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ENSAIO BIBLIOGRÁFICO

A Historiografia Sobre o Protesto


Popular: uma Contribuição
para o Estudo das Revoltas Urbanas
Marco A. Pamplona

Nos últimos 30 anos, a historiografia sobre o protesto popular teve um


desenvolvimento extraordinário. Tendo evoluído irúcialmente COIllO um sub­
produto de algumas tendências da história- social britânica, contou entre seus
criadores com historiadores do porte de George Rudé, Edward P. Thompson,
Eric J. Hobsbawm e Charles TilIy. Em algum momento, todos esses autores já
se haviam ocupado do estudo do comportamento coletivo e, em particular, das
sublevações dos ..&ru� pouco organizados social e politicamente. Em fins dos
anos 1950 e no início dos anos 60, eles forneceram, com suas inúmeras
afiunações perspicazes e insigbts, as primeiras contribuições significativas para
o que se convencionou chamar de história das multidões, da turba e de outras
fOffi1as de comportamento social consideradas igualmente "primitivas" 1

Em geral, esses estudos pioneiros trouxeram para o primeiro plano e


passaram a considerar seriamente diversas founas de protesto popular, com
freqüência subestin1adas e mal interpretadas pela historiografia tradicional.
Movimentos dassificados como ll1ilenaristas, banditismo social, das turbas
urbanas e das multidões revolucionárias, ludistas e outras práticas paralelas de
protesto social ilegal no campo e na cidade, deixaram de ser vistos como lutas
"de fora" da estrutura politica e da sua ideologia, que apenas superucialmente

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se articulavam às diversas histórias nacionais e por isso recebiam tão-somente


uma "nota de pé-de-página" nos vários relatos históricos considerados de
2
unportancta.
. • .

Como bem sugeriu a maioria dos autores mencionados acima, apesar


da falta de institucionalização de muitas dessas lutas, elas foram parte indivisível
da dinâmica da política nas sociedades em que ocorreram. Ademais, o fato de
esses movimentos nem sempre tornarem explícitos, desde o início, seus •

objetivos políticos, não invalida as implicações políticas que eles sempre


apresentaram. Se muitaS novas sugestões foram en caminhadas nessa direção,
muito ainda está, porém, por ser feito. A recuperação da relação desses
movimentos com a política - e, logo, com o Estado - não pode, ainda, ser
considerada plenamente desenvolvida na maioria desses trabalhos. Ao comen­
tam1os, a seguir, algumas das afimtações desses autores, buscaremos ressaltar
aqueles aspectos que julgamos, quando propriamente focalizados, poder ·nos

ajudar a entender os protestos populares urbanos na sua relação-com a política


e com a luta pela cidadania.
Pode-se dizer que foram as contribuições de George Rudé, no início
dos anos 1970, as que abriram definitivamente o campo para uma nova
abordagem metodológica do fenômeno conhecido como ação das multidôes.
Rudé seguiu o caminho previamente trilhado por George Lefebvre que, num
estudo pioneiro sobre as foules ,·évolutionnaires, publicado em 1934, criticara
severamente a psicologia de Gustave Le Bon e sua assuntida "irracionalidade"
das multidões. Substituindo, no estudo dos fenômenos das multidões, Ó pano
de fundo conservador, com freqüência racista e patológico, dos escritos de le
Ban, por um padrão de categorias sociais e históricas, Lefebvre estabeleceu uma

distinção radical entre o uso prévio e pouco explícito do termo, aplicado a


pouco mais do que qualquer ajuntamento público numeroso, e o uso mais
.3
controladG da noção de multidão, referida a tipos específicos de ação social
A abordagem de Rudé ampliou essas observaçôes de Lefebvre. Também
fundamentado no pressuposto de que as ações das multidões, ao invés de
sinô nimas de desordem irrdcional e patológica, podiam ser vistas como
envolvendo um propósito social, Rudé propôs-se pensá-las como parte inte­
.grante do processo social.
Para melhor precisar e cb.r sentido ao conceito de multidão, Rudé propôs
.
que se estabelecesse tanto a sua composição social (o que foi feito, em geral,
através da análise de listas dos detidos, mortos e feridos nos conflitos) como os
seus principais objetiços e "alvos" (o que foi feito acompanruindo-se uma
cronologia a mais acurada possível do comportamento da multidão). Buscou, .
ademais, avaliar o grau de sucesso dessas ações das multidões, levando em
consideração a investigação das variáveis que comumente afetam a intervenção

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A Historiografia Sobre o Protesto Popular

ou não das instituições legais encarregadas da repressão. A partir desse conjunto


de procedimentos - que não foram exclusivos de Rudé -, uma metodologia
para o estudo das multidões foi logo criada. Embora nào negando a existência
de um amplo conjunto de fenômenos fora da esfera do protesto social explícito,
envolvendo também as multidões, a atenção de Rudé dirigiu-se sobretudo para
aquelas ações do tipo das greves, rebeliões, revoltas ou insurreições e revolu­
ções. Como corolário, o tenno multidão tornou-se praticamente sinônimo de
protesto social, e muitas outras fonnas de ação coletiva foram deixadas de lado.
Tal foi o caso, como o próprio Rudé reconheceu, daquelas multidões que
casualmente se fOIlllavam como espectadoras de acontecimentos, das multidões
reunidas em ocasiões puramente cerimoniais - como em procissões religiosas
ou acadêmicas -, das multidões de audiência reunidas em torno de oradores e
competições esportivas, ou ainda daquelas que costumavam testemunhar as
demonstrações públicas de eficácia da lei - como nos enforcamentos da Place
de Greve, em Paris4 . .
Seguiu-se a esses desenvolvimentos metodológicos a associação prati­
camente integral da história das multidões com o protesto popular nas sociedades
recém-industrializadas e naquelas ditas "pré-industriais". A própria conexão feita
por Rudé entre o teIlno multidão e as breves arregimentações e reuniões de
homens e mulheres para protestar contra o elevado preço dos alin1entos ou para
destruir máquinas em fms do século XVIII e inicios do XIX , na Europa, mostrou-se
tão poderosa que ele mesmo sentiu-se pouco à vontade em usar a mesma
expressão para descrever OS movimentos de protesto mais disciplinados e
orquestrados da modema sociedade industrial, notadamente o movimento
operário. Outros autores acabaram partilha ndo com Rudé esse mesmo tipo de
associação temporal e espacial, e o tenno multidão continuou sendo bastante
problemático nesse sentido. Entretanto, apesar dos muitos impasses, a contribui­
ção fundamental dos procedimentos metodológicos de Rudé para o estudo do
protesto popular é impossível de ser negada. Em trabalhos subStantivos sobre a
história social européia de fins do século XVIII e irúcio do XIX seu tratamento
,

quer de revoltas fundamentais como a Revolução Francesa, quer de movimentos


específicos do tipo dos protestos contrd o preço dos alimentos nas cid4des, ou
.das insurreições no campo que desenvolveram prátiqls ludistas, peIlnanece uma
,

.
das evidências mais importantes dessa contribUição) '
Eric J. Hobsbawm, desde os anos 1950, também fez outras valiosas
contribuições para o desenvolvimento da historiografla sobre o protesto popular.
Em seus vários ensaios, Hobsbawm sempre se preocupou em enfatizar especi'!l­ •

mente a necessidade de se perceber a �eIll pre complexa relação entre as ações


coletivas, a transfo,m,13ção econômica e a reorganização polítiCa da sociedade
esludada. Algumas de suas.afinnações, entretaAto, nào ficaram ise.ntas de severas


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criticas, como a utilização do tenno pré-político iria posterionnente demonstrar.


Tal expressão, cunhada numa época em que a discussão sobre a consciência de
classe e sobre a liderança parecia deixar na somb!"à quaisquer OUtJ"àS conside!"d­
ções igualmente importantes sobre esses movimentos, trazia consigo, com
freqÜência, a tendenciosidade e seus próprios limites. O telmo pré-político serviu
para conotar sobretudo aqueles movimentos e aspirações em que as pessoas
envolvidas nào chegavam a elaborar uma análise coerente da sua situação, um
programa ou Urn.1 organi7-'lção. Os participantes desses movimentos, observou
Hobsbawm, foraln, na maioria elas vezes, pessoas simples ou comuns, desco­
nhecidas fora de seus círculos imediatos de relações ou comunidades locais.
Ademais, ele acrescentou, foram "pessoas pré-políticas, que aind1 não tinham
encontrado, ou apenas começavam a encontrar, uma linguagem específica,
através da qual iriam expressar as suas aspirações em relação ao. mundo". A guisa
,

