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Musicoterapia e Psiquiatria Infantil

Introdução

O presente trabalho pretende relacionar como a musicoterapia pode contribuir para a melhora da
qualidade de vida de crianças psicóticas. Sendo considerada uma ferramenta clínica, que através da
música e seus elementos (ritrmo, som, melodia, harmonia), ajudam o paciente se tratar.

Muitas crianças agressivas, mau comportamento, transtornos autísticos, síndrome de Asperger,


Síndrome do X Frágil, hiperatividade; transtorno de conduta; delinqüência juvenil; recusa escolar
apresentam, na verdade, um sofrimento psíquico.

Ao contrário do que se pensavam, os transtornos mentais podem iniciar-se já na fase infantil, sendo
então bastante devastadores na vida do indivíduo. A alteração comportamental é uma das maneiras
mais comuns da criança manifestar tristeza, medo, ansiedade, inveja, baixa auto-estima, ou
sofrimentos psíquicos de outra natureza. É incomum que a criança consiga verbalizar seu
sofrimento.

Na maioria das vezes a criança ainda não possui linguagem e pensamento amadurecidos para isso.
Isto acontece porque a criança encontra-se ainda em DESENVOLVIMENTO e, a imaturidade dos
seus sistemas nervoso e emocional faz com que ela tenha muito mais manifestações
comportamentais do que verbais. As crianças podem tornar-se agressivas, terem queda de seu
rendimento escolar ou mesmo mudarem sua "personalidade" em decorrência de um estresse
emocional ou até mesmo um transtorno psiquiátrico mais sério. O mau-comportamento deve servir
de alerta aos pais, para procurarem ajuda para seus filhos. O diagnóstico e tratamento precoces
podem evitar isto!

Costumam-se graduar o mau-comportamento de crianças e adolescentes segundo a seguinte


escala:

1. desobediência
2. mentira

3. roubo

4. cabular aula

5. fuga
6. destruição

7. incendiarismo

8. abuso de drogas

9. crueldade

10. violência.

Esta escala descreve uma evolução do mau-comportamento em termos de gravidade e de evolução


ao longo da vida, ou seja: crianças pequenas que começam a apresentar desobediência, e que não
foram adequadamente orientadas pelos pais, poderão usar drogas e cometer atos violentos na
adolescência.

Partimos do pressuposto de que a psicose é, apenas, o fenômeno universal do adoecer psíquico e


que todas as manifestações particularmente associadas aos mecanismos primários de cisão se
revelam fenômenos específicos dos transtornos esquizofrênicos. Dessa forma, parece-nos plausível
verificá-los nos mais diversos campos das atividades, como nas construções verbais, nos detalhes
do comportamento de uma maneira geral e, supostamente, nas representações psíquicas do próprio
corpo. Enfocando essa preocupação psicopatológica, propusemo-nos investigar a possibilidade de
aliar o movimento da dança com a música, buscando responder que tipo de benefício terapêutico
poderia ser alcançado. Não seremos ingênuos em afirmar que nossos esforços eram, desde o início,
isentos de intenções. Em realidade, pretendemos encontrar instrumentos capazes de promover
maior organização das funções psíquicas e, ao dirigir nossas reflexões para a prática clínica, avaliar
em que medida a musicoterapia (no caso, aliada ao movimento e a dança) pode funcionar como
elemento reorganizador para esse tipo de paciente.

Sob o ponto de vista metodológico, aplicamos a musicoterapia interativa, 1 algumas técnicas de


improvisação musical livre, improvisação musical eventualmente orientada e recriação musical. 2

Essas atividades foram desenvolvidas com um grupo de pacientes adultos que frequentava o
Hospital-Dia durante o citado ano, composto, em média, de seis pacientes atendidos semanalmente
em atividades com duração de uma hora. As sessões aconteciam em ampla sala aparelhada com
diversos instrumentos musicais, onde os pacientes eram atendidos por três pessoas: duas
coordenadoras e uma observadora, esta última com a tarefa de elaborar os relatórios das atividades.
Caso Clínico

Apresentaremos o paciente, aqui denominado Carlos, brasileiro, natural do Rio de Janeiro, nascido
em janeiro de 1962, católico, solteiro, branco, grau de instrução primário, inativo, residindo com os
pais e sendo o terceiro de uma prole de três.

