "O cangaceiro
em inglês). A quest~o não é mais estética, mas mercado lógica: "É disto
queria atingir o público pela diferença; o gringo paulista quer atingi-Io
\ que o povo g~~ta? E i~to que está vendendo? Então, vamos fazer". -1 11 .la semelhança. A passagem cangaceiro/gringo revestiu-se, na Boca do
Essa estrategIa, dommante na Boca, não era, no entanto, isenta de críticas,
I .ixo paulista, de qualidades didáticas, tal a nitidez do processo."16
como se percebe neste depoimento de Ozualdo Candeias:
Uma atitude radical de apropriação (para marcar uma rejeição) do es-
I rangeiro pode ser observada em Rogo a Deus e mando bala (1972), cujos
Por exemplo. no ~ang-bangamericano não tem um cara que tenha a metade
.réditos são propositadamente apresentados "em inglês" - como nos faroes-
da categona de bandido de um Lampião. O conteúdo do nosso western era bem
rcs italianos -, acabando por revelar sua óbvia falsificação:
melh~r. [Lá] Era tudo vagabundo matando os caras atrás do toco, mas o cinema
am~nca~o cri~ aquelas coisas: sacar [a arma] primeiro, aquelas roupas e tudo o
~als. E e.por ISSO que todo mundo entra nessa: é americano, vê. O nosso, nós
na~ valonzamos. Essa é que é a grande merda, porque se pensa deste jeito não
é? E colonizado. ' 16A esse respeito, ver Jean-Claude Bernarder, 1975, p. 14.

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D AIU A AI' 11: 1 0.19

Ficha técnica: Rogo a Deus e mando bala


I' (·It·('.." um bilh '[ '. Eu I nh ess bilhete até hoje: "Amigo Mazza, favor
,,11I1\'1() ard s ,qu I go ta de cinema". Eu já não dormi aquela noite.
Roteiro, fotografia e direção: O. Oliver (Oswaldo de Oliveira)
Montagem: Syl Reynolds (Sylvio Renoldi)
I ),Ivid ardoso foi contratado para trabalhar como continuísta - um
Música: Francis Decalfine (Franciso Decalfine)
1I'II11d assistente de direção - na produção de O Lamparina, dirigi-
Intérpretes: Mark Wayne (Marcos Miranda), Veronica Teijido, George Karan,
dll por lauco Mirko Laurelli, e fez também uma pequena participação
Marlen Kos (Marlene Costa), Ian Syl (Itarnar Silva), Walter Seyssel [... ]
'111110ator. Trabalhou como assistente de direção e teve um pequeno papel
1111Noite vazia (1964) e Corpo ardente (1965), ambos de Walter Hugo
o sentido dessa apropriação é ressaltado pelo montador Sylvio Renoldi
co-produtor do filme: ' I houri. A seguir, equilibra estes papéis trabalhando em vários filmes como
I istcnte de direção e diretor de produção, às vezes atuando, até apare-
I1I .orno protagonista em Férias no sul (1967) e Agnaldo, perigo à vista
Esse filme a ge~te ~ez de gozação. Nós estávamos tão puros com esse negócio
de. bangu.e-bangue italiano atrapalhando a vida da gente que resolvemos fazer uma (I %8), dirigidos por seu conterrâneo Reynaldo Paes de Barros. Sempre
brincadeirg, [...] Eu fui co-produtor desse filme, o Oswaldo de Oliveira tarnbé 11111\0ator e técnico, procurando ganhar (os salários) dos dois lados, tra-
S .. em,
com a ervicine do Galante. Deu pra pagar. Sempre dava pra pagar. h.illiou "em mais de 30 filmes", começando pela assistência de produção
I1 ( chegar a produtor executivo.
David Cardoso (Maracaju, MS, 1942) é outra legenda do cinema da 1\ carreira do ator David Cardoso deslancha após protagonizar o galã
Boca do Lixo, do qual foi ator, diretor e, sobretudo, produtor de sucesso. dll par romântico - com a iniciante (e com vocação para star) Sônia
Criado em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, onde cursou até o ensino 111.lga- de A moreninha (Glauco Mirko Laurelli, 1970). Em seguida,
médio e prestou o serviço militar, mudou-se para São Paulo, em 1962, para 111Ia em A herança (Ozualdo Candeias, 1971), que faz uma transposição
trabalhar na Folha de S. Paulo como contato e fazer um cursinho preparatório do cnrrecho de Hamlet de Shakespeare para o Brasil interiorano dos anos
para a Faculdade de Direito, mas foi vencido por sua paixão pelo cinema 1')70. O filme não tem diálogos, "substituídos por um inteligente traba-
como ele próprio relata: ' lho sonoro que ressalta a música e ruídos utilizados de forma não rea-
hvra". Já com o nome firmado nos cartazes e experiência no métier, David
Eu queri.a trabalhar em cinema, mas não sabia como começar. Aí, dividindo ( :.\fdoso investe na carreira de produtor, criando a DaCar Produções.
um prato feito com um amigo meu, ele falou: I )iz ele:
- E aí? Está conseguindo alguma coisa com o cinema?
-Não. Eu já tinha feito uns 20, 30 filmes para os outros. Todo mundo estava ga-
- ~ô, você falou que viu quatro filmes no sábado. nhando dinheiro e eu, nada. Então, pensei: "Mas, meu Deus do céu, não é pos-
- E, às vezes eu vejo cinco. Tem um monte de cinemas na cidade. ,(vel! Isso que eles fazem eu faço também! Só é preciso levantar o dinheiro pra
A ~ Tem um amigo meu que é diretor de cinema. Ator de cinema. O maior í.rzer o primeiro filme".
corruco do Brasil.
- Quem? Para dirigir o primeiro filme de sua produtora, Caçada sangrenta (1973),
- Mazzaropi.
Ihvid convidou Ozualdo Candeias. O filme, rodado no Pantanal mato-
Eu quase caí pra trás.
grossense, teve problemas com a Censura e precisou ser cortado pelo pro-
- Mentira!
dutor. De todo modo, o estilo autoral de Candeias, que procurava aplicar
- É. Meu pai tem uma casa em Santos ao lado da casa dele.
no cinema as próprias idéias, não se encaixava bem no projeto cinema-

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A TOQU D AIXA A TODO VAI'OR: 1970.197

tográfico de David Cardoso,


lizado. Cardoso relata:
que visava a um cinema comercial bem rea-
I, illll',I,d() d .. 'na n .pisódio 'Pesadelo macabr~", do filme Trilogia do r:
I 1II1 () estranho mundo de Zé do Caixão. Depois, trabalhou como fotografo
III \ -nu ator em filmes dirigidos por Ozualdo Candeias, Ody Fraga e Fauzi
Convidei o Ozualdo Candeias porque eu já havia trabalhado com ele. Primeiro,
f\ 1 II\W r, para quem fez assistência de direção em A noite do desejo e em
por respeitar bastante o cinema que o Candeias faz, que é um cinema margina-
, ,1l/rão. Paralelamente, produziu, dirigiu e fotografou foton~velas ~ara a
lizado, [... ] lutando contra as dificuldades, com idéias próprias. Eu sempre gostei
11VISI:tMelodias. A esta experiência na feitura de foto novelas sao creditadas
do camarada assim meio autodidata, o cara que tem uma visão e procura fazer
a coisa dele. E sabia que ele era um bom profissional, um cara honesto, antes de I qualidades que viria a demonstrar na direção de filmes: a capacidade de
mais nada, coisa rara em nosso meio. Honesto em todos os sentidos, em relação II1\ Ilp3r, o olhar estético - de bom gosto - de fotógrafo, um talento natural
a dinheiro, em relação à proposta, em relação a mim. Só que, de qualquer forma, I 1IIIIita intuição. . _ ,
foi um filme de aventura que eu queria fazer, mas não foi o meu filme de aven- 1\ imagem de galã, a divulgação de seu nome em novelas ~e televIsa~, alem
tura. Porque tem uma pincelada dele que é aquele cinema hermético, fechado, 111' boas bilheterias, proporcionaram a David Cardoso uma Imagem dIfere~-
difícil de entender, com metáforas. Não foi um sucesso. A fita mal se pagou, porque I I.ltb daquela dos outros produtores da Boca d~ Lixo, facilita~do a ~p.roXI-
tinha mulher pelada, mas tinha aquele cunho pesado do Candeias. 11I.I(,::íO com investidores do empresariado paulista, como Jose Er~Ulo de
Moraes Filho e Guilherme Mellão, com os quais estabeleceu parcenas para
Para a segunda produção, David Cardoso procurou servir-se de outros I produção de A ilha do desejo e de outros fil~es ~a D~Car P~~duções. _
critérios:
[can Garret firmou-se como diretor com mquietaçoes est~tlcas, ~rtesao
I ompetente, capaz de realizar filmes com boa resposta de bIl~etena, ala-
Bom, então eu pensei: no próximo, quem eu vou pegar? Tinha um camara- v.uicando a produtora e a carreira cinematográfica do ator David Cardoso.
da que fazia fotonovela por aí. O nome dele era José Gomes e Silva, que é o Jean
I ilha do desejo (Paraíso do sexo) foi o primeiro grande sucesso da dupla,
Garret. Ele era um bom fotógrafo. Um português inteligente. Analfabeto, mas
11111 verdadeiro fenômeno de público em 1975, que superou alguns filmes
inteligente demais. E eu perguntei: "Você quer dirigir meu filme?" E ele: "Quero".
.uncricanos lançados com grande investimento publicitário. O sucesso fez
Ele nunca tinha feito nada, só [tinha sido] assistente [de direção] e fotógrafo de
,I parceria repetir-se em Amadas e violentadas (1976), um policial erótico que
cena, mas tinha cabeça de fotografia, de saber das coisas, e tinha umas idéias que
Ilcspertou alguma atenção pelos cuidados com a elaboração formal (para
bateram. Ariano como eu. E eu falei: "Vou acreditar em você. Só que é o seguinte,
Jean: eu tenho mais uns dez que querem fazer. Estou com grana pra fazer esse filme, os padrões da Boca do Lixo). Em seu depoimento, o ator-produtor destaca
que tem gente de nome [no elenco], locação no Guarujá. [... ] Eu não posso pa- "~ICfilme como um dos preferidos de sua filmografia, pelo bom trabalho
gar o que você poderia receber, que seria de dez a 15 por cento. Te dou cinco por r .alizado. Com roteiro do próprio Garret, tinha um enredo "psicologizante",
cento da renda bruta. Se der certo, se você quiser fazer um segundo, te dou dez ( ontorrne se pode depreender de sua sinopse:
por cento, e, no terceiro, vamos discutir". Ele fez o primeiro e o filme explodiu.
O filme se pagou com dois meses de exibição. Foi A ilha do desejo. Leandro, um jovem escritor de livros policiais, famoso pelo realismo de suas
obras, mora nos arredores de São Paulo em companhia de uma gover~anta, um
Português do arquipélago dos Açores, Jean Garret (José Antonio Nunes mordemo e uma cozinheira. Forster, seu mercenário editor, é talvez a única p~ssoa
Gomes e Silva, 1947-1996) veio para o Brasil ainda adolescente. Com forma- com quem ele tem contato, pois vive apenas para seus livros e.seu pa~sado infe-
ção profissional em fotografia, trabalhou com vários fotógrafos de moda liz - sua mãe, uma mulher vulgar e casada por interesse, fOI assassinada pelo
pai, que depois comete suicídio. Tais cenas jamais se apagaram da mente do rapaz,
em São Paulo, onde montou estúdio para atuar também em publicidade
lue não consegue libertar-se de um sério complexo que o afasta sexualmente
e propaganda institucional. Seu primeiro Contato com cinema foi pelas mãos
das mulheres, tornando-o um psicopata. Várias mulheres que, de uma fo~~a
de José Mojica Marins, com quem trabalhou como ator, contra-regra e
ou de outra, conheceram Leandro são assassinadas misteriosamente, e a polícia,

66
67
ou " UV UAV
A TOOU DE AIXA A TODO VAPOR: 1910-1915

des~rientada, procura o assassino. As investigações acabam levando até a casa do


l-I, um rt m m lHO, durante um coquetel, em que um intelectual ques-
escritor. Mas a lei nada consegue provar e tudo continua como antes. 17
111111.1 o ·dit r d Leandro por não publicar obras que procurem mesclar cultura
I "IV ·nimcnto. A resposta é direta: "Não adianta, esta é a realidade - o público
Amadas e vi~lent~das foi protagonizado pelo próprio David Cardoso, qlll'l 111 virnento e sangue". O filme tematiza o próprio fazer artístico da Boca
que procurav~ rnserir-se no esrrelaro masculino com uma imagem públi- tllI Lixo, com seus livros e filmes. Mesmo num filme como esse temos um diretor!
ca bem-definIda. Quando de seu lançamento, a revista especializada Ci- uucirista desejoso de inserir um "toque" crítico, imputando aos financiadores
nema em Close Ui8 publicou uma matéria em que o astro afirma exatamente I I 11:1 nciosos a responsabilidade por esta produção cultural de puro divertimento,
o mesmo que disse em s~u depoimento para esta pesquisa: "David gosta tI,1 qual é um dos realizadores.ê''

de aventuras, se~pre qUIS ser galã de policiais, nunca permitiu ser dubla-
do em cenas pengosas. Faz ginástica e regime alimentar regularmente, além Nesse e nos filmes de aventura de David Cardoso, encontramos a ten-
de ~e.preocupar muito com a saúde. Acha que o verdadeiro galã de [filme] I II iva de produzir um espetáculo à maneira dos filmes de ação americanos.
POhCl~ tem de ser mau-caráter razoavelmente bonito, uma espécie de Alain 11,lra um olhar mais crítico, o produto parece não conter credibilidade (ar-
Delon . a tempo (26 anos entre um depoimento e outro) não mudou nem 1.1 11 hando a verossimilhança), já que realizado com material de pouca quali-
sua auto-imagem, nem suas características, nem seus procedimentos, que .l.ule: a representação "realista" da violência nos filmes de ação, no cine-
de certo modo se desdobraram (e permaneceram) em seus outros filmes 111.1 brasileiro, revelaria toda a natureza de nosso subdesenvolvimento audio-
a "estrelismo" é reforçado pelo acionamento específico do erotismo' isual, Resta uma "espetacularidade pobre".
numa exacerbação da sexualidade, como nota José Mário Ortiz Ramos. '
Em Amadas e violentadas temos uma seqüência de perseguição policial com
Assim, presenciamos em Amadas e violentadas um David Cardoso transmutado .uuomóveis. O Galaxie de um bandido, desgovernado, bate em uma banca de jor-
sem qualquer timidez, em glamouroso pin-up. Há uma longa seqüência em que u.iis e depois espatifa-se contra uma enorme pilha de tambores. Nas filmagens,
o ator posa nu de óculos, iluminado de vermelho, para uma fotógrafa e modelo I'l'~soas da produção gritavam: "O Galaxie é para destruir, David?" E o produtor:
que. faz um. discurso sobre a beleza da nudez durante a sessão de fotos . A" esteta " "E. Esse é de 1967. Paguei 10 mil por ele, só para desrruir't."
~al posar Junto com o escritor, respondendo aos desejos do espectador rnascu-
Imo. Mas também não escapa de ser estrangulada por Leandro/David. Em outros Ainda em 1976, a DaCar Produções emplacou novo sucesso de bilhe-
fil~es do ator [e produtor] se repete a contemplação de seu corpo nu ao lado de teria, o drama Possuídaspelo pecado, outro filme apoiado na fórmula título
atrI:es, em poses sempre estudadas. São recorrentes os planos e as fotos de divul- I/Igestivo + trama policial + clima de erotismo. Participando da elaboração
gaçao que mostram David e uma atriz ajoelhados na cama, em posição perfeita do roteiro de seus filmes, por acreditar que "o roteiro é o começo de uma
para ressaltar as formas e os músculos. 19
hoa direção", Jean Garret firma seu nome na Boca do Lixo como artesão
c ompetente, que faz filmes bem-feitos que obtêm sucesso popular, a quem
a ensaísta
e o ator-produtor coincidem, por motivos diversos, na eleição mesmo a crítica mais exigente não fica indiferente. Cuidadoso na elabo-
deste filme como objeto de interesse:
ração das imagens, que procurava compor com rebuscados movimentos de
.ârnera, na qualidade do décor e da trilha sonora, Garret detinha um ca-
pital importante na Rua do Triunfo: sabia trabalhar criativamente em filmes
17 Cf. Brasil Cinema, nO 11. Rio de Janeiro: EMBRAFILME, 1978. de baixo orçamento e rodagem rápida.
18 Cf "U c "
. m astro em roco , Cinema em Close Up, ano II, nO 5. São Paulo' MEK 1976
p.36. . , ,
/0 Idem, op. cit., p. 216.
19 Cf. José Mário O. Ramos, op. cit., p. 213.
'I Idem, op. cir., p. 219. Ver também, do autor, o artigo "Um astro em foco", op. cit.

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69
AlltA A TODO VAI'OH: 19/0·19H
A TOQUe o

. . . . I 2 a 1973, trabalhou como roteirista em emis-


Como Garret, Ody Fraga encarnava o papel de "trabalhador cultural", ,1I1ll •ylvio R .noldi). 9 ado de trabalho ainda
.~ - do mover-se em um merc
cultivando a reputação, quase lendária, de roteirista sempre pronto a de- 'II.IH ti - t Icvlsao, procuran . 1 d d Walter George Durst,
__ TV BandeIrantes, ao a o e
senvolver uma idéia e de diretor eficiente, mesmo em condições adversas. 111\ l!ll .ntc. omeçou na e escrevendo tele-
'I', t Cacilda Becker; depois trabalhou, quase sernpr
Sua biografia inclui experiências as mais diversas, até chegar ao cinema. 1111 ea ro T' R d (em ambas também escreveu textos para
1 .11 ros, nas TVs Upl e ecor
Quando criança, Ody Fraga (Odi Fraga e Silva, Florianópolis, 1927-1987)
morou numa casa vizinha a um cinema, tendo assistido a muitos filmes, IlIlvdas) e na TV Cultura. . 1 del'.lnitivamente na Boca do
. m 1973 insta ou-se Il
apesar da rigorosa vigilância paterna, que o levou, na adolescência, a in- 1
De vo ta ao cmema.e .' ~ d M h e fêmea (1973), estrelado
· d roteIro e a direção e ac o
gressar num seminário presbiteriano em busca de certezas para a vocação l rxo, assman o o. di AduLtério as regras do jogo
. h E Ida escreve e mge ,
pastoral. Deixando os estudos bíblicos aos 19 anos, montou, com alguns por Vera FISC er. m seg~ h
L (1975), com produção da Regino
amigos, um grupo teatral, de cujo trabalho o embaixador Paschoal Carlos (I \)74) e Amantes amanha, se. ouuer so Vir ínia Filmes (Fauzi Mansur),
Pilmes (Rubens Carmelo Regmo), e, para a g
Magno (conhecido incentivador do teatro estudantil e amador) apreciou
e reconheceu o esforço, proporcionando-lhes uma viagem ao Rio de Janeiro. () sexo mora ao Lado (1975). I . d édia da Boca do Lixo
Od Fra a ossuía um nível cultura aCima a m . '
Por esta época, Ody já se havia iniciado como autor de textos, tendo sido y g ~ r de Rua do Triunfo). Era consIderado uma espe-
um dos fundadores da revista literária Sul, "considerada a mais importante (que ele prefena cha.ma l' . d devido à vocação de dramaturgo
- d id '1 do cmema a I pratlca o, al
de Santa Catarina nas últimas décadas". \ I - e I eo ogo , di ão de liderança inform .
No Rio de Janeiro, Ody Fraga trabalhou no Serviço Nacional do Teatro " ~capacidade de articulação, o que o levou a ~on ç ~ omercial
" d cmema com vocaçao c ,
(SNT), sem abandonar a dramaturgia. Sua adaptação de Pinocchio foi um Plenamente engajado na pratIca e um . d rnochanchadas. Num
· .c d al -ado ele como diretor e po
sucesso, com milhares de apresentações para platéias infantis, em todos os .Ilabou IdentlIlCa o, m gl .. ' . ista e/ou diretor de cerca
artlClpOUcomo roteir
cantos do país. Na mesma época, no começo da década de 1950, participou I' -ríodo de quase 15 anos, P _ .' "de aluguel"
de 60 filmes." De todo modo, parece te~ SIdo como rotemsta
ativamente de um grupo de teatro com um nome sugestivo: Os Quixotes.
que marcou sua presença na Boca paulista.
Paralelamente; desenvolveu atividades no jornalismo, como ghost-writer
do crítico de cinema Eduardo de Menezes, no Diário Carioca, e escreveu
. (trabalhos como roteirista, diretor e produtor)
também no suplemento literário do jornal A manhã. A efervescência cul- '\ A filmografia completa de Ody Fraga I ( 1961)' O Cabeleira
. - ( 1960)' Amor na se ua rot., '
tural da época levou-o a vários estados, por intermédio da Campanha Na- é bastante extensa: Concetçao r~r., 6 '967)' O diabo de Vila Velha (dir., 1965);
cional de Educação de Base, apresentando espetáculos pedagógicos que (rot., 1962); Vidas nuas (ror. e dir., 19 2-I d' lheres (rot 1974); O signo de es-
di 1973)' O exorczsta e mu .,
incluíam teatro de fantoches.22 Machoeflmea(ror.e ir., ' . ( di 1974)' Pensionato de mu-
·_ 4)' Adultério, as regras do Jogo ror. e ir., ' _
corpiao (ror., 197 , di 1975)' Amantes amanha, se houver
Em 1959, muda-se para São Paulo, vindo a participar das rodas cine- 4)' O sexo mora ao lado (ror. e ir., , .'?
lheres (ror., 197 , d ( 1976)' Quem é o paz da criança.
matográficas do Bar Costa do Sol, na Rua Sete de Abra, ao lado da Socieda- di
sol (ror. e 1 r.,
1975)' Possuídas pelo peca o rct.,
" . _ (
,
1976)' O mulherengo ror.,
(
( di 1976)' Excitação rot., '
de Amigos da Cinemateca. Seu primeiro trabalho em cinema foi como (A idade do desejo) rot. e ir., D' lheres e um homem (rot., 1977);
1977)' ezenove mu
roteirista de Conceição (1960), filme dirigido pelo ator Hélio Souto. De- 1977); Mulher, rnu lh er ( rot., '. (d' 1978)' Bandido, a fúria do
. . ( 1977)' Terapia do sexo rot. e rr., '
pois, vieram Amor na selva (1961) e O Cabeleira (Cados Coimbra, 1962). Ninfas diabôlicas ro t., , (d' 1978)' Sexo selvagem
. R l'ormat6rio das depravadas ror. e ir., ',_
sexo (ro t., J 978, ) eJ' 8)' H' "as que as nossas babas nao conta-
Ody Fraga realizou seu primeiro trabalho como diretor em 1962, com D s do prazer (ror., 197 , istori . (
(rot., 197 8) ; ama. (d' 1979)' Eu compro essa vzrgem rot.,
Vidas nuas, filme que teve sua produção interrompida, sendo finalizado cinco A dama da zona ror. e ir., , (7'.
vam (rot., 1979) ; 1'\ ( 1979)' E agora, José? Iortura
anos mais tarde pelo então produtor iniciante A. P. Galante (em sociedade 1979); Desejo seIvagem
(Massacre no Pnntanat)
.
rot., '
-bid. ( t 1980)' Bacanal (rot., 1980);
di J 979)' B deI noites proz ! as ro .,' , .
do sexo) (ror. e ir., .' or,,' . 'di J 980)' COIpOdevasso (rot.. 1980); Palácio
A noite das taras (ror. e dir. do 3 eplso o, '
22 Cf. Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda (orgs.), op. cit., p. 260.

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A TOOU O AIXA A TODO VAI'OM: 1910.1915

1Em entrevista a mim concedida (para a revista Filme Cultura, editada


1 1111101\ V '1. 'S, ti 'P .nd indo do 3S0, eu introduzo uma ou outra coisa elaborada.
pe a EMBRAFIL.ME/ME~): em 1982, Ody Fraga faz algumas reflexões rele-
vantes a respeito d~ atIVIdade de roteirisra, cujos trechos mais significati-
I 1'11 11.10 posso xtrava ar muito porque o esquema não me aceitaria.
vos transcrevo abaixo, com alguns recorres."
1 ( .orno você trabalha? Tem disciplina? Como você estrutura um roteiro?
I lei Fraga - Aí vale a tarimba. São anos e anos escrevendo. E isto é expe-
FC - O que é roteiro?
I 111 1.1 não é talento, genialidade ou inteligência. É o trabalho do jumento
, .Ody ~raga - Basicamente, é o que resolve a dramaturgia do filme Implica !lI! /',11.1 n mó do moinho: eu já sei o caminho. Eu parto da idéia e já começo a
vana~ c~~s,~s.Ele pode :er que resolver dramaturgicamente uma besteir~ ou uma 1IIIIIIrar diretamente em roteiro. E faço a primeira versão do roteiro. O que
film, e I ela, mas teCnIcamente tem de resolver, tem de estruturar um filme O I 11111 'l . é que muitas vezes essa versão vai precisar de uma segunda. Eu entrego
I me tem de estar estruturado no roteiro. .
I I" imcira versão e se quem está me pagando se dá por satisfeito, ótimo. Se
11"1 I I mais, eu retrabalho. E acontece também o seguinte: eu nem me lembro
FC - Como você trabalha?
11111 daquilo, logo depois.
dã Ody Fraga - Às vezes eu faço o argumento, mas na maioria das vezes ou me
ao o ar?~mento ou o sujeito - produtor ou diretor _ me dá um lor M
).c; - O que é ser roteirista profissional no cinema brasileiro?
mo o sujeito que não sabe alinhar em duas páginas o resumo d P'd:' es-
1· e uma I ela que ( )dy Fraga - Há duas coisas: o cinema brasileiro é bem o reflexo da cultu-
e e te~, e aco~t~ce ISSO,ele m~ conta e eu ouço. Ajo muito como cirur ião. Ou o
I t lu.isileira e do povo brasileiro. Existe um cinema que pertence a uma classe média
besteiras homencas com a rnaror seriedade M -' 1 g ç
d . . . as nao jU go, compreende? Porque I 'I 11 crdizante intelectual, muitas vezes de formação intelectual péssima, que tem
~ua~ o o sujeito m~ chama ele está depositando confiança profissional ~m mim 11111,1 cultura de orelha, toca piano de ouvido. E que se apoderou do cinema cultural
nao me compete julgar. A visão de cinema, a história é dele na-o' . h E'
. ' , e ITIln a. u IU.I,ilciro. Inclusive a crítica está nesse meio. [... ] Porque a crítica brasileira não
vou apenas reso 1ver tecrucarnenr- em roteiro A '. d .
. _ . maIOrIa os roteiros eu trabalho 1\('111 colonizada culturalmente. Ela simplesmente copia. Ela não observa, ela
aSSIm. Eu nao tenho envolvimento com o conteúdo da coisa.
IlIpia porque não pensa. [... ] Os críticos não conseguem separar argumento de
uuciro, Muitas vezes o que eles acham ruim no argumento é bom de roteiro. Não
~~ - Você tra~alha de encomenda mesmo? Um alfaiate que faz sob medida? d1 '111 onde está uma coisa ou outra, e isso deveria ser uma obrigação profissional
h y Fr~ga - E cla.ro, porque se eu sair do gabarito dele vai complicar. Eu til I ·S.Enfim, fazem a crítica discursiva e têm sempre uma parcialidade - seja
ten o que azer o roteiro dentro do próprio universo de quem encomendou. ell omprometimento ideológico, de qualquer lado, ou de um elitisrno intelec-
111.11 exagerado, o que é uma besteira. Por isso eu digo que o cinema brasileiro é

IIIll retrato do Brasil.


d~ Vênus (ror. e dir., 1980); A flmea do mar (ror. e dir., 1980)' .
tres episódios 1980)' Ft d. (. ' Aqui, tarados (ror. dos
, , ome esexororedlr 1981)'P' 't( d '
1981); Afilha do C L' . L ( . . ., , orno. ror. os rres episódios, FC - E o cinema da Boca? É um cinema popular, de origem popular, porque
. aaguta roce dir., 1981); O sexo nosso de cada dia (ror di .
Anarquia sexual (ror 1981)' Afo'b' d. .. h ( . e ir., 1981), cus produtores saem das classes populares? Ou é populista?
., , rica e camtsin as ror 1981)' A Ih
de aluguel (ror. de três episódios; dir. do segundo, "O gar~" I98~)' ~gatas,;u eres Ody Fraga - Acontece o seguinte: muitas vezes um filme da Boca acerta no
2 (ror. de três episódios, 1982); Mulher tentação (ror e dir ~982)' A' "":" L'~star.d.as -spectador popular porque o nível de cultura de quem está fazendo está no mesmo
Adã ( 1982) A ., . ., , s seis mu neres e
o rot., ; s utuuas eróticas (ror. de três episódios 1982)' Vt di I plano do nível de cultura de quem está assistindo. Ele está pelo menos falando
(ror 1982) A ' , a Ias peto prazer
_., ; s panteras negras do sexo (ror., 1982); Tudo na cama (ror 1982)' Te .1 um compadre. Tem muito diretor da Boca que está falando na mesma linguagem

taça~ na cama (ror. e dir., 1983); Corpo e alma de uma mulher (ror ';983)'
ca·ftmeasensual(ror di 1983) r .,
E ;n-
, r ti-
do baiano da construção civil que está lá assistindo. Ele está no mesmo nível in-
. . e ir., ; raras eróticas (ror 1983)' Senta telectual. Ele acha que não, mas está. Só porque criou condições para fazer um
entro na tua (ror e dir 1984)' MIL" , no meu que eu
""
d.o gato (ror., 1987). utneres taradas por animais (ror. e dir 1986)' O di filme acha que mudou de status intelectual. Mas há outros que fazem realmente
., , ta
24 Cf. Nuno Cesar Abreu, 1984, pp. 33-36. cinema popular. Eu tenho uma implicância solene com o cinema que eu chamo
de "casa e jardim". É o bonitinho, feito a revista Casa eJardim. É o bom gosto

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73
A TOQUE DE AIXA E A TODO VAPOR: 19 O.

da classe média. Eu julgo nessa linha os filmes de jean Garret e outros. É um


, '"
( ) I ,,'''' Não~ V3 I·'· nza d o. A falta de on iência dos valoresd cinema-
cinema que não tem nada. Não reflete realidade nenhuma. Então, fica um
' " I er lu ar do mundo o roteirista é a segun a pessoa.
negócio de status, que é uma bobagem. O grande problema do filme brasileiro, l"I,,·llos real. 'mquaqu. gd' d filme do diretoredo roteirista,
na linha do filme comercial, é que os filmes são dramaturgicamente errados. E , I I i :I um ri ana simplesmente a o nome o " do montado r
I 1I u-solvc o filme. Aqui no B~asil os. cartazes ld evam ate 0t:;aeimportância, ~
o primeiro erro é a construção dos personagens. Por exemplo: dois amigos de planos
1 I· m a re onderância do diretor, per eu quase .
sociais diferentes. Um, vamos Supor, é um engenheiro de sucesso na vida e está
'1" IOJ', o P P .. É fi d mental esse respeito. Há rnurtos
num stand da alta classe média. O outro, que é seu amigo de infância, teve menos 11111 w v~ o nome do r~t.elfls~an:;d~~:~:~ au~:r ~o filme, sem querer entrar na-
sucesso e conseguiu ser baixa classe média, um gerente ou chefe de seção numa Irll,1',\ 'J11que o roternsta e o d r do filme Há muitos casos
111 I,· iá d a30anos e quem eo autor .
desgraçada repartição pública qualquer. Eles se desenvolveram em separado e se '1 1,11'0 CJ11ICa, que p ur "d' belos filmes de John Ford,
P I m filme que e um os mais
encontram. Um tem um tipo de ação socioeconômica diferente do outro. Vamos 1111,',.ssanres, or exemp o, u . . N lIyJohnson, em cima
. ~ da i S - me engano o roteirrsta era o una
supor, neste roteiro, que periodicamente, por uma afinidade, uma amizade, almo- 11/l1/11rlS a ira. e nao. 'd S . beck que depois escreveu muita
cem juntos ou se encontrem para um aperitivo no sábado. Dificilmente, nos ro- dll livro verdadeiramente Importante °F tem d ' está solenemente na his-
I I U filme de 1939 com Henry on a, que
teiros, se constrói o universo dos personagens, e o primeiro erro aparece nos 1111,'geJ11.
do ci m I Um filme Importante. . ' E XIibidI o o
filme , chega um crítico e per-
diálogos. As pessoas parecem ter o mesmo vocabulário. Que não são vocabulá- 11111.1o cmerna, . h dif d final do romance _ o
rios de seus universos. Eles têm o mesmo vocabulário porque o autor só tem um
11111 J h F d que ele nn a mo I ica o o
1 I d para :1 fi! o o ndiferente
. or pord o fima I d o I'rvro. O Ford respondeu: "Eu não sabia.
vocabulário e não sabe construir o de seus personagens. Não sabe introduzir sequer
~~Il.illi: I:v::.e~apor isso, na fase mais industrializada d~ cinema ame~icano, você
o jargão profissional que surge em qualquer conversa. Não sabe trabalhar estas
coisas, e isto é fundamental. .lI . I ridade na carreira dos diretores amencanos. Pega
I'0ll . observar uma certa Irregu a . ,. bons artesãos pela
d I 'fi Todos J'á eram em pnnClplO, ,
I liImografia e es e ven ica. 'b c . P o John Ford ou
. I os filmes a serem em reitos. ega
FC - Você procura em seu trabalho fazer isso, observar o universo das falas? 1'16pna estrutura que evava d ma filmografia irregu-
bé importante: to os possuem u
Ody Fraga - Sim, apesar de trabalhar quase sempre com argumentos que já '111.t1queroutro tam em. . E ocê nota que essa ílutuação
111- um filme bom, um mediano, um ruim. v . _ Um
me deram - às vezes são tão absurdos que é difícil sustentar. Um trabalho de
Hércules Sustentar essa lógica de personagem. Ou então, quando é uma comédia ,irlcs está ligada diretamente à qualidade dos rote~~osdque tl~a:a:afir;:~: Até
. d b filme Um mau roteiro ava u
muito escrachada, eu já parto para o desbunde geral, para não ficar comprometido. 110m roteiro ava um om .' EUA olume contendo os dez me-
111.ados da década de 50 se publicava nos um v
Descompromissado, então, dou uma proposta falsa e fica valendo tudo. Há uma
lliores roteiros do ano anterior. Era fabuloso.
técnica para isso. Os roteiros conseguem ficar mais ou menos em pé. Outro grande
problema é que os diretores, à medida que vão filmando, resolvem ter idéias sobre
o roteiro. E depois, quando vou assistir a um filme de roteiro que eu fiz, ao qual Com o esmaeClmen. to do movimento do Cinema Marginal,di .Carlos
.
não dei muita importância, mas é um trabalho profissional bem feito, atendendo
a uma encomenda, estruturado de acordo com o que foi pedido, aparece uma cena
Itci~henbamcherrcel·saslu~oer~:~::
projeto co ,
d L'
::s!o;: a~orl~;~;~)~:m
idado para mglr um
filme para crianças
d - d R ato
que corta, quebra, desequilibra tudo. Transforma tudo numa grande besteira. Foi l' adolescentes sobre corridas de automóvel, com pro uçao e en
uma cena que o diretor bolou no meio do caminho e jogou lá. Sequer analisou (;recchi. Diz Reichenbach:
em função do desenvolvimento da história. As vezes, para facilitar, o diretor muda
um diálogo - o que muda factualmente a história - porque a atriz não con- .
[ ] foi a maior faculdade de cmerna qu e eu fiz na vida. Esse
"O filmed me ensinou
"to do
seguia pronunciar uma palavra. Porque às vezes elas conseguem tropeçar até em .... . D' defini ão de Roberto Santos: gran e men »

palavras. O sujeito muda a frase e esquece o subrexro. E perde o sentido. Esses muito a respeito da per eita c ç f: I d ndições em elemento de criação.
cineasta brasileiro é saber transrorrnar a ta eco
tropeços acontecem todo dia, mas também não reclamo.
Esse filme me ensinou ~~ito isso; J' F .ra e falei: "Vamos assistir a
Eu chamei meu roreinsta na epoca, airo errei, , má-
FC - Até que ponto um roreirisra é valorizado no orçamento de um filme? todos os filmes de juventude de praia, corrida de automóvel, vamos ver o

74
7S
ximo de material que der pra ver, pra gente trabalhar esse repertório". Eu adoro
A BOCA DO LIXO ESTÁ
esse filme. Não tenho cópia. Hoje, visto à distância, é uma celebração da anarquia, NA RUA DO TRIUNfO
uma celebração da algazarra.
1976·1982
Depois da experiência de Corrida em busca do amor, Reichenbach dei-
xou a Boca do Lixo para fundar uma produtora de filmes publicitários e
institucionais, onde trabalhou por quatro anos, o que lhe permitiu adquirir
experiência técnica e destreza no fazer cinematográfico. Quando "encheu
o saco", vendeu a empresa para investir na realização de um trabalho au-
toral, Lilian M., o relatório confidencial (1975), "um filme miúra, difícil, , O a Boca do Lixo já era conhecida como um.a
talvez mais experimental do que aqueles primeiros filmes", cujo roteiro I til meados da decada de 197, 1 d ro (com erotismo) identi-
A

"d fil es popu ares e gene


permitiu-lhe exercitar gêneros e celebrar influências cinematográficas, '1IIIhade montagem e 1m h h d Um segundo tempo de sua
ídi o pornoc anc a as.
acompanhando a personagem central, Lilian, que transita do campo para 1
11\ .idos pe a rru ia com d 1976 e 1982 período em que
. d d cado entre os anos e ' .
a cidade, mudando de parceiros e ambientes. 11I\16napo e ser emar e os filmes vão-se híerarqui-
~ ( . 1) tende a se concentrar
I produçao o capita rÓ.» 1de produção. As relações
d alidade artlStlca e nrve
Eu peguei toda a sucata da minha produtora e produzi um filme, com so- .1 "do em termos e qu ul ~o de capital torna-se real, as pequenas
. omplexas a acum aça ~ d
bras de negativo. Depois, comprei mais negativo [... ] Para finalizar Lilian M., l\lInarn-se mais c' ibidores sofrem a pressao os
tive que vender uma parte do filme. Tive que vender a distribuição da fita. [... ] dl\lribuidoras tendem a se enfraquecer e os exi
Foi para o Elias Cury Filho, que, aliás, começou a entrar na [atividade de] ",IUpOSinternacionais. d ~C: ~ dos produtores tradicionais, como
produção aos poucos. , íod ~o só e ;uirmaçao ~
Esse e um peno o ~a d cc- vest'idores/produtores" sem ligaçoes
'd A era e novos m d
I.\lnbem e emergen 1 1 t -se com os bons resulta os
Este relato sintetiza uma prática de produção que se criava na Boca: . o que buscam ocup e ar "
.\IHenores com oram , .. rante: surge então, uma se-
a aproximação de realizadores independentes com distribuidores e exi- ,.. áfico E o rnais impor . ,
do negoco cmematogr .. d T' c _ diretores e produtores -,
bidores. O dinheiro ia minguando, as condições de produção esgotavam- ~ "d 'pna Rua o nunro
I,unda geraçao a pro c 1 ais cuidados consolidando,
se nas filmagens; então, vendia-se parte dos direitos patrimoniais do filme 'mpenhada em rea izar 1
r filmes rorma .
mente m
fi
'
. s Um processo que tra-
A' ões artístlcas e mancelfa.
para o distribuidor/exibidor - que, assim, tornava-se produtor -, ga- -rn seu amblto, reputaç d d t modo provocou um novo
rantindo-se a finalização (edição e sonorização - dublagem, música e . d d s do merca o e, e cer o ,
duzia as novas eman a d L' as relações desta com outros
efeitos) e as cópias. ~ . t mas da Boca o lXO e n
.uran]o nas re1açoes me. . 'blico Cabe notar que, como
do ci a brastlelfo e com o pu . 1
segmentos o cmem d Lixo foi também afetada pe a
os demais segmentos do setor, a Boca .o
d E RAFILME a parnr de 1975.
potente presença a MB d' ~ dutos vão-se diversificando,
Com a continuidade da pro uçao, os pro. ~o no mercado. Neste
·c íveis de acabamento e mserça
d
apresentando nerentes III . desde filmes mais elabo-
d ~ da Boca do LiXOconstam
período, da pro uçao A' 1 que buscam abordar o ero-
· d mpetenCla artesana ,
rados, rea 1iza os com co .' d ções medíocres _ filmes que
tismo com preocupações formaiS, ate pro u

77

76
A UO A 00 LIX rA NA NUA DO rMIUN O: 19/6.19112

of~recem um erotismo vulgar -, além daquelas malrra ilhas ue


dI' produzir ("jlm 'S qu . O upassern O lugar do filme estrangeiro, postura
pncham na grosseria e vulgaridade, inclusive no acabamen~o M q ca-
t ~1.1 rente om uma política de governo de substituição de importa-
m_od~,tudo estava submetido a um rótulo: pornochanchada .R' aS'1grosso
nao Interessava a q f' d . oru o que ~II ·S. similar nacional ali realizado logo ganhou dimensões além da si-
id I uem azia - to as as categorias profissionais envol- milaridade, adquirindo feições próprias. De certo modo, era na Boca do
VI as naque e processo produtivo -, mas era "inoculado" id
e no público em geral. no consurru or I.ixo que a oferta de produtos cinematográficos tomava dimensões indus-
II i:li , configurando um pólo produtor na euforia da expansão.
Ao longo do tempo - d fi . d
. _ (h' .' vao-se e rnrn o tendências, categorias dife- Nesta "segunda fase" da Boca, permanecem no centro da cena os pro-
rencIa?,oes ierarquias de classe?), promovendo um certo "abur' uesa
dutores tradicionais, desde o ícone da indústria cinematográfica Oswaldo

:!::::
::~:Ol da, Boca do Lixo e a condensação de subgêneros da porn!han~
Massaini, com a Cinedistri, e Aníbal Massaini Neto, que criaria a Cinearte,
era u~ ~e a,fd~ntar p~ra uma superação do rótulo, essa diversidade .!OS novos-ricos Antonio Polo Galante e Alfredo Palácios, com espaços
. e Ia ogar com o mercado, atacando e defendendo-se
d .finidos, devidamente acompanhados por produtores que experimen-
do pr~d,~to Importado, estratégia enfatizada sobretudo por essa "se unda
r.iram forte progresso em seus projetos, principalmente Manoel Augusto
geraçao de profissionais formados na "escola" d B d L' g .
. . I" - a oca o IXO cUJa (Cervantes) Sobrado Pereira, que trabalharia, com reconhecida compe-
pnmeIra içao era produzir para o mercado. Segundo Carlos Reichen'bach:
I ência, com os principais talentos da Boca. Com uma produção de ní-

Com o andamento da prod - h vel inferior, mas significativa numericamente, encontramos ainda os
grande O fÚ . h uçao, começou a aver um nível de exigênciamuito
produtores Cassiano Esteves, Elias Cury e Adone Fragano, que cresce-
concor~er _ m~ trn a qbueter um certo nível de qualidade técnica para poder
co ocar-se em - no mercado M·d - f . ram com o cinema da Boca, apostando nele desde o começo.
mente falando H . d . er a nao azia sucesso, tecnica-
chada _ . aVI~u~a gran e produção de filmes na época - pornochan- Aníbal Massaini continuou produzindo na linha da comédia erótica,
s , mas a maroria era murro mal produzida, mulheres feias etc E procurando oferecer um produto diferenciado - bons roteiros, elenco de
ral, entravam na rede de cinemas de segunda l'111 h a. . m ge- primeira, acabamento técnico de qualidade, trilha sonora original etc. -
c colhendo boas respostas de bilheteria. Com raciocínio de produtor, seus
o cinema
. IdE'
brasileiro, como um todo
por COnta de uma atuação em filmes começavam sempre de uma idéia que surgia já em plano de exe-
presana_ a MBRAFILME, viveu, neste período, uma fase de ex ansão e cução. Depois de Já não sefoz amor como antigamente (1976), filme com
afirmaçao, de construção de uma identidade L' d '. P_ três episódios, ele investe em Elas são do baralho (I 977), dirigido por Sílvio
I' . ( . rvre as InJunçoes po
ItlC~S .e cu~tutais) a que estava sujeita a empresa estatal e com - de Abreu, com elenco encabeçado por Antônio Fagundes e roteiro do di-
~olmIa inserida '" ~inâmica das pressões do mercado, a Boca pôd: e:~:~ retor e de Rubens Ewald Filho. A proposta do filme é sintetizada neste
e decerseusI ~ropnos mecanismos de ação, experimentando um gran- {older de divulgação do projeto:
d e esenvo vimen to.

Arriscando todos os gêneros possíveis, a Boca do Lixo foi ' Elas são do baralho não pretende de modo algum ser uma inovação no gêne-
:!:~r cerc~ de 30%, em média, dos filmes brasileiros ptoduzi:::~~~:~~ ro [pornochanchada] e nem está preocupado em criar uma nova escola para a
na decada de 1970 (ver Quadro 1 do capítulo 6) A di 'fi _ comédia nacional. Baseado em um roteiro que reúne os qüiproquós tão comuns
d t d d . rversi rcaçao no teatro francês de Georges Feydeau, mistura o duplo sentido do teatro de re-
a o erra, na ver a e, estava ocorrendo em todos o d
d -', s segmentos a pro-
uçao cInematografica nacional mas na Bo id .
, , ca, era eVI ente a Intenção
2 A política de substituição de importações e de criação do "similar nacional" são pro-
A esse respeito, ver Inimá F. Simões 1981 48 postas contidas no I e IIPNDs, implernentados pelos governos militares no decorrer
' a, p. .
dos anos 1970.

78
79
..