de conclusão, Hobsbawm lembrou ainda que, "embora os seus movimentos


pareçam sob muitos aspectos cegos e evasivos quando comparados aos de tipo
,
moderno, eles não são seIll in1portância ou sequer marginais., 6
Tal uso do terIllo pré-político, porém, não deixou de ser enganoso ou
de mostrar-se equivocado em dois asPectos. Primeiro, e apesar da breve
explicação de Hobsbawm reproduzida acin1a, o teImo pode implicar qüe as
ações coletivas em questão estavam 2penas tangencialmente relacionadas com
a luta pelo poder. Segundo, o tem10 também pode sugerir que os participantes
desses movimentos, ou não sabiam o que estavam fazendo ou, na menos' pior
das hipóteses, tinham menos consciência do que os "revolucionários" do século
XX. E aqui, devemos acrescentar, os traços de uma perspectiva teleológica
aparecem inevitavelmente.
Charles Tilly, nos anos 1970, num estudo conjunto com outros autores
sobre a Itália, a Alemanha e a França, tentou relacionar a reorientação da ação
coletiva aos processos de emergência de uma economia urbano-industrial e de
consolidação de um Estado nacional poderoso. Ao fazer isso, não poupou
criticas às telminologias prévias de Rudé e de Hobsbawm. Tilly considerou que
o tem10 pré-político dificultava a defesa de sua idéia principal nesse estudo; isto
é, a de que as ações coletivas analisadas eram simplesmente "o principal meio
fltravés do qual grupos carentes, con �ostos de pessoas comuns, podiam dar
fonna à estrutura de poder européia." Em seu lugar, apresentou uma tipologia
um tanto ou quanto detalhada do protesto social, mas tampouco isenta de
criticas, como
estabelecer uma conexão entre o processo de criação de novas solidariedades
(tais como estas últimas efetivamente se manifestaram através da ação coletiva)
·e a criação de novas estruturas de poder. Assim, Tilly substituiu o tem10
pré-político pelo que chamou de fonnas competitivas e reativas de ação coletiva.

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Concluiu que a transformação ou evolução de fonnas de ação coletiva de tipo


competitivo ou reativo para as de tipo pró-ativo (ainda confoIllle sua ternUno­
logia) teria acompanhado a crescente urbanização e industrialização e o
processo de formação de Estados nacionais burgueses, nos países em que se
deram os protestos sociais por ele estudados 8
Embora úteis, as tipologias de Tilly, como todas a� demais, mostraram-se
também problemáticas. Toma-se possível, no entanto, superar algumas de suas
limitações se reafirmaIlnos, desde o início, os seguintes pressupostos, OS quais
devem ser considerados seriamente no estudo de quaisqoer protestos populares.
Em primeiro lugar, no que se refere à temtinologia de Hobsbawm, deve ser
lembrado que, contrariamente a qualquer idéia equivocada que os teIlnos
primitivo ou pré-político possam vir a sugerir, todas as formas de protesto
popular analisadas até então sob essas expressões (as quais, certamente, não
foram as melhores encontradas) são parte integrante ou parcelas, elas próprias,
das lutas pelo poder e da dinâmica da sociedade a que pertencem.
Em segundo lugar, o fato de esses chamados movimentos pré-políticos
aparecerem como transitórios ou apresentarem um certo caráter desagregador,
revela-nos, acÍlna de tudo a posição politicamente subatterru:l (para usar ulna
velha expressão gramsciana) de seus participantes. Longe de condição "natural",
esse caráter transitório e desagregador é produto ou resultado. AssÍln, é tal posição
de subaltemidade que se toma parcialmente responsável pela escassa documen­
tação encontrada para o estudo desses ditos movimentos pré-políticos, OS quais
carecem da infoIlllação bem mais rica e mais contínua disporúvel, pbr exemPlo,
para o estudo das greves ou das organizações de trabalhadores industriais.
Expliquemos essa nossa afinnação com mais vagar. Com freqüência, os grupos
que tomavam parte nos movimentos ditos pré-políticos não se apresentavam
unificados, isto é, nào possuíam um Estado nem partilhavam uma unidade
cultural forte, como acontecia com os grupos e classes dominantes. Estes últimos
estavam, na maioria das vezes, em posições de mando ou governo na sociedade
e, não raro, se encontravam em condições, também, de fazer a história aparecer
como sua história, isto é, do"'seu" Estado e dos grupos pertencentes a esse Estado.
Diferentemente, muitos daqueles primeiros - porque peIlnanec,iam numa situa­
ção de subalternidade política - eram efetivamente "tornados" elementos "desa­
gregadores" e "descontínuos" na história do Estado e dos seus grupos. Por essa
mesma razão, a sua história, enquanto história das classes subalternas, via-se
necessariamente entrelaçada com a história da sociedade civil (ou do Estado lato
sensu.), e não com aquela da sociedade política (ou do Estado s/,.icto sensu)9
Segue-se daí a difícil tarefa do historiador que hoje lida com protestos populares
desse.tipo. Na maioria dos casos, na ausência de fontes preservadas, produzidas
pelos próprios sublevados, ele tem de se utilizar da mais ampla documentação

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possível, não importando a diversidade dos registros, com freqüência tendencio­


sos, da repressão e das descrições contemporâneas marcadas, via de regra, por

visões elitistas a respeito desses mesmos movimentos. Finalmente, também


compete ao hisloriador nào deixar de colocar em questão todas essas fontes, na

busC'à de uma abordagem mais proveilosa para cada caso.


Em terceiro lugar, como sói ocorrer com a utilização por Rudé do termo
multidão, também o termo movimento social, há muito popularizado por todos
esses autores, possui uma abrangência por demais ampla e um sentido
igualmente vago. Na realidade, o temlO compreende fenômenos mais diversos
e variados do que aqueles que buscamos enfatizar aqui, quando dele fazemos
uso. Nosso interesse nessa discussão restringe-se à historiografia do protesto
popular, e, mais precisamente, à do protesto de grupos politicamente oprimidos
- isto é, dos grupos e classes que se encontravam em situação de subaJternidade
e mesmo de dominaçào nas diferentes relações de forças (sociais, mas também
políticas) que, num dado tempo e espaço, caracterizaram as sociedades a que
pertenciam. Era sobretudo porque sofriam a constante pressào desorganizadora
dos grupos governantes e dominantes dessas soc. iedades que os revoltosos
careciam de representação política no nível do governo, quer a demandassem
e lutassem por ela quer não. Sob essas condições, privados de direitos mínimos
institucionaJizados e politicamente subalternos, .as sublevações episódicas e
dispersas desses grupos tornavam-se praticamente a sua defesa única e eficaz;
ou, ao menos, em tais situações, eles eram levados a acreditar que assim o fosse.
Em quarto e último lugar, também é inlportante descartar a sugestão
que o uso dos tennos pré-político, primitivo e reativo (em oposição a pró-ativo)
gera�nente implica. Qual seja, a de que os participantes desses movimentos nào
sabiam o que faziam ou eram, no míninl0, menos conscientes do que seus
congêneres "revolucionários" do século XX. Parece já temlOS hoje considerável
evidência de que os sublevados (para não falamlos das tropas enviadas para
reprimi-los) estavam seguindo, pelo seu próprio entendimento, com freqüência,
um procedimento sensivelmente pré-estabelecido. Quando Hobsbawrn nos fala
da "barganha coletiva através da revolta", ele torna claro exatamente esse ponto.
Tal expressão foi cunhada pela prinleira vez num artigo seu inicial sobre o
ludismo. Serviu para afillll3r que, à época em que as combinações eram
proibidas por lei, os trabalhadores que se sublevavam distinguiam na prática
entre o ato da pilhagem e o da "destruição justificada da propriedade". Neste
últin10 caso, dizia o autor, eles tomavam palte no que chamou de "barganha
lO
coletiva através da revolta".
Este último exemplo de Hobsbawm torna-se valioso para nós, na
medida em que nos ajuda a enfatizar a idéia do protesto como recurso político"
ou, ainda, a do "protesto através da revolta como forma de barganha". A revolta

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pode tornar-se, às vezes, o único caminho que restou para pressionar as


autoridades responsáveis e torná-las sensíveis aos infortúnios dos sublevados.
Além disso, o exemplo também procede, na medida em que estabelece uma
distinção entre a pilhagem pura e simples e a destruição justificada de
propriedade. O teImo permite reconhecer, assim, a presença entre os revoltosos
daquilo que E. P. Thompson chamou de "noção sancionadora do direito". Tal
noção, segundo Thompson, náo foi atributo exclusivo de nenhuma fom1a
específica de revolta, mas pode ser encontrada em quaisquer fOllnas de ação
ll
popula r direta Posteriormente, os estudos de Herben Gutman serviram para
corroborar e desenvolver mais ainda essa meSIlliI afim13ção. Seus detalhados
ensaios sobre a classe trabalhadora none-americana demonstraram que, tanto
nos movimentos que advogavam o alívio imediato de uma situação tida como
ameaçadora, como naqueles outros que propunham mudanças n13is radicais e
fundamentais e.chegavam a colocar em cheque as hierarquias sociais estabele­
cidas, o propósito do movimento, qualquer que fosse, foi geralmente justificado
por "valores que transcendiam a ordem social particular que eles criticavam".
Dito de outro modo, é sempre fazendo uso dos "recursos ideológicos disponí­
veis, senso comum, costume e religião incluídos", que esses movimentos, como
,,12
Gutn13n bem perct;:beu, "reinterpretam o passado histórico. E, podemos
acrescentar, é apenas de posse desses valores que esses movimentos existem e
podem vir a atuar sobre a realidade.
Uma vez esses quatro pressupostos reafirn13dos, podemos fazer avan­
çar a idéia de que nas várias fom1as de protesto estudadas sob o epíteto de
movimentos pré-políticos ou primitivos, nào apenas a relação com a política
pode ser destacada, mas também a presença de uma cena noção legitimadora
do direito.pode ser largamente confinl13da. .
O exemplo do milenarismo medieval é bastante esclarecedor a esse
respeito. O estudo de NOllllan Cohn, que tratou do protesto popular na Europa
Medieval do século XI em diante, serve para nos relembrar que conflitos sociais
e políticos não devem ser subestin13dos simplesmente po(que se apresentam em
tem10S religiosos. Não exclusivos do milenarismo, diz-nos o autor, foram também
pane desses movimentos a aceitação da imagem de um mundo totairnente
perverso e a sua contràpartida, a fé recorrente e entusiástica dl! um mundo novo
de perfeição, no qual OS malfeitores seriam destruídos e o rebanho de verdadeiros
crentes ingressaria num reino de perfeita bondade e felicidade. Tal crença num
futuro fundamentalmente diferente do presente é, sabidamente, há muito
encorajada pela tradição cristã. O desespero radiC'al em relação às condições
presentes e a esperança em relaç.l0 ao futuro são facilmente, e sob cenas
circunst..�ncias quase que exclusivamente, vistos dn tellnos religiosos. O milena­
rismo medieval realizou completamente essa operação através das concepções