O fato de sua mãe ser pianista profissional pareceu-nos, desde o princípio dos atendimentos,
expressar uma relação peculiar entre ambos dentro da trama familiar. Segundo ela, Carlos “sempre
se mostrou ingênuo, tendo características femininas desde criança” (sic). A nós, o que mais chamou
a atenção foi o comportamento marcadamente pueril e meigamente delicado, muito embora
aspectos femininos também pudessem ser evidenciados. Em nossos esporádicos e fugazes
contatos com a mãe, pudemos perceber uma evidente preocupação em protegê-lo, como alguém
extremamente frágil e indefeso. Impressão, aliás, corroborada pela equipe. Algumas vezes supomos
que, de certa forma, acusava o marido pelo problema do filho. “Ele nunca aceitou seu gosto pela
música e dança”, disse-nos certo dia. Dessa forma, foi matriculado pela mãe, aos 16 anos, no curso
de ballet clássico do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e atuou profissionalmente, como bailarino,
até os 21 anos, quando, segundo informações colhidas, adoeceu.

Nosso primeiro contato com sua história clínica se deu a partir do prontuário da instituição, muito
embora já estivéssemosmantendo atividades musicoterápicas há semanas. Em realidade, até o
momento da procura do prontuário, encontrávamos dificuldade em imaginar a história daquela
pessoa, quem seria ele, uma vez que seu estado psíquico mal permitia que pudéssemos entender o
que falava. Inicialmente, eram raras as aproximações de forma espontânea e, quando o fazia,
mostrava-se tímido, ambivalente e fragilmente assustado. Quando falava, fazia-o baixo e
incompreensivelmente. Quando, já com um pouco mais de intimidade, pedíamos que repetisse
alguma frase, sorria, aparentemente envergonhado, e novamente voltava a murmurar frases sem
sentido, palavras com significação inusual acompanhadas de mímicas e entonações incoerentes
entre si. Surpreendia como, apesar de nos parecer desconexa, a tonalidade de suas comunicações
denotava perfeita harmonia consigo mesmo. Parecia não perceber que ninguém compreendia o que
falava.

A primeira internação data de 1990, no próprio IPUB. Verificamos que, na ocasião, o boletim de
entrada apontou para o diagnóstico de esquizofrenia simples. Uma segunda internação, em 1993,
indicou o mesmo diagnóstico. Em 1997, na terceira, encontrou-se a categoria hebefrenia. Seria esta
uma evolução da primeira, ou nomes diferentes para uma mesma condição clínica?
Muito embora a história pessoal não seja o objeto do presente estudo, queremos apontar para
algumas questões paralelas. A busca de prontuários levanta, sempre, algumas reflexões. Nessas
ocasiões, é comum deparar-nos com dificuldades de aproximação, não raro intransponíveis. Em sua
grande maioria, os registros contêm apenas aquilo que justifica a intervenção daquele que está
relatando os dados em questão. Tal critério de elaboração, inevitavelmente comprometido, revela
diversas dificuldades, uma delas relacionada à impossibilidade de abordagem de certos problemas
que extrapolam a visão clínica daquele que elaborou o registro em estudo. A conclusão possível é
que o prontuário serve como documento, apenas da forma peculiar pela qual o profissional foi capaz
de entender o objeto de seu trabalho, na ocasião das anotações. Sabidamente, a bagagem teórica
do entrevistador, seus conceitos e preconceitos, características de personalidade e até sua própria
história de vida pessoal, são elementos determinantes na construção do material clínico descrito em
prontuário.

Se considerarmos como válido o pressuposto de que, em nome de uma pretensa exatidão empírica,
a clínica descritiva quase não reconhece os aspectos subjetivos relacionados ao jogo dinâmico das
manifestações esquizofrênicas, mesmo independente de especulações etiopatogênicas, não
encontramos dificuldades para evidenciar sua ausência na maioria dos registros de prontuários. A
definição que cada profissional possui a respeito do que é sintoma, por exemplo, mostra-se capaz
de influenciar a avaliação das manifestações sintomáticas e, ao ser reconhecido sob diferentes
configurações, cada sintoma pode passar a compor igualmente outros complexos sintomáticos.
Dessa forma, a investigação de prontuários nos revela o principal problema levantado por aqueles
que não reconhecem a importância das evidências de sofrimento ou prazer, nem sempre
verbalizadas, porém invariavelmente disfarçadas (estudos estatíscos demonstram altíssima
incidência de suicídio, tentativas de suicídio e comportamentos auto-agressivos entre pacientes
esquizofrênicos). 3 Somos, nesses casos, incapazes de reconhecer a condição humana desses
pacientes, muito embora seja esta a condição que os fazem buscar nossos serviços.