. .
l' neartc d
U)' primeiro
.· ..
utla,a p.lnapr , .
vista, a critica de costumes da comédia urbana, o humor irreverente das história I 111IllHO, M:l1iS:lI\11 rI,\ a ílvi d Abreu foi rnurto
I .
b' di do por vio e ,
em quadrinhos, a alegria descompromissada de um circo de cavalinhos. Para isso, .11111,() 111m' Mulher o 'leto, ~ngl d lgum interesse da crí-
de público espertou a
Elas são do baralho coloca a chanchada nacional como gênero assumido de co- 111 111 t'dido 01 t rrnos ' C Para tanto, ele cercou-
média, sem medo ou humilhação [...] é um acúmulo de situações hilariantes, mis- 1\.IlIhou exibição no mercado em annes.
turadas com mulheres nuas, que desta vez também são usadas como parte inte- II .I1'''''s uidados:
grante da comédia, sem se preocupar em serem eróticas, mas conservando o
. _ ara rupos de críticos, para armar o lan-
deboche que sempre cercou a pornochanchada. 111.1v "l que a gente fazia umalshessaop gabar com uma cirrose". Porque o
S'I .. "O a eu vou ac .
11111110, 'U falava pro I VIO. , C.I es no gênero feitos no Rio de ja-
- de que outrOS I1 m '
Pelo teor das "explicações", ambos os roteiristas já anunciavam, de certo II \11Vivia om essa questao S' . B u um Cacá Diegues, que davam
Am do uma orna raga o .
modo, a carreira que iriam seguir na televisão. Mas interessa destacar, no ., 1'". tinham um J orge a, "h os que ter nesse filme, alguma COisa
. bT d d E que nos nn amos cuc v-» E '
texto, a vinculação à chanchada como um gênero que propõe um cinema 111111na respeita lia e. , . B passou pra Sandra Bréa... ai
, I C eçou com Soma raga, S'I .
essencialmente brasileiro, "sem medo ou humilhação". E o "uso" de mu- \•• 1I11'~1110 nrvei. om L 1M' Helena Ramos, que o I V10
C.I o Nuno ea ala e a
I .11.1"\0 fazendo o 11me com
lheres nuas sem erotismo gratuito, mas integrando a comédia, num típi-
1\ 11queria de jeito nenhum. .' curiosa Eu encontrei a Helena
co apelo ao público de classe média conservadora, mas nem tanto. - d H lena foi uma COisamUltO' íb I
(\ 'ontrataçao a e disse: ""\T 'vai fazer um novo filme, Aní a, e
Em 1978, Massaini produziu O bem-dotado (O homem de Itu) , dirigido 'te e ela me isse: voce . dito: "S t
por José Miziara, com Nuno Leal Maia no papel-título, encabeçando um
,"1"1 lugar, uma. noi
d
,
. ipar Posso passar a.
I';>" O Sílvio haVia me ito: e or
h .
" 1'.OSlariamuito e partlc. fora" Fazendo tipo, né? Aí, eu ceguei
elenco feminino de primeira linha: Consuelo Leandro, Marlene França, Ana \11I [azer com a Helena Ramos, eu estoU ora.
Maria Nascimento e Silva, Esmeralda Barros, Helena Ramos, Aldine Müller. 1111
\" -ritório e falei pra ele: . h- E . muito que você a recebesse.
1aman a u quena
Com direção do mesmo Miziara, realizou, em 1979, Embalos alucinantes Sílvio, a He Iena vem aqu . f Helena Ramos eu prefiro
. se for pra azer com a
(A troca de casais). Neste mesmo ano, investiu em Histórias que as nossas babás _ Lembra do que conversamos.
não contavam, com direção de Osvaldo de Oliveira, uma paródia com tin- li,\()fazer. . bê Ia Se ela estiver loira, você diz que
. h i e você vai rece e- . f
tas de erotismo apelativo, em que Chapeuzinho Vermelho era vivida pela -
Ela vai cegar aqu. di que é loira. Mas, por avo r,
ê

em é morena se ela esnver morena, voce lZ


mulata Adele Fátima e o caçador, por Costinha, cômico bem-sucedido na I P .rsonag ,
I l ·ba a pessoa. Ele então diz pra ela:
televisão. O filme já tomava certas liberdades com a exposição do sexo, refle-
Aí , eles sentaram e começaram a h conversar.
. ;>
tindo o afrouxamento da censura. Embora Massaini procurasse oferecer
_ Por que você faz esses filmes, em.
melhores filmes - no que se refere à utilização dos meios de produção ';>
_ Esses filmes, o que. . . . h sala Depois de uma hora,
e ao acabamento industrial -, a imprensa não usava outros critérios para Aí começaram um bate-boca. Eu saí e Vim pra min a .
avaliá-Ias, e, de certo modo, esses produtos mais elaborados caíam na vala -lc aparece na minha sala e diz:
comum, sendo considerados uma pornochanchada qualquer: filmes feitos - Volta lá e contrata a moça. , fi' você ser gentil com ela.
para ganhar dinheiro e enrolar o público, sem valor artístico ou algum outro. _ Quem de nós fiCOUmaluco? Eu so a ei pra
Aníbal Massaini depõe: _ Ela vai fazer com muita garra.

Depois, eu me arrependi um pouco [de fazer filmes de bom nível], porque Segundo Helena Ramos,
levava muito tempo fazendo esses filmes. Achava que havia uma certa incoerência, . nrrada na-
.' difícil de fazer. Eu estava muito conce
porque, na verdade, o resultado [financeiro] final era quase o mesmo [dos ou- Mulher objeto fOI um ftlme bT d d Claro que todo filme requer
tros filmes]. Porque ninguém escapava do conceito ["pornochanchada"]. De que quilo que estava fazendo, eu sabia da responsa lia e.
valeu esse esforço, se nunca foi reconhecido?

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A "O A P LIXO lA NA II jj fi! Uf( : 1 -1fT

res~onsa_bilid.ade.,ma~ ess~ era um filme mais pretensioso, eu tive uma dedi ação
~alO~, nao .seI. LI murros livros sobre sexualidade. Eu estava tão concentrada que '1"' ru , hon ..stam .nt " P r in .xp ri n ia, nã oube ad~ini trar. Problemas ~~e,
1IIIIlllroSI\lm is, .u administrei tranqüilamente, sem sofrimentos. [...] A expenen-
nao via mars nada. [...] Acho que foi o único filme do Aníbal Massaini que teve
sucesso de público e de crítica. I II ( orn O alante foi uma coisa lamentável. [... ] Então, eu fiz uns 70% do fil-
1111, o ;:llante parou a filmagem e o Oswaldo de Oliveira terminou o resto do
111111 '. Eventualmente, esse filme deu dinheiro.
o filme fez boa bilheteria no mercado interno e, devido à receptividade
em Cannes, ~oi vendido para vários países, onde foi exibido com gran-
I epois deste, Galante realizou mais cinco filmes em dois anos, apro-
de sucesso. DIZ Aníbal Massaini: "Eu lembro, por exemplo, que um cara
'( u.mdo o veio até o esgotamento (determinado pela receita). Eram filmes
de Hong Kong comprou o filme. Eles pagavam 5 mil dólares. Eu nem
dI' ~ 'gunda linha, que não entravam nos grandes cinen:as, ~as tinham
queria falar com o cara. Esse dinheiro eu faço em Santo André, pô! [... ]
Itla longa e carreira garantida. Realizados com pouco mvestrrnento -
O filme ficou 12 semanas em cartaz lá. O cara ganhou mais de 500 mil
1111\:\ ou duas locações, equipe e elenco concentrados no setde filmagem,
d~lares, na época". Amor estranho amor (1982), de Walter Hugo Khouri,
IIIHI o tempo de trabalho -, os filmes apresentavam uma rel.ação cus-
fOI a produção seguinte da Cinearte de Aníbal Massaini. Com um elenco
111 benefício altamente favorável: 300 mil - 6 milhões. ASSIm foram
de primeira linha - Vera Fischer, Xuxa Meneghel, Tardsio Meira, Mauro
1'1 oduzidos (Galante também "ditou" Internat~ de
alguns argumentos):
Mendonça, Otávio Augusto, Matilde Mastrangi _, o filme, como de
meninas virgens (Osvaldo de Oliveira, 1977); Escola penal de menznas
hábito nas produções do diretor, provocou certa polêmica.
uiolentadas (Antonio MeJiande, 1977); Pensionato das vigaristas (Osvaldo
Anto~io Polo Galante pode ser considerado o "pai" de um subgênero,
ti . Oliveira, 1977); Fugitivas insaciáveis (Osvaldo de Oliveira, 1978) e Re-
ou ~m ~Icl.o, que se desenvolveu na Boca do Lixo neste período: os filmes
[annatôrio das depravadas (Ody Fraga, 1978). .
em insururções penais, por assim dizer - filmados em ambientes "cerca-
O que se observa, portanto, em relação à produção da Boca do LIXOne~te
dos", onde mulheres seminuas confinadas são tratadas com sadismo e vio-
pcrfodo, é que, ao lado de uma tentativa de superação do (pre)conce~to
lência, a pretexto de erotismo. O "ciclo" tem origem controversa, mas reza
. ontra a pornochanchada, por meio da melhoria da qualidade - técnica
a lend~ que Galante seguiu o palpite do diretor de uma produção alemã
(' artística - dos filmes e da abordagem de temas eróticos com alguma
que sena rodada no Brasil, da qual ele seria produtor executivo. Respaldado
leveza e profundidade, havia uma produção que caminha~a. para um cor~e
em sua experiência em filmes de presídio, o tal diretor alemão lhe teria re-
p .sado e grosseiro da exposição do erótico, como este .CIclo d~s presl-
velado: "O que dá dinheiro é grade e mulher nua atrás da grade". O filme
acabou não se realizando, mas Galante aproveitou o conselho."
ti ios", filmes que continham doses especiais da ideologia mac~lsta. q~e
pt:rmeava as pornochanchadas - superioridade pela força, ~1~oglOla,
O filme inaugural do "ciclo" foi Presídio de mulheres violentadas (1976).
-xploraçâo da ingenuidade, exibição agressiva das form.as femininas -,
O cr~~it? de direção do filme é atribuído a Galante, mas, segundo Luiz
.icrescentando um certo clima de violência e sadismo. Cunosamente, nestas
CasnllIOl, as filmagens tiveram uma história conturbada:
fitas mais rasteiras, foram "iniciadas" nos procedimentos cinematográficos
da Boca duas atrizes que fizeram carreira e procurariam, cada qual a seu
.. ~alante cha~ou o Rajá de Aragão para escrever a história e me chamou para
modo, marcar com firmeza sua condição de mulher: Patrícia Scalvi e
dIrIgIr. Eu pegueI o texto e achei que poderia ser diferente. Com todo o respeito
ao R~já, ~u deixei aquele texto de lado e fiz outro. Aí fomos para Iru, filmar numa Nicole Puzzi.
cadela. FIcamos uns 20 dias na locação de Itu, e aconteceu uma série de problemas Patrícia Scalvi estreou no cinema em Presídio de mulheres violentadas:

Eu estava fazendo teatro, mas acabei indo lá porque ia ter um teste. Eu fui,
3 Cf. lnimá F. Simões, op. cit., p. 30.
e eles gostaram de mim, me deram um papelzinho de uma bailarina que ia ficar

82
83
A DO A 1)0 lIXO

numa cela fazendo exercícios. A Nicole, que depois virou Nicole P .. c .ornr riand suas xpe tativa , o filme fez uma boa carreira comercial,
o papel central,
central.rnas na ocasiãoela
mas na ocasi
. viajou pro Rio [...1 e sumi'u. E a I1
C'. UZZI,Ia razcr
1magem estava 1IIIII.II1da projetar a imagem de menina-mulher sexy da atriz. Nicole ror-
pra começar.Elesflcaram adiando, adiando, e aí lembraram de mim' 1 111111 s uma estrela do "ciclo dos presídios" (ou dramas penitenciários):
Va 1 P' . . que a moça.I
"A
.mos"V;ançar a Catncra, porque ela tem o biotipo etc."
A • • •
Então eles Iac 1aram pra .11 pois de Pensionato das vigaristas, ela filmou Escola penal de meninas uio-
mim: oce vai razer o papel central!" l, ntudas e Reformatório das depravadas, apesar de considerar "uma tortu-
F'01 multo
. engraçado, porque tudo era over. Eu estavaacostumada a fazerteatro
I I, urna verdadeira guerrà' receber o pagamento do Galante, feito em três
onde
di tudo era over. Eu fiz muito bem ,.deu certo e tal M as acontece que, no mero .' 'l'/.'S durante a filmagem: "Quando se recebia muito, eram 3 mil dólares
ISSO,eudtive uma. bbriga com o Galante - foi um problema de prod uçao, ~ nao~ por filme. Isso quando a atriz era muito requisitada. Só eu não recebia 3
me recor o multo e.mo que aconteceu - e não terminei o filme. A Zilda Mayo
Illil dólares; ganhava o dobro, o triplo, [...] pois meus filmes faziam rnui-
f~z o final, com a minha personagem morrendo. Eu não morria no filme mas
e e ~Galantel me f~~morre~. E o meu nome, na tela, saiu no meio da figu:ação. II1 sucesso". 5
om os lucros e a experiência adquiridos nos "presídios, internatos e
Entao, o Rubem ~ Biãfora foi assistir ao filme e perguntou' . "Quem' e a fiu1anar' Por
iue a.gente nao sabe quem é? Uma atriz excepcional!"Eu nem conhecia o Biáfora. II'formatórios" Galante investiu na formação de um estúdio equipado,
assim c~me?ou. O ~alante teve que engolir a língua, porque ele falara: "Você ,I postando neste tipo de produção.
nunca
. mais vaiC'.'
fazer cinema! Eu quero ser mico de circo". E eu 11 C'.IZ
40 11C'.l
mes, diIngl
. . Alfredo Palácios continuou produzindo pela sua produtora, a Kinoarte.
CInCOcurtas, IlZmulta coisa. I) .dicou-se a pornochanchadas deslavadas, como a paródia Kung Fu contra
1I1 bonecas (Adriano Stuart, 1976), Sabendo usar não vai faltar (Francisco
Nicole Puzzi, que se havia iniciado em cinema em Possuída pelo peca- Itllnalho Jr., Sidney Paiva Lopes e Adriano Stuart, 1976), Empregada para
do, u~a produção de David Cardoso, revela ter, levianamente, aceitado o lodo serviço (Geraldo Gonzaga, 1977), e fez algumas com algum revestimen-
convl~e de Galante para tr.abalhar em Pensionato das vigaristas porque não ro, como Damas do prazer (Antonio Meliande, 1978), ambientada no bas-
acreditava que o filme fana sucesso. Diz ela: [ond da Boca do Lixo, com uma ficha técnica mais competente, e Mulher
drsejada (Alfredo Sternheim, 1978).
iQuem dirigiu Pensionato das Vl·g.aristas foi o Osvaldo "C arcaça"[d e 01'ivei-
. Cassiano Esteves investia basicamente em duas linhas: os melodramas
ral . E e tratava todas as garotas por piranha. realizados por Geraldo Vietri - autor e diretor de novelas da antiga TV
- Sai, piranha! Tupi _, que incluíam algumas adaptações literárias do tipo Senhora (1976)
. Menos eu. Um dia ele olhou para mim e, quando ia abrindo a boca e - . raiá Garcia (1978) e argumentos originais como Os imorais (1979), Sexo,
ter, firme: ' u cor
ua única arma (1981) - e as pornochanchadas (de vários gêneros) de
- Você não me chame de piranha!
segunda linha dirigidas por Antonio B. Thomé: O segredo das massagistas
E~ acho que fui tão veemente que ele jamais voltou a me tratar assim. Ou-
(1977), O artesão de mulheres (1978), Na violência do sexo (1978), Belinda
tra coisa absurda que ele dizia:
- Porra, mostra o talento aí! dos orixás dos desejos (1979), O gênio do sexo (1979).
. Quand~ ele dizia isso,você tinha de virar de bunda para ele. Quando ele falava Nos anos 80, Esteves investe em outros realizadores como John Doo
ISS~para mim, eu parava a filmagem. Sempre fiquei muito indignada com essas (Ninfas insaciáveis, 1980), Jair Corrêa (Duas estranhas mulheres, 1981), Jean
coisas. Eu para~a, ele reclamava: "Puta que pariu, essaNicole!" E mudava o tom: Garret (O fotógrafo, 1981); e co-produz, com Tony Vieira, a fita Neurose
- Dona Nicole, fique de costas, por favor! sexual (1982). Além de escrever alguns argumentos e roteiros, Cassiano
Bêbado feito um peru. Mal-humorado sempre. Mas uma figura engraçada."

Cf. Puzzi e Solnik, 1994, pp. 22-23. 5 Idem, op. cit., p. 25.

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84
"0 A DO LIXO A DOCA DO LIXO ESTÁ NA RUA DO TRIUNFO: 1916·1982

Esteves participava dos filmes fazendo a montagem - um traço original Em O clube das infiéis eu já me associei com a Condor Filmes. O adinhos
deste produtor. Duque começou a controlar o dinheiro, o acabamento. Eu quase fali meu pos-
Alguns atores-diretores também procuraram se estabelecer como produ- to de gasolina - que tinha comprado com o dinheiro de O poderoso machão-
tores, a exemplo de David Cardoso e Tony Vieira. O mais bem-sucedido para fazer o filme. O Carlinhos não queria botar mais dinheiro e aí eu fui para
o Rio de Janeiro e negociei a distribuição do filme com a Condor. Foi quando
foi Cláudio Cunha, um ator que se revelou um diretor talentoso e um
tomei contato com os distribuidores e exibidores.
produtor cuidadoso com o acabamento de seu produto, procurando in-
serir-se no mercado com algo diferenciado no caldo da produção da Boca
Seu segundo trabalho como diretor, O dia em que o santo pecou (1975),
do Lixo. Cláudio Cunha (São Paulo, 1946) começou como ator em pe-
melodrama baseado em tema folclórico, tem produção e roteiro de Benedito
quenos papéis em novelas da TV Excelsior, nos anos 1960. Ganha noto-
Ruy Barbosa. O filme conta com a direção de fotografia de Cláudio Portioli,
riedade na novela Pedacinho de chão, escrita por Benedito Ruy Barbosa
música de Guilherme Vaz e montagem de lnácio Araújo.
para a TV Cultura. Começa a atuar no cinema da Boca do Lixo em filmes
de Roberto Mauro (As mulheres amam por conveniência, 1972) e de Tony
O Benedito me convidou pra dirigir. [...] Como é que eu, de repente, ia dirigir
Vieira (Sob o domínio do sexo, 1973). Atento ao modo de produzir, con-
Dionísio Azevedo? Mas ele acabou se entregando à direção. Eu mostrei persona-
segue atrair investimento financeiro para filmar O poderoso machão (1974), lidade. Dirigi o Maurício do Vale. Era coadjuvante dele na novela e, de repente,
a partir de um argumento seu, dando início à sua carreira de produtor. impuseram minha direção. E o próprio Ruy Barbosa, que era o autor da no-
Diz Cláudio Cunha: vela, autor do roteiro, no campo de filmagem quis me encher o saco, mas eu
também tive personalidade pra colocar o Ruy no lugar dele. Botei a mulher dele,
Eu fui fazer uma palestra numa agência de atores e fiquei conhecendo um a Marilene, pra fazer uma personagem no filme. E eu sei que o filme foi bem.
rapaz que estava lá fotografando, o Pedrinho Faus, um cara que fazia fotografia Um filme difícil, porque, na época, a onda era pornochanchada e o Ruy quis
por hobby, tinha equipamentos e tal. Depois, eu fui saber que ele era um milio- fazer um negócio mais sério, um filme de época. O filme teve como produtor
nário. Acabei indo jantar na casa dele, e acabou surgindo a idéia de fazer um associado o Laudo Natel, que na época era governador de São Paulo. Não me
filme. [... ] Ele se interessou, quis saber quanto custava, como é que era. Então lembro se o nome dele entrou nos créditos, acho que entrou. Mas todo mundo
eu fiz um argumento pra ele, copiando os modelos da época, que eram os fil- ficou sabendo que era produtor associado do filme. Ele foi inclusive no campo
mes do Lando Buzzanca. Dei para ele o argumento de O poderoso machão, a histó- de filmagem, curtiu.
ria de um milionário que tem um ataque de priapismo. Ele gostou do negócio
e eu fui chamar o Roberto Mauro para dirigir o filme: "Roberro, eu descobri Esse filme é um bom exemplo de uma certa tendência que se observa,
um boi! Por quanto você faz? Faz por 80?" E ele: "Faço". A gente estava endivi- neste momento, entre alguns realizadores da Boca, de buscar se relacionar
dado na época. Então, levamos um orçamento de 100, o Pedrinho achou bom,
com o mercado cinematográfico com mais respeitabilidade. Essa neces-
e fizemos O poderoso machão. O filme teve problemas incríveis com a Censura.
sidade de afirmação de uma imagem pública de competência e de reco-
nhecimento "cultural", contudo, acabava revelando as carências. O mat -
Ainda em 1974, Cláudio Cunha funda a Kinema Filmes, associado ao
rial de divulgação do filme, por exemplo, incluía verbetes sobre o roteirisrn
investidor Carlos Duque, dono de uma rede de postos de gasolina. Como
e o diretor em que essa respeitabilidade era claramente solicitada:
produtor, investe em si mesmo como diretor, estreando neste mesmo ano
com a comédia erótica O clube das infiéis, um roteiro de Marcos Rey, fil-
O autor: Benedito Ruy Barbosa é estreante no longa-metragem. Autor til- v; ,1.1\
me que consegue bons resultados artísticos e financeiros. O processo de novelas de sucesso como "Somos todos irmãos", "O anjo e ovagabund ", "/\ (dli"I,'
produção do filme segue a trilha aberta pelos produtores tradicionais da testemunha", "Algemas de ouro" e, mais recentemente, "Meu peda inho <iI- (1,,111",
Boca do Lixo. Diz Cláudio Cunha: ele chega ao cinema com um trabalho de fôlego, sério e muito bcm-iut 'li iOIl.lllo.

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UO A DO LIXO

Depois de "Fogo frio", peça com que estreou no Teatro de Arena, em 1960, e que Snu./f- Vítimas doprazer fez 4 milhões de espectadores no Brasil. I 1I-

lhe valeu o prêmio "Revelação de Autor", talvez não tenha escrito nada mais dio Cunha entrava para o rol dos produtores bem-sucedidos da Boca, o qual
importante do que O DIA EM QUE O SANTO PECOU, que marca o reencontro do nosso incluía David Cardoso e Tony Vieira (o rei dos cinemas de segunda linha),
cinema com o homem e a terra brasileira, numa verdadeira superprodução. além dos produtores tradicionais. Mas ele tinha outras pretensões além do
O diretor: Cláudio Cunha (29 anos), ator de novelas já nos tempos da sau- sucesso financeiro, e a sociedade com Carlos Duque foi desfeita. Segundo
dosa TV Excelsior, sempre sonhou com as câmeras. Na TV Cultura, enquanto par- Cunha, seu sócio queria fazer filmes baratos, tendo como modelo o Galante,
ticipava, ainda como ator, da novela educativa "Meu pedacinho de chão", estudava enquanto ele já estava querendo firmar-se como cineasta, tinha pretensões
cinema. Sua estréia, dirigindo a comédia "O clube das infiéis", revelou um di-
artísticas, queria agradar a crítica, da parte de quem começava a conquistar
retor seguro na condução dos atores, muitos deles também estreantes, e, princi-
um olhar mais generoso:
palmente, de bom gosto e criatividade nos enquadramentos e nos cortes. Em O
DIA EM QUE O SANTO PECOU, contando com um grande elenco, com um roteiro
Eu lembro que, no dia da estréia do filme ... O Cine Marabá era um termô-
mais ambicioso e com um apoio técnico dos melhores, Cláudio Cunha deu um
metro. Ficava todo mundo de olho, porque, pela primeira sessão do Marabá, que
salto significativo. Firme, seguro, talentos o e não fazendo nenhum tipo de con-
era às 10 horas, você já sabia o que ia acontecer com o filme no Brasil inteiro.
cessão. Chega a surpreender.
Era incrível! Ficavam os exibidores do Brasil inteiro ligando pro Chiquinho [...]
pra saber quanto a fita rendeu na primeira sessão do Marabá. [... ] Rapaz, na se-
Surpreendendo sempre, Cláudio Cunha procurava escolher com preci-
gunda-feira de manhã, às nove e meia, eu fui para o cinema ver o que ia acon-
são os temas de seus filmes, apoiar-se em roteiristas experimentados e compor tecer. Quando cheguei na Avenida Ipiranga, era uma agitação danada, gente à
o elenco com nomes que pudessem garantir maior divulgação. Com pro- beça. Eu pensei: "Nossa, o que está acontecendo? Só falta ser uma greve, um
dução da Kinema Filmes, realiza, em 1977, Snuff- Vítimas do prazer, movimento que vai me arrebentar com o filme". Mas o tumulto era gente que-
com Carlos Vereza e as atrizes Rossana Guessa e Nadyr Fernandes - as rendo ver o filme.
musas, respectivamente, dos filmes cariocas e paulistas. O roteiro do filme O Marabá tinha uma fachada colossal. Então, fiz uma fachada enorme, um apa-
foi escrito em parceria com Carlos Reichenbach, inspirado em uma re- rato na porta do cinema. Botei assim: "Snu./f - Vítimas do prazer. O filme em que
portagem da revista Manchete sobre filmes clandestinos que mostravam as atrizes foram estupradas e assassinadas de verdade". Aí, todo mundo ia lá pensando
as atrizes sendo estupradas e assassinadas de verdade. Trata-se da histó- que ia ver estupro e assassinato. Sem falar no trailer, que batia muito. Isso era o que
pegava: o trailer, a fachada, o título. E a tradição dos cinemas. O Marabá era um
ria de dois produtores americanos que querem realizar um filme seme-
cinema de cabeça. A fita que ia pro Marabá o público já sabia que era boa.
lhante no Brasil.
Para finalizar Vítimas do prazer, Cunha conseguiu associar-se (vender
Importante ressaltar, neste depoimento do cineasta, a mí(s)tica das salas
porcentagem do filme) à empresa Sul-Paulista e ao grupo carioca Severiano
de cinema. Era um tempo em que os cinemas tinham nome, uma iden-
Ribeiro - o maior exibidor nacional:
tidade e, por assim dizer, tradição. O Cine Marabá, no centro da cidad
de São Paulo, era, realmente, o templo dos lançamentos, principalmente
Já tinha estourado o orçamento do filme e eu comecei a brigar com o Duque,
dos filmes da Boca do Lixo. A exploração comercial da fachada do i-
porque eu tinha a pretensão de fazer uma coisa melhor e ele queria fazer de qualquer
jeito. [... ] Aí eu cheguei no Rio de Janeiro e procurei o Severiano Ribeiro [... ] nema com outdoors criava um clima excitante para o filme, mobilizan-
propus que ele comprasse uma porcentagem do filme, e ele: "Mas, cadê o filme?" do o público.
Eu disse: "O filme está cortado em anéis, eu não tenho como te mostrar". E con- ~ O público da pornochanchada, nos anos 1970, era principalm .nrc mas
segui, ele confiou em mim. Comprou o filme sem ver, baseado nas fotos. Me deu I culino e formado por pessoas que circulavam pelas áreas .ru rais 1:1S
uma grana no mesmo dia. Saí da sala dele com o cheque. [... ] Aí, comecei a ter I grandes (e médias) cidades. As salas de cinema aí esrabclc idas ai rufam
moral com os exibidores, porque o Ribeiro comprou no escuro, na confiança.

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s .u freqüentadores expondo e divulgando as qualidades dos filmes com blico. O forte grupo exibidor Severiano Ribeiro, que havia investid .m
imensos displays, painéis e cartazes montados com a figura de uma atriz Vítimas do prazer, entrou, via Atlântida Cinematográfica, na compo ã

(ou atrizes) insinuando erotismo. Por diversas vezes, Helena Ramos, financeira para a realização do filme, cujo título foi disputado pela produtora
Matilde Mastrangi ou Aldine Müller foram as "rainhas do Marabá", ex- de Luís Carlos Barreto.
postas, enormes, na fachada do cinema. Neste sentido, a deterioração gra- Cláudio Cunha relata:
dativa dos centros urbanos, com o fechamento destas salas, significou o
afastamento de segmentos significativos - classes populares - do pú- Quando eu quis fazer o filme, minha intenção era comprar a música do Roberto
Carlos. Só que o Luís Carlos Barreto sabia da minha intenção, foi lá e negociou
blico, que acabaram perdendo contato com o cinema brasileiro.
as músicas do Roberto Carlos para fazer o seu Amada amante. Só que eu já tinha
Talvez por ter começado como ator de televisão e, certamente, por tino
registrado o título. Era engraçado, na época: nós dois no Rio de Janeiro, filmando
empresarial, Cláudio Cunha foi mais atento ao relacionamento com este
ao mesmo tempo. Havia dois filmes chamados Amada amante sendo rodados: o
veículo, pouco acionado pelo sistema da Boca do Lixo. Para o trabalho se- meu e o do Bruno Barreto, que ficou Amor bandido. O Walter Clark, no livro
guinte, reatou a parceria com o escritor de novelas de televisão Benedito dele, Campeões de audiência, cita essa passagem. Ele conta a experiência dele em
Ruy Barbosa, com quem escreveu o roteiro de Amada amante (1978), seu cinema, que perdeu dinheiro no filme Amor bandido. Ele fala bem assim: "Perde-
maior sucesso de público. mos pro Cláudio Cunha a briga pelo título Amada amante, sendo que o nosso
O fllder promocional de Amada amante expõe com nitidez as referências filme fez 240 mil espectadores e o dele fez 2 milhões de espectadores. Esses Barreto
de que se serve o diretor-produtor, voltado para um cinema de entreteni- não entendem nada de cinema".
mento com bom acabamento - o melhor similar nacional que a Boca
poderia oferecer. O texto refere-se à assumida influência do cinema popular Após este filme, Cláudio Cunha filmou O gosto do pecado (1980), com
italiano sem, no entanto, deixar de derrapar no fetiche da cultura "erudita", roteiro de lnácio Araújo, que também trabalhou como assistente de dire-
incluindo "explicações psicanalíticas" para seus personagens. Vale a pena ção. Desta vez, porém, o produtor-diretor não foi tão bem-sucedido.
reproduzir alguns trechos: Diz lnácio Araújo:

Amada amante é uma comédia amarga na melhor linha dos filmes de Dino Vi o filme Snuff- Vítimas doprazer e achei excelente, com uma força ... Neste
Risi (Aquele que sabe viver, Perfume de mulher, Férias à italiana), ao mesmo tempo momento, eu não queria mais ser montador, achei que já tinha feito o que podia
em que emociona, leva o público a rir de situações e conflitos muito mais trá- fazer em montagem, então resolvi escrever um roteiro para o Cláudio Cunha. Deu
gicos do que cômicos. O espectador médio pode encontrar facilmente pontos de em águas de barrela, porque era um melodrama - que não era a praia do Cláudio.
contato com sua própria realidade [... ] O que se torna polêmico, em Amada [... ] Foi uma desgraça, porque, além do mais, eu era assistente de direção e via,
amante, é se o seu teor é realmente moralista, ou se a intenção do diretor foi im- dia após dia, o filme ser destruído, mais do que já havia sido no roteiro original.
primir à sua tragicomédia o moralismo latente no espectador; e se as soluções finais O Cláudio tinha essa pegada para coisa de porrada, para filme policial, ele era
devem ser encaradas como castigo, no sentido cristão do termo, ou se significam bom nisso. [Este] era um filme mais delicado.
a verdadeira aproximação dos personagens entre si, sem as barreiras do con-
vencionalismo, do patriarcalismo moralista, da solidão em família, na melhor A respeito do método de filmagem praticado por Cláudio unha, rc-
solução reichiana. conhecido talento gerado na Boca do Lixo, lnácio Araújo faz uma r v 'Ia~'ã)
in teressante:
Como se vê, Wilhelm Reich parecia estar na cabeceira de algumas ca-
mas, dentro e fora das telas da Boca do Lixo. Amada amante, filmado no Ele vai filmando cada posição de câmera na ordem da montag 111. .cr a o !11m'
Rio de Janeiro e finalizado em São Paulo, foi um enorme sucesso de pú- todo assim, é de enlouquecer. Ele filma a cena inteira oito vez s. Todo mundo

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filma de um lado, depois do outro; o Cláudio não, ele queria dar continuida- eu diria que é dirigir. Porque acho que sei o que o público quer. Eu sei mo
de para o ator. Tanto que, em O gosto do pecado, o Carlão [Reichenbach], que conduzir o ator, o que falar. Uma coisa que sempre evitei de correr o risco cha-
era o fotógrafo, quase enlouqueceu. Ele fazia a luz recortada, cheia de bandeira ma-se erros de concepção. Você fazer uma cena que o povo vai falar: "Vou en-
etc., o Cláudio fazia o primeiro plano, tudo bem, corta. Agora põe a câmera golir por engolir, mas ...". Eu sempre tentei fazer de um modo que o público falasse:
aqui, tudo bem. Agora, volta pra lá. Não dá, não tem como fazer a mesma luz, "Isso pode acontecer". [... ] Tudo é a forma de fazer.
lembrar da marcação horas depois. Aí o Carlão, no outro dia, fez uma parede
de isopor [rebatedor], porque assim você pode pular para onde quiser, filmar de Helena Ramos e Patrícia Scalvi, que participaram do elenco de Dezenove
qualquer lado. mulheres, têm outra visão a respeito desta aventura mato-grossense, per-
meada, evidentemente, pela ótica feminina. Relata Patrícia Scalvi:
Depois de ganhar notoriedade como ator de cinema e de novelas de tele-
visão, e tendo firmado sua reputação como produtor da Boca do Lixo - Mato Grosso foi muito engraçado. A gente foi de ônibus, filmando pelo meio
produziu, com sucesso, três filmes policiais dirigidos por Jean Garret -, do caminho, parando e dormindo, filmando no ônibus. Fazia parte da história.
David Cardoso estréia na direção com o filme Dezenove mulheres e um ho- Eu fazia uma freira, com aquela roupa infernal, naquele calor pavoroso. Mas,
mem (1977), roteiro de Ody Fraga, ambientado em locações de seu estado enfim, tudo bem. Era um filme que tinha umas quatro atrizes - a Helena Ramos
natal, Mato Grosso do Sul, na intenção de explorar a beleza natural do era uma delas. O resto era tudo garota de programa. Modelos, né? O Oavid falou
que nós íamos ficar numa fazenda. Quando nós chegamos lá e a mulher do dono
Pantanal e conseguir apoio financeiro. Como diretor, David Cardoso procu-
da fazenda viu aquele monte de mulheres, falou: "Nem pensar que essas mulheres
raria explorar o gênero do filme de aventuras, oferecendo um "espetáculo
vão ficar hospedadas na minha casa, na sede da fazenda". Aí, ela deu pra gen-
com muita ação" interpretado por ele mesmo.
te duas casinhas de terra batida, casa de colono, pra este mulherio ficar. A gente
Embora possa parecer ingênuo, o cinema de Oavid Cardoso segue com tinha que bombear água para tomar banho, para você ter uma idéia. Terra batida,
obstinação algumas regras e fórmulas consagradas pela tradição (impos- morcego voando pra tudo que é lado, chovia ...
ta) do cinema americano de ação e aventura. Ele constrói um herói irna- As meninas saíam muito, iam a muitas festas. Mas eu era muito bobona, ti-
culado, disposto a enfrentar onça-pintada, serpente traiçoeira, lutar contra nha 19, 20 anos, e, um dia, falei:
vários bandidos ao mesmo tempo, para salvar mulheres, crianças e velhos - Todo dia vocês vão pras festas e não me convidam.
das garras de malfeitores que povoam o Pantanal mato-grossense e, na - Mas, Patrícia, você é casada.
última cena, terminar com a mulher mais desejada, de preferência "gostosa" - E daí? Não posso ir a uma festa porque sou casada?
e virgem. Em Dezenove mulheres e um homem, aparecem de modo super- - Não, é que nós vamos a um encontro de coronéis.

lativo as intenções da fórmula adotada: gente às dezenas - com o evi- - Entendi.


Aí eu acabei ficando amiga da senhora dona da casa. Eu e a Helena Ramos
dente potencial de exibição anatõmica de 19 mulheres! -, lutas aos mon-
éramos as únicas que freqüentavam a casa.
tes, aviões etc., numa linha de exacerbação e congestionamento que pro-
cura conduzir o espectador a sentir-se num filme de muita ação.? O filme
Segundo Helena Ramos,
foi um grande sucesso e um orgulho para o diretor:
Esse filme foi tragicômico por trás das câmeras. O Oavid já é um p LI 11 'r-
Também foi o único grande sucesso que dirigi. Explodiu minha cabeça. Eu
voso ... E como eram 19 mulheres, ele pegou algumas atrizes, mas a maioria rnm
acho que, hoje em dia, se me perguntassem o que eu tenho mais tesão de fazer,
modelos. Modelos profissionais lindíssimas, mas ... Imagine esse m I1t d' mu-
lheres lá no meio do mato, no Pantanal de Mato Grosso. Entrar 11 barro, sr ir
do barro, aranhas ... Foi um trabalho terrível. Porque era assim: a mulh r s vã
6 Cf. lnimá F. Simões, 1981 b.

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morrendo misteriosamente, conforme o desenrolar da história. Eu a hava muito emanas. Eu entrei e fiquei oito semanas. O único filme nacional, até hoje na his-
engraçado, porque quem ia morrer no começo morria mais para o meio, e quem tória do Brasil, a ficar dois meses no Cine Marabá é o meu. Pode procurar.
ia morrer no fim morria no meio. Ele mudava tudo. As que davam menos trabalho
iam ficando pra morrer mais tarde. Ele ficava bravo, ficava nervoso: Em 1978, David Cardoso produz, atua e dirige o policial Bandido, afúria
- Mário, prepare o sangue. do sexo, o qual, apesar da infra-estrutura de que dispunha, é realizado com
- Pra quem?
a rapidez e a precariedade prescritas no figurino da Boca: Bandido teve o
- Pra Fulana.
roteiro escrito por Ody Fraga em 8 dias e foi rodado em 13. No ano seguinte,
- Mas, não era Beltrana?
retoma ao filme de aventuras e à paisagem mato-grossense com Desejo sel-
- Não, Fulana vai morrer primeiro.
Ele quase enlouqueceu. Imagine 19 mulheres lá no meio do Pantanal. O David
vagem (Massacre no Pantanal) (1979), em que explorou (na divulgação) a
foi um herói. participação da princesa Ira de Furstenberg, figura turva do jet set interna-
cional, como atriz convidada.
Em seu depoimento, Cardoso também faz uma revelação sobre o filme Na virada dos anos 1980, sentindo as pressões da curva descendente do
que é um verdadeiro anticlímax: "Eram 19 personagens, mas lá só tinha desempenho da economia cinematográfica, especialmente para o capital
17. Por isso, eu não deixava a turma contar. Quando desciam do ônibus, privado da Boca do Lixo, David Cardoso, coerente com sua proposta de
eram uma, duas, três, quatro, quando chegava na décima sétima eu cortava, cinema de entretenimento popular (de massa), volta-se para a produção de
pra não deixar eles contarem. Pegava as duas primeiras que saíram, pu- filmes destinados ao faturamento explícito, explorando seu tipo de "mo-
nha uma peruca, e elas desciam de novo. Então, nunca teve 19". Mesmo cinho machão" em trabalhos que foram acrescentando violência, cenas de
cultivando uma imagem pública - uma persona - que parece (con)fundir nudez e exploração do sexo - na medida do abrandamento da censura e
ator e personagem, David Cardoso não descuidava de seu papel de em- da solicitação do público. Acompanhando as dificuldades do mercado, seu
presário que procurava dar a seu produto um revestimento diferenciado, investimento no bom acabamento dos filmes - elenco, trilha sonora ori-
com jogadas de marketing, promovendo, ao mesmo tempo, o filme como gi~al, locações espetaculares etc. - também foi caindo.
negócio e sua figura de astro-produtor. No precário ambiente da Boca, David faz, então, uma profícua parceria com Ody Fraga - como ro-
David Cardoso é o exemplo bem-sucedido da construção de um sistema teirista e diretor eventual-, começando por produzir uma "obra séria" (um
de estrelisrno masculino apoiado na própria imagem, um tipo atlético com estranho pornô político que combina "grossura sexual" e tortura), E ago-
corpo modelado, cercado por belas mulheres seminuas, que concentra- ra, José? - A tortura do sexo (Ody Fraga, 1979), filme que, no clima de
va as atenções. democratização do país, aborda a questão do aparelho repressor e da tor-
David Cardoso relata: tura, num plot que conta a prisão de um "inocente", motivada por sua
amizade com um líder "subversivo" procurado."
Meus filmes eram disputados. Eu escolhia a data. Pra você ter uma idéia, para A parceria com Ody Fraga continua em Noite das taras (1980), filme orn
o lançamento de Dezenove mulheres e um homem, fui à empresa Sul-Paulista, eles
três episódios dirigidos por Fraga, John Doo e pelo produtor. Num m -
me deram a data, e eu disse:
- Ah! Essa data eu não quero. Vocês vão me desculpar, mas eu quero depois
de O poderoso chefão, com o Marlon Brando.
7 Um filme pretensamenre político, que nem a cnsuru P .rccb ·U. Um arglllll '11(0 se-
- Não, porque aí já temos ...
melhante ao de um filme que viria a ser realizado '111 I<)ll • por Roh TI() Parias. PI'lI
- Então eu vou procurar outra distribuidora. frente, Brasil. Mas, como observa Guilherme de Alrncidn Prado, ussistcn«: de dir 'ç50
Aí consultaram o Paulo Sá Pinto, aquela coisa toda, e fecharam: "Tá bom ... ". de Ody, "a narrativa do E agora, José? é tão mal resolvida qu ' ningll <111 p 'r .cbc a sc-
Eu, então, joguei o meu trailer em cima de O poderoso cbejão, que ficou quatro melhança. E Ody sabia disso".