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religiosas que propagou. Ao rejeitar radicalmente a comunidade religiosa exis­


tente tal qual ela era defmida pela Igreja e ao desejar o advento de um mundo
totalmente bom, o milenarismo, particularmente, pode ser visto como constiruin­
do o que Nonnan Cohn chamou de "paráfrase religiosa da não-cooperação" ou
da oposição explícita de um povo contra os seus governantes. 13
Os tipos de protesto social caracterizados por Hobsbawm como
banditismo social também evidenciam, a seu modo, a presença de uma certa
noção legitimadora do direito. No entanto, esses movimentos foram, em
conlr'dste com O radiC'dlismo milenário, respostas fundamentalmente seculares
e conservadoras a poderes governantes acusados pelos revoltosos de interferir
nos modos de vida costumeiros e tradicionais que eram estabelecidos até então
em larga medida, independentemente das instituições ditas governamentais. Foi
sobre essa base que os bandidos sociais, descritos por Hobsbawlll e outros
autores, com freqüência puderam encontrar suporte ilícito entre os habitantes
de seus vilarejos e comunidades de origem. Pela mesma razão, camponeses e
pequenos aldeãos se viram, na maioria das vezes, inclinados a aceitar esse tipo
de banditismo durante o tempo em que.el e demonstrasse uma adesão aos seus
próprios códigos sociais e costumes. Desenvolvendo-se a partir desse quadro
inicial, dois tipos bem diferentes de banditismo social têm sido discutidos, cada
qual apresentando palticularidades notáveis.
O primeiro, o de tipo romântico, comumente simbolizado e idealizado
por Robin Hood, foi inicia�llente um produto de sociedades camponesas. Sua
ocon'ência deu-se, em geral, naqueles momentos em que o equilibrio tradicional
dessas sociedades se encontrou ameaçado, especia�nente durante ou após oS
. períodos de intensa privação material. Longe de revolucionálio, não protestou
contra as desigualdades ou a pobreza e opressão sofridas pelos camponeses.
Como bem argumentou Hobsbawm, sua função prátiC'd foi, no melhor dos casos;
a de impor certos limites à opressão tradicional numa sociedade igua�llente
tradicional. Na verdade, fenômeno bem mais comum e mais duradouro do que
se admite, o bandido social desse tiP.9 foi com freqüência produzido por
sociedades rurais na busCa de lml campeão ou protetor, em quem seus membros
pudessem depositar a esperança de correção de males comumente praticados
durante períodos de excessiva pobreza e opressão. Como bem ilustra o caso
do arquétipo do bandido social, Robin Hood, esses rebeldes são recebidos como
heróis que realizam, através das suas ações, muito daquilo que os demais
membros da comunidade, em sua maioria, temem ou não se acham capazes
de fazer. Não deixando de ser, ao seu modo, um meliante do tipo Church and
King, o bandido social resiste it lei e ao governo; pode roubar do rico e dar ao
pobre'e pode demonstrar, em fusão com a' sua coragem e bondade pessoal,
uma implacá v..l rudeza justificada como necessária em resposta à maldade

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daqueles indivíduos e poderes marcados para serem extemunados. Entretanto,
suas ações individualizadas nunca são suficientes para ameaçar seriamente ou
abalar os poderes estabelecidos na sociedade. De fato, o efeito disnlptivo que
esses movimentos exercem sobre o poder dos líderes políticos locais poderia
ser mell10r entendido se analisado quer à luz da presença freqüente do
banditismo social, de tempos em tempos, nas áreas n1rais, quer à luz da relativa
instabilidade de certos poderes regionais em áreas n1rais mais atrasadas. Tal
instabilidade é percebida, por exemplo, quando tais líderes regionais passam a

ser considerados no quadro maior das relações de poder nacionais, se o tem10
l
for aplicável) entre os gnlpos donlinantes eles próprios
O segundo tipo de banditismo social esboçado por Hobsbawm teve o
seu exemplo na Máfia do século XIX. Como no primeiro tipo descrito, aqui
também vieram mesclados, em diferentes doses, o populismo e o conservado- .
rismo. Como os bandidos, também os mafiosise
áreas atrasadas politicamente e em comunidades n.lrais indefesas, onde rapida-
mente tomaram o lugar de movimentos sociais. Em confom1idade com essas
condições, a Sicília n1ral proveu o caso nmis interessante e duradouro desse
l6
fenómeno Movimentos mais complexos, as Máfias incluíram elementos mu-
tuamente contraditórios e foram capazes de alticular quase todos os tipos de
tendências existentes no interior das sociedades a que pertenciam: a defesa de
toda a sociedade contra o que percebiam como ameaças ao seu modo de vida
tradicional, as aspírações das várias classes no seu interior, as ambições pessoais
e as aspírações dos seus membros individuais mais ousados. Na Sicília pelo
menos, o seu desenvolvimento também estabeleceu um meio de defesa contra
o explorador estrangeiro - sin1bolizado pelo governo Bourbon ou Piemontês -
e, conseqüentemente, um método de auto-afinnação local e nacional. Durante
o tempo em que a Sicilia.pennaneceu uma sociedade retrógrada subordinada a
um governo externo, o caráter assunudo pela Máfia, de uma conspiração nacional
I7
pela nào-coopéração, .deu-Ihe uma genuína base popular
Num certo sentido, pode-se dizer que a Máfia surgiu das necessidades
de todas as classes sociais n1rais, e que tentou servir ao propósito de todas em
diferentes graus. Algumas vezes, assemelhando-se ao que poderia ser chamado
de um governo "privado e paralelo", as M;jfias foram organizadas com o apoio
de proprietários de terra que, embora pagando alto preço por isso, as usavam
para fazer oposição ao governo nacional e estender o seu próprio donlinio sobre
a população. Por se desenvolverem em sociedades onde inexistia uma ordem
pública eficaz, onde as autoridades eram l2ercebidas pelos cidadãos como total
ou parcialmente hostis, logo as Máfias aderiram ao poder estnlt:urado localmente
e mesclaram-se ao sistelna de palronagem predominante. Nele, o típico detentor
do poder, o magnata privado ou padrônecom o seu séquito de continuadores

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estudos históricos • -

e dependentes e a rede de influência que o rodeava - consubstanciada no


apadrinhamento - podia fazer com que muitos se colocassem sob a sua
proteção. 18 Por outro lado, os fracos - em sua maioria camponeses e mineiros
-podiam, embora de forma diferente, também se beneficiar da ação da Máfia.
Esta última lhes deu, ao menos, alguma garantia de que as obrigações entre eles
seriam mantidas e de que o grau usual de opressão não seria habitualmente
ultrapassado. Segundo Hobsbawm, a Máfia representou "o terror que mitigava
as tiranias tradicionais". Para além disso, acrescentou, ela apenas pode satisfazer
um certo desejo de vingança, pois tornou possível que ricos fossem às vezes
executa90s e que pobres, ainda que somente na condição de foras-<la-Iei,
pudessem reagir combatendo a exploraçào.19
A presença prévia da patronagem e a ausência virtual de qualquer outra
forma de poder mais constante ou sistemático, como foi o caso na Sicilia, ajudou
a proliferação de uma rede de gangues locais ou coshe - posteriormente
chamadas "famílias" -ligadas umas às outras de várias maneiras, que acabaram
garantindo o controle sobre detelillinado território. Ao lado do aparelho de
coerçãQ de que esse tipo de sistema "paralelo e privado" se utilizava, desen­
volveu-se, também, um conjunto complexo de rituais de iniciação, um código
de honra ou omertà e um código de comportamento enraizados numa série de,
digamos, tradições inventadas; isto é, de tradições tanto velhas como novas, que
tiveram papel extremamente importante na criação e difusão de um certo
c nsenso assim tornando aceitáveis as atividades da organização pela popula­
� �!O
çao local. Juntos, todos esses mecarusmos garantJram o controle dos habItantes
locais e o enfrentamento com os governos estrangeiros ou de fora. Por ter sido
o apoio dado pela população aos mafiasi
produto c4 coerção, mas por revelar-se consensual também, a linha divisória
entre o mero ato criminoso e o protesto social pode tornar-se aqui, com
freqüência, nebulosa ou tênue.
O terceiro tipo de protesto social estudado por Hobsbawm, sob a
categoria de pré-político, foi a turba da cidade. essa fonna de insurreição urbana
é, na verdade, a que mais nos interessa aqui e, conseqüentemente, será objeto
de discussão mais detalhada.
Expressão não apenas de conflitos urbanos por excelência, a turba é
sobretudo um fenômeno transicional.21 Isto é, ela foi característica da metrópole
pré-industrial clássica (noflnalmente uma capital, sede de U1na corte residente,
estado, igreja ou aristocracia -em geral era este o caso do Sul da Europa), mas
também sobreviveu ao novo mundo das cidades e indústrias do capitalismo
moderno. Assim, se é possível detectar a turba, com o seu menu. peu.ple ou
papaia minu.le, nas cidades parisienses e italianas nos séculos xvn e XVIII,