Carlos chegou ao setor de musicoterapia encaminhado por uma psicóloga. Quando verificada sua
história pessoal e constatada sua experiência como bailarino, a coordenadora de musicoterapia o
encaminhou ao grupo aqui referido.

Sem precisar de maiores detalhes sobre os dados pessoais do paciente para o presente estudo,
detivemo-nos neste tópico apenas a pretexto de apresentar, en passant, algumas de nossas
reflexões a propósito das anotações de prontuário.

Preocupados, entretanto, em estudar as observações clínicas obtidas, plenas de aspectos subjetivos


e pouco consistentes do ponto de vista quantitativo, procuramos transformar estas observações em
dados mensuráveis, referidos pela literatura como “empiricamente” palpáveis.

Para avaliar a atuação de Carlos no decorrer das sessões foi elaborado um gráfico que pudesse
mostrar o perfil de seu processo musicoterápico, no que diz respeito a expressividade. Com isso,
confeccionamos um critério classificatório dimensional, capaz de descriminar quatro
níveis/dimensões diferentes do mesmo problema.

Algumas palavras preliminares, entretanto, para que possamos justificar semelhante escolha de
avaliação. Em primeiro lugar, a conjugação de esforços em construir uma teoria “consistente”,
baseada em dados empíricos, efetuada pela psiquiatria mundial ao longo dos últimos 20 anos, tem
privilegiado estudos quantitativos em detrimento dos estudos qualitativos. Se, por um lado,
reconhecemos nesse esforço a preocupação de se evitar excessos especulativos, por outro, verifica-
se hoje uma verdadeira escassez de trabalhos clínicos voltados para o estudo psicopatológico.
Assim, buscar uma conciliação entre a firmeza da experiência vivida com o alcance das suposições
imaginadas tem marcado nossas preocupações clínicas. Em segundo lugar, dimensionar diferentes
níveis de expressão parece-nos o mesmo que contextualizar a vida de relações, problema de
primeira grandeza no universo das manifestações esquizofrênicas.

O gráfico (Figura 1) determina diferentes níveis de funcionamento a cada sessão. Para sua
compreensão, é preciso esclarecer como se define cada nível.

Por expressividade entendemos energia de expressão.*

Definimos o nível 1 de expressividade como: ausência completa de iniciativa e expressão. Essa é a


fase em que o paciente parece indiferente, apático ou superficial; demonstra rigidez nos
movimentos; não toca e não canta.

O nível 2 se caracteriza pela pouca expressividade sonoro/musical e corporal, comprometimento


parcial do pragmatismo, linguagem verbal incoerente e empobrecida. Neste nível, o paciente escolhe
um instrumento apenas quando solicitado e toca sem interesse, com pouco investimento no que
produz. Faz comentários consigo mesmo, sem sintonia com o ambiente, utiliza-se de neologismos e
apresenta verbigeração. Apresenta dificuldade de verbalizar sentimentos e sensações, movimenta-
se timidamente.

No nível 3 há aumento na expressão sonoro/musical e corporal, com coerência e adequação da


expressão verbal. Aqui, já estabelece “diálogos rítmicos” com os outros pacientes ou com as
musicoterapeutas. Descobre novos instrumentos e novas possibilidades de tocá-los, parece
experimentar sensações provenientes dessa descoberta. Sugere frases para as improvisações
musicais e explora o ambiente, aumentando a movimentação do corpo no espaço.

O nível 4 corresponde a uma autonomia no “fazer musical”, aumento do repertório de movimentos


corporais e ao uso da linguagem verbal mais clara e adequada. O paciente canta versos,
improvisando e recriando,** demonstra a graciosidade natural dos movimentos com maior
espontaneidade e utiliza melhor a fala para fazer comentários sobre si mesmo e sobre os outros.

O Processo Musicoterápico

Na primeira sessão que Carlos participou, a coordenadora do grupo solicitou que cada participante
desenhasse seus corpos numa folha de papel em branco, ouvindo ao fundo uma improvisação
melódica em dó maior feita no piano. Tal proposta pretendeu caracterizar a expressão da imagem
corporal, em desenho, de cada paciente. Carlos desenhou dois pés em posição de balé clássico
(Figura 2).