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mento de afrouxamento dos fios da Censura, de abertura políti a, e com Em 1978, seguindo a linha de diretor de estrelas e melodramas de ap I
o filme de sexo explícito estrangeiro batendo à porta, Noite das taras es- erótico, Alfredo Sternheim filma Mulher desejada, uma história sobre a cri e
tende os limites da exposição do erótico. Aproximando-se do hard-core, pessoal de uma estrela de televisão - tendo Kate Hansen como atriz princi-
mas ainda sem a presença de sexo explícito, o filme trabalha com linguagem pal-, com produção da Kinoarte de Alfredo Palácios, também argumen-
pesada e enquadramentos ousados, procurando explorar a nudez atraente tista do filme. A seguir, dirige Sandra Bréa, que encabeça elenco compe-
de Matilde Mastrangi. Rendeu muito dinheiro ao produtor, que, em 1983, tente em Herança dos devassos (1979), um drama claustrofóbico sobre a
realizaria Noite das taras 2. decadência de uma família tradicional. Em 1980, produzido pela DaCar
Segundo Matilde Mastrangi, Produções, de David Cardoso, realiza Corpo devasso, estrelado pelo próprio
David, que reúne Ody Fraga e Alfredo Sternheim num roteiro com tintas
Foi o último filme que eu fiz de pornochanchada. [... ] Quando me vi na tela, sociais e o reforço do apelo erótico, garantido pelo exuberante elenco feminino.
eu me assustei, saí do cinema. Ficou três semanas no Marabá, o que é raro. Fui Com produção de Adone Fragano, Violência na carne (1981), prota-
a rainha do Marabá com esse filme. Mas, depois de Noite das taras, eu decidi parar,
gonizado pela sensual Helena Ramos, é um dos filmes prediletos do dire-
porque eu achei muito forte esse filme. Pela primeira vez, eu vi o que estava fazendo
tor - "porque eu acho que consegui fazer um filme político, numa épo-
e achei horrível. Porque o filme, quando a geme faz, é muito divertido. [... ] Não
ca difícil, com uma trama de suspense" .
tinha sacanagem. No caso do Noite das taras, já era um texto forte. Eu sabia, topei
fazer, mas não sabia da angulação que o Ody Fraga estava fazendo. Na tela, fi- Violência na carne foi filmado em locações nas praias de Ubatuba, li-
cou aquela coisa grande, ficou muito ... Ali, eu tive alguns closes mais genitais do toral paulista. É um dos muitos filmes produzidos pela Boca paulistana
que em qualquer outro filme que você vir. Eu me assustei. Hoje, se vir, não vou ambientados em praias, à beira-mar, com características próprias. A principal
me assustar, mas, na época ... Com o David Cardoso, eu fiz quatro filmes. delas é que os personagens não são dali, não vivem ali. A praia aparece como
um deslocamento da vida cotidiana, o locus para um fim de semana dife-
Cabe notar que, neste período, ocorre uma aceleração da espiral in- rente, para um afastamento da normalidade prosaica, um rompimento com
flacionária, e os filmes em episódios (juntando histórias curtas), que agra- os compromissos, em busca (exterior-interior) de uma vida de prazer (ou
davam ao público, tornam-se mais interessantes, financeiramente, de mais prazerosa), deslocamento este que alimenta as tensões da dramaturgia.
produzir, devido à relação custo-benefício: podia-se filmar simultanea- Praias desertas, paisagens encantadoras, sol, nudez, os corpos à mostra são
mente, encurtando prazos, salários e despesas de produção. Nesta linha, ambientes sedutores-libidinosos que fazem emergir pulsões - como os
Cardoso produziu, em 1981, Pornôl, com três episódios, dirigidos por Luiz confinamentos de Sade - que favorecem, com suas tramas, a liberação do
Castillini, David Cardoso e John Doo, e Aqui, taradosf, com dois episódios, tesão do público. No universo da pornochanchada paulista, a praia (por
um dirigido pelo produtor e o outro por Ody Fraga - que escreveu o roteiro oposição à cidade) aparece, quase sempre, como a representação de um topos
de ambos os filmes. Em seguida, retorna ao cultivo de sua imagem de as- erótico, libertário, paradisíaco.
tro, em As seis mulheres de Adão (1982), em que atua, dirige e produz, exage- Do ponto de vista da produção, os motivos para a existência de uma
rando no entourage. O cartaz do filme enfatizava o garanhão cercado de significativa filmografia de praia eram mais ordinários: o benefício era muito
belas mulheres. alto e o custo, próximo a zero.
Nem todos os diretores pretenderam ser produtores. Alfredo Sternheim Alfredo Sternheim revela:
admite que não tinha talento para captar e administrar recursos, preferindo
trabalhar como diretor (e roteirista) contratado. Assim, realizou filmes com Era barato. Você levava o elenco e a equipe para um lugar na praia, nÓSficá-
os principais produtores da Boca do Lixo: Galante, Palácios, Elias Cury Filho, vamos ali confinados duas, três semanas, dava para filmar em pou o tempo. [...]
David Cardoso, Adone Fragano, Juan Bajon, entre outros. [Filme] de praia, eu tenho Paixão na praia (que foi rodaclo no Rio), Violência na

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carne, Pureza proibida (rodados em Arraial do Cabo), Tensão e desejo e Bri- que não havia prostitutas na história e, portanto, não dava para pôr i so n
sas do amor - esses dois últimos eu fiz totalmente em Mongaguá, no litoral título da fita. As mulheres eram seqüestradas na rua e transformadas em mães
paulista, porque a gente conseguiu facilidades da Prefeitura, hospedagem, al- de aluguel- foiantes dessaonda de bebê de provetae donagem. Era um cara nazista
gum transporte. que fazia bebês com mães solteiras. Era meio de humor. É um filme que eu
gosto, que não tem em vídeo. Foi feito em três semanas. Eu me inspirei naquele
Mario Vaz Filho explica: livro do Ira Levin, Os meninos do Brasil, que virou filme, com o Gregory Peck.
Um filme que eu acho fantástico. Eu fiz uma paródia dele. Esse é um filme
[...] é lógico, era uma forma de pôr as mulheres de biquíni. A mulher bra- bem Boca.
sileira, nessa época, se você fizer uma análise, era a mulher mais limpa do mundo.
Tomava banho de chuveiro, que era pra mostrar ela pelada, depois tomava banho Neste depoimento de Sternheim estão sintetizadas, de modo evidente,
de piscina ou de praia. O engraçado é que a gente filmava na praia sempre fora de as condições de um filme "bem Boca": um título apelativo que muitas vezes
temporada, sempre filmava no frio. [...] Mas facilitava mostrar. .. não tem nada a ver com a trama do filme; um plot inspirado em algum filme,
livro ou assunto que traz alguma polêmica; a produção em associação com
Esse é um aspecto interessante. O motivo de filmar fora "de temporada" distribuidores e a filmagem em tempo recorde.
não era somente porque os custos eram menores, mas porque seria difícil Seu filme seguinte, Amor de perversão (1982), foi, segundo ele, uma
filmar de modo naturalista/realista - como fez a pornochanchada -, em produção oif-Boca, principalmente pelo elenco, integrado por Raul Cortez,
locações naturais, verdadeiras, com "aquele monte de gente", sem reservas Leonardo Vilar, Norma Blum, Tássia Camargo, John Herbert e Paulo Guar-
(nem merchandising) no hotel. Fora de temporada, o clima era outro: "um nieri, e pretendia lançar a jovem Alvamar Taddei ao estrelato. Com foto-
frio do cacete". Muitos filmes foram realizados com base nesta proposta, grafia de Carlos Reichenbach e música de Zé Rodrix, o filme foi produ-
nem todos com o mesmo "espírito". De todo modo, este segmento da pro- zido pela JJPJ, empresa de dois investidores novatos na Boca do Lixo. Foi
dução da Boca do Lixo, que tem locações em praias, é significativo e talvez o primeiro e único que eles produziram. Diz Alfredo Sternheim:
merecesse um olhar mais atento.
Sternheim reencontra Galante no que ele considera seu filme "com mais O Carlão [Reichenbach] é que ia dirigir este filme, um melodrama. O pro-
atmosfera de Boca do Lixo" (no sentido de produção "a toque de caixa", dutor queria um melodrama, e a história era dele. O Carlão leu, topou, mas depois
linguagem mais pesada, um roteiro cheio de mulheres nuas), As prostitu- "destopou" e falou: "Chama o Alfredo que ele quer ser Douglas Sirk". Foi óti-
tas do dr. Alberto (1981). Com co-produção de Alexandre Adamiu, da Paris mo, sou grato ao Carlão - que foi diretor de fotografia do filme -, porque foi
Filmes, o filme, uma recaída de Galante na série "presídios femininos", foi uma produção de Primeiro Mundo. O resultado foi legal, mas a história era um
rodado no próprio estúdio do produtor. pouco fraca, a Alvamar não tinha o carisma de star, e o público não estava a fim
"Foi assim", relata Alfredo Sternheim, de ver melodramas trágicos.
O filme não rendeu nada. [...] Mas eles não precisavam do cinema, foi uma
aventura. Eles não tinham a paixão. Queriam a badalação do cinema. O filme
o Galante tinha os cenários de presídio já prontos, num estúdio que ele ti-
teve uma pré-estréia.para 800 convidados com coquetel com champagne. Foi
nha em Santana, e me chamou. Eu vi o cenário e, em cinco dias, fiz o roteiro.
um clima maravilhoso.
Foi um filme típico da Boca do Lixo, baixo orçamento, mas foi legal. Tinha um
elenco muito bom - Serafim Gonzales, um ator de teatro maravilhoso; Vic
Militello, uma comediante fantástica; a Lígia de Paula, que hoje é presidente do Pode-se dizer que Sternheim passou por todos o cardápio da .1 dono
Sindicato dos Artistas. Tinha nudez, tráfico de mulheres, mas não tinha prostituta Lixo: filmes mais empenhados, de época, melodramas com I '11 'o (tll.l/lfI"
na história. Eu falavapara o AlexandreAdamiu e para o Galante, já "puro da vida", filmes de praias, filmes de presídio. Embora concorde qu :1iI1l:tg('"1 qlll'

98 99
UO A DO LIXO A BOCA DO LIXO ESTA NA NUA IIU 1~llIl'Irll l~r·.TII-~IIT----""'"

fi u seja a de um diretor de estrelas e de melodramas - drama cntimentais em Mulher de todos (Rogério Sganzerla, 1970) -, um roteiro que ,1-
românticos -, Sternheim define-se como alguém que tentou, e algumas brava o sexo tribal, sem limites. Galante resolveu investir, mas sugeriu
vezes conseguiu, fazer filmes com suspense, com humor, que realmente um método de trabalho: "Traz o roteiro, que não pode ter menos de cem
fossem plenos de sentimento e emoção. seqüências. Porque um filme com menos de cem seqüências é chato".
Após quatro anos de ausência da cena cinematográfica, período em Como fazem os produtores, Galante, provocativamente, dizendo du-
que se dedicou ao mercado publicitário, Carlos Reichenbach reintegra- vidar da coragem de Reichenbach para filmar algumas cenas contidas no
se à Boca do Lixo pelo domínio da técnica: como diretor de fotografia roteiro, impôs-lhe determinadas condições: 20 latas de 300 metros de ne-
de Excitação, a convite de Jean Garret, que queria uma iluminação requin- gativo (o que corresponde à proporção de dois takes para cada um apro-
tada para sua obra. Isso Reichenbach podia oferecer. A precariedade não veitado), uma equipe mínima, e que Carlão fosse roteirista, diretor de
era tudo na Boca. fotografia e diretor. Mais uma vez, impunha-se o padrão Boca de produ-
É importante assinalar a efetiva contribuição de Carlão como diretor ção: o mínimo de investimento para o máximo de aproveitamento. Carlão
de fotografia em vários filmes," das mais variadas extrações e de direto- Reichenbach encarou essa estrutura de produção, acreditando que, mes-
res de tendências (e competências) diversas, o que reforça a importância mo insuficiente, dava para transformar carência em desafio para a cria-
de sua participação e de seu testemunho para a compreensão dos movi- tividade: "Não tem pra fazer, então vamos fazer melhor. Por exemplo, vamos
mentos internos da Boca do Lixo. fazer uma cena de fronteira, então bota um pau aqui, outro ali, e um cara
Após Excitação, Carlão foi contratado como diretor de fotografia pela vestido de militar latino-americano. O filme é isso".
produção de Capuzes negros (1978), projeto de Mauro Chaves (autor do O filme narra a história de uma mulher pertencente a uma organização
argumento e do roteiro) que seria dirigido pelo diretor teatral Celso Nunes. de extrema direita que é mandada a uma ilha para matar dois prisioneiros
Antes do início das filmagens, porém, Reichenbach foi convidado a assumir políticos, um anarquista e um teórico de linha reichniana - aliás, o per-
também a direção do filme, que passou a ter um segundo (codi)nome, Sede sonagem chama-se William. Para Reichenbach, A ilha dosprazeres proibidos
de amar. é uma história de exilados políticos.
Neste mesmo ano, ocorre um encontro fundamental para os anais da
Boca do Lixo: Antonio Polo Galante propõe uma produção a Reichenbach: o resultado que esse filme teve é que foi muito maluco. Você não pode su-
"Vem fazer um filme comigo. Mas não quero aqueles filmes "rniúra". Aque- bestimar o público. Pensar que ele não vai entender. Uma das coisas que me
fez fazer A ilha dosprazeres foi exatamente isso. [... ] a idéia era pegar aquele re-
las coisas que ninguém entende". Reichenbach propôs a realização de A
pertório e subverter, como um tipo de cultura juvenil, um filme alienado. Por
ilha dos prazeres proibidos - em que aproveitava uma sugestão contida
que não?
Porque a pornochanchada, naquele momento, era racista, preconceituosa,
reacionária e misógina. Então, por que não fazer alguma coisa para subverter isso?
8 Filmes com direção de fotografia de Carlos Reichenbach: Liliam M - Confissões A idéia é essa. Tem de criar um frisson no cinema.
amorosas (Carlos Reichenbach, 1975); Excitação (jean Garret, 1977); A ilha dos amo-
resproibidos (Carlos Reichenbach, 1978); Meus homens, meus amores (José Miziara, A ilha fez 3,5 milhões de espectadores e foi vendido para toda a Amé-
1978); Sede de amar (Carlos Reichenbach, 1978); A dama da zona (Ody Fraga, 1979); rica Latina. Se por trás da aparência de um tbriller eróti o havia uma lei-
A força dos sentidos (Jean Garret, 1979); Mulher, mulher (Jean Garret, 1979); Viúvas
tura política, isso não importava para Galante. Foi uma de suas maiores
precisam de consolo (Ewerton de Castro, 1979); O gosto do pecado (Cláudio Cunha,
1980); Amor, palavra prostituta (Reichenbach, 1981); As prostitutas do dr. Alberto
bilheterias. Conta Reichenbach que o pessoal do alante lhe perguntava:
(Alfredo Sternheim, 1981); Amor de perversão (Alfredo Sternheim, 1982); Doce delí- "Esse filme não tem umas coisas estranhas?", ao que ele respondia: "O Carlão
rio (Manoel Paiva, 1982); Tessa, a gata (John Herbert, 1982). é isso mesmo. Ele bota umas coisas esquisitas, mas o público vai".

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100 Biblot.eca - lFCH
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lJ A DO LIXO
A BOCA DO uto TA NA RUA DO TRIUNfO:
"7 ·1"7·~----

. expressivo sucesso comercial de A ilha dosprazeres proibidos trouxe semana pra cada um filmar e, em um mês, eu tenho o filme pronto. Pego o arlão,
ReI henbach para a linha de frente dos realizadores (bem-sucedidos comer- que é meu valor seguro - eu conheço o seu trabalho, ele vai fazer um bom epi-
ialmente) da Boca do Lixo, onde teria oportunidade de trilhar um caminho sódio. Pego o lnácio, que nunca fez nada, mas está louco pra fazer - "vamos dar
singular, assimilando-reinventando influências do cinema culto interna- uma chance pro cara". Mas quem vai me garantir é o episódio do Toninho Me-
cion~l e trab.alhando repertórios populares para realizar, no precãrio/in- liande, porque aí eu sei que rola baixaria.
ventl~o ambiente da Rua do Triunfo, uma obra com forte marca pessoal,
um cinema autoral. A partir de então, ~ carreira de Carlos Reichenbach iria descolar-~~ d~:)
. Reichenbach manteve a parceria com Galante - que lhe assegurava total padrões da Boca do LIXO,não sem que ele, antes, tentasse uma expenenCla I
liberdade, dentro das limitações -, na realização de O império do desejo coletiva de produção, uma cooperativa, a Embrapi - experiência de que :
~
(1978), uma experiência radical, em que mistura com ironia e humor cor- trataremos no capítulo seguinte.
rosivo suas (da época) referências políticas e cinematográficas: uma es-
~ -
trutura de policial-aventura erótico, locações no litoral, personagens ines-
perados - uma bela viúva quarentona, um casal remanescente da con- RECORTES SOBRE TONY VIEIRA
tracultura, um milionário louco e poeta, um anarquista e uma militante
maoísta (que será cozida num caldeirão lendo o Livro vermelho de Mao), Em meados dos anos 1970, observa-se, na produção da Boca do Lixo, uma
Em 1979, realiza Amor, palavra prostituta, com produção de Cláudio certa tendência (que ocorre na produção nacional em geral) de investir no
Cunha (Cinema e Arte) e Jean Garret (Íris Produções) e roteiro em cola- gênero policial, ainda que sem abandonar os outros gêneros - o que é
boração com Inácio Araújo - inspirado em leituras do filósofo Soren coerente com seu projeto "industrial". O cinema policial (popular de massa)
Kierkegaard. Um filme polêmico, que ficou interditado na Censura por dois surgido nas manufaturas da Boca do Lixo apropriava-se do imaginário
anos, sob ~legação de defender a liberação do aborto. "O filme faz parte cinematográfico do gênero, de uma literatura popular do tipo "livro de bolso"
do que o diretor chama de 'cinema da alma' e, na verdade, é um filme femi- e de casos policiais veiculados pelos jornais populares.
nino, com toques de melodrama"." Tony Vieira foi um dos produtores que fizeram essa rotação. Na s~
Em 1980 Reichenbach retoma à Produções Cinematográficas Galante gunda metade dos anos 1970, com o declínio do western junto ao público, I
para realizar Paraísoproibido, com produção de Roberto Galante, filho de Vieira passa a realizar filmes policiais mantendo o mesmo espírito (e a
~nt~nio Polo ..Co~ o mesmo esquema de produção, dirige, em seguida, mesma matéria, por assim dizer) que movia sua produção. Inspirado em
Rainha do fltpper , um dos três episódios de As safadas (1982) - os ou- "casos verídicos", recolhidos no meio policial ou do jornal Notícias Po-
tros dois foram dirigidos por Inácio Araújo e Antonio Meliande. Este fil- pulares - que deveriam ser "fantasiados, porque o que aconteceu real-
me é exemplar do tipo de produção praticada no período de escalada da mente não funciona em cinema" -, realizou um cinema simples, ingê-
inflação - uma das causas econômicas da doença terminal da Boca do Lixo. \ nuo e mal costurado, copiando os clichês da produção B estrangeira, mas
Inácio Araújo comenta: resistente em seu apelo junto ao público mais carente. Se é possível di-
zer que o cinema da Boca guarda identidade com quem o realiza e com
P~r exem~l~, em As ~afodas, o q~e o Galante fez? Como produção, a intuição seu público, o caso dos filmes de Tony Vieira é exemplar. Tony representava
é ge~lal. Voce unha, ~a,e~oca, uma Inflação de 10% ao mês. O que eu tenho que exatamente seu público, extratos do "povão" que, no escurinho do in 'ma,
fazer. Um filme de episódios, em que as três equipes saíam ao mesmo tempo. Uma poderiam pensar: "Isso aí tem a ver comigo!".
Em Os violentadores (1978), um filme "policial de fronteira", O h .rói <
9 Cf. Ramos e Miranda, 2000, p. 450. um caçador de prêmio que faz justiça a estupradores. Em O r!f'prlll/flr!o

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UO A 00 LIXO A BOCA 00 LIXO fS A NA RUA DO nus . 1

(1978), um policial urbano, um bandido renega o bando e faz a sua vin- Uma das caracterf ticas dos filmes do gênero policial (americano) é
gança- tema recorrente nos filmes populares (de massa). Nestes dois filmes, estabelecer os traços psicológicos de alguns personagens, principalmente
Tony utiliza-se de um recurso - por ele já utilizado antes - significati- do "culpado", e, ao longo das peripécias, ir construindo um quase sempre
vo: os créditos são narrados na apresentação. Um tiro certeiro em dois al- misterioso desenho psicológico da vilania, algo - um trauma - que
vos: o barateamento dos custos de laboratório e o encontro com setores de o conduziu ao mal e, de certo modo, justifica sua culpa no nível pessoal,
"seu público" que tinham dificuldade de leitura. muitas vezes absolvendo as causas sociais, já que do mesmo contexto
Tony Vieira tinha consciência do papel do filme de gênero como ele- saem os heróis - detetives, policiais, investigadores etc. Neste filme,
mento de sustentação da dinâmica comercial e cultural do cinema: o personagem "tem problemas" em função de seu relacionamento com
a mãe - o que explica o texto da revista -, mas Vieira vai direto ao
Eu acho que devemos arrastar o povo para o cinema nacional, dando a ele o ponto, sem firulas. "E, se a ciência não resolveu, o Tony não se arrisca."
que está acostumado a ver: a televisão e o cinema americano. É por isto que eu Vieira osiciona-se firrnemente na trincheira da Boca do Lixo. Ao contrário
adotei esta linha de cinema policial, saltos mortais, tiros. [...] Os Estados Uni- de outros cineastas da Rua do Triunfo, ele.não procura revestir seu trabalho
dos têm inúmeros diretores fazendo bangue-bangue, violência, policial, certo? de um ~rniz cultural, ou mesmo alegar falta de recursos para uma produ-
Nós não temos. [...] e eu procuro ficar martelando a mesma coisa. Então, nós não
S~ais bem acabada. Assume corajosamente a condição de popular - que,
podemos discutir esse assunto de filmes diferenciados, com personagens mais
no texto, está no lugar de "mais verdadeiro", "mais puro", mais próximo
complexos, porque nós não temos gênero no Brasil. 10
do "povo" -, para marcar a diferença entre seus filmes e outros produ-
tos da própria Boca que pretendiam cortejar setores intelectualizados, bem
Em 1979, Tony Vieira realizou O matador sexual, baseado nos "hediondos
como em relação aos fIlmes de extração mais intelectual que abordam o
crimes de Chico Picadinho". Seu compromisso com o popular é enfatizado
mesmo terna.F Vieira definia-se desprovido de pretensões babacóides e,
em matéria publicada na revista Cinema em Close Up, especializada em
produções da Boca: para muitos, ele trabalhava o "popularesco".
Como observa José Mário Ortiz Ramos, a ingenuidade do cinema de
O personagem de Tony Vieira, Renê, ao contrário (de Chico Picadinho), é Tony Vieira era, por assim dizer, aparente. Um sistema de sustentação
ágil, escorregadio, mais para "estrangulador de Bosron" do que o vulgar coita- do produto estabelecia-se (a exemplo de David Cardoso), aproximando
do caboclo. Este filme, como os anteriores de Tony Vieira, visa unicamente ao sua fIgura pessoal e a imagem pública veiculada pelos personagens, arti-
divertimento da platéia. Uma aventura policial bem contada, sem firulas, sem culada pela construção de um tipo de herói informado pela própria mi-
tentativas de incursão num problema que a medicina ainda não resolveu. E se tologia do cinema.
a ciência não resolveu, o Tony não se arrisca. É justa a posição, desprovida de
pretensões babacóides, como a de outros cineastas conhecidos que pensam ex- Na verdade, procurava-se a imersão no universo cultural das classes B e
por a mentalidade escandinava em seus filmes e cometem o infantil erro de co- que o diretor pretendia atingir, e pensando nesse público os filmes eram divul-
locar crises morais em personagem classe média do citado pOVO.11 gados em jornais e programas populares. Fechava-se,assim, um contorno cultural
e midiático dentro do qual seria eficaz o gênero policial com essas cara l rfs
ticas. O imaginário do cinema americano e italiano, sempre apontad S 01\\0

10 Apud José Mário Ortiz Ramos, 1995, pp. 209-10. Cf. entrevista de Tony Vieira para 12Uma série de crimes, cometida por um esquartejador em São Paulo, 'ollhn ido P(·1.1
Inimá F. Simões. São Paulo, IOART, 19 dez., 1978. imprensa como Chico Picadinho, também inspirou Ato de uiolên ill (blll.lldo 11,
II CE. Cinema em Close Up, ano I, nº 18. São Paulo: MEK, jun., 1979. corei, 1980).

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molas-mestras desse cinema, na verdade entrava na composição de uma onsrelação é direção de cinema". E me deu uma aula que ... eu não vou dizer qu 'SlaV:1

mais ampla, que abarcava dimensões diversificadas da vida cultural das classes precisando, mas foi uma aula sensacional, com uma visão fantástica [...]. Eu a h ·i
populares. 13 extremamente bonito da parte dele. E era uma coisa muito sincera. Não tinha
nenhuma sacanagem naquilo, nenhuma pretensão. Ele queria realmente que eu
Tony Vieira praticou um cinema naif, em que articulava pessoa e per- não cometesse os erros que ele havia cometido. [... ] Era um coisa inesperada, até
sonagem, detendo um público cativo - inclusive com fã-clube. pelo cinema que ele fazia. Não dava para imaginar que ele tinha uma certa re-
Matilde Mastrangi revela: flexão sobre aquilo.

Ele ganhou muito dinheiro. Ganhou mais dinheiro, sei lá, que o Khouri, que E depõe Luiz Castillini:
tinha um filme mais ... [... ] Eu nunca levei o Tony a sério. Era um bom sujeito,
mas nunca quis trabalhar com ele. Muito fraco, pobre demais, de roteiro, aca- Eu gostava do Tony. O cinema dele tinha aquela coisa ingênua e divertida,
bamento. Ignorantão, né? Ele se achava o Clint Eastwood do Brasil. [... ] Mas ele gostosa de se ver pela ingenuidade. Hoje, não. Se a gente for ver, é um cinema ...
era assim mesmo na vida pessoal. Aliás, na Boca, tinha uma turma que se acha- Desculpe-me o falecido, é um cinema ruim. Na época, era uma coisa saborosa,
va aquilo mesmo. tinha o seu lugar. Era uma coisa kitsch, uma coisa jeca, não é? Ele tinha uma visão
das coisas que era extremamente saborosa. [...] O Tony tinha coisas assim: "Vamos
Seus filmes tinham distribuição e exibição garantidas em cinemas po- fazer um filme sobre a Máfia no Brasil". "Legal, vamos." Ele misturava as esté-
ticas, misturava tudo. Botava o bandido brasileiro assim como a gente está acos-
pulares, e ele era um dos poucos (em companhia de Mazzaropi) astros do
tumada a ver aí na rua e, ao lado dele, um cara com terno listrado e um cravo na
cinema brasileiro com exclusiva veiculação através do cinema. Associado
lapela. Era maravilhoso.
ao comendador Francisco A. Soares, investidor que participava como ator
secundário nos filmes, Tony Vieira manteve, através de sua produtora,
Este tipo de produção cinematográfica entra em declínio juntamente
MQ - Mauri de Queiroz Produtora e Distribuidora, uma expressiva com a decadência física e social do centro das cidades grandes (e médias),
continuidade de produção, seja como ator, diretor ou produtor. Exercendo que leva ao aviltamento das salas de cinema, e com a clausura televisiva que
as três funções, realizou 11 filmes entre 1975 e 1983, entre eles Os pilan-
esvazia e fecha as salas populares de bairro e de periferia. Classes populares
tras da noite (Picaretas sexuais) (1975), Torturadas pelo sexo (1976), As amantes e cinema ficaram sem espaços sociais - na vida pública - para celebrarem
de um canalha (1977), O matador sexual (1978) e O último cão de guerra
seu encontro. A violência cobrou esse empobrecimento, e alguns gêneros
(1979). De 1982 até sua morte, em 1987, seguindo uma estratégia de so- ficcionais - terror, suspense, policial etc. -, de certo modo, saíram das
brevivência abraçada por parte da Rua do Triunfo, dedicou-se à produção telas para entrar na vida.
e direção de filmes de sexo explícito. "Gestado, parido e solado" na Boca
do Lixo, Tony Vieira foi um dos seus habitantes mais queridos.
Sobre ele, diz Guilherme de Almeida Prado:
RECORTES SOBRE JEAN GARRET

Tive um contato maravilhoso com o Tony Vieira, que eu gostaria de ter gravado
Com produção de Manoel Augusto "Cervantes" Sobrado Pereira (Masp .
[... ]. Quando ele soube que eu ia dirigir As taras de todos nós, sentou-se comigo
Filmes), sempre cuidadosa e bem trabalhada (para os padrões da Boca), J :111
lá no Soberano e falou: "Você vai dirigir um filme e eu preciso te explicar como
Garret realiza, nesta segunda metade dos anos 1970, três filmes qu 011
firmam sua reputação de cineasta atento, estetizante e hábil para desenvolver
narrativas. Exercitando-se em gêneros diferentes, explora o suspensc '111 I~
13 Cf. José Mário Ortiz Ramos, op. cir., p. 211.

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ritnção (1977), arrisca o cinema-catástrofe em Noite em chama (1978), e ou do filme que se ia realizar. Muitas vezes, não era possível, mas o Jean h· 'a-
"acerta a mão" no erótico Mulher, mulher (1979), um grande sucesso de va a sofrer pra tentar passar idéias ao público. Era uma pessoa que fazia um tipo
público, com algum afago da crítica. de cinema dentro do que era possível fazer na indústria daquele momento.
Por sua formação em fotografia e experiência em fotonovela, que fun-
ciona praticamente como um story board - a articulação de uma narrativa Pelas intenções estéticas, pelo esforço em buscar um resultado "menos
pelo encadeamento de fotos fixas ("planos") -, jean Garret tinha uma vulgar" (para os padrões críticos da grande imprensa e do público "zona
educada visão de enquadramento, de como decupar para contar uma his- sul"), pela determinação em obter o que se pode denominar de bom aca-
tória. Na Boca, tal capacidade representava um grande capital, pois, lá, bamento - fatura compatível com o cinema comercial produzido pela
saber conduzir uma decupagem era a maior demonstração de competência EMBRAFILME -, Garret conseguiu, de certo modo, atravessar a barreira do
artística de um diretor - a outra era controlar uma equipe. A procura \ "bom gosto" e assegurar, para parte da produção da Boca do Lixo, a con-
de um "visual de bom gosto" refletia-se também na fotografia, na bus- @ção de obras eróticas. Isto se dá principalmente com Mulher, mulher
ca de um "estilo", não só pela escolha do fotógrafo, como também pela exi- (1979), filme baseado em roteiro escrito em parceria com Ody Fraga, que--
gência do projeto. conta a história da viúva de um psiquiatra especializado em questões sexuais,
Carlos Reichenbach revela: uma mulher solitária e insatisfeita que, ao tomar contato com algumas fitas
gravadas pelo marido, que continham depoimentos de seus pacientes,
o primeiro filme que eu fotografei na Boca foi Excitação,do Iean Garrer. Ele começa a transformar sua vida sexual.
me convidou porque queria uma fotografia requintada. Eu lembro que o levei O enorme sucesso de bilheteria do filme pode ser creditado, também,
para assistir Chabrol, um filme que tinha fotografia de Jean Rabier, pra ver se era à atuação marcante de Helena Ramos, interpretando situações inéditas no
a luz que ele queria - e era aquilo que ele queria mesmo. cinema brasileiro, e ao esforço promocional que a vendia como "uma mulher
em busca do orgasmo". O filme ganhou uma aura de ousadia ao explorar,
Garret gostava de participar da elaboração do roteiro de seus filmes, por sem vulgaridade, situações com densa atmosfera erótica. Uma seqüência,
acreditar que "um bom roteiro é o começo de uma boa direção". Não obs- especialmente - Helena contracenando com um cavalo -, ganhou no-
tante, este era justamente o elemento de seu trabalho que até seus admira- toriedade, com uma ponta de escândalo.
dores consideravam frágil, muito embora ele tenha procurado trabalhar Sobre a experiência, diz Helena Ramos:
com profissionais bem assentados no mercado de roteiristas da Boca e seus
roteiros fossem, de certo modo, acima da média da indústria da Boca do Passaram hortelã no meu pescoço. Eu ria, achando aquilo tudo muito engra-
Lixo. Talvez estivessem, isto sim, aquém do resultado geral do filme. çado, mas depois que você vê na tela, dependendo do ângulo da câmera... Nossa,
Com roteiro de Luiz Castillini, Noite em chamas foi uma versão similar dá a impressão realmente de uma coisa muito forte. O que aconteceu é que o cavalo
nacional de Inferno na torre e de outros disaster movies que andaram fa- me lambeu o pescoço. Foi um escândalo e foi um sucesso enorme também. Eu
turando alto por aqui - uma tentativa de se fazer um cinema-catástro- não sei se ele já gostavade hortelã. [...] O cavalolambia e eu achavao maior barato.
fe popularesco, na precariedade da Boca, que provocou alguma polêmica. Eu achava tudo muito divertido.
Segundo Luiz Castillini, O que eu não achava divertido é que o cavalo que eu tive na infância e r 0111
o qual] estava acostumada não era um pangaré, mas era bonzinho, e o cavalo do
filme era um puro sangue - desses de um metro e sessenta -, mas m io IH'I'
Além de ter uma boa estética,natural dele,da experiênciadele, Garret esforçava-
voso. O que eu sofri com esse cavalo você não faz idéia... E levei muita brolt .1
se muito para compreender e passar a essência. Muitas vezes, ele não conseguiu,
do Jean. Ele me enchia o saco: "Você não pára com o cavalo em quadro". M.I~
como nós não conseguimos, mais por precariedade da própria estrutura da Boca
o cavalo não parava. Eu montava, segurava a rédea e, quando estava ·n(jll:ldr.ldo,

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pronro pra rodar, o cavalo saía do lugar. Eu tive que entrar no mar com o cava- Era exatamente um "estilo" - um padrão Boca do Lixo de qualidade-
lo... Mas o Jean estava inreressado em uma atriz, uma modelo, que dizia: "Ah, o que se buscava alcançar, articulando suas "práticas significantes" com suas
eu não sei andar a cavalo". Sabe o que ele fez? Colocou ela no pescoço, mandou "práticas de produção". O caminho era a aproximação, aparentemente
fechar o quadro no rosto dela e ficou trotando de um lado para o outro como se desencontrada, do cinema popular brasileiro com um público mais exigente,
ela estivesse no cavalo. [...] De mim, ele judiou pra caramba. Mas as coisas da
sem perder contato com a platéia cativa.
vida são assim mesmo ...
Quanto a ser "um produto obediente às injunções do mercado", mais
do que traço básico, esta é a intenção do filme. A produção da Boca do
o roteiro
de Mulher, mulher baseou-se no Relatório Hite, livro de su-
Lixo, mesmo aquela com melhor embalagem, nunca pretendeu outra coisa
cesso mais conhecido pela proibição que sofreu do que pelo valor docu-
senão inserir-se no mercado. E, neste caso, o esforço por um melhor acaba-
mental - uma radiografia da vida sexual da classe média americana, nos
mento ampara-se também na busca de conteúdos culturalmente mais atra-
anos 1960. Ody Fraga deve ter-se divertido em "brincar" com um certo fe-
entes, visando ampliar suas possibilidades de inserção no mercado. Embu-
minismo que se insinuava fortemente na vida brasileira. Talvez uma idéia
tida neste esforço estava (sempre esteve) a disputa por espaço de exibição
à procura de um lugar.
com filmes estrangeiros "modernos e arejados". Além disso, a questão de
Mulher, mulher teve um excelente desempenho comercial, mas não
obediência às injunções de mercado - seja para negá-Ias, seja para rea-
escapou do crivo de seus críticos. Para Inimá Simões, Garret teria sido
firmá-Ias - não era problema somente para os filmes da Boca do Lixo,
pretensioso demais para suas limitações:
mas para o cinema brasileiro como um todo.
Produzido pela Kinema Filmes de Cláudio Cunha, Jean Garret reali-
o resultado foi um invenrário oportunista e desequilibrado, com diálogos za, em 1978, A força dos sentidos. Trata-se, segundo [older promocional do
horrorosos ("Eu não quero ser apenas um receptáculo do esperma matrimonial",
filme, de uma trama de suspense "voltada para o grande público, na qual
diz uma personagem), ambienres excessivamenteempetecados que lembram mais
um antiquário ou loja de decorações, na intenção, talvez, de encher os olhos temos o mesmo empenho artesanal que caracteriza a filmografia de Garret,
do espectador (e enchem, literalmente). Apesar de referências a Reich, comen- sendo que, nesta realização, com muita habilidade, ele uniu um sexo bastante
tário musical erudito - Rachmaninov, Brahms etc. -, diálogos que procuram ousado e realista a problemas psicológicos e fenômenos paranormais", Para
denotar cultura (soam falsos e vazios), as imagens guardam as intenções do "pa- seus críticos, na verdade, o filme não passava da repetição de um esquema
drão" da pornochanchada. Ocorre uma atualização da embalagem, "moderna com "sexo e parapsicologia na exploração do orgasmo", ao som dos clás-
e arejada", de um produto obediente às injunções do mercado - esse é o traço sicos e com citações literárias.
básico que define a produção da rua do Triunfo. 14 Colaborador de Jean Garret em vários filmes, Mario Vaz Filho (Santos,
1957) é outro personagem que viria a circular ativamente pela Boca do Lixo
Nesta crítica, Inimá põe o dedo na ferida, no calcanhar de Aquiles do a partir desse final dos anos 1970. Diplomado pela Escola de Arte Dramática
cinema de Garret (para um olhar com um certo "bom gosto"): a cenografia da USP, Mario Vaz dedicou-se inicialmente à direção teatral. Seu primei-
que se confunde com decoração, a utilização de música clássica para denotar ro contato com o cinema deu-se ao participar da pesquisa para um filme
familiaridade com elementos da cultura erudita (culta), os diálogos que sobre o marechal Rondon, um projeto do diretor e produtor Mário iv -lli.
soam artificiais - mais ainda por falta de interpretação adequada - etc, Neste trabalho, ele conhece Waldir Kopezky, que o convida para r St'll ,1\
Estes podem ser pontos falhos, sem dúvida. Mas afirmar que "as imagens sistente em Os três boiadeiros (1979), filme rodado na Festa do P ',10 til'
guardam as intenções do 'padrão' da pornochanchadà' parece-me um elogio. Boiadeiro de Barretos, interior de São Paulo. Mesmo sem saber mo \ IIIIH ,li
uma claquete - até então não havia participado de uma filmag 'J) I M .1111 I I

14 Cf. Inimá F. Simões, op. cit., p. 43. Vaz saiu-se bem, porque sua experiência em teatro, no trato \ 11111,111111 I

110 111
nu A 00 LIXO
" uu,"" UU LIAV 11;"" nA .run uv I"IVI~'-V ,.....,...,....,

fez seu trabalho aparecer. Após Os três boiadeiros, foi convidado por Jean Em 1980, Jean arret cria a própria produtora, a fris Produçõ 'S 111'
Garret, que escrevera o roteiro do filme juntamente com Kopezky, para ser matográficas, e dirige o ensaio intimista O fotógrafo (1980). No ano seguiru .,
seu assistente em A força dos sentidos. Depois deste filme, Mario Vaz fez dirige Karina, objeto de prazer (1981), uma produção de Cláudio unha,
assistência de direção para Garret em A mulher que inventou o amor e em O e, em 1982, os dramas A noite do amor eterno (1982) e Tchau, amor (1982).
fotógrafo· Juntos, escrevem o roteiro deA noite do amor eterno, filme em que A tendência ao erótico pornográfico (ainda não explícito) que se instala no
também dirigiu a dublagem. cinema da Boca do Lixo irá refletir-se nas produções seguintes de Garret.
Tendo sido assistente de direção de Ody Fraga, David Cardoso, Cláu- Sobre ele, diz Inácio Araújo:
dio Cunha, Luiz Castillini, Antonio Meliande e Cláudio Portiolli, Mario
Vaz considera que seu verdadeiro aprendizado deu-se nos trabalhos em O Garret era um cara que procurava se aperfeiçoar. [... ] Eu fiz dois traba-
colaboração com Jean Garret: lhos como roteirista com ele e acho o resultado mediano. Em parte porque a
maneira como eu escrevia, que era em tons baixos, não se coadunava com o que
Eu conhecia o Jean de vista, mas já tinha tido um atrito com ele num bar. Ele ele fazia. Gostava dos tons altos, mas tentava se ajustar ao que eu tinha escri-
me perguntou o que eu tinha achado do filme Noite em chamas, eu respondi que to. E isso dava uma certa abafada no filme, tanto em O fotógrafo quanto em
aquele final era meio ruim e ele não gostou. Depois, conhecendo bem o Jean, eu Tchau, amor.
vi que gostava era disso mesmo, gostava da contestação, era um cara que a gen- Eu gostaria de tê-lo assessorado mais, principalmente em Tchau, amor, com
te tinha que brigar com ele o tempo todo. Não tinha outra, ele forçava isso. Ele o Antonio Fagundes, que interpretava um radialista fodido, que tinha um relacio-
não gostava de cara que adulava, essas coisas. O Jean me chamou pra ser assis- namento com uma moça rica, filha do dono da estação. O Garret me pediu que
tente dele, pra fazer A força dos sentidos, e a gente se deu muito bem. Eu ficava fizesse a montagem deste filme, e eu fiz. Mas eu ficava com grilo por causa da
na minha, já conhecia o trabalho, a produção era boa. Senti o seguinte: o assistente cenografia, e nisso talvez eu tivesse podido ajudar o Jean. A personagem era uma
não era pra ficar dando palpite. Se ele me perguntasse um negócio sobre uma cena, menina bacana, rica de tradição, mas a casa dela era completamente cafona.
eu respondia. A gente ia ver o copião juntos, trocava idéias. E criou-se uma re- Como é que se produzia? Achava UIJl cara que tinha uma casa grande e... pau
lação legal. Em cinema, o Jean foi quase um irmão mais velho, embora a gente na máquina. Tinha umas coisas que sujavam a imagem ...
tenha saído na porrada mesmo ... No dia seguinte, a gente já era amigo de novo.
No universo da Boca do Lixo, Jean Garret, com seu temperamento
Com produção de Cassiano Esteves (E. C. Filmes), A mulher que inventou inquieto, traçou uma trajetória pessoal em que são visíveis os esforços para
o amor (1979) talvez tenha sido o filme mais ambicioso, do ponto de vista a criação de um cinema popular com alguma qualidade. Ele parece oscilar
intelectual, de Jean Garret. Além do sensível roteiro de João Silvério Trevisan, entre dois pólos. De um lado, sempre procurou cercar-se da contribuição
Garret cercou-se de profissionais de primeira linha, como Reichenbach, na de profissionais competentes e criativos, como Carlos Reichenbach, na di-
direção de fotografia, e Eder Mazzini, na montagem. "Um filme radical de reção de fotografia (Excitação, Mulher, mulher, A força dos sentidos e outros),
realismo furioso, debochado e polêmico, segundo o diretor. Um trabalho roteiristas como João Silvério Trevisan (A mulher que inventou o amor) e
que se destacou no panorama da rua do Triunfo, com o diretor conseguindo Inácio Araújo (O fotógrafo), pessoas que - é interessante notar - parti-
criar um estranho mundo por onde circula uma personagem feminina, ciparam do cinema "marginal" da Boca do Lixo no final da década de 1960.
Doralice/Talulah (Aldine Müller), desenhada com elaborados traços, distante De outro, a referência (estética e profissional) de Jean Garret (e de outro
do imaginário padrão desses filmes". 15 menos talentos os da Boca) parece ter sido o cinema de Walter Hugo Khouri,
tanto devido aos temas - erotismo, psicologismo, insatisfação sexual,
extra-sensorial-, quanto às ambientações e à busca de um tratamento
15 José Mário Ortiz Ramos, in Fernão Ramos, 1987a, p. 428. cinematográfico coerente - cortes, enquadramentos, timing.

112
11
A lIO Â jjjj mo STA NARUA DO RIIIN'Jn'rnnT'TWln------

,'mbora alguns filmes de Khouri tenham sido produzid por produ-


A esse respeito, diz Luiz Castillini:
to,res,da Boca do Lixo, seu cinema certamente não se enquadra no padrão
ali cnado. Sua competência artesanal e o conhecimento técnico e artís-
Ele era prático. Era capaz de matar uma seqüência inteira num plano só. abia
tico, reconhecidos por consenso, além do cinema existencial, intimista, como fazer, sabia muito bem os atalhos, como chegar rápido num resultado [... J.
filosófico e permeado de erotismo que fazia, foram, contudo, tomados Perceber o que ia render [... ] e chegar rápido ao máximo do rendimento dra-
como referência por uma linhagem paulista voltada para o cinema eró- matúrgico, com o ator, na marcação, com a luz. Chegar num ponto em que, além
tico. Além disso, Khouri encarnou, malgrado ele, a discussão entre a dali, tentar mais alguma coisa é gastar tempo e dinheiro. Ele percebia logo o que
esquerda e a direita dos anos 1960 e 1970 a respeito do "filme de autor". um ator podia render e não exigia mais do que a pessoa podia dar. Também não
O cinema de Walter Hugo Khouri parece ter sido o paradigma do cine- é uma crítica às pessoas: cada um tem o seu limite. Era realmente muito rápi-
ma autoral para grande parte dos trabalhadores da Boca do Lixo. do, e mais: escrevia cenas muito fáceis de ser realizadas. Nada mirabolante. Ou
seja, ele fazia o que o povo da época gostava.

RECORTES SOBRE ODY FRAGA Para quem teve uma cultivada fama de preguiçoso, é de admirar que,
além dos roteiros que escreveu sob encomenda para diretores e produto-
Ody Fraga era reconhecido, mesmo por uma crítica historicamente mais res, ele tenha escrito e dirigido seus próprios filmes, em quantidade apre-
exigente, por ter propostas de conteúdo mais respeitável, um olhar crítico ciável mesmo para os padrões da Boca. Entre seus filmes, não há um es-
sobre a .classe média, opiniões estéticas e políticas (também em relação à trondoso sucesso, mas consistentes bilheterias, resultando numa folgada
classe cinernatogrãfica) articuladas. Entre seus pares, cultivava um certo relação custo-benefício, tanto nos investimentos financeiros quanto nos
cinismo e a fama de preguiçoso. artísticos. Entre 1976 e 1983, Ody Fraga filmou (escreveu e dirigiu) de dois
Cláudio Portioli relata: a três filmes por ano, trabalhando com os principais produtores da Boca
do Lixo.!"
Com o Ody Fraga, eu fiz uns oito filmes. Eu gostava de trabalhar com ele. Ody Fraga foi responsável pela iniciação profissional de Guilherme de
[...] Na hora de filmar, ele tinha uma preguiça que não tinha tamanho. Mas todos Almeida Prado, um dos mais talentosos realizadores da "segunda geração"
os roteiros dele tinham sempre uma proposta, uma coisa a mais. Dava pra sentir da Rua do Triunfo. Descendente de tradicional família paulista, Guilherme
que havia alguma coisa no roteiro que era boa. [...] O dia em que não tinha vontade
de filmar, ele relaxava. [... ]. Dizia assim:
- Monte uma grua ali.
16 Filmes escriros e dirigidos por Ody Fraga entre 1976 e 1983: Quem é opai da criança
- Mas por que uma grua, Ody Fraga?
(a idade do desejo) (produção Regino Filmes, 1976); Terapia do sexo (Galantes Pro-
- Porque, enquanto eles montam a grua, a gente descansa. duções, 1978); Reformatório das depravadas (Galante Produções, 1978); A dama da
O pessoal levava umas duas horas pra montar aquelas gruas velhas, caindo aos zona (produção Kinema Filmes/Cláudio Cunha, 1979); E agora, José? (Tortura
pedaços. do sexo) (produção DaCar/David Cardoso, 1979); A noite das taras (direção de
um episódio, produção DaCar, 1980); Palácio de Vênus (produção Maspe Filmes/Ma-
nuel Augusro Cervantes, 1980); Afêmea do mar (produção Maspe Filmes, 1980);
A despeito do perfil marcado pelo espírito crítico, cinismo, mordaci-
A fome de sexo (Maspe Filmes, 1981); O sexo nosso de cada dia (Maspe Filmes,
dade e "preguiça", Ody Fraga tinha a confiança irrestrita dos produtores,
1981); A fiLha do CaLíguLa (Produções Galante, 1981); As gatas, mulheres de aluguel
não só pela qualidade de seu trabalho, mas também por respeitar os pra- (direção do episódio "O gato", produção EMBRAPI, 1982); Mulher tentação (David
zos, trabalhar com rapidez e eficiência. Cardoso, 1982); Tentação na cama (Augusto Cervantes, 1983) e Erótica: fêmea
sensual (Augusro Cervantes, 1983).

