Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Anais Egressos 2013 Versao Final
Anais Egressos 2013 Versao Final
ANAIS
V ENCONTRO DE EGRESSOS E ESTUDANTES DE
FILOSOFIA:
20 ANOS DO CURSO DE FILOSOFIA DA UEL
Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da
Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina
ANAIS
APOIO:
Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina
Especialização em Filosofia Moderna e Contemporânea
Especialização em História e Filosofia da Ciência
Especialização em Filosofia Político-Jurídica
1
SUMÁRIO
PREFÁCIO
Maria Cristina Müller..............................................................................................5
RESUMOS
2
LUDWIG WITTGENSTEIN: OS JOGOS DE LINGUAGEM E A QUESTÃO DA
DÚVIDA
Leandro Sousa Costa
Bortolo Valle........................................................................................................................20
TEXTOS COMPLETOS
3
SARTRE: RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E LITERATURA
Ester da Silva Gomes......................................................................................................114
4
PREFÁCIO
5
plena Ditadura Militar e cidadãos críticos não eram desejados por um regime autoritário. A
Filosofia passou novamente a fazer parte apenas das disciplinas introdutórias dos vários
cursos existentes na Universidade.
6
Docente Efetivo de vinte e quatro – 24 – Professores e três – 3 – Professores
Colaboradores. Há três – 3 – cursos de Especialização Lato Sensu em pleno
funcionamento, são elas: Especialização em Filosofia Política e Jurídica; Especialização
em Filosofia Moderna e Contemporânea: aspectos éticos e políticos; Especialização em
História e Filosofia da Ciência. Em 2010, abriu-se o Programa de Pós-Graduação em
Filosofia – Mestrado – o que veio a consolidar a vocação do Departamento para a pesquisa
e a formação de novos pesquisadores em filosofia. Nesta data, o Departamento de Filosofia
conta com dezenove – 19 – Projetos de Pesquisa, dois – 2 – Projetos de Ensino e um – 1 –
Projeto de Extensão em andamento, com uma produção relevante que caminha a largos
passos.
7
I – Resumos e II – Textos Completos. Os Resumos totalizam quatorze – 14– trabalhos
apresentados e os Textos Completos totalizam vinte – 20 – trabalhos apresentados.
8
RESUMOS
9
PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE AS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NO
PIBID DE FILOSOFIA DA UEL
Fernanda Scheel
Universidade Estadual de Londrina
fernanda_scheel@hotmail.com
Ao deparar-se com uma sala de aula, professores sempre encontraram uma diversidade de
enfrentamentos e desafios a serem superados, para desempenhar seu papel de educador
com domínio e maestria. Atualmente encontram um quadro em relação ao qual não estão
preparados para realizar tarefas e lidar com situações que transformaram a sala de aula. O
professor assume múltiplas funções além de educador, torna-se administrador, psicólogo,
sociólogo. Trabalhando muitas vezes defronte à condições adversas em relação à
infraestrutura, materiais disponíveis, diversidade sociocultural, socioeconômica. Este tem
de se reinventar a cada dia para tornar suas aulas atrativas aos olhos dos alunos e da
própria instituição. Alcançar objetivos, traçar metas, planejar, encaixar-se em todas as
diretrizes e leis educacionais, fomentar o interesse dos alunos, encontrar meios de atingi-
los, estimulá-los, superando obstáculos como a realidade em que cada aluno está inserido.
Ser professor implica em fazer uso de todas as ferramentas possíveis, e da criação de novas
para realizar uma tarefa tão nobre, que é a de educar. Acredito que minha experiência no
PIBID, tem sido de extrema valia. Foi-me proposto que encontra-se uma maneira de
trabalhar com o ensino de filosofia de forma extracurricular, que chamasse atenção, que
atraísse, e estimulasse o interesse dos alunos pela matéria, e pelos conteúdos que são
ministrados em sala. Iniciei o projeto com um grupo de alunos que prontificou-se a
trabalhar filosofia por meio da música. Que após algumas reuniões com o supervisor,
opinamos por trabalhar com a música achando que seria uma abordagem versátil, leve,
jovial, envolvente, de modo a aproximar-se da realidade dos alunos. Nosso objetivo
principal era o de tornar o ensino menos maçante, espontâneo, e que nos aproximasse dos
alunos. Em grupo, nos dividimos, para que fosse possível trabalhar com todos os anos do
ensino médio. Fiquei responsável pelo segundo, que trataria dos temas relacionados à Ética
e Política. Dei início à pesquisa pelas músicas que pudessem estar relacionadas às aulas
previstas no planejamento, e para que esta procura se tornasse possível tive que estudar,
pesquisar todo conteúdo a ser desenvolvido. Assim, me aprofundando em assuntos,
filósofos, que passam por nós sem certa profundidade, pois não podem ser relacionados
aos nossos interesses pessoais, sem interferir na linha que decidimos seguir dentro da
graduação. Utilizamo-nos da música como facilitador do entendimento, esta também
ajudou-nos a simplificar os conteúdos que usualmente podem apresentar alguma
dificuldade na maneira de ser transmitido. Apesar da vaga experiência que tive, acredito
que o PIBID seja uma excelente forma de se conhecer a realidade encontrada hoje nas
escolas, não só pelo fato de poder adentrar a este ambiente mais cedo, e estarmos
respaldados por supervisores, mas também pelas trocas de experiências entre colegas, com
o supervisor. É muito válido e enriquecedor.
10
TEORIA CAUSAL: DA LIBERDADE E INDETERMINISMO EM HUME
11
O SIGNIFICADO DO AGIR MORAL EM KANT
12
HUME E DELEUZE: DA IMAGINAÇÃO À IMANÊNCIA
O objetivo deste trabalho será de esclarecer a relação da filosofia de Hume em parte de sua
teoria do conhecimento (impressão, ideia e imaginação) com o movimento do filósofo de
Deleuze. Para tanto, utilizarei a primeira Investigação e o Tratado da Natureza Humana de
Hume e a obra O que é a Filosofia? de Deleuze e Guattari. A teoria do conhecimento
humano de Hume pode ser dividida em duas espécies de percepções da mente, a saber, as
impressões e as ideias, sendo a primeira todas as percepções mais vivas e presentes à
sensibilidade do homem. Já as ideias são as percepções despertadas pelo raciocínio, pelo
pensamento. Ou seja, as ideias nada mais são que cópias de nossas impressões. São as
cópias das sensações que foram a nós proporcionadas pelo mundo dos sentidos. Portanto,
seguindo a tese de Hume sobre a diferença entre essas duas percepções pode-se afirmar
que jamais uma ideia surgirá em nossa mente sem que antes tenha passado por nossas
impressões, isto é, sem que antes as houvéssemos experimentado em nosso mundo, seja
por nossos sentidos externos ou sentimentos internos. Seguindo o mesmo raciocínio, ainda
segundo Hume podemos associar ideias advindas de diferentes impressões. Podemos
facilmente imaginar um objeto que na realidade, no mundo propriamente dito, não exista.
Como exemplo um cavalo alado. E o motivo de nossa imaginação facilmente construir tal
objeto em nossa mente é porque os objetos enquanto separados, cavalo e asas, são
conhecidos por nós. E apenas cabe à imaginação uni-los e nos dar a ideia de cavalo alado.
A hipótese que pretendo defender é de que Deleuze, conjuntamente com Guattari, faz uso
em sua filosofia desses três pontos centrais do conhecimento humeano para elaborar uma
espécie de síntese sobre qual seria o pensamento filosófico, isto é, qual é o movimento
realizado pelo filósofo na construção e manipulação de seus pensamentos. Deleuze, na
obra O que é a Filosofia? que escreve com Guattari, diz que o pensamento filosófico tem
como requisito três movimentos: a criação de conceitos, a invenção de personagens
conceituais e a instauração de um plano de imanência. No entanto, a invenção de personagens
conceituais não será objeto de minha pesquisa pela fraca ou, penso eu, nenhuma relação com meu
trabalho, portanto me limitarei à criação de conceitos e ao plano de imanência . Sendo assim,
apresento que Deleuze e Guattari seguem nesta obra, em certa medida, a mesma tese de
Hume quanto às impressões, como sendo as primeiras vias do conhecimento. E a criação
de conceitos nada mais é que, dentro de certos limites, a manipulação racional e singular
desse conhecimento, ou em termos humeanos, a própria ideia, cabendo à imaginação, em
Hume, preencher a mente com este conhecimento. Ou então, pode-se atribuir ao plano de
imanência de Deleuze o mesmo papel da imaginação.
13
SE A ANGÚSTIA É O PESO DO SOFRIMENTO O AMOR É A REPARAÇÃO
14
O CUIDADO EM HEIDEGGER E EM WINNICOTT
15
ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO E ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES
POSSÍVEIS DA PESQUISA DO ÚLTIMO FOUCAULT
16
SCHOPENHAUER E AUGUSTO DOS ANJOS: MONÓLOGO DE UMA
SOMBRA ACERCA DO MUNDO COMO VONTADE E COMO
REPRESENTAÇÃO
Este trabalho tem o intuito de apresentar uma leitura do poema Monólogo de uma Sombra
do poeta brasileiro Augusto dos Anjos à luz da obra O Mundo como Vontade e como
Representação do filósofo Arthur Schopenhauer. A leitura buscará na poesia de Augusto
dos Anjos, as influências da filosofia schopenhaueriana, como é possível constatar no
poema O Meu Nirvana em que Augusto dos Anjos relata o momento de criação artística –
no caso um relato do poeta – onde a redenção temporária oferecida pela Arte é descrita
como a “manumissão” de Schopenhauer. Além das referências de outros poemas do único
livro do poeta intitulado Eu, que podem justificar essa apresentação, temos a citação do
crítico de arte Anatol Rosenfeld, de sua obra Texto/Contexto, onde é dedicado um capítulo
à análise da poesia de Augusto dos Anjos, dizendo que alguns poemas são “inimagináveis
sem a assimilação do pensamento do filósofo alemão”, devido a influência do filósofo
sobre o poeta, que afigura-se “mais profunda do que a de Haeckel e Spencer”. Seguindo
essa linha de raciocínio foi escolhido o poema Monólogo de uma Sombra que se alia à tese
de Schopenhauer sobre o conhecimento submetido ao princípio de razão, que não adentra à
essência dos fenômenos do mundo, mas percebe somente a fugacidade da existência dos
objetos, bem como o próprio corpo; à Vontade, que nos indivíduos se manifesta como
ímpeto, movimento do corpo, bem como a satisfação das necessidades e quereres –
submetida ao princípio de razão suficiente, sempre interessada em conhecer o mundo para
satisfazer-se, e portanto, sobre o que escreve Schopenhauer no livro III de O Mundo...: a
Arte é a possibilidade de por ela encontrar um alívio momentâneo para a dor advinda da
roda dos quereres e necessidades que gira incessantemente.
17
RELATO DE EXPERIÊNCIA: A FILOSOFIA COMO FATOR PARA
PENSAR A FUTURA PROFISSÃO
18
RELATO DE EXPERIÊNCIA NO ENSINO DE FILOSOFIA E A CRÍTICA DE
HEIDEGGER À METAFÍSICA PLATÔNICA
19
LUDWIG WITTGENSTEIN: OS JOGOS DE LINGUAGEM E A QUESTÃO DA
DÚVIDA
Leandro Sousa Costa
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Bortolo Valle
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
leandro_kallas@hotmail.com
Este trabalho tem por objetivo apresentar algumas considerações sobre o papel da dúvida
na filosofia tardia de Wittgenstein. Sua filosofia apresenta-se em dois momentos distintos.
O primeiro momento volta-se para uma orientação sintático-semântica da linguagem já o
segundo momento volta-se para uma orientação pragmática da linguagem onde, certeza e
duvida terão seus desdobramentos a partir dessa perspectiva. Nesse sentido, certeza,
linguagem e dúvida estarão numa intrínseca relação. A certeza está inseparavelmente
ligada à nossa condição de humanos pois forma uma estrutura conceitual que instala-se em
nós. Através dela, molda-se o nosso conjunto de crenças. Esse suporte cognitivo nos
permite aplicar as regras no jogo de linguagem. O contexto sócio-cultural, por meio de
suas convenções primitivas e atuais nos permite organizar nosso sistema de crenças básicas
que se tornarão fundamento da nossa cognição. Através delas habilitamos os nossos jogos
de linguagem e, com isso, podemos lançar mão das inúmeras ferramentas disponíveis em
nossa linguagem, entre elas a dúvida. A dúvida ocorrerá somente quando houver elementos
suficientes para pressupô-la. É através do nosso conjunto de certezas que suscitaremos
questionamentos. A certeza é o fator básico para a construção de um sistema cognitivo de
crenças fundamentais, que se forma através da linguagem em um contexto. A dúvida, para
Wittgenstein, traduzida por expressões características de: “pensar”, “saber”, “crer”, não irá
designar qualquer tipo de processo interior, pois o ato de duvidar só poderá ser
compreendido na práxis cotidiana da linguagem. Ela, de fato, terá sentido apenas no jogo
de linguagem. Através disso, podemos aplicar a dúvida que, em certos jogos de linguagem
terá sentido, em outros não. Para o filósofo, usar expressões que, em sua gênese, remetem-
se à questão da dúvida só será possível e permitido em alguns jogos de linguagem. Pois só
é possível haver conhecimento onde a dúvida, de fato, tenha sentido. O que o filósofo quer
mostrar é que a dúvida torna-se legítima e ganha sentido, somente em uma estrutura em
que ela não é objeto de dúvida.
20
A SUBJETIVIDADE EM AUGUSTO COMTE
Sergio Tiski
Universidade Estadual de Londrina
sertis@uel.br
21
PRÁTICA DOCENTE NO ENSINO MÉDIO: A OLIMPÍADA DE FILOSOFIA
COMO EXPERIÊNCIA DE ENSINO E APRENDIZAGEM
22
TEXTOS COMPLETOS
23
O ENSINO DE FILOSOFIA COMO “QUESTÃO CLÁSSICA”
NA TRADIÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Filipe Ceppas
UFRJ (FE/PPGF)
filcepps@gmail.com
RESUMO
Ensinar e aprender filosofia são questões centrais e recorrentes para a tradição filosófica,
sobretudo se pensadas em termos da relação mestre-discípulo, ou seja, no que diz respeito
à transmissão da própria filosofia. Na tentativa de pensar essas questões para além da
relação mestre-discípulo, apresento a questão fundamental do ajuizamento, partindo da
obra A vida do Espírito, de Hannah Arendt. Em seguida, procuro pensar o desafio do
ensino de filosofia na educação básica para nós, hoje. Ao final deste percurso, retomo a
questão da importância do ajuizamento, que simultaneamente pressupõe o pensar e é por
ele pressuposto, e sua relação com o ensino e o aprendizado. Defendo que o importante
não é saber o que a filosofia pode ensinar às crianças e aos jovens, mas experimentar o que
a filosofia pode aprender com eles. O desafio não seria tanto o de ensinar filosofia ou a
filosofar, mas exercitar o pensamento filosófico com eles e pensar (aprender) o que advém
(ou com aquilo que advém) desse encontro.
Palavras-chave: Filosofia; Ensino de Filosofia; Ajuizamento; Hannah Arendt.
Em uma conversa com Günter Gaus, exibida pela TV alemã em 1964, Hannah
Arendt afirma que escrever, para ela, é um ato de compreender. “Quando estou
trabalhando, não estou interessada em como meu trabalho pode afetar outras pessoas”.1
Esse sentimento pode ser compartilhado por muitos filósofos e escritores. Estudar,
escrever, aprender, tentar compreender, pensar, enfim, não carregaria, necessariamente,
nenhum “compromisso com o outro”. Mas é curioso que, na mesma entrevista, a autora
afirme não conseguir iniciar a escrita senão no momento em que as ideias já estejam
completamente claras em sua cabeça. As duas afirmações parecem contraditórias: escrevo
para pensar melhor, mas só consigo escrever quando já pensei o melhor que pude. É certo
que ela acrescenta, ainda, que a escrita tem um papel basicamente mneumônico: se ela
tivesse uma boa memória, não se daria ao trabalho de escrever. Mas aquilo que escapa,
nestas breves considerações feitas de improviso no contexto de uma entrevista, é a questão
da publicação. Se não é por algum interesse/compromisso com o outro, em um certo
diálogo com seus pares ou com o público em geral, por que se dar ao trabalho de publicar
uma obra?
1
ARENDT, 2003, p.5.
24
Gostaria de defender, aqui, que todo pensar, o trabalho filosófico sistemático e o
que nos motiva a ele, envolve, de algum modo, intrinsecamente, ainda que não numa
relação direta, um compromisso com o outro, um dirigir-se a um outro; e que essa relação é
sempre um processo simultâneo de ensino e aprendizado. Essa é uma tese mais geral, sobre
a estrutura mesma do pensar enquanto atividade filosófica, isto é, como diz Arendt, uma
atividade que visa a compreensão dos fenômenos para além de conhecer porque as coisas
se comportam assim ou assado (isto é, para além da ciência), mas que se dá
fundamentalmente através de conceitos que respondem a problemas os mais diversos
(incluindo os da ciência). Esta atividade envolve sempre um compromisso com o outro e
esse compromisso é sempre, também, um processo de ensino-aprendizado.
Não é à toa, portanto, que começo citando Hannah Arendt. Esta autora, embora
estabeleça uma separação aparentemente bastante radical entre o pensar e o agir, conecta,
por assim dizer, essas duas pontas através da faculdade do juízo. Num determinado
momento d’A Vida do Espírito, ela escreve:
o pensamento como tal traz bem poucos benefícios à sociedade, muito menores
do que a sede de conhecimento, que usa o pensamento como um instrumento
para outros fins. Ele não cria valores; ele não encontrará o que é ‘o bem’ de uma
vez por todas; ele não confirma regras de conduta; ao contrário, dissolve-as. E
ele não tem relevância política a não ser em situações de emergência. A
consideração de que eu tenho que poder conviver comigo mesmo não tem
nenhum aspecto político, exceto em ‘situações limites’ (ARENDT, 1992, p.144).
