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Imagino que há pessoas que rezam com os olhos apontados ao céu. Essas
procuram Deus fora de si. Há igualmente pessoas que curvam profundamente a
cabeça e a escondem nas mãos, penso que essas procuram Deus dentro de si.
Meu Deus, agradeço-Te por me teres criado como eu sou. Agradeço-Te por às
vezes poder estar cheia de vastidão, essa vastidão não é senão o estar repleta de
Ti.
Soa quase paradoxal: por causa de excluírem a morte da vida, as pessoas não
vivem uma vida completa e ao acolher a morte dentro da vida, ela fica mais rica
e mais ampla.
Sobre as coisas derradeiras e sérias desta vida só se deve falar realmente quando
as palavras brotam de ti tão simples e naturais como se fossem água de uma
fonte.
Nunca me preocupo com o dia seguinte, sei por exemplo que dentro em breve
vou ter de sair daqui e não faço a menor ideia onde irei parar, e o ganha-pão vai
extremamente mal, mas nunca me preocupo comigo mesma, sei que alguma
coisa há-de acontecer. Se uma pessoa sobrecarrega antecipadamente as coisas
que hão-de-vir, elas não vão poder desenvolver-se organicamente. Há uma
confiança enorme em mim. Não uma confiança em que as coisas me hão-de
correr sempre bem exteriormente, mas sim uma confiança em que também nos
períodos em que as coisas me corram menos bem, eu aceito, gosto desta vida.
Não sei, acho extremamente infantil uma pessoa rezar por si mesma. Rezar por
um outro, para que a vida lhe corra bem, também acho infantil. A única coisa
por que se pode rezar é para a outra pessoa ter força suficiente para também
carregar com as suas dificuldades. E quando se reza por alguém, envia-se-lhe um
pouco da nossa força.
Com o que resta dos mortos, que vive eternamente, continuarei a viver a minha
vida, e hei-de despertar para a vida aquilo que está morto dentro dos vivos; e
desse modo não haverá senão vida, uma grande vida, meu Deus.
As ferramentas para abrir nos outros o caminho para Ti são ainda muito
limitadas. No entanto existem algumas ferramentas e eu hei-de melhorá-las
devagarinho e com paciência. E agradeço-Te por me teres dado o dom de
conseguir decifrar e de achar o caminho nos outros. Para mim as pessoas são
muitas vezes como casas com as portas abertas. E eu entro e vou deambulando
pelos corredores e pelos quartos, e cada casa tem por sua vez uma decoração um
pouco diferente e no entanto todas elas são parecidas. E cada casa deveria
transformar-se numa morada sagrada para Ti, meu Deus. E prometo-Te,
prometo-Te procurar no maior número de casas possível morada e acolhimento
para Ti, meu Deus.
Muitas pessoas são ainda hieróglifos para mim, mas vou aprendendo
devagarinho a decifrá-las. É a coisa mais linda que conheço: ler a vida das
pessoas.
“Não tenho saudades, afinal de contas estou em casa.” Aprendi muita coisa
nessa ocasião. Está-se “em casa”. Sob o céu, uma pessoa está em casa. Em cada
lugar deste mundo está-se “em casa”, quando uma pessoa traz tudo consigo.
Uma pessoa deve ser a sua própria pátria.
Uma pessoa deve viver consigo própria como se vivesse com uma multidão
inteira. E, interiormente, uma pessoa aprende então a conhecer todas as boas e as
más características da humanidade. E uma pessoa deve aprender a perdoar os
seus próprios defeitos, se é que quer perdoar aos outros. Provavelmente para
uma pessoa isto é o mais difícil de aprender: perdoar a si próprio os erros e
deslizes cometidos. Para tal é preciso em primeiro lugar aceitar, aceitar
prodigamente, que uma pessoa comete erros e deslizes. Gostava muito de viver
como os lírios do campo.
Às vezes pergunto-me, num momento difícil, como o desta noite, quais são os
planos que tens para mim, Tu Deus. E se calhar dependem das minhas intenções
para contigo, não?
Dá-me um pequeno verso por dia, meu Deus. E se eu nem sempre o puder copiar
por não haver papel ou luz, então hei-de declamá-lo baixinho para o Teu grande
céu, à noite, mas dá-me um pequeno verso de vez em quando.
[Mt. 6, 34 – não nos preocupemos com o dia de amanhã]. As coisas que têm de
ser feitas devem fazer-se e de resto uma pessoa não deve deixar-se infectar pelos
muitos medinhos e preocupaçõezinhas que são outras tantas moções de
desconfiança contra Deus.
Ser fiel a tudo o que uma pessoa iniciou num momento espontâneo,
demasiadamente espontâneo por vezes. Ser fiel a cada sentimento, cada
pensamento que começou a germinar. Fiel no sentido mais lato da palavra. Fiel a
si mesmo, a Deus, fiel aos seus próprios melhores momentos. E onde uma
pessoa está, ser totalmente, cem por cento ser. O meu “fazer” consistirá em
“ser”. Este é um ponto onde a minha fidelidade ainda necessita de aumentar e
onde eu mais falho.
Vou igualmente ter de aprender ainda esta lição e vai ser a mais difícil, meu
Deus: suportar o sofrimento que me impões e não aquele que eu própria
procurei.