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Compreender as críticas à filosofia

analítica
Desidério Murcho

Alexandre Machado apresenta em “Preconceitos Sobre a


Filosofia Analítica” um contra-exemplo paradigmático a uma das
muitas ideias erradas que subsistem sobre a filosofia analítica:
que esta, ao contrário da filosofia propriamente dita, se
caracteriza por dar importância à linguagem. Esta ideia dá
origem à impressão vaga de que as expressões “filosofia da
linguagem” e “filosofia analítica” são quase sinónimas. O
Alexandre exibe um dos muitos contra-exemplos que refutam
esta ideia: um texto de Heidegger, que propõe uma análise da
proposição, e que propõe ser a reflexão sobre a linguagem uma
tarefa fundacional na filosofia; e poder-se-ia igualmente citar
Derrida ou Saussure. Williamson faz algo análogo no
artigo "Depois da Viragem Linguística?"; e, menos
incisivamente, Recanati já tinha insistido em ideias semelhantes
no artigo "Pela Filosofia Analítica". Alexandre cita também
outras ideias erradas sobre a filosofia analítica, facilmente
refutáveis por contra-exemplo histórico, o mais irónico dos quais
é a ideia de que os filósofos analíticos desconhecem a história
da filosofia — irónico porque quem afirma isto evidentemente
desconhece a história da filosofia analítica, pejada de contra-
exemplos óbvios, alguns dos quais são certeiramente citados
pelo Alexandre.

Contudo, parece-me que quando eu, Williamson, Recanati ou o


Alexandre enveredamos por este caminho dos contra-exemplos
estamos a não compreender o que os nossos colegas realmente
querem dizer. Quando Heidegger ou Derrida reflectem sobre a
linguagem, quando Hegel reflecte sobre a lógica ou quando
Husserl reflecte sobre a matemática, são lidos de um modo que
caracteriza a atitude filosófica que se opõe à atitude analítica.
Independentemente de estes filósofos terem ou não um
interesse primariamente cognitivo nos fundamentos da
linguagem, da lógica ou da matemática, quem não tem formação
analítica tipicamente não os lê ou interpreta ou comenta de um
ponto de vista primariamente cognitivo: o que conta não é saber
se as ideias destes filósofos são plausíveis, defensáveis,
cogentes, mas antes se são inspiradoras, interessantes ou
edificantes.

Uma boa analogia é com o cinema. Uma pessoa como eu vai ao


cinema primariamente para se divertir um pouco. Claro que
também tenho algum ganho cognitivo, mas esse não é o meu
interesse principal. Se à saída tivesse de preencher um
questionário sobre os pormenores técnicos da iluminação,
efeitos especiais, tratamento da cor, montagem, tipos de
câmaras usadas e de processamento de filme, etc., ficaria
muitíssimo aborrecido com essa abordagem redutora do filme
precisamente porque o meu interesse no cinema não é
primariamente cognitivo, nem estou interessado em aprender a
fazer cinema; tudo o que quero é ver coisas interessantes,
inspiradoras, sugestivas. Na melhor das hipóteses, farei
uma leitura ou interpretação do filme, e nessa leitura os
pormenores e minúcias são irrelevantes; tudo o que conta é
fazer uma leitura, uma vez mais, edificante, interessante,
inspiradora, sugestiva, etc.

Portanto, parece-me que quando se pensa que a filosofia


analítica é redutora ou linguística, ou seja o que for, há uma
verdade fundamental nesse pensamento que fica escondida se
nos limitarmos a apontar contra-exemplos óbvios e
paradigmáticos. E a verdade fundamental é que os filósofos
analíticos têm tipicamente um interesse primariamente cognitivo
nos temas que abordam — e mesmo que o não tenham, os seus
escritos são discutidos de um ponto de
vista primariamente cognitivo — coisa que é tida como
desinteressante, exótica e redutora por quem não tem formação
analítica.