Ao final de cada desenho, a coordenadora sugeriu que cada paciente escolhesse um instrumento
musical que pudesse expressar pela forma, ou pelo som que produzia, o mesmo que fora
desenhado há pouco. Num determinado momento, Carlos escolheu um pequeno tambor e tocou.

(Figura 3)

Nas considerações sobre o que é terapêutico, supomos que o desenho da imagem corporal, bem
como o ritmo produzido através do instrumento escolhido, tenham ligação com sua história pessoal.
Afinal, os pés são partes fundamentais no corpo de um bailarino e todo início de espetáculo é
indicado por três sinais sonoros. Especulações dessa ordem podem ser reforçadas quando
reconhecemos que um de nossos comportamentos primitivos mais freqüentes é tornar o
desconhecido conhecido. Quando assim o fazemos, dominamos o que não faz sentido e é
desconhecido, questão nuclear nos processos de cisão dos processos psíquicos.***

A hipótese foi reforçada através de seu comentário seguinte: “É o início de tudo... o som da criação
é... o som do meu corpo... o dia... de hoje... não será... como ontem”.

Voltando à descrição dos diferentes níveis de nossa Figura 1, podemos perceber que, ainda no
início de seu processo musicoterápico, Carlos parte do nível 2. Mesmo com dificuldade de
expressão musical, verbal e corporal, não observamos ausência completa de iniciativa e expressão.

Nas duas sessões que se seguiram, Carlos começou a demonstrar aumento de sua expressão
(primeira linha ascendente no gráfico). Em um exercício corporal, onde os pés eram utilizados para
produzir ritmos, ele utiliza o afoxé sob os pés, com movimentos deslizantes e comenta: “Senti calor...
está bom.........anti-depressivo......... o barulho do afoxé...... ficou alegre”.

Na quarta sessão, ele atinge o nível 3. O aumento de sua produção sonoro/musical fica claro
quando, ao chegar na sala da Musicoterapia, tira os sapatos sem qualquer solicitação da
coordenadora, dirige-se ao armário de instrumentos e pega o afoxé para, em seguida, colocá-los sob
seus pés (repetindo os movimentos da sessão anterior), enquanto toca o tamborim. Sua
movimentação corporal também é mais ampla, visto que dirige-se ao espelho e, olhando para sua
própria imagem refletida, abre os braços de maneira coreográfica.

Para facilitarmos a expressão de Carlos, valorizávamos toda e qualquer manifestação sonora trazida
por ele, demonstrando nossa aceitação através de espelhamentos rítmicos e musicando suas
frases, que eram também cantadas pelo grupo.

A sexta sessão tornou-se significativa porque foi a primeira vez que Carlos cantou uma melodia
composta de vários versos com pronúncia clara, coordenada, respeitando o ritmo e o sentido das
palavras. Está assim, caracterizada sua chegada ao nível 4 de nosso gráfico. Cantando, dirigiu-se a
uma paciente do grupo, como se agradecesse os comentários feitos sobre sua melhora:

“...é impossível não crer em ti, é impossível não te encontrar é impossível não fazer de ti meu
ideal...”

Nas três sessões seguintes, Carlos se manteve no nível 4, demonstrando integração com o grupo,
verificada no comentário final da oitava sessão quando, dirigindo-se a um paciente, disse:

“É sublime saber que você me viu...”

Nessa mesma fase, tocou o bloco sonoro muito mais livremente, ampliando sua movimentação de
braço e tronco, diretamente ligada a maneira como produz sons nesse instrumento.

Com a entrada de uma nova paciente no grupo, na 10ª sessão, Carlos intimidou-se. Parecia sentir-
se ameaçado pelo jeito controlador e dominador dessa paciente. Nesse sentido, um episódio bem
expressivo, foi quando ela quis determinar como ele deveria tocar o metalofone. Nesta ocasião,
chegou a retirar esse instrumento de suas mãos, apesar de nossas intervenções. Além disso, Carlos
passou a ser, constantemente, criticado por ela. Certa vez, levantou-se a hipótese de que o
comportamento dessa paciente poderia estar remetendo-o à mesma situação de reprovação e não
aceitação já vivida com seu pai.

Durante algumas sessões seguintes se manteve calado e pouco participativo (retorno ao nível 2 do
gráfico). Esse período de “recolhimento” de sua expressividade, e conseqüente quebra de sua
crescente evolução, foi o que motivou nosso estudo. Mais que isso, foi fator de inquietação, levando-
nos a refletir sobre possíveis intervenções para evitar a estagnação do processo grupal.