25
pensamento não é o conhecimento, é a habilidade de distinguir o certo do errado, o belo do
feio. (idem)
Isso se comprova em qualquer página dos livros de Platão, onde o pensar e o ajuizar
caminham sempre juntos; isto é, onde o pensar depende tanto do juízo quanto o inverso: o
pensar (ou, ao menos, o momento em que nos sentimos forçados a enunciar esse
pensamento, a pô-lo no papel, a comunicá-lo)2 é inseparável da habilidade de distinguir o
certo do errado, o belo do feio. E esta, me parece, seria uma maneira inequívoca de
reconhecer que a questão do ensino-aprendizado está, explicitamente, presente desde
sempre na história da filosofia. Distinguir o que é certo e o que é errado, ou o que é belo e
o que é feio, sempre foi e será uma questão pedagógica e política, pelo menos desde que
inventaram a democracia, isto é: algo que fazem e faço em meio aos outros, em meio a
uma livre disputa sobre os particulares que contam ou que não deveriam contar, em função
disto ou daquilo outro.
Vale dizer, quando a questão do ensino-aprendizado comparece nos pensamentos
de Heráclito, Pitágoras, Sócrates, Platão, Descartes, Locke, Rousseau, Kant, etc, ela não o
faz somente como um tema filosófico a ser pensado (“a educação”) ou apenas como
questão relativa à transmissão da própria filosofia (a relação mestre-discípulo). A questão
do ensino-aprendizado subjaz à relação entre o pensar e o ajuizar, nesta tensão entre refletir
sobre o universal e julgar o particular, tal como essas “atividades do espírito” são
exercitadas por cada pensador, e ela então se apresenta disposta de uma determinada
maneira, indica limites e alcances, maneiras distintas de relacionar o visível e o invisível,
como bem o mostra Arendt, à exaustão.
Assim, por exemplo, apesar de todo o peso que Platão dá à intuição e à verdade do
nous, que não podem ser postas em palavras (isto é, apesar de sua descrição da verdadeira
filosofia como radicalmente livre dos sentidos e dos assuntos ordinários da pólis), é
inegável também que, em sua obra (obviamente, composta de “pensamentos postos em
palavras”), toda a discussão sobre a verdade é elaborada a partir do papel do legislador,
inseparável, por sua vez, do papel do educador. O legislador é o educador maior da
2
« …os pensamentos, para acontecer, não precisam ser comunicados; mas não podem ocorrer sem ser
falados —silenciosa ou sonoramente, em um diálogo, conforme o caso. Como o pensar, embora sempre
proceda por palavras, não necessita de ouvintes, Hegel pôde, de acordo com o testemunho da maioria dos
filósofos, dizer que “a filosofia é algo solitário”. E a razão - não porque o homem seja um ser pensante, mas
porque ele só existe no plural— também quer a comunicação e tende a perder-se caso dela tenha que se
privar; pois a razão, como observou Kant, não é de fato “talhada para isolar-se, mas para comunicar-se”. »
Arendt, 1992, p.77.
26
sociedade, e a filosofia, como busca do saber, depende dessa atividade do mesmo modo
como, segundo Platão, o legislador deveria depender da filosofia. Isto é, a questão de saber
“o que é o bem” não é separável da questão de como se pode demonstrar (ensinar,
orientar) que este é o bem para todos e para cada um na pólis. Esta é outra maneira de
dizer que o filosofar não existe sem o método, e o método é inseparável do exercício do
ajuizamento. E isso porque, ao caminhar em direção às mais imponderáveis das abstrações,
partimos sempre da percepção e de juízos particulares e, mesmo que nosso intuito seja o de
nos distanciar o mais possível deles, ou mesmo que a divisa da “volta às coisas mesmas”
não nos mobilize, em nenhum momento escapamos da percepção e dos particulares, dada a
natureza metafórica da linguagem (o que pode ser constatado nesta mesma frase que acabo
de escrever, onde caminhar, partir de, distanciar-se, mobilizar e escapar são imagens
associadas ao método, sendo impossível prescindir delas ou de outras semelhantes).
Esta questão da relação intrínseca entre pensar, ajuizar, perceber, ensinar e aprender
já estava presente em Heráclito, que, segundo Diógenes Laércio, teria escrito: “muito
aprendizado (polematin) não ensina (didaskei) saber” (na tradução de Alexandre Costa; ou,
na tradução de Carneiro Leão: “muito saber não ensina sabedoria”), o que poderíamos
interpretar como: não é através de qualquer busca do saber que nos aproximamos do
(verdadeiro) pensar; o que deveria ser lido conjuntamente com os seus outros fragmentos
que falam sobre o didaskai, o ensinar, e a mathesis, o aprender, e que via de regra nos
remetem à relação intrínseca entre o pensar e a percepção: “ o que prefiro é o que aprende
a visão, a audição”. E é curioso perceber que todos os filósofos, quando falam do ensino e
do aprendizado da filosofia, nos seus mais diversos aspectos (e também quando falam da
própria metafísica), costumam explicitar (ou, seria mais adequado dizer, costumam
escancarar) esse enraizamento metafórico da linguagem. Assim, Descartes, por exemplo,
ao falar sobre o aprendizado da filosofia, vai utilizar-se de uma metáfora oceânica (de
resto, uma figura clássica da metafísica nos mais diversos filósofos) —um mergulho no
mar que lhe permita chegar ao fundo e dar o impulso de volta à superfície—, enquanto
Kant prefere as ruínas, os germes e os vermes, como imagens próprias à incompletude e
fragilidade estrutural dos sistemas que herdamos, e a partir dos quais precisamos tentar
construir o nosso próprio pensamento, ou a filosofia enquanto uma ciência possível.
Faço uma pausa nessas elucubrações e teses muito gerais sobre a relação entre o
pensar, o juízo e o ensino-aprendizado e retomo a simples constatação de que ensinar e
aprender filosofia são questões centrais e recorrentes para a tradição filosófica, sobretudo
27
pensadas em termos da relação mestre-discípulo, ou seja, no que diz respeito à transmissão
da própria filosofia. A partir de uma breve apresentação do tema, quero pensar o desafio do
ensino de filosofia na educação básica para nós, hoje. Ao final deste percurso, retomarei a
questão da importância do ajuizamento, que simultaneamente pressupõe o pensar e é por
ele pressuposto, e sua relação com o ensino e o aprendizado. O que eu gostaria de
defender, na mesma linha do que costuma defender meu colega e amigo Walter Kohan, é
que o importante não é saber o que a filosofia pode ensinar às crianças e aos jovens, mas
experimentar o que a filosofia pode aprender com eles. O desafio não seria tanto o de
ensinar filosofia ou a filosofar, mas exercitar o pensamento filosófico com eles e pensar
(aprender) o que advém (ou com aquilo que advém) desse encontro.
A filosofia pensa tradicionalmente a sua transmissão sob duas exigências
simultâneas e conflitantes: fidelidade ao mestre e autonomia do discípulo (“mais amigo da
verdade do que de Platão”). O transmitir é sempre um convite a um pensamento autônomo,
um “deixar passar mais além”, que é o sentido etimológico estrito da palavra “transmitir”.
Mas transmitir é também uma certa fidelidade ao mestre, ou um simples convite para
pensar juntos a partir do que propõe o mestre, com relação ao qual esse “mais além”
encontra limites mais ou menos bem definidos (nem todo desvio é produtivo, nem toda
tentativa de refutação é bem vinda). A tensão entre autonomia e fidelidade, entretanto, não
se dá apenas no discípulo com relação ao mestre. Ela implica, por vezes, um
embaralhamento dos papéis de mestre e de discípulo, como acontece com Sócrates e
Alcibíades.
Neste caso clássico, o embaralhamento é sutil, como demonstrou Lyotard (2012).
Alcibíades reclama que, estando Sócrates enamorado dele, ao final é ele, Alcibíades, que
acaba ficando escravo de Sócrates, e isso porque Sócrates aceita a troca proposta pelo
primeiro: os favores de Alcibíades pela sabedoria do amante. Ao fazê-lo, Sócrates, que
desconfia do seu próprio saber, apenas deixa Alcibíades na posição de compartilhamento
deste estado de inquietação, de indagação sobre a própria possibilidade da troca proposta.
Até aí, Sócrates aparentemente continua no seu lugar de “mestre” e Alcibíades no de
“discípulo”, ainda que, ao acreditar no que diz o próprio Alcibíades, a relação entre amado
e amante tenha se invertido. No que se refere ao saber, Sócrates mostra a Alcibíades que
isto, o saber, não é uma “coisa” que possa ser trocada, nem transmitida. Mas é
precisamente aí que o discípulo pode ir “mais além do mestre”, no sentido em que o estado
de agitação de Alcibíades, o ter-se tornado “escravo” de Sócrates, é a atualização ou o
28
compartilhamento de um tipo de desejo de saber que era antes exclusivo de Sócrates. Aqui,
o único saber do mestre, o “só sei que nada sei”, se confunde com o desejo de saber e o
desejo (possibilidade-necessidade) de compartilhar esse seu desejo de saber. E seria
preciso acrescentar que esse saber paradoxal do mestre (esse desejo de saber e desejo de
compartilhar esse desejo de saber, assim como a possibilidade mesma desse
compartilhamento), ao menos nesse exemplo, parece depender da ingenuidade do
discípulo, que crê que o saber seja uma coisa que possa ser transmitida. De modo mais
geral, em todos os diálogos platônicos, parece evidente que o pôr-se em movimento do
desejo de saber depende invariavelmente do encontro com um interlocutor que o desafia.
Vimos acima que o fato do desejo de saber depender de um desejo de
compartilhamento relaciona-se com as tensas relações entre o pensar e o juízo (e, em
Platão, essa dependência se confunde com a forma do diálogo como paradigma da escrita).
Essa dependência tem a ver com a ameaça que parece pairar sobre a filosofia desde que
Thales foi vítima da risada de uma escrava trácia: o risco de ser acusada e ridicularizada na
pólis. Poder-se-ia objetar que esse retrato da filosofia é por demais platônico ou grego, que
essa necessidade de compartilhamento, essa necessidade de ensino ou da orientação do
pensar alheio em benefício do desenvolvimento do próprio pensamento advém do contexto
específico do surgimento da figura do filósofo na Grécia Antiga, mas que não haveria nada
de estritamente necessário nisso. E, tal como faz Hannah Arendt, poderíamos identificar
uma ruptura radical e irremediável com relação a esse modelo na concepção do “eu
interior” de Santo Agostinho.
Sem dúvida, com Agostinho, Descartes, Rousseau ou Nietzsche, a filosofia poderia
ser caracterizada, com propriedade, como um “mergulho nas profundezas do eu”, um
revirar aquilo que se acredita saber, seguir um caminho de investigação que é pessoal e
intransferível, o diálogo do eu consigo mesmo; e este, aparentemente, não depende da
interlocução com nenhum discípulo. Mas essa suposta independência não parece razoável.
Apenas a forma da interlocução é transformada, porque muda o contexto político e se
diversificam os interlocutores: Deus, a tradição escolástica, a nobreza europeia, os
philosophes, o nihilismo. Em primeiro lugar, a obra desses filósofos é também e sobretudo
uma escrita dirigida a um público leitor (e um público leitor que não está mais, como na
Grécia ou em Roma, fundamentalmente restrito às escolas, isto é: a interlocução parece
ampliar-se, ao invés de restringir-se); uma escrita, portanto, que nunca é meramente
mneumônica, “um armazém de mantimentos para quando a era do esquecimento chegar”,
29
na fórmula pejorativa de Platão (apud Arendt, p.88). Agostinho, Descartes, Rousseau ou
Nietzsche e todos mais não escrevem apenas para registrar seus pensamentos ou legá-los à
posteridade. Suas obras estão envolvidas em disputas, do mesmo modo que estiveram as de
Platão ou de Aristóteles. Apenas as disputas são diferentes (podendo se aproximar num ou
noutro aspecto), assim como o são seus interlocutores.
No contexto da interioridade (que se inicia com o cristianismo e sobrevive ainda
hoje na forma do mito), a questão clássica da tensão entre autonomia e fidelidade na
relação mestre-discípulo se apresenta em uma nova configuração. Em Descartes,
encontramos a ênfase na natureza única e intransferível do filosofar. Descartes se dirige
aos seus contemporâneos para convencê-los de que a busca da verdade depende de um
caminho que cada um deve encontrar por si mesmo. Por outro lado, paradoxalmente, a
verdade que Descartes encontra é tão radicalmente universal que todo leitor é levado a uma
espécie de dilema: ou bem Descartes chegou a um resultado inquestionável, e seria inútil
procurar por outro, ou bem o que parece mais universal não o é, e seria improvável
encontrar outro com as nossas próprias pernas (qualquer ambulo ergo sum seria tão
apofântico quanto o cogito ergo sum). Seria o caso, agora, então, como faz Guéroult, de
nos contentarmos com a investigação da “ordem das razões”, capaz de mensurar a
coerência e a força do cogito como um princípio absoluto, claro e distinto, incontornável
para se chegar ao conhecimento verdadeiro? Tratar-se-ia, como pensa talvez a maioria dos
nossos pares, de que apenas a alguns gênios é dado avançar num caminho verdadeiramente
próprio, restando a nós, comuns mortais, o comentário cuidadoso do que é produzido por
aqueles? Neste ponto, vale relembrar a fidelidade de Alquié às afirmações de Descartes de
que o cogito é “a minha descoberta”, “a minha busca da verdade”, e que cada um deve
buscar a sua, para destacar um aspecto paradoxal desta suposta tensão entre a
universalidade do filosofema e a singularidade do método: ora, uma obra como a de
Guéroult sobre Descartes não deixaria de ser um tipo pessoal de busca da verdade, na
medida em que o autor não se contenta em ler e repetir os raciocínios do filósofo, mas
procura dar um juízo sólido sobre as questões propostas, como sugere o próprio Descartes
nas Regras para a direção do espírito. Ainda assim, Alquié parece ter razão em sugerir
que essa espécie de “parasitismo” trai o espírito do pensamento de Descartes, quando este
nos exorta a procurar por nós mesmos o nosso próprio caminho.
Guillermo Obiols, em Uma Introdução ao Ensino de Filosofia (2012), nos propõe
uma perspectiva interessante para a leitura dessa passagem das Regras, em que Descartes
30
nos exorta a dar um “juízo sólido” acerca das questões, ao invés de nos apegarmos ao que
disseram Platão ou Aristóteles. A tensão entre autonomia e fidelidade na relação mestre-
discípulo aparece, talvez pela primeira vez, como uma clara oposição entre história da
filosofia e filosofar. É certo que esta oposição já aparece em outros autores, como
Montaigne, mas em termos ainda emprestados dos textos das escolas antigas. Descartes
parece ter sido o primeiro a formular uma oposição diante “da história da filosofia” como
sendo “tudo o que veio antes” e que necessitaria passar pelo crivo de um questionamento o
mais radical possível, bastante diferente do tipo de análise a que antes Platão ou Aristóteles
submetem o pensamento pré-socrático. Referindo-se ao aprendizado da filosofia, Descartes
opõe aprender ciência (filosofar como atividade rigorosa do pensamento) a aprender
história. É interessante perceber, como faz Obiols, que, para além da falsa contenda entre
Kant e Hegel acerca do problema, este será um topos fundamental de toda uma tradição
posterior, que identifica a fidelidade estéril a doutrinas alheias com a história da filosofia
e esta, por sua vez, com o ensino institucional da filosofia, reconhecendo na negação deste
ensino uma condição fundamental para a autonomia do pensamento. Filósofos como
Schopenhauer e Nietzsche irão ao extremo de dizer que a própria natureza estatal das
instituições de ensino exclui, necessariamente, a possibilidade de uma filosofia autêntica
nos ginásios e nas universidades. Obiols sugere, a meu ver um pouco apressadamente, que
este “desprezo” pelo ensino de filosofia nas escolas e nas universidades poderia ser
superado caso superássemos esta visão errônea de que o ensino de filosofia estará sempre
condicionado pela natureza estatal das instituições de ensino e, portanto, refém de uma
certa configuração da transmissão do saber adequada à essa natureza, que seria a do mestre
que tem o domínio da história da filosofia e se faz passar por sábio perante um auditório. O
que me parece apressado é crer que possamos superar tão facilmente assim essa forma com
que Schopenhauer e Nietzsche apresentam a questão do ensino de filosofia nas instituições
de ensino. Talvez, como argumento em seguida, a questão não seja de superação, mas de
um eterno combate.
Não bastassem as limitações institucionais ao ensino-aprendizado da filosofia, a
perspectiva do ensino de filosofia na educação básica conta ainda com outros obstáculos
difíceis, sendo a “imaturidade” ou o “desinteresse” de crianças e jovens pelo estudo em
geral, e pela filosofia em particular, o mais propalado. De fato, tudo, cada vez mais, parece
conspirar contra a ideia de que haja algum sentido em trabalhar com a filosofia dentro da
escola. Se a cultura na qual os jovens e crianças estão imersos é em grande medida
31
refratária ao pensar, e se a própria instituição universitária que forma os professores
desestimula o pensar em nome da utilidade, da erudição ou de critérios endógenos de
competência e rigor, a filosofia dentro da escola estará sempre refém desta lógica,
comprimida entre os critérios acadêmicos e os ruídos da pólis, do Estado, da cultura de
massas, etc.