Esta diferença de atitudes dá origem a outra incompreensão


importante. Quem tem formação analítica leva a sério as ideias
de Kant ou Descartes como tentativas teóricas que vale a pena
discutir; leva-as a sério de um ponto de vista primariamente
cognitivo. Claro, tais ideias também são historicamente
significativas, têm um certo valor estético ou literário, e podem
ser inspiradoras, sugestivas, edificantes, etc. Mas quem tem
formação analítica olha para essas ideias de um ponto de vista
primariamente cognitivo, perguntando-se se são plausíveis ou
não; e é por isso que damos tanta importância ao pormenor da
argumentação, da formulação precisa, da clarificação, da
exclusão de ambiguidades. Damos importância a isto porque
queremos saber se a teoria é verdadeira, e é isso que
primariamente nos interessa, ainda que secundariamente muitas
outras coisas sejam interessantes. Esta atitude é correctamente
vista como redutora por quem não tem formação analítica, pois
reduz a filosofia a uma actividade primariamente cognitiva.
Ademais, esta atitude é vista com genuíno espanto por quem
não tem formação analítica, pois parece uma ingenuidade:
parece que os filósofos analíticos pensam tolamente que tais
teorias podem ser levadas a sério, quando quem não tem
formação analítica considera que tais teorias não devem ser
levadas a sério, cognitivamente, porque a própria filosofia não
pode ser levada a sério, cognitivamente. Quem não tem
formação analítica pensa que a filosofia, tradicionalmente
concebida como uma actividade primariamente cognitiva,
foi superada ou ultrapassada.

Esta visão da filosofia como algo que foi superado enquanto


actividade primariamente cognitiva resulta de outro aspecto
interessante: o cientismo, essa ilusão cognitiva comum desde o
século XVII. Entre outras coisas, o cientismo é a ideia de que as
ciências como a física esgotam o domínio das actividades
primariamente cognitivas porque só se pode realmente
estabelecer teorias genuinamente verdadeiras usando os
métodos empíricos dessas ciências. Como em filosofia tais
métodos não se podem aplicar (pace a nova filosofia
experimental), a conclusão evidente é que a filosofia deve
abandonar as suas pretensões cognitivas tradicionais e tornar-
se uma disciplina literária, como Rorty defende explicitamente,
consistindo a actividade filosófica na invenção de conceitos,
como defende Deleuze, ou filosofemas. Este cientismo é muito
comum e surge mal se começa a tentar levar a sério qualquer
problema filosófico, seja junto de um cientista, de uma pessoa
sem formação académica ou de um filósofo sem formação
analítica: a reacção invariável, quando a pessoa finalmente
compreende que queremos realmente saber, por exemplo, o que
é a verdade, ou se Deus existe, ou se o aborto é moralmente
permissível, é declarar que isso é muito subjectivo e que
obviamente não se pode saber. O que as pessoas querem dizer
é que tudo o que não é susceptível de investigação científica
análoga ao que se faz em física não tem interesse cognitivo
porque nunca poderemos estabelecer qualquer verdade
objectiva, restando então fazer leituras edificantes, inspiradoras,
sugestivas.

A ideia de que na filosofia analítica não se dá atenção à história,


refutada pelo Alexandre, resulta parcialmente desta concepção
acognitivista de filosofia, e nenhuma refutação funciona se não
compreendermos plenamente a ideia original. Os filósofos
analíticos distinguem fortemente a história da filosofia da
filosofia. Fazer história da filosofia é esclarecer o que pensavam
os filósofos do passado; fazer filosofia é fazer o mesmo que eles
faziam — tal e qual como fazer história da pintura é muito
diferente de pintar quadros. Quando se tem uma concepção
acognitivista da filosofia é absurdo encarar um problema
filosófico como algo que subsiste por si, em vez de o ver como
um mero reflexo de uma mundividência historicamente
determinada. Do ponto de vista acognitivista não há problemas
filosóficos ahistóricos — há apenas os filosofemas que os
filósofos ao longo da história da filosofia foram elaborando,
porque interpretavam a realidade deste ou daquele modo, mas
nenhum desses problemas subsiste por si, independentemente
de um contexto histórico. Isto opõe-se à perspectiva analítica da
filosofia, segundo a qual os problemas filosóficos são como os
problemas matemáticos ou físicos ou sociológicos, subsistindo
por si, ainda que o modo como os vemos seja, como tudo o resto,
influenciado pelo nosso contexto histórico. Do ponto de vista de
quem não tem formação analítica, os problemas filosóficos são
apenas manifestações de um dado contexto histórico, e o único
interesse cognitivo que podem ter é saber como as pessoas do
passado encaravam certas coisas; os problemas em si não são
cognitivamente significativos, se forem retirados do seu contexto
histórico. Por esta razão, ver um filósofo analítico tratar um dado
problema sem fazer chamadas constantes à história da filosofia
parece tão absurdo a quem não tem formação analítica como
fazer crítica de cinema sem ver filmes, ou crítica de arte sem
falar da história da arte. Isto acontece porque se exclui desde o
início a ideia de que se possa hoje em dia, depois de séculos de
tentativas infrutíferas, resolver o problema do livre-arbítrio, por
exemplo; tudo o que se pode fazer é reler, reinterpretar,
comentar, parafrasear as ilusões dos filósofos do passado
acerca desse problema. Não se trata, note-se, de encarar a
história da filosofia como uma série de tentativas para resolver
um problema que é nosso, tentativas que temos de conhecer
para não voltarmos a fazer as mesmas teorias como se
estivessemos a redescobrir a roda — esta é a atitude analítica.
Trata-se, antes, de encarar a história da filosofia como o único
tipo de objecto legítimo de reflexão porque os problemas
filosóficos são meras ilusões cognitivas que exprimem apenas
as determinações históricas dos filósofos. É um pouco como
considerar que não se pode já compor sinfonias, porque todas
as sinfonias possíveis foram já compostas, restando agora
comentar e apreciar as sinfonias do passado, relacioná-las entre
si, reinterpretá-las, vê-las de maneiras diferentes.