também é possível encontrá-Ia, com diferente intensidade, entre as primeiras

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A Historiografia Sobre o Protesto Popular

gerações da população industrial moderna nos países anglo-saxões no início


do século XIX, ao lado das manifestações políticas dos jornaleiros urbanos e
organizações de artesãos qualificados e das primeiras organizações de tipo
22
sindical de trabalhadores industriais qualificados. Tal caráter transicional
também deve ser pensado em relação a transformações políticas de mais amplo
espectro. As turbas urbanas não apenas ocorreram em períodos anteriores à
chamada era das revoluções democráticas liberais, mas conseguiram sobreviver
ao advento das repúblicas modernas e ao quadro institucional da cidadania
nacional, ambos responsáveis pelo aumento e pela eficiência cada vez maior
23
do aparato da ordem pública nos últimos dois séculos.
A questão da composição social da turba tem sido motivo de grande
polêmica e sua discussão dificilmente poderá ser feita prescindindo-se da análise
de casos concretos. Por ora, no entanto, para efeito deste ensaio, basta-nos uma
única observação de caráter geral - a saber, a de que a participação de classes
e grupos identificados com os pobres urbanos e, mais ainda, com os desprovidos
de direitos políticos, tem sido um traço constante desses movimentos. As revoltas
urbanas estudadas por Rudé, Hobsbawm e Tilly foram, em sua maioria,
comwnente caracterizadas, quanto à composição, por combinações específicas
de assalariados, pequenos artesãos, aprendizes, pequenos proprietários urbanos
e os chamados "pobres da cidade", de classificação nada fácil.(compreendendo
no seu conjunto o lumpenproletariado, mendigos , vagabundos etc.). Se tais
combinações constituíram traço notável desses movimentos, elas nào excluíram,
tampouco, a presença, por vezes difusa e transitória, de alguns elementos saídos
daqueles grupos comumente identificados com a dita "boa sociedade" - por
exemplo, aqueles participantes que Lionel Richards em seu estudo identificou
,,24
como os "cavalheiros com propriedade e posição No geral, porém, foi a
presença bem mais numerosa daqueles elementos acima indicados que pemutiu
distinguir as revoltas da turba das demais revoltas urbanas ou de outras menos
definídas grandes aglomerações de cidadãos. Nunca é demais lembrar que o
que estamos considerando em suma como o pobre urbano comum ou ordinário
está longe de ser reduzido simplesmente a um bando de criminosos soltos paf'à
a pilhagem, à "escória", à "canalha" e a outras expressões similares carregadas
de juízos de valor que, com freqüência, acompanharam a descrição equivocada
da turba, quando feita, em geral, por observadores que com ela não simpatiza­
vam. Essas muitas interpretações apenas tiveram como principal corolário a
concepção da turba como ''volúvel'', "inconstante" e "irraciona1'� o que pouco
contribuiu para fazer avançar a discussão sobre a sua dinârrtica. 5
Embora não inspiradas por ideologias específicas, as revoltas do tipo
da turba urbana encontraram expressão para suas aspirações usualmente nos
tem10S do tradicionalismo e do conservadorismo. Consistiram em violentos

225
estudos históricos . 1 996 - 17

protestos contra as condições existentes, geralmente com o propósito de


emendar ou endiieitar uma ordem pré-estabelecida; ordem essa que, confonne
a visão dos revoltosos, havia sido arbitrariamente transgredida ou abusada por
aqueles que exerciam a autoridade imediata. Seus alvos foram extremamente
variados. Fazendo uso da ação direta, os "pobres da cidade" se insurgiam para
alcançar um objetivo (quer de narureza econômica ou política), na suposição
de que as autoridades se sensibilizariam em vista dos seus movimentos e,
conseqüentemente, acabariam fazendo algum tipo de concessão m i ediata. A
ausência da fonnulaçào de uma idéia explícita sobre a política não invalidava
os propósitos sociais que eram evidenciados pelas ações dos sublevados. Em
muitos países, por exemplo, foram comuns revoltas contra o desemprego e pela
baixa do custo de vida. Preços elevados dos gêneros de primeira necessidade,
revendedores e cobrança de m i postos locais sobre o consumo tornaram-se
também, invariavelmente, outros alvos prediletos desses movimentos. Os ricos
e os poderosos (e algumas vezes os próprios representantes olkiais da cidade
ou do estado) também constiruíram, em muitos casos, os destinatários mais
m
i ediatos das ações dos revoltosos. Somaram-se a eles os estrangeiros, ou
simplesmente os de fora da cidade, servindo de pretexto yara o aumento
exarcebado de atitudes nativistas entre os revoltosos - e, assim, ajudando a
configurar uma estranha fonna de "patriotismo municipal" que também carac-
. 26
tenzara a turba urba na cl'asslc3, no passa dQ.
.

A ilceitação da ordem estabelecida por palte das revoltas envolvendo


a rurba urbana expressou d,: fomla notável O conselvadorismo desses movi­
mentos. Foi com base nesse traço que se tornou freqüente, na�nálises de vários
autores, enfatizar as semelhanças entre a turba urbana e as revoltas rurais do
tipo Church and King Destas últimas, as rebeliões dos camponeses russos no
século XVIII constiruíram o exemplo mais recorrente. Prevalecia a idéia de que
a autoridade do Tsar tinha sido abusada, e as demandas eram geralmente feitas
em nome da autoridade do mesmo. A crença de que o Tsar sempre fora um
"pai benevolente" que zelava pelo bem-estar do seu povo justificava plenamente
a oposição às medidas consideradas excessivamente opressivas. Uma vez que
se acreditava que um soberano justo sempre protegeria seu povo da opressão,
sendo até mesmo capaz de defender as demandas de justiça do camponês mais
pobre, a ocorrência de privações maciças para a população tão-somente podia
ser considerada evidência de que haviam abusado da autoridade do Tsar. A
rebelião tornava-se, nesse contexto, não apenas um direito, mas um imperativo.
Tal visão idealizada da autoridade absoluta implicava, outrossim, que
o povo, apesar de efetivamente excluído do exercício de direitos públicos
naquele tipo de sociedade, detinha ainda algum tipo de reconhecimento por
parte daquela comunidade política. As tradições consolidadas pelo cosrume