Contudo, esse estado de coisas não deveria dar lugar a uma visão catastrofista e
elitista (que reafirma a suspeita de que o pensar é para poucos). Esta visão não sobrevive às
nossas considerações sobre as relações entre o pensar e o juízo. A potência do pensar está
em todos e em cada um. O que podemos considerar como sendo um conjunto de
“obstáculos” para que possamos encontrar esse espaço de distanciamento frente ao mundo
visível e suas particularidades, suas contingências sem rima ou razão, estabelecendo esse
paciente e cuidadoso diálogo de mim comigo mesmo, é na verdade o horizonte onde este
diálogo pode torna-se significativo para além de si mesmo. A escola não é o lugar onde a
filosofia entra para ajudar em coisa alguma nem a quem quer que seja. O jovem não deve
ser convidado a pensar porque isso supostamente seria bom para ele ou para a sociedade. O
pensar não é necessariamente bom para a sociedade, nem para ninguém. A filosofia habita
na escola em um estado de combate entre esse desejo de saber e as particularidades do
mundo visível, um dos poucos combates (os outros dois seriam a escrita e a arte) capazes
de tornar significativo este diálogo mudo e solitário para além do estreitíssimo círculo
daqueles que nele (não) se reconhecem. Para a maioria da população, é na escola, mais do
que em qualquer outro lugar, neste espaço único ocupado, em cada turma, por um pequeno
grupo de pessoas ainda não totalmente tomadas pelas demandas do cotidiano, que o puro
apelo ao pensar tem a chance de se fazer ouvir e de se compreender a si mesmo, de
compreender o que nele, nesse diálogo mudo e solitário, faz liga com as particularidades
do mundo. Ao lado da escrita e da arte, a filosofia na escola é o espaço privilegiado para o
exercício da faculdade do juízo que dá sentido à filosofia.
REFERÊNCIAS
32
LYOTARD, Jean-François. Porquoi philosopher? Paris: PUF, 2012.
OBIOLS, Guillermo. Uma introdução ao ensino da filosofia, Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.
33
ÁGORA VIRTUAL: A FILOSOFIA NA CIBERCULTURA
O presente ensaio trata de um tema contemporâneo, ainda pouco explorado por nós
professores de filosofia do ensino médio público do Paraná, na cidade de Londrina, que é a
instrumentalização e o domínio de técnicas e conhecimentos metodológicos para a imersão
na Cibercultura para com isso tirar o maior proveito em benefício da aprendizagem e do
ensino, mais especificamente, das possibilidades do desenvolvimento de um processo
educativo dentro do cyber-espaço que se dedique exclusivamente à Filosofia, constituindo-
se como um canal e/ou canais de ensino e de aprendizagem do estudante do ensino médio.
Para essa discussão, ainda ensaística e romântica, trataremos inicialmente de maneira bem
elementar das peculiaridades e da instrumentalização do professor de filosofia e seus
primeiros cliques dentro desse universo virtual. O pano de fundo que motiva essa imersão
é a constatação básica e que qualquer professor vivencia, qual seja, a relação direta dos
estudantes com a World Wide Web (teia mundial), através das redes sociais e demais
cyber-espaços. Na descrição do processo de instrumentalização do professor,
demonstraremos como proceder nesse ambiente, explorando diversas ferramentas e
plataformas que permitirão ampliar o tempo do filosofar e romperão com o espaço de sala
de aula, pois, uma das características básicas do cyber-espaço é o rompimento com o
tempo e com o espaço. Esta demonstração servirá para corroborarmos nossa premissa que
é o ensino de filosofia, à maneira grega. Mas, com um toque de contemporaneidade, ou
seja, o estilo será aquele desenvolvido na ágora grega, com a peculiaridade atual de que
para nós será uma ágora virtual. No cyber-espaço, além das nossas próprias plataformas,
destacaremos outras plataformas e apontaremos as nossas investidas e reflexões nesses
ambientes, em busca de conteúdos filosóficos que permitam ser discutidos, pensando e
fomentando a interatividade dos estudantes, ponto fundamental para o sucesso e a
manutenção do diálogo reflexivo.
Palavras-chave: Ensaio; Filosofia; Cibercultura; Cyber-espaço (Ágora Virtual); Blogue
Sábado de manhã, por volta das 09:37 o professor de filosofia se prepara para sair
de sua casa, ambiente aonde está bem servido de livros, de discos, de cds, de dvds e de
algumas obras de artes como pintura e esculturas, o mesmo deixará esse aconchegante
lugar definido no espaço e altamente atraente para os eternos amantes da sabedoria, pois,
34
na segunda-feira (re)começam as aulas e ele, como de costume, quer surpreender os seus
estudantes com aulas mais interativas, dinâmicas e com um quê de contemporaneidade.
Para isso, é necessário ir em busca de algumas ferramentas que a atualidade disponibiliza
para todos sermos mais interativos, conectados, portanto, atuais e com o perdão da palavra,
contemporâneos.
Durante todo o período destinado às férias, o professor leu e releu obras e mais
obras da filosofia, tanto os ditos filósofos clássicos quanto dos filósofos ditos menores, que
não temos aqui nenhuma pretensão de discutir e quem são os tais clássicos e os ditos
menores. E, a cada obra lida e digerida lentamente e ruminantemente, seus pensamentos
sobre quais seriam as melhores possibilidades de tornar esses pensamentos acessíveis aos
estudantes, se tornavam um imperativo e, imergir no cyberespaço e na cibercultura se
tornavam cada vez mais latentes, daí a necessidade de compreender essa atualidade
hipertextual, conectada, midiática e sociável, para tirar dela o maior proveito em benefício
da filosofia, de seu ensino e de sua aprendizagem.
Para a imersão nesse universo o professor tinha que buscar os instrumentos que lhe
permitisse o mergulho para criar e ou desenvolver as condições básicas para a tarefa
filosófica-educacional que o professor acreditava serem necessária no ambiente escolar
contemporâneo. Então, após horas e horas de completa imersão em seus pensamentos, num
diálogo profundo com os pensadores da cibercultura, percebe que deves fazer uma lista das
ferramentas que lhe permitrão acessar ao universo cibernético. Faz uma lista longa, depois
de muitas reflexões, excluí diversos itens, ficando com o que é básico e fundamental,
concluí. Feito isso se propõe a adquiri-los no sábado pela manhã. Eis os materiais
constantes na lista do nosso professor:
1 notebook (com programas de edição de vídeo e áudio, além dos editores de textos
e construtores de apresentações);
35
3 pendrives de 32 Gb;
10 dvds regraváveis;
O hábito ainda é muito forte e, sem perceber, o professor volta-se para seu pc
querendo ligá-lo para começar seus estudos, esquecendo-se que não necessita mais da
fixidez e do velho companheiro, mas, tenta se consolar, olhando para seus livros e discos,
imaginando que sempre estarão à sua disposição e que servirão para suas aulas como
sempre, agora, só um pouco mais hightech e deixar um suspiro lhe trazer de volta ao
36
momento presente..
Em segundos surgem milhares de sugestões, e, como ele sabe que seus estudantes
utilizarão na escola, do material que ele disponibilizar no blogue, a partir de um programa
digital do governo, ele deve escolher um blogue que tenha extensão permitida pela
secretária de educação, ou seja, deverá escolher uma plataforma que seja liberada para o
acesso dos estudantes de dentro da escola também. Em conversa com outros professores
que já estão navegando no cyberespaço, se lembra vagamente de um endereço que poderá
utilizar, chamado Blogger. Ante essa lembrança, seleciona o sítio em nova busca, que o
leva para a página específica, onde ele, passo-a-passo deverá cadastrar-se e seguir os
demais parâmetros para concluir a construção de seu blogue. Após mais ou menos 7 (sete)
minutos, seu blogue está pronto, agora é só começar a postar aquilo que lhe interessar,
desde textos simples até filmes completos.
O professor então dá uma breve pausa, antes de postar sua primeira matéria. É o
momento de acender um cigarro e ficar olhando para tela do notebook com aquele olhar de
espanto e admiração, característico dos primeiros filósofos gregos. O cigarro é consumido
com prazer e lentamente.
De volta ao blogue, o professor abre uma nova aba em seu notebook e visita alguns
blogues que se dedicam aos temas de filosofia e educação, buscando de encontrar as
primeiras postagens, para perceber qual é a linguagem mais adequada para comunicar-se
com rigor filosófico, mas, sem perder a proximidade dialógica com os jovens internautas.
São publicações que algum tempo depois serão excluídas, ocultadas ou editadas,
mas, nesse momento, tudo é interessante, intenso, angustiante, prazeroso e merece ser
37
registrado.
Ele volta para a aba da pesquisa sobre os blogues e procura agora por clipes e
vídeos que lhe agrade e tenham um quê de reflexivos, copia seus endereços (URL) e
publica-os em seu blogue. Busca por imagens, por poesias, por textos interessantes e
reflexivos e vai publicando-os, de maneira aleatória, sem muitos critérios, é um exercício,
uma terapia. De repente, olha no canto inferior direito (de seu olhar) de seu notebook e
nota que já passam das 19:37. Ele percebe que o dia já se foi e, como é sábado, tem que
sair para encontrar os amigos e discutir sobre sua nova empreitada, acompanhados de
vinhos, conversas e cigarros. Amanhã ele começará a postar conteúdos para seus
estudantes.
Pega sua câmera fotográfica (ou filmadora) digital, faz um pequeno teste e vê que a
mesma está em perfeitas condições de uso. Testa o gravador digital, testa as caixas de som
e deixa-as ligadas para reproduzirem algumas de suas músicas que estavam no pendrive.
Após esse prelúdio se propõe a começar a montar uma aula, que irá estar disponível para
acesso de todos os seus estudantes no blogue, logo mais.
Ao reler as diretrizes concluí que lá, embora, as aulas sendo ministradas mediante
quatro momentos distintos e interligados, estes podem ser muito bem explorados no
ambiente virtual e, então, decide-se por manter aquela estrutura para ver como funcionará
no blogue. Com seu notebook no colo, abre a página de edição de texto do blogue e
regsistra os quatro momentos que as diretrizes sugerem:
- Mobilização;
- Problematização;
38
- Investigação;
- Criação conceitual:
Com essas novas definições mais claramente estabelecidas o professor parte para a
preparação de sua primeira aula no cyber-espaço. O tema da aula é o relativismo sofístico.
Como representante desse movimento o autor escolhido é Protágoras de Abdera e o
professor confecciona o seguinte quadro:
DATA:
SOFISTA: PROTÁGORAS
ASSUNTO: RELATIVISMO
39
Passo 1:
PRIMEIRAS IDEIAS (COLAGEM – TAREFA -
DISCUSSÃO EM SALA);
Passo 2:
IDEIAS PROVOCATIVAS
Passo 3:
INVESTIGANDO IDEIA(S)
Procedimento:
Relativismo:
Persuasão:
40
Verdade:
Mentira:
Como a proposta de nosso professor é trabalhar com a internet, essa aula, ao ser
disponibilizada, exigirá do estudante, que entre no blogue, e vá no campo comentário, se
identifique e responda as questões que foram propostas no momento das Ideias
Provocativas. Essa é uma condição fundamental para que neste espaço possa surgir o
mesmo dinamismo e intensidade que havia na velha praça grega.
Em sua página de texto offline, o professor explicita cada passo de sua aula, para
poder discutir a mesma na próxima reunião de professores:
- Nas Primeiras Ideias, cada estudante deverá trazer em seu caderno as imagens dos
produtos colocados ali, para posterior discussão, pois, na sala o momento será para as
análises das ideias relativas às qualidades e intencionalidades dos discursos que sustentam
propaganda para vender determinado produto.
41
- No procedimento Investigando Ideias, os estudantes trarão os verbetes já
registrados, pois, como estão na internet, facilmente encontrarão dicionários online;
Quando estiverem em sala com os grupos formados deverão comparar suas pesquisas e
discutirão os fragmentos apresentados pelo professor, primeiramente com os membros do
grupo e na sequencia com os demais grupos e também defenderão suas ideias perante os
argumentos do professor. Concluir-se-á este procedimento de três etapas em sala de aula
com a execução da atividade já conhecida de todos (pois estava já disponível online), mas,
sua realização formal se efetivará momento presencial, para todos.
Chega o primeiro dia de volta às aulas, o professor avisa aos estudantes que as
atividades acontecerão em lugares e momentos distintos e esclarece o que isso quer dizer,
parte na sala de aula e outra parte no cyber espaço. Sugere como apoio aos estudantes
alguns links de texto
(http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/escola/sofistas/protagoras.htm)
para leitura e de áudio e vídeo (http://www.youtube.com/watch?v=sr2l7qQxRs4) para
apreciação, amplamente difundidos na internet, para aumentar a compreensão do assunto
que será abordado na aula presencial, pois, trarão enormes contribuições e mais dinamismo
e interatividade para dentro da sala de aula.
No dia da aula, o professor chama a todos para irem até o laboratório de informática,
pois, lá poderão acessar o conteúdo da aula, além de poderem ampliar as discussões e
pesquisas sobre os assuntos que serão abordados no decorrer do bimestre e/ou semestre. Lá,
ele pede para que acessem o seguinte endereço: http://osabiomadruga.blogspot.com.br e
que vejam a estrutura da aula, os problemas e assuntos discutidos, pois, não precisaram
mais ficar registrando tudo. Somente as atividades é que serão registradas no caderno. Um
certo entusiasmo invade a sala, os cochichos são generalizados. O professor pede atenção e
dá um bom tempo para que eles observem as atividades, vejam os textos e se ambientem
42
com essa forma (um tanto nova) de aula.
O professor observa a saída dos estudantes. Uns diziam que fora muito rápido o
tempo, outros perguntam se vai ter tarefa e se voltarão na semana que vem... O professor se
sente bem...
Quando chega em sua casa, vai olhar para seu blogue e fica nessa meditação por
bastante tempo, até que de súbito lhe vem uma indagação:
-Será que não há uma maneira de utilizar mais espaços e mais linguagens, para que
eles não apenas respondam as atividades. O professor entra na rede, digita –
Filosofia+Histórias+em+ Quadrinhos... seleciona um endereço que promete gratuitamente
fornecer – online- os meios para se produzir hq's, e eis que ele de fato pode produzir uma
hq de caráter filosófico. Como nossa intenção é a imersão no cyber-espaço, segue o link
para visualizarem uma da produções do professor em um site gratuito:
(http://www.stripcreator.com/comics/osabiomadruga/495512). Basta um clique e você
estará realizando parte do intento do professor.
As aulas ficam muito mais dinâmicas e interessantes, pois, mesmo o estudante que
venha a perder a aula, poderá recuperar o conteúdo e acompanhar as discussões e tirar as
dúvidas nas próximas aulas. Bem, essa é uma pequena amostra do que o cyber-espaço e a
cibercultura pode oferecer ao professor. E, hoje o professor começa a utilizar um fórum,
para tornar mais interativa a aula, para conhecer essa nova investida, entre na seguinte
URL: (http://agoravirtual.forumeiros.com/t3-cidade-perfeita).
Chegamos ao fim dessa pequena história, baseada em fatos reais, pois, retrata
nossas mais recentes atividades. O que faremos a seguir será inscrever os estudantes nesses
cyber-espaços para que os mesmos possam expressar seus pensamentos filosóficos.
43
REFERÊNCIAS
44
aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2002.
VALLE, Luiza E. L. R (et all). Educação digital: a tecnologia a favor da inclusão. Porto
Alegre: Penso, 2013.
45
O GRUPO PRÁTICO DE DESLOCAMENTOS
E A CONSOLIDAÇÃO DAS ESTRUTURAS COGNITIVAS
Vicente Eduardo Ribeiro Marçal
Universidade Federal de Rondônia
vicente.marcal@unir.br
RESUMO
O PROCESSO BIOLÓGICO-COGNITIVO
46
A partir da consideração de que a Epistemologia Genética é uma teoria do
conhecimento, em seu sentido pleno, e que realiza também uma crítica dos conhecimentos
(portanto é Epistemologia) e de suas gêneses (no indivíduo e histórico-culturalmente),
nosso objetivo central, neste artigo, é expor como o GPD – Grupo Prático de
Deslocamentos, enquanto Grupo Matemático contribui para a consolidação das Estruturas
Cognitivas do Sujeito Epistêmico.
Temos, então, que para a Epistemologia Genética a ação é “[...] toda e qualquer
conduta (observável exteriormente, inclusive por interrogação clínica) visando um objetivo
do ponto de vista do sujeito considerado” (APOSTEL, MAYS, et al., 1957, p. 43). Assim,
em teoria, podemos identificar dentre os movimentos executados pelo sujeito quais são
ação e quais são movimentos aleatórios. De tal forma que um movimento como balançar
os braços pode constituir uma ação se visar um objetivo do ponto de vista do sujeito
considerado ou simples movimentos aleatórios, sem qualquer finalidade.
3
Todos os textos mencionados em francês tem sua tradução feita por nós.
47
Contudo, tal distinção é tênue implicando a necessidade de um critério que permita
ao observador saber o que é ação e o que não é. Assim, à definição dada de ação segue-se o
critério de se modificar certos “[...] aspectos da situação, mantendo-os comparáveis a
outros, e ver em que medida a conduta se modifica em vista de conservar constante a
probabilidade de alcançar o efeito” (APOSTEL, MAYS, et al., 1957, p. 43). Logo, para
nos certificarmos de que o movimento observado é, de fato, uma ação, o observador pode
interferir provocando modificações no meio e mensurar até que ponto o sujeito busca se
reequilibrar diante das mudanças para manter o objetivo pretendido.
48
Assim, podemos falar de uma conceituação no nível sensório-motor, uma
conceituação prática, i. e., o objeto é conhecido não por seu nome ou conceito, mas sim
pela forma com a qual podemos agir sobre ele, pois, “[...] em presença de um novo objeto,
ver-se-á o bebê incorporá-lo sucessivamente a cada um de seus esquemas de ação (agitar,
esfregar ou balançar o objeto) como se se tratasse de compreendê-lo através do uso”
(PIAGET, 2005, p. 20). Por exemplo, temos objetos que são para sugar, para preender,
para ver, para ouvir etc.
Em vista dessa equivalência entre ações, podemos definir que o “[...] esquema de
uma ação, com relação a uma classe de ações equivalentes do ponto de vista do sujeito, é a
estrutura comum que caracteriza essa equivalência” (APOSTEL, MAYS, et al., 1957, p.