Quando, na 17ª sessão, voltou a estabelecer diálogos rítmicos com a coordenadora, demonstrou
que sua participação no grupo estava novamente no sentido crescente, de acordo com o gráfico.

Consideramos que ele voltou a atingir o nível 4 (19ª sessão) quando dançou livremente em meio ao
grupo, foi até a janela e a usou como barra, apoiando-se para exercícios de aquecimento para as
pernas. Acreditamos que, nesse momento, sua vivência no balé apareceu claramente e de forma
prazerosa. Voltando ao grupo, sugeriu músicas, disse que queria tocar ao piano. Embora tenha se
aproximado, não chegou a tocar. Rodou, bateu palmas, deu piruetas e assobiou à vontade.

Até a última sessão considerada para o presente estudo (14/10/97), Carlos permaneceu se
expressando ativamente por meio de recriações, improvisações e movimentações corporais li vres.
Nesse período usou termos como “descobrir a vida”, marcando ativamente sua presença, fosse
alongando o corpo, fosse levantando a cabeça e, ainda, movimentando-se com maior naturalidade
pela sala. Nesse mesmo dia foi ao piano e, espontaneamente, dividiu com a coordenadora do grupo
e mais um paciente o mibemol 4. “Toquei a minha nota...”, disse. Nesse momento, não nos
interessava avaliar se o paciente estava apresentando ou não sintomas produtivos. Nosso objetivo
era verificar de que forma sua vida de relações melhorava, qualitativamente.

Consideramos, de alguma forma sintomático, que ao cantarmos sobre o pai, em improvisação


iniciada por outro paciente, Carlos tenha tocado o atabaque com força. Especulamos uma possível
reação agressiva ao tema proposto em canto.
Através dos instrumentos musicais, pudemos sugerir uma leitura musicoterápica.
Os dois primeiros instrumentos escolhidos por Carlos, tambor e afoxé, são os dois primeiros
instrumentos criados pelo homem.****

Carlos passa então para um instrumento melódico rudimentar, o bloco sonoro – feito de cabaças e,
posteriormente, para um instrumento de metal (metalofone), introduzindo o cromatismo.

Numa sessão fecha o metalofone, dedilha sobre o estojo, como se antecipasse sua ida ao piano.

No momento em que se dirige ao piano e toca o mi bemol 4, a coordenadora faz um


acompanhamento compatível (I,V,I - mibemol maior). Outro paciente vai também para o piano e toca
nas teclas brancas. A coordenadora faz em dó maior - I, VI, II, V, I.
Carlos sai do piano e começa a cantar o trecho da Figura 4.

Isso, provavelmente, mostra-nos sua inserção na harmonia. Referindo-se ao que a coordenadora


havia feito no piano, pára e diz: “eu cantei aquilo”. Embora o paciente se mostrasse tantas vezes
distante do contexto do grupo, esse evento ressaltou atenção e interesse para uma nova situação
que parecia prazerosa.
Os instrumentos postos nessa seqüência (tambor - afoxé - bloco - sonoro - metalofone - piano)
indicam a passagem de instrumentos rítmicos para harmônicos, atravessando os melódicos. Esse
movimento de trocas sugere, igualmente, um aspecto evolutivo. Do ponto de vista musicoterápico,
consideramos que os instrumentos rítmicos (com os quais iniciou as atividades) são mais primitivos
e seus estímulos sonoros não exigem processamento em nível cortical. Instrumentos melódicos
pressupõem relação intervalar entre sons, exigindo possibilidades mais amplas de escuta e
produção de sons em diferentes alturas. No final dessa hipotética escala progressiva estaria o piano,
instrumento harmônico, capaz de ampliar as possibilidades de sons simultâneos, exigindo maior
integração cognitiva. Podemos dizer que houve, portanto, uma evolução gradativa em sua produção
sonora, quando analisamos os elementos constitutivos da música: ritmo, melodia e harmonia.

Conclusão

No processo musicoterápico de Carlos observamos uma nítida melhora em sua vida de relações,
aqui revelada através do gráfico evolutivo.