226
A Historiografia Sobre o Protesto Popular

eram a principal garantia desse reconhecimento. Elas serviam para manter viva
a idéia de que as "classes baixas" possuíam certos direitos básicos (entendidos
talvez como privilégios), conferidos ou outorgados a eles pelo governante
supremo. Tais valores do senso comum cumpriam o seu papel na legitimação
da ação dos revoltosos contra oficiais inescrupulosos e soberanos ilegítiÍnos que
violavam a velha ordem estabelecida. Pois, com base nesses critérios, até mesmo
o atual Tsar, se visto como diretamente responsável pelos sofrimentos do povo,
poderia vir a ser considerado um impostor. 27
Encontrado em vários países de tradições absolutistas, o movimento do
tipo Church and King não se limitou, porém, às populações caJ�ponesas. Tanto
antes como durante o início da industrialização, muitas sublevações de multi­
dões ocorridas em centros metropolitanos revelaram esse mesmo padrão de
revolta, que teve no legitimismo populista, confOlme observou Hobsbawm, sua
espinha dorsal.
Antes de continuallllos, cabe tecer duas importantes considerações. A
primeira delas diz respeito à necessidade de se precisar melhor a noção <!e
legitimismo populista, sempre que referida ao contexto da modernidade. O
tratamento que Bendix confere a essa discussão parece-nos, sob esse aspecto,
o mais instigador. O autor n_os lembra que esse tipo de apelo legitimista a antigos
direitos e costumes assumiu um novo caráter na maioria dos países do Oeste
Europeu após o século XVI, quando se viu associado ao nascimento das
monarquias absolutistas e à série de práticas e atitudes identificadas com o que
chamou "os primeiros esboços do que, mais tarde, se tornaria o nacionalismo
- Moderno".28 O advento dos Estados Modernos, na sua versão absolutista, criou
as condições para a modificação, ritualização e institucionalização, com novos
propósitos, de várias práticas e costumes tradicionais existentes. Entre esses,
esteve certamente o paternalismo, que sofreu uma transfolinação gradual,
passando de justificativa de relações meramente domésticas (no sentido clássico
ou antigo) a ideologia de um governo nacional. Do mesmo modo, a imagem
do rei transfonnou-se, tornou-se menos aquela de um senhor acima dos
senhores, definidos todos nos marcos de uma nobreza feudal, e mais a de um
governante supremo da nação. Em suma, o já mencionado processo de
utilização de antigos materiais na construção de tradições inventadas, de um
novo tipo e para propósitos igualmente novos, esteve também aí em ação.29
Assim, a idéia dos antigos direitos do povo, que o legitimismo populista tão
bem soube sugerir, desenvolveu-se paralelamente à crença num governante
autocrático, que agia como "pai" de seu povo e que, por isso, podia suposta­
mente confiar na lealdade desse mesmo povo para ajudá-lo na sua luta contra
os estados. Mas, ao apelar para a idéia de uma comunidade política imaginária,
na qual o povo era envolvido (mesmo que apenas na condição de súditos ou


227
estudos históricos . 1996 - 17

cidadãos passivos), o legitimismo populista acabou se tornando, ao mesmo


tempo, contrapartida das práticas e ideologia do deSpotismo ilustrado. Daí se
pode sugerir que, _quando ao longo do século XVIlI a idéia do povo como
cidadãos emergiu, tal ideia se desenvolveu não exclusivamente em oposição ao
Ancien Régime, mas também como parte intégrante, ela mesma, da ideologia
d-o paternalismo autocrático. a qual, em alguma medida, continuava e atualizava
. 30
a I· dela
' · de naClonali smo.
A segunda consideração diz respeito à questão do cenário urbano e de
como este contribuiu para moldar os limites desse legitimismo populista
expresso pela turba. Como já afi rmamos uma vez, tal qual os demais movimentos
de tipo Church andKing, a turba urbana caracterizou-se pela aceitação implícita
das hierarquias tradicionais e a preservação das nounas tradicionais nas relações
sociais. Porém, isso não impediu que, em penodos ditos revolucionários, a turba
pudesse (embora não necessariamente) assumir também o caráter de movimen-
, . 31
to reVQIUClonano.
.

Um traço bastante particular da turba urbana foi que mesmo na sua


fase, digamos, ludita, ela continuou sendo um tipo de protesto social que
dificilmente aceitava rótulos políticos de qualquer espécie. A turba não estava
comprometida com nenhum governante em particular, ou mesmo com um
sistema. Segundo Hobsbawm, bastava-lhe a exist&ncia simplesmente de urna

autoridade de governo ou de "um rei que exercesse essa função" (qualquer um


serviria) e de "regras para respeitar". Nesse sentido os participantes da multidão
urbana do tipo Church and King diferiram muito dos seus congêneres rurais.
Os camponeses da aldeia , observo� o mesmo autor, podiam aspirar a funcionar
enqllanto aldeia, dependendo apenas de um cõnsenso por parte de sua
comunidade. Caso o estado, a lei e os ricos que os exploravam e interferiam
em suas vidas fossem abolidos, os camponeses oderiam seguir existindo e até
prosseguir sem eles por um longo período.
E Inversamente, os revoltosos
urbanos que confonnavam a turba dependiam em grande medida das autori­
dades estabelecidas para o funcionamento e organização da cidade, para o seu
governo e para a provisão das necessidades de sobrevivência as mais elemen­
tares. Esse tipo de proximidade com o poder e a autoridade que caracterizou
o meio urbano acabou limitando o alcance ou abrangência dos protestos que
aí se desenvolveram; embora , ao mesmo tempo, favorecesse a sUa inupção
periódica. A presença constante dos poderes coercitivos.fazia com que aqueles
que protestavam não pudessem ir além de revoltas periódicas - usualmente por
objetivos limitados e de curto alcance - e que tais movimentos logo arrefeces­
sem . A aceitação tãcita por parte dos revoltosos, do góverno e dos provedores
de emprego, ou daqueles que efetivamente controlàvam o funcionamento da
cidade," era preferível à manutenção de uma situação de revolta por um tempo

228 •
A Historiografia Sobre o Protesto Popular

extremamente longo, tida como praticamente impossível. A destruição anárqui­


ca da cidade tornava-se uma solução ou resultado que raramente poderia ser
efetivado, e o retorno rápido à situação de normalidade era desejado com
freqüência. Porém, se o "legitimismo das barricadas" não podia ser levado às
suas últimas conseqüências, ou ao seu limite, ele podia ser, ao menos
temporariamente, transfollllado em realidade. Porque viviam em cidades e
capitais, os revoltosos urbanos, se comparados aos camponeses, necessariamen­
te pa rtilhavam visões de mundo e valores menos provincianos e, conseqüente­
me,nte, possuíam uma noção (e uma experiência também) mais precisa do que
era o governo, o poder, e do que significava tomar o poder. Tudo isso junto
também permitiu-lhes o protesto mais efetivo e mais freqüente.
A sublevação no contexto urbano foi sobretudo um modo de expressar
demandas políticas. Numa época em que a igualdade sofisticada do voto, ou das
urnas, não vinha sendo ainda considerada arma séria para o povo, o "legitimismo
das barricadas" pôde, modestamente, ser considerado suficiente. De um lado, a
ameaça pelm anente de revoltas servia para manter os governantes ao menos
inclinados a exercer o controle dos preços, a distribuir trabalho ou caridade, ou
mesmo a ouvir os seus mais fiéis comuns em outros assuntos. Além disso, o fato
de que as revoltas não se apresentavam dirigidas contra o sistema social pemtitia
à ordem pública manter-se surpreendentemente negligente, aos olhos dos
padrões modernos. De outro lado, o populacho podia também julgar-se, com
freqüência, satisfeito com a eficácia desse mecanismo para expressar suas
demandas, as quais não passavam de "pouco mais da mera supsistência, da
33
pequena diversão e glória consentida", e não requerer outras. O resultado dessa
relação peculiar, que expressou o conservadorismo de ambos os lados, foi a falta
de interesse na política institucionalizada moderna por parte dos pobres das
grandes cidades. Outrossim, foi igualmente essa mesma perspectiva, que visava
concessões imediatas por parte dos ricos e esperava a patronagem por parte dos
governantes, a responsável ou incentivadora das não raras maitifestaçàes de
"patriotismo municipal", contra os estrangeiros ou os de fora da cidade, que
também marcaram as revoltas urbanas do tipo Chttrch and King.34
Pode-se dizer que as grandes linhas desse quadro geral transfonuaram-se
bastante após a Revolução Francesa. Com a evolução da estrutura urbana ao
longo do século XIX - que tendeu à remoção dos ricos dos bairros ocupados
pelos pobres e à remoção de ambos dos distritos onde as atividades comerciais
e administrativas predominavam - e com a extensão do voto e de outros canais
institucionalizados para a luta política, a crescente sensibilidade dos governos às
revoltas nas principais grandes cidades tornou a formação e a revolta da turba
urbana clássica menos freqüentes. Somou-se a isso o advento de novas fonnas
de ação coletiva, que melhor pareciam expressar a nova era industrial e que

229
estudos históricos . 1996 - 1 7

tomariam, progressivamente, o seu lugar em importância. Ao invés das intenni­


tentes e curtas revoltas da turba, novas solidariedades e organizações mais
duradouras - especialmente as desenvolvidas entre aqueles que conformavam
a nova classe de tra balhadores industriais - passariam a caraaerizar o novo
cenário urbano, lado a lado com outros movimentos políticos igualmente novos.
As greves, ;tS organizações operárias e de partido, todas absorveram algo das
correntes jacobinas, nacionais, anarquistas e socialistas do decorrer do século
XIX e contribuíram, com diferente intensidade em diferentes lugares e épocas,
para forjar fOIluas de luta política distintas no novo mundo industrial. A criação
de novas solidariedades, que passavam de bases comunais para associacionais,
fez-se acompanhar também da criação de novas estruturas de poder. Isto é, teve
como contrapartida a modemização dos próprios aparelhos de estado, que, a
longo prazo, moldaram igualmente a luta política e transfoIlnaram, conseqüen­
temente, o caráter e a imPortância relativa daquelas formas de ação coletiva e
de revolta há muito conhecidas, que tein1aram, algumas delas, em sobreviver a
essas inúmeras mudanças.
Como já informamos, foi o reconhecimento' dessas transformações ao
longo da história que_ levou autores como os Tilly a ensaiar outras tipologias
3'
para a ação coletiva. Baseados em observações sobre o desenvolvimento de
três países do Oeste Europeu - Itália, Alen'lanha e França - durante a n1aior
parte do século XIX esses autores reuniram em seus trabalhos importantes
,

observações a respeito da estratégia da comparação no estudo das revoltas


populares. Um aviso, porém, não é den'lais. Para melhor nos beneficiaml0s das
contrib\.lições desses autores, é preciso atribuir menos importância às categorias
de tipo ideal que emergem como resultados dessas análises e n'lais atenção às
complexas e sofisticadas relações que eles estabelecem e desenvolvem, em cada
caso estudado, entre a ação coletiva, a emergência de un1a nova economia
urbano-industrial e a consolidação de Estados nacionais poderosos.
Resultam dessas análises duas idéias que, propriamente desenvolvidas,
apontam-nos asç5ectos decisivos na dinâmica das revoltas urbanas. A primeira
dessas idéias diz respeito à especificidade dos desenvolvimentos históricos
-analisados. A afmnação n'lais procedente, aqui, veio de Charles Tilly. Ele observou
que embora a mudança da ação coletiva de Un'la "base comunal" para outra
"associacional" tenha se dado em vários países europeus ao longo do séCulo XIX ,.