46). De modo que o esquema de ação é essa estrutura comum que caracteriza a
equivalência entre as ações e pode ser transponível, generalizável, universalizável na
repetição da ação, i. e., um “[...] esquema é a estrutura ou a organização das ações, as quais
se transferem ou generalizam no momento da repetição da ação, em circunstâncias
semelhantes ou análogas” (PIAGET e INHELDER, 2003, p. 16).
O fato de se tratar de um sujeito faz com que o esquema seja entendido como uma
forma de funcionamento com bases orgânicas. Isso permite entender melhor por que o
esquema de ação não só é a estrutura comum da ação, como também a condição sine qua
non para que a ação possa ser realizada, pois: o “[...] esquema é a condição primeira da
ação, ou seja, da troca do organismo com o meio” (RAMOZZI-CHIAROTTINO, 1988, p.
34), i. e., sem o esquema de ação não há ação, pois compreendemos que “[...] os esquemas
motores são a condição da ação do indivíduo no meio; é graças a eles que a criança
organiza ou estrutura sua experiência, atribuindo-lhe significado” (RAMOZZI-
CHIAROTTINO, 1988, p. 11). É, então, somente pelos esquemas de ação que o sujeito
pode agir no mundo e, desse modo, conhecê-lo.
49
adaptação quando o organismo se transforma em função do meio e essa [sua] variação tem
por efeito um aumento das interações entre o meio e o próprio organismo que são
favoráveis à conservação deste” (PIAGET, 1977, p. 11).
Ante essa integração, o sistema de esquemas de ação pode ser mais ou menos
modificado por acomodação. A acomodação do sistema de esquemas de ação é toda e
qualquer modificação na forma de agir do sujeito. Nas palavras de Piaget (1970, p. 18) é
toda e qualquer “[...] modificação dos esquemas de assimilação sob a influência das
situações exteriores (meio) às quais eles se aplicam”. Notemos que essa modificação pode
ser imperceptível, como no caso do início de um novo esquema de ação. Desse modo, a
transformação do sujeito por acomodação é uma transformação ativa em seu sistema de
esquemas de ação, a qual permite ampliar a troca entre esse sujeito e o meio que o
circunda, promovendo um acréscimo em suas condições de conservação.
50
adaptação, pois são dois processos complementares de um mecanismo único, sendo a
adaptação o aspecto interno e a organização o aspecto externo.
O surgimento de cada nova fase não elimina, de forma alguma, as condutas das
fases precedentes e que as novas condutas se sobrepõem simplesmente às anteriores.
Contudo, na etapa final do período Sensório-Motor, temos uma acelerada mudança no
comportamento do sujeito, que o levará à finalização da constituição de suas estruturas
cognitivas, próprias desse período, e o preparará para a constituição das estruturas próprias
do período ulterior. A velocidade se dá justamente porque a descoberta, conduta da quinta
fase que é dirigida pelo empirismo da exploração por tateio e a invenção, conduta própria
da última fase do Sensório-Motor que é dirigida pela coordenação e combinação mental,
ou seja, a forma interiorizada dos esquemas de ação em jogo.
51
Assim, a novidade da última fase, do período Sensório-Motor, consiste em que os
esquemas necessários para o êxito sobre o problema enfrentado estão latentes e são
combinados reciprocamente antes de sua aplicação externa, por isso as condutas dessa fase
parecem sempre ser repentinas.
Portanto, essas condutas nada mais são que a reorganização dos esquemas de ação,
os quais se acomodam à nova situação por assimilação recíproca, contudo tal acomodação
se dá internamente. Essa acomodação mental nada mais é do que o funcionamento, interior
ao sujeito, dos esquemas de ação, sem a necessidade dos mesmos serem aplicados um após
o outro externamente. Essa interiorização dos esquemas de ação permite a consolidação
desse sistema que leva o sujeito a elaborar o GPD.
2. Elemento Inverso: ,
sendo o “elemento identidade” ou “elemento neutro”.
3. Associatividade:
52
Para compreendermos como o GPD é um grupo matemático, usamos a seguinte
notação 4 : os pontos espaciais serão designados por letras latinas maiúsculas tais como
etc, e os deslocamentos entre tais pontos, pelos pares das letras latinas maiúsculas,
com a indicação vetorial do deslocamento, tais como , etc. De tal forma que
4
Ver mais detalhes dessa notação em Tassinari (2008).
5
Para evitarmos problemas na formalização do Grupo de Deslocamentos, consideraremos aqui somente os
casos em que há contiguidade entre os deslocamentos, i. e.: o deslocamento terá uma contiguidade com
deslocamentos , mas não terá contigüidade com deslocamentos , nos quais . A contiguidade na
composição dos deslocamentos se dá na exigência do ponto espacial intermediário entre os dois
deslocamentos que resultam no terceiro, ser o mesmo. Dessa forma, o par ordenado estabelece o que
denominamos de Grupo Parcial. Tal característica não será, porém, discutida neste trabalho, pois foge a seu
escopo.
53
o par ordenado , que estamos considerando, satisfaz a propriedade do elemento
inverso.
Elemento Identidade ou Nulo: Do que vimos no parágrafo anterior, temos que o par
ordenado satisfaz a propriedade do elemento identidade ou nulo. Com efeito, o
elemento identidade, ou nulo, significa, aqui, a capacidade do sujeito de compreender em
atos a reversibilidade de suas ações ou nulidade dos deslocamentos, ou seja, o sujeito é
capaz de agir e de reverter sua ação. Assim, a composição de um deslocamento com seu
inverso resulta no elemento identidade ou nulo. Podemos representar o elemento
identidade ou nulo por já que . O resultado da anulação de um deslocamento
de quantos intermediários existiram até finalizar em e que pode ser representado pela
equação .
o sujeito é capaz de chegar a um ponto qualquer seguindo por dois caminhos distintos:
um passando pelo ponto e outro pelo ponto . Essa capacidade é chamada de Conduta
do Desvio, pois ao ser capaz de chegar a um ponto qualquer por caminhos diferentes, o
sujeito é capaz de desviar de obstáculos que lhe impeçam de atingir o objetivo.
54
espaço homogêneo que construiu. Contudo, Piaget (1967, p. 171) deixa claro que tal
capacidade ainda não nos permite dizer que o sujeito situa-se a si mesmo no espaço em
relação aos outros objetos, apenas que é capaz de se deslocar na direção dos objetivos a
serem alcançados. Dessa forma,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
55
A complexificação do sistema de esquemas, devido a esse processo de adaptação-
organização, culminará em estruturas mais elaboradas, com reversibilidade das ações,
como no caso do Grupo Prático de Deslocamentos, fundamental para a consolidação da
estrutura cognitiva. De modo que o sujeito não está limitado a responder por estímulos do
meio, mas ele mesmo atuará na busca de compreensão desse meio.
56
REFERÊNCIAS
Apostel, L., Mays, W., Piaget, J., Morf, A., & Matalon, B. (1957). Les Liaisons Analytiques et
Synthétiques dans les Comportements du Sujet. Paris: Presses Universitaires de France.
Furht, H. G. (1974). Piaget e o conhecimento. (V. Rumjanek, Trad.) Rio de Janeiro: Forense
Universitária.
Howson, A. G. (1972). A handbook of terms used in algebra and analysis. Cambridge: Cambridge
University Press.
Piaget, J. (1970). Biologie et connaissance: Essai sur les relations entre les régulations organiques
et les processus cognitifs. Paris: Éditions Gallimard.
Piaget, J. (1967). La construction du réel chez l’enfant (4 Ed. ed.). Neuchâtel: Delachaux et Niestlé.
Piaget, J. (2005). Seis estudos de psicologia (24 ed.). (M. A. D’Amorim, & P. S. Silva, Trads.) Rio
deJaneiro: Forense Universitária.
Piaget, J., & Inhelder, B. (2003). Psicologia da Criança. (O. M. Cajado, Trad.) Rio de Janeiro:
Difel.
57
CONCEPÇÕES SOBRE O CONCEITO DE INTENCIONALIDADE NO ÂMBITO
ESCOLÁSTICO E FENOMENOLÓGICO
RESUMO
58
e se prolongou nas Universidades a partir do século XIII entre os religiosos. Por trás das
querelas estava a filosofia e o filosofar, uma tentativa de refletir sobre os problemas, de dar
sentido a uma filosofia que, embora se justificasse na fé cristã, buscava também,
principalmente pela via aristotélica, fundamentar racionalmente seus problemas. Segundo
Muralt (1998, p. 190):
Sem dúvida o caráter escolar do debate pode mascarar seu verdadeiro alcance.
Permanece o fato, pelo menos para aquele que tenta observá-lo de perto, de que
o problema das distinções implicava o próprio estatuto da filosofia e que o que
estava em jogo nele não era senão a possibilidade do ato de pensar humano.
7
“[...] Aristóteles mostra que a unidade real de uma coisa numérica e existencialmente idêntica não impede
de nenhum modo uma pluralidade de “aspectos” distintos desta coisa.” (MURALT, 1998, p. 194).
8
Este tema será desenvolvido em Pedro Abelardo no opúsculo Glossulae super porphyrium (primeira parte
da Logica ingredientibus), trabalho em que Abelardo tentará conduzir uma solução às questões deixadas por
59
predicar uma realidade. Se afirmarmos que “Pedro é um animal racional”, o predicado está
em conformidade com o que Pedro é. Se afirmarmos que “Pedro é uma pedra”, não
estamos em conformidade com a natureza de “Pedro”, que é ser “homem” e, por extensão,
“animal racional”. O mesmo vale para os objetos: inclusive os predicados contingentes
devem estar em conformidade com a natureza do mesmo (ABELARDO, 1994).
[...] uma pluralidade de “aspectos” objetivos que são (existem) idênticos nele
[objeto] e que, por isso mesmo, só podem ser apreendidos de maneira imperfeita
e confusa no primeiro olhar da inteligência. [...] É a imperfeição da inteligência
humana que a impede de apreender num só golpe, segundo uma visão clara e
distinta, a pluralidade dos “aspectos” objetivos que a coisa concreta engloba [...]
A abstração manifesta uma enfermidade, jamais uma perfeição da inteligência.”
(MURALT, 1998, p. 203).
Porfírio (século III) acerca do estatuto ontológico dos Universais. No português, o opúsculo foi traduzido por
“Lógica para Principiantes”.
60
consequentemente, da simples opinião. O conhecimento intelectivo e verdadeiro
dificilmente acontece. Bertelloni (1998, p. 12-13) salienta que, na perspectiva de Abelardo:
Deus conhece de antemão tudo o que cria e não necessita da abstração, pois
conhece diretamente. [...] Somente esse conhecimento divino é perfeito [...] o
uso da abstração por parte do homem só oferece um conhecimento deficiente [...]
posto que conhecemos mediante os sentidos não podemos pretender conhecer
bem mediante qualquer outra faculdade que seja estranha ao modo propriamente
humano de conhecer.9
9
“Dios conoce de antemano todo lo que crea y no necesita de la abstracción, pues conoce directamente. [...]
Sólo ese conocimiento divino es perfecto. […] el uso de la abstracción por parte del hombre sólo ofrece un
conocimiento deficiente […] puesto que conocemos mediante los sentidos no podemos pretender conocer
bien mediante cualquier otra facultad que sea extraña al modo propiamente humano de conocer.”.
10
Na fenomenologia, a filosofia é vista como ciência, mas se diferencia das demais ciências. Ela não
privilegia uma vertente em particular, mas busca a verdade tal como ela é, na realização racional do ser
humano. Sokolowski (2004, p. 167) afirma que: “A filosofia é um esforço científico, mas é diferente da
matemática e das ciências sociais e da natureza; ela não é concernente a uma região particular do ser, mas à
veracidade enquanto tal: às relações humanas, à tentativa humana de descobrir o modo como as coisas são e à
habilidade humana de agir de acordo com a natureza das coisas; por fim, é concernente ao ser enquanto ele
manifesta em si mesmo para nós.”.
11
A fenomenologia, enquanto ciência das essências: “[...] reconhece a realidade e a verdade dos fenômenos,
as coisas que aparecem. [...] As coisas não apenas existem; elas também manifestam a si mesmas como o que
elas são. [...] Quando fazemos juízos nós enunciamos a apresentação de partes do mundo; nós não
organizamos simplesmente ideias ou conceitos em nossas mentes.” (SOKOLOWSKI, 2004, p, 23).
61
Ela [a fenomenologia] introduz o papel do ego, mostrando que o conhecimento
humano não é o trabalho de um intelecto agente separado dos seres humanos,
mas a realização e posse de alguém que pode dizer “Eu” e que pode assumir
responsabilidade pelo que diz.
12
Antes do advento das Universidades, a atividade filosófica estava ligada ao ensino das artes liberais nas
escolas monásticas. Elas se dividiam em trivium (gramática, dialética e retórica) e quadrivium (música,
aritmética, geometria e astronomia).
62
A ÉTICA NO ÂMBITO DA INTENCIONALIDADE
13
“La búsqueda del paralelismo con la esfera de las proposiciones y leyes lógicas […]”.
63
normalidade são considerados no campo da emoção, a partir de uma análise ético-
fenomenológica, serão expressos e valorados a partir da razão:
14
“La razón encuentra aquellos datos intencionales y sus conexiones que están implícitos en la capa del
sentir agrado, del tender, del querer […] El querer intencional no es un mero factum sobre el cual la razón
juzgue luego sino que es un cierto <<juzgar>>, una toma de posición, un valorar, pero la voluntad misma no
puede expresarlo, necesita de los actos lógicos.”.
15
“El querer los medios es motivado por el querer los fines, análogamente a como juzgar la conclusión a la
luz de las premisas viene motivado por el asentimiento a éstas. Alegrarse y entristecerse son actos motivados
racionalmente por el agrade y el desagrado.”.
64
correção. Quando a intencionalidade é transferida para as vivências de uma pessoa, temos
que cada um participa de um mundo circundante e se relaciona com as mesmas realidades
objetivadas de outras pessoas (experiência intersubjetiva).
REFERÊNCIAS
FERRER, U. La Etica en Husserl. in: Revista de Filosofia, vol. IV, n. 6, Madrid: Editorial
Complutense, 1991. p. 457-467.
65
A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA DE ARISTÓTELES: PRÁTICA, CARÁTER E O
MÉRITO
RESUMO
A análise dos conceitos de justiça ou do que é justo, tratados desde o período clássico da
filosofia, quase nunca gozou de um consenso unânime dentre os pensadores éticos. Deste
modo, o presente trabalho irá tratar do conceito de justiça ou do que é justo, preconizado
pelo pensador clássico do século IV, Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco. A justiça,
como será tratada, tem o seu campo de vigência a prática das ações humanas e está ligada
diretamente ao caráter de cada indivíduo, o qual, por sua vez, é formado pela educação e
pela prática reiterada dos atos do homem. Será demonstrada também a importância desta
virtude ou da justa medida para o indivíduo e para a polis, sendo considerada a excelência
máxima, completa e desejada por todos. A justiça, para Aristóteles se divide em duas
vertentes, a justiça distributiva e a justiça corretiva. No entanto, o presente trabalho se
limitará ao desenvolvimento da justiça distributiva, com fulcro no princípio da distribuição
de acordo com o mérito individual, baseada em quatro relações, existentes entre duas
pessoas e outras duas coisas. Também será desenvolvido, diante do campo de aplicação da
justiça, o papel da educação e das leis para o direcionamento do homem para o
desenvolvimento de seu caráter constante. Será apresentado também, a análise de outros
pensadores a respeito da justiça distributiva de Aristóteles, inclusive se seu crítico
contemporâneo, John Rawls, o qual prescreve pela justiça distributiva, pautada na
equidade, na distribuição equânime dos bens para todos, sem distinção de mérito ou
qualquer outro fator.
Palavras-chave: Justiça; Mérito; Distribuição de Bens.
INTRODUÇÃO
O direito possui como uma das suas principais finalidades, a organização social e
a consequente obtenção da justiça, a qual propicia a realização dos preceitos tutelados por
nosso estado democrático de direito, conforme disposto no texto preambular da
constituição federal brasileira.
Contudo, a conceituação, contextualização, objetivos e meios para a obtenção da
justiça se demonstra dinâmica, ganhando novos contornos, conforme a evolução da história
do direito e da filosofia política (esta, entendida como a área do conhecimento responsável
pela realização de um exame rigoroso do uso que se faz dos termos do vocabulário
político).
66
O que é justo é um tema discutido desde o período clássico da filosofia ocidental,
sendo assunto corrente na ágora ateniense e objeto de estudo por grandes pensadores como
Platão e Aristóteles.
Para o fundador do Liceu, a justiça se trata da virtude mais completa, pois além de
propiciar a boa vida ao homem, ela diz respeito ao bem de outrem, transcendendo,
portanto, a ação pautada no próprio ego e no benefício singular.
Outrossim, a justiça aristotélica se divide em duas formas: quanto a divisão dos
bens e honrarias, a chamada justiça distributiva (objeto deste trabalho), pautada no
princípio da distribuição de acordo com o mérito individual; e a corretiva, concernente as
relações de transições entre os homens, podendo ser voluntária ou involuntária.
No período medieval, em razão da forte influência clerical, a justiça (ou o que é
justo) ganha revestimentos divinos, entendimento o qual, em virtude do fortalecimento do
estado, da evolução do movimento iluminista e advento da nova classe burguesa, é
superado pelo pensamento moderno jurídico; a justiça passa ser a mera consequência da
correta aplicação da norma universal e abstrata do direito positivado, possuindo na obra
teoria pura do direito (1934), a qual prega o jus positivismo estrito do jurista Hans Kelsen,
a sua principal manifestação.
Contemporaneamente, a justiça distributiva formulada por Aristóteles ganhou
contornos distintos com John Rawls, o qual prescreve pela equidade entre os cidadãos na
divisão dos bens comerciais e não comerciais, cabendo às instituições sociais a sua
distribuição igualitária, sem distinções de mérito ou outras questões particulares.