Esta atitude, note-se, não é própria de muitos filósofos que não


têm formação analítica; afinal, não é exactamente isso que se vê
em Fichte ou Husserl ou Sartre ou Nietzsche. Nestes filósofos
não se encontra propriamente uma chamada constante à
história da filosofia, nem comentários copiosos dos filósofos do
passado. Mas tal atitude é própria do modo como estes filósofos
são estudados. Na verdade, qualquer destes filósofos pode ser
estudado analiticamente e fazer isso é analisar cuidadosamente
as suas ideias e argumentos para ver se funcionam. Mas isto é
precisamente o que parece redutor a quem não tem formação
analítica, e até ahistórico. Pois o que interessa a quem não tem
formação analítica não é saber se as ideias e argumentos destes
filósofos são plausíveis — isso é considerado uma ilusão
ahistórica — mas apenas apreciar as suas ideias como
expressões de uma personalidade, de um tempo histórico, de
uma cultura. Estes filósofos são lidos e interpretados e
comentados por quem não tem formação analítica como os
críticos de arte que vão ao Louvre e apreciam e falam e
comentam os pintores do passado, mas não pegam nas tintas
para pintar.
Contudo, se podemos ler analiticamente filósofos como
Heidegger, por exemplo, por que razão isso quase não
acontece? O que explica este fenómeno é a diferença de atitude:
quem faz filosofia analítica tem uma atitude primariamente
cognitiva, quem não tem formação analítica tem uma atitude
primariamente acognitiva. Esta diferença de atitude explica que
uns valorizem muitíssimo certos filósofos que outros
desvalorizam e vice-versa. Quem não tem formação analítica
valoriza pensadores como Heidegger ou Sartre ou Husserl ou
Nietzsche, ao passo que quem tem formação analítica valoriza
filósofos como Frege ou Russell ou Singer ou Rawls. Estes
últimos filósofos não têm praticamente interesse excepto
cognitivamente, por defenderem teorias e argumentos
cuidadosamente estruturados e cognitivamente relevantes,
ainda que errados. Se o que procuramos é um discurso
edificante, não é isto que se valoriza. O que se valoriza é o poder
sugestivo, a impressão de se estar a penetrar em mistérios
arcanos, ou a desmontar ilusões logicistas, ou seja o que for.
Num certo sentido, o que se valoriza é uma certa atitude textual-
religiosa, uma adoração da palavra, do rendilhado do texto. A
quem tem formação analítica parece que as declarações
misteriosas de Derrida ou Heidegger são ideias e argumentos
desinteressantes, expressos de uma maneira esquisita —
porque quem tem formação analítica lê esses filósofos de um
ponto de vista estritamente cognitivo, ou seja, redutor. O aspecto
textual-religioso, performativo, sugestivo — hipnótico, mesmo —
é desvalorizado, sendo antes encarado como um obstáculo
deliberado à discussão das ideias que realmente estão a ser
opacamente defendidas. Mas para quem prefere precisamente
o aspecto sugestivo, religioso e performativo dos textos dos
filósofos as ideias não são importantes em si — o que conta é o
modo como essas ideias são apresentadas. Um bom teste para
esta tese é pegar num texto de Derrida ou Heidegger ou
Nietzsche e acrescentar a palavra “não” ou o prefixo “im-” em
várias passagens centrais; para quem não tem formação
analítica isso não fará quase diferença, porque o poder sugestivo
e o aspecto performativo e religioso do texto fica exactamente
na mesma, apesar de o texto estar agora a dizer exactamente o
contrário.
Será verdade, rigorosamente, que quem não tem formação
analítica não tem um interesse primariamente cognitivo na
filosofia ainda que o tenha secundariamente? Apesar de esta
tese ser muito forte, parece-me verdadeira. O interesse primário
não é cognitivo, porque se o for o modo como se faz filosofia
está radicalmente errado. Interpretação e adoração de textos
alheios, paráfrases, leituras interpretativas, jogos de palavras,
rendilhados textuais — nada disto constitui o tipo de metodologia
remotamente adequada para tentar resolver problemas
filosóficos, para propor e analisar teorias plausíveis, para tentar
compreender melhor os problemas filosóficos. Mas é
perfeitamente adequado se o interesse que se tem na filosofia
não for primariamente cognitivo.