ela se constituiu, sobretudo, nun'la caraCterística do caso francés, onde deitou


suas raízes n'lais profúndas. O grau de urbanização e industrialização e, especial­
mente, os ajustes políticos únicos que n1arcaram a França da Revolução em diante
foram considerados os principais fatores impulsionadores dessa mudança. Juntos,
esses fatores transformaram radicalmente nesse país "a composição dos grupos
capazes de se envolver na ação coletiva, a sua organização interna, seus

230
A Historiografia Sobre o Protesto Popular

interesses, as ocasiões para a ação coletiva, a natureza dos seus oponentes e a


36
qualidade da própria ação coletiva, ela mesma. ,, É importante ressaltar aqui
que, tanto o envolvimento generalizado das populações em "estruturas de poder
nacionais, de produção, distribuição e associação", como as transfom1ações
subseqüentes que essas mudanças promoveram no caráter da ação coletiva,
foram nào o resultado de algum tipo de necessidade lógica ou funcional, mas
sim o resultado do desdobramento de processos históricos particular� ocorrido
em cada um dos países analisados da Europa ocidental, após ]800.37
Em outras palavras, o processo histórico de criação de novas solidarie­
dades e novas estruturas de poder não segue jan1ais regras gerais, na medida em
que nào há estratégias ou táticas a serem perseguidas, capazes de assegurar a
priori um dado desdobramento político desejado. Se é possível fazelmos alguma
afmnação de natureza mais geral sobre a relação entre governantes e governados
ao longo da história, esta é a de que os detentores do poder nunca consentiram
direitos sem pressão. Quando OS novos grupos sociais (da mesn1a fOIlna que os
velhos grupos que vivenciavam a perda do poder) lutaram pelos seus direitos,
o fizeram, com freqüência, violando a lei e recorrendo a ações de violência. No
entanto, a necessidade de conflitos abertos e violentos na luta rotineira pelo
poder, ou a possibilidade de efetivaç-do de algun1as demandas e objetivos por
meios pacíficos, legais (o que algun1aS vezes mostrou-se até mais eficaz),
dependeu, integralmente, da relação de forças precisa que as diferentes classes
e grupos sociais como um todo estabeleceram entre si, nwn dado tempo e lugar.
Infelizmente, esse vínculo das revoltas populares com uma relação de
forças específica, embora sugerido porTWy (especialmente quando ele menciona
o caso francês), nào foi totalmente levado em consideração quando o mesmo
autor apresentou as suas categorias de tipo ideal para a classíficação dos
movimentos sociais. E, aqui, reside o principal problema das categorias a-histó­
ricas empregadas por TWy. Tal classificaç-Jo, ao preocupar-se quase que exclu­
sivamente com os traços particulares dos movimentos sociais em si, revela Ufl1a
extrel11a rigidez quando deixa, por exemplo, de considerar a intervenção do que
E. P. Thompson certa vez muito propriamente chamou do "profundo e confli­
tuoso choque da experiência". Tal "choque" ou, mc;:lhor dizendo, relação, foi
posteriormente analisado por George Rudé em temlOS da fusão das "crenças
tradicionais" de UI11a cultura plebéia, n1arcada pelo costume, com a chaInada
"ideologia derivada" ou "de fora", de· uma cultura de elites ou de classes médias.
Na prática, como de fatei lembrou TIlompson, é essa possibilidade sempre
presente a que pode pennitir à multidão de tipo Church anti King tornar-se
jacobina ou ludita, ou fazer a I11arinha leal ao TsaI transfoffi1aI-se nUfl1a frota
bolclle.v ique insurrecta, mesmo dentro dos limites de um contexto dito "pré-in­
38
dustrial".

231
estudos históricos • 1 996 - 17

A segunda idéia importante a ser inferida a partir da leitura dos Tilly


relaciona-se à questão da extensão do voto e de suas conseqüências mais
imediatas para os grupos politicamente subalternos, em geral. O uso da
comparação mostrou-se de grande valia para a discussão. A experiência britânica
é mencionada, nesse particular, como principal contraponto às mudanças das
formas de ação coletiva efetivadas na França . Entre as diferenças significativas
pe
surgidas, que tornaram sui generis a ex riência britãnica, esteve o desenvolvi­
39
mento bastante rápido nesse país da política eleitoral em nível nacional.
Sabe-se que, mesmo quando controladas, as eleições deram efetivamente
alguma legitimidade à p,ática da assembléia, da associação e da discussão
pública deproblemas. Ademais, na medida em que se tornaram disputas abertas,
as eleições nacionais deram uma vantagem pecu liar aos interesses que já se
encontravarri organizados em torno de associações centralizadas. As campanhas
eleitorais logo ganharam importância, e sua presença favoreceu o princípio da
organização. Mais ainda, tornou o princípio da organização condição essencial
. para a luta política numa sociedade que atravessava rápidas mudanças. A
legalização; como afirmou Charles Tilly, deu grande impulso à força e contimii­
dade das associações e tornou-as fenômeno generalizado. A organização
conferiu às pessoas mais força na demanda de seus direitos. A aquisição desses
direitos favoreceu, por fim, o uso extenso dos mesmos para a fOffi1Ulação e
40
persecuçào de novas e velhas demandas.
Enfun, pode-se dizer que, no caso britânico, a extensão do direto de
voto tanto acompanhou como incentivou a legalização das associações da dasse
trabalhadora, e beneficiou-se, do mesmo modo, também da existência dessas
últimas. Tais desenvolvimentos não passaram despercebidos a E. P. Thompson,
que com maestria descreveu em seu trabalho as transfoI1naçõe� das trade unions
e associações similares em importantes instrumentos da campanha pela refolllla
que levou à expansão do eleitorado em 1832 e, posteriormente, em partes
constituintes mesmo do movin1ento de massas pela Carta 41 O fato de a
experiência britânica ter podido criar uma sociedade civil razoavelmente estável
ao longo do século XIX, sem similar na Europa Ocidental continental, nesse
mesmo período, .foi em grande medida o resultado desses desdobramentos.
::em a institucionalização dos conflitos e o crescimento de outras complexas
organizações de base associativa, a partir de então entendidas enquanto veículos
para a ação coletiva, seriam demarcadas as novas condições para as lutas pelo
poder nessa sociedade e seriam, igualmente, moldados os seus contendores.
Reservamos nosso comentário. final sobre a historiografia relativa ao
protesto social para algumas últimas observações percucientes de Rudé e de
Thompson a respeito da dinâmica desses movimentos. Como os demais autores
já referidos, Rudé também alertou seus leitores, com freqüência, contra as

232
A Historiografia Sobre o Protesto Popular

interpretações equivocadas da ações das multidões. Possuindo inquestionável


conhecimento dos casos concretos com que trabalhou mais exaustivamente, ele
discutiu problemas como a evidência de ambivalência em certas ações das
multidões (isto é, as formas sutis através das quais o protesto social coexiste e
se interrelaciona com o confollm llis o); a necessidade de se evitar o reducionismo
crasso do detelminismo da classe social (presente em todos aqueles que apenas
se contentam em equacionar diretamente fome com protesto, d<':ixando de lado
uma série de outros motivos de natureza religiosa ou ideológica igualmente
importantes) e a importância dos aspectos ideológicos e ritualísticos das revoltas
42
em contextos deterrninados Foi, no entanto, num seu trabalho de natureza
mais ensaística, mas de forma alguma de menor importância, publicado sob o
título de ldeology aruipopularprotest, que puderam ser melhor evidenciadas as
observações mais instigantes do autor sobre como o caráter e a natureza desses
movimentos costumam ser transfollllados pelas alterações ou mudanças nas
. 43
re1açoes
- entre as cIasses SQCJals. .
.