No Brasil, diante das políticas afirmativas, como por exemplo, as quotas
aplicáveis na seleção do ingresso nas universidades e concursos públicos; nas políticas
sociais, distribuição de renda e nas questões tributárias (alíquotas progressivas, conforme o
valor do bem tributado), nota-se forte influência do pensador Norte-Americano.
Contudo, diante de nosso atual cenário político, diretamente influenciado pelos
interesses partidários, a formulação de justiça raleseana, parece ser utilizada com moeda de
barganha, ou seja, a distribuição é realizada com interesses particulares, qual seja, a
perpetuação do poder.
Diante de tal cenário, o estudo da filosofia meritocrata de Aristóteles ressurge
como mecanismo importante de análise.
67
A PRÁTICA E O CARÁTER: OS CAMPOS DE ATUAÇÃO DA JUSTIÇA
ARISTOTÉLICA
Nesse sentido, a dificuldade maior está na direção da ação pelo homem, pois o
horizonte ou a possibilidade para o sucesso ou insucesso é exatamente o mesmo. O caráter
só poderá ser definido quando houver a possibilidade de resultados opostos:
68
prática em situações que podem ter resultados opostos. Por isso que as ações
praticadas têm de restituir disposições constitutivas de uma mesma qualidade,
quer dizer, as disposições do caráter fazem depender de si as diferenças
existentes nas ações levadas à prática. Com efeito, não é uma diferença de
somemos o habituarmos-nos logo desde novos a praticar ações deste ou daquele
modo. Isso faz grande diferença. Melhor, faz toda a diferença (ARISTÓTELES,
2009, P. 234).
A lei prescreve, pois ações a realizar: ao corajoso, como, por exemplo, não
abandonar o seu posto, nem fugir ou deitar as armas fora; ao temperado, como
por exemplo, não cometer adultério nem ser insolente; ao gentil, como, por
exemplo, não bater, nem falar mal de alguém, e ao mesmo a respeito das outras
excelências e perversões, na medida em que exorta a umas e proíbe outras
(ARISTÓTELES, 2009. p 41).
69
completa das virtudes, como será tratada a seguir, será alcançada pela prática reiterada das
ações justas as quais fazem parte do caráter do homem justo.
A justiça é a única das excelências que parece também ser um bem que pertence
a outrem, porque, efetivamente, envolve uma relação com outrem, seja esse
alguém superior ou um igual. O pior de todos é, então, o que é mau para si
próprio, e também para outrem. O melhor de todos, por outro lado, é o que
aciona a excelência tanto para si próprio como para outrem. (ARISTÓTELES,
2009. p 103)
A própria justiça é, então, uma excelência completa, não de uma forma absoluta,
mas na relação com outrem. É por esse motivo que frequentemente a justiça
aparece com a mais poderosa das excelências, e nem a estrela da tarde nem a
estrela da manha são tão maravilhosas. (ARISTÓTELES, 2009, p. 104)
70
bem. Daí resulta importância extrema dada a justiça, a qual, mesmo advinda de um ato
individual, comunica e reflete na vida de outrem, e vice-versa.
A importância da justiça perante outrem é clarificada na transcrição abaixo:
Além conclui: “Assim entendemos por justo num certo sentido o que produz e
salvaguarda a felicidade bem como as partes componentes para si e para toda a
comunidade.”
Deste modo, visto que a ação justa propicia a felicidade própria e alheia o seu o
reflexo benéfico a outrem e a coletividade como o todo, a justiça se apresenta como a
virtude máxima a ser buscada pelo homem.
Uma vez que o injusto é o que quer ter mais do que é devido, ele é assim
definido a respeito dos bens. E, na verdade, não a respeito de todos os bens, mas
apenas a respeito daqueles que dependem da boa e da má sorte. Estes são bens
em sentido absoluto, mas nem sempre são bens por relação com cada um
individualmente. Os humanos pedem-nos em preces e perseguem-nos. Mas não
deviam. Deviam era antes pedir que os bem em sentido absoluto fossem também
bens relativos ao próprios, e assim escolher o bem absoluto em si como um bem
relativo para si. (ARISTÓTELES, 2009, p. 104/105)
“Uma das espécies de justiça em sentido estrito e do que é justo na acepção que
lhe corresponde, é a que se manifesta na distribuição de funções elevadas de
71
governo, ou de dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas entre os
cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela constituição da
cidade, pois em tais coisas uma pessoa pode ter participação desigual ou igual à
de outra pessoa.” (ARISTÓTELES, 1996, p. 197)
Nesse sentido, o que existe como critério de distribuição dos bens não é uma
divisão equânime, e sim a proporcionalidade, conforme interpretou France Farago:
Para Aristóteles, justiça significa dar às pessoas o que elas merecem, dando a
cada um o que lhe é devido. Mas o que uma pessoa merece? Quais são as
justificativas relevantes para o mérito? Isso depende do que está sendo
distribuído. A justiça envolve dois fatores: as coisas e as pessoas a quem elas são
destinadas. E geralmente dizemos que pessoas iguais devem receber coisas
também iguais. (ARISTÓTELES, 2009, p. 234)
Portanto, para auferir o que é justo, será necessário a análise dos critérios acima
elencados: duas pessoas e duas coisas. Assim, a distribuição, diante desta formulação de
Aristóteles não pode ser idealizada ou normatizada pelo Estado. A distribuição dependerá
do mérito de cada indivíduo em relação a importância da sua ação, ou seja, o justo é
variável, dependendo da análise do caso concreto.
Outrossim, a distribuição dos bens deverá levar em conta critérios relevantes as
virtudes que se pretende bonificar, como escreveu Sandel ao tecer críticas a Aristóteles:
Assim sendo, a Polis deverá considerar o que é pertinente a cada excelência para
melhor distribuir os bens e as honrarias.
72
Também, o individuo, sob pena de se configurar a injustiça, não poderá ter o que
não é lhe devido conforme seu mérito, é a abstenção do bem alheio, como nos ensina John
Rawls, o qual acredita que caberá as instituições sociais a interpretação de tal direito:
CONCLUSÃO
73
campo de atuação, os benefícios dos atos justos serão comungados entre todo o Estado,
motivo pelo qual, a justiça é considerada a máxima das virtudes.
REFERÊNCIAS
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.
SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias.
Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2013.
74
FILOSOFIA EM EDUCAÇÃO DAS SÉRIES INICIAIS:
RETORNO AO ESPANTO E À CRIATIVIDADE
Fernanda Martins de Oliveira
Universidade Estadual de Londrina
nand_amar@hotmail.com
RESUMO
A INFÂNCIA E A FILOSOFIA
Várias são as discussões em torno da educação desde há muito tempo atrás, até os
dias de hoje. Os temas discutidos são muitos: analfabetos funcionais, inclusão, cotas,
ensino/aprendizagem, dentre outros; no entanto, atentar-me-ei neste trabalho em uma
proposta de discussão sobre filosofia para crianças, e no método de ensino na visão
docente, e assim às questões que serão colocadas aqui tem como propósito a tentativa de
75
entender um pouco mais desse mundo filosófico com crianças, que muitos dizem não ter
condições de acontecer, pois o pensamento que se tem é ; já é difícil ensinar filosofia para
adolescentes e adultos – imagine-se então ensinar filosofia na educação infantil e em anos
iniciais. "Mas todos aqueles que estão diretamente relacionados com crianças pequenas
sabem que as mesmas pensam e verbalizam o que pensam; às vezes, inclusive, de forma
demasiadamente enfática." (KOHAN; Leal, 2001, p. 365). A partir disso surgem os
primeiros questionamentos: como ensinar filosofia? E de que forma aconteceria o
aprendizado filosófico na fase infantil? Como tornar criativas as crianças em meio a tantas
coisas imediatas?
É na infância que o ser humano absorve boa parte daquilo que vive em seu
ambiente, e das pessoas com as quais ele convive ou são responsáveis por ele. E nesta troca
de experiências, e absorção de vivência ambiental, é que se definem os parâmetros mentais
socialmente alimentados, de tal modo que esses acúmulos de vivência vão formando o
alicerce que vai garantir a construção de sua vida. A criança começa então sua relação com
o mundo e com as pessoas que a cercam, assim como os valores éticos que essa carregará
durante toda a sua vida. Portanto remete-nos a pensar na falta de criatividade que rodeia a
humanidade perante as coisas imediatas das tecnologias avançadas das quais temos tanta
dependência atualmente. O espanto é um evento necessariamente indispensável ao sujeito
criativo, e que tem sido prejudicado e vem se perdendo na era da modernidade, e em
consequência disto, a criatividade que é essencial ao sujeito fica prejudicada ou quase nula.
Com o acumulo do processo de coisas imediatas que o mundo moderno criou, é necessário
que possamos rever e identificar nos conceitos, caminhos que levaram a um olhar mais
detalhado do problema. E assim analisar em que sentido isso possa contribuir para uma
possível saída. Ou seja, para não perder a "subjetividade" criativa, visto que essa
desconstrução parece nos tirar do espanto que é natural ao sujeito em sua natureza. E que
se não há espanto não pode haver criatividade e assim o mundo parece não ter sentido para
vida. Vilém Flusser coloca neste caminho uma questão que a primeira vista parece ser
drástica: Por que não me mato? já que estamos caminhando para tal mundo tedioso, a
solução parece que seria matar-se já que esse mundo vem massacrando com suas coisas
que se precipitam sobre ele e que cada vez mais nos tornam dependentes e alienados. A
idealização de uma educação não pode estar pautada em uma educação domesticada e
alienada, deve acima de tudo ter consciência do ser como construtor desta caminhada rumo
à autonomia, e não apenas reprodutores de algo que já está colocado, ao mesmo tempo tem
76
por dever ser constituinte dessa sociedade segundo as leis que a rege. Assim sendo não
apenas aprender sem o devido entendimento.
EDUCAÇÃO E FILOSOFIA
77
dificuldades encontradas: não permite que se dê continuidade em muitas disciplinas sem
rever partes importantes que se perderam em algum lugar lá atrás. O que fazer então?
Como mudar isso? Por onde começar? Essas são apenas algumas perguntas que já
incomodam, e mais: sem muitas respostas à vista (ou melhor dizendo, sem muitos
interessados em resolvê-las, seja de imediato ou a longo prazo).
O que se vê são programas criados que incluem a filosofia para tentar melhorar a
educação; no entanto, de nada adiantam, ou não são suficientes para que essa melhoria
aconteça. Na realidade, muito pouco se tem feito, e esse pouco caminha a passos de
tartaruga, ficando assim longe de ser modelo de educação.
A nosso ver, não apenas um olhar sobre Filosofia para crianças em fases iniciais
seria parte de uma possível solução nesse caminho como também uma mudança nos
métodos de ensino que necessitam de cursos que preparem melhor os professores que
tratarão com tal crianças, pois não adianta pensar que o problema esta exclusivamente nas
crianças e adolescentes e sim que não há suporte para preparar melhor os profissionais da
área de educação. Assim esse tema vai muito além de ensinar filosofia e sim de como os
docentes também são preparados para tal problema. O professor deveria ser o primeira a
buscar sua criatividade de forma espantosa e somente assim poder iniciar um processo de
ensino\aprendizagem que fosse ao encontro dessa criatividade que aos poucos foi perdendo
força, romper as correntes e deste modo, buscar resoluções para tais problemas aqui
colocado, e com isso buscar verdadeiramente a emancipação de uma sociedade que esta se
formando.
É como lançar uma luz na escuridão, em se tratando de evolução da educação. E
para isso é necessário que o ser humano busque em primeiro lugar o conhecimento de si
78
mesmo, e é nisso em que a filosofia pode ajudar, despertando esse ser para uma nova
realidade, um mundo onde as possibilidades se multiplicam de acordo com seus
conhecimentos. "A busca mais importante de todos os seres humanos é a busca de si
mesmos, que a essa busca se remetem todas as outras buscas." (KOHAN, 2009; p.131).
A educação infantil é uma porta aberta para explorar a aprendizagem, e para que o
conhecimento aconteça, é necessário mudança. "No modo tradicional de pensar a educação
filosófica da infância, levamos a filosofia à escola para formar crianças que sejam, no
futuro, adultos mais democráticos, tolerantes e responsáveis." (Walter Omar KOHAN,
2006; p.132). Nesta fase, as crianças buscam o conhecimento e necessitam saber de tudo
que se mostra no mundo ao seu redor, querem desvendar os mistérios que lhes vão sendo
apresentados naturalmente pela vida e convívio com outras crianças, e isto não deve ser tão
e somente feito de forma mecanizada, e sim de modo desafiador e interessante, para que se
desenvolva em um ambiente onde o aprendizado possa se tornar instrumento de autonomia
e democratização social. Neste ponto miro um olhar em Rousseau e sua obra Emílio, será
que o autor estaria correto ao criar o seu personagem Emilio, em meio a natureza para que
este não perdesse a criatividade, e tornar o espanto algo tão natural que não se perderia
nem mesmo envolto a modernidade com seus instrumentos facilitadores? Pois ele teria
sempre um olhar voltado a sua infância já que é nela que construímos a nossa vida?
As crianças em fase escolar inicial estão sedentas pelo saber, pelo aprendizado;
essas são curiosas incansáveis, não se satisfazem com apenas meias respostas, estão
sempre prontas a perguntar os porquês dos porquês. "As crianças pequenas e a filosofia são
aliados naturais, pois ambos começam com o assombro." (KOHAN; WUENSCH, 1999, p.
24). Desse modo, as crianças nesta fase estão abertas ao conhecimento que lhes é estranho
e esperam respostas que possam satisfazê-las, de forma a compreender esse mundo novo e
cheio de novidades, e ao inquietarem-se com as respostas, passam a explorar novas coisas
que se tornam novamente interessantes, e desta forma ficam gravadas na memória. Esse
interesse maravilhado pelo mundo é o que motiva as crianças a buscarem sempre novos
conhecimentos e serem criativas, e é o espanto das coisas que as movem para o saber; por
isto, exploram de forma intensa tudo aquilo que está presente nos acontecimentos de suas
vidas, e deste interesse surge um armazenamento de aprendizado que fica gravado na
memória. Percebem, por fim, prontamente que são capazes de trilhar novos caminhos por
79
conta própria, acontecendo neste momento a apreensão do saber.
A filosofia como uma ponte no qual possa refletir e pensar novamente, pois, seria
um repetir diferente do anterior, pois o tempo não é o mesmo que a um segundo atrás, ou
seja, cada movimento do repensar de uma nova forma.A filosofia faz-se necessária não
para induzir, mas com a intenção de conduzir a criança rumo ao conhecimento,
conhecimento este não apenas externo: vai além disso, vai em direção também à busca de
seu entendimento interno, podendo conduzir questões como: De onde viemos? Para onde
vamos? Qual o propósito da vida? Aprendendo, assim, a perceber suas potencialidades e
seus próprios caminhos, buscar novas conquistas, novas descobertas, podendo inferir
acerca desses novos caminhos, e que isto não seja de forma mecanizada, e sim de forma
que se pense no que se está apreendendo. "A experiência interna separada da experiência
externa é um lugar de demônios – o mundo interno é sem sentido. O que une esses dois
mundos é a imaginação comum ou o espírito criativo." (Kohan e Leal, 2001, p.65).
80
desenvolver o autoconhecimento, e para isto, por sua vez, é necessário muito mais do que
repetição. O que foi explanado até aqui não tem a pretensão de que isto seja trabalhado de
forma imediata, e sim visa que se deva começar o quanto antes; ou seja, desde a Educação
Infantil, para que quando se chegar ao ensino médio ou faculdade já se tenha como expor
criticamente pensamentos e práticas.
81
potencialidades e seu interior, é necessário, no nosso entender, além de um simples ensino
mecanizado, um sistema com base em autoconhecimento, o qual possa despertar interesse
ético e democrático, podendo então haver mutuamente a compreensão daquilo que é
melhor para um convívio em sociedade, e assim assumir verdadeiramente o cidadão seu
papel na sociedade.
REFERÊNCIAS
82
O SENTIMENTO DO MUNDO: FICHTE E O PROBLEMA DA AFECÇÃO
RESUMO
Não é preciso consultar longamente seu léxico para encontrar a partiendo, posto
que a alma sofre como que distorções quando é pressionada e solicitada um
pouco além da medida, de algum desses movimentos, o que poderia convir com
a opinião daquele filósofo antigo que chamava as paixões de doenças da alma.
Poder-se-ia alegar, ao contrário, que esse nome parece impróprio para a coisa à
qual se quer uni-lo, parecendo ter mais afinidade com o corpo do que com a
alma, que por sua natureza parece impassível, como uma forma viva e
vivificante, nascida mais para agir do que para sofrer a ação, se não se quisesse
dizer que nessa matéria passio tirasse sua origem do verbo grego ποιέω, que
16
Inspiramo-nos, para o tema, com a leitura do artigo do professor Rivera de Rosales: La relevancia
ontológica del sentimiento en Fichte (López-Domínguez, 1996, pp. 245-74). A nossa abordagem da questão
pressupõe – e por isso não repete – os esclarecimentos presentes no artigo. Esta comunicação é parte de
pesquisa por nós desenvolvida ao longo do curso de mestrado em filosofia pela UFPR, concluído em março
de 2013.
83
significa fazer, de onde teria procedido a palavra πάθος, de onde vem o termo
paixão. E, de fato, quem quiser considerar de perto as paixões em seu ser
específico encontrará que elas são antes movimentos da alma agindo do que
suportando: o amor, o ódio, a cólera e as outras parecem agir contra ou a favor de
seus objetos, mais do que serem atingidas por estes. (DESCARTES, 1998, p.