Note-se que nenhum interesse na filosofia pode ser


completamente acognitivo, mas apenas primariamente
acognitivo; mesmo deste ponto de vista, a filosofia tem um
interesse secundariamente cognitivo, pois aprende-se coisas
sobre o que os filósofos pensaram — aprende-se a fazer uma
leitura do modo como o conceito X é tratado pelo filósofo Y. Mas
estas leituras não são primariamente cognitivas porque para o
serem teria de se perguntar se esse tratamento que o filósofo Y
dá ao conceito X é adequado, defensável, plausível.

Isto conduz-nos a outro aspecto da impossibilidade de combinar


o modo primariamente cognitivo como a filosofia é encarada por
quem tem formação analítica com qualquer modo primariamente
acognitivo de encarar a filosofia. Dado que quem tem formação
analítica tem um interesse primariamente cognitivo nos
problemas, teorias, argumentos e conceitos da filosofia, as
competências valorizadas diferem marcadamente de quem tem
um interesse primariamente acognitivo na filosofia. Os primeiros
desenvolvem competências de análise, teorização e
argumentação intensas, recurso a contra-exemplos e contra-
argumentos imaginativos, atenção ao pormenor teórico e
argumentativo, capacidade de organização e explicitação lógica
do discurso. Os segundos não desenvolvem estas
competências, para as quais não têm qualquer uso, dado o
objectivo primário não ser a verdade, mas sim o discurso
edificante, interessante ou sugestivo. A lógica é vista como
irrelevante, pois não há qualquer interesse em saber se um dado
argumento funciona realmente, mas apenas se é sugestivo e
interessante, mesmo que seja uma falácia subtil. A competência
para teorizar — isto é, articular logicamente um conjunto de
proposições que visam resolver um dado problema — é
igualmente desvalorizada, pois toda a teorização é vista como
mera ilusão cognitiva.

Na verdade, quem não tem formação analítica interioriza um


conjunto de ideias que constituem poderosos obstáculos
epistemológicos para fazer filosofia de um ponto de vista
primariamente cognitivo: a argumentação e a lógica são vistas
como opressoras, a verdade como uma construção histórica ou
subjectiva, a filosofia como uma questão de atitude e a
objectividade como um mito ingénuo. Quem tem formação
analítica é então visto como um ingénuo que considera a
argumentação uma espécie de método científico para solucionar
problemas, a verdade uma coisa fácil de alcançar e a
objectividade uma banalidade. De facto, muitos filósofos
analíticos põem em causa os poderes ou a objectividade da
argumentação, a maior parte não usa explicitamente a lógica,
nenhum deles a encara hoje como um método científico para
solucionar os problemas da filosofia, e o problema de saber 1) o
que é a objectividade e 2) se existe tal coisa está em aberto
como tantos outros. O que acontece é que quem não tem
formação analítica não está interessado em discutir
explicitamente tais problemas — limita-se a pressupor uma certa
plêiade de ideias filosóficas acerca deles. Mas tem de o fazer
porque é essa plêiade que constitui a razão de ser da sua atitude
acognitivista perante a filosofia. Se acaso essa plêiade de ideias
filosóficas fosse encarada como susceptível de discussão e não
como um conjunto de verdades históricas óbvias, quem não tem
formação analítica seria obrigado a encarar a filosofia
cognitivamente, pois teria de se perguntar, perante cada ideia e
argumento de cada filósofo, se isso será verdadeiro ou plausível,
em vez de se limitar a apreciar tal coisa como expressão de uma
personalidade, de uma história, de um povo. A pergunta natural
que uma pessoa normal faz ao ler um texto especulativo, como
todos os textos filosóficos o são, é “que razões haverá para
pensar que isto é verdade, ou pelo menos plausível?”; mas se
uma pessoa aceitar uma certa plêiade de ideias filosóficas contra
a objectividade, contra a verdade, etc., essa pergunta fica desde
logo silenciada porque é encarada como ingénua, pois parece
pressupor que o progresso intelectual é possível fora de ciências
como a física.