Nesse ensaio Rudé discute a ideologia como molho para a ação um -

pressuposto considerado fundamental para o entendimento das relações mul­


tifacéticas (econômicas, políticas e culturais) descritas entre os grupos estudados
,

e os demais grupos e classes que compõem a sociedade à qual todos


44
pertencem. Além disso, reforça a idéia de que é só quando trazemos para o
primeiro plano de nossa análise a re/ação deforçase passamos a ter em mente
o fato de que as disposições e os comportamentos de classe nào são fixados
apenas por interesses, mas por relações, que criamos a condição �ara tratalillOS
·
da dinàmica da luta de classes nas 'suas várias manifestações É sobretudo •

quando a ação está em jogo que a dimensão cultural dessas relações se torna
essencial. Thompson já havia, com muita propriedade, argumentado que "a
classe ganha existência à medida que homens e mulheres vivem suas relações
produtivas, expen'mentam situações determinadas, 'no conjunto das relações
sociais', de posse da cultura herdada e de suas expectativas e vivenciam suas
46
experiências em tel'mos culturaiS,. Ass\tn combatendo as freqüentes visões
estáticas a respeito da classe e recuperando a noção de luta de classes como
um conceito que lhe é anterior e mais universal, Thompson pode conferir à
fomlação social que estudou uma idéia de movimento e de dinâmica - algo
que permanece ausente em muitos dos trabalhos que vimos comentando. Como
ele continuou afirmando em outro lugar: "as pessoas se encontram numa
sociedade estruturada de deteffi1inadas maneiras (crucialmente, mas nào exclu­
sivamente, em relações de produção), experimentam a exploração (ou a
necessidade de manter o poder sobre aqueles que exploram), identificam pontos
de um interesse antagônico, começam a lutar em torno dessas questões e no
processo da luta se descobrem enquanto classes e começam a conhecer. essa

233
estudos históricos • 1996 - 17

descoberla como consciência de classe. A classe e a consciência de 8.asse $ão


sempre o último, não o primeiro estágio, no processo hi$tórico real.,,47
O mérito de Rudé nessa discussão é que, embora não desenvolvendo
plenamente essa relação, ele ao menos apontou-no$ um fértil caminho a seguir,
ou deixou-nos uma porta semi-aberta. Em suma, podemos dizer que j á estão
criadas as condições para tentar "trazer o E$t::Jo de volta" par-à a história social,
como diria Theda Skocpol . Cabe-nos, agora. trilhar esse caminho e propor novas
indagaçàes, na tentativa de elevar a discussão e estabelecer novos parâmetros
para análises posteriores.48 .

Notas

1. Ver ial George Rudé, 71Je crowd in lhe Balldils (NY, Pantheon Books, 1981; 1st
French Revotution. eNY, Oxfard Univ. pub. 1%9) e Caplain Swing (London,
Press., 1959); 7be crowd in bislory a Lawrence and Wihan, 1%9), este último
study o fpo pular disturbances in Prance em colaboração com George Rudé; e idl
and Englarul, 1 730-1848 (NY, John Charles Tilly, Louise Tilly e Richard
Wiley & Sons, 1964); "TIle Gordon TiUy, 7be rebel/iaus cemllry, 1830-1930
riot5: a study of the rimers and their (Cambndge, Harvard Univ. Press, 1975).
victims", Transactions O/lhe Royal
2. Palâ uma crítica a esta tendência na
Hislorical Society, 5th senes, VI, ( 1 956),
historiografia latino-americana ver os
p. 93-114; "The London mob of the
aItigos de limar R. Mattos, "Canudos: a
eighteenth century" , Histon'caljol trnal,
hislÓria em notas de pé-de-página?"
XI, I, (1959) p. 1-18 e "The study of
Revisla ConlaClO 35, ano IV (981), e
popular disrurbances in the
Marco A. Pamplona, "Movimentos de
'pre-industrial' age", Historical Studies,
massa na história da América
Melboume (May 1963), p. 457-469;
Espanhola: as revoltas de Tupac Arnaru,
Edward P. Thompson, 7be making 0/rbe
1780-82," Revisla Contacto 37, ano IV
EIlglisb workillg elass (NY, .
(1981), p. 31-33.
Vintage/Random House, 1%6); "n,e
moral economy of the English crowd of 3. Gustave Le Bon, Psychologie des
the 18th century," pasrand Presenl 50 fOllles (Paris, 1895) e Georges Lefebvre,
(May 1971). p. 76-136; "'Rough music': "Foules .révolutionnaires," em G . Bohn,
le charivari anglais," Annales: G. Hardy e G. Léfebvre, !.afoule CParis,
Économies, Sociétés, Cívilisatio1lS, 1934), também reeditado na coletânea
XXVI1eme année, 2 (Mars-Avril 1972), p. organizada por]. Kaplow, New
285-312; "Patricilin society and plebeian perspectives ou fbe rrencb Revolution
culture," joumal ofSocial /-listar)! 7:4 (New York, 1%5), p. 173-90.
(Summer 1974) e "Eighteenth-century
4. Rudé, 7be crowd i" bistory, p 4.
English society: e1ass srruggle without
e1ass?" Social History iii:2 (May 1978), p. 5. Rudé, 7be crowd In the Prench
137-165; iC] Eric J. Hobsbawm, Primitive Revolutio1l; Rudé e Hobsbawm, CaplUin
rebels CNY, Norton & Comp. Inc., 1959); Swing

234
A Historiografia Sobre o Protesto Popular

6. Hobsbawm, Prlmitive rebels, p. 2. 12. Herbert G. Gutman, Work, cu/nlre


and societv in indl.lstrializaing Ameriça
7. Charles Tilly et aI., 7be rebellious (New York. Vintage Books/Random
ce"tury.. 1830-1930, p. 290.
House, 19771 1st pub. 1966), p. 86.
8. Na tenninologia de Tilly, o novo tipo 13. Norman Cohn, 7be pur
s... it oflhe
de ação coletiva (a pró-ativa) difere das millellium (New York, Oxford Univ.
variedades competitiva e reativa sob os Press, 1970 1 l' pub. 1957) e "Medieval
seguintes aspectos: entre as millenarianism: its bearing on the
características da fonna pr6-aliua comparative history of millenarian
estariam: a tentativa de controlar movements," em Comparative studies in
diferentes grupos na estrutura nacional,
socie(v and history, Supplement n (The
mais do que resistir à açào destes
Hague, Mouton Co., 19(2), p. 31.
mesmos grupos; a constituição de
associações relativamente complexas e 14. Hobsbawm, Prlmltive rebels, p.
com propósitos específicos. elll lugar de 24-28.
.
aSSOClaçoes meramente comumtanas; e 15. Ver a respeito o artigo de Linda
. - . ...

a articulação mais precisa de objetivos, Levin, "The oligarchical Iimirations of


programas e demandas' dos elementos social banditJy in Brazil, the case of
envolvidos no protesco. Um outro traço 'good' thief Antonio Silvino," Past arld
contrastante seria ainda, no caso das Frese"t 82 (Feb 1979), p. 1 1 6-146.
ações coletivas pró-ativas, a maior
ênfase que es[3.S confeririam à noção de 16. Hobsbawm, Prlmilive rebels, p. 43.
direilos devidos como resultantes da 1 7. Ibid., p. 41.
existência de princípios gerais
presumidamente aceit� por todos. Nas 18. Ibid., p. 33 e 35. Tal tonua de
parentela implicava obrigações múruas
fonnas reativas, diferentemente,
as mais solenes entre as partes
prevaleceria apenas a indignação sobre
contrarantes. O exemplo congênere
a perda de direitos especif1cos efou
brasileiro nas áreas rurais menos
privilégios. Consultar, para maiores
deSenvolvidas - o apadrinhamento ou
detalhes, ibid., p. 249 e 252-253.
compadrio - já foi magistralmente
9. É impoJtante lembrar ao leitor que a descrito por Maria lsaura Pereira de
distinção estabelecida entre sociedade Queiroz, O nzandonismo local na vida
civil e sociedade política é entendida política brasileira (SP, lnst. de Esrudos
aqui como uma distinção metodológica, Brasileiros, 19(9) e Victor Nunes Leal,
e não de narureza empirica. Ver a esse Corrmelismo, l!1lxada e voto (SP, Ed. -
respeito: Antonio Gramsci, Quadem i deI Alfa-Omega, 1975).
eareere, vol 2, p. 763-64; vol. 3, p.
1 565-66 e 2302; Christine 19. Hobsbawm, Prlmittve Rebels, p. 4 1 .
�uci -Glucksman, Gramsel et l'Élat 20. Ao fazer uso da expressão tradições
(Paris, Fayard, 1975), p. 427-34 . inven.tadas, queremos enfatizar aqui
sobretudo a idéia de que as tradições
10. Eric J. Hobsbawm, 'The machine
novas não SÓ podem comó de fato se
breakers," Pasl and Fresent, I ( 1952), p.
utilizam de velhos materiais. Ao longo
57-70.
desse processo, práticas tradicionais e
11. A citação literal de Thompson é, cosrumeiras são geralmente
"Por trás de toda forma de ação direta modificadas, rirualizadas e
popular, há sempre alguma noção instirucionalizadas para ate.nder a ndvos
legitimadora do direito". 7be mal..,�·n8 of propósitos. Ver para detalhes o artigo de
tbe Englisb working elass, p. 68. Hobsbawm, "Inventing traditions",