Nossas observações clínicas indicam que as melhoras obtidas através das atividades de
musicoterapia ocorrem, te, a partir da expansão das funções afetivas. Pensando nos distúrbios do
afeto específicos dos transtornos esquizofrênicos, acreditamos que a musicoterapia facilite o resgate
de trocas afetivas, tão prejudicadas nestas condições clínicas. Podemos observar, nos relatos das
histórias clínicas dos pacientes, que essa troca deixa de acontecer quando predominam os
mecanismos decisão. Inúmeras explicações são especuladas, dentre elas, a desconfiança e o medo
em compartilhar um mundo que não mais reconhece como sendo seu. O fazer musical
compartilhado parece, nesse sentido, funcionar como suporte para a formação de vínculos e como
veículo para a energia de expressão tratada aqui.

“Partimos do princípio de que não há dúvida de que o profissional de musicoterapia deve estar, além
de capacitado, disponível para ir ‘musicalmente’ ao encontro do paciente e aceitar o fazer musical
como discurso. Não só escutá-lo, mas tocar com ele. Tornar-se cúmplice na experiência musical.
Provocar e facilitar momentos de encontros onde a sensação de estar compartilhando os sons se
apresenta... Através de técnicas específicas, o musicoterapeuta estimula expressões não-verbais
dos pacientes com sons, músicas, gestos e danças. A produção que se segue cria o campo de
relações. Se a comunicação verbal nem sempre é estabelecida adequadamente, trabalha-se, em
musicoterapia, a expressão sonoro/ musical do paciente. Esta expressão sonora, seja por meio da
voz, do corpo ou de instrumentos musicais, constituirá a relação terapêutica.” 4

São várias as intervenções clínicas em psiquiatria. Todas têm em comum a preocupação com a
reestruturação psíquica possível do indivíduo e com a qualidade de sua relação com o mundo.
Acreditamos que a musicoterapia possa atuar interdisciplinarmente para a melhora da qualidade de
vida dessas pessoas.

“Somos, à vezes, desafiados por um som, impulsionados por um ritmo ou atraídos por uma melodia.
Somos puxados pela música para fora de nós mesmos e levados a interagir com o outro, pelo prazer
que nos causa fazer música ou partilhar esta experiência.” 1

Summary

The theme of the present paper refers to the use of the musictherapy as an accessory tool in the
clinical care of severe psychotic patients. The reflexions reported here were developed in 1997
during the musictherapeutic process of a schicophrenic patient at Rio de Janeiro Federal University’s
day hospital. The authors attempt to conciliate critically quantitative data with qualitative
psyhopathologic study. They elaborate a graphic that shows the profile of expressiveness of the
patient in the musictherapeutic process, whereby different levels of expression seem to correlate with
socialization. Musictherapy can contribute in an interdisciplinary way to the quality of life of this
patients.

Key-words: Musical-Therapy; Psychosis; Schizophrenia

Notas

* De acordo com definição encontrada no Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa - Mirador.


** Improvisação e recriação musical são técnicas musicoterápicas. Na primeira, o paciente toca e
canta livremente, criando ele próprio o ritmo, a melodia e/ou a letra (no caso das canções). A
recriação musical é a utilização de composições já existentes com significados particulares para
cada um que canta ou toca. É, entretanto, uma criação de outra pessoa.
*** Nossa prática clínica indica que o medo de enlouquecer é, em realidade, o medo de perder a
coerência e organização dos pensamentos, ainda que delirantes.
**** Aberastury refere-se particularmente ao tambor. A enciclopédia francesa Pleiade de Musique
aponta a “sonaille” (espécie de afoxé primitivo) como o primeiro instrumento que o homem criou.
Trata-se de sementes amarradas com cipós aos tornozelos.

Referências Bibliográficas

1. Barcellos LR. Cadernos de Musicoterapia nº 2. Rio de Janeiro: Enelivros, 1992.

2. Bruscia K. Cases Studies in Music Therapy. Phoenix-Ville: Barcelona Publishers, 1991.

3. Alec Roy MB. Psvchiatric emergencies. In: Comprehensive Textbook of Psychiatry/ VI.

4. Kaplan Benjamin & Sadock editors. 6ª Ed. Vol 2. Baltimore, Philadelphia, Hong Kong, London,
Munich, Sydney, Tokyo: Williams & Wilkins; 1995:1739-1734.

5. Bárbara BB, Cardoso de Mello HB, Gleizer GE, Goldenstein N. Considerações a propósito da
comunicação psicótica: o uso da musicoterapia. II Encontro Latino-Americano de Musicoterapia,
1998.

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