Termino com duas diferenças cruciais de atitude de quem não


tem formação analítica, desta vez no que respeita à história e
não à filosofia. Quem tem formação analítica encara a história
como um domínio próprio de historiadores, e distingue
cuidadosamente o facto histórico plausível da especulação
histórica, que pode ser mais ou menos plausível. Quem não tem
formação analítica aceita geralmente especulações históricas
como se fossem factos graníticos, com o tipo de objectividade
que ela mesma nega às teorias e argumentos filosóficos.
Quaisquer afirmações sobre o modo como os gregos ou os
medievais ou os modernos (Mas quais? Os pobres e os
escravos, ou os filósofos e os ricos?) encaravam a verdade ou
isto ou aquilo são tidas como óbvias; afirmações sobre a
mudança histórica da época moderna para uma suposta época
pós-moderna, na qual todas as distinções firmes e finais são
postas em causa — excepto a distinção firme e final
entre modernidade e pós-modernidade, claro — são encaradas
como resultados científicos indiscutíveis, e não como o que
realmente são: teses filosóficas implausíveis que no mínimo têm
de ser cuidadosamente analisadas para ver se são verdadeiras.

A segunda diferença de atitude é esta: quem tem formação


analítica não encara a história da filosofia como se fosse a
história da física, mas é precisamente assim que esta é
encarada por quem não tem formação analítica; Kant, por
exemplo, é encarado como se tivesse descoberto que nenhuns
argumentos a favor ou contra a existência de Deus podem
funcionar, do mesmo modo que os químicos descobriram a
composição da água; Perelman é encarado como se tivesse
descoberto do mesmo modo científico e definitivo que a lógica é
redutora, e que toda a argumentação é fundamentalmente
metafórica, ou seja o que for que a afaste da racionalidade;
Nietzsche é encarado como se tivesse descoberto que a
verdade é um mito religioso e que Deus morreu; e — suprema
ironia — Kuhn e Feyerabend são encarados como filósofos que
descobriram (à maneira definitiva dos cientistas!) que toda a
ciência é relativa e irracional e indefinitiva. A ironia é que esta
atitude perante os supostos resultados filosóficos é
evidentemente instável, teoricamente, mas para o ver
claramente é preciso ter uma atitude primariamente cognitiva
perante a filosofia, pois só quando se tem tal atitude se
desenvolvem as competências de teorização, análise e
argumentação cuidadosas que permitem compreender tal
instabilidade.

Em conclusão, a minha tese é que nunca se compreenderá as


afirmações acerca da filosofia analítica de quem não tem
formação analítica se não compreendermos melhor o modo
acognitivo de encarar a filosofia. Ao passo que a filosofia
analítica encara a filosofia como teorização, argumentação e a
análise cuidadosa das nossas crenças, por mais queridas que
sejam, quem encara a filosofia acognitivamente procura apenas
um discurso interessante. Este discurso interessante não pode
estar totalmente divorciado de conteúdos cognitivos, pois isso é
impossível; e muitos desses conteúdos são obstáculos —
históricos e conceptuais — a qualquer atitude cognitiva perante
a filosofia; mas o que interessa deste ponto de vista não é, de
modo algum, teorizar, analisar e argumentar com respeito a tais
conteúdos, mas apenas apreciar essas ideias — estética ou
historicamente ou de qualquer outro modo. É um pouco como a
diferença entre ser pintor e ser apreciador de arte; o último quer
apenas adquirir competências que lhe permitam entrar no
Louvre e apreciar o que lá está, ao passo que o primeiro quer,
primariamente, pintar, ainda que também aprecie,
evidentemente, as pinturas do Louvre.

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