, 14
11
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ti' Alme~da Prado ~Ribeirão Preto, Sp, 1942) formou-se em engenharia,


Esse depoimento de uilherme de Almeida Prado reitera dua ou três
mas desejava faz~r Cinema, atividade na qual já se havia exercitado quando
coisas que ficamos sabendo sobre a Boca: o recrutamento era feito de modo
estu~a~te, na bitola super-8. Foi levado à Boca do Lixo por Cláudio
a colocar as pessoas em ação diante de problemas, para mostrarem se sa-
Po rtiol 1.
biam fazer ou não; a avaliação de um projeto ou roteiro era francamente
Segundo Almeida Prado,
comercial; um produtor bem estabelecido (para os padrões da Boca), como
David Cardoso, não conhecia análise técnica - uma prática comum de
EI~ m.e botou n~ma produ~ão do David Cardoso dirigida pelo Ody Fraga.
produção que organiza a filmagem, a racionalidade das relações de traba-
Eu ass.mel como assistente de direção, mas, naquele tempo, isso não existia. Nem
lho, do uso de equipamentos, transporte etc., e, por conseqüência, administra
o David Cardoso s~bia o que era assistente de direção. Eu sabia, porque tinha lido,
a economia do filme. Parece claro que os outros produtores também não a
estudado. Eles preC1sa~a~ era de um continuista, queriam alguém que fizesse tudo.
Eu lembro que o Portioli falou pra mim: "Tudo o que eles perguntarem você diz utilizavam. São fatores aparentemente contraditórios, como quase tudo na
que s~be, que você faz. Depois você me pergunta e eu te explico. Diz que faz tudo, Boca do Lixo: o sistema de produção era conduzido por uma visão decisi-
d:pols a ~ente re~ol~e o que vai acontecer". Eu lembro que a única coisa que eu vamente comercial, mas não havia planejamento - necessário a qualquer
nao tOp~1fazer fOIstill [fotos de cena], porque detesto tirar fotografia. O Portioli atividade econômica -, e o recrutamento da mão-de-obra não passava por
ficou funo.so, ~orque ele tinha dito que eu fazia e, depois, ele teve que fazer. Acabou nenhum critério de competência.
fazendo direção de fotografia, câmera, e ainda fazia o still. O filme chamava-se A atriz Matilde Mastrangi, que trabalhou em alguns filmes dirigidos por
E agora, José?
Ody, faz interessantes revelações a respeito do seu cinema e do tipo de
relações de trabalho que ele mantinha. Nelas, mais uma vez, Walter Hugo
. Com cabeça formada na engenharia, cinéfilo e estudioso, Guilherme Khouri surge como referência:
Imple~~ntaria, como assistente de direção, certas práticas de organização
e :dmInIstraç~o das filmage~s comuns em produções estruturadas, mas que Eu adorava o Ody, nunca recusei um trabalho dele, trabalhamos muito juntos.
nao eram devidamente realizadas na Boca do Lixo. [... ] Eu gostava de trabalhar com o Ody pela maneira de ele tratar a gente. [... ]
Prossegue Guilherme de Almeida Prado: Quando escrevia alguma coisa, ele me ligava para ver se eu queria fazer. Quan-
do o produtor me chamava e eu dizia que não ia fazer, o Ody me ligava, tentando
O David Cardoso nunca tinha visto uma análise técnica, uma ordem do dia. me convencer.
Quando apareceu um cara que fazia ordem do dia, sabia fazer análise técnica sabia [... ] O Ody era um intelectual, lia muito. Uma pessoa que sabia mais das
o que era continuidade direitinho ... Quando eu cheguei lá e fiz ordem d' di coisas. Você pega um roteiro dele e compara com um do Castillini, em concor-
d d I o I~
to o mun ~ evou um susto. Depois o David Cardoso já queria que eu fizesse dância verbal, erro de português ... Os do Castillini, eu, que só tenho o ginásio,
ordem do dia pra semana inteira seguinte, não só pro dia seguinte. O diretor de corrijo. Tem gente que sabe e gente que se mete a fazer. O Khouri escrevia mais
produção não sabia olhar análise técnica e entender. Então, eu fiz oito filmes em ou menos a mesma coisa que o Ody escrevia, só que o Ody levava para o po-
um ano e meio, na Boca. [... ] pular e o Khouri queria fazer um coisa elirizada. Mas o produto era a mesma
O Ody foi o diretor com quem eu fiz mais filmes, com quem eu tive um relaciona- coisa, o que mudava era a embalagem. O Khouri também era intelectual, um"
mento mais próximo. Ele era um personagem único. Estava sempre tirando sarro pessoa de bom gosto, com uma estética diferente, mas ele fazia a mesma ·()i~.1
de tudo, a todo momento. O Ody era uma pessoa que tinha, com certeza, um nível que o Ody. Eu coloco os dois no mesmo patamar.
cultural um.pouq,uinho acima da Boca. E tinha bastante ascendência, tanto positiva
c~mo negativa. 50 o fato de ele ter dito [a um produtor] que o meu roteiro era mara- Para Luiz Castillini, Ody foi um mestre, com quem aprendeu, :MIlI d I

vilhoso, mas não era comercial, matou o meu roteiro. E ele sabia que estava matando ironia, "a enxergar cinema de verdade. Não o ABC, a coi :l I 11I( .1, III I ti

[Na Boca] era melhor ele falar que era uma droga, mas comercial, entendeu? . que tem por trás da técnica". De fato, Ody Fraga enx ·rg.lv.1 IHII II d.1

116
11/
A DUCA UU LIAU I:)IA nA RUA UU IKlun'v ',,'U ,..".
••

ré ni a. Plenamente consciente de seus instrumentos de trabalho c dota- bou. Um ciclo se completou. O negócio de se fazer muitas fitinha , de sex , V.II
acabar. O sexo e a discussão sobre ele vão prosseguir numa segunda etapa.
do de aguda visão social, seus diagnósticos são sempre precisos, tanto a
FC - Qual vai ser essa segunda etapa?
respeito das relações internas ao cinema da Rua do Triunfo quanto deste
Ody Fraga - Vai ser o seguinte: primeiro - melhor apuro de qualidade
com o cinema brasileiro e com o Brasil, como se pode notar neste trecho
técnica de acabamento dos filmes. Hoje não dá mais resultado, como aconte-
da já mencionada entrevista concedida por ele em 1982 (o ano em que cia até cinco anos atrás, investir um mínimo de dinheiro para tirar o máximo
estamos nesta narrativa): de resultado. Não está mais correspondendo uma coisa com outra. As fitas de
acabamento marreta estão dando resultados marretas e medíocres também. A
Eu não tenho amor pela Boca. Eu acho que ela está completando um ciclo; Boca está atravessando, no momento, um dos seus períodos de crise. Um dos
tem que mudar para outra fase, senão vai morrer. Uma certa produção mais barata seus períodos agônicos. A Boca está em agonia. Agora, deixa eu definir o que
parece que está perdendo lugar. Não só pela inflação geral e do cinema. Parece entendo por agonia. Eu aplico o agônico no sentido Unam uno [autor do en-
que o público está solicitando uma coisa mais fina. Mais bem acabada. E esses saio A agonia do Cristianismo]: é quando todo o organismo, todo ser, começa
filmes mais bem acabados, mais interessantes, fazem puxar o resto para cima [...] a se convulsionar, a sofrer e a entrar em pânico. A entrar em crise, não para mor-
O problema é o seguinte: a Boca tem que passar para sua segunda fase. A primeira rer, mas para passar a uma outra etapa. Nessa passagem, muita c~isa fica pelo
fase, o primeiro ciclo, já se completou. 17 caminho - a coisa não tem condição de sobrevivência mesmo. E bem - um
pouco - a luta do mais apto. Porque, num primeiro momento, teve gente que
Seu diagnóstico, sem dúvida, detectava problemas estruturais da Boca se beneficiou de uma determinada situação. O gabarito mental era pequeno e
naquele momento. De fato, vivia-se então uma fase de esgotamento, tanto eles tinham o fôlego e o gabarito mental na mesma dimensão. No momento
de um "estilo" (práticas significantes) como de um "modo de produção" em que se amplia essa dimensão, eles ficam mentalmente do mesmo tamanho.
(práticas de produção), centrados na fórmula erotismo + produção bara- Não têm nada para crescer. Não têm perspectiva, nem visão. Não têm abe~tura
ta + título apelativo + divulgação em mídias populares, que, com níveis di- intelectual, abertura mental para isso. Esse pessoal já está ficando no meio do
versos, se estabeleceu como modelo. Os filmes não estariam acompanhando caminho. [...] Hoje, estão trabalhando os produtores que se estruturararn. Hoje,
estão sobrevivendo na Boca os empresários. O resto vai acabar. Em cinco anos,
o que parecia ser uma elevação no nível de exigência do público, o que
não tem mais. Esse é o negócio."
era facilmente percebido, por um lado, pela queda do movimento das bi-
lheterias de modo geral e, por outro, pelo sucesso de produtos com melhor
embalagem.

Ody Fraga - Porque a Boca dá uma idéia [de] que é um negócio meio anár-
quico, mas não é. Ela criou um folclore próprio, uma mitologia própria. E a rea-
lidade dela é outra. Sujeito menos avisado, que não penetra na coisa, chega na
rua do Triunfo e vê um pouco da casca do que já não é mais. Houve um tem-
po em que o folclore disso era uma beleza. Hoje você não vê mais ninguém pela
rua - o restaurante do Serafim, o bar do Ferreira, aquilo tudo acabou. Esse fol-
clore está acabando, porque o tipo de produção que girava com esse folclore aca-

17 Cf. Nuno Cesar Abreu, 1984, pp. 33-36. 18Ibidem.

119
118
A BOCA DO LIXO
ENTRA EM AGONIA

Vários necrológios da pornochanchada foram "cometidos" ao longo dos


anos 1970 pela grande imprensa, pelos críticos, por outros setores do ci-
nema brasileiro e por analistas em geral. De meados da década em diante,
alimentou-se a idéia de que, uma vez superado o interesse pelos temas eró-
ticos, a pornochanchada não teria mais nada a oferecer e, por conseqüência,
a Boca do Lixo seria obrigada a buscar novos caminhos para sobreviver. Nada
disso aconteceu desse modo, como se viu. Ao contrário, a segunda meta-
de dos anos 1970 foi produtiva para a Boca em todos os sentidos.
Em 1981, Inimá F. Simões fotografou o potencial produtivo do cine-
ma da Boca do Lixo:

Oavid Cardoso, Cassiano Esteves, os Massaini, na Cinedistri, a Titanus (pro-


dutora da distribuidora Fama Filmes), Galante, Cláudio Cunha, Fauzi Mansur,
Tony Vieira, Manuel Augusto "Cervantes" Sobrado Pereira (Maspe Filmes) formam
o time sobrevivente no início da década atual. Por caminhos diferentes, encarnando
concepções distintas de cinema, foram mais ou menos bem-sucedidos, confor-
me o caso. Concretamente, reuniram condições para continuar ativos. 1

A avaliação (semelhante à de Ody Fraga) aponta para as possibilidades


de sobrevivência da indústria da Boca do Lixo: somente permaneceriam
as empresas mais estruturadas e os profissionais mais competentes, no quadro
do malthusiano processo de concentração de capital do período, restando
pouco espaço para o pequeno produtor. Porém fatores que rondavam a
economia brasileira, a cinematográfica especificamente, acabaram por

1 CE. Inimá F. Simões, 1981a, p. 21.

121
UO A DO LIXO A DOCA DO LIXO ENTRA EM A OHIA

atropelar todas as previsões. Com o fim do "milagre econômico", o arcabouço produção. A cooperati va destinava-se à prestação de serviços cinema c ) r:
econômico-financeiro que incentivava a substituição de importações pela ficos e de assistência aos cooperados, com base no parque industrial dos
produção do similar nacional entrou em colapso, provocando novas questões estúdios da Tecnisom. Porém, o sistema montado, revelando-se inefi az
para a estrutura de produção do país. quanto à produção, acabou voltando-se para a exibição, tendo sido arren-
- As causas concretas do declínio e colapso da Boca do Lixo, a rigor, não dadas dez salas do circuito Pelmex, de segunda linha, no Rio de Janeiro.
, foram previstas em nenhum dos necrológios antecipados. Elas não foram A EMBRAFILME foi mobilizada para participar do projeto, dando prioridade,
estéticas, nem eróticas. Na realidade, todo o sistema de produção nacional na concessão de adiantamento sobre a exibição de longas nacionais, aos
foi corroído, e a decadência da Boca fez parte da decadência de todo o cinema filmes produzidos pelos cooperados.
brasileiro, sinalizada pelo enfraquecimento, ao longo da década de 1980, A experiência, no entanto, foi um completo fracasso administrativo.
da EMBRAFILME (e de todo o aparato estatal de apoio ao cinema), que, pro- Ainda nos primeiros anos da década de 1980, o projeto da Cooperativa Brasi-
gressivamente, foi perdendo poder - espaço político -, capacidade de leira de Cinema foi desmantelado, e os cinemas foram devolvidos à EM-
iniciativa e competência administrativa, refletindo o enfraquecimento do BRAFILME, que os renegociou com a iniciativa privada. ''A proposta inicial
regime político que a criou. de intervenção no mercado de produção independente moveu-se para o
L- Os fatores que conduziram ao colapso da "indústria da Boca do Lixo" movediço terreno do mercado exibidor, servindo para revelar, neste mo-
foram arrolados nos vários depoimentos concedidos para esta pesquisa. Uma mento, a fragilidade do projeto de emancipação político-econômica da classe
extensa patologia foi diagnosticada por vozes diversas, e os vetores apontados cinematográfica." 2
incluíram: o es otamento do modelo da pornochanchada, o fim do prê- Essa experiência de produção cooperativada seria tentada também pela
mio adicional de bilhe;ria, a pressão americ~na da M;tion Pictures - por Boca do Lixo, com a criação, em 1981, da Embrapi, uma cooperativa de
meio de seu embaixador (com imunidade diplomática), Jack Valenti-, trabalhadores de cinema que visava oferecer condições (institucionais) para
contra as medidas protecionistas, a inflação galopante, o aumento dos preços que a produção cinematográfica da Boca do Lixo permanecesse no mer-
do ingresso, o contra-ataque das grandes distribuidoras americanas, for- cado. Porém a diferença fundamental, mais uma vez, entre a iniciativa carioca
çando os exibidores a entrar no comércio de liminares contra a lei de obri- e a paulista, foi que a Boca do Lixo buscou seus objetivos nos parceiros
gatoriedade (obrigando-os, deste modo, a sair da produção), a fragilidade naturais da iniciativa privada: o exibidor e o distribuidor.
da aliança dos produtores com os exibidores e distribuidores.g invasão dos A Embrapi era formada por dez profissionais, que cobriam as princi-
Jllmes de sexo explícito, disputando o mercado exibidor da pornochanchada, pais funções de uma equipe de realização: Jean Garret, Toninho Meliande,
a "destõiiÇãQ' êlas salas de exibição dos grandes centros urbanos (também Cláudio Portioli, Carlos Reichenbach, Eder Mazzini, Ody Fraga, Concordio
;10 sexo explícito);;: evident~men~e, a crise econômica mundial que se Mattarzo, A. J. Moreiras, Mario Vaz Filho e Luiz Castillini. Fruto da con-
abateu sobre o país a partir de 1982. vivência de "cabeças que se entendiam", o grupo preparava-se para enfrentar
a crise que se instalava. Como relata Castillini:

COOPERATIVA NO ABISMO o que nós tínhamos era um acordo, uma coisa meio maçônica: você vai fa-
zer esse filme, os outros estão à sua disposição. Se precisar, estarão lá. Mas não
Nesse quadro, grupos influentes do setor cinematográfico ainda tentaram se dava palpite no que o outro fazia. O Jean Garret e o Mario Vaz cuidavam dn
enfrentar a crise institucional do cinema brasileiro formulando alternativas.
Em maio de 1978,40 profissionais de cinema fundam, no Rio de Janeiro,
a Cooperativa Brasileira de Cinema, visando atingir resultados na área da 2 Cf. Tunico Amâncio, 2000, pp. 67-69.

122 1~
II A DO LIXO A BOCA DO LIXO ENTRA M

.idminisrração:O Jean cuidava do contato com os financiadores e o Marinho, da AGONIA: O FILME DE SEXO EXPLíCITO
parte mais burocrática.
Após uma década promissora, ao menos em termos econômicos, o siste-
Os mecanismos de montagem dos recursos financeiros eram os mesmos
ma de produção-distribuição-exibição do cinema brasileiro foi abalado pela
praticados historicamente no sistema de produção da Boca: o produtor entrava
crise econômica (mundial) que atingiu o país, provocando, entre outras
com a metade, a cooperativa-produtora entrava com a parte técnica, corres-
coisas, a diminuição vertiginosa do público.
pondente aos outros 50%, Com este esquema amparado na respeitabilida-
de do grupo, a EMBRAPI realizou sete filmes em um ano: Instinto devasso (Luiz O mercado total de cinema no país sofre violenta retração entre 1979-1985,
Castillini, 1982), Extremos do prazer (Carlos Reichenbach, 1982), Tchau, amor numa queda livre que atinge tanto o filme nacional quanto o estrangeiro. O
(Jean Garret, 1982), A noite do amor eterno (Jean Garret, 1982), O sol ver- número de salas também decresce, principalmente no interior, onde registra-se
melho (Antonio Meliande, 1982), As gatas - Mulheres de aluguel (filme com um decréscimo de 50%. O cinema brasileiro ainda consegue manter a faixa de
dois episódios, dirigidos por Ody Fraga e Antonio Meliande, 1982); As viúvas 30% do mercado, menos em 1985, ano em que sofre maior redução.:'
eróticas (com três episódios, dirigidos por Cláudio Portioli, Antonio Meliande
e Mario Vaz Filho, 1982) e Bonecas da noite (filme com dois episódios, di- A Boca do Lixo, evidentemente, viu-se atravessada pela crise econô-
rigidos por Antonio Meliande e Mario Vaz Filho, 1982). mica, à qual se somava o evidente esgotamento do modelo da pornochan-
Segundo Mario Vaz Filho, chada. Depois de haver conseguido certa respeitabilidade para algumas
de suas obras e autores, e a proeza de garantir, com o retorno de seus
Saímos fazendo. Sete meses depois, teve uma reunião dos dez caras. Na pri- investimentos, uma continuidade de produção e a melhoria de qualidade,
meira reunião, acabou a empresa. Por quê? Porque aí entra toda uma situação assim a produção da Rua do Triunfo viu-se atacada por dois Bancos: a crise
de... filosofia. Tinha gente querendo fazer filme pra ganhar dinheiro, tinha gente econômica e conseqüente evasão do público e a invasão bárbara dos fil-
querendo fazer filme pra ganhar prêmio. [...] Logo depois, eu disse que ia fazer mes de sexo explícito (hard-core) estrangeiros no mercado exibidor.
filme de sexo explícito. E alguns não concordaram: "A empresa não se propõe a .- A entrada dos filmes bard-core estrangeiros no mercado brasileiro foi
isso". Firmei posição: "Eu vou fazer". O Cláudio Portioli falou: "Eu entro". O precedida por dois filmes: O império dos sentidos (Ai no corrida; L'empire
Jean Garret falou: "Eu entro e arrumo sócio". O Toninho Meliande falou a mesma des sens) , de Nagisa Oshima (1976), e Calígula, de Tinto Brass (1979), que
coisa. Então, rachou a empresa. Ficamos nós quatro fazendo [filme de sexo]
chegam às telas do país amparados por mandatos judiciais, justificando-
explícito.
se por suas qualidades artísticas. Ambos exibiam atos sexuais explicítos. A
Luiz Castillini: exibição destes filmes - seguindo uma tendência internacional- acabou
provocando, por via judicial, a abertura do mercado exibidor à avalanche
Houve um racha. Depois do sétimo filme, chegou a indústria das liminares da produção pornográfica americana (e internacional) e a conseqüente
dos filmes de sexo explícito. Dentro da EMBRAPI, um grupo resolveu que de- "necessidade" de similares nacionais. E, ainda, a demanda de "salas esp -
via fazer, e outro grupo que não devia fazer [filmes de sexo explícito]. Eu não ciais" dedicadas aos filmes de sexo explícito.
quis fazer. [...] - Para se defender, a Boca começou a radicalizar a exibição do sexual, dis
A EMBRAPI foi uma experiência que poderia ser repetida a qualquer momento tendendo a corda da Censura, que agora tinha mãos mais leves. S (11m 'S
da cinematografia brasileira. [...] Não nos foi dada a chance, a oportunidade de eróticos tornam-se cada vez mais ousados e, na tentativa de manter públi .o,
encontrar outra saída [para a pornochanchada]. Porque havia o imediatismo
roçam os limites do permissivo, ainda nos padrões do implí ito.
do exibidor. E o produtor se transformou no quê? Quer dizer, ele já era antes, '--
mas se transformou, mais ainda, num secretário do exibidor. ------------
3 Cf.]. M. Ortiz Ramos, 1987, p. 438.

124 125
nO~A DO LIXO A DOCA DO LIXO ENUA LM AOONIA

Alguns filmes fizeram o que se pode chamar de transição para o hard- a Boca ocupará, com seu explícito, alguma fatia do mercado. Na esteira J ..
core, conduzindo esta fórmula a um ponto alto de ebulição, por meio da 'oisas eróticas vieram, nos anos seguintes, cerca de 500 títulos. Uma pro-
utilização hábil dos elementos narrativos disponíveis a serviço de seus pro- dução considerável para os padrões nacionais.
pósitos: enquadramentos reiterados da nudez, uma linguagem pesada e si- ,- No rolo compressor do bard-core, encurralados pelo movimento do
mulação de atos sexuais. Entre outros, podem-se destacar um grande su- mercado, alguns profissionais da Boca do Lixo que faziam cinema "a sério"
cesso de bilheteria, A noite das taras (1980), filme em três episódios de Ody aderiram à onda e, sob pseudônimo ou não, produziram suas fitas: Anto-
Fraga, John Doo e David Cardoso, produzido por este último e estrelado nio Meliande (Tony Mel), Fauzi Mansur (Bake, Victor Triunfo, Rusnam
por Matilde Mastrangi; e Fome de sexo, que Ody Fraga dirige em 1981, "ainda lzuaf), Ody Fraga (Iohanes Dryer), David Cardoso (Roberto Fedegoso),
equilibrando um fio narrativo razoavelmente bem construído, com cenas Alvaro Moya (Gerard Dorninó), José Mojica Marins O. Avelar), entre muitos
de sexo explícito que só não mostravam o momento da ejaculação, que- que circulavam pela nossa Hollywood, agora mais parecida com San Fran-
brando, portanto, uma regra do bard-core e criando um curioso pornô 'con- cisco (a capital do pornô americano). ~
tido', talvez pensando em driblar a censura". 4 - David Cardoso, um dos que aderiram inicialmente ao gênero, lançou
O desgaste da fórmula da pornochanchada - erotismo + produção mão de uma estratégia que se tornaria polêmica no mercado de filmes por-
barata + título apelativo - ocorria naturalmente, devido à estagnação do nográficos brasileiros: a inserção de cenas de sexo explícito sem nexo com
produto e, também, à solicitação de novas demandas. Acompanhando o a "história narrada". Cardoso relata:
relaxamento da censura, a média da produção avançou tanto na exploração
visual- nu frontal, simulação pesada do ato sexual, detalhes da anatomia Produzi uns dois ou três, mas nunca trabalhei como ator. Hoje, eu pode-
etc. -, quanto na exploração dos conteúdos, procurando atualizar-se com ria ser "o Rei do Sexo Explícito", se tivesse continuado como produtor mais um
algumas propostas interessantes na linha do erotismo (a rigor, uma tendência tempo. [... ] Estava perdendo dinheiro com os filmes e, aí, já comecei a apelar
internacional). Porém não houve tempo para que essa modernização ama- pro explícito. [... ] Dirigir pornô não tem muita graça. Quer dizer, graça tinha,
no meu caso, porque, apesar de ter cenas de sexo explícito no filme, eu fazia
durecesse. Pelo relógio da urgência que sempre comandou a Boca do Lixo,
separado e, depois, era enxertado. A história era uma, as cenas de sexo eram outras.
já não havia mais tempo, nem espaço, para nada além do explícito, o der-
Porque eu fazia assim, por exemplo: eu estava filmando, em Portugal, com
radeiro filão (de ouro) proposto pelo exibidor para o agrupamento "garim-
a Matilde Mastrangi, uma história. O camarada estava com ela, mas aborrecido, e
peiro" da Boca do Lixo. 1 ela: "O que foi querido, você não está contente comigo?" "Claro que estou que-
Sua caminhada em direção ao pornô explícito foi rápida. O mercado rida, você é maravilhosa, é que eu fico imaginando umas taras que eu tinha ... Como
que ainda absorvia seus filmes, cada vez mais desestruturados, logo passa eu transava numa época que eu estava em São Paulo ... " Cortava. Entrava [a cena
a concentrar o interesse no bard-core. Respondendo às novas exigências, a de] um cara "comendo" uma mulher.
Boca reorienta-se para a realização de filmes de sexo explícito, procurando Esses caras faziam sexo com três ou quatro mulheres por dia. Isso me dava
disputar o mercado nacional com o produto americano. O filme que inaugura uma ...
esta fase, o primeiro pornô nacional concebido conforme as regras do gênero,
é Coisas eróticas, de Rafaelle Rossi (1981), que chega aos cinemas também As opiniões dos realizadores sobre seus filmes e seu papel na decadên
por força de mandato judicial, fazendo 4 milhões de espectadores (até hoje cia e morte da Boca do Lixo são bastantes particulares, ainda que convci
\ uma das maiores bilheterias - número de espectadores - no Brasil). gentes em certos aspectos. Para Cláudio Cunha, o que houve foi urna orqllt·,
Produzindo filmes com custos ainda mais baixos que os da pornochanchada, tração para acabar com a indústria cinematográfica. Fazer filmes dl' ww
explícito, segundo ele, já foi uma tentativa de sobrevivência da BOl ,I, 111.1\
4 Idem, op. cit., P: 439. uma solução imediatista que acabou apressando sua decadência, ( :(111111 c I~

126 lU
110 A DO liXO A bOCA DO LIXO NlHA M A UNIA

filmes sem sexo explícito passaram a não interessar o exibidor, não resta- Eu senti isso na pcl '. Tinha dirigido uma série do Telecurso - Educação mora]
vam muitas alternativas. Ele próprio realizou Oh! Rebuceteio, seu único filme e cívica -, na TV Cultura, e me dei muito bem com o produtor. Voltei um lia,
pornô. Sobre esse filme, diz: procurando trabalho, disse que eu queria voltar a dirigir televisão, que eu tinha
gostado da mecânica da tevê, mas o produtor me disse:
É um filme até interessante. Tem trilha sonora do Zé Rodrix. De tanto falarem - Eu também gostei de você, do teu trabalho, mas agora não dá mais.
em pomo, pomo, pomo, * eu decidi: agora eu vou fazer um pornográfico. Mas era - Por que não dá mais?
uma coisa que não me interessava. Eu fiz Oh! Rebuceteio só para ter feito um. - Porque você fez filmes de sexo em grupo, explícito.
Aquilo doeu.

Alfredo Sterheim também relata ter sofrido na pele a pressão dos exi-
Ozualdo Candeias tem uma visão peculiar desse processo. Ele não con-
bidores em favor do filme com sexo explícito, à qual atribui a principal
corda com o diagnóstico de que o sexo explícito tenha desorganizado o
responsabilidade pelo fim da promissora indústria do cinema popular
cinema brasileiro - o da Boca do Lixo, em especial. Considera os filmes
brasileiro:
pornôs como uma necessidade pedagógica, por assim dizer, o que não deixa

Acho que são vários eleme°ntos. Quando entraram os filmes de sexo explícito, de ser uma leitura coerente com as demandas da liberação sexual que se
aconteceu o seguinte: o exibidor, que sempre foi o ditador das regras do mercado, impuseram nos anos 1970 e 1980. Segundo ele,
deixou claro que só iria exibir filmes brasileiros se tivessem cenas de sexo. O império
dos sentidos foi a nossa desgraça. Daí em diante, eu nunca mais consegui levantar Foi um outro momento do cinema, que enriqueceu outros caras e se exauriu.
produção para um filme não-explícito. Lembro que fiquei um ou dois anos ten- Só. O sexo explícito, enquanto trazia uma informação erótica, sado-erótica ou
tando. Eu tinha um roteiro já aprovado, tudo pronto para começar, e o produ- o diabo que fosse, existiu. Primeiro, porque até o [aparecimento do] sexo explícito,
tor - o Juan Bajon - me diz: "Eu consegui uma associação com a Brasil Fil- e esse é um dos valores dele, ninguém sabia bem como fazer, como "trepar", quem
mes - uma distribuidora do Alfredo Cohen, que foi um dos fundadores da Paris "chupava" ou "dava o rabo". Era um crime desgraçado. Com o [filme de] sexo
Filmes -, mas ele falou que só faz o filme se tiver sexo explícito". Eu fiquei cha- explícito isto se tornou um pouco normal, porque esses comportamentos eram
teado, mas topei fazer. Não podia ficar nessa maré de espera. Foi engraçado porque intrínsecos de determinadas personalidades. Quando isso foi mais ou menos liberado,
o Chiquinho Lucas, que era o exibidor, disse: "Crítico fazer filme de sexo explícito por causa desse cinema, deixou de haver um bocado de gente bloqueada. [...] Coisa
vai ser uma tragédia: vai ter nudez com Racine". E o filme foi um estouro de que, antes disso, não havia. Eu estou falando da importância deles [dos filmes de
bilheteria. Foi a minha sorte. [... ] Então, o sexo explícito acabou com a possibi- sexo explícito], né? Importante para a liberação.
lidade de se fazer um cinema legal. Por exemplo, um cara era casado. O cara tinha um pintinho assim, e a mu-
lher dele achava que todo mundo tinha um pintinho assim, ou assim [grande].
Sternheim foi um dos poucos diretores a assinar os filmes explícitos sem Isso foi uma informação que alargou um pouco a mente das pessoas.
pseudônimo. Achava que o meio cinematográfico ficaria sabendo quem eram
os autores, de qualquer forma; portanto, se a crítica já "deitava e rolava" A passagem para o filme de sexo explícito também foi encarada com
com seu nome, o pseudônimo não faria diferença. Acreditava, também, tranqüilidade por Mario Vaz Filho. Iniciado nos procedimentos da BO<:I
que o explícito seria uma onda passageira. Este ato corajoso, contudo, iria do Lixo já em meados dos anos 1970, Mario Vaz assimilou as práti as ti
trazer-lhe o estigma do preconceito. nematográficas e as relações com o mercado livre de ideologias.
Depois de dirigir alguns médias (episódios de um longa-metragcm), M.II ic I
Vaz Filho realiza seu primeiro O círculo do prrrzl't" (I IlH
longa-metragem, I ,
* Importante esclarecer que "pomo" em linguagem coloquial é uma forma reduzida de
já com cenas de sexo explícito, segundo os padrões do gênero. i'l, M ,11 ic I
"pornográfico". "Pornô" é uma designação que aparece com os filmes de sexo explícito.

128 1111
110 A 00 LIXO A UOCA 110 LIXO tiNINA M AI UNIA

A situação estava difícil. [... ] O círculo do prazer fez 4.800 espe iadorcs só no pela identidade da língua, pelos tipos humanos mais identifi ad S '0111.1
primeiro dia. [... ] Quando eu fiz este filme, apelei. Eu usei lente 90 mm. para platéia, ou mesmo por sua maior familiaridade com o similar na i nal, qu .
fazer a cena; aquilo pegava a tela inteira. Ninguém tinha feito isso ainda. Depois, talvez convidasse a uma maior interação.
começou a onda. Era um superprimeiro plano, o "negócio" ficava deste tamanho. Com "baixaria" ou não, a produção brasileira do gênero mant ve-s
A atriz nunca mais falou comigo. O público corria, caiu dentro do filme. Foi um
expressiva ao longo da década. O negócio era faturar, e o pornô domina-
"puta" sucesso.
va a praça cinematográfica. Em 1984, por exemplo, dos 105 filmes nacionais
produzidos (exibidos em São Paulo), nada menos que 69 (sem intenção
Em seguida, Mario fez 12 filmes de sexo explícito, a maioria para o
cabalística) eram de sexo explícito."
produtor Adone Fragano. Em alguns outros, participou como co-produtor,
Os filmes bard-core nacionais não chegaram a criar um star system, diga-
com Cláudio Portioli - que fotografou cerca de 40 filmes do gênero. Mario
mos assim. As atrizes mais conhecidas pelo público das pornochanchadas não
Vaz Filho assinava com o pseudônimo de H. Romeu Pinto, mas, quando
foram cooptadas e, nos poucos filmes a que algumas, menos conhecidas,
achava que o filme estava bom, arriscava o próprio nome, já que não dei-
emprestaram o nome, elas foram "dubladas" (cenas enxertadas) nas cenas de
xaria mesmo de assumir que o dirigiu. Tampouco via qualquer problema
sexo explícito, logo abandonando o set de filmagem. Esta polêmica prática
em realizar o trabalho, em dirigir as filmagens, conforme relata:
dos enxertos acabava desqualificando os filmes, escancarando o já precário
similar nacional e sua fragilidade para enfrentar o hard-core estrangeiro.
No começo, havia até uma certa coisa entre a equipe. Depois, ficou tão normal
Patrícia Scalvi relembra:
que a mulher andava pelada pelo set e o pessoal não estava nem aí. Quando não
era explícito, o pessoal ainda ficava de olho na atriz, mas, quando sabia que era
Quem fez estes filmes era um pessoal que começou a chegar [na Boca]. E que
explícito, nem dava bola. Ficou quase um preconceito.
topou entrar. Convidaram-me pra fazer sexo explícito, como devem ter convidado
O elenco era bom. Tinha o Walter Gabarron. O Oásis Miniti teve uma fase
a Helena, como devem ter convidado todas: "Você não vai fazer [as cenas]. Você
boa também. Tinha a Ariadne de Lima [... ].
só vai participar do filme". Mas eu falei: "Não. Eu não quero nem participar".
Tinha umas coisas engraçadas. O primeiro filme que eu fui fazer (como assis-
tente) com o Ody Fraga era com a Ariadne de Lima, e ia ter algumas cenas de
E Matilde Mastrangi:
sexo explícito. Ela já tinha feito uns filmes de explícito, era uma menina legal,
de cabeça boa. No primeiro dia de filmagem, estava a Ariadne numa piscina, com
Eles propuseram muito pra mim, praAldine e pra Helena, [para] fazer pomo-
um cara. Ela vem, senta no colo do Ody e diz: "Ah, chefinho, posso dar uma
chanchada normal, e eles enxertariam cenas de sexo de outras pessoas. Nenhuma
sugestão nessa cena?" O Ody responde: "Minha filha, você está nesse filme pra
de nós aceitou. Já a ZaÍra aceitou. A Nicole, não sei. [... ] Na hora que está em
dar a 'boceta', e não sugestão".
dose, você não pode dizer se é da Maria ou da Josefa.

Os filmes pornográficos brasileiros realizados nos anos 1980 cobrem um


Helena Ramos:
leque que vai do escatológico à zoofilia, passando por honrosas exceções
de produções com um relativo acabamento, em meio a picaretagens explícitas Eu não gosto de assistir filme pornô. Não assisto, não acho graça. Então, o que
do tipo "uma câmera na mão e uma 'suruba' no sofá". Há quem diga que aconteceu? A Censura "liberou geral", e eles acharam que, se fizessem filme por-
os filmes não excitavam, mas incitavam. O público cativo das pornochan- nográfico, o público ia ficar. Mas o tiro saiu pela culatra. Erraram neste aspecto.
chadas aderiu, mantendo-se participativo: assovios, vaias e comentários no
escuro do cinema. Não que na exibição de filmes estrangeiros isto não ocor-
resse, mas, com as fitas nacionais, a participação era mais extremada, seja 5 Revista SET Vídeo Erótico. S.l., s.ed., OUt., 1991.

130 131
li O LIXO A BOCA DO LIXO ENTRA M A

Os títulos abusavam de reticências apelativas, num jogo entre insinu- ricanos. E não tiveram fôlego para enfrentá-los. Comparados a ftlm'~
ações de palavras pesadas e uso comercial da censura, como Viciado em C .. , importados, que inundavam o mercado exibidor, os pornôs nativos, m srn
A B ... profonda, Elas querem é F.., ou de evidências, como Taradas no cio, As que dirigidos a um público a que se poderia chamar "pouco exigent "
taradas do sexo, Sacanagem ou dá ou desce, Vaivém à brasileira, Curras alucinantes, perdiam terreno na questão do "bom gosto". A grossura do filme nacio-
24 horas de sexo ardente, denotando que, com reticências ou evidências, para nal não teve como enfrentar o tratamento mais bem acabado do produto
o imaginário nacional, o título também era explícito. estrangeiro, ao qual já se atrelava um star system apoiado em publicações
A vocação do gênero hard-core para a paródia encontrou, em uma certa e num marketing mais eficiente.
tradição nacional neste campo, um terreno para vicejar. A inclusão da ima- Assim, or fatores econômicos, ou de " _IDlal:.S01.1t~údd:,....Qs..filmes
gem explícita dos atos sexuais na verdade se superpôs aos temas e tratamentos pornográficos ~geiros ~~m~nos sobretudo) ~abar~ dominando
da pornochanchada. Os filmes exploravam os gêneros e as ambientações o merêãdo ;~oterrando a frágil estrutura que sustentava o similar nacional.
caras à pornochanchada, como filmes de praia, cangaço, garimpo, westerns Ta vez porque fossem, ou ao menos aparentassem ser, feuos"a sério". O
caboclos, em que se misturavam aventuras - com tipos machões - e sexo pornô nacional, indigente de berço, ao elevar a estado patológico õS ca-
explícito. coetes adquiridos da pornochanchada - a paródia, o escracho, o deboche,
_COIUpemcas exceções, o pornô brasileiro não escapa, numa análise pouco a caricatura excessiva -, acabou por se desqualificar. A produção local
ri orosa e a im ressão de caricatura ou de comicidade (às vezes invo- não conseguiu competir com o modelo (econômico e estético) estrangeiro
luntária). Há, neles, a orte presença de um traço recorrente da cultura que se impôs.
brasileira: a sacanagem, referida tanto à conduta (à ética) quanto ao terreno Um fator perturbador neste processo eram os custos de produção, velho
da sexualidade. Os filmes parecem ser feitos de sacanagem sobre sacanagem. inimigo do cinema brasileiro de qualquer extração. No mercado pornográ-
Escracho e deboche são seus ingredientes essenciais, salvo algumas exceções fico, sai mais barato, além de ser muito mais rentável, importar cinco fitas
com pretensões estéticas ou "psicologizantes", que às vezes caem no ridículo. americanas do que rodar um único produto da Boca. A respeito desta van-
A necessidade de concorrer com o produto estrangeiro levou a imagi- tagem em importar pornôs estrangeiros, Mario Vaz Filho comenta o aspecto
nação nacional a explorar os limites das "perversões", introduzindo nos filmes de custo-benefício:
o sexo bizarro. As aberrações que já se anunciavam desaguaram na zoofilia,
filão praticamente terminal para o gênero no Brasil, com filmes como Meu Não sei mais quanto custava para fazer um filme daqueles, eu calculo uns 50,
60 paus. Não era tão barato assim. Mas os caras compravam nos Estados Uni-
marido, meu cavalo, Um jumento em minha cama, A menina e o cavalo, Emo-
dos, por 2 mil dólares, um filme e o vídeo. E negociavam, aqui, o vídeo, por 2
ções sexuais de um jegue, Mulheres taradas por animais, este último introdu-
mil dólares; e o filme saía de graça. Eu lembro que o Chiquinho Lucas (da em-
zindo uma anta, o mais bem-dotado dos espécimes animais (quem sabe por
presa exibidora Sul-Paulista) foi pros Estados Unidos e comprou 300 filmes, com
isso faça parte dos símbolos nacionais), transando com uma mulher. Tudo
os vídeos. Então, ele investiu 600 paus. Chegou aqui, mandou escolher os me-
era simulado (com os animais, evidentemente), embora apresentado com lhores, uns 50, pra ele exibir, e vendeu o resto.
muito realismo. Este "ciclo" resultou em bons negócios. A exploração, no
limite, de aberrações e ousadias encontrou público até nos Estados Uni- As histórias (e as lendas) se assemelham. Guilherme de Almeida Prado
dos. A série dos cavalos, por exemplo, foi um sucesso nas locadoras daquele também testemunhou o início da deterioração das relações do exibidor com
país, onde a zoofilia (e sua representação) é proibida por lei em vários estados. o produtor, com a entrada dos filmes de sexo explícito:
Se a pornochanchada não tinha concorrente estrangeiro no gênero,
reinando soberana, os filmes brasileiros de sexo explícito, ao contrário, Cai a reserva de mercado, cai a censura. Então, de repente, tem uma avalan Iw...
sofriam forte concorrência dos filmes estrangeiros, principalmente ame- Eu estava no escritório do Augusto Cervantes quando o Severiano Ribeir ligol'

132
110 A DO LIXO A DOCA DO LIXO ENTNA M A ONIA

Nesse ponto, ele era um cara supercorreto. Ligou pra todos os produtores da Boca, dade econômica. Não havia mais filões, nem perspectivas. E, talvez, n '111
perguntou que filmes eles estavam produzindo [...] e disse: "Eu vou lançar to- a necessidade de similares nacionais, porque o perfil da concorrência ( s
dos os filmes que estão em produção, mas eu acabo de comprar 50 ou 100 fil- filmes estrangeiros) também mudava.
mes de sexo explícito americanos por 2 mil dólares cada um. E, depois que eu
Em 1984, Ody Fraga publicou uma carta, na revista Filme Cultura,
passar esses filmes que estou listando, não vou exibir mais nenhum filme. Só
em que faz uma reflexão sobre a trajetória e os aspectos frágeis do pro-
vou exibir esses filmes que eu comprei". O Severiano Ribeiro foi bem claro:
cesso vivido pela Rua do Triunfo. Apesar de a história não ter caminha-
"Filme de sexo, agora, só os meus". Quando ele desligou, o Augusto falou: "Aca-
bou a Boca do Lixo". do na direção das expectativas que Ody projetou neste texto, transcre-
vo-o aqui, quase na íntegra, pela lucidez da análise:
Em seu depoimento, Carlos Reichenbach resume algumas outras ques-
Podemos, desde já, tomar o ano de 1983 como de grande significado para o
tões que interferiram no processo de decadência da Boca do Lixo:
cinema paulista de mercado. Não cabe aqui, nem é o momento, criticar seus erros
e diversas gamas de pecados, que vão de simplórias faltas veniais a deslizes bem
A primeira questão: é preciso lembrar que, até 1982, o ingresso custava 80
mais sérios e mortais. Mas é pertinente registrar sua grande virtude e galardão.
cents de dólar. Dava pra fazer uma relação com o preço de um maço de cigar-
O cinema da rua do Triunfo foi verdadeiro tanque de abertura de caminho e
ros, da cachaça. O cinema era uma diversão popular. Hoje não é. Hoje, o in-
ocupação de espaço no universo exibido r brasileiro. Com filmes de orçamentos
gresso médio custa 3 dólares. Eu lembro bem disso. O preço do ingresso era
controlados e de fácil comunicação popular, cumpriu relevante papel econômico
tabelado.
e histórico. As distorções que vieram embutidas nesse heroísmo e os comprome-
Segunda questão: como o filme pornô entrou no país? A entrada do filme
timentos culturais não podem, contudo, ficar fora de análise crítica, a pretexto
pornográfico no Brasil- pode até ser paranóia persecutória, mas... - tem o dedo
dos bons serviços prestados. Devem entrar em causa com clareza e sem precon-
americano na história. O cinema pornô entrou através de mandado de segurança.
ceitos. O momento é de reflexão crítica, pois a verdade é que em todos os setores
E assim foi lançado. Eu trabalhei na Holanda. Lá, o filme pornô sempre foi para
do cinema brasileiro, desde o cultural ao comercial, estamos entrando no ama-
o gueto - o bairro da Red Light -, sala especial, com cartaz na porta, mas no
nhã com idéias de ontem.
gueto. Não em uma sala comercial, nem no centro da cidade. Aqui não. Aqui,
ele tomou conta dos maiores cinemas populares de lançamento. Tomaram conta
do centro da cidade. Pegaram todos os cinemas lançadores de filmes de gênero -
"No momento, desejamos apenas analisar sucintamente o maior irn-'
Art Palácio é exemplo. O cinema popular foi derrotado pelo filme pornô ameri- passe do cinema da rua do Triunfo: não refletiu nem acompanhou a mo-
cano. E outra coisa foi a especulação imobiliária, a deterioração do centro de São bilidade muito rápida e dinâmica da sociedade brasileira. Estruturado
Paulo, que começa com a entrada do filme pornô. [...] no e, de certa forma, beneficiário do regime autoritário, o cinema co-
Houve um ciclo da Boca do Lixo, que terminou com o filme pornô estrangeiro mercial paulista representou até, em dado momento, com sua por-
e com o [aumento do] custo do ingresso. no chanchada de deboche, uma válvula de descompressão, com certo
~spírito contestador. Quando o discurso do sistema era fradesco e ca
Nesse contexto, a Boca do Lixo foi minguando até desaparecer. Um turra, a Rua do Triunfo processava a revolução do sexo. Anárquica como
processo agônico em que alguns personagens importantes foram morrendo, todo processo revolucionário nascente e ainda mal codificado, mistu-
outros foram abandonando o território em busca de trabalhos diversos, rando reacionarismos com posturas de vanguarda, enfiando no mesrn
resultando na vertiginosa queda da produção. O modelo apoiado na ali- saco gatos muito inteligentes e outros de tenebrosa burrice, foi pornô
ança do produtor com o exibidor entra em colapso com a saída deste úl- autêntico em si mesmo e alegre. Muito alegre. Cometeu, contudo, um rrn
timo. A idéia de que estava em processo uma produção que iria desaguar que lhe está sendo fatal: não teve sensibilidade suficiente para sentir r ':Il'il
num cinema popular brasileiro esboroa-se, confrontada com a crua reali- ao processo político que se pôs em marcha a partir da grande cam p:IIlIt.1

134 I ,
A DO LIXO A DOCA 00 LIXO EN1MA ~M A ONIA

popular pela anistia. Enquanto a sociedade passou a movimentar-se com Misto de anseio, pleito e profecia, a carta de Ody Fraga colo LI d xlo
rapidez, a pornochanchada estagnou como filha espúria do AI-5. Veio a na ferida: a Boca não enfrentou a crise econômico-política, nem a ris-
anistia e vieram no desentolar do processo outras lutas e conquistas impor- estética, não encontrando alternativas para seu modelo econômico ( 001
tantes. Já entramos na fase final da democratização do país com o povo lu- a saída do exibidor), nem para o cinema erótico (a pornochanchada).
tando contra as últimas barreiras que travam a passagem para eleições di- cinema paulista de mercado entrava em colapso, levando com ele a po -
retas e uma nova constituição, enquanto o cinema da Rua do Triunfo per- sibilidade de estabelecer, a partir de uma base popular, uma indústria ci-
manece o mesmo. nematográfica nacional.
Daí surgiu sua maior crise que, culminando em 1983, foi confundida Ao colapso da Boca seguiu-se a extinção da EMBRAFILME, em 1990, e a
com a crise econômica, mas que é fundamentalmente a crise de uma mo- conseqüente desarticulação dos demais segmentos do cinema brasileiro (ou,
dalidade (gênero até) de cinema que perde contemporaneidade e se torna quem sabe, sua agonia precedeu aquela da empresa estatal?). Os filmes de
anacrônico. A verdade nua e crua que 1983 gritou para o cinema da Rua sexo explícito foram os últimos produtos da Rua do Triunfo, agora uma
do Triunfo foi que o ciclo da pornochanchada estava encerrado. Isso não rua qualquer do Bairro da Luz.
é nem será a morte. É um processo. Muitos estão surdos ao alerta, mesmo
porque são meros seguidores, imitadores e aproveitadores; uns poucos estão
ouvindo. Desses, partirão as novas propostas para o cinema da Rua do Triun-
fo, cuja existência é fundamental para que viva toda a estrutura do cinema
brasileiro, inclusive os filmes de autor, de experimentação e mesmo de algum
elitismo, pois até o elitismo é necessário num grande painel de cultura
democrático.
O pior de tudo é que os salvadores "filmes de sexo explícito" importados
ou nacionais possuem um erro fundamental: não são nem autênticos, nem
verdadeiros, nem reais filmes pornográficos. São apenas filmes imorais. [...]
Pode-se mesmo, a esta altura, formular uma denúncia: as massas popula-
res estão sendo atiradas para fora do processo cultural cinematográfico pela
massificação de uma única modalidade de cinema [o sexo explícito].