XXXVI)
Ainda que o grego πάθος enfatize a ação, essa é pensada como um momento do
fenômeno geral de “ação de uma realidade externa” (DESCARTES, 1998, p. XXXVI). A
modernidade, enquanto fundação da subjetividade, romperá com a noção clássica de
paixão, esforçando-se por compreender parte da vida afetiva como originária ou, pelo
menos, condicionada pela natureza do sujeito. Precisamente, o sensualismo moderno que
critica a distinção substancial entre corpo e espírito encarregar-se-á de distinguir os afetos
das afecções dos sentidos, para então, com o romantismo e suas origens, distinguir os
afetos dos sentimentos. É que o advento da subjetividade forçará o pensamento a pensar
uma instância anterior, ou pelo menos rigidamente distinta, da consciência em relação à
exterioridade física. Em termos kantianos, especialmente, isso pode ser traduzido pelo
esforço de pensar um a priori como condição de aparecimento de todo conhecimento,
inclusive do psíquico. Se em Kant, porém, ainda conserva-se a irredutibilidade da
sensibilidade em relação ao entendimento, começa a se delinear uma transcendentalização
dos sentimentos; presença ocasional do sentimento-de-si na primeira Crítica, passando pela
importância notória do sentimento de respeito na segunda, para então na terceira ocupar
lugar central os sentimentos de prazer e desprazer, para explicação dos juízos estéticos.
Contudo, como veremos, ainda em Kant os sentimentos – exceção, talvez, ao de respeito
na filosofia prática – são pensados como estritamente ligados às sensações: o sentimento
depende da sensação. Em Fichte, a sensação depende do sentimento.
17
Cf. “Sed ne me putes improbasse schedium Luciliane humilitatis, quod sentio et ipse carmine effingam”
(PETRÔNIO, 2004, p. 16).
84
antes mais próximo do termo, também moderno, pressentir, isto é, entrever – para o de ser
senciente. Com efeito, o ser senciente deriva do latim (séc. XIII) sentiens, como adjetivo
de segundo grau: que sente18. Na romanização do latim, o francês é a língua que parece ter
dado mais interesse ao vocábulo, pois é dela que data – séc. XVIII – a apropriação da
forma latina mais acabada (sentīmentum), a saber, sentimental, e dele derivaram as
variações hoje usuais inclusive no português: sentimentalismo, etc.
Em termos de história da filosofia, por outro lado, parece não haver consenso
sobre seu aparecimento. O termo aparece, claramente distinto da sensação e assim
tematizado, no Traité des sensations (CONDILLAC, 1754, p. 28), de Condillac – “O
sentimento (sentiment) é capaz de ser mais vivo que a sensação (sensation)” (tradução livre
nossa). Mais importante que a mera distinção de denominação ou grau, é a ideia do
sentimento como um estado passível de existir sem uma relação causal direta pelos
sentidos, isto é, sem uma relação do corpo com algo externo a ele:
Como já distinguimos duas atenções, que estão na estátua, uma pelo olfato, a
outra pela memória, podemos agora perceber uma terceira, que dá à imaginação,
e cuja característica é fixar as impressões dos sentidos, para substituir um
sentimento independente da ação dos objetos externos (CONDILLAC, 1754, p.
57).
18
Assim, o termo já aparece no Dolce stil novo, notadamente nos poemas de Vita nuova, de Dante Alighieri,
por exemplo, “né dentro i sento tanto di valore” (poema L), “poi tanto furo, che cio che sentire” (poema LI),
“sentiron pena de l’altrui dolore” (poema LVIII), “ché quella bella donna che tu senti” (poema LXXIX),
(ALIGHIERI, 1996).
85
uma síntese indissoluvelmente psicológica e moral, o sentimento como afeto e o
sentimento como consciência” (DESAN, 2007, p. 1059). Enquanto afeto, o sentimento não
é nada mais que o modo como somos afetados pelas coisas:
...a crítica dos sentidos que encerra a Apologia de Raimond Sebon denuncia o
caráter enganador: alterando a forma das coisas. Por isso, a sensibilidade não
pode estabelecer um conhecimento objetivo do mundo (II.12.601). Mas quando
atenta-se à maneira como ela nos afeta (que é o sentimento mesmo), sem
acreditar ingenuamente que deste modo nos são dadas as características das
coisas que nos afetam, acerta-se. Isto quer dizer que da sensibilidade Montaigne
retém apenas o sentimento, dando a ele a presidência. Não há ciência senão do e
pelo sentimento (DESAN, 2007, p. 1060).
Por outro lado, Desan julga que, após uma crítica aos “doutos que pretendem
conhecer a natureza”, mas nada mais “fazem do que reduzir suas regras à sua fantasia
(II.12.526), projetando sobre a natureza esquemas mecânicos que lhe são estrangeiros
(II.12536)”, portanto, uma crítica a um realismo ingênuo, Montaigne “reivindica um
conhecimento que procede inteiramente do sentimento” (DESAN, 2007, pp. 1059-60);
para tanto, ele cita o último dos ensaios, o Da experiência: “Nessa universalidade, deixo-
me ignorantemente e negligentemente manejar pela lei geral do mundo. Conhecê-la-ei o
suficiente quanto a sentir (III.13.1073)” (MONTAIGNE, 2001, p. 434), o que se esclarece
ainda pela frase anterior de Montaigne: “Estudo a mim mesmo mais do que a outro
assunto. Essa é a minha metafísica, essa é a minha física” (MONTAIGNE, 2001, p. 434).
Ademais, continua o comentador, “a ignorância representa o fundamento de uma ciência
genuína, que acessa a pureza do sentir por ter rompido com as construções artificiais da
opinião” (DESAN, 2007, p. 1059), referenciando: "Só me julgo por sensação real (vray
sentiment), não por raciocínio (III.13.1095)” (MONTAIGNE, 2001, p. 469). Neste
sentindo, como consequência da aproximação que o comentador faz (a partir das passagens
em que Montaigne emprega a palavra sentimento e suas flexões, da crítica dos sentidos e
da ciência) com a leitura dos Ensaios como “experiência, vivida em primeira pessoa, e
como análise”, o sentimento ganha uma segunda direção, nas palavras do comentador, “a
dupla dimensão do sentimento”. Trata-se da “efetividade do sentir e a consciência que esta
experiência implica por si mesma” (DESAN, 2007, p. 1060). A consciência do sentimento
é, para Desan, uma chave para o que ele chama de “ética sutil de Montaigne”.
86
Independentemente da correção das teses de Desan19, o que importa aqui é a presença que
ele aponta do sentiment – cremos nós, irredutível ao páthos antigo – nos Ensaios. De resto,
segundo entendemos, essa recorrência do termo, nas passagens invocadas por Desan, não
permitem por si só, sem pouca controversa, postular uma teoria do sentimento
suficientemente desenvolvida, em especial uma determinação fixa do termo, em distinção
às paixões em seu sentido lato. É esta a tarefa que Fichte pretende levar a cabo.
87
fenomênica, o que vale dizer que as categorias não têm um uso válido quando se pretende
conhecer as coisas-em-si-mesmas e o suposto papel delas no começo do conhecimento
sensível.
Jacobi alega (JACOBI, 2006, pp. 301-2) 22 então que, para não sucumbir às
consequências de um fenomenalismo fechado, portanto, à acusação de idealismo no
sentido dogmático, Kant acaba por aceitar uma tese realista que, por sua vez, contradiz
momentos fundamentais de sua teoria. Contudo, a despeito de uma aparente contradição,
Kant tem de partir da postulação de objetos que “provocam impressões, dando lugar desse
modo às representações” (KANT, 2001, B1), pois do contrário não é possível explicar
como temos representações, caso não se queira, como é o caso de Kant, derivá-las do
próprio sujeito; assim, sem este ponto de partida o idealismo transcendental não poderia se
auto sustentar:
22
Cf., loc. cit., “Creio que isto é o suficiente para provar que a filosofia Kantiana abandona (verläßt)
completamente o espírito de seu sistema quando diz dos objetos que estes impressionam (Eindrücke) os
sentidos, em virtude do que provocam sensações (dadurch Empfindungen erregen) e assim suscitam
representações (Weise Vorstellungen zuwege bringen): pois, segundo a doutrina kantiana, o objeto empírico,
que é sempre apenas fenômeno, não pode existir fora de nós, e não pode ser outra coisa que uma
representação; do objeto transcendental, no entanto, não sabemos sequer o mínimo (von dem
transcendentalen Gegenstande aber wissen wir nach diesem Lehrbegriffe nicht das geringste); e não se trata
dele, em absoluto, ao se considerar os objetos (wenn Gegenstände in Betrachtung kommen); seu conceito é,
ademais, um conceito problemático, o qual repousa (beruht) sobre a forma do nosso pensamento,
completamente subjetivo correspondente (zugehörigen) à sensibilidade que nos é característica (unserer
eigenthümlichen); a experiência não lhe dá nada, e não pode, de forma alguma, dar-lhe alguma coisa, posto
que aquilo que não é fenômeno, nunca pode ser um objeto da experiência; o fenômeno, no entanto, e esta ou
aquela afecção da sensibilidade em mim (und daß diese oder jener Affection der Sinnlichkei in mir ist), não
constitui (ausmacht) qualquer referência (Beziehung) de tais representações a um objeto qualquer (auf irgend
ein Object)”.
88
Também sumariamente, podemos entender do seguinte modo a réplica a Jacobi por
parte de Reinhold: As coisas-em-si não podem ser conhecidas, podem, porém, ser
pensadas. Mais, devem ser pensadas:
89
para dar acabamento sistemático ao edifício do nosso conhecimento empírico, admitindo
assim o conceito problemático de númeno.
A nosso ver, este argumento reinholdiano é impecável, mas limitado. Impecável,
para responder à objeção de Garve: se só temos a ver com nossas representações, a
filosofia transcendental é um idealismo superior23, isto é, empírico, como o de Berkeley, e
o conceito de coisa-em-si é arbitrário e contraditório. Limitado para responder, pelo menos,
a uma questão de Jacobi: Kant precisa admitir e admite claramente que coisas-em-si
afetam os nossos sentidos e, assim, proporcionam a matéria das nossas sensações, que
serão formalizadas pelas intuições e pelos conceitos, para construir o conhecimento
objetivo, mas, ao mesmo tempo, se admite isso, nega outra tese capital da filosofia
transcendental e da distinção entre fenômeno e coisa-em-si: as categorias do entendimento,
que Kant justificou a validade necessária e universal na Dedução das categorias do
entendimento, por isso mesmo só tem validade quando aplicadas única e exclusivamente às
representações sensíveis. Kant aqui, afirma Jacobi, não é apenas circular, é também e
sobretudo contraditório.
Em outras palavras, segundo Jacobi e seu “problema da coisa-em-si” (que tem uma
estrutura tripla, mas cuja tese forte é a do problema da afecção), ainda que Kant não seja
nem cético nem idealista empírico (eis as outras duas objeções da tríplice objeção
jacobiana), ele continua a ser algo bem pior, contraditório. Daí a conclusão de Jacobi, o
idealista transcendental “tem que negar as coisas-em-si” e “afirmar o idealismo mais forte
que já existiu” (JACOBI, 1812-1825, p. 310, JACOBI, 2006, p. 223).
Disso, chegaremos à seguinte constatação: a contra objeção reinholdiana responde
perfeitamente à objeção de Garve, mas nem arranha a objeção das afecções de Jacobi. E, à
seguinte proposta de tese de leitura da solução fichtiana ao problema da coisa-em-si: Para
Fichte, a solução ao problema de Jacobi, que ao mesmo tempo muda a contra objeção a
Garve, é: Não temos a ver apenas com representações – ideias, intuições e conceitos –, o
temos apenas do ponto de vista teórico; temos a ver também com sentimentos, isto do
ponto de vista prático; e é do ponto de vista prático que o problema de Jacobi – o problema
das afecções – é resolvido: não somos afetados pelas coisas-em-si, pois sem dúvida
23
Cf. citação de KANT (1987, p. 175, Ak. 204): “Esta obra é um sistema do idealismo transcendente (ou,
como ele traduz, superior)”. Acusação que Kant interpreta do seguinte modo: “todo o conhecimento a partir
dos sentidos e da experiência nada mais é do que ilusão, e a verdade unicamente existe nas ideias do
entendimento puro e da razão pura” (idem, p. 176, Ak. 205), opondo a seguinte sentença como sendo a
expressão de seu idealismo: “todo o conhecimento das coisas a partir unicamente do entendimento puro ou
da razão pura não é mais do que ilusão, e a verdade existe apenas na experiência” (idem, ibidem).
90
“afecção” é um termo empírico e só pode ser tomado nesta significação, somos sim
tocados, através de um sentimento, por algo que, feita a reflexão, determinados os
conceitos, aplicados – pelo poder fundamental da imaginação – os conceitos às sensações,
chamamos de coisas-em-si, mas já desde este ponto de vista empírico; do ponto de vista
transcendental, reflexionante, subjetivo, este sentimento é só um sentimento, isto é, algo
simplesmente subjetivo, que remete a um Não-Eu, que representamos como o limite da
ação prática no mundo.
Quando Kant fala de coisas-em-si do ponto de vista filosófico, o sentido do
conceito distingue-se daquele no sentido empírico. Nesse, coisas-em-si são objetos que
existem prontos independente e anteriormente ao sujeito; naquele, fala-se apenas de
númenos, de objetos pensados, não de uma existência objetiva (que só diz respeito ao
ponto de vista empírico). O númeno é o objeto posto pelas leis necessárias de nossa razão,
que acrescentamos aos fenômenos para dar-lhes objetividade. Fichte mantém este sentido,
pois com ele podemos explicar como objetos parecem independentes de nossas
representações e ainda assim não são entidades transcendentes.
Desta forma, a rejeição de Fichte se refere ao conceito de algo que não pode ser
conhecido, pois indica uma entidade que transcende o âmbito de acesso e legislação do Eu.
Mas o conceito é mantido no segundo sentido exposto: o de um pensamento necessário de
objetos que não podem ser identificados ao Eu, mas que, ao contrário, devem ser pensados
como limite de sua atividade, sendo para o Eu um Não-Eu. A oposição entre Eu e Não-Eu,
diz Fichte, é conditio sine qua non para o conhecimento do Eu, posto que conhecer é
determinar, portanto, distinguir precisamente que algo é diferente de algo outro. Esse Não-
Eu é, pois, o pensamento necessário (númeno) de algo que se opõe absolutamente ao Eu,
mas, enquanto tal, é ainda um pensamento do Eu. O limite ou choque (Anstoss) à atividade
do Eu, posta pelo Eu como a existência de um Não-Eu, não se dá por nenhum
conhecimento propriamente dito, mas por sentimento (Gefühl). Algo externo ao Eu, que o
limita, é um pensamento necessário para explicar a limitação sentida pela atividade prática
do Eu, ou melhor, da “percepção imediata da mesma” (FICHTE, 1984, p. 353).
O termo sentimento aparece justamente como uma alteração do termo usado por
Kant nos trechos que fomentaram a polêmica em torno da coisa-em-si, a saber, sensação
(Empfindung). A sensação, enquanto tal, só existe na relação com um objeto; o sentimento,
a contrario, não remete a nada, em sua origem, além do Eu, por isso Fichte chama-o
sentimento original (ursprüngliche Gefühl). Não entender este sentimento como
91
absolutamente originário, isto é, postular algo anterior a ele, que o causa, é o próton
pseudós de céticos e dogmáticos:
O que ainda vale ser mencionado aqui, é: a solução fichtiana, isto é, a volta aos
sentimentos, pela reflexão, para resolver o problema da coisa-em-si tal como ele foi
elaborado por Jacobi, sem contudo deixar de responder, de outro modo, ao problema de
Garve e a outros tantos problemas livremente admitidos por Kant, esta solução, dizíamos,
aproxima Fichte de Rousseau, concretamente do Discurso sobre a origem da desigualdade
entre os homens, o que trataremos a seguir.
REFERÊNCIAS
CONDILLAC, E. B. Traité des sensations, Tome II, Londres: Bure L’aîné, 1754.
Disponível em:
<http://fr.wikisource.org/wiki/Trait%C3%A9_des_sensations/Premi%C3%A8re_partie>.
Acesso em 10/10/2010.
DESAN, P., Dictionnaire de Michel de Montaigne, nouvelle édition revue, corrigée et
augmentée, Paris: Honoré Champion Éditeur, 2007.
DESCARTES, R., As paixões da alma, int., notas, bibliografia e cronologia por Pascale
D'Arcy, trad. bras. Rosemary Costhek Abílio, São Paulo: Martins Fontes. 1998.
DRUMMOND, C. de A. A noite dissolve os homens; Sentimento do mundo; Poesia
Completa, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2006.
EVA, L., A figura do filósofo, Ceticismo e subjetividade em Montaigne, São Paulo: Edições
Loyola, 2007.
92
_____________. A Doutrina-da-Ciência de 1794. Tradução: Rubens R. Torres Filho. In:
Os Pensadores. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
GIL, F. Recepção da crítica da razão pura: antologia de escritos sobre Kant 1786-1844.
Coordenação: Gil, Fernando. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de
Educação, 1992.
____________. Crítica da razão pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbekian: 2001.
MONTAIGNE, M., Os ensaios: livro III, trad. de Rosemary Costhek Abílio, São Paulo:
Martins Fontes, 2001
93
Duarte, 1992. In: GIL, F., Recepção da crítica da razão pura: antologia de escritos sobre
Kant 1786-1844. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Educação, 1992.
PETRÔNIO, Satyricon (edição bilíngüe), trad. Sandra M. G. Braga Bianchet, Belo
Horizonte: Crisálidas, 2004.