235
estudos históricos • 1 996 - 17

publicado em Tbe /rwenlioll 01 27. lbid., p. 120-121 e Bendix,


tradilioll, editado por E. J. Hobsbawm e Nation-building and cilizensblp, p.
Terence Ranger (Cambridge, Cambridge 53-55.
Univ. Press, 1983), p. 1-14. 28. lbid., p. 56. •

21. Ver Reinhard Bendix, 29. Hobsbawm, "lnventing traditions",


Nation-buUding anei citizcnship: studies
.
p . 6-7 .
01our cballging social order (Berkeley, 30. Tal sugestão é discutida por Bendix
Univ. of California Press, 1977; l' pub.
em seu trabalho. Segundo este autor,
1962), p. 56. O uso que fazemos da
"os apelos do legitimismo popular e a
expressão transicional é, no entanto,
pretensão dos déspotas esclarecidos em
um pouco distinto daquele feito por
aparecerem como 'pais do seu povo' e
Bendix. Para este autor, a expressão é
ao mesmo tempo os 'primeiros
considerada sinônima do que ete chama
servidores do Estado' são precuISSOres
de "Iegitimismo populista" termo este
do igualitarismo e do Esrado-naçào em
I

que compreende, por sua vez, outras


sociedades marcadas pelo privilégio
variadas fonnas de revoltas populares,
hereditário e por grandes diferenças de
tanto urbanas como rurais. Nessa sua
condiçào social." Ver Bendix,
perspectiva, a turba da cidade e as
Nalion-bllüd/ng and citizensbip, p. 5 e
revoltas rurais do tipo Church and King
56. A respeito do nacionalismo,
como aquelas dos camponeses mssos
no século XVIII se identificariam consulte-se também Hans Kohn , 7be
-

idea 01 nalionalism (NY, Maanillan,


-

plenamente. Contrariamente, a nossa


1951), capo S, espedahnente p. 199-220
idéia de transidonal chama a atenção
mais para o fato de que estas fonnas e Benedict Anderson, Imagt'ned
communUies: rejlections on tbe orlgin
características das antigas ddades
mercantis puderam sobreviver ao muJ spread 01 nalionalism (l.ondon,
advento da industrialização e Verso Editions & NLB, 1985 / l' ed.
continuaram dCJX>is disso fazendo parte 1983), caps 3 e 4, p. 41-65 .
da vida das cidades modernas. 3i. Apesar dessa metamorfose ser
pouco comum, sua possibilidade nào
22. Hobsbawm, Prlmitive rebeis, p. 109 deve ser ignorada. Considerações
e 1 1 2: importantes a respeito de como as
mudanças nas relações entre as dasses
23. Bendix, Nalion-bllildillg and
sociais podem transformar e
cilizensbip, p. 56.
efetivamente transfom13J1l a narureza
24. Lionel L. Richards, 'Genrlemen 01 das revoltas urbanas desse tipo podem
Properry mui Stallding ': anti-abolilion ser en�ontradas ao longo da discussão
mobs in jacksonian Amerlca (New de Rudé sobre a multidão
York, Oxford University Press, 1970). revolucionária. Ver Rudé, Tbe crowd in
lhe Frellcb Revollltion, p. 232-239.
25. Ver as contribuições inidais da 32. Hobsbawm, Prlmilive rebels, p. 1 2 1 .
pSicologia- da multidão para a .
classificação da turba, Gustave Le Bon, 33. lbid. p. 1 1 6.
Psycbologie deslouJes (Paris, 1895), G. 34. lbid. p. 1 1 2.
Tarde, L 'Opinion el la101l/e (paris, 19(1)
35. Charles Tilly et at, Tbe rebelliollS
e E. A. Ross, Social psycbology (New
cenlury, ver especialmente os capítulos
York, 1908).
5 e 6.
26. Hobsbawm, Prlm/tive rebeis, p. 1 1 2. 36. lbid., p. 46.

236
A Historiografia Sobre o Protesto Popular

37. Ibid., p. 253. desse ponto. Sua análise descobre e


expõe o campo de pennanente tensão,
38. George Rudé, Ideology and poP"lar
ao invés de consenso - como criam
prolesl (NY, pantheon, 1980). p. 100 e E.
P. Thompson, "18th-cenrury English autores como Bemard Bailyn, 7be
society: c1ass strUggle wimout c1ass?", p. ideologica{ orlgins of the Amen'can
164. Revollllioll 0%7) , no qual a
-

dicO[omia entre os princípios da


39. Charles Tilly et aI., 7be rebelliolls
"virtude" e do "comércio" iriam se
cenlury, p. 276. Os autores hos
desenvolver e os juízos de valor da
lembram, a título de certa ironia, que as
época seriam organizados. Na verdade,
organizações sem precedentes dos
um conflito social precedeu a luta pela
agitadores da Refonna de 1830 a 1832
independência nacional e associou-se a
foram formadas, na verdade, tomando
por modelo a então bem-sucedida ela ou correu paralelamente à mesma
Associação católica de Q'Connel, na quando a revolução estourou. As
Irlanda. revoltas populares foram a expressão
mais comum desse conflito, tanto no
40. Ibid.. p. 278-280.
campo como nas cidades. Foram nestas
'41. E. P. Thompson, 7be makillg oflbe últimas, porém, que o envolvimemo
Ellglish working c/ass, ver especialmente com a política tomou-se mais aparente,
o capírulo 16. que a difusão dos slogans da ideologia
42. Observações sobre essas questões Countrv como "crenças tradicionais"
podem ser encontradas nos dois teve efeito e que a sua fusão com a
-

principais trabalhos de Rudé já citados, ideologia "de fora" ou "derivada" dos


71,e crowc/ in history, passim e 7be comerciantes e dos aristocratas
crowd in lhe Frel1cb Revolwioll, p. proprietários rurals pode ser melhor
231-239. Uma discussão similar também percebida. Rudé, Ideology alld popular
pode ser vism em Hobsbawm, Primitive prolesl, p. 95-100.
RebeL" p. 57-65 e 150-174: Quanto à
44. Infonnando a análise de Rudé está a
importância dos aspectos rirualísticos
idéia de que as pessoas não agem
das revo!w, vale consultar
simplesmente em tennos de limites
especialmente a análise de Davis sobre
as revo!cas na França do século XVI. A objetivos ou posições, mas também em
aU[ora demonstra aí como a abordagem tennos de aval iações aparentemente
do caráter religioso das revoltas pode subjetivas de limites, posições e
explicar muitas das fonnas ritualisticas e possibilidades. Ao fazerem isso, o
do conteúdo ideológico dessas subjetivo se torna objetivo, a cultura se
manifestações e também a própria torna lnaterial . A busca de uma
freqüência e duração dessas revoltas, as abordagem apropriada dessa relação
quais usualmeme ocorriam em entre "estrunu'3 e superestrunlra" foi
momentos importantes do calendário uma preocupação constanre nos escritos
religioso. Ver Natalie Zemon Davis, ''The de Antonio Gramsci, enquanto combatia
reasons of misrule: youth groups and quer as interpretações economicistas do
charivaris in sixteenth-cenrury France," marxismo, quer o idealismo
Pasl a/'ld Presem 50 (971), p. 74. representado pelo pensamento de
43. As observações de Rudé sobre a Croce. Ver a passagem "Rapporti tra
idelogia das multidões durante a struttura e superstruttura," em Antonio
Revolução Americana são Gramsci, Quadenzi dei carcere, vai. 1 ,
particulannente ilustrativas a respeito p. 455-465.

237
estudos hist6ricos • 1 996 - 17

45. Endossamos plenamente aqui a politizar as relações cultura s


i , lambém
sugestão de Thompson de que a classe se ocupou da mesma questão,
é sempre um tenno de junção: isto é, discutindo-a exaustivamente ao longo
" ela se faz tanto quanto é feita" e ela das suas anotações. Ver Gramsci ,
" acontece num proçesso em aberto de Quaderni dei carcere, vol. I, p . 462 e
relações de luta com oueras classes -
- vol. m, p. 1592.
ao longo do tempo:' E. P. Thompson,
47. E. P. TIlOmpson, "Eighteenth-century
"The poverty of theory," em Thompson,
English sociery:. cJass struggle without
7be poverty ojlheory and olher esstlVS
class'" p. 149. Grifo meu.
(London, Merlin Press, 1978), p. 299.
Ênfase no original. 48. TIleda Skocpol, "Bringing dle State
back in: strategies af analysis in currem
46. Ibid. p. 150. Grifo meu na última research" em Bn°'11gil1g Ibe State back in,
frase. Com esta última observação eds. Peter B. Evans, Dietrich
Thompson recupera, de certo modo, a Rueschemeyer e Theda Skocpol (NY.
comumente esquecida passagem do Cambridge Univ. Press, 1987; I' pub.
Prejácio de 1859, onde Maa insistia em 1985), p. 3-37.
dizer que os homens, de fato, tomam
consciência dos" conflitos econômicos
no terreno da ideologia. Gramsci, (Recebido para publicação em
posteriormente, na sua tentativa de março de 1996)

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