A produção da rua do Triunfo se conscientizou de que a explosão do lixo


cinematográfico de "sexo explícito" é profundamente predadora e estourou na
sua cabeça. Na projeção de alguns poucos anos, se continuar como está, vai
decretar sua extinção. Por isso, vital e urgente [é] a criação de circuito restri-
to para a modalidade. Isso abrirá nos circuitos populares o espaço para o filme
médio, a produção B popular, bem acabada e de fácil veiculação. Se a rua do
Triunfo soçobrar, contudo, arrastará no naufrágio também o melhor cinema
que se pratica ou se tenta praticar no Brasil. [... ] Esta, na realidade, a expec-
tativa da média dos produtores da rua do Triunfo.6

6 Cf. Ody Fraga, 1984, p. 112.

136 111
PORNOCHANCHADA
ALEGRIAS DO SUBDESENVOLVIMENTO

VARIAÇÕES EM TORNO DE UM GÊNERO

Desde meados dos anos 1960, a produção cinematográfica brasileira pas-


sou a incluir uma linha de comédias (dentro da tradição da comédia de
costumes) cujos temas variam em torno dos encantos do sexo e das rela-
ções amorosas, algumas mais picantes, maliciosas ou eróticas - ao gosto
das demandas surgidas no campo do comportamento e dos costumes, ao
longo da década. Toda donzela tem um pai que é uma fera (Roberto Farias,
1966), As cariocas (Fernando de Barros, Roberto Santos e Walter Hugo
Khouri, 1966), Garota de Ipanema (Leon Hirzsman, 1967), Todas as mu-
lheres do mundo (Domingos de Oliveira, 1967), A penúltima donzela (Fer-
nando Amaral, 1969), Adultério à brasileira (Pedro Carlos Rovai, 1969),
Ospaqueraf (Reginaldo Faria, 1969), entre outros exemplos, são filmes leves,
bem-sucedidos comercialmente e tolerados pela crítica, apontando para um
veio seguro no mercado. Produções com bom acabamento, fruto de cuida-
doso tratamento cinematográfico, esses produtos conseguiam manter um
diálogo efetivo com o público, que, neste momento, incluía uma "nova
juventude" - uma faixa de consumidores, por assim dizer, surgidos da onda
dos movimentos jovens que se sucederam desde os anos 1950 (rock, pop,
pop art, hippie, contracultura, movimentos contestatórios ao establishment
etc.) -, integrada por jovens de todas as camadas sociais, articulados em
segmentos pela indústria cultural. 1

1 A esse respeito, ver J. M. Ortiz Ramos, 1983, pp. 226-30, e Renato Ortiz, 1991, p. 10·1

1 Y
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rORNOCHANCHAOA: ALE RIASDO UDIH NYOlVI'" N'TIT"------,

A receptividade do público a este "tipo" de filmes desencadeou um rápido que sejam melodramas, u filmes policiais. Por outro lado, o (p u .) nr
aumento no volume da produção e, com isso, o aparecimento de produ tigos, ensaios, pesquisas que procuram refletir sobre a pornochanchada mo
tos nem tão bem acabados. O que era "comédia erótica" começa a ser cha um "gênero" cinematográfico sempre tomam como objeto as comédia, nã
mado "chanchada erótica", denominação que evoluiu para "pornochan se referindo aos outros gêneros que, não obstante, se abrigam na m m
chada" -. em circulação na imprensa por volta de 1973. Ou seja, a origem definição. Estas atitudes deixaram a produção da Boca sem referências, poi
do conceito pornochanchada é a comédia. ~ uma grande parte de seus filmes não eram comédias, como se pode observar
O uso indiscriminado do termo ampliou a definição e contaminou uma na filmografia. Há ainda um outro modo de se referir a eles, classifican-
variedade de filmes, designando tanto os de produção apressada e mal- do-os, hibridamente, como pornodrama, pornoaventura, pornoterror etc.,
acabada, quanto outros, de construção elaborada. O critério básico de uma forma de manter sobre eles a sombra da pornografia.
inclusão era o desenvolvimento de roteiros com ênfase em situações eró- A designação genérica pornô, que passa a circular no início dos anos 1980,
ticas e na exibição das formas femininas. De todo modo, a definição tor- refere-se a filmes estrangeiros de sexo explícito surgidos no mercado na-
nou-se uma etiqueta - uma pecha, talvez - que "colou", para um tipo cional, neste período, cuja origem podem ter sido as locadoras de vídeo,
de produção voltada para segmentos populares do público. embora, para o público de hoje, tal designação pareça referir-se também a
Pornochanchada agregava o prefixo porno - sugerindo conter porno- pornochanchadas, confusão que precisa ser desfeita. Pornô não é porno-
grafia (conceito sempre conflitante com o de erotismo) - ao vocábulo chanchada. Talvez tenha sido o seu algoz, já que os filmes de sexo explí-
chanchada (conceito que definia, em geral, produto popular e "mal reali- .cito, surgidos num período de impasse do modelo comercial e estético da
zado") e logo se tornou uma definição genérica para filmes brasileiros que produção dos filmes eróticos nacionais, apressaram o processo de decadência
recorriam, em suas narrativas, ao erotismo ou apelo sexual, mesmo que fos- da Boca do Lixo, em meados dos anos 1980.
sem melodramas, dramas policiais, de suspense, aventura, horror etc. Assim, O cinema como arte nasce derivado da tecnologia, sendo inseparável
"pornochanchada" passou a designar (indiscriminadamente) um certo do contexto da indústria cultural e da cultura de massa. Ainda que se possa
odelo de filmes como se fosse um gênero. atribuir maior ou menor valor artístico aos filmes, todos são produros deste
A Boca do Lixo praticou uma produção ampla, diversificada, de gêneros "processo industrial". Nesse sentido, o "ciclo da pornochanchada"2 deve
(a comédia era um deles), a qual, coerente com a demanda da época, con- ser visto como integrante do conjunto de formas de produção e da di-
tinha doses generosas de nudez feminina, sensualidade, insinuações de sexo, nâmica cultural de uma época. A pornochanchada - aqui tomada em
voyeurismo e ourros ingredientes que compunham o erótico. Por contigüi- seu sentido de "abrigo" de gêneros (e não só como comédia) - trabalhou
dade, facilidade, má-fé ou por conter "farinha do mesmo saco", toda essa o imaginário cinematográfico num ambiente histórico conturbado, teve
produção recebeu o rótulo de pornochanchada, que impõe aos filmes sua existência marcada por turbulências, no terreno da "moral e dos bons
uma carga pejorativa, depreciativa, configurando-os como de baixo nível costumes", apontando para questões polêmicas da vida cultural- em
e medíocres. Lógico que, para seus realizadores - produtores, artistas e sentido amplo - do país.
técnicos -, esta denominação, de fora para dentro, era ofensiva e carre- Dessa perspectiva, esta breve abordagem da pornochanchada visa per-
gada de preconceitos. De certo modo, a Boca do Lixo, onde uma pro- ceber o lugar que ela ocupa, historicamente, na produção cinematográfica
dução de filmes populares ganha base e ritmo "industrial" (por criar uma brasileira; seu papel no interior das relações de produção e consumo no ser r
espécie de linha de produção), passou a se confundir com pornochan-
chada. Era "o pessoal da pornochanchada".
2 Embora "ciclo" se refira, muitas vezes, a movimentos regionais, aqui tomei a liberdad . d '
A designação pegou tanto que os próprios realizadores entrevistados para considerar o "ciclo da pornochanchada" - um conjunto de filmes produzidos nn 11(11.1
esta pesquisa se referem a seus filmes como "pornochanchadas" - mesmo do Lixo - no sentido de ciclo vital: surgimento, desenvolvimento e desapare im~'11111

140
141
I'ORNOCHANCHADA: ALeGRIAS DO SUUDE ENVOLVIM li lU

cultural em um período específico da vida do país; sua contribuição, na A pornochanchada, m certo sentido, foi um reflexo da onda d p .rm is
veiculação de um imaginário cinematográfico, para o consumo popular de sividade, de liberação dos costumes ocorrida nos anos 1960 e 1970. 111:\
conteúdos e formas referentes ao sexo e ao erotismo. Em outras palavras, tematização da "revolução sexual" à brasileira, tecendo tramas que se pr 11-
interessa compreender como um (inlcerto gênero cinematográfico inseriu- diam às paqueras, às conquistas amorosas, ao adultério, aos dilemas da ini-
se no mercado de bens culturais, a dinâmica que estabeleceu com outros ciação sexual. O "gênero" servia-se, basicamente, de um erotismo implícito
segmentos do cinema brasileiro, as relações que manteve com o seu público na exibição da nudez feminina e na insinuação de sexo, de títulos com duplo
e com a sociedade e o ponto de vista de seus trabalhadores, instalados na sentido - que ofereciam mais do que tinham para dar -, de situações com
Boca do Lixo. peripécias amorosas, piadas cheias de malícia e gags atualizadas da tradi-
ção circense. Condensava um imaginário que atingia com precisão o pú-
A pornochanchada como gênero blico "popular".
A onda das comédias eróticas iniciou-se com Os paqueras (Reginaldo
As pornochanchadas - rótulo que abriga os filmes produzidos na década Faria, 1969), Memórias de um gigolô (Alberto Pieralisi, 1970), com atua
de 1970 que apontavam para a exploração do erotismo, um certo questio- ção e produção de Jece Valadão, e Adultério à brasileira (Pedro Carlos Rovaj,
namento dos costumes na esfera da sexualidade e a incorporação de novas 1969), filme de três episódios. Produzidos no Rio de Janeiro, esses filmes
tendências de comportamento - combinavam a influência dos filmes que evidenciavam cuidados na elaboração do roteiro, na escolha do elenco
italianos em episódios (que juntavam humor, ironia e malícia em histórias e eficiente trabalho de direção, podem ser considerados os pioneiros do
curtas), a tematização dos "dilemas do dar e do comer", que se insinuava "gênero". Uma leva de filmes seguiu a fórmula. Pode-se dizer que "havia
nos filmes brasileiros da década de 1960 (e em seus títulos apelativos), e qualquer coisa no ar, não se sabia muito ao certo do que se tratava, e por
a atualização da comédia carioca popular urbana - a chanchada. isto um filme imitava o outro, copiava o título, copiava as situações. E assim,
A nomeação, certamente elitista, contém algo de pejorativo, procu- desorganizada e informalmente, se cristalizaram os tipos e as situações". 3
rando assemelhar a comédia erótica dos anos 1970 à chanchada dos anos Como vimos, uma das bases ou fontes de "inspiração" - temas, situa-
1940 e 1950, no sentido de serem filmes sem valor artístico, mal reali- ções, tipos - da comédia erótica brasileira foram as comédias italianas, em
zados e vulgares. Agregar o prefixo "porno" à chanchada, contudo, não geral compostas de três episódios com tramas maliciosas. Transposto para
se traduz diretamente em acrescentar pornografia, no sentido trans- o contexto brasileiro, este formato se nacionalizou, adquirindo características
ressivo. Se a chanchada se continha numa certa ingenuidade maliciosa, próprias de nosso ambiente cultural. Encontrando terreno fértil, o gênero
a pornochanchada introduz intenções explícitas, mas ambas não deixam erótico se aclimata e se desenvolve, tomando expressão própria, peculiar,
de ser crônica de costumes. Na verdade, utilizou-se a denominação de um ao jeito brasileiro, de forma que, rapidamente, a produção local não tem
genuíno gênero nacional, com forte apelo popular, acrescentando-lhe a mais nada a ver com o modelo italiano. Uma espécie de antropofagia, como
sugestão maliciosa de conter "pornografia" (embora, para os mais con- observa o professor Paulo Emílio Salles Gomes, referindo-se à imitação do
servadores, realmente contivesse). Com um poder de síntese admirável, estrangeiro como um comportamento constante, não só na história do cine-
a atriz Matilde Mastrangi define: ma brasileiro, mas também em nossa vida cultural de maneira geral: como
ponto de partida existe, (quase) sempre, a intenção de imitar alguma coi-
"Pornochanchada" era um título que alguém deu por causa da chanchada, e, sa de fora, "mas acaba prevalecendo uma espécie de incapacidade criativa
como a gente ficava pelada, ficou "pornochanchada". Só. Nos bastidores, não tinha
o porno que as pessoas imaginavam. Chanchada, era.

3 Cf. José Carlos Avellar, 1979-1980, p. 83.

142 14 I
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d imitar. E os resultados finais mostram que a gente sempre acaba fazen- demarcados socialmente (pelos meios de comunicação e pelo públi ). No
do algo diferente do modelo inicial". 4 caso da pornochanchada - termo com uma carga crítica depre iativa '
Na mesma direção, é possível assinalar o vínculo da comédia erótica pejorativa -, esta não parece uma designação de forma ou conteúdo, mas
brasileira com certas formas de representação entaizadas na cultura po- um rótulo de qualidade e, como tal, sempre incômodo. Pornochanchada
pular. Na pornochanchada (como na chanchada), pode-se perceber a as- passa a idéia de degradação, de que não se trata de um cinema pornográ-
similação de formas tradicionais de entretenimento popular brasileiro, fico, mas que tende a isto. E, ao associar estes dois termos - porno e chan-
advindas de esquetes dos teatros de revista, dos espetáculos mambembes, chada -, retoma a visão da chanchada dos anos 1950, que era cinema
dos circos e, mesmo, do rádio - este já fazendo parte da cultura de massa. malvisto pelas elites."
Uma dramaturgia que oferece como entretenimento os jogos maliciosos O que parece uma questão central na caracterização de um gênero é a
da sedução, da conquista e da performance, filtrados por um tipo de hu- existência de um "sistema de convenções" - que o constituiria - e sua
mor construído pela ambigüidade e pelo duplo sentido. E na qual é pos- pronta leitura pelo público. Considerando que todo gênero vai absorvendo
sível perceber um "estado crítico" - valorativo e depreciativo, ao mesmo transformações no curso de seu desenvolvimento histórico, modificando
tempo - do caráter e dos valores nacionais. alguns padrões (embora mantendo suas características essenciais), talvez
O terreno fértil encontrado pelo "gênero", no Brasil dos anos 1970, se deva concluir pela impossibilidade de defini-lo, senão por meio de um
pode ser explicado pelo viés mercadológico: a pornochanchada como um recorte conjuntural.
esforço de substituição de importações, um dos objetivos da política eco- Todo gênero também pressupõe padrões de imaginação audiovisual, a
nômica do período. A imitação e a conseqüente aclimatação da comédia moldagem de referenciais e de um repertório de significantes que logrem
erótica italiana seriam uma maneira de facilitar a penetração de filmes estabelecer uma relação de credibilidade entre o espectador e a ficção.
brasileiros no mercado, de cooptar o exibidor - tradicionalmente a serviço A comédia erótica brasileira fixou um conjunto de personagens, a par-
do cinema importado. A pornochanchada, como produto comercial, teria tir de uma galeria de tipos definidos (clichês), em torno dos quais os plots eram
rompido um suposto preconceito em relação ao cinema brasileiro, colocan- desenvolvidos: o machão conquistador sedutor; a virgem cobiçada; a esposa
do-se como alternativa ao filme estrangeiro para o consumidor popular. insatisfeita; o homossexual afetado; a prostituta ou garota de programa; o
A pornochanchada enraizou-se no entretenimento em geral e, mesmo marido pouco atuante; a velha cafetina etc, Estes tipos aparecem encarnados
desqualificada, tornou-se uma espécie de gênero reconhecido no cinema em patrões, estudantes, empregadas domésticas, executivos, secretárias, mada-
nacional, com uma clientela visceralmente fiel ou intelectualmente oca- mes, playboys, cabeleireiros, ou mesmo como bandidos, policiais, garimpeiros,
sional. Assentada sobre a estrutura da narrativa clássica, ela parece ter "o cangaceiras etc. De certa forma, são variações de um mesmo "conteúdo".
que dizer" e "como dizer", sistematizando uma espécie de produto. Como em todo gênero cinematográfico, os recursos da trilha sonora-
A sedimentação de certas nomeações - chanchada, tropicalismo, ci- diálogos, música (em geral, aplicada, trazida de fora da cena representada,
nema marginal, cinema novo etc. -, ainda que estas não sejam especial- de modo a criar emoções, tecer comentários, estabelecer ritmos) e efeitos
mente adequadas, é, sem dúvida, algo revelador. Neste sentido, é forçoso (que trazem solidez e dimensão espacial à representação) - são empre-
reconhecer que, embora sua conceituação possa ser teoricamente discutível, gados nas pornochanchadas de modo a amparar a ilusão diegética de um
os gêneros cinematográficos, como categoria de análise, já se encontram espaço-tempo imaginário.

4 Cf. entrevista concedida por Paulo Emílio Salles Gomes ao jornal Movimento, (São
Paulo, 19 jan., 1976), em que expõe argumentos em torno da idéia de imitação do es- 5 Essas observações foram sugeridas na entrevista com Jean-Claude Bernardcr P:lI.1 ·,te

trangeiro como parte do processo cultural brasileiro. trabalho.

144
PORNOCHANCHAUA: AL IlKIA VU unu nYII''''''' n"..-'----,

Os diálogos, no cinema brasileiro, sempre foram bastante criticados, mas,


"humrnrn"), comentários ("ai tesão", "gostosa" etc.) e ruídos ("sOla -I s",
nas comédias eróticas, este problema é minimizado, uma vez que os filmes
"slurps", "whooshs", "nheque nheque"), mixados com os sons naturalistas
baseiam-se em uma comicidade apelativa, sem ironias, chistes ou humor
(as falas durante a cena, rangidos de cama etc.). Tal recurso, além de au-
amparados na palavra. Assim, o ruim passa por engraçado, e um riso sem
mentar o efeito realista do registro visual (hierarquicamente mais impor-
exigências diminui o senso crítico. Entretanto, a maior parte da produção
tante), faz aproximar (como num close-up sonoro) a platéia, ao "diminuir"
da Boca do Lixo traz diálogos constrangedores, agravados pela deficiência
a distância (o som espacializa) da representação.
das interpretações.
Este artifício, sempre perceptível, é plenamente aceito pela platéia,
Segundo Carlos Reicnhenbach:
parecendo proporcionar ao espectador uma satisfação auditiva particular-
mente importante, o que leva a crer que se agregou - no jogo da veros-
Uma coisa é você trabalhar com atores de formação clássica, outra coisa é
similhança - às convenções formais da representação do erótico para o
trabalhar com atores que te impunham, de uma certa maneira. Com o elenco
masculino dava pra trabalhar com um pessoal de teatro, um pessoal que eu co- gênero.
nhecia. Mas com as atrizes - que eram formadas pela vida _ era mais com- Outra particularidade da trilha sonora das pornochanchadas é a sub-
plicado. Não se tinha muito tempo de preparar, ensaiar, de burilar. Quando se tração do som da voz, mantendo-se a visualização da articulação da fala,
tinha esse tempo saíam resultados maravilhosos. Eu fazia com que elas convi- recurso criado para driblar a interdição da Censura à pronúncia de pala-
vessem com atores profissionais, e você sente uma maturação. Optava por fazer, vras consideradas obscenas. O "truque" foi utilizado, em geral, sempre que
o máximo possível, o ator entender o que ele estava dizendo. Quando eu per- se diziam palavrões, acabando por criar mais um elemento significante nos
cebia que eu não tinha tempo pra isso, era passar o texto mesmo que ele saísse códigos do gênero. Uma espécie de voz out, por assim dizer, com o que a
cantado. Tenho filmes com esse tipo de problema, mesmo. Parece que o cara platéia se divertia duplamente: com o palavrão sonegado, mas percebido
estava recitando, não é?
às escondidas da repressão social, e com a sensação de estar burlando a
vigilância da Censura.
Pior era quando se arriscava criar diálogos inteligentes, expressivos,
Era bastante usual, nos anos 1970, a utilização de comentários musi-
mais profundos ou artísticos, como se exige de um produto com valor
cais - trechos de músicas populares ou eruditas, nacionais e estrangeiras,
cultural: "A sensação de coisa mal explicada, de desequilíbrio, procede.
já conhecidas - para sublinhar determinados momentos da narrativa. Na
Isto se dá porque a imagem aponta para um espaço de argumentação, en-
pornochanchada não era diferente, mas, a um olhar mais crítico :- não
quanto a fala se desloca para outro: a imagem num enquadramento de
necessariamente de elite -, as músicas aplicadas nos filmes pareCiam es-
acordo com o padrão-pornochanchada, e a fala, segundo uma hipotéti-
ca norma culta"." teticamente impertinentes, de "mau gosto", com tendência ao kitsch, ao ca-
fona ou brega - no jargão da época -, segundo um gosto mais "apura-
Além da função habitual da faixa sonora observa-se, numa certa linhagem
do". Evidenciava a sonoplastia como algo deslocado, mal colado, por as-
de pornochanchadas - as comédias, principalmente -, um emprego
sim dizer. De qualquer forma, o sucesso popular dos filmes indica que
peculiar dos recursos sonoros. É comum, em vários filmes, particularmente
realizadores e público situavam-se no mesmo estrato sociocultural, ou seja,
durante as situações sexuais, o acréscimo posterior (na mixagem) de fa-
o tratamento musical dos filmes, de certo modo, carregava o gosto musical
las não sincronizadas (voz over) com os movimentos labiais. Estes sons
de seus realizadores e do segmento de público que com eles se identificava.
(in)articulados são, basicamente, gemidos de prazer ("ooohs", "aaahs",
Em alguns filmes, como os de Jean Garret, entre vários exemplos, a trilha
sonora evidencia a intenção de embalar o produto com valores culturais. Á
utilização de recortes clichês de musica erudita, como trechos de Rachrnnninov
6 Cf. Inimá F. Simões, 1981 a, p. 48.
e Brahms, ou Mozart e Chopin, pode parecer sofisticada, mas apon la 11I.1i

146
14/
rORNO~"AN~"ADA: AUUK.A) IIU U"II n'Vv ~Y,m•.nT"'-----
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para uma forma de respeito à cultura da tradição, para a fetichização dessa [...] a grande campanha outra a pornochanchada- você sabe que h uv UIII ••
cultura por esses realizadores. A intenção de tornar o filme mais "culto", marcha em Curitiba da família contra a pornochanchada? - é feita por ru e
que não vê os filmes e acredita no que diz a publicidade. Acontece que o próprio
visando seduzir segmentos mais exigentes do público, não o descolava de
nome pornochanchada seria muito mais uma jogada de publicidade do que cI s
sua origem: era um filme da Boca do Lixo, dirigido ao consumidor habitual,
críticos de cinema. O filme Eu dou o que elas gostam, por exemplo, tem esse nom
o mesmo que consumia o kitsch, o brega, o cafona.
e a publicidade complementar: "E o que elas gostam não é mole", tendo no car-
O tratamento visual dos filmes variava conforme o pedigree da produ- taz o José Lewgoy indicando com a mão as dimensões eventuais do que ele daria
ção. Em geral, os principais argumentos da artilharia crítica contra a porno- e elas gostariam, tudo sugerindo muita pornografia. Mas o filme não tem abso-
chanchada - e por conseqüência, contra a Boca do Lixo - não atingiam lutamente nada disso- é quase uma comédia de costumes, curiosa, e é só. A pouca
somente o conteúdo dos filmes, considerados grosseiros e vulgares, mas relação entre o nome e o filme é incrível. 8
também a forma como eram realizados, seus procedimentos cinematográ-
ficos, que seriam igualmente grosseiros e vulgares. Os filmes eram alvos o efeito paródia
coerentes para seus detratores: a forma "misturava-se" ao conteúdo.
Desta perspectiva, uma história interessante, o desenvolvimento da trama, Um aspecto fundamental da pornochanchada é que ela opera com qual-
ou mesmo o sexo, tinham pouca importância: o que importava realmente quer elemento que esteja à disposição para servir a seus propósitos, sendo
era a exacerbação das formas femininas através de angulações especiais. A ma- freqüente o recurso à paródia ou a citações. Apodera-se de outros gêneros,
neira de olhar para as coxas, as calcinhas ou os seios seria mais importante ou melhor, dos clichês de outros gêneros, para viabilizar-se, transacionando
do que as coxas, os seios, a mulher em si mesma. O que teria valor no meca- o erótico como uma espécie de líquido corrosivo que se adapta a recipiente
nismo de narração das pornochanchadas é o tom de deboche, que se sobrepõe diversos. A inclinação para a paródia confere-lhe grande vitalidade, per-
através da maneira de ver, identificando o olhar do espectador com o olhar mitindo que se sirva, satiricamente, de algumas combinações existentes nos
fetichista da câmera.? Assim, erotismo passa a ser, basicamente, a exibição das outros gêneros - as mais evidentes recorrências iconográficas ou clichê
formas femininas (a exposição da mulher), de preferência exuberantes e \ narrativos -, para expor a própria estrutura.
generosas, em situações variadas de insinuação sensual, transitando na po- - Como comédia erótica, a pornochanchada atuou como uma espécie de
laridade ingenuidade-malícia, em que filme e público se encontram. "vampira de gêneros", como sugerem alguns títulos de sua produção. Apoia-
Uma das críticas recorrentes a respeito da pornochanchada é que haveria da no humor e na exploração da nudez como apelo erótico, constrói suas
uma falsidade intrínseca na sua relação (lucrativa) com o público, o que tramas satirizando filmes de aventura, de histórias infantis, as formas acul-
tornaria impossível sua sustentação por muito tempo, já que o público turadas do western - os filmes de cangaço ou garimpo - e, principalmente,
tenderia a se afastar dos filmes, ao se perceber constantemente enganado. filmes americanos de grande repercussão - por óbvias razões de mercado.
As pornochanchadas venderiam - nos títulos, nas chamadas apelativas, Alguns exemplos são os filmes que misturam na narrativa referências a
nos cartazes, na insinuação etc. - o que não tinham para oferecer, ou seja, O exorcista (Willian Friedkin, 1973), como em Pesadelo sexual de um vir-
não teriam "mercadoria" para entregar. Seriam filmes vazios de (verdadeiro) gem (1974) e O exorcista de mulheres (1975), ambos de Tony Vieira; que s
conteúdo erótico (ou verdadeiramente pornográfico), oferecendo material apropriam do sucesso internacional de uma personagem sensual, como A
incompatível com seu marketing, com sua embalagem. Como observa Paulo filha de Emanuelle (1980); que brincam (pesado) com narrativas infantis,
Emílio Salles Gomes: como em As histórias que nossas babás não contavam (1979); ou, mesmo,

7 Aspecto explorado tanto em José Carlos Avellar (op. cit., p. 77) como em lnimá F.
Simões (op. cit., p. 54). 8 Entrevista de Paulo Emílio Salles Gomes ao jornal Movimento (op. cit.).

148
14'1
110 A DO LIXO
PORNOCHANCHADA: ALEGRIAS DO sunDE ENVOLVIM~NI()

que satirizam filmes nacionais de cangaço, como Cangaceiras eróticas (1974). em período integral de trabalho, durante 20 dias, e investidos cerca de Cr$ 50.000,DO.
Para alcançar seu propósito de manter o público cativo, a pornochanchada Cada peixe consumiu material suficiente para se fazer um barco médio.
recorre a qualquer produto, cido ou subgênero que tenha boa resposta de Todo o filme foi rodado em Ilhabela, litoral de São Paulo, e o monstruoso p ixc
bilheteria, como foi o caso dos filmes de lutas marciais de Hong Kong ( era colocado dentro da água através de guindastes.
imbatível Bruce Lee e seus danes fizeram muito sucesso por aqui, nos anj' Na água, ele tem condição de mover o rabo, a cabeça, os olhos, a boca e as
1970), parodiados em Kung Fu contra as bonecas (1976). barbatanas. Foi manejado por um homem-rã profissional e treinado, que trabalhava
dentro do próprio corpo do peixe, frente a um painel e alavancas.
~geral, a~ródia é vista como um3-I2ro sta auto ~
É dotado de câmeras de estanque, e funciona dentro do mesmo princípio do
contraste com 11m mQ.d,@,l~gí"e1,*ulU d.edara ão de i . ade,
submarino. Isso permite que o operador leve o peixe à profundidade que quiser
mas ta corno ma a.titud~anttopofágica - a de,voraç,ãp_p 010-
e o coloque na posição que for necessário. [... ]
nizador de poder incontestável. Assim, um produto de grande lançamento Tal iniciativa é um dos casos esporádicos que a ousadia do cineasta brasi-
como Tubarão (Steven Spielberg, 1975) vira Bacalhau (Adriano Stuarr, leiro tem coragem de realizar. Isso assegura o sucesso do filme, representa mais
1976), título que já contém duplo sentido, acrescido do subtítulo Bac's, um passo para a emancipação do cinema nosso, e vai se traduzir em confian-
entre parênteses, simulando ser um filme americano. Às vésperas do lan- ça por parte do público, quando ver um filme brasileiro executado com todos
çamento do filme, a revista Cinema em Close Up publicou uma reportagem os acabamentos e recursos dos mais sofisticados estrangeiros. O filme Bacalhau
sobre esta produção, que destaco aqui por dois motivos: primeiro, por (conhecido pelos íntimos como Bac's) é uma reposta brasileira ao tubarão es-
expor a ideologia da paródia sob o ponto de vista da produção e, segundo, trangeiro.
por refletir a "mentalidade" da própria revista - uma espécie de porta- Adriano Stuart fez o roteiro e dirigiu um elenco de primeiríssima grandeza
dentro do nosso cenário artístico."
voz da indústria cinematográfica da Boca do Lixo. O texto a seguir foi
reproduzido literalmente:
Outra, porém, é a visão de quem teve de conviver com o "bicho". Diz
Helena Ramos:
"Bacalhau", o parente brasileiro do "Tubarão"
A Ômega Filmes (produtora dos sucessos A carne, Paranóia) é a responsável
por isso. Desde que a firma foi fundada por dois rapazes vindos de Ribeirão Preto, Fazer Bacalhau foi muito divertido. O bacalhau era made in Ribeirão Preto
teve como objetivo principal a preocupação de fazer trabalhos de primeira qua- e não tinha aquela técnica. Era uma coisa muito primitiva. Deu muito trabalho
lidade, dentro de padrões internacionais. filmar com esse peixe, ele era muito malfeito. O Adriano quase pirou. Na hora
Escorados por sólido lastro financeiro [... ] a terceira produção da Ômega foi em que tinha que afundar o peixe, não afundava. De repente, o peixe afundava.
o filme Bacalhau, uma idéia de Adriano Stuart inspirada no sucesso de Tubarão. Ele ficou com tanto ódio do peixe que mudou o final do filme e fez o peixe morrer
A estória é a mesma, só que as coisas são levadas pelo lado da sátira. O filme é a cacetadas.
uma comédia, muito rica em situações confusas e engraçadas. [... ]
O enorme peixe mede 4,80 m. de comprimento por 1,10 m. de altura. Foi
fabricado na cidade de Ribeirão Preto, por uma firma especializada em náutica.
O peixe é revestido em fibra de vidro sobre uma armação metálica. Também 9 Cf. Cinema em Close Up, nº 1, 1975, p. 28. Esta revista circulou irregularmente en-
entram, na sua feitura, cortiça e látex. Por segurança ("esse peixe é uma máquina tre 1974 e 1979, sendo a única publicação dedicada ao cinema nacional sustentada
e pode pifar a qualquer momento") foram construídos dois bacalhaus idênticos. por capital privado. Dedicava-se à produção da Boca do Lixo, promovendo os Rim '.~,
O projeto é do artista plástico Bassano Vaccarini e foi elaborado por Tirso Cruz, os diretores e técnicos. Divulgava as atrizes e as starlets, trazendo entrevistas e expoudo
que esteve ao lado do peixe durante todo o período de filmagens, assistindo-o fotos de nu artístico. Continha artigos que procuravam informar sobre temas illlpOI
tecnicamente. Na construção dos dois peixes foram empregados 15 funcionários tantes para o comércio e a indústria do cinema, além de debater a favor da prodlli,.ll1
voltada ao público popular.

ISO I~I
110 A 110 LIXO
rORNOCHANCHADA: ALEGRIAS DO SUDD!SENVOLVIM~N 10

Diferentemente de certas chanchadas dos anos 1940 e 1950,'° que trD- Numa leitura mais tolerante, a pornochanchada paródica pode er orn-
ba}~avam a paródia articuland~ ~átira e nacionalismo, assumindo atitudes preendida também como uma estratégia de sobrevivência econômica. 0-
cntrcas em face do produto original, as pornochanchadas tendiam a uma piar, parodiar, fazer referências às produções estrangeiras seriam meios de
completa submissão ao modelo cinematográfico estrangeiro, assumindo a enfrentar o sistema colonial (na cabeça do público e na economia cinemato-
inferioridade. Em filmes como Bacalhau, para que os mecanismos da co- gráfica). Ao satirizar, a pornochanchada estaria tentando utilizar-se do filme
média atinjam os objetivos desejados, é condição essencial que o especta- estrangeiro (devorando-o), em uma estrutura de mercado que "repele" o
dor tenha assistido ao filme original, é necessário que ele compare conti- filme brasileiro, colocando-se como um debochado produto híbrido: re-
nuamente a paródia - a imitação, a mentira - com seu modelo - a quer o conhecimento do estrangeiro, mas oferece o "melhor nacional" -
verdade. Como afirma João Luiz Vieira: mulher gostosa, machismo e sacanagem.

Este tipo de paródia apenas faz com que o espectador glorifique ainda mais
o cinema de Hollywood como único, autêntico e legítimo cinema, reconhecendo UMA IDEOLOGIA DA PORNOCHANCHADA
a incapacidade brasileira para copiar "bem". Tal tipo de paródia trabalha, assim,
duplamente contra o cinema brasileiro. Por um lado reaviva um velho precon-
A essência da instituição cinematográfica, de suas práticas industriais,
ceito segundo o qual o cinema brasileiro é ruim, e por outro, autoriza conseqüen-
comerciais e ideológicas, dos discursos que faz circular é a narrativa. O que
temente uma certa prática dominante - a do filme clássico-narrativo americano,
da superprodução, do filme de efeitos técnicos - como válida, legítima e autêntica,
o cinema dominante produz como mercadoria é cinema narrativo - ci-
reconhecendo a eficiência de linguagem de um cinema opressor. Ao cinema bra- nema como narrativa. 12
sileiro restaria apenas uma gargalhada à sua incompetência. 11 No que diz respeito à pornochanchada, onde se inscreve o equilíbrio e
o desequilíbrio, a ordem e a ruptura de suas narrativas? De que problemas
Parodiar filmes estrangeiros foi também uma estratégia utilizada pela a pornochanchada pretende tratar, que conflitos pretende resolver?A resposta
chanchada - com mais criatividade, sem dúvida - e, depois, pelos filmes é aparentemente simples: a pornochanchada quer "falar" sobre sexo e ero-
populares de massa, como alguns filmes dos Trapalhões. Porém, a chan- tismo. Apresenta uma espécie de problema ligado a papéis, atitudes, com-
chada dos anos 1950 não precisava disputar exibição e, de certo modo, petências, no campo da sexualidade, e busca sua solução através de práti-
rentabilidade com os filmes originais. Nos anos 1970, as injunções do cas eróticas - sedução, conquista, voyeurismo, romantismo, violência etc.
mercado estavam colocadas no centro de todas as questões, principalmente Em resumo, comercializa narrativas (versões populares) sobre os dilemas
para a incipiente indústria da Boca do Lixo, disposta a realizar o "simi- do comportamento sexual em plena efervescência nos anos 1970.
lar nacional". A pornochanchada fazia uma imitação comercial, por as- Outra característica peculiar à narrativa da pornochanchada é que,
sim dizer, e não cultural - como se observa nas chanchadas. Tratava-se embora a erupção do desejo ocorra no interior de uma ordem social esta-
de uma paródia debochada a serviço da bilheteria, para arrecadar quase belecida, não se discute ou se problematiza essa ordem, mas apenas os (em
tanto quanto o modelo. Deste modo, potencializava uma atitude servil, geral, pequenos) obstáculos - de natureza moral (as interdições) - qu
mas lucrativa. ela interpõe entre o desejo e sua satisfação. O princípio dinâmico motivador
da narrativa surge da diferença fundamental entre o masculino e o f, '111 i
nino. A relação/oposição entre os sexos parece animar os conflitos, 'OlHO
10 A respeito de chanchadas e paródias, ver Catani e Souza, 1983; Sergio Augusto, 1989;
Vieira, 1983.
II Cf. João Luiz Vieira, op. cit., p. 29. 12 Cf. Christian Merz, 1980.

152
11 A DO LIXO PORNOCHANCHADA: ALEGRIAS DO SUbDE ENVOLVIM~Nl

:1 natureza destes é (quase) sempre de ordem sexual, a solução se dá (qua- Por outro lado, podemos supor que os espectadores (as elas es p pu-
se) sempre por meio do sexo. lares) retirassem dos filmes mais informações do que se possa imaginar,
Um aspecto estrutural da ideologia da pornochanchada inscreve-se, visando ao "entendimento" de suas pulsões, ou neles tenham encontrado
basicamente, na oposição entre duas categorias discursivas: excesso (abun- canais de libertação psicológica ou, no mínimo, diversão lúdica em que
dância) e escassez (privação). No universo da pornochanchada, o sucesso se reconhecessem como seres eróticos. De todo modo, como entreteni-
(sexual) é quase sempre sinônimo de excesso, opondo-se a escassez ou pri- mento de massa, os filmes precisariam mostrar, mesmo que através de um
vação. O fracasso seria uma forma de exclusão. Figurada no excesso, a satis- jogo de espelhos, alguma coisa das reais experiências e necessidades de
fação do desejo (ou o encontro do prazer) é uma condição para a gratifi- seu público, trazer referências da sua realidade naquele momento. Teria
cação da platéia e, de modo geral, uma função dos filmes. de haver algum ponto de contato entre o que era oferecido e o que o
Essa polaridade fartura/escassez está presente tanto no conteúdo como público vivia (ou procurava encontrar).
nas formas de produzir, sendo estrutural à realização dos filmes, (in)formados A esse respeito, as vozes não são afinadas, mas convergem para o aspecto
pelas oposições e contrastes entre machos e fêmeas, libertinagem e puri- "pedagógico" dos filmes. Segundo Jean-Claude Bernardet,
tanismo, desejo e pureza, malícia e ingenuidade, violência e submissão, entre
outros. Nas comédias, especialmente, estes contrastes apresentam-se nas o que eu detectava como sendo posições muito moralistas me desagradava.
expressões de duplo sentido, na voz over (sons superpostos) e na voz out (sons Cheguei a fazeralgumaspequenas experiênciascom pessoas,tipo operários. Passava
retirados), na abundante exposição insinuante das curvas do corpo femi- os filmes - pornochanchadas - e depois conversávamos, para ver o que esta-
nino (inclusive pelo uso de certas lentes e enquadramentos), entre outros vam apreendendo. Eles estavam apreendendo coisas que eu não estava. E as que
eu apreendia eles interpretavam diferentemente. Girava em torno de sexo e com-
tratamentos do humor e da "sacanagem".
portamento. Nós tínhamos uma tendência a ver nos filmes atitudes muito mo-
Para os críticos do "gênero", de um ponto de vista elitista e politizado,
ralistas, com valores até retrógrados. Eles viam como libertação sexual, escapar
as pornochanchadas seriam essencialmente escapistas, distraindo o público
a um moralismo, escapar das tensões.
de suas condições sociais e políticas, das conturbadas relações entre os sexos,
não contribuindo em nada para o seu desenvolvimento cultural. No uni- Como quer Inácio Araújo: "mas, nos anos 70, a função [dos temas se-
verso das pornochanchadas, o sexo seria uma linguagem usada para levar xuais] era maior. Enquanto a gente lia Marcuse, o público via esses filmes,
até o público o apelo por uma luta individual, sem compromisso de ne- que, de alguma maneira, iam fazer sua educação para as mudanças de cos-
nhuma ordem, privilegiando sempre os fortes e bem-sucedidos. De certo tumes ali. Em geral, mal e porcamente, mas, de certo modo, faziam. Não
modo, uma dramaturgia coerente com um regime de força. As histórias
importa".
seriam grosseiras, e as relações entre os sexos estariam representadas como Em entrevista a mim concedida em 1984, Ody Fraga também ressal-
demonstrações de força, implicando a superioridade de um sobre o ou- tou a estreita relação existente entre a pornochanchada realizada na Boca
tro - quem "come" é sempre um vencedor, a quem cabe levar o prêmio:
e a realidade brasileira:
para o sedutor machão, a virgem; para a mulher experiente, o garoto
iniciante etc. Nos filmes, não haveria erotismo e, a rigor, pornografia tam- Eu não acho que a maioria das pornochanchadas tenha a ver com o povo
bém não." brasileiro. Mas uma boa porcentagem tem. E essa porcentagem já dá alguma
validade. Não pense que eu acho a pornochanchada boa em si, só por s r pOl
nochanchada. Ela está inserida num processo revolucionário confuso, que V,II
13 Esse tipo de raciocínio é desenvolvido tanto por José Carlos Avellar (op. cit.) como se definir com o tempo. Ela tem um valor que é mais amplo. Muitas v '(,(',\vo!
por lnimá F. Simões (op, cit.), vê muito mais da vida, da cultura, da sociopolítica, da realidade bra il 'ir;] llJ(' IIIII

154
"O A DO LllCO rORNOCHANCHADA: ALEGRIAS DO SUBDESlNVOLVIMEN 1O

numa pornochanchada do que numa fita do Khouri. E muito mais do que numa tradicionais da sociedade. No caso do Brasil, "os valores da cornunidad .",
fita ideológica, num discurso político. 14 nos anos 1970, eram, em larga medida, determinados pelo ambient s
cial promovido por um Estado autoritário e regulador. Segundo Schatz, "o
É possível observar, nos filmes, a sustentação de um certo moralismo filme de gênero, como uma narrativa (fabulação) popular que gera uma
pequeno-burguês combinado com a correspondente admiração pelos va- estrutura própria, possui uma função mítica que é a ritualização dos ideai
lores do dinheiro e de seu poder. Antes de ser conseqüência de um regime coletivos, a celebração de conflitos sociais e culturais temporariamente
de força, a pornochanchada, de certo modo, reflete (espelha) - em seus resolvidos. Mas, também, o mascaramento de contradições e o encobrimento
aspectos estéticos e em sua inserção comercial - o surgimento, o êxtase de perturbadores conflitos culturais por trás do disfarce do entretenirnen-
e a agonia do "milagre brasileiro", do ponto de vista das camadas popula- to"." "Mito", aqui, não está definido como uma repetição de conteúdos
res. As pornochanchadas da Boca do Lixo expressavam a ideologia dos seus clássicos de narrativa universal, mas como um sistema conceitual próprio
produrores e consumidores, imersa num devorador processo econômic que encarna elementos específicos para uma certa cultura. "O conceito de
controlado por um rígido processo político. gênero cinematográfico - um sistema de convenções - pode ser carac-
terizado por mito, por sua função, sendo determinado não pelo que é, mas
pelo que faz (como atua). Em sua capacidade ritualística, um gênero cine-
PORNOCHANCHADA E O PÚBLICO: UMA RELAÇÃO RITUAL matográfico transforma certas contradições culturais e conflitos fundamen-
tais em uma estrutura conceitual reconhecida e acessível para uma audiência
o abastecimento constante do mercado com um certo tipo de filme - como de massa". 17
numa linha de produção - permite que o público se torne, de fato, um Dessa perspectiva, é importante considerar a participação do público
consumidor habitual do gênero, capaz de reconhecer a existência de uma na continuidade da produção de filmes de gênero, assumindo seu papel no
"fabricação" de filmes - o cinema como uma instituição econômica e processo de mythmaking. Este papel é delineado pela interação do consu-
cultural, como uma indústria. Neste sentido, pode-se dizer que, nos anos midor-espectador com um certo tipo de produção que lhe oferece, por meio
1970, por conta da pornochanchada, grande parte do público - as ca- do entretenimento, formas de gratificação compensatórias. De seu lado,
madas populares - passa a reconhecer a existência concreta de um ci- o processo produrivo reconhece a participação do público na geração e de-
nema brasileiro. Como sugere Linda Williams, um "gênero pode ser abor- senvolvimento de gêneros cinematográficos, oferecendo "o que ele pede".
dado de modo mais frutífero tomando-o como uma forma moderna de Esta relação dialética entre oferta e demanda provê o contexto cultural no
mythmaking - um modo de fazer algo para o mundo, de agir simboli- qual o gênero cinematográfico se produz e se reproduz, dotando os filmes
camente sobre ele [...] para intensificar oposições e contradições que existem de um caráter ritualístico.
no interior da cultura, a fim de encontrar formas imaginárias de resolução". 15 Para além dos mecanismos de identificação e de projeção, a interação
Filmes de gênero, portanto, tratam necessariamente da relação entre o in- da platéia da pornochanchada -vista, em geral, como vítima de um pro-
divíduo e a sociedade, entre auto-realização e conformação social, conside- cesso cultural de péssima qualidade e de condições políticas e econômi a
rando valores da comunidade os valores naturais que o indivíduo partilha opressivas, e cuja participação social solicitada era alienada - sempre in
sensual e emocionalmente. Essa relação tenderia a traçar um viés conser- trigou os intelectuais e pesquisadores. Talvez porque, enfim, tenhamo Iido
vador para os filmes, que tenderiam a reafirmar os valores dominantes e uma idéia no lugar certo. Como observa Inimá F. Simões:

14 Cf. Nuno Cesar Abreu, 1984. 16 Cf. Thomas Schatz, 1986, p. 97.
15 Cf. Linda Williams, 1989, p. 128. 17 Idem, op. cit., p. 96.