94
O CULTIVO DE SI EM HUMANO DEMASIADO HUMANO
Jordan Pagani
Universidade Estadual de Londrina
paganijordan@yahoo.com.br
RESUMO
Nietzsche, em Humano Demasiado Humano, concebe a moral como um comportamento
de rebanho no qual tanto o pastor – como por exemplo um sacerdote – bem como a ovelha
– tal como o cristão – como sendo mutuamente dependentes. O pastor apesar de guiar as
ovelhas, de certo modo depende de determinadas nuances impostas pelas ovelhas, ou seja,
não age autonomamente. As ovelhas, por sua vez, agem segundo os mandamentos do
pastor, portanto não são livres, em um movimento de desprezo de si no qual sua força
reside no seu poder de contágio paralisante na compaixão. Este comportamento observado
através do filosofar histórico parece produzir um ressentimento causado pelo agir – no caso
de não se agir de acordo com a moral ou mesmo faze-lo quando esta não se configura de
acordo com a própria vontade. Além disso o comportamento de rebanho parece ser nocivo
ao próprio pensamento e à cultura visto que, por se basear na reprodução do mesmo
(moral), faz com que permaneçamos paralisados. Ora, nota-se nas obras analisadas o devir
do ser humano, de onde se segue que devemos viver nossa vida através da perspectiva das
coisas humanas demasiadas humanas. Além disso, para superar esse tipo de
comportamento, parece ser de fundamental importância a radicalização, pois a moral bem
como todas as concepções de verdade metafísica, deve ser levada até às últimas
consequências pois, tal como defende Nietzsche, para se superar qualquer concepção deve-
se conhecer com profundidade aquilo que se quer superar, afim de que não passe
desapercebido nenhum erro, ou seja, se inserir de modo radical, bem como compreendendo
todo o horizonte que fundamenta uma dada perspectiva. O autor nos sugere então um
modo díspar de agir: o caminhar por si. Com efeito, somente a partir dessa perspectiva
Nietzsche parece estabelecer um modo de afirmar a vida e mesmo de aliviá-la. O presente
trabalho tem como objetivo demonstrar, a partir da reconstrução dos argumentos presentes
em Humano Demasiado Humano, Opiniões e Sentenças Diversas bem como em O
andarilho e Sua Sombra, como se dá o aliviamento da vida proposto no final do segundo
texto de Humano, bem como a afirmação da vida, através da libertação do espírito no
âmbito da construção e cultivo de si.
Palavras-chave: Nietzsche; Cultivo de si; Humano.
INTRODUÇÃO
95
O ser humano tem construído historicamente a pretensão de basear seus
conhecimentos em verdades universais e metafísicas. Nietzsche, apesar de considerar a
hipótese da existência de um mundo eterno e imutável, alerta que toda e qualquer crença
em semelhantes concepções foram sempre embasadas em erros da razão, imersas no hábito
de mentir para si mesmo por um longo período de tempo, até que se conceba como verdade
através da força do hábito e finalmente adquiram seu valor. Apesar de não podermos
afirmar consistentemente a inexistência dessas visões de mundo, nada podemos dizer senão
que o ser-outro, mesmo que se tivesse provado, na esfera do ser humano de nada serviria
uma vez que aquilo que faz com que afirmemos e mesmo aliviemos nossa existência é
composto de concepções humanas.
Humano Demasiado Humano é finalizado tendo como base duas promessas, quais
sejam: o aliviamento da vida e a afirmação da vida por meio de uma libertação. O presente
trabalho pretende demonstrar como seria possível atingir estas metas por meio do cultivo
de si.
O PROBLEMA DO MAL
Nietzsche nos sugere que no sonho ocorre algo semelhante ao que ocorre quando se
criam mitos. No sonho o homem tem acesso à retalhos imperfeitos do que vivencia, no
mito o homem tenta fundamentar uma concepção de verdade que explique tudo ou uma
parcela daquilo que o faz sofrer. Nos dois casos imperam eros, com efeito o mito muitas
vezes é criado através de sonhos – ditos revelações – ou mesmo de ilusões provocadas
quando ocasionalmente o (s) individuo (s) não está (ão) em seu estado perfeito da razão em
alucinações.
Mas qual o motivo pelo qual recorremos à instituições metafísicas? Isso se deve ao
fato de que, ao duplicarmos a realidade segundo a qual temos acesso nós a transferimos
para um plano no qual tudo é perfeito, então sentimos algo de belo frente à nossos olhos
visto que atribuímos sentido à todo o mundo, sem nos preocuparmos pelas causas de tal, de
modo que nos tornamos menos responsáveis, transferindo para essa esfera o móbile de
nossas ações.
96
que criamos para satisfazer nossa vaidade, nós a forçamos a se enquadrar em nossas leis,
estas ultimas não existem, mas nós a criamos.
É desse modelo que surge o julgamento moral que, por sua vez, se baseia no
conceito de livre-arbítrio não levando em conta que o indivíduo o faz segundo a
intelectualidade que possui ou seja, ele não poderia agir de outro modo senão do modo
como age.
97
para a relação de escravidão recíproca, já que aquele caminha à frente da massa depende
inteiramente da massa para determinar sua conduta. Na massa ocorre o mesmo movimento,
sendo que esta depende do pastor para agir.
Uma vez que são mutuamente dependentes, o pastor e a ovelha, não agem
completamente por si, mas pela doutrina:
Enquanto alguém conhece muito bem a força e a fraqueza de sua doutrina, de sua
arte, de sua religião, a força delas ainda é pequena. O discípulo e o apóstolo que,
cegado pelo prestígio do mestre e pelo respeito a ele devido, não enxerga a
fraqueza da doutrina, da religião e assim por diante, geralmente tem, graças a
isso, mais poder do que o mestre. Sem os discípulos cegos a influência de um
homem e de sua obra nunca se tornou grande. Ajudar no triunfo de um
conhecimento significa muitas vezes isto: irmaná-lo à estupidez de modo tal que
o peso desta consiga também a vitória daquele (HDH I 122 p. 90)
Um súbito horror e suspeita daquilo que amava, um clarão de desprezo pelo que
chamava “dever”, um rebelde, arbitrário, vulcânico anseio de viagem, de exílio,
afastamento, esfriamento, enregelamento, sobriedade, um ódio ao amor, talvez
um gesto profanador para trás, para onde até então amava e adorava, talvez um
rubor de vergonha pelo que acabava de fazer, e ao mesmo tempo uma alegria por
fazê-lo, um ébrio, íntimo, alegre tremor, no qual se revela uma vitória – uma
vitória? Sobre o que? Sobre quem? Enigmática, plena de questões, questionável,
mas a primeira vitória – tais coisas ruins e penosas pertencem à história da
grande liberação. (HDH I pr3 p. 9).
98
mais nenhuma força, senão a de contagiarmos o outro com nossa dor. Efetivamente o
escravo, em oposição ao indivíduo nobre que, por sua vez, tem no cultivo de si o
pensamento autônomo, sente a necessidade de se tornar doente e então suscitar compaixão
pois, assim exibe sua única força, o seu poder paralisante. A maldade então retrata uma
vingança que tem por conta da sua mediocridade em relação ao outro, afim de prejudica-lo
de algum modo.
Por isso, os indivíduos religiosos vivem em uma mentira astuta por somente agirem
moralmente onde rege a dor e esporadicamente experimentam momentos de dúvida que,
por não se permitirem pensar nada além do que se segue na doutrina, atribuem à algum
inimigo fantasioso como um demônio. Num exercício de mentir para si mesmos por um
longo período onde finalmente terminam acreditando e as máscaras com as quais cobrem
seus rostos tornam-se por fim partes dos seus.
Toda doutrina primeiro inventa uma doença para depois oferecer o remédio. Com
efeito é importante aos indivíduos fortes adoecerem as vezes, pois assim podem produzir
99
antídotos permanentes às mesmas. O problema está em que existe a possibilidade da
doutrina oferecer veneno como antídoto que, apesar de geralmente não matar, dependendo
da espécie do veneno, pode degenerar o indivíduo em vício como, por exemplo, o caso do
cristianismo que, ao demonizar o corpo, ofereceu a onipotência de Deus e seus
mandamentos para a salvação da alma. Assim a cultura finalmente criou o hábito de
demonizar tudo o que é humano. Daí o pensamento nietzschiano de que “é preciso termos
nascido para o nosso médico, senão perecemos por causa dele.” (HDH I 573 p. 249) Pois
todo indivíduo fraco age de modo agressivo e iníquo para parecer forte e todo aquele que
se constitui na escravidão e fraqueza, ao se deparar com o espírito-livre tentará aniquilar ou
mesmo prejudicar sua força.
100
projetos em que pode-se obter resultados a curto prazo vivendo-se em fragmentos de
experiências, negando a própria vida.
A LIBERTAÇÃO DO ESPÍRITO
101
evolução da ciência filosófica, até então maravilhosamente regular, mas sem
dúvida acelerada demais, foi destruída. [...] O período dos tiranos do espírito
passou. Pois em geral a doutrina oposta e o ceticismo falam agora com muito
mais força, e com voz bastante alta. Nas esferas da cultura superior sempre
haverá um predomínio, sem dúvida – mas esse predomínio está, de ora em
diante, nas mãos dos oligarcas do espírito. Apesar da separação espacial e
política, eles foram uma sociedade coesa, cujos membros se conhecem e se
reconhecem, seja qual for a avaliação favorável ou desfavorável disseminada
pela opinião pública e pelos julgamentos de jornalistas e folhetinistas influentes
na massa. [...] Os oligarcas são necessários uns aos outros, têm um no outro a sua
maior alegria, conhecem seus emblemas – mas apesar disso cada um deles é
livre, combate e vence no eu oposto e prefere sucumbir a sujeitar-se. (HDH I 261
p. 163 – 166)
Dito isto, Nietzsche parece nos sugerir que todo homem de espírito elevado têm o
domínio de si como objetivo indissociável da vida, consciente de que o bem e o mal não
difere senão em proporção de prazer e de dor em relação ao conjunto de valores em que se
está inserido.
Por essa razão, o espírito superior deve dedicar a maior parte do seu tempo ao ócio
que, na concepção do Humano, consiste em um ócio produtivo, a dedicação de seu tempo
para si, mas não à preguiça. Assim sendo, os negócios que, inevitavelmente o ser humano
se dedica para a nutrição e a sobrevivência de modo geral, devem ser efetuados somente
quando irremediavelmente for necessário. Em consequência disso, deve-se ter cuidado com
o convívio com os outros, para não se confundir e viver pelos mesmos em detrimento de si
aniquilando-se.
102
Inversamente toda a inteligência inferior concentra sua energia na representação do que lhe
é imposto culturalmente, pensando o mesmo, do mesmo modo. Por conseguinte, no que se
refere à educação, o espírito-livre aspira ser um exemplo de superação de si, expondo os
erros fundamentais da moral, remexendo os campos da metafísica, contudo, sem doutrinar
uma vez que, as opiniões, tal como as crenças ideais se caracterizam como um movimento,
sempre se alterando e, além disso, parece importante para Nietzsche que as opiniões não
nasçam prontas e, em algum momento, mudem de direção já que, contrariamente, o
espírito pode se tornar inerte e preguiçoso o que faz com que formule verdades universais
que, através da análise histórica jamais alguma se mostrou passível de demonstração,
portanto deve-se falar apenas em probabilidade; todo educador, por conseguinte, é uma
agressão ao pensamento elevado. Ora, todo indivíduo que aspira nobreza deve ter
consciência de sua própria imperfeição e não buscar, evidentemente, algo completamente
perfeito pois, se assim for, acabará ruindo em proposições universais de maneira que se faz
necessário, para viver, possuir vontade de viver, sem este estado de espírito não há
filosofia, não há ciência e não há arte que substitua uma inevitável tendência ao nada.
O ser humano tende a criar sistemas onde se é juiz, acusado, promotor e vítima
manipulando a verdade - característica da vaidade humana. Isso se dá pela falta de
probidade que geralmente as pessoas agem em suas empresas. Por isso, deve-se recear este
tipo de comportamento. Para Nietzsche vida e obra, mediante um experimento corroboram
e efetivam-se nesta última.
Desse modo, é mais interessante ao saber trabalhar com a matéria bruta do que com
coisas consumadas, a fim de possibilitar a criação da própria perspectiva de vida,
afirmando-a e aliviando-a. Assim a relação de um filósofo por excelência com a tradição
somente será interessante na medida em que este seleciona o que lhe parece pertinente para
a construção de si, descartando o que lhe parece nocivo para o mesmo fim.
A matéria bruta apoia-se no que lhe é próximo, de onde entende-se que o indivíduo
que nega o que lhe é próximo, acaba negando a própria vida, afim de acessar mundos
ideais. É da busca destes mundos ideais que surgem as enfermidades do espírito, uma vez
que, o ser humano se ressente com a condição imperfeita segundo a qual constitui-se,
fundamentando uma moral e uma realidade metafísica. O que faz com que Nietzsche
afirme a fórmula de Epicuro “não existem deuses ou, se existem, estes não se ocupam de
nós” (AS 7 p. 167).
103
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, Friedrich. Humano Demasiado Humano: um livro para espíritos. Vol. II.
Tradução, notas e posfácio Paulo Cezar de Souza – São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
104
BIOPODER E RACISMO DE ESTADO EM FOUCAULT
Fabio Batista
Universidade Estadual de Londrina
fabiobatist1985@bol.com.br
RESUMO
Vamos apresentar aqui dois conceitos de Foucault: biopoder e racismo de Estado. E para
tal dois textos seus foram estudados: o último capítulo de História da Sexualidade Vol. I e
a última aula de Em defesa da sociedade. De acordo com Foucault o soberano ao ser
ameaçado por inimigos externos poderia dispor da vida de seus súditos para defender-se,
expondo-os assim a morte de forma indireta. E se atacado por algum súdito poderia então
exercer seu direito de matar de forma direta. O direito de vida e morte do soberano era,
portanto, um direito de defender-se que ele possuía contra as ameaças de fora e de dentro.
O que Foucault chamou de direito de fazer morrer e deixar viver. Temos aí o poder
soberano. A partir do século XVII o poder não só mais se exercerá sobre a vida de uma
forma negativa, com o fim de retirá-la de cena; mas sobre a vida se exercerá para torná-la
cada vez mais saudável, melhor, com o fim de talvez aperfeiçoá-la. O poder exerce desse
modo uma positividade sobre a vida, propicia seus meios de longevidade, natalidade. Mas
não nos deixemos nos ludibriar, se isto é feito é a expensas da própria vida. Poder que a
torna calculável, passível de ser manipulada, que a normaliza; através de práticas
higienistas e eugênicas. É a tomada de poder sobre a vida; expressado no conceito de
biopoder, o qual põe sob si: poder disciplinar e biopolítca. Ora, se a biopolítica, e por que
não dizermos biopoder, tem por objetivo fazer viver, como explicarmos os massacres na
modernidade? A saída de um biopoder para esse impasse se dá com a formulação e uso de
um racismo, um racismo de Estado. Racismo de Estado na medida em que o Estado
moderno enquanto aquele que se utiliza dos procedimentos biopolíticos só poderá matar se
justificar a morte em termos de racismo.
Palavras-chave: Foucault; Biopoder; Poder disciplinar; Biopolítica; Racismo de Estado.
105
Dezembro, publicação de vontade de saber, primeiro volume da História da
sexualidade. Este livro, Foucault o concebeu como um manifesto com o qual se
deve marcar um encontro. Como Vigiar e punir, ele vai na contramão da
expectativa do público, por sua crítica à hipótese repressiva, cara aos
movimentos de liberação. (DEFERT, 1999, p. 45-46)
Ambos alteraram as perspectivas reinantes até então sobre o poder: poder pautado
no modelo jurídico enquanto lei e proibição; poder que se encontra nas relações de
produção; poder que se encontra no Estado; enfim, poder enquanto repressão. Foucault não
refuta por inteiro essas perspectivas, mas provoca um deslocamento. Ao demonstrar que o
poder também é mais que negar e proibir; mas que também encerra “em si” uma
positividade na medida em que “cria”, “fabrica” o próprio indivíduo moderno; o qual em
última instância nada mais seria que produto do poder disciplinar. O poder também não se
encontra no Estado. Mas, ao lado, abaixo do Estado. Em várias instituições. Em várias
formas de poder-saber.
Mas voltemos a biopolítica. Muitos estudiosos disseram que ele foi um tema pouco
explorado por muitos anos após vir a lume. Foi somente a partir da década de 1990 que ele
parece tomar importância, como observou Duarte. (Cf. 2008, p.2) O próprio Foucault uns
dois anos após a publicação de A vontade de saber reconhecia isso com um certo tom de
decepção: “A.G.: Em relação a última parte de seu livro...
M.F.: Sim, ninguém fala desta última parte. Entretanto, o livro é pequeno, mas desconfio
que as pessoas nunca chegaram a este capítulo. E contudo é o essencial do livro”.
(FOUCAULT, 2004, 27)
E além de o encontrarmos em tal livro também o encontramos no curso ministrado
no Collège de France no início de 1976: “Em defesa da sociedade”. E aqui exploraremos,
sobretudo, a aula de 17 de março de 1976. Que entre o tema da biopolítica e poder
disciplinar, trás também o do racismo de Estado.
Vamos agora passar a análise da biopolitica e sua caracterização. E ver como
Foucault o introduz em sobreposição ao poder soberano.
Uma forma de poder a muito conhecida no ocidente e anterior a biopolítica foi o
poder soberano o qual se exercia sobre a vida através do direito de matar. O direito de vida
e morte. Ou seja, na medida em que o soberano detinha o direito de vida e morte sobre seus
súditos, ele exercia um poder sobre suas vidas de forma negativa: exercia um poder sobre
suas vidas através da morte. Porque parece que na perspectiva de Foucault não havia até
então uma tomada da vida pelo poder no sentido de torná-la melhor, prolongá-la. Por isso o
poder sobre ela tinha esse caráter negativo, na medida em que se exercia sobre ela para
106
usurpá-la.
O soberano ao ser ameaçado por inimigos externos poderia dispôr da vida de seus
súditos para defender-se, expondo-os assim a morte de forma indireta. E se atacado por
algum súdito poderia então exercer seu direito de matar de forma direta. O direito de vida e
morte do soberano era, portanto, um direito de defender-se que ele possuía contra as
ameaças de fora e de dentro. O que Foucault chamou de direito de fazer morrer e deixar
viver. Portanto, “o soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu
direito de matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem
condições de exigir”. (FOUCAULT, 2007, p. 148) Contudo, a partir do momento em que a
vida biológica, a vida do homem enquanto espécie é tomada pela política, inverte-se a
perspectiva: não mais fazer morrer e deixar viver, mas fazer viver e deixar morrer. Não se
exerce mais o poder sobre a vida através da morte, mas através da regulamentação dos
processos vitais.