156 1 I
PORNOCHANCHADA: ALEGRIAS DO UODESENVOlVIM NIU

Nesses anos todos, o que se viu aí foi uma massa de especradore que grita, de um certo ritual: no faroeste você fica o tempo todo esperando o du '10 ()11l
fala, ri, "orienta" o galã empedernido, debocha da virgem renitente, caçoa do o bandido. [...] Nos musicais americanos espera-se Esther Willians nadar 1.. ·1110
homossexual cheio de salamaleques e delira quando o garanhão irresistível "derrota" musical da Atlântida espera-se Emilinha cantar [... ] O diretor está ali para
todos os esquemas defensivos da fêmea. [... ] Como depositário de emoções e ciar esse ritual e o espectador sabe que o diretor não vai faltar com ele. [... J No
projeções individuais, tornadas coletivas no ambiente da sala de cinema, o per- caso da pornochanchada, ele espera que a cena o excite sexualmente, com todo
sonagem, tal qual o jogador de futebol em dia de clássico, não pode falhar. [...] o ritual que também a precede. Ele sabe que é tudo mentira; o espectador nã
O aficcionado da pornochanchada (ele existe sirnl) se sensibiliza ao perceber do é ingênuo, ele sabe o que foi procurar. Ele ri das cenas dramáticas, aquela his-
outro lado, por detrás daquelas imagens projetadas na tela, alguém que compartilha tória para ele é tudo uma grande piada. Mas ele quer o ritual. A pornochanchada
o mesmo código e que possui habilidade suficiente para enfiar cada cena em seu é, à maneira do velho western, uma liturgia completa, com público fiel e renda
"lugar privilegiado" e no momento exato, evitando frustrações desnecessárias. De garantida. 20

maneira semelhante ao fanzoca do faroeste americano, que preencheu suas fantasias


com imagens da tela, o espectador do Marabá é conivente com a liturgia desen- No escurinho do cinema
cadeada, cúmplice do garanhão e solidário com as soluções dramáticas. 18
I É interessante explorar algumas vertentes que (in)formam o contexto
Mesmo considerando o gênero cinematográfico uma forma de expressão cultural- provido pela relação recíproca/dialética entre produção e pú-
mítica, é preciso levar em conta certas qualificações básicas que lhe são
impostas pela natureza comercial- arte e entretenimento - da atividade
I blico - necessário ao desenvolvimento de um gênero: a da política,
do comportamento, e a economia do setor cinematográfico. De cert
cinematográfica e, necessariamente, afetam a composição narrativa e te- \ modo, as três acabam se cruzando.
mática dos filmes. Um dos aspectos da relação ritualística estabelecida entre a pornochan-
chada e seu público é o viés político. A análise de José Carlos Avellar"
Por um lado, trata-se de um produto comercial, um tipo de arte popular alta- .2Eopõe que a adesão popular ao gênero seria a ex ressão de uma reação de
mente convencionalizado e sujeito a certas demandas do público e do próprio setores das cama as popu ares às falsas pr9messas do "mila re econômico'
sistema cinematográfico. Por outro lado, os filmes representam uma manifestação apregoado pe o regime ~ar pri;cipalmente através da propaganda
própria do impulso mítico básico da sociedade contemporânea, de seu desejo de
oficial). Uma espécie de rebeldia irreverente contra as instituições por
confrontar conflitos elementares inerentes à cultura da qual participa, com a
parte dos excluídos, ou não contemplados com as benesses do "milagre".
projeção de uma ego-imagem coletiva idealizada". 19
As salas de cinema que exibiam as pornochanchadas funcionariam como
"aparelhos" (para usar uma denominação do período, referida aos imóveis
Podemos trazer essa reflexão para o território nacional, citando Inimá
utilizados pela luta clandestina contra a ditadura), por assim dizer, nos quais
F. Simões, que assim caracteriza o aspecto ritualístico da pornochanchada:
o público faria sua catarse. Neste ambiente, o espectador (em meio a
público) buscaria aliviar-se das tensões e agressões da vida cotidiana, par-
A linguagem da pornochanchada comporta uma relação de cumplicidade entre
ticipando do filme com xingamentos, palavrões, torcendo (e se projetando?)
o diretor e espectador. Muitas dessas pessoas que estão por aí fazendo pornochan-
chada vieram do circo, do interior, de Minas. São caras que têm como visão idea- pelo herói - viril, sedutor, bem-sucedido sexualmente, ou tudo iss ,GS
lizada o cinema americano de massa, um cinema que sempre quer satisfazer o vezes disfarçado num tímido.
público, que nunca abandona suas solicitações, e que atende à expectativa ansiosa

18 Cf. Inimá F. Sirnões, 1979, p. 54. 20 Cf. Inimá F. Simóes, 1981 a, pp. 42-44.
19 Cf. Thomas Schatz, op. cit., p. 99. 21 Cf. José Carlos Avellar, op. cir., pp. 70-71.

158 I I'
no A DO liXO PORNOI;HANI;HAPA: ALf'ITKIA' PI] ~uuu~ NVU Vlm~NI\I

Essa visão de que a pornochanchada e seu público são produtos do re- brigando uma com a outra, a Censura e a pornochanchada nasceram n S prim 'ilO,\
gime militar ganhou corpo, adquirindo um tom de explicação histórica que meses de 1969. [...] Ao mesmo tempo, como o controle da informação já 111 '(;av.1
a desorganizar o quadro cultural, a ação do poder cria as condições propí ia para
se cristalizou em várias análises realizadas no período. Matilde Mastrangi
o aparecimento desta linha de produtos mal acabados e grosseiros, a chan hadn
e Patrícia Scalvi, duas atuantes atrizes do gênero, ao refletirem hoje so-
meio pornô.22
bre os filmes, fazem ressonância com esse ponto de vista.
Segundo Matilde Mastrangi:
De fato, o cinema brasileiro dos anos 1970 teria de transitar entre ba-
lizas estreitas, convivendo com as pressões do mercado e de um Estad
A pornochanchada existiu só porque era um período difícil no Brasil. Eles
ditatorial. O lado repressivo do Estado - a censura do regime militar,
permitiam uma válvula de escape. Na minha opinião era isso, porque no ritmo
que estava o Brasil... [... ] Era muito grotesco o que a gente fazia para a Censura principalmente - tem sido recorrentemente referido como um dos fatore
liberar, se fosse pela moral e bons costumes. Eles sabiam o que era bom para o que explica e justifica o processo cultural da época. E, por conseguinte, a
povo. Como o jogo do bicho, a droga. [A pornochanchada] era uma droga. Não produção e o sucesso da pornochanchada - o cinema da Boca do Lixo.
representou outra coisa. Foi a cara do Brasil: "eu" e "bocera". "Pau", naquela época, Entretanto, como sugere José Mário Ortiz Ramos, a ação do Estado não
não mostrava. [... ] A pornochanchada só floresceu por causa da ditadura. Se não se restringiu a este viés repressor:
tivesse ditadura, não haveria pornochanchada.
Há uma tendência, nas reflexões sobre o período, de se enfatizar o lado re-
E Patrícia Scalvi: pressivo do Estado, direcionando todas as luzes para a censura, que passa a ser
a chave explicativa do processo cultural. A censura foi sem dúvida brutal, colabo-
( O que trouxe de volta o público para o cinema brasileiro, para as salas, foi rando para desagregar movimentos e intimidar os artistas, mas sua ação deve ser
exatamente a pornochanchada. Porque o Cinema Novo era maravilhoso e tal, mas articulada com determinantes mais abrangentes. O desenrolar da cultura brasileira
pessoal não queria ver fila de ônibus, marmita debaixo do braço. Você vai ao pós-68 está assentado em bases complexas, decorrentes de uma gradativa indus-
cinema pra se divertir. [... ] A pornochanchada eram histórias, mulheres bonitas. trialização da produção cultural. Neste sombrio panorama, também o Estado

U Não tinha a ver com a realidade brasileira, tinha a ver com cinema. Era um en-
godo, como o futebol: vamos ver isso e esquecer o resto. E o público gostava ...

Embora as pornochanchadas condensassem um imaginário que chegava


acionará mecanismos mais sofisticados, ultrapassando a simples utilização da força
repressiva.í"

As relações entre o governo e a produção cinematográfica eram, no


ao público "popular" de maneira precisa, para muitos de seus críticos eram mínimo, ambíguas. No mesmo sistema conviviam uma política de regulação
grosseiras, vulgares e apelativas, fruto de um momento de forte repressão ideológica (política, moral, dos bons costumes etc.) - a Censura - da
do poder central à produção cultural do país. Uma "filha da ditadura". Uma produção de bens culturais e uma política de incentivos à ocupação do mer-
leitura política anota: cado, mediante a criação de legislação protecionista e agências de fomento.
Os mecanismos financeiros e burocráticos postos em ação pelo governo
Nem na produção cinematográfica brasileira imediatamente anterior a 1969, fizeram parte de um projeto modernizador das relações no interior da 's
nem na produção estrangeira distribuída em nosso mercado neste mesmo pe- fera econômica. Vivia-se, então, um momento de grande expansão do
ríodo, podem ser encontrados quaisquer sinais anunciadores do tom grosseiro
mercado de bens culturais, e, neste sentido, as alterações no setor inl'lIl,l
das pornochanchadas. Elas surgiram de repente, como se saíssem do nada, no
exato instante em que a censura começava a se tornar mais forte, e tiveram vida
intensa exatamente no momento em que cortes e proibições eram mais freqüentes 22Ibidem.
[... ] Irmãs gêmeas de comportamentos opostos, gêmeas que passam todo o tempo 23 Cf. José Mário Ortiz Ramos, 1987, p. 402.

160 I I
rv","v H,," "I\U" lU ,.-," lil'V v-

tográfico foram incisivas, voltadas principalmente para a o upa ãdesse de qualifi ado omo incma e sem nenhum iru r s ultu rnI. s (.1111 .~
mercado. Para esta racionalidade contribuíam, evidentemente, as pres- atingiam a uma numero a faixa de público das camadas popular s (as lassc
sões do próprio meio cinematográfico - empresários, artistas e trabalha- C e D, no marketing da época), mas não conseguiam cooptar públi os
dores - visando ao alargamento da participação nacional em nosso mer- considerados cultos, que os consideravam vulgares e alienantes.
cado, que resultaram em conquistas como as leis de obrigatoriedade de Ao que parece, este público "de elite" estaria rejeitando mais do qu . :1
exibição do longa e do curta-metragem, à criação de distribuidoras al- pornochanchada, como indica Jean-Claude Bernardet:
ternativas, às tentativas de formação de público etc., com raízes no cineclu-
bis mo, e a outras iniciativas. [...] mesmo rejeitando o cinema brasileiro, ou aceitando-o na medida em qu
Nesse ambiente, as camadas das classes populares que afluem ao terri- ele se igualaria às melhores produções estrangeiras [...] este público, queira ou
tório cinematográfico da Boca do Lixo, para trabalhar com/em cinema, não, perceba ou não, relaciona-se com os filmes brasileiros de modo completa-
imaginam poder cooptar o público oferecendo "o que ele gosta de ver". mente diferente, porque eles falam da realidade social e cultural em que vive est
A Boca do Lixo atirou-se à disputa do público do cinema estrangeiro (de público. [...] Significativa deste ponto de vista é a quantidade de cartas de lei-
filmes B) oferecendo o similar nacional com "sabor brasileiro", atendendo tores publicadas pelo Jornal do Brasil contra a pornochanchada [...] Mesmo com
a um "gosto popu Iar ". atitude de rejeição, leitores bem-pensantes eram levados a assumir uma posição
ativa, porque estes filmes brasileiros mexiam com eles, com a imagem que el s
Apesar de o braço censor ser mais tolerante em relação a filmes eróti-
têm de si próprios, da sua sociedade, da sua vida cultural, da sua moral. [...] A
cos do que a filmes de temas sociais - "sexo pode, política não" -, nã
má qualidade que este público atribui ao cinema brasileiro não é apenas um jul-
significava que esta produção agradasse ao establishmentestatal-militar, que gamento de valor sobre determinada obra cinematográfica, mas me parece ser um
com certeza, preferiria produtos mais nobres e patrióticos. De qualque julgamento sobre a má qualidade da realidade brasileira.24
modo, nos setores intelectuais, a pornochanchada seria taxada como po
liticamente "de direita", por sua inconsistência temática e conservadorism A "Iiberaçõo conservadora"
formal, e por desviar as classes populares de questões relevantes e da cons
cientização de seu papel histórico. O fator complicado r desta equação é qu Jean Garret, respeitado realizador da Boca do Lixo, procura um ângulo mai
os sujeitos da produção pertenciam à mesma classe daqueles para os quai reichiano para explicar o sucesso e o papel de seus filmes:
se dirigiam. Neste sentido, é possível considerar a pornochanchada u
\ subproduto no campo da indústria cultural, gerado por um regime de força, Eu acho que a pornochanchada é, em primeiro lugar, um elemento de con-
~as nunca por preferência da ditadura. testação à sociedade de consumo. Enquanto muitas pessoaspensam que a porno-
Segundo Jean-Claude Bernardet, chanchada é uma válvula de escape para as classes oprimidas, o tiro está saindo
pela culatra. Enquanto o corintiano vai ao Pacaembu torcer pelo seu time e se
[...] essaspessoas [da Boca] não estavam numa oposição política. Também não livrar de uma série de recalques, preconceitos, frustrações e opressões, o cara que
acredito que estivessem muito próximas do regime. Se estivessem, talvez tives- vai ao cinema fica contido, introvertido, ligado a uma tela em que se apresentam
sem tido outras vantagens. Havia uma desconfiança monumental, por parte do mulheres nuas. A mulher que ele tem em casa... Ele sabe que, em vez de ter em-
regime, em relação aos cineastas, imagine em relação a essespequenos cineastas. pregada, ela sim é a própria empregada, e não é tão bela, tão bonita como a que
se apresenta na tela. Ao invés de ser então uma válvula de escape que dê vazã
Ao contrário dos públicos considerados populares, as elites (culturais, a uma série de recalques, uma série de neuroses e uma série de frustrações sexuai ,
econômicas e sociais) rejeitaram (ou diziam rejeitar) a pornochanchada por vai é superá-Ias. [...] Eu concordo com Reich. O homem só se libertará totalmente
considerá-Ia produto mal realizado, que veiculava um conteúdo pobre,
24 Cf Jean-Claude Bernardet, 1979b, p. 18.

162
163
o A OU LIXU
PONHO HAM IIAI>A: AL MIA DO UIIII

quando ele se libertar sexualmente. Você está, nesses filmes, incentivando a prática tis mo virou uma oisa meio agrada. Nã i mais qu er cismo, () qu .
do amor, a prática do sexo. A pornochanchada incentiva o homem a fazer sexo. pornografia - esta é pecaminosa. Talvez, a pornografia num mundo viol 'IHO
Ela está estimulando a classe oprimida a fazer sexo.25 explosivo seja até mais verdadeira que o erotismo. Hoje há um cult d 'J'()( i~
mo, existem especialidades, precisa ser um cara treinado, fazer curso, ler livros. I
Tal ponto de vista, contudo, não é partilhado por quem foi objeto do
desejo. Para Matilde Mastrangi, figura central do star system da Boca do Lixo, Matilde Mastrangi analisa:
a função social das pornochanchadas não teve nada de libertadora:
No fundo, todo mundo estava ali para ganhar dinheiro. Quem levava :J S
o públicoque via pornochanchada era o "zé-mané". Ele ia ver sexo. Eu acho rio a pornochanchada? Eu não levava. Ninguém levava. A gente se debo hnvn,
que é o mesmo público que hoje entra nas casas de striptease. Era um público Você já leu algum roteiro de pornochanchada? [...] A gente viveu um época muito
sofrido, [de] desempregados. Homem bem realizado não via. Dava até medo. O gostosa, apesar de o Brasil estar passando [por] uma época muito difícil. Ma 'U
público tinha cara de bandido. O que me incomodou foi esses homens irem ao e muitos outros que faziam pornochanchada não percebíamos isso. Eu era ign
cinema "bater punhera". Que tipo de homem eu estou incentivando? Ele tem mais rante. Não sabia o que realmente estava acontecendo no Brasil. Vim saber d .
é que ter uma mulher, ter sexo com essa mulher. pois. Se eu fosse uma pessoa engajada, não faria pornochanchada.

Essa posição é endossada por Domingos de Oliveira, realizador cario- Se a pornochanchada, em seu conjunto (abrigando todos os gêneros),
ca que ""
cometeu uma pornoc hanc h ada: podia ser cinema malfeito voltado a um segmento forçado a manter-se !TI

contato crítico com a realidade do país, por outro lado, respondia a urna
[... ] esse tipo de cinema satisfaz apenas a repressão sexual do brasileiro, que ansiedade social, por assim dizer, no terreno da sexualidade - um fen -
é uma criança neurótica, sexualmente falando. As comédias eróticas funcionam
do mesmo modo que dizer palavrão na sala de aula e fazer pipi no tapete. São - --
meno internacional. O sexo, tava na cabeça de todo o mundo, nos an ,
1970, e tais filmes refletiam e comercia lzava1Jl e~~a" excit~e, atu-
valores deste tipo. Se o cinema, por acaso, fosse um lugar claro, a comédia eró-
ando na vida brasil' pd via do deboche ue apareceu como biscoit
tica não existiria. O riso da comédia erótica é um riso no escuro. 26
intelectual mais fino, na rebeldia estética do chama o inema Marginal).
Os fil Zlam ara o universo das representações po u ares a chama-
Pedro Carlos Rovai, apesar de ser um diretor e produtor bem-sucedido
da "revolução sexual" em curso es e os anos 1960, e, nela, a liberação B -
do gênero, também expressa uma visão pouco positiva a respeito do
rruruna, o elogio..Ji erºusmo e nõ razer, as moaificações na esfe-;; d s
papel dos filmes:
~ s.comporramenjçs -==- aritudes Iiberadas quanto a sexo, moda,
dro as ~c. Enfim, um aparente processo de aesrepressao. a vez este 'ja
Não acho que a pornochanchada contribua para um comportamento sexual
o ponto nevrálgico que incomodava as elites: a ternatizaçâo da sexualida-
mais livre, mais aberto. [...] É o machismo, a mulher-objeto, o sexo como pecado.
Um moralismo negativo, nada saudável, nem aberto. O sucesso desses filmes se de, tão presente e atuante em sua vida, nos anos 1970, apropriada (produzida
deve à repressão do sexo nas camadas populares, que vão ver esses filmes para se e consumida) pelas classes populares. Erotismo e sexo como cultura de massa.
libertar. Isto se aplica a todo o cinema. A pornochanchada tem um erotismo
superficial, uma distorção do erotismo. Essa distorção pode até ser boa. O ero- Muitas vezes, um filme da Boca acerta no espectador popular porque o ní-
vel de cultura de quem está fazendo está no mesmo plano do nível de cultura d '
25 Depoimento de Jean Garret ao IOART,em 26 out., 1978, apud Inimá F. Simões, 1981 a,
p.47.
26 O Globo, 15 rnar., 1976. 27 O Globo, 15 mar., 1976.

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P IN lIlN liA A. A[ RIA DD UIID NVOIVIIUIITo-
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quem está assistindo. Ele está pelo menos falando a um compadre. Tem muito Ainda agarro este cinema
diretor da Boca que está falando na mesma linguagem do baiano da construção
civil que está lá assistindo. Ele está no mesmo nível intelectual. Ele acha que não, IA atração exercida pelos filmes da ~oca ~o Lixo j~nto às cla~ses pOP~la:J
mas está. Só porque criou condições para fazer um filme, acha que mudou de status ~ resultou no maior fenômeno de bilheteria produzido no Brasil. Amparada
intelectual. Mas há outros que fazem realmente cinema popular.f nos êxitos comerciais, uma grande quantidade de títulos de comédias eróti a
circulou no mercado, atritando o campo cultural dos anos 1970, sob s
Não obstante seu papel "revolucionário" na ternatização da sexualida- olhares nervosos dos críticos, da imprensa, de setores do cinema culto, das
de, a pornochanchada era "racista, preconceituosa, reacionária e misóginà'. instituições e de parcelas moralistas da sociedade. A pornochanchada in-
Apesar da farta (e superficial) exposição de temas eróticos, as soluções das comodava, sobretudo, as distribuidoras internacionais (americanas), por
tramas ou o equilíbrio das narrativas davam-se com a prevalência das ins- conseguir abocanhar uma expressiva fatia do mercado, com seus modos
.riruiç~ s: o casamento, o casal mono âmico, a união da virgem ou da moça pouco educados e padrões de gosto duvidoso. Analisando esse processo, Jo é
fiel e romântica com o herói, a punição dos infiéis. Tudo parecia mudar Mário Ortiz Ramos comenta:
para connnuar como estaVã-:-Podería-;;'os dizer que, no campo da represen-
tação do comportamento sexual e erótico, estava ocorrendo uma "libera- [... ] pouco se refletiu e debateu sobre o indesejado estranho que invadia
~'. Como observa Ody Fraga: - cinema. Todas as atenções permaneciam voltadas para os remanescentes dos
movimentos culturais legitimados, como o Cinema Novo [... ] Mas sua aproxi-
A censura cortava os peirinhos e os traseiros a mais, as cenas de cama mais mação com o público trazia embutida a questão do popular, um dos catalisadore
chocantes, mas a estrutura dos filmes não faz mais do que manter as coisas como da discussão politizada de cultura. Como sugeriu um artigo de Jean-Claude
estão: a estrutura da pornochanchada atendia exatamente aos ideais das senho- Bernardet de 1974, não seria uma pornochanchada típica como Ainda agarro esta
ras que marcharam com Deus pela liberdade. Ela mantinha as diferenças de classe, vizinha (Pedro Carlos Rovai, 1974) muito mais interessante, culturalmente, que
os preconceitos raciais: nas pornochanchadas o negro é sempre o empregado, o alguns produtos bem acabados, finos, sofisticados? E mesmo mais instigante para
analfabeto, bêbado, marginal, arruaceiro. As relações de poder econômico também o debate cultural?30
foram mantidas. Tudo continuava como estava, e a Pátria salva. Não apareceu
uma pornochanchada que chegasse a contestar as estruturas e os preconceitos o que parecia incomodar esses segmentos era a existência de uma pro-
sexuais, embora o sexo fosse a sua matéria-prima. Pelo contrário, ela sempre dução consistente de filmes populares (talvez o embrião de um sonhado
reforçou o amor idealizado à maneira das estruturas burguesas esrabelecidas.é" cinema popular brasileiro). E mais: realizada por pessoas provindas desta
mesma extração social. Em outras palavras, um cinema feito para as clas-
Sem poder recorrer ao divã do analista - a psicanálise multiplicou sua ses populares, por diretores, produtores, técnicos, elenco etc. pertencen-
clientela, especialmente entre a classe média, neste período -, restava às tes a essas classes. A pornochanchada operava a "tradução" da liberalização
classes populares "fazer a cabeça" com o que lhe era oferecido na esfera das dos costumes explorando alguns conteúdos do imaginário popular sobre
representações e do entretenimento (rituais): carnaval, futebol, programas o machismo, a liberação da mulher, fantasias sexuais, desejos etc., que tam-
de televisão. E filmes de cinema. bém projetavam uma visão pequeno-burguesa, com suas ambigüi~ades
contradições, do poder do dinheiro, dos valores da ascensão SOCial, do
individualismo e do "se dar bem" (próprios aos anos do "milagre"). Mas,

28 Cf. Gilberto Galvão, 1979.


29 Idem, op. cit. 30 Cf. J. M. Ortiz Ramos, 1983, pp. 407-8.

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neste ponto, entra o erotismo como solvenre dos conflitos (ambigüidade


Helena Ramos:
e contradições): as classes populares, nos filmes, fazem sexo melhor do que
os ricos. Tudo isso embalado numa fatura cinematográfica simples e direta.
Era uma comédia, digamos assim. Uma comédia bem do estilo da épo :1, UI1l,\
comédia de comportamento, ou seria pornochanchada, como a mídia: na 1'0 <I:
A pornochonchodo pelo Boca
de uma forma pejorativa, infelizmente, tratava o nosso cinema. Infeltzm nt '. I~
a minha mágoa da mídia nunca foi por falarem alguma coisa em relação a 111 'U
Uma das perguntas dirigidas a todos os entrevistados, nesta pesquisa, in- trabalho em si, mas por falarem do nosso cinema: "É pornochanchada! . por
dagava sobre se o rótulo de pornochanchada os incomodava. Nas respos- nochanchada!" Pra mim, aquilo era uma forma depreciativa de falar do cin ma.
tas colhidas, transparece, de modo evidente, um emaranhado de sentimentos E aquilo me deixava muito magoada.
acionados por este tipo de avaliação: as mágoas, os ressentimentos, as indig-
nações, as carências, por um lado, mas também o orgulho da ascensão social Alfredo Sternheim:
e do sucesso financeiro, a descoberta do cinema como expressão artística,
como uma linguagem, por outro. Como documentarista, registro aqui alguns Por exemplo, no dia da estréia de Lucíola, o Jornal da Tarde publicou: "~m
destes depoimentos, que dizem muitos sobre os personagens retratados e livrinho de José de Alencar que vira pornochanchada". Foi o Teimo Martino
suas expectativas quanto ao final desta história. Que a Boca fale por si, quem escreveu. Como é que um cara deprecia sem ver? Ele dizia: "?s filrn s
polifonicamente. da Boca, como sempre, exploram a nudez ... ". Aí é que vem o preconceito contra
a Boca, porque o filme tinha nudez porque havia nudez no livro do Jo é de
Alencar. Eu não acrescentei nada a mais. Quando eu li que o personagem -
Luiz Castillini:
um milionário - pagava para ela fazer striptease de acordo com os quadros qu .
ele tinha em casa, pensei: Vou colocar isto na tela e vão pensar que é uma situa ão
Incomodava porque era rótulo. E rótulo é limite. Limitar é sempre ruim. [... ] forjada. E não era. Está no livro. Então, havia o preconceito.
Hoje incomoda mais porque estas classificações de gênero estão desaparecendo
até nos gêneros consagrados. Era pra derrubar. Sempre foi. No entanto, se você
Ozualdo Candeias:
for analisar, hoje, uma grande parte dos filmes eram absolutamente ingênuos. Bem
humorados. Ou seja, a conotação que a intelligentsia brasileira e uma boa parte
O cinema brasileiro não tem, por exemplo, propostas culturais. É um cinema
da imprensa, mas principalmente aqueles que se valiam de patrocínio estatal, deram
de imitação. E, imitado por gente sem muita competência, a imitação não podia
à pornochanchada não era a conotação de filmes de sexo, mas de mediocridade.
ser grande coisa. Mas criou a pornochanchada, que a imprensa resolveu chutar
Pornochanchada significava mediocridade, significava coisa ruim. É assim: eles
não prestam, eles não fazem nada bom. e avacalhar. E que foi um cinema que deu um lucro tremendo, porque tem uma
motivação erótica. Mas qual o cinema em que a motivação não é erótica? [... 1.
Agora, ficava todo mundo querendo pichar a Boca ~o Lixo. O ~~e me aborr -
Cláudio Cunha:
ceu, e eu acho isto idiota, é [pensar] que lá só se faziam fitas eroucas.

Todos os filmes que a gente fazia eram porno alguma coisa. Tudo era porno.
Guilherme de Almeida Prado:
Quando eu fiz Amada amante, era pornodrama; Sábado alucinante era porno-
discoteca. Era uma forma de a rnídia predispor o público, porque, chamando de
Sem dúvida, existia, e eu acho que ainda existe, um enorme preconceito 111
porno, a elite não ia. Mas Assédio sexual eles não chamam de porno, porque é
isso [de ter sido iniciado no cinema na Boca]. Eu não vou poder dizer pra você qu
americano, com o Michael Douglas. [... ] É lógico que incomodava.
eu nunca senti esse preconceito. Eu senti várias vezes, no começo. Eu acho que s
depois de A dama do Cine Xangai é que esse preconceito realmente desapare LI.

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Mas, quando eu estava trabalhando na Boca, não prestava a menor atenção nisso. Miguel Borges - Para que ela deixe de existir é pre is gll d .ixc de 'xi,'1ir
Ness~ época, não me incomodava nada. Eu estava fazendo cinema, que era o que antes, no cinema, a situação colonial. Ela dá dinheiro, mas é lima s III flo prc
quena fazer, e estava muito feliz [... ].
datória, porque desorganiza e vicia o mercado cinematográfico bra ilcir .
Se fizessem uma pesquisa naquela época, perguntando o que as pessoas achavam
de pornochanchadas, eu acredito que mais de 90% das pessoas entrevistadas em lnimá Simões - Está aí uma visão mais conseqüente da pornochanchada: li ma
qualquer rua da cidade de São Paulo, iriam dizer que detestavam pornochanchada. alternativa para o produtor brasileiro, um caminho, bom ou ruim, mas que a aba
Agora, q~~~ ~ qu: ia, quem enchia os cinemas? A gente lançava filme, não ti- mostrando, ao mesmo tempo, toda a miséria do cinema brasileiro.
nha nem tijolinho no jornal e... Era o boca-a-boca. Ninguém sabe quem é, como
acontece. Nem o exibidor sabia, ninguém sabia. Acontecia ...
(Pano lento)

Inácio Araújo:

AS MOÇAS DA RUA DO TRIUNFO (OU AS MULHERES


E.u.me divertia. Fazia pornochanchada também, e fazia outros filmes, fazia
SEMPRE QUEREM MAIS)
publicidade, Neste sentido, trabalhar com o Sylvio Renoldi era uma bela escola.
...,..
[... ] Esse p.apo [de preconceito] é coisa de quem não entende, porque, para quem
Algumas comédias com produção mais fina contaram com a participa-
gosta de cinema, tanto faz como tanto fez se o filme tem sexo ou deixa de ter.
ção de atores que depois ganhariam (ou começavam a ganhar) popula-
ridade na televisão, como os então iniciantes Antonio Fagundes, Nun

DIÁLOGO (IM)POssíVEL ENTRE MIGUEL BORGES E INIMÁ SIMÕES31 Leal Maia, Ney Latorraca, Ewerton de Castro, Tony Ramos. Mas, pra-
ticamente, não surgiram atores que tenham ganhado notoriedade pela
Miguel B~r~es - A pornochanchada é um reflexo múltiplo de uma condição participação em filmes da Boca. É possível identificar um ou outro ar r
m~rcad~loglCa e, ao mesmo tempo, um produto de imitação de valores estran- que, no âmbito da "cultura" da Boca do Lixo, conseguiram alguma ex-
geiros e Improvisação de valores nacionais. Não tem nada a ver com moral e bons pressão, como Roberto Miranda, Robert Bolant, Mario Benvenutti
costumes, mas sim com o balanço de pagamentos e a taxa do dólar. Sérgio Hingst, entre poucos. Com exceção, evidentemente, dos atores-
produtores Tony Vieira, que não chegou a se projetar além do segment
lnimá. Simões - É moralismo; tolice abordá-Ia sem ser pelo ponto de vista
de aficcionados de seus filmes, e Oavid Cardoso, que conseguiu alguma
da nec~ssldade de merc~do. É um filme barato, de fácil produção e distribuição,
mas cUJa enorme capacidade de aceitação está envolvendo, cada vez mais uma popularidade por conta de suas aparições em novelas de tevê.
luta antiimperialista, contra a penetração do capital estrangeiro neste país. As atrizes eram o centro das atenções nos filmes da Boca do Lixo. A
exploração comercial dos filmes, seu apelo ao público, apoiava-se na figura
Mi~~leI Borges - Tratar esse fenômeno de um ponto de vista moral ou es-
r •
da mulher, realçando-se os seus dotes físicos - a beleza e sensualidade d s
tet1c~ e Ignorar as suas causas. A pornochanchada faz o papel de uma autocrítica
corpos, em suas performances em cenas eróticas, no sex appeal. Por isso, era
caótica do povo brasileiro.
senso comum que, de uma atriz de pornochanchada, não se deveria exi-
lnimá Simões =':
gent~ está conseguindo, com a aceitação da pornochan- gir mais que a presença física, pois os recursos cinematográficos - movi-
chada, aumentar os dias obngatórios de exibição de filmes nacionais, ampliar o mentos de câmera, enquadramentos, a montagem etc. - trabalhariam por
mercado para o filme brasileiro. ela, evidenciando seus talentos. Esta visão tendia a tornar secundário um
trabalho mais apurado de interpretação feminina. A utilização dos elementos
31 Entrevista de Miguel Borges a O Globo, 15 mar., 1976; lnimá F. Simões, 1981b. expressivos do cinema parece convergir para o corpo da mulher, que, a -

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I'ORNO ""N 111111111 III RI/I 11 IInu "yv •• 'm "'V

SIm, e torna a verdadeira atração, conduzindo a iluminação, a decupagem, à margem dos esquemas televisivo (as redes de televisá tnvam cm ;I~
a montagem, o desenvolvimento dramático do filme. censão no mercado na época) e da grande imprensa, de erro m do "í )I
Em filmes descaradamente voyeuristas, a câmera sempre procura o ângulo mando" e lançando atrizes como Vera Fischer, Helena Ramos, Aldi n M li11-r,
Matilde Masrrangi, Patrícia Scalvi e Nicole Puzzi, entre as estrela mais
privilegiado atrás das calcinhas das atrizes (desvendando as curvas de seus
quadris), insinua-se nos decotes (explorando as curvas dos seios), "olha" por destacadas. A este elenco mais conhecido vieram integrar-se Zilda Mayo,
baixo, por cima, de lado, tentando a melhor posição, "tal qual um adoles- Zaira Bueno, Vanessa, Silvia Gless, Alvamar Tadei, Sandra Graffi, en 11' •
cente excitado". Este desfrute, às vezes, é acompanhado de olhares, gestos outras. Ou cooptando outras atrizes já conhecidas, como Sandra Bréa, f at .
e insinuações aprovadores, por parte da mulher, reforçando a manipulação Lyra e até a nobreza de Ira de Furstenberg. Nomes que faziam as bilhct -
que se faz de seu corpo como instrumento de excitação. rias funcionar.
Para compreender essa "conivência" entre a mulher e a câmera, é pre- As principais estrelas da Boca do Lixo ganharam algum status e alguma
ciso que esses filmes sejam inseridos no contexto (como se dizia então) popularidade, alcançando outras camadas de público, posando para revistas
brasileiro dos anos 1970, em que a chamada liberação feminina produz masculinas de reputação, como ELe ELa, Status e Playboy. Com o fim das
pornochanchadas, algumas arriscaram o teatro e a televisão, tendo obtid
contradições que ganham contornos próprios a um país latino-americano
subdesenvolvido, com uma sociedade patriarcal, e se vê enfrentada por um um certo reconhecimento. Poucas seguiram fazendo cinema, experimen-
resistente machismo - também prenhe de contradições. A conivência talvez tando outros gêneros. Uma exceção é, certamente, Vera Fischer, alçada <
condição de "deusa" nacional, uma das mais requisitadas atrizes de cin '-
fizesse parte da própria liberação feminina, como atitude afirmativa.
Muitas das candidatas ao estrelato conseguiram apenas o esquecimento, ma e televisão.
A seguir, apresento o perfil condensado das principais estrelas da porno-
saindo de cena na mesma névoa de encanto com que surgiram. A gran-
de maioria chegou somente à condição de pin-up, "mulheres sem nome chanchada brasileira dos anos 1970.
era Fisch ~(Blumenau, Se, 1951) foi educada segundo a tradici -
nem personalidade, imagens cuja função básica é excitar os apetites se-
xuais do público masculino". Estrelinhas que conseguiram participar como nal disciplina que caracteriza a colônia alemã de Blumenau. Estudou numa
escola pública estadual, o Colégio Pedro II (que homenageou a aluna ilustr .
figurantes, ou em papéis bem secundários. Depois do filme, ninguém mais
se lembraria delas. com uma placa de bronze), e numa escola de freiras, o Colégio Sagrada
Essencialmente, apresentavam histórias de vida semelhantes: vinham Família, onde fez o antigo curso clássico. Loura, com olhos verdes, pa S LI
do interior ou de bairros operários da capital, eram de origem humilde, a chamar a atenção por sua beleza aos 15 anos de idade, quando debut li
no Clube Pomerano, da vizinha cidade de Pomerode. Em 1969, ante d·
:rabal~ar~m c~mo b~lconistas, operárias, ~ançarinas etc. Traziam o corpo
completar 18 anos, foi eleita Miss Brasil, tendo ficado entre as 15 finalistas
definido e a mtençao de ser alguém na VIda fazendo carreira no cinema,
~ do concurso de Miss Universo, realizado nas Filipinas. Surgem então convi '
que, naquele tempo, era mais glamouroso (e acessível) que a tevê. Os passos
para shows e apresentações na televisão. Em 1971, contrariando a vonta-
iniciais na carreira, além de visitas a produtores e testes para os papéis,
de da família, ela decide se mudar para o Rio de Janeiro, a fim de dar livr .
incluíam, geralmente, sessões de fotos, participação em concursos de
beleza - "Miss Suéter", "Garota Melodia", "Miss Tanga Internacional" curso a sua carreira. Vera estreou na televisão fazendo uma pequena par-
(este realizado anualmente na Venezuela e sempre com a participação de ticipação no programa Sergio Bittencourt. Foi o suficiente para ser n-
estrelinhas da pornochanchada), Garota "alguma coisa" em programas vidada a atuar como apresentadora do programa Show de turismo, na TV
de tevê -, até que a grande chance surgisse, num filme qualquer. Rio, apresentado pelo ator Paulo Monte. Em seguida, passou a fazer par
te do corpo de jurados do programa de Flávio Cavalcanti, na TVTupi, o
Pode-se atribuir tanto aos filmes eróticos quanto à Boca do Lixo o feito
de terem conseguido construir um precário, mas estimulante, star system, que a tornou nacionalmente conhecida.

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Em 1972, aos 21 anos, Vera Fischer faz sua estréia como atriz no filme já residindo em São Paulo, começou a trabalhar m bal nisra d . lIlll,1
Sinal vermelho, asflmeas, de Fauzi Mansur. A protagonista do filme era drogaria. Posteriormente, trabalhou numa fábrica de cristais, ndc h· '011
Marlene França, mas os cartazes e toda a publicidade da fita foram feitos a ser lapidadora.
em torno do nome e, sobretudo, da nudez da ex-miss. O sucesso foi enorme: Em 1971, foi contratada como telemoça do Programa Silvio antos. li:!
no dia da estréia, o filme só perdeu na bilheteria para O poderoso chefão, discreta carreira na televisão foi interrompida em 1974, quando f, i )11
de Francis Ford Coppola.
vidada, pelo diretor Roberto Mauro, a trabalhar como atriz no film 11
Nos primeiros anos da década de 1970, Vera Fischer atuou em uma série cangaceiras eróticas.De família muito católica, educada em colégio de fr iras,
de filmes com produção da Rua do Triunfo: Anjo loiro (1972), de Alfredo Helena, inicialmente, recusou o convite, por saber que teria de tirar a roupa.
Sternheim; A superfêmea (1973), de Aníbal Massaini; As delícias da vida A insistência do diretor e a garantia de que não apareceria "inteiram nt .
(1974), de Maurício Rittner; Essagostosabrincadeira a dois (1974), de Victor nua" persuadiram-na a aceitar. Durante as filmagens, Roberto Mauro tem li
di Mello; Macho eflmea (1974), de Ody Fraga; As mulheres que fazem di- convencê-Ia a fazer uma cena mais à vontade, mas Helena se recusou e am ':I-
ferente, tornando-se o primeiro grande símbolo sexual da pornochanchada. çou deixar o filme. No final, concordou em participar.
Em enha se afirmar como atriz e su erar o rótulo de (apenas) A carreira de Helena Ramos pode ser dividida em duas fases: a prirn ira
símbolo se~ual, Vera abandona as pornochanchadas em 1974, renegando compreende o período de 1974 a 1979, quando ela não mostra muita coi a
essa fase de su.'!-.~!Qa-,
p_Of ter ~i _om~~ada por uma atuação "puramente
além do belo corpo. Desta fase, seu filme de maior repercussão foi Mulher;
física". Em 1975, ao lado de Perry Sales, seu mari o, pro uz e pr~iza mulher (1979), dirigido por Jean Garret, para o qual gravou, talvez, a c na
o~ Intimidade, baseado em história de Carlos Heitor Cony, com roteiro mais ousada - de maior voltagem erótica - de sua carreira, em que a p r
e direção do inglês Michael Sarne, seu primeiro papel "sério" no cinema. sonagem, uma mulher sexualmente insatisfeita, contracena com um caval
A carreira de atriz ganharia maior impulso a partir de sua participação nos Esta foi uma das cenas mais comentadas do cinema nacional naquele an ,
filmes de Walter Hugo Khouri, sobretudo após Amor, estranho amor, fil- num filme em que ela também participa de cenas de lesbianismo. No r I
me que valeu os prêmios de melhor atriz no Festival de Brasília e o Prêmio de suas perfomances mais ousadas, pode ser incluída a seqüência de Patty,
Air France, em 1981.32 Graças a um talento dramático natural e uma enorme mulher proibida, de Luís Gonzaga dos Santos, em que transa com um anão.
força de vontade, Vera Fischer conseguiu superar o estereótipo de símbo- Em seguida, atuou em O inseto do amor, de Fauzi Mansur, uma sátira ~
lo sexual, surgido das pornochanchadas em que atuou no início da carreira, pornochanchada. Em Diário de uma prostituta, dirigido por Edward Freund,
tornando-se uma das mais requisitadas atrizes - sobretudo de televisão- Helena fez o papel de Bia, uma prostituta que sonha em publicar seu diári .
da atualidade.
Outro filme a ser lembrado é Iracema, a virgem dos lábios de mel, de Carl li
Conhecida como Musa da.Pornochanchada, Rainha da Boca do Lixo Coimbra, baseado no romance homônimo de José de Alencar. Criticado
e,outros tít~los pare~idos, elena R:m~(Cerqueira César, Sp, 1955) é o principalmente pela voz de adolescente, de que nunca conseguiu se livrar -
símbolo maior do cinema eronco paulista dos anos 1970 e 1980. Curio- seus personagens, malgrado ela, eram quase sempre dublados -, no final da
samente, sua carreira de atriz de cinema foi curta: durou apenas dez anos, década de 1970 Helena resolveu investir na sua formação como atriz, s-
de 1974 a 1984. Teve uma infância difícil: quando tinha 8 anos, seus pais tudando balé e expressão corporal.
se separaram e ela foi enviada a um colégio de freiras em Campos do jordão, No início dos anos 1980, sua carreira ganhou um novo impulso. Ap '-
o Preventório Santa Clara, onde permaneceu por dois anos. Aos 12 anos, sar de continuar freqüentando assiduamente o mainstream da Boca do Lixo,
Helena é convidada a trabalhar com diretores de maior prestígio, como
Walter Hugo Khouri, em Convite aoprazer. Sua atuação no filme não de p
32 Cf. Ramos e Miranda, op. cit., pp. 245-46.
ciona. Seu maior sucesso de público e de crítica foi Mulher objeto, dirigido

174
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básico de uma andidata ao estrelato: parti ip u d inúm .ros on UI"W1>


por ílvio de Abreu. ob a direção de Antonio Calmon, interpretou uma
de televisão, até na Venezuela, foi capa de revistas dirigida a públi o
atriz famosa em Mulher sensual (Novela das oito). Em seguida participou
juvenil e, depois de se tornar conhecida no cinema, posou para r vist:l~
de Por um corpo de mulher, de Hércules Breseghelo, contracenando com
masculinas. Sua estréia nas telas se deu em O clube das infiéis, d láu-
Armando Bógus. Com o abrandamento da censura, as cenas de sexo fo-
dio Cunha, diretor identificado com o cinema erótico paulista. B n ira
ram se tornando mais ousadas. Nesse período de maior liberdade para o
e fotogênica, com um toque brejeiro, Aldine se viu transformada inste 11
cinema erótico, ela fez poucos filmes, dentre os quais Palácio de Vênus, de
taneamente em atriz das mais requisitadas, o que a levou - ao lad d·
Ody Fraga, Me deixa de quatro, de Fauzi Mansur, e Corpo e alma de uma
Helena Ramos - a ser conhecida como um das rainhas da porno han-
mulher, de David Cardoso. Seu último trabalho na Boca foi Volúpiade mulher
chada, com direito a fãs-clubes espalhados pelo país. Neste período, tra-
(1984), de John Doo."
balhou com David Cardoso, Jean Garret, John Doo, garantindo grand s
Sobre sua trajetória, relata Helena Ramos:
sucessos de bilheteria para Dezenove mulheres e um homem, O bem dotado,
Uma coisa engraçada ... Logo no meu primeiro filme, As cangaceiras eróticas,
O homem de Itu, dentre inúmeros outros filmes. Com Walther Hu
eu fiz sucesso. E continuei fazendo. Chegou uma hora em que os produtores Khouri, o diretor preferido das atrizes em busca de reconhecimento ar-
exigiam que eu fosse contratada. Fosse quem fosse. Por exemplo, tinha um diretor tístico, fez O prisioneiro do sexo e Paixão e sombras.
que estava namorando uma atriz - eu não vou dizer os nomes - e queria co- O esvaziamento do ciclo da pornochanchada, na virada dos anos 1980,
locar a namorada no filme, mas o produtor disse: "Não. Você vai colocar a He- com a substituição gradativa dos filmes eróticos pelos de sexo explícito,
lena Ramos, que já é bilheteria certa". Mesmo a contragosto, eles tinham que me levou muitos profissionais ligados ao cinema a buscar alternativas. Aldin
colocar. foi uma das poucas que, depois do ciclo da pornochanchada, continu LI
Acontecia uma coisa engraçada comigo, que até hoje ainda acontece. As pessoas atuando como atriz, dedicando-se, então, principalmente, ao teatro e c
nunca olhavam pra mim como se eu fosse a Helena Ramos. Elas sempre diziam
televisão, onde participou de telenovelas do SBT e da Globo - entre a
que eu me parecia com ela. "Ah, como você parece com a Helena Ramos!" Eu
quais Sassaricando (1987), O salvador da pátria (1989) e Rainha da Su-
sempre concordava também, em qualquer lugar que fosse. Em geral, as pessoas
cata (1990). Um dos raros filmes em que atuou em meados d: década d
não me ligavam à atriz. Ninguém chegava pra mim e dizia: "Me dá um autógrafo!",
"Helena Ramos, pôxa!", 1980 foi a produção gaúcha Noite, baseada numa história de Erico Verís-
simo, com direção de Gilberto Loureiro, no qual Aldine contracena com
Filha de pai italiano e mãe portuguesa, nascida Aldine Rodrigues Raspini, Paulo Cesar Peréio. Mais recentemente, revelou uma faceta de seu talent
Aldine Müller (Portugal, 1953) veio para o Brasil aos 2 anos de idade, quando até então desconhecida do grande público, ao contracenar com Chi
sua família se instalou no Rio Grande do Sul. Em Caxias do Sul, fez os Anysio na Escolinha do professor Raimundo durante algumas temporada.
estudos iniciais num colégio interno e participou de grupos de teatro amador. Paralelamente, esteve no elenco de várias peças de teatro, entre as quais Vága
Na adolescência, consagrou-se localmente como Rainha da Festa da Uva, para moças de fino trato, grande sucesso de público, que permaneceu lon-
passo decisivo para iniciar a carreira de modelo. Passou a viver em Porto gos meses em cartaz nas principais cidades do país." ..
Alegre, onde ganhava a vida trabalhando no comércio, enquanto participava Quando fez 18 anos, Matilde Mastrangi (São Paulo, 1953) fOI mcen-
de muitos desfiles, até decidir-se por vôos mais altos. Aconselhada por tivada por sua mãe a participar de um concurso na televisão, no Programa
amigas, Aldine mudou-se para São Paulo aos 18 anos, para fazer um curso Sílvio Santos, que escolheria a parceira do cantor Wanderley Cardoso para
de manequim com Christine Yufon. Na capital paulista, seguiu o roteiro uma fotonovela na revista Sétimo Céu. O concurso não chegou ao fim, ma:

33 Idem, op. cit., pp. 448-49. 34 Idem, op. cit., P: 392.

177
176
t'OJ(Nu\:n~ •• "AU" lU \111"1" VV v •••.•.

Matildc con eguiu o emprego de "silvete" (um misto de d . . d


d al ançarina e aJLI ame Eu comecei na televisão, e lá começaram a surgir as oportunidad 'S: "Matild '.
e p ~~) nos pro?r~~as do animador. Ao mesmo tempo, trabalhava como
tem um teste para uma foto tal". "Matilde, vamos fazer um show?" Fiz tudo. Fazi;!
secretana em escntonos de São Paulo e como modelo forog Li' d
• • • 14 ranco, posan o feira no Anhembi, fazia UD, fazia Salão do Automóvel [...]. Caguei pra esse negó i
para revistas, InICIOUsua.c~~reira no cinema com As cangaceiras eróticas, de de queimar a imagem. Isso não existe.
Roberto Mauro, onde exibiria os admiráveis dotes físicos e talento A . Por exemplo, quando a filmagem parava para irmos almoçar, se eu estava pelada,
, id d . segUlr
e convi a a a .atuar em muitos Outros filmes, tornando-se uma das estrela; pelada eu continuava, e ia comer. O Portioli até falava pra mim: "Matilde, vo ê
da Boca do LIXO:Dentre alguns sucessos por ela estrelados, destacam-se não quer se vestir? A gente está enjoado de ver sua bunda. Produtor, contrata carne
:acalhau, de Adnano Stuarr, Palácio de Vênus e Erótica: aflmea sensual, am- nova! Essas meninas a gente não agüenta mais ver". Na brincadeira, é claro. [... ]
os de Ody ~raga. Fora do ?ênero que a consagrou, Matilde participou de Eu sempre fui muito profissional. Eu era a primeira a chegar no set de filma-
A flor do desejo, ~ dama do Cme Shangai e Perfome de gardênia, filmes de Gui- gem. Se estava marcado às 5 da manhã, 5 para as 5 eu estava lá. Nunca dei pro-
lhe:me de Almeidn P~ado. Com a decadência da pornochanchada, deixou blema. Só recebi elogios. [... ] Também, eu era uma pessoa difícil, no sentido
de ser determinada. Eu sempre soube o que quis. É sim ou não. Eu sou muito
d cllle~a para se dedicar ao teatro, como atriz e produtora. Seus trabalhos
assim: vou ou não vou; não tenho talvez ...
t e m.a~ordesta.q~e no teatro foram O grande motel e Uma ilha para três. Na
e~evIsao, parncipou da novela Vereda tropical (I984) na Rede Globo es-
Patrícia Scal~Vera Lúcia de Souza, São Paulo, 1954) começou fazendo
cnta pelo ex-diretor de pornochanchadas Sílvio de Abreu.35 '

Segundo ela própria: teatro amadOr. Convidada para fazer um teste para um pequeno papel num
filme, acabou conseguindo o papel principal em Presídio de mulheres vio-
lentadas, uma produção de Antonio Galante. Sua atuação no filme chama
Acho que eu sou a única da pornochanchada [que fez um pé-de mei ] E
com 20 an . . h a. u, a atenção do crítico Rubem Biáfora, o que dá impulso à sua carreira. A seguir,
11 b lh os, comprei rrun a ~asa. Comecei a trabalhar com 11 anos de idade.
~a ~ ava em um açougue. Limpava, ajudava. Um açougue do meu tio vizi- filma desde pornochanchadas rotineiras a produções mais esmeradas, com
~: .e casa. ~om 14 tive o meu primeiro registro, trabalhava em escritó~io. E vários diretores, dentre as quais se destacam Dezenove mulheres e um ho-
pie, na minha ho.ra de almoço, eu ia fazer testes nas agências de emprego para mem e Corpo devasso, de Oavid Cardoso, e Ninfas diabólicas (o episódio "A
con~egull' ganhar mais. Então, quando eu comecei a fazer cinema eu sempre edi carta de Érica"), de John Doo.
a minha grana, sempre pedi mais do que eles me ofereciam [ ] E PEi . Musa do ex-marido, o diretor Luiz Castillini, com ele filmou As amantes
b . '. .... u sempre UI
oa para ISSO,negociar dmheiro. [...] Eu com 20 ano d id d .
. h ',. .. ' s e I a e, era uma meni- latinas, Tara, prazeres proibidos (acumulando a função de assistente de dire-
na .qu~ trn a glllaslO, Vinha da Vila Carrão, meu pai era pedreiro e minha mãe ção), Orgia das taras, os episódios "As gazelas" de Pornô! e "A peça", de
faxmelr~. Eu trabalhav~ em escritório, tomava dois ônibus para ir à Barra Fun-
Ousadia, Reencarnação do sexo, Instinto devasso e Elite devassa.
da. Voce acha que eu nao Ia fazer isso? Claro que eu ia E -
. . d . u nao estava me pros- Quase sempre em papéis de protagonista, atua em filmes cada vez mais
titUEm o~nem fazendo mal a alguém. A gente vivia disso. A gente ganhava bem
ssa resta do Peão de Barr t ' f h . . ambiciosos. Um de seus papéis mais marcantes é o da operária que sustenta
Fiz
h murro
.
+: . e os, q~e e amosa oje, eu fazia em 1973, 1975.
p.elo Brasil, e murro cinerna. Fiz muito calendário, muita folhi-
o homem que ama, um intelectual em crise, em Amor, palavra prostituta,
de Carlos Reichembach. Com Walter Hugo Khouri, especialista em focar
:v: Gan~el muito. dinheiro. Po~que as mulheres não queriam posar nuas. Fi-
E m pela.das no CIne~a, mas nao queriam posar nuas. Olha que interessante! o aspecto feminino, filma duas vezes: em Convite ao prazer e Eros, deus do
u era a rainha das folhmhas: pneus, tintas, filtros, um monte. amor. Sob a direção do estreante Jair Corrêa, atua em Duas estranhas mu-
lheres, no episódio "Diana". Com o produtor e diretor Cláudio Cunha, faz
Profissão mulher, contracenando com Otávio Augusto, em uma ótima in-
35 Id em, op. crr.,
. p. 362. terpretação. Sua última atuação no cinema foi A mulher, a serpente e a flor,
filme baseado em romance de Cassandra Rios, dirigido por J. Marreco.

178
179
rv .•nv ""1'1 11" •.•.• • •.•••• _ •.•••..•.•. -- ----

y "VV 'I'''

quele que deseja ver, como pela identificação narcisista do e pectad r 111 a
Abandonando as pornochanchadas, Patricia calvi desenv lvc aI uns
imagem na qual se reconhece. No cinema dominante teríamos a mulher como
trabalhos no teatro e também na televisão, participando de alguma no-
um objeto sexual que compõe o espetáculo, sendo contemplada, tanto pelo prota-
velas, como Meus filhos, minha vida (1984-1985), produção do SBT. Hoje, gonista masculino no interior da ação ficcional, como pelo espectador no interior
dedica-se à dublagem. Diz ela: da sala escura. O espectador se identificaria com o protagonista masculino, e o
homem seria o controlado r de tudo, da ação na tela ao olhar erótico. E a auto-
Era muito sério. As pessoas levavam muito a sério tudo o que faziam, mes- ra completava: "De acordo com os princípios da ideologia dominante e das es-
mo com um roteiro de merda. Eu levava super a sério. Eu pegava o roteiro e truturas psíquicas que a sustentam, a figura masculina não pode suportar o peso
pensava: "Não é muito bom, não é muito legal, mas eu vou procurar fazer o melhor
d a o hietif - sexua I [... ]" .36
jeu rcaçao
que eu posso". Pesquisava, estudava, eu queria melhorar os diálogos. Cada fil-
me feito era um "oh!". Os diretores de fotografia levavam a sério, os diretores com Contrariando esses princípios, David Cardoso parece aceitar, tanto na
quem eu trabalhei levavam a sério. Nem sempre saía uma coisa bacana, mas ...
vida como na arte, o peso da objetificação. Em relação à presença das mu-
Minha formação é muito teatral. É um outro tipo de gente, de tribo, de cabeça,
onde a colaboração existe, todo mundo faz um pouco de tudo. Era uma coisa meio lheres em seus filmes, comenta:
de família, tão familiar que às vezes até atrapalhava. [...] A garotada toda, as atrizes
Mas as atrizes dificilmente me incomodavam. Helena Ramos, Matilde Mastrangi,
todas, não tinham nenhuma formação. Eram meninas que chegavam do interior,
Patrícia Scalvi, Nicole Puzzi, Aldine Müller, Zaíra Bueno, Zilda Maio, não tinha
bonitas, maravilhosas. Entravam e faziam do cinema uma vitrine, mas não tinham
uma que ... A maioria eu lancei, outras estavam no começo da carreira, mas se pro-
formação nenhuma. Eu dublei todas elas. A Helena Ramos tem filme com a minha
jetaram em filmes meus. Não que elas aparecessem muito. É que os meus filmes
voz. A Aldine, a Matilde. A Nicole também tem filme com a minha voz.
faziam muito sucesso. Eram filmes que ficavam duradouramente, demoravam nos
Sinto muita falta. Adoraria que esse movimento forte de cinema voltasse. Eu
adoraria continuar fazendo cinema. Não me arrependo de absolutamente nada cinemas. Era uma forma de aparecer.
do que eu fiz. Foi uma época muito feliz da minha vida. Gostava muito de tudo
aquilo. Da movimentação, da noite, dos encontros, dos trabalhos. Só tenho boas
recordações. Eu só sinto muito ter acabado da forma como acabou. [... ] Mas foi
um momento muito feliz. Fui muito bem tratada, muito respeitada, fazendo
cinema. Era uma festa. Era muito gostoso.

CODA: UMA REFLEXÃO MACHISTA

o cinema da Boca do Lixo, a pornochanchada, seria o exemplo mais acabado


de um cinema com narrativa e câmera definidos a partir de um ponto de
vista masculino. Nos anos 1970, Laura Mulvey propôs uma abordagem
radical da questão, enfoque que, depois, foi relativizado e devidamente
criticado.

Mulvey partia de um referencial psicanalítico para afirmar o seguinte: o ci-


nema é uma fonte de prazeres do olhar, desenvolvendo o instinto da escopofilia,
que se processa tanto através da sujeição da imagem de outra pessoa ao olhar da- 36 Cf. J. M. Ortiz Ramos, 1995, p. 208.

181
180
A INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA
DA BOCA DO LIXO
UM MODO DE PRODUÇÃO

Em um detalhado estudo sobre o chamado cinema clássico de Hollywood,


Janet Steiger mostra como as práticas significantes e as práticas econômicas
originaram tanto um estilo, que privilegiou o cinema de ficção, a invisibi-
lidade da narrativa e uma determinada organização do tempo e espaço Hl-
micos, como um modo de produção, que envolve a divisão do trabalho, os meios
de produção (equipamentos, estúdios etc.) e os financiamentos capitalistas.
Aqui, importa destacar que, para a autora, modo de produção se liga apráticas
de produção, diferenciando-se da idéia de indústria, que caracterizaria a es-
trutura e a conduta econômicas das empresas que produzem.'
Gostaria de tomar emprestado esses conceitos, por acreditar que se
aplicam, mantendo-se as proporções, a uma abordagem do modo de produ-
ção desenvolvido na Boca do Lixo, principalmente por poder explorá-lo
a partir de suas práticas de produção. Para que um estilo - a busca de um
padrão dos filmes da Boca - e um modo de produção se desenvolvessem,
estiveram envolvidos vários elos de uma corrente discursiva, institucional,
englobando relações empresariais, profissionais, publicações e jornais (po-
pulares); até mesmo a informalidade - de relações trabalhistas e de recru-
tamento de recursos humanos. Havia uma busca (não-programática) de
convergência, para a consolidação de uma prática padronizada e eficaz que
se sedimentasse no meio cinematográfico.
Como aponta Steiger, vários sistemas de produção se foram suceden-
do no cinema americano, até que, a partir de 1955, surge o "sistema de

! Cf. Janet 5teiger, "The Hollywood mode of production to 1930", in David Brodwell,
J. Sreiger e Krisirn Thompson, The c!assicaLHoLLywood cinema - Film style 6- mode
ofproduction to 1960. Nova Iorque: Columbia University Press, 1985, apud José Mário
Ortiz Ramos, 1995.

183
UO 1\ 1,10 LIXO
A INDU IklA lI' "'''IV W-""" ,. UI\ .,-V " UV Jlll\1

package-unit", em que um produtor mobiliza as condiçõe de trabalho da in- A Boca do Lixo passa a desenvolver-se, efetivamente, com um P! lu a )
dústria, mas não fica limitado ao estúdio, organizando um arranjo (econô- ligada às necessidades de mercado e segundo uma linha que convcn io-
mico e artístico) para cada filme. Há, então, uma produção especializada rea- naremos chamar de industrial (embora a realizasse artesanalrnente), qu .
lizada por "independentes". Nesse sistema, autores, diretores e atores con- não dependia do dinheiro das agências governamentais. Por outro lado, c 3
seguem deter uma parcela maior nas negociações, a cada filme. Mas as práticas produção não era completamente independente, porque estava ligada. s
de produção mantêm-se, dando continuidade ao modo de produção. O ci- redes de distribuição e exibição. A Boca foi formada com a consciência d .
nema brasileiro como um todo e a produção da Boca do Lixo em especial que trabalhava com a realidade do cinema brasileiro: a produção de fil-
seguiam formas semelhantes às do sistema de package-unit. Porém, como não mes que podiam render dentro das condições de mercado e de sua reserva.
havia uma estrutura industrial sólida, alguns produtores são levados a manter Desse modo, procurava apoiar-se, de um lado, num esquema industrial
meios de produção - câmera, moviola, transporte etc. - e realizar filma- embrionário (eufemismo para precário e incipienre) e, por outro, no
gens em locações, por contenção de custos. No início dos anos 1960, a pro- mércio cinematográfico - em sentido amplo, de troca de mercadorias, d .
dução cinematográfica brasileira estava dividida entre uma vertente com favores, de influências etc.
tradições culturais, que procura negar o modelo de estúdios, e uma outra, Na confusão de sua desigualdade, a Boca do Lixo procurou investir, prin-
voltada para o entretenimento, agrupando retalhos da tradição deste modelo cipalmente, em filmes de baixo custo - da média para baixo (lembrand
formada pela Maristela, Vera Cruz e quadros secundários da TV Excelsior que, para os padrões do Brasil, mesmo as grandes produções são low budget
para ensaiar um salto industrial. Esta segunda linhagem tentará a difícil ta- em relação às internacionais) -, em muitos casos com visível intenção d
refa de consolidar um pólo de produção na Boca do Lixo, em São Paulo, chegar a resultados com qualidade artística. Obtendo retorno financeir
catalisando recursos econômicos e "saberes" cinematográficos esparsos. dentro dessa faixa, garantiu uma base empresarial que, embora pulverizada
entre muitas firmas produtoras (e produtores), foi a que mais perto chegou,
em seu conjunto, do que se pode chamar de uma indústria cinematográ-
EMBRAFILME/ESTADO VERSUS BOCA DO LIXO/CAPITAL PRIVADO fica no Brasil.
A esse respeito, diz Guilherme de Almeida Prado: "Com certeza. [...]
Um emergente processo "industrial" começa a fabricar filmes a toque de caixa, Era uma indústria de fundo de quintal, mas foi a coisa mais parecida com
por meio de pequenas produtoras, visando ocupar os espaços oferecidos pela urna indústria. Mais industrial que a Vera Cruz, mais industrial que a EM-
obrigatoriedade de exibição do filme nacional e pela inexistência de empresas BRAFILME".
sedimentadas para suprir todo o potencial do mercado. Evidentemente, era Esse "fundo de quintal" de que fala Guilherme de Almeida Prado tra-
notória a qualidade desigual dos produtos oferecidos, cuja diversidade atendia duz o que, na prática, era urna industrialização precária e singular. Além
a segmentos diversos da exibição - cinemas de segunda linha etc. Vistos sob disso, a própria noção de indústria precisa encontrar lugar, como observa
um determinado viés, são filmes que, no conjunto, apresentam uma quali- Ortiz Ramos:
dade pouco profissional, carentes de melhor desempenho técnico e artístico.
Por outro, na massa crítica desta desigualdade, é possível encontrar talentos E para sermos mais precisos quanto ao controvertido estatuto da '''indústria''
e produtos de melhor acabamento, na perspectiva de um cinema popular para todo o cinema brasileiro, temos de ressaltar que a "industrialização" decorreria
brasileiro (por oposição a um cinema "culturalisra'"). de um processo misto, com pequenas empresas manufatureiras, que só utilizam

2 Designação proposta pelos "intelectuais" da Boca do Lixo, em entrevistas, na revista Cinema Novo e, durante os anos 1970, seria aquela financiada pelas agências estatais
Cinema em Close Up etc. Caracterizaria a produção que herdou os valores éticos do INC e EMBRAFILME.

184
185
nv " to'AV
IJ'V
A INI>U UIA IN MAIO RA~I A DA DO A OU LIXO

-- r-----
uma verdadeira dimensão industrial, fabril e com maquinaria, na fase de opiagcrn N~ DE FI LMES I
ANO EMBRAFILME BOCA DO LIXO
de um grande laboratório. A produção de filmes estabelece nuances diferentes de
1972 70 30 25
organização do trabalho, criando interdependência e organicidade, distintos do pro-
cesso industrial de "linha de produção." 1973*** 54 25 20
1974 80 38 21
Apoiada em capitais privados, a produção da Boca do Lixo viveu a tensão 1975'" 89 25 24
do investimento, bárbaro e nosso, e de suas relações com o mercado. Por 1976 84 29 37
isso, seus filmes, inseridos na faixa que se qualifica como "média", cons- 1977 73 12 21
tituíam-se, de fato, num real termômetro do interesse do filme popular e
1978 100 22 40
do conseqüente retorno financeiro.
1979 96 19 44
Para nos ajudar a esclarecer a participação da Boca do Lixo no mercado,
1980 103 13 39
o Quadro 1 apresenta o número de filmes realizados no período 1966-1983,
em que se pode observar a evolução quantitativa da produção. O quadro 1981 80 21 55
destaca os filmes que contaram com a participação (geralmente em regime 1982 85 23 51
de co-produçâo) da EMBRAFILME, e, a partir de 1974, os dados incluem 1983 84 17
também financiamentos para distribuição. Os números na coluna referente Algumas fontes contabilizam os filmes lançados no ano, o que não necessariamente signi-
à produção da Rua do Triunfo foram obtidos com o levantamento da fil- fica que tenham sido realizados neste ano.
Fontes: EMBRAFILME,Departamento de Documentação e Divulgação - Departamento d·
mografia, em que se aplicaram alguns critérios para identificar a produção
Pesquisa e Difusão/Informativo SIP INC, revista Luz e Ação, 1983, apud Fundação Ja-
como made in Boca do Lixo. As fontes foram os catálogos Brasil Cine- pão, O cinema brasileiro: evolução e desempenho, 1985.
ma - publicação anual (entre 1965 e 1977) do INC, EMBRAFILME -, con- Criação do INC, em 18 de novembro de 1966.
*' Criação da EMBRAFILME,em 12 de setembro de 1969.
tendo fichas técnicas e sinopses dos filmes realizados a cada ano, e o Guia *'* Em 27 de setembro de 1973, a EMBRAFILMEtorna-se também distribuidora.
de Filmes (entre 1978 e 1982), publicação anual da EMBRAFILME contendo .•. Em 9 de dezembro de 1975, o INC é extinto, passando à EMBRAFILME e ao CONCINE a respon-
o mesmo material. sabilidade pela formulação e execução das políticas financeiras, culturais e de regulamenraçã
e fiscalização.

QUADRO 1
FILMES PRODUZIDOS (1966-1983)
É importante esclarecer que a soma das colunas "EMBRAFILME" e "Boca
do Lixo" não deve dar o resultado da coluna "Filmes do ano", pois, na
ANO N2 DE FILMW EMBRAFILME BOCA DO LIXO produção brasileira, devem ser também contabilizadas uma produção ca-
1966* 30 rioca - com a significativa participação de pornochanchadas -, alguns
1967 41 - filmes paulistas que não são "da Boca do Lixo", os filmes de outros es-
1968 47 - tados, pólos de produção etc., que incidem sobre o número final. Ou-
1969** 46 tro problema diz respeito ao ano em que o filme é contabilizado, porqu ,
- 12
nas publicações, encontramos alguns registros que tomam por base o ano
1970 83 17 21
de produção, e outros, o ano de lançamento. Optou-se, sempre que pos-
1971 94 12 22
---- L-.. ____ L- ____

---- sível, pelo ano do registro da produção do filme, já que vários filmes
esperavam datas de lançamento, outros passavam algum tempo em ne-
3 CE. José Mário Ortiz Ramos, op. cit., p. 22. gociação com a Censura etc.

186 187
A INO A

~ possível perceber que a participação da Boca do Lixo na produção anual pessoal que vivia falando mal do governo, mas mamando nas teta di. Nó , nfio.
OSCIlade 26% a 45% do número de filmes realizados no ano, comprovando A gente vendia até a casa. Eu, pra fazer o Vítimas do prazer, vendi um terrcn .
ser esta a produção independente de verbas do Estado . . if Tudo o que eu tinha ganhado, apliquei nesse filme, que foi meu grande sucess
. mais sIgm ica-
Uva neste período. Com isso, abocanhava gordas fatias do bolo das bi- como diretor.
lheterias (maiores do que a correspondente ao percenrual de participa-
ção na exibição): Com visão empresarial, Aníbal Massaini explica os mecanismos qu
levavam um filme a ter que "ganhar na produção", quando o crédito é faci-
Entre 1970-1980, a produção independente de verbas do Estado ficou com litado e o mercado, nem tanto:
parcelas da arrecadação que variaram de 62,1 % (a menor porcentagem, em 1978)
até 89,1% (em 1973). O Sindicato da Indústria Cinematográfica de São Paulo A EMBRAFILME tinha um modelo em que ela entrava como co-produtora até
apon.tava, em 1979, que dos 96filmes produzidos no ano, 56 eram paulistas e 34 um limite de 30% e, como distribuidora, promovia um avanço, um adiantamento
do Rio, sendo que apenas 8 dos paulistas (1,43%) tiveram apoio da EMBRAFILME de mais 30%. Era o 30 + 30. Um pouco o que acontece hoje também. Ou seja,
enquanto 30% dos 34 cariocas contaram com a participação da empresa pública." na medida em que o mercado não é mais responsável pelo resultado, naturalmente,
os custos se elevam. De alguma fonte têm de sair os resultados.
. A EMBRAFILME
surge, na visão dos depoentes, como uma espécie de Outro
clllematogr~fico da Boca do Lixo. A empresa estatal, segundo os depoimen- Importante sublinhar esta explicação: o mercado não seria responsável
to~, (se) tena sustentado (sobre) um sistema de privilégios, tanto econô- pelo resultado financeiro, porque (em sua maioria) os filmes produzi-
mIco~ quanto ,s?ciais, e os seus filmes, mesmo sem merecer, ganhavam a dos pela EMBRAFILMEeram pouco competitivos, ou com bilheterias me-
atençao dos cntl,~os e relevância cultural. Estas opiniões reiteram, por um díocres, o que provocaria a busca antecipada de "lucros". Como obser-
lado, uma certa síndrome de orfandade" e, por outro, reforçam o caráter va Inácio Araújo:
~mpree.nde,?or do pessoal da Boca, de investir assumindo riscos, que os
protegidos do Estado não corriam. Os conflitos da Boca com o meio cine- Eu tenho a impressão de que uma parte do cinema, "a parte nobre", ficou sob
mato~ráfico referem-se sempre a sua luta pelo mercado com armas e recursos as asas do Estado. Sob as asas da EMBRAFILME. Embora houvesse uma nítida tenta-
própnos, ? q_ue te~i~ atingido a qualidade dos filmes e, por conseqüência, tiva de encontro com o mercado, sobretudo na fase Roberto Farias, que sempre
sua apreciaçao crrnca. foi um diretor de filmes para o mercado. [...] Quando não se tem um sistema mini-
mamente permeável, transparente, de alocação de verbas etc. [...], a coisa tend]e]
~s~a .visão da e~presa estatal como um sistema de privilégios se esten-
a ir pra o brejo mais cedo ou mais tarde. E aí se criou uma diferenciação. Embo-
dena a lisura da aplicação e da administração dos recursos como radicaliza
Cláudio Cunha: ' ra a EMBRAFILME fosse uma instituição voltada ao mercado, os filmes não tinham
esse contato, esse corpo-a-corpo.

,A,gente quer.ia ga~har na exibição. Porque a gente sabia que tinha mercado.
Para muitos, as diferenças são de formação. Os "cineastas da EMBRAFILME",
Nos eramos muito diferentes daquele pessoal ligado à EMBRAFILME, que já que-
embora se preocupassem com o resultado artístico, não teriam nenhum
na ganhar na produção. [... ] Fazia um filme marreta com o dinheiro da EM-
compromisso com o resultado financeiro do filme, enquanto a Boca sofria
BRAFILME, já pegava um tanto do orçamento e botava no bolso, entendeu? O pessoal
botava meia dúzia de mensagens de esquerda lá, pra fazer uma média com aquele as pressões dos patrões do sistema de capital privado - e de seu grande juiz,
o sucesso de bilheteria. As contradições de um profissional do cinema da
Boca do Lixo estão condensadas na observação de um seu convicto cidadão,
4 Idem, op. cit., p. 16. Luiz Castillini:

188
189
"V"''' "V "'AV
A INDU TRIA III MAl I!A A DA •••.•..• 'T-. •••~

A Boca do Lixo tinha o embrião da indústria. O restante foram t ntativas d


flação já estava presente. Ela promovia a finalização de um filme, orn s vai I"~
gente muito talentosa e, às vezes, de gente sem talento e sem nenhuma preo u-
entrando como valores nominais numa conta corrente, para serem ressar idos
pação com o público. Quando eu falo aqui que não foi dada ao pessoal [da Boca]
meses depois sem correção. Para uma empresa privada é absolutamente imp s
a chance de fazer aquilo que realmente queria, era aquilo que a gente queria visando
sível. Vamos falar de duas EMBRAFILMES:
tem uma que vem como órgão de fomento,
o público. O nosso tipo de formação cinematográfica visava o público. Também
era imposto à gente: vamos dar ao público o que o público quer. As exigências no tempo da 13 de maio, 42 andar, onde o papel dela era financiar a produ ã :
eram exigências de mediocridade. A gente queria um pouco mais, o público me- 200 mil "reais", um ano de carência, dois anos de prazo, assinava 36 promissórias
recia um pouco mais. e ia embora. Aí, quando ela começa a entrar com distribuição, co-produção, esta
história toda muda.
Apesar de variarem entre si, havia uma diferença abissal entre o valor
~os orçamentos dos filmes produzidos pela EMBRAFILMEe daqueles produ- Essa observação está em pleno acordo com a afirmativa de Carlos August
zidos pela Rua do Triunfo - os primeiros eram cerca de dez vezes maio- Calil sobre uma "segunda" EMBRAFILME,quando a empresa se reestruturou,
res. Evidentemente, a diferença entre os valores projetava-se sobre todo o em 1975s, e entrou agressivamente na distribuição. Esta nova estruturação
processo de realização, como observa Alfredo Sternheim: incluiu o fim do prêmio adicional de bilheteria. A Boca do Lixo balançou,
tirou a poeira, renovou um pouco de suas "práticas de produção", mantendo
Tenho um exemplo prático. Quando eu estava montando na Líder, reparei bem o modo de produção. De todo modo, havia um forte (reslsentimento de
a diferença: o copião do meu filme somava 10 latas grandes, enquanto o copião do que a empresa estatal privilegiava os cariocas em detrimento dos paulista.
filme do Babenco, Pixote, que montava ao meu lado, somava um número de latas A espiral inflacionária também incide sobre o tempo de realização do
muitas vezes maior que o meu. Nós [da Boca] fazíamos uma produção, digamos,
filmes. A rapidez sempre foi uma exigência do sistema de produção da Boca,
de 3 milhões, e os filmes da EMBRAFILME orçavam 30 milhões. As diferenças eram
mas, na virada dos anos 1980, o desgaste acelerado da moeda representou
gritantes tanto na parte financeira quanto de tempo de execução, em tudo. Os filmes
uma forte ameaça ao retorno do investimento com lucratividade. O tempo
da EMBRAFILME demoravam de seis a sete meses para ser finalizados. Quer dizer, um
entre o início das filmagens e o lançamento tinha de ser encurtado ao míni-
a~o, em geral, para se fazer o filme, enquanto eu tinha de fazer tudo em quatro,
CInCOmeses, logo já estava lançando. Havia essa diferença brutal. mo, já que essa demora implicava descapitalização. Este foi um golpe mortal
na qualidade dos filmes.
Para a Boca do Lixo, a EMBRAFILME
fazia o papel de vilã, não só da produção,
mas, principalmente, da distribuição, ao criar "um sistema nocivo" que acabou
com o distribuidor nacional privado. Como resultado, para os produtores A LEGISLAÇÃO PROTECIONISTA
e diretores, tornou-se mais interessante (lucrativo) "mamar nas tetas da EMBRA",
que acenava com um avanço sobre a distribuição. As empresas distribuido- A legislação protecionista implementada pelo Estado autoritário funcionou,
ras não tinham condições de enfrentar esse sistema, principalmente com o estimulando de fato a produção. De modo geral, mesmo não concordando
aumento da inflação no período, e foram se afastando do negócio. com outras faces do regime, há um certo reconhecimento da eficiência com
Aníbal Massaini relata: que a lei era aplicada. Entre os vários itens que fomentaram a economia
cinematográfica nos anos 1970, dois são bastante apreciados: a lei de obriga-
Eu acho que essa política que a EMBRAFILME desenvolveu, de certa maneira toriedade de exibição do filme brasileiro (reserva de mercado) e o prêmio
acabou desestruturando as empresas produtoras e distribuidoras. [... ] Pra gente adicional de bilheteria.
pleitear a distribuição de um filme com algum nível, a gente tinha que entrar em A hipótese de que o movimento cinematográfico na Boca do Lixo foi
competição com a EMBRAFILME,
com recursos próprios, numa época em que a in- produto da lei reserva de mercado é pertinente. Por um lado, a Boca nasceu

190
191
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A INDU TRIA IN MATQ R~" A DA OU A PU nXIJ

forjada pelas demandas internas dos próprios movimento da produ ão de Cláudio Cunha:
filmes em São Paulo, no final dos anos 1960; por outro, tornou-se uma
"indústria de fundo de quintal", que cresceu tentando responder, no campo Nós tínhamos uma outra coisa superdemocrática, que era o adicional de renda.
da realização, às expectativas do mercado, enfrentando os desafios de sua [...] O filme fez X espectadores, recebia Y, um adicional de renda. Eu lembro qu .
ocupação. Podemos dizer que a Boca do Lixo foi alimentada pela reserva o adicional de renda que eu recebi de O clube das infiéis me ajudou a produzir
de mercado. Jean-Claude Bernardet comenta que "sem essa lei dificilmente Vítimas do prazer. Depois, o adicional de renda do Vítimas ... Era uma premiaçã ,
um subsídio fantástico. [... ] Era um imposto retido na fonte, da venda dos in-
teríamos uma Boca do Lixo. Diferentemente do resto da produção, que era
gressos. [... ] Então, isso foi uma coisa que ajudou muito o cinema brasileiro. E
financiada ao nível da produção, eles não tinham esses recursos. Eles tinham
era democrático. Não era de patota.
que investir e a possibilidade de reaver o capital provinha da exibição pro-
porcionada por essa lei. Esta situação é que permitiu que eles, diferente- Aníbal Massaini:
mente dos outros produtores, se associassem aos exibidores". O adicional
de bilheteria, criado pelo INC a partir de 1966, destinava-se a ser distri- [... ] Se você imaginar que a produção brasileira andava na casa dos 100 filme,
buído a todos os filmes nacionais exibidos em cumprimento da lei de exibi- cada filme daquele podia ter não sei quanto de premiação, recursos que a EM-
ção compulsória. Os valores variavam, de acordo com o número de especta- BRAFILME distribuía para os produtores que tinham realizado seus filmes, sem
nenhuma relação com a empresa. Se ela retivesse esses recursos para a produçã
dores alcançado, de 5% a 20% da renda líquida faturada pelo filme durante
de filmes novos, estaria negociando e, de certa forma, direcionando estes inves-
os dois primeiros anos de sua carreira comercial. Tal forma de compensação
timento. Esse foi [o motivo da] decisão de extinguir o prêmio adicional. [... )
foi extinta em 1979, quando esta fonte de recursos, derivada de impostos,
Porque, quando desaparece esse tipo de resultado econômico - o adicional d
passou a incorporar os ativos da empresa.
bilheteria -, eles [os exibidores] deixam de produzir e não exibem.
A extinçâo do prêmio adicional de bilheteria foi um golpe traiçoei-
ro na economia da Boca do Lixo, atingindo-a duramente em seu aspec- Já sob pressão das distribuidoras estrangeiras e sem o incentivo do adi-
to comercial. O adicional era uma das fontes seguras de receita dos seus cional, os exibidores começam a diminuir os investimentos. A produção
filmes, visto conseguirem uma renda média (e espectadores) bastante só- da Boca mais bem-acabada, com pretensões de circular em outros segmentos,
lida, o que sempre proporcionava retorno dentro dessa faixa, estimulando ser bem aceita pela classe média, perde o foco - sem capital para girar a
~ i~vestimento. A extinçâo do prêmio tirava dinheiro de circulação, pre- produção, neste momento sob a crescente pressão inflacionária. Entretanto,
judicando as relações profissionais e empresariais que sustentavam a eco- existem outras leituras sobre o papel do adicional como parte da sedução
nomia do cinema da Rua do Triunfo, cortando seu combustível, já que para a entrada do exibidor na produção, como a de Mario Vaz Filho:
se constituía em um elemento de motivação financeira para os investi-
dores. E, neste caso, atraente para a crescente participação dos distribuido- Não era difícil fazer cinema: se o cara tivesse um certo nome, ele pegava um
res e exibidores na produção, já que o adicional era calculado sobre os bor- adiantamento na Sul, o laboratório te dava crédito etc. De repente, você fazia o
filme; com a bilheteria e o adicional e tal, dava pra pagar as contas e ganhar. Muita
derôs (relatório da venda de ingressos fornecido pelos cinemas). Além dis-
gente fez filme sem dinheiro e foi se estabelecendo. [... ] Falam do adicional de
so, o "adicional de bilheteria" era o que recompensava, muitas vezes, o
bilheteria. Mas isso também fodeu com o cinema, porque tinha cara, por exemplo,
realizador que tinha participação patrimonial no filme.
que dava o filme de graça pro exibidor, pra ele botar um borderô alto. Aqui é Brasil,
Sobre o adicional, assim analisam Carlos Reichenbach: "Eu posso fa- pô. Aqui, "tu inventa".
lar de cátedra, porque LilianM era um filme "miúra", um filme difícil, talvez
mais experimental que aqueles primeiros filmes. [... ] Foi um sucesso. Eu Cabe uma explicação: o prêmio adicional de bilheteria era oferecido com
sobrevivi dois anos com esse prêmio adicional de bilheteria". base no desempenho comercial dos filmes, que era atestado pelos borde-

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00 A UU LIXU A INDUSTlIA IN MATU nu A DA 10 A DO um

rôs - um relatório da venda de ingressos. A hipótese a ima refere-se à po - Por outro lado, temos produtores como David Cardoso que, já s orado
sibilidade de o exibidor ser sócio do filme, aumentando a freqüência/a renda em algum capital, funda (em 1972) sua empresa, investindo em âm r3S.
para ganhar mais no adicional. moviola, material de iluminação, Kombi, um automóvel Galaxie e até um
avião para tomadas aéreas, assegurando auto-suficiência para filmagens. LI

modelo empresarial foi Mazzaropi - "que sabia controlar o faturameruo


PRÁTICAS DE PRODUÇÃO de um filme até render o máximo". Procurou trabalhar, na maioria d s
filmes, com diretores contratados, com roteiristas e fotógrafos reconhecidos,
De maneira geral, as práticas de produção (o modo de produção) da Boca
e procurava revestir o produto com toques de bom gosto oficial, como músi :'1
do Lixo compreendem algumas inventadas e desenvolvidas ali, no calor dos
original para a trilha sonora e figurinos encomendados - como se orgulha
acontecimentos; outras, que já faziam parte do jeito brasileiro de produ-
de dizer:
zir, foram "arualizadas" para a sua realidade, além daquelas práticas correntes
no cinema em geral, em escalas diversas. De todo modo, ali se condensaram,
Minha pornochanchada tinha um certo embasamento, tinha história e tinh.
caracterizando uma marca indelével em seus produtos e em sua gente.
uma parte técnica que eu pegava. Os caras que trabalhavam com o Walter Hugo
Para obter rentabilidade, os filmes precisavam apoiar-se em esquemas Khouri trabalhavam comigo. [...] Então, eu gostava de enfeitar a minha produçã ..
de produção "controlados": tempo de filmagem reduzido, economia de [... ] Punha coisas de luxo, punha vestidos do Clodovil, você tá entendendo? Eu
negativo (filme virgem), remuneração negociada com elenco e equipe, tentava apurar, só que, daí, o cara [a crítica, o espectador mais exigente etc.] chegava
captação de investimentos com pequenos e médios empresários (e, "às vezes", e falava: "Uma merda de história, só o cara comendo a mulher". Mas tinha uma
grandes empresários); merchandising (anúncios velados) e marketing (di- certa coisa que ...
vulgação); crédito em laboratórios e locadoras de equipamentos; apoio de
empresas e de prefeituras do interior etc. E, principalmente, negociação- Apesar de todo o aparato, a rapidez (e a precariedade) continuava a faz r
participação societária, venda dos direitos de distribuição, co-produção parte de suas práticas de produção: Bandido! - A fúria do sexo, realizad
etc. - com exibidores e distribuidores. Deste quadro, podemos retirar em 1978, teve seu roteiro escrito em 8 dias e foi rodado em 13.
alguns exemplos para ilustrar os procedimentos. Prossegue Cardoso:
Tony Vieira aparece como aquele tipo de produtor que, associando-se
a um investidor, estabelece uma pequena empresa para tocar projetos de E nunca comecei um filme sem estar com o dinheiro certinho que eu iria gast:lr.
baixíssimo custo e a despeito do sucesso financeiro, não caminhou para Agora, eu fazia o seguinte: começava no dia 1 de outubro e falava: "No dia )11
Q

projetos economicamente mais "flexíveis", permanecendo como pequena de novembro termina". E tinha que terminar. Mesmo que tivesse três seqüência ,
eu matava tudinho, não passava. Time is money. E corria o mais rápido possfv I
empresa e, principalmente, visando ao mesmo público. Personagem carac-
pra montar. Eu tinha a minha moviola, meus montadores.
terístico do ambiente de "indústria pobre" do cinema da Boca, Tony Vieira
acumulava as funções de empresário (que negociava as parcerias) com as
Mas é Antonio Polo Galante quem pressente a necessidade de se montar
de ator e diretor, conseguindo "produzir com uma estrutura precária vi-
uma base para a produção industrializada e caminha neste sentido. Foi as irn
sando um público popular, centralizando toda a 'criação' do filme. Ele era
que produziu 23 filmes entre 1976 e 1982, chegando a rodar de sete a oito
o artesão 'faz-tudo': elaborava o argumento e roteiro, dirigia, selecionava
filmes em 1978-1979, uma média bastante alta para a produção brasileira.
a música e atuava, só não fazendo Iotografia"."
Guardando no bolso o resultado financeiro da série "internatos e presídi s",
Galante investiu também nas instalações de um estúdio, apostando em SWl
5 Idem, op. cit., p. 20. exploração comercial, iniciativa de que se orgulha neste depoimento:

194 195
Estou produzindo seis ou sete filmes por ano. ou o úni o produtor que viv
Então, eu ganhei de todo esse pessoal. Sou um cara que, e eu tiv s r, ito IO'X,
de cinema, não vivo de juros, não vivo de nada, vivo de cinema. Tenho meu estúdio
do que o Mazzaropi fez, que era uma coisa só, vigiar meus filmes, eu hoj s'' i.1
que construí com dinheiro de cinema, um patrimônio de 70 a 80 milhões de
um homem de 15 milhões de dólares. Já fiz o cálculo, com um conrad r. ~s
cruzeiros. Fica no bairro de Santana e tem 1.500 ms. de construção. Para o cinema
fiscalizar, porque só tem ladrão no país. São 25 cópias, 25 fiscais, até ugar tudo,
nacional é uma área grande, mas para o americano é uma titica. Tenho estúdio,
O Mazzaropi só fazia outro filme quando tirava tudo o que o filme podia rcn
camarim, restaurante e todo o equipamento: refletores, câmeras, colortran, tudo
der. Ele exibia e fiscalizava no país todo. Eu não. Eu terminava um, começava ou t ro.
completo."
O negócio era fazer.

Ressaltamos estes três tipos de produtores para exemplificar alguns níveis


Cláudio Cunha:
de investimento "da categoria" nos meios de produção. De maneira geral,
os produrores não fazem investimentos desta natureza, afirmando-se no Então, o filme aconteceu. Nunca ganhei tanto dinheiro na minha vida. Eu
papel de agentes catalisadores do processo financeiro, montando a produção: fiquei rico. Enriquei. Acertei, porque era uma loteria, naquela época. Todo mundo
captando os recursos - investimentos dos exibidores, crédito nos labora- queria acertar. Nós éramos os novos ricos: eu, Tony Vieira, Oavid Cardoso. A g .ru •
tórios, sócios capitalistas etc. -, as facilidades - apoio de prefeituras, hotéis, comprava logo equipamento. Investia em equipamento e investia em negativo.
transportadoras etc. - e recursos próprios - algum investimento, supri- Comprava negativo e depositava na Líder. Eu tinha 100 latas, 200 latas. Foi quando
mento de negativo etc. comecei a produzir pra outros diretores ...

PEQUENAS EMPRESAS, GRANDES NEGÓCIOS MÃO-DE-OBRA BARATA: ARMAÇÕES E "BAIXARIAS"

David Cardoso: "O elenco feminino deste filme foi formado com estudantes universitárias
que nunca participaram de filmes, mas desempenharam seus papéis tão perf i
o que eu quero dizer é o seguinte, resumindo, meio metaforicamente: tos como as grandes atrizes." Esta é uma das frases publicitárias de TrdfiC()
eu estava na praia e o Renato Aragão chegou por trás e disse: defêmeas, de 1979, com direção de Agenor Alves e produção da Astron Film s.
- Viu só? Maior renda do cinema brasileiro, o seu amigo aqui.
- Por quê? Como observa lnimá F. Simões:
- Faturei 3 milhões.
- É, mas eu acho que eu ganhei mais que você com o meu filme. As "estudantes universitárias" a que se refere o texto de Trdfico de fêmeas ~()
- É? Você fez quanto?
pessoas atraídas por anúncios convidativos, publicados com freqüência nos jornais
- Fiz 1 milhão e meio.
da cidade. A Astron filmes e outros empresas apresentam-se aos incautos 0[, r '
- Então você perdeu 1 milhão e meio.
cendo oportunidades para ingresso na carreira artística através do cinema.
- É? Mas quanto custou o seu?
interessado paga a matrícula, as fotos de que necessita para um estudo porm '
- Um milhão de dólares.
norizado de seu tipo e finalmente desembolsa mais algum dinheiro na sua fOI
- O meu custou 100 mil dólares. E outra coisa: o seu é livre, e o meu é proi- mação de ator/atriz. Para se transformar, ao invés de artista, em mão-de-obra
bido a 18 anos.
gratuita, contribuindo para reduzir ainda mais os custos de uma produçã j,
barateada pelos acordos com boates, bares, transporta d oras, hotéi
oteis etc. 7

6 Cf. João Silvério Trevisan, 1982, p. 71.


7 Cf. lnimá F. Simões, 1981a, p. 35.

196
197
A IN irA I J: irA n A D [IX

salina _, que se acabaria tornando um produtor constante. Ernb ra nSI


5. rnuit s s exemplos de filmes realizados em desse modo. José Mojica
dere que as atrizes faziam parte da sedução do investidor - "os 'b i 'qu na m
Marins alimentou os filmes de Zé do Caixão mantendo uma escola para atores
estar no meio da mulherada" -, Cunha julga que o retorno financeir .ra
e atrizes. Mas, com o andamento da produção, a utilização destes expedientes
mesmo o maior atrativo, porque "os filmes realmente faziam dinheir '.
serni-amadorísticos vai cedendo lugar a propostas mais condizentes com uma
Os investidores, nos projetos de David Cardoso, eram um tanto difer 11-
postura e uma imagem de profissionalismo, em que não há mais lugar para
ciados. Acreditaram em suas propostas, entrando como sócios nos filmes, com
"mocinhas ingênuas dispostas a tudo por uma aparição momentânea'.
José Ermírio de Moraes Filho, do grupo Votorantim; Guilherme Melão, da tra-
O recrutamento de técnicos - fotógrafos, assistentes, cenotécnicos,
dicional família Melão; Gilberto Adrien; José Roberto Farias, do Banco Bandei-
eletricistas, maquinistas etc. - se fez entre os remanescentes dos estúdios
rantes. Eles entravam com uma espécie de financiamento. Segundo Cardos :
da Vera Cruz e Multifimes; outros eram egressos da tevê, vindos da TV
Excelsior, fechada em 1970; mas a massa crítica ia-se formando ali mesmo,
Com o José Ermírio de Moraes Filho foi muito interessante, porque o Gil-
no calor da produção. De modo geral, a Boca abrigava profissionais de berto Adrien, que era amigo dele, fez um contato e me levou até ele. E fiz uma
cinema, em todos o níveis, que se foram formando na prática, botando a planificação de quanto ele teria de entrar. Eu precisava, digamos, hoje em dia,
mão na massa. Um variado leque populacional que incluía semi-analfabetos de uns 200 mil reais, que seria a cota dele. E eu fui falar com ele na Votorantim.
altamente qualificados, oportunistas articulados, vocações e talentos empre- Entramos numa sala monstruosa, eu fui apresentado e ele falou:
sariais e artísticos, arrivistas e outros incompetentes, intelectuais verdadeiros, - De quanto você precisa?
artistas espontâneos, intelectuais espontâneos e artistas verdadeiros ... _ Doutor, eu tenho 200 mil, consegui com outro sócio 200 mil e preciso d
mais 200 mil pra fazer esse filme [era A ilha do desejo].
_ Que garantia você me dá?
_ Não tem nenhuma, porque eu só tenho um apartamento e um fusca.
INVESTIDORES: COMERCIANTES, PEQUENOS EMPRESÁRIOS
eu der isso pro senhor. .. Eu tenho mulher, tenho filho, não tenho condições.
_ Tá bom. Sonia, vem cá. Faz um cheque de 200 mil aqui pro ...
Os produtores da Boca do Lixo conseguiam fazer ingressar, com certa fre-
_ Não, não é assim não. O senhor me dá 10% agora, 20 mil daqui a um mês,
qüência, o capital de investidores de fora do meio cinematográfico, cooptando quando eu começar as filmagens; mais 30 no meio das filmagens, 50 mil...
comerciantes, fazendeiros e pequenos industriais, que não só acreditavam no _ Não. Se você tiver que me roubar, rouba de uma vez só. Pega o cheque d
retorno financeiro com lucros certos e rápidos, mas também gostavam 200 mil e vai embora daqui.
do gênero comédia erótica-pornochanchada e, provavelmente, da idéia de Tanto é verdade que deu certo. Ele fez o segundo e fez o terceiro. Três filmes
se tornarem "produtores de cinema" - com aquela aura (hollywoodiana) comigo.
de glamour -, que significava, é claro, estar perto do "mundo artístico". O
pequeno produtor (a pequena empresa) exibia aos investidores os mapas de O diretor Ozualdo Candeias acredita que o modo de produção da Bo a
rendimento dos filmes, apresentava uma atriz sedutora, captava recursos foi-se fazendo como uma resposta ao mercado. Para ele, os filmes feitos na
de fontes diversas, cedia participações e conseguia chegar às telas. Na Boca base do voluntarismo foram poucos, e apenas nos primeiros anos do movi-
do Lixo, o capitalismo era mesmo selvagem. mento da Boca. De todo modo, há histórias interessantes a respeito, com
Cláudio Cunha sempre esteve atento para a possibilidade de encontrar esta, de Ozualdo Candeias:
um "boi" (nome dado aos investidores capitalistas externos, na gíria da Boca
do Lixo). Depois de conseguir realizar seu primeiro filme, atraindo para Olha, filmes feitos assim, pega daqui, pega dali, foram muito poucos. Oitenta
os encantos do cinema da Boca do Lixo um investidor, Cláudio atrai ou- e cinco por cento eram conscientes. Um cinema consciente. Era indústria. Ag rn,
tem uma coisa assim: chega um Faissal, que foi vender queijo e rapadura lá no
tro boi, um amigo de infância, Carlos Duque - dono de postos de ga-

199
198
""" Irr.

II"V " IIV •• "

meiras escapam, Loucuras de um sedutor ... E mais uma meia dúzia d (11m ·S.
obcrano e saiu de lá om um roteiro debaixo do braço. Investiu, porque ele queria
comer a estrela. Perdeu tudo. E eu ainda fui trabalhar para ele uma semana, por- Depois, pararam. . .
que pensei que ele ainda tivesse rapadura e queijo, mas ele não tinha mais nada e
Por razões bem realistas em face do mercado, Aníbal Massaini era UI1l

não me pagou. dos produtores que preferia não ter sócios:

Eu não gostava muito, não, porque, de uma forma ou de outra, a gent . :.I 'a
A atração que a Boca do Lixo exercia era realmente forte. Mesmo na faixa
bava conseguindo os recursos pra fazer. A segunda questão era que os filrn ·s
mais elitizada da Rua do Triunfo, aparecia quem quisesse investir. Aníbal
apresentavam resultados. Então, para não ser um mau negócio, eu teria qu icr
Massaini também tem histórias a respeito:
a participação de investidores na proporção dos resultados e não na proporção do.
custos. Então, para que dividir um resultado bom, que já propiciava investir. n -
Até aconteceu uma coisa engraçada. Apareceram duas pessoas recomendadas vamente? E, ao mesmo tempo, num negócio de risco, você tem que garantir 3$
por um amigo, o Aramis Maia, que queriam falar comigo porque pretendiam pro-
pessoas que aquele resultado será satisfatório. Ent.ão, eu prefe~ia ,~ão contar . Ol~
duzir filmes. Chegaram os dois aqui, não tinham marcado, o Lincoln Nascimento investidores. E os filmes começavam sempre assim: de uma idéia que surgra j:
e o Décio ... [dois boiadeiros de Rio Preto]. Eu disse: "Desculpe, vocês não telefona-
em plano de execução.
ram, eu não sabia que vocês vinham, mas estou de saída pra Iru, tenho que ver lá
um negócio que a gente vai filmar". Acho que era uma cena do SuperJêmeaque ainda
precisava fazer. E eles foram pra Itu comigo. Diziam que queriam fazer alguns inves-
MERCHANDISING E APOIO DE PREFEITURAS
timentos em produção. Eu disse: "Fala baixo! Se você falar mais alto, eles te tomam
a grana. Mas eu sugiro que vocês façam assim: tenham uma pequena participação
A inserção de publicidade nos filmes da Boca do Lixo, a rigor, antecipa LI m
num primeiro filme, depois num segundo - dez, vinte por cento - e vão tentando
dos modos de captação de recursos para viabilizar a realização de filmes qll
entender como funciona, e depois vocês seguem a vida". A gente estava fazendo As
delícias da vida, e eles entraram [na produção] nesse filme. Aí, o Sílvio de Abreu viriam a ser utilizados pela produção em geral. Diferentemente de hoje, na-
entra aqui no escritório dizendo: "Porra, que sacanagem, foram dois caras lá em quele momento ainda havia "preconceitos" (por assim dizer) contra e t s
casa, pedindo pra eu escrever um roteiro pra eles, dizendo que foi você que mandou". expedientes; condenava-se a prática como algo nocivo ao desempenho ar-
Eu falei: "Pois é, mandei". "Quem foi que disse que eu sei escrever?" Ele conta isso tístico do filme. Também neste campo, a Boca - com capital privado (.
nas entrevistas, hoje. E aí o Sílvio escreveu o roteiro de Gente que transa, e convi- bárbaro) _ sinalizou caminhos que logo seriam trilhados - comercial i-
daram o Carlos Manga pra dirigir. Eles foram pro Rio, pra ver elenco. No meio dessa zação, merchandising, captação de recursos e baratos afins.
viagem, o Manga se desentendeu com os dois boiadeiros. Aí, voltaram pra São Paulo, Mas há exemplos radicais, que só a produção da Boca seria capaz d.
e os dois vieram falar comigo. Depois, vem o Sílvio dizendo: cometer. Como, por exemplo, o filme Os segredos das massagistas (1977),
- Os caras falaram que você disse que era pra eu dirigir o filme.
dirigido por Antonio B. Thomé e produzido por Cassiano Esteves, da tradi-
-Foi.
cional distribuidora Marte Filmes, "em que é usada a casa (Instituto) de mas-
- Mas eu nunca dirigi nada.
sagem do grupo Dr, Newton Ribeiro: mostrando a fachada, a portaria, a mar :\
- Mas eles também nunca produziram nada. Você pega o Oswaldo de Oliveira
[pra diretor de fotografia] e vai fazer o filme com o ele. O Carcaça te ensina tudo. do grupo e, finalmente, a câmera entra na casa, onde o ambiente é acolh
dor e de bom gosto. De repente, a narrativa é suspensa e entram na t Ia
Esses dois investidores de Rio Preto passaram de "bois" a "boiadeiros", imagens (de um outro filmei) de uma cerimônia de entrega de um prêmio
pois continuaram a produzir. Compraram equipamentos, abriram escri- pelo Dr. Newton, proprietário do Instituto em que se dá a ação do film "."
tório e instalaram uma produtora, a Phoenix Filmes do Brasil. Realizaram
filmes com elenco e equipe de qualidade: Gente que transa, Nem as enfir- 8 Idem, op. cit., p. 27.

201
200
· A participação de prefeituras do interior é outra estratégia para redu- que 18 salas paulistanas exibiram filmes brasileiros, naquele ano por l1l:lis
zir os custos. Em geral, elas ofereciam hospedagem, alimentação e trans- de 120 dias, bem mais do que os 84 obrigatórios. Já no final de J 97 , rlm'S
porte - itens importantes de um orçamento -, em troca de agradecimentos como A viúva virgem (5,7 milhões), Os mansos (4,9 milhões), omo rra
nos letreiros, algumas cenas que destaquem as belezas locais, a exibição de boa a nossa empregada (4,1 milhões), As mulheres que fazem diferent', .
obras (e suas placas, com nomes da administração local), sugerindo esforço outros, superavam a renda de filmes estrangeiros lançados sob int nS:1
de desenvolvimento econômico, bem ao gosto da época. Claro que os fil- divulgação nos meios de comunicação de massa.
mes procuravam integrar estas cenas à trama, às vezes com competência, A comédia erótica nacional vai-se impondo, efetivamente, como uma
às.vezes atrapalhando a narrativa. De todo modo, essa colaboração das pre- alternativa importante de rendimento nas bilheterias. E, como bons com 'r
feIturas era um veio a ser explorado e ajudou bastante a produção da Boca ciantes, os exibidores e os distribuidores percebem que o cinema eróti '0
do Lixo - principalmente pequenos produtores _ a se viabilizar. é um filão que poderia render e procuram associar-se à produção dos fil-
Além das prefeituras, algumas colaborações eram evidenciadas pela in- mes, realimentando o potencial lucrativo da pornochanchada. Ao invés de
ser?ão de cenas na frente de agências bancárias, hotéis, lojas, postos de ga- combater o que se revelava um êxito indiscutível de público, algumas tra-
solina etc.~ ou pela manipulação de algum produto. Do mesmo modo, pro- dicionais empresas nacionais acabam "entrando no negócio". É o cas da
c~rava-se mtegrar essas ações à narrativa. Era uma espécie de merchandising Paris Filmes, distribuidora de filmes estrangeiros (em geral populares, como
amda um tanto rústico e, naquele momento, um tanto malvisto pelos se- os de lutas marciais) e nacionais, da Marte Filmes, da Fama Filmes, distri-
tores culturais, mas que veio a ser uma prática também largamente utili- buidoras que, a partir do conhecimento e da experiência adquirido na
za~a. Procurar Contar com a ajuda das prefeituras implicava contrapartidas, comercialização, passam a investir na produção dos próprios filmes. Algumas
eVIdentemente. Algumas vezes, procurando impressionar "as autoridades", empresas exibidoras, como os grupos Haway e Ouro, principalmeru "
o resultado saía adverso. Sylvio Renoldi tem uma história a este respeito: investem em produção própria (ou de encomenda) visando à ocupação dos
dias de reserva de mercado para os filmes nacionais. Se o cinema nacional
Eu estava fazendo um filme chamado Aulas noturnas. Fiquei em São Paulo.
era visto como "inimigo", neste caso a estratégia usada foi a da velha rnri-
O diretor, a equipe e elenco foram para o lugar da filmagem _ uma cidade do
xima: "Se não pode combatê-lo, una-se a ele".
interio~ que ia cola~orar com a produção. Aí resolveram exibir a iluminação para
Trata-se, de certo modo, de estratégia semelhante à experimentada p .1:.
o prefeito. O cara ligou no 220, o que era 110, e queimou tudo. Aí, o diretor me
ligou, dizendo: "Queimou todas as lâmpadas". Eu falei: "Então faz Aulas diur- Atlântida, com a produção de chanchadas nos anos 1940 e 1950, em gu .
nas, porque noturnas não vai ter mais ... ". Aí, fizemos Será que ela agüenta? se juntam os três pilares da economia cinematográfica - a produção, :t
distribuição e a exibição. Mas, neste caso, uma só empresa controla v ni
calmente o processo, depois que o exibidor Severiano Ribeiro, a partir d .
ALIANÇA COM OS EXIBI DORES E DISTRIBUIDORES 1945, entra como sócio. Sistema sustentado por (quase) três décadas, m
pronta resposta das bilheterias.
Os exibidores sempre foram reticentes em relação à produção brasileira Essa convivência entre produtor e distribuidor-exibidor vai-se aprimo-
já que os circuitos estão montados para servir aos filmes estrangeiros, na rando ao longo dos anos de 1970, tornando algumas produtoras (e pr lu
esfera da distribuição americana, basicamente. Resistentes à reserva de mer- rores-investidores) uma espécie de fornecedoras de filmes de encomen ln,
cado e escudando-se nas críticas às comédias eróticas, utilizavam-se de Galante explica:
argumentos contraditórios: elas não atraíam verdadeiramente o público e
não ofereciam rentabilidade, embora o relatório de 1974 do IN C registre Normalmente eu começo [o filme] com o meu dinheiro. Cinema é uma 1'0

lera e você joga sempre no mesmo número, e se falha você vai a pique. O qu '\I

202
203
A INUUITRIA IN "''''''V ••.",.-. " UA "ti " 1''' L'AV

(:It)() • abro ).,porque pr óuri


pn eXI ibiidor sabe disso,
. é o seguinte: se um
01' .arn nt fi a em 3 milhões eu forneço um de 6 po
alguns dos grandes grupos estrangeiros aqui instalados pa arn a r 'ali/.al·
' rque e e é o bri
I nga d o a pagar
meu know how, que aprendi em mais de 20 anos de profissão. Então, eu ofe- filmes no Brasil. Por exemplo, a CfC - Cinema International orporauon,
reço a fita ~ara ele, desde que contenha, é claro, aquela coisa comercial que agrade, do truste americano Gulf and Western, que absorveu a Paramount e a MIro,
~ ele a acerta na base dos 5 ou 6. Eu tenho um certo crédito porque eu entrego controlando inúmeras salas pelo país, resolve investir em pornochanchada,
filme no prazo marcado, contrato pro~ssionais responsáveis,pago à altura do que produzindo, distribuindo e exibindo, em 1975, filmes como TangareLfI1.
pedem e tenho filme pronto para o dia que ele precisa cumprir o decreto. Esse a tanga de cristal, dirigido por Luiz Mário Campello Torres, com Jô Soar s,
é o meu sucesso. 50% é Galante; quem paga a minha produção é o exibidor.? Alcione Mazzeo e Jardel Filho encabeçando o elenco; e Motel, dirigido
por Alcino Diniz, com elenco all-star (devido à televisão), com Carl s
Com algumas ~a~iações e proporções diversas, este modo de operar Eduardo Dollabela, Bibi Vogel, Ary Fontoura, Suely Franco, Maria Lu ia
tornou-se uma espeCIe de modelo para a Boca do Lixo, seguido por outras Dahl, Tania Scher, Monique Lafond e outros. Em 1976, produz O pai
produtoras de filmes, na onda do gênero comédia erótica. Cabe lembrar do povo, de Jô Soares. Estes filmes foram fracassos retumbantes, para
q~e ~ E~BRAFILME, a partir de 1976, introduz a carteira de avanço sobre a que Carlos Reichenbach tem uma explicação:
dIstnb.Ulção, entrando com os mesmos métodos para disputar (e ampliar)
sua fat~ade mercado. A Boca do Lixo com dinheiro privado, e a EMBRAFILME Eles estão interessados que o teu filme não dê certo. Naquela época, produ
com dinheiro público. ziram uma sériede filmes,inclusivepornochanchada. A Columbia produziu Motel,
um fracassofenomenal. Fezum filme com o Jô Soares, O pai do povo, outro fracas
Segundo David Cardoso: fenomenal. Eles produziram fracassos para serem fracassos. Eles não estão ab -
lutamente interessados em que o filme nacional dê certo. Sempre foi assim.
Eu não tive dramas com os distribuidores. Até porque não enchia o saco de-
les. Eu chegava lá e dizia: "Quanto que eu tenho? Quanto que é o meu?" P
- di lh . orque
nao a tanta. vascu
. ar. Teria de mandar alguém pra fiscalizar. "É que a gente pa- CENSURA
gou a p~bltcIdade e tal..." Aquelas coisas: desconta, desconta, desconta...
- FICOU40 mil.
A Censura está aqui incluída, como parte das práticas de produção, porqu ,
- Tá bom. Então dá logo o cheque. de fato, se acabou tornando uma co-produtora (estética e econômica), a
~ram 40 m~l,já era muito dinheiro pra quem saiu fudido como eu, com nada. "contribuir", com suas proibições, para o aparecimento de iniciativas cria-
Enrão, nunca t.Ivegra.nd~sproblemas. Era a Empresa Sul-Paulista aqui em São
tivas para contornar os cortes, transpor as interdições. Como vimos, asso-
Paulo e ~ Sevenano Ribeiro no Rio de Janeiro, para distribuir meus filmes. Com
ciava-se a pornochanchada ao regime ditatorial. Ela teria sido um subpro-
uns, e~ tI~e ~m pouco ma!s.desorte; com outros, menos. Mas não tive parcerias
duto da Censura por, pelo menos, duas abordagens: a primeira, o regim ,
com. distribuidoras, ou exibidores. Fazia o meu produto próprio, com parceiros
partIculares. Depois, sozinho. policiando as expressões artísticas de qualidade (em geral, politizadas), aca-
bava por abrir as comportas para a produção da Boca do Lixo (em geral,
É importante ressaltar que a legislação protecionista incluiu, durante erotizadas). Algo como: política não pode, sexo pode. A segunda, ao vigiar
~erto ~empo, a retenção de parte da remessa de lucros, com o incentivo ao (e punir) os filmes que "continham" erotismo, contribuía para criar expe -
Investimento desses ativos no processo produtivo do cinema nacional . AsSIm,
. tativas, para aumentar a curiosidade, o que resultava em maior faturament .
O cinema da Boca do Lixo teria sido, assim, beneficiado pelo momenj'o
histórico - não tendo concorrentes, por força da Censura, alcançou u-
9 Cf Inimá F. Simões,op. cit., p. 29. I cesso de público.

204
20S
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" lI.""' ••••.• " ••• _ ••.••••••...•• ~.-.. __•..•.. __ ~ ~

Esse raciocínio é equivocado. Os filmes políticos e os filmes eróri o não Brasil; a gente só consegue entrar nos nichos não-aproveirdv is. I..: I Enl~I(),.
() l j
eram, necessariamente, concorrentes. Os segmentos de público interessados nema brasl'1'elro 1:fazia um cinema que não era tão pornográfico. Ele Ia n 1111111'
. . •d.1
no consumo de um e de outro eram diferentes. A produção e o pessoal da Censura. Era um cinema que, no fundo, com exceção de alguma com ·dl:1.":dl.1
Boca do Lixo não tinham nenhuma rede social de proteção, enquanto a na não tinha concorrente. Havia uma fatia ali do mercado que era só d 111'111,1
produção (politizada) e o pessoal engajado (no jargão da época) contava brasileiro, uma fatia erótica, porque o erótico de fora estava muito avançado, n.ru
com a mídia, forças organizadas etc. De todo m o, havia a criação de um passavana Censura, ou, quando passava,vinha tão cortado que não sobrava n~l1.1.
"clima" em relação à pornochanchada, sugerindo que, mesmo que o regime
.~o a quisesse, e a aca ava lhe servindo, distraindo o povo dos problemas O diretor David Cardoso admite ter sofrido com a Censura, m.as.. pl'O
e de suas causas sociais, políticas e, mesmo, comportamentais, oferecendo d utor - como mu 1·tos - louva os lucros que teve com a inflexibilidad .
banalidades. O regime militar certamente estaria interessado em 12rodutos do regime na aplicação das leis protecionistas. Interessante observar q~ll'
,rnai; nobres do qu~queles oferecidos pela Boca do LiXo. o galã foi um dos mais espertos produtores, no que se refere ao uso com r 1:.1
Não cabe aqui tentar decifrar a lógica das ações da Censura em relação da censura, acreditando no refrão: "O proibido é o que todo mund 111'1'
aos filmes, mas cabe expor situações que, com certeza, revelam alguma coisa ver". Diz ele:
sobre um regime que elege a Censura como interlocutor entre o poder e a
indústria cultural. Em geral, a maioria dos problemas que produtores e Todos os filmes tiveram problemas. Mas eu tenho saudade do regim.e111~li
cineastas da Boca tiveram com a Censura foi considerada por eles completa- tar. [...] O câncer da Censura Federal chamava-se Solange ~ernandes. FOI:1 pU)1
mulher que teve dentro da Censura. Eu cheguei lá e ela disse: . .
mente artificial, fruto de maneiras paranóicas de tratar com produtos/discursos
- Senhor Oavid Cardoso. O senhor é um homem tão bonito, seu tipo, pOI'
que os censores não compreendiam (por isso eram temidos), ou continham
que você não faz um filme igual ao dos Trapalhões? .
irreverentes tentativas de distender os cordões do controle. Criou-se, grosso - Eu faço. Já estou até pensando em fazer, mas é que estou pedindo pra 1,,\
moCÚJ, uma instância de negociação entre um setor econômico (de bens cultu- fazerem um filme igual ao meu, proibido pra 18 anos, e o Renato não quer. Porqu .
rais) e um regime ditatorial. Os depoimentos a respeito prestam-se, em geral, o meu gênero é esse. .
a um tratamento dramatúrgico, como os que se seguem: - Mas que tipo de educação o senhor dá pro Brasil?
Cláudio Cunha: - Todos. Eu pago o meu imposto. Eu não sou professor, doutora. Ag 1':1,()
governo é que tem que pegar o meu dinheiro e fazer escolas. Eu sou um c rn -r
Não tenho a menor dúvida. Era pra arrebentar com o filme. O Vítimas doprazer ciante. Eu nunca entrei na casa de ninguém.
tinha dois "rnerda". O cara disse: - Mas, essas fotos, não pode. .
- Corta um. Aí eu bolei um negócio. Se tal foto não podia, vamos fazer o seguinte: eu vo,u
- Qual merda o senhor quer que eu corte? sujar ela todinha. Então, em vez de eu fazer o biquíni certinho, punha uma L:lI'Jil
- Você é que vê. preta que ficava maior que a fotografia. Saía às 3 horas da madrugada, um pn:
- Então, eu não entendo. Ou a palavra é atentatória à moral e aos bons dutor já famoso, com boné e óculos, e punha cartazes nos muros. Eu, meus (I
costumes, ou não é. Eu não entendo. lhos e amigos, colando tudo. Eu tinha tesão...
Então, eu tive uma briga feia. E, naquela época, você não podia brigar...
Aníbal Massaini relembra:
Guilherme de Almeida Prado:
A Censura prejudicou muito A superflmea, que teve 23 ~or.tes.Eu me I '111
Mas existia uma outra questão que também segurou a Boca do Lixo, que era bro que o dr. Rogério Nunes rasgou a marca de água da República e me d u UI1I
a Censura. [...] Porque o cinema americano é hegemônico no Brasil,ele manda no papel, dizendo:

206
207
Se eu tivesse gravado todas as censuras que fiz na movi Ia, m O :lra~, I.\v.\
- Vai lá, faz e ses cortes (eram cinco), e volta aqui.
pra fazer um livro e morrer de rir. Muitas vezes, quando os corte ram muiiox,
- Eu não estou entendendo. Se é pra fazer esses cortes, porque eu tenho que
vinha um cara da Censura, que trabalhava em São Paulo, para acompanha.' ()~
voltar aqui?
cortes na moviola: "Corta isso, corta aquilo. Só deixa um segundo diss aí". 1\11
- É pra te proteger.
deixava um pedação. "Mas, tudo isso é um segundo?" "É um segundo". E ·Il·
- Proteger de quê?
aprovava. O cara era tão burro que eu deixava dois metros e "era um segundo".
Vim, fiz os cortes e voltei. Dei entrada no filme outra vez. E veio outro pa-
Ele não tinha a idéia de pegar um cronômetro. Um negócio absurdo. Depoi " I) ~
pel, em vez de cinco, passaram para 23 cortes.
descobrimos um sistema de fazer essas coisas. A gente mandava o filme para a '1)
- Dr. Rogério, eu não estou entendendo. Aumentou? Parece uma lista tele-
sura, e os caras mandavam, por escrito: "No primeiro rolo corta isso, aquil . \.\1.
fônica! O senhor viu o filme, dr. Rogério?
No segundo rolo corta isso e aquilo". A gente mudava, punha o primei r rol)
- Não, eu não vi.
como quinto, o terceiro rolo como quarto, e mandava. Então, quando o cara h·
- Olha que absurdo: cortaram do filme a expressão "olha o meu peru". A atriz
gava na cabine de projeção para conferir, não via nada. "Primeiro rolo? Tá b01l1.
pergunta: "Quer ver o meu peru?" Aí, aparece um peru, uma ave.
Segundo rolo? Tá OK." E ia embora. Dava uma confusão danada.
- Mas você quer me dizer que não vão rir disso?
- Mas é claro, é pra rir mesmo.
- É porque estão tirando alguns filmes de cartaz (Mim i, o metalúrgico; Sacco
e Vanzetti e outros). As distribuidoras já fizeram cópias, esses filmes já estavam PROCESSO INFLACIONÁRIO
em exibição, e foram retirados. Então, para que você não corra risco, depois
desses 23 cortes, pode ter certeza que não vai ser retirado. É importante situar historicamente, no contexto da economia do pai, 's
Aí, ficou um filme difícil de entender ... sas relações entre produção e distribuição/exibição. Um motivo forte I ar:l
essa venda antecipada ao distribuidor era a corrosão da expectativa de lu .ro
E Matilde Mastrangi: pelo processo inflacionário. Uma empresa produtora podia ceder participa :to
às empresas distribuidoras para viabilizar a realização do filme - o qu cr:l
Minha primeira cena de sexo em cinema foi nesse filme [Emanuelle tropi- "natural" na montagem de uma produção. Porém, quando a taxa infla io
cal, 1977J. Eu transava com um homem e uma mulher. Representava uma lésbica, nária atinge índices elevados, a partir do início dos anos 1980, o produi )1
tinha um caso com a Selma Egrei, só que a Censura não permitiu. Eles censu-
necessita recuperar com rapidez ainda maior seu investimento, na teruat i
ravam antes, você sabe, né? Então, quando a gente estava na cama, e tinha cena
va de evitar a corrosão dos lucros. Como aponta Simões, 10 "a saída então, par.i
de sexo, eu ficava de frente e ela, ao meu lado. Então, quando eu falava, a câmera
algumas empresas, é uma só: vender a preço fixo. Numa aritmética simpli \:.1:
focava em mim e desfocava ela; quando ela falava, eu ficava fora de foco e focava
se foi gasto 1 milhão de cruzeiros, por exemplo, tenta-se vender por mI
ela. [... J A gente estava juntas, mas não podia estar perto. Estávamos juntas na
cama, no plano geral. Mas quando a câmera aproximava ... O lençol cobria tudo. lhões para o exibidor, e isso inclui a renúncia total aos direitos sobre o film ,".
Só aparecia peito. Naquela época, não podiam aparecer os dois peitos de frente, Além do aumento brutal (e continuado) do preço do material virgem
só um de cada vez. Nesse filme, isso fica bem claro. A Censura pegou pesado importado e cotado em dólar -, a produção da Boca do Lixo tem d on
nesse filme, por ser em cima do filme Emanuelle, tido como forte. Pra mim, viver com a expectativa de lucros corroída pela inflação, que também am :1 .1
foi difícil fazer a cena de sexo com um homem, porque, pela primeira vez, eu a coragem para investir. Na virada dos anos 1980, começa-se a perceb r pll'
tive de ficar nua, de calcinha. O lençol me cobria até aqui, mas eu tinha que uma nova situação está se desenhando: a produção continuada, o "cin 111:1
ficar em cima dele, ele em cima de mim. Foi muito constrangedor ... pauleirà', feito com rapidez e imediatista, estava com os dias contados.

Sylvio Renoldi:
10 Idem, op. cit., p. 24.

209
208
"IIIUU~IIII" I" m__.vv,,,,.r" •• V" "'--." _ •

NEGOCIAÇÃO SALARIAL
CUSTOS CONTROLADOS: TUDO É DINHEIRO
A esse respeito, diz David Cardoso:
A aplicação da fórmula produção barata + erotismo + título apelativo (mais
todos os acertos com a exibição) exigia um controle dos custos que passava
Ixe! O cara que não pagava?! Deixava pra pagar depois da dublagem>' N _
s 'M ' . .. os por cada item do orçamento da produção de um filme. Dentre os iten , :1
a. ~ o ~eu neg~~JOera o seguinte: "Vocêquer ganhar quanto?" Digamos, hoje,
10 mil reais. Eu dizia: quantidade de negativo (filme virgem) e tempo de filmagem eram (que se)
- Eu não tenho. Tenho dois. fetiches do processo "industrial" da Boca do Lixo.
- Ah, dois não dá. Grosso modo, para efeitos práticos de uma filmagem, a quantidade I·
- E_ntão,deixa. Dois eu tenho. Só que os meus dois você recebe. negativo é medida por sua relação com o tempo final do filme. Assim, :1
Entao,. eu sempre primei pelo combinado ... Chorava até o último momento quantidade de material virgem determina a quantidade de repetição d to
~as, dep~l~ ~ue tá combinado, acabou. Não fico com o dinheiro de ninguém: madas, segundo critérios de qualidade (ou acidentalidade) - fotográ I :1,
nao. Eu dividia ~ pagamento. Por exemplo, 9 mil reais: eram 3 mil na assinatura de representação, de apuro dramatúrgico etc. Não havendo folga de negativo,
do contrato, 3 mil quando o filme terminasse e 3 mil na dublagem Às
. d . vezes,acon- não é possível repetir, o que significa: não pode haver erro. Ou, se a 11-
tecia e um cara não poder dublar. .. Eu já planejava assim.
tecer, ficar com o erro (ou transformá-Ia em acerto). Uma relação razoáv ·1
(para os padrões da época e do cinema brasileiro) entre quantidad d·
Como sempre, o paradigma da produção da Rua do Triunfo era Antonio
Pala Galante, que relata: negativo e tempo do produto final (o filme pronto) poderia ser de ccr ;\
de 4 a 5 vezes para 1. Ou seja, para um filme cujo tempo de edição final
fosse de 90 minutos, filmavam-se cerca de 450 minutos. É importam .
Eu sou um camarada que dá mais trabalho ao pessoalde cinema. E lanço muita
perceber, neste processo, que a quantidade de negativo desborda em CUSIO~
g~nte nova. [...] Eu não pago pouco, pago dentro da verdade do cinema brasi-
leiro. Sev~c~vê a tabela do Sindicato, eu pago sempre 2 mil, 3 mil a mais da tabela. de laboratório (revelação, copiagem etc.). No processo, importa perc bcr
Eu sou o UlUCO que tenho uma carta do Sindicato dos Atores dizendo que o único que a pouca quantidade de negativo poderá incidir diretamente na baixa
camarada que paga o~impostos, que paga tudo direitinho chama-seA. P.Galante. qualidade artística e, por conseqüência, no perfil do produto final.
Eu te~ho a carta e esta no boletim deles.Vocêvê:o meu escritórioé vaziode pessoas O negativo (filme virgem) parecia valer ouro na Rua do Triunfo. Quando
que vem ~eceber. :orque acabou o filme, eu pago, e tenho caixa para pagar. Eu algum produtor ou diretor ganhava algum dinheiro a mais, investia m
ven~o 50 Yo para nao ter amolação. [Eu tenho] quatro pessoas na equipe [de pro- negativo, como se fosse uma poupança em dólares, caracterizando-o 1110
duç~o]. Eu pego duas de produção de cinema e duas da ECA. Eles estão querendo uma verdadeira moeda na Boca do Lixo. Os depoimentos a este resp i LO
p~atlcar.Então eu dou uma ajuda de custo. Isso é em todo filme, eu tenho duas ou reiteram a carência e o desafio que era vencer a precariedade. Uma das
trespesso~saprendendo. Sempre tenho gente que vem aqui e pede. Não pago salário
conseqüências da escassez de negativo foi provocar a ousadia-ingenuidad .
de profissional por~u~ ~ão é, mas dou todas as condições de um profissional. Pago
os direitos, tudo direitinho. 11 de assumir a barbárie, acreditando no heroísmo criador: "foi assim qu d 'li
pra fazer". A Boca talvez realizasse a utopia do possível.
Segundo Guilherme de Almeida Prado: "Com certeza. As taras de to
dos nós é praticamente 1 e meio pra 1. Perfume de gardênia também era mn i.••
ou menos isso, era no máximo 2 pra 1. Realmente, você não podia gastal
negativo na Boca".
11 Cf. João Silvério Trevisan, op. cir, p. 73.
E Alfredo Sternheim:

210
211
IfV "tlV 'I\V
- .._---- ."------

as condições materiais de trabalho eram as mesma de qualqu r lu ':.r.


o GalaJ~te deu~uita chance, mas era muito sovina como produtor. Ele ex-
rores que existiam no Brasil estavam lá. Os mesmos. Esses refletor 's p qu 'n()~
plorava multo. O pr~meiro filme eu fiz com 18 latas de negativo (que é muito
para trabalhar em locação, quando acabaram os grandes estúdio. ]-I nório
pouco, quase 1 e mero pra 1). E ainda havia a minha falta de prática, de habili-
fabricou muito refletor baseado em Moeller-Richards e Cremer. O [] Thorné ;1'1,1.\
dade. [... ] Eu me lembro da morte de Lola Brah . Ela morreu mal na pnmeira ..
aqueles refletores pequenos. Muito mais práticos ...
tomada, e o meu iluminador, que era um estreante, o Antonio Meliande me di .
"S' . ' rz:
o tem n~gat1vo para mais uma". Aí, fiz uma coisa supererrada como diretor
Uma das regras mais pesadas das condições de produção era o c nt 1'0
por ne~v~sismo: pressionei demais, passei essa pressão do negativo para a atriz:
~u falei: Lola, trate de morrer bem!" Estava histérico. Resultado: ela morreu pior le do tempo de filmagem, em geral apertado. Os prazos eram impla áv 'i,\

ainda que na primeira [tomada]. e, também, um dos critérios de avaliação de competência do diretor' d:\
Tive que fazer um r~melexo na montagem, aproveitei pedaços da primeira com equipe, na medida em que essa pressão influísse pouco na qualidad do
pedaços da se~unda. ~ICOUu~a porcaria a cena. Eu cortei de modo que, prati- acabamento. Diretores convidados, ou com seus roteiros aprovado p ·10
c:unente, ela nao morna. Na copia final, o Sylvio Renoldi, montado r, disse: "Vamos produtor, tinham que adaptar-se às condições concretas. Não havia mui
tirar esta morte". E foi [por] falta de negativo ... to o que negociar ou discutir sobre condições de produção. Muitas v z ·s,
o roteiro estava pronto, o elenco escolhido e o prazo definido- Re lava
~o ponto de vista do aspecto técnico, os filmes oscilavam quanto a improvisar, às vezes. Procurar ser "criativo", sempre.
qualidade e tratamento, a maioria mostrando padrões técnicos inferiores
Os profisssionais da técnica sentiam seu trabalho variar de qualidade, con- Carlos Reichenbach relata:
forme os filmes. Como observa Ortiz Ramos.
Quando o Galante me chamou para fazer um filme com ele, senti algo estranho.
Fotógrafos, às.vezes competentes, como Antonio Meliande, têm trabalhos Até aquele momento, eu era fotógrafo e fazia filmes complicados (Lilian M -.A \
extremamente desiguais, É só comparar os filmes que iluminou para W . H . Kh oun . confissões amorosas). Galante disse: "Vem fazer um filme comigo, mas não quero
com out~as produções em que atuou. Ele mesmo explica o processo: "O trabalho aqueles filmes miúra". E eu fui fazer A ilha dos prazeres proibidos. O Galante resolv '11
~on~en.CIo~al em termos de fotografia acontece devido ao funcionamento da produzir e me disse: "Traz o roteiro - que não pode ter menos de 100 seqü 1\
indústria cinemarográfica. Os produtores querem produzir muitas fitas no menor cias". Ele me impôs determinadas condições: me deu 20 latas de 300 m - que
esp~ço ,~e tempo, e gastar o menos possível. A maioria é feita em 3, 4 semanas. corresponde a 2 por 1. Eu tive que fazer de tudo: fotógrafo, equipe mínima ...
Entao e isto que re~ulta no convencional. Não há tempo para escolher, por exem-
plo, um qu~rto maior que tenha entrada de luz, ou jogar duas luzes, rebater e filmar, Antonio Polo Galante é um típico produtor-investidor com idéia SIII"
porque o diretor e o produtor não podem perder tempo".'?
gidas de sua prática como técnico (feito pela vida, formado pela técnica) .
de sua cabeça como empresário. Além de oferecer pouco filme virg '11),
Cláudio Portioli relembra:
Galante ainda gostava de aplicar suas teorias sobre o tratamento dos rot iro~
para obter um bom resultado:
Cheguei a iluminar dez filmes num ano. O Antonio Meliande chegou a fa-
zer onze. Eram filmes de três semanas, quatro semanas, e vamos em frente ... Mas,
Eu falei: "Se você escrever 80 seqüências dentro deste argumento eu t pO.1
parada. Senão, não". Acho que num filme tem de acontecer alguma coisa. Fil
me nacional já é ruim em si, nos diálogos, acho que falta alguma ligação, ·i I.
12 José .Mário .. Ortiz
. Ra'mo.s, op. cit., p. 25. Entrevista
. .
com A. Meliande, IDART, 1979. o que, o público não aceita ainda. [Mas] se você desenvolver bem o roteiro, HO
Meliande InlCIOUcarreira na Herbert Richers nos anos 1960 o di R a 90 seqüências com 10 a 15 planos cada uma, você consegue, não digo um bOIl\
Santos. " c m o iretor uy

213
212
" I"UU '''1" ,AIl",nIV.nnrl""'""'·

filme, mas um filme ao menos movimentado. O meu sucesso está em fazer, por BOCA DOS SONHOS
baixo, 1.200 a 1.500 planos por filme. 13
Interessante trazer, para este final, o depoimento de Helena Ram s, urna
Apesar de tender ao profissionalismo e à concentração de capital, a Rua atriz apaixonada pelo cinema da Boca d o L·lXO,que 1'1ustra com .o 1':\(;:10
do Triunfo manteve "frestas" para certos procedimentos que fizeram sua o heroísmo criativo e a aventura heróica do ciclo da Boca do LIXO:
história. Esta narrativa de Sylvio Renoldi ilustra como permaneceram, ainda
tardiamente (1980), certos valores do início heróico da Boca do Lixo, quando Acho que, dentro [...] das possibilidades, que eram mínimas, a gente fez o qu .
produções voluntariosas eram resolvidas na base do envolvimento coletivo,
N-
foi possível. A gente fazia as coisas mesmo na raça. .a.o
. h
nr:a porqu' '1'1
a?ru , ..
muito caro alugar, então o cara improvisava, dava um Jeito. E evidente que I.TIIIII.I
no que se refere a trabalho e a capital. Paralelamente revela que, ao longo do
tempo, foi-se formando uma espécie de profissionalização da rapidez nos pro-
gente aprendeu muita coisa, durante esse processo verdadei.ro .d~ arte, d: . !'I. ao:
Você não tem grana, não tem equipamento suficiente, a cn~t~vldade ali tinha ~~~
cedimentos cinematográficos da Boca do Lixo. Diz ele:
ser muito latente. Então, eu acho que esse foi o grande mente. E aquela ~ r~:!.
aquela energia das pessoas que faziam cinema, porque era tudo pobre. At~ a I11k".!
Foi quando eu chamei o [Antonio B.) Thomé [para dirigir) e disse: "Nós era pobre, tinha preconceito. Era como remar contra a mar~. [...] Era muito I 'g:!1.
temos que produzir um filme em 10 dias e lançar em vinte. Em 20 dias tem de Era a Boca dos Sonhos, né? As pessoas que estavam ali ficavam sorihand )...
estar exibindo nos cinemas, senão eu estou naufragado. Vou escrever uma his-
[risos]. Tinha um cara, que eu não me lembro bem, que me dizia: "Pára, de hut.n
tória, amanhã vai estar pronta. Você arranja câmera, a equipe, eu arranjo o filme
a som b ra, mu lherl
er. Sai. dessa!"
. Como se eu ficasse chutando .a sombra,
. arras det.nada,
[negativo) e um dinheiro para pagar os atores". Aí, eu escrevi uma história e
Porque era a Boca dos Sonhos, mesmo. Existia uma certa ~nge~U1d~deaté.. lnro
passei a um amigo meu, o Macedo Soares - que tinha trabalhado num jor- que algumas pessoas se aproveitaram disso e gan~aram murro d~nhelro. t. evid nll·,.
nal em Hollywood - e falei: "6, passa o negócio a limpo, vê se dá um senti- Mas tinha aquelas que acreditavam em fazer aquilo com amor a arte, mesm~. li
do na história". Aí, ele escreveu o roteiro. Passou dois dias, eu falei para o Thomé:
tivesse um bom resultado. Que fizesse sucesso. Como eu, também. Eu vibrava:
"A história é essa, vamos começar a produção". Eu arranjei umas três pessoas
"Nossa! Que bom ... ".
[produtoras associadas], que entraram com uma grana para pagar a equipe, para
levar a produção. Aí nós saímos para filmar. Em 11 dias nós filmamos. Quando
terminou a filmagem, estava tudo praticamente dublado, porque eu dublava
conforme ia filmando. Em 17 dias, nós estávamos com o filme pronto, e eu lancei
o filme com os portugueses da Haway. Era Tara das cocotas na praia do pecado
(1980). O filme era mais ou menos assim: umas mulheres raptam um cara, por-
que tinha um tesouro da família dele escondido. Levam o cara para uma ilha
e ficaram interrogando. Eram 6 mulheres. Boas, né? No interrogatório, saca-
neavam com ele, até que descobriram que ele tinha um mapa (do tesouro) ta-
tuado na bunda. Aí, foi uma festa ... Doze anos depois, o Sílvio de Abreu fez
uma novela em que o cara tinha um mapa tatuado na bunda. Bom, esse filme
deu uma grana suficiente ...

13 Idem, op. cit., p. 75.

21
214
ENTREVISTAS

Alfredo Sternheim (São Paulo, 11 de agosto de 2001)

Aníbal Massaini (São Paulo, 9 de novembro de 2001)

Carlos Reichenbach (São Paulo, 15 de junho de 2001)

Cláudio Cunha (Rio de Janeiro, 14 de outubro de 2001)

Claudio Portioli (Campinas, 8 de dezembro de 2000)

David Cardoso (São Paulo, 19 de setembro de 2001)

Guilherme de Almeida Prado (São Paulo, 24 de novembro de 2001)

Helena Ramos (São Paulo, 17 de setembro de 2001)

Inácio Araújo (São Paulo, 23 de maio de 2002)

Jean-Claude Bernardet (São Paulo, 26 de janeiro de 2002)

Luiz Castillini (São Paulo, 9 de outubro de 2001)

Mario Vaz Filho (São Paulo, 14 de setembro de 2001)

Matilde Mastrangi (Atibaia-SP, 9 de novembro de 2001)

Ozualdo Candeias (Campinas, 8 de dezembro de 2000)

Patricia Scalvi (São Paulo, 25 de outubro de 2001)


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