De modo que a biopolítica nasceu ao lado do poder soberano, e é, assim, uma
outra face, uma outra modalidade de poder; que não embarga o exercício do poder
soberano, contudo, tem outros objetos de aplicação. E que passo a passo o torna menor,
sem muita funcionalidade. A biopolítica, afirma Duarte, pode ser assim compreendida:
“com tal conceito, visa-se a explicar o aparecimento, ao longo da segunda metade do
século XVIII, de um poder disciplinador e normalizador que já não se exercia sobre os
corpos individuais, mas sobre o corpo da espécie ou da população”. (DUARTE, 2010, p.
221).
Doravante o poder não mais se exercerá sobre a vida de uma forma negativa, com o
fim de retirá-la de cena; mas sobre a vida se exercerá para torná-la cada vez mais saudável,
melhor, com o fim de talvez aperfeiçoá-la. O poder exerce desse modo uma positividade
sobre a vida, propicia seus meios de longevidade, natalidade. Mas não nos deixemos nos
ludibriar, se isto é feito é a expensas da própria vida. Poder que a torna calculável, passível
de ser manipulada, que a normaliza; através de práticas higienistas e eugênicas 24 . É a
tomada de poder sobre a vida; expressado no conceito de biopoder 25, o qual põe sob si:
24 “Ele” (Foucault) “compreendeu que, a partir do momento em que a vida passou a se constituir no
elemento político por excelência, o qual tem de ser administrado, calculado, gerido, regrado e normalizado, o
que se observa não é um decréscimo da violência. Muito pelo contrário, pois tal cuidado da vida trouxe
consigo a exigência contínua e crescente da morte em massa, visto que é no contraponto da violência
depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de vida e sobrevivência a uma dada população”.
(DUARTE, 2010, 226-227)
25 “A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente,
recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Abre-se, assim, a era de um 'bio-
107
poder disciplinar e biopolítca. É o momento e que Foucault realiza o desdobramento do
primeiro para o segundo. O qual pode ser assim compreendido:
Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII,
em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário
dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de
relações. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no
corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões - tudo
isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas:
anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais
tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no
corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos
biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, tais
processos são assumidos mediante uma série de intervenções e controles
reguladores: uma bio-política da população. As disciplinas do corpo e as
regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se
desenvolveu a organização do poder sobre a vida. (FOUCAULT, 2007, 151-152)
poder'”. (FOUCAULT, 2007, p. 152) E vale observar que no curso “Em defesa da sociedade” Foucault não
parece marcar uma diferença entre biopoder e biopolítica de forma efetiva. Já em A vontade de saber sim. O
termo biopoder será usado aqui para se referir aos dois polos de poder que tomaram a vida com objeto: poder
disciplinar e biopolítica.
108
serve para o trabalhar; com aquele que envelheceu e não pode ser utilizado. Espera-se,
como Foucault disse alhures: “que morra rápido e em silêncio de um infarto”. E por outro
lado se ocupara com “(…), os acidentes, as enfermidades, as anomalias diversas”.
(FOUCAULT, 1999, p. 291) E também nascera uma constante preocupação com as
relações entre a espécie humana e seu meio – os efeitos de seu meio geográfico, climático,
hidrográfico sobre os seres humanos. Por exemplo: o problema dos pântanos e da
epidemiais ligados a eles. (Cf. FOUCAULT, 1999, p. 292) É disto tudo que biopolítica vai
se ocupar. Da fecundidade, da morbidade, dos acidentes, da velhice, do meio. E o
denominador comum, o pano de fundo é a tomada de poder sobre a vida. A vida de uma
dada população. Vai se ocupar de fenômenos coletivos. Entra em cena aquilo que Foucault
chamou de homem-espécie, ou corpo-espécie. Enquanto a disciplina se ocupara do corpo
do indivíduo do corpo-máquina, do corpo-organismo. Era o treinamento do indivíduo, o
processo de individualização que importara a disciplina. “A biopolítica lida com a
população, e a população como problema político, como problema a um só tempo
científico e político, como problema biológico e como problema de poder, (…)”.
(FOUCAULT, 1999, p. 292-293)
E ambos os mecanismos disciplinares e biopolíticos por caminhos diferentes se
complementaram. Duas tecnologias de poder que se sobrepuseram. Há uma passagem
longa em “Em defesa da sociedade” que Foucault dedica a esta comparação da qual vale
citar a seguinte parte:
uma tecnologia que é mesmo, em ambos os casos, tecnologia do corpo, mas,
num caso, trata-se de uma tecnologia em que o corpo é individualizado como
organismo dotado de capacidades e, no outro, de uma tecnologia em que os
corpos são recolocados nos processos biológicos de conjunto. (…): tudo sucedeu
como se o poder, que tinha como modalidade, como esquema organizador, a
soberania, tivesse ficado inoperante para reger o corpo econômico e político de
um sociedade em via, a um só tempo, de explosão demográfica e de
industrialização. De modo que à velha mecânica do poder de soberania
escapavam muitas coisas, tanto por baixo quanto por cima, no nível do detalhe e
no nível da massa. Foi para recuperar o detalhe que se deu a primeira
acomodação: acomodação dos mecanismos de poder sobre o corpo individual,
com vigilância e treinamento – isso foi a disciplina. (…). E, depois, vocês tem
em seguida, no final do século XVIII, uma segunda acomodação, sobre os
fenômenos globais, sobre os fenômenos de população, com os processos
biológicos e bio-sociológicos das massas humanas. (FOUCAULT, 1999, p. 297-
298)
109
sucesso do capitalismo eram imprescindíveis corpos dóceis e úteis na mesma proporção. E
por outro lado os controles reguladores da população permitiram ajustar o crescimento
demográfico ao crescimento econômico.
Os rudimentos de anátomo e de bio-política, inventados no século XVIII como
técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por
instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina
individual ou a administração das coletividades), agiram no nível dos processos
econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão em ação em tais processos e
os sustentaram; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a
articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças
produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados
possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos
múltiplos. (FOUCAULT, 2007, p. 153- 154)
Ora, se a biopolítica é uma forma de poder que tem como alvo a vida de uma dada
população. É uma série de conjunto de procedimentos de poder-saber que se articulam na
procura de controlar, melhorar a vida da espécie. Como podemos compreender a existência
dos inúmeros massacres que desde o século XIX não deixaram de crescer. Vide as atuações
do imperialismo de fins do século XIX e XX na Africa; a Primeira e Segunda Guerras
Mundiais; confrontos bélicos nos Balcãs na de década de 1990, e assim por diante. Não
seria um paradoxo um poder que tem por fim fazer viver também faze morrer? Pois, se
[…] estamos num poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida, ou que
se incumbiu, se vocês preferirem, da vida em geral, com o pólo do corpo e o pólo
da população. Biopoder, por seguinte, do qual logo podemos localizar os
paradoxos que aparecem no próprio limite de seu exercício. (…), como vai se
exercer o direito de matar e a função do assassínio, se é verdade que o poder de
soberania recua cada vez mais e que, ao contrário, avança cada vez mais o
biopoder disciplinar ou regulamentador? (…). Como, nessas condições, é
possível, para um poder político, matar, reclamar a morte, pedir a morte,
mandar matar, dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos mas
mesmo seus próprios cidadãos? (FOUCAULT, 1999, 302-303-304. Itálico
110
nosso)
111
A meta é eliminar os perigos externos e internos em relação a população e para a
população. População que em certa medida é composta por raças. Mas na qual deve
prevalecer aquela que apresentar traços de superioridade. Obviamente que Foucault aqui
não estava fazendo apologia a teorias raciais. Mas, procedendo a um diagnóstico da
modernidade: em que política e princípios das teorias da biologia estão se entrecruzando
(sobretudo a partir do século XIX quando a biologia tende-se a adquirir o estatuto de
ciência). Estamos novamente no terreno da tese central de Foucault: poder-saber, um
imbricamento.
Foucault encerra a aula de 17 de março de 1976 discutindo o Estado nazista e as
relações entre poder soberano, disciplinar e biopolítica. E se indagando se essa mesma
relação não estaria presente também em todos Estados modernos, ainda que em medidas
menores. Seja ele socialista ou capitalista.
E para encerrar perguntamos: como justificar a pena de morte hoje? A entrada da
polícia nas favelas e a morte daqueles que lá vivem, por vezes indiscriminadamente? Por
que armas químicas são usadas em Estados do Oriente Médio? Acreditamos que a
perspectiva foucaultiana do biopoder seja uma importante ferramenta para podermos
pensar e compreender tais questões.
REFERÊNCIAS
112
_____. Vidas em Risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
____. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Ed. 19ª. Rio de Janeiro: Edições
Graal. 2004.
ORTEGA, Francisco. Racismo e biopolítica. In.: AGUIAR, Odílio Alves (org. et al.).
Origens do Totalitarismo: 50 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
113
SARTRE: RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E LITERATURA
RESUMO
114
existe uma relação muito próxima da sua filosofia com a literatura, e aqui serão expostas
ideias com base no seu livro O que é literatura?, no qual o escritor acaba orientando a
literatura por um caminho, um caminho engajado. Aqui também serão expostos alguns
aspectos da filosofia do autor que estará ligada com sua fase engajada.
Neste livro, O que é literatura? Sartre levanta algumas questões acerca do termo,
ele encaminhou a literatura de acordo com seu pensamento e suas experiências, o livro
relata o mundo da escrita, e ao colocar no título uma interrogação, observamos que serão
colocadas questões para serem refletidas. O livro é formado pelas seguintes perguntas: O
que é escrever? Por que se escreve? Para quem se escreve?, perguntas que são de certo
modo para pensar na criação literária e de como essa atividade pode transformar e refletir
na realidade.
Uma das reflexões que Sartre aborda é “[...] que aspecto do mundo você quer
desvendar, que mudanças quer trazer ao mundo por esse desvendamento? O escritor
‘engajado’ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode
desvendar senão tencionando mudar” (SARTRE, 2004, p. 20). Esta citação refere-se ao
escritor e sua criação literária, o texto em si, além de colocar que a palavra é importante na
reflexão acerca do mundo, que ela faz parte de nós, “[...] a linguagem é: nossa carapaça e
nossas antenas, protege-nos contra os outros e informa-nos a respeito deles, é um
prolongamento de nossos sentidos” (SARTRE, 2004, p.19), ou seja, a linguagem é a
comunicação.
Para o escritor o objeto literário existe somente em movimento, para que ele seja
essencial é preciso o ato da leitura para completar o que o autor começou, a existência do
livro permanece viva enquanto durar a leitura, existe uma relação de dependência, o que
escrevemos na maioria é para que os outros leiam, assim a obra só existe por meio da
leitura. Para Sartre, tanto o escritor se engaja ao escrever o livro, como o leitor também se
engaja ao ler o livro, os dois partem de sua liberdade para tal ação, tanto da criação como
da leitura.
Sartre comenta que ao escolher o tema do livro, o escritor escolhe seu público,
primeiro que ele (autor) não escreve para eternizar na história o seu livro, mas escreve para
sujeitos que estão situados naquele momento histórico. Um exemplo é o próprio Sartre,
que durante a Segunda Guerra Mundial, quando a França foi invadida por tropas alemãs,
período conhecido como Governo de Vichy, escreveu e encenou As Moscas, 1943, uma
peça de teatro que faz alusão ao que estava acontecendo naquele período, de forma que o
115
escritor propõe ao público daquela época que assistiu à peça, resistir às forças externas,
neste caso às tropas alemãs, e não aceitar de forma pacífica o problema vivido naquela
época, que tirava a própria liberdade de viver, a submissão. Assim, essa é a maneira de um
escritor se engajar, ele tem consciência do seu momento histórico, das suas mazelas e com
isto ele passa de si para os outros, essa consciência, esse modo de engajar é do ponto de
vista de Sartre.
O escritor possui um ponto de vista em relação à literatura, de modo que ele cria
esse conceito para si e estabelece uma separação em relação a ela, o que é literatura para
ele, Sartre, não é favor da literatura de Proust, o modo como ele escreve, primeiro que as
obras do Proust não estão ligadas a um comprometimento com a sociedade, o modo como
ele escreve é totalmente distinto de como escreve Sartre, o primeiro possui uma escrita de
estilo, ele recorre ao uso das figuras de linguagem, a metáfora, por exemplo, que é bastante
trabalhada pelos escritores e particularmente por esse, já Sartre é objetivo nos seus livros,
ele não trabalha com a intensificação da palavra e sua pluralidade, ele é direto e preciso no
que escreve.
Podemos pensar que essa divergência vem de que Sartre possui um outro estilo de
escrita, pautada na objetividade, suas frases são claras, sem o uso, por exemplo, das figuras
de linguagem, ele se apropria das palavras concretas, ou seja, que não se desprendem da
nossa realidade. Sartre possui essa diferença em escrever porque ele é filósofo, suas
palavras não serão palavras poéticas, pois seu principal aliado é a razão, e ele passa essa
escrita objetiva dos seus livros filosóficos para suas obras literárias, ele continua com o
mesmo emprego da palavra, da sua racionalidade, comentando brevemente, é por meio da
razão que investiga e questiona o homem e o mundo, o filósofo está inserido no campo da
conceituação, sua linguagem é totalmente racional, sua preocupação é outra, diferente de
Proust, de forma que Sartre leva esse modo de escrita para suas obras literárias, como nas
obras literárias ele incorpora sua filosofia em que é preciso usar a linguagem objetiva.
O pensamento filosófico é um dos elementos mais importantes que compõe não só
as obras do escritor, mas também sua vida, ele pertence à corrente filosófica existencialista.
O existencialismo tem como princípio: a existência precede a essência, e assim "[...] o
homem só adquire uma essência depois de existir, a posteriori” (MACIEL, 1970, p. 123,
§2), entretanto, esta definição só é válida para os humanos, pois para os objetos é
justamente o contrário, primeiro pensa-se na essência do objeto, depois ele passa a existir,
ele é definido antes de existir. Esta segunda definição é cabível ao livro, pois sua essência
116
vem primeiro e quando ela é escrita e lida ela passa a existir.
Com a Segunda Guerra Mundial foi possível, no meio de tantos desastres (político,
social, econômico, moral, financeiro etc), o surgimento de novos ideais, novas formas de
pensar, e é nesse meio que surge o existencialismo, uma doutrina que trata diretamente da
existência humana, e a literatura de Sartre representou esse momento histórico, de modo
que “[...] a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e
considerar-se inocente diante dele” (SARTRE, 2004, p.21).
Sartre poderia somente discutir a filosofia, mas preferiu partir para a literatura, e
essas duas áreas possuem uma relação muito próxima, ambas tratam da realidade humana,
ou seja, da existência humana, contudo cada uma a apresenta de uma maneira distinta, elas
abordam o assunto de acordo com o plano em que cada uma está. A literatura sai do plano
conceitual ao qual a filosofia pertence e cria uma representação do mundo (narrações),
baseado em uma realidade concreta. Uma complementa a outra, e as duas são necessárias
para a compreensão da realidade humana. Sendo assim, é possível dentro da literatura uma
realidade paralela, ou seja, uma realidade criada por meio de uma ficção e que parte da
liberdade criativa do escritor.
Assim, não podemos pensar que as obras literárias de Sartre são uma simplificação
de sua filosofia, pois nas palavras de seus livros é atribuído seu pensamento filosófico, e
ainda, a literatura não é um acessório da filosofia, mas com o direcionamento de Sartre, um
engajamento em si. Por isso, cada qual possui um papel diverso de compreender o ser
humano e o mundo, além de possuir uma linguagem própria criando dois modos de ver sob
um mesmo assunto.
O encontro da literatura e filosofia, constrói-se de acordo com cada escritor e
filósofo. O termo literatura já é complicado, pois como definir ou padronizar obras que não
seguem um modelo, já que cada obra literária é única, ela cria seus personagens, o meio, o
tema e nunca será igual um livro com o outro por mais que tratem do mesmo assunto, cada
autor atribui um sentido no seu livro de acordo com suas experiências, o que sugerimos a
respeito da literatura são alguns aspectos dela, alguns. Sartre se apropria da literatura
justamente por ter a liberdade de criar um outro mundo paralelo ao nosso, construindo
personagens que ganham vida na leitura, como dito, o escritor trata da literatura em prol da
sociedade, em que livros tem uma função no meio onde vivem as pessoas.
A peça de teatro em Sartre é muito importante na época na qual ele presenciou, pois
elucidava melhor o que ele queria, representava os problemas vívidos, colocava em prática
117
o termo engajar. A peça de teatro é regida pelo momento da escolha, de criar os próprios
valores por meio desta, é assim que a liberdade do indivíduo se constrói, mas esta
liberdade "pura" não existe, pois ela é limitada pelos valores já instaurados, ela é uma
vontade do ser humano colocado em ação e assim Sartre levanta a questão da ação livre e
suas implicações. Com o teatro, o público está interagindo com os personagens que
ganham vida para falar, diferentemente do monólogo do leitor, uma maneira eficaz de
aproximar a plateia da encenação, como se fosse verdadeira a representação.
O escritor percebeu que o teatro era uma maneira de falar diretamente ao povo, com
as falas dos personagens passava sua filosofia de que o homem é livre, que através de suas
escolhas ele se define, e que ao escolher deve aceitar as consequências. Segue um trecho da
peça As Moscas que elucida tal afirmação “Não voltarei à tua natureza: mil caminhos nela
estão traçados que conduzem a ti, mas não posso seguir senão o meu caminho. Pois eu sou
um homem, Júpiter, e cada homem deve inventar seu caminho” (SARTRE, 2005, p. 105).
Nesta frase, a fala é de um personagem principal (Orestes) para o deus Júpiter, Orestes diz
que ele é livre, nem a religião e nem a sociedade vai ditar suas escolhas, este personagem
quer a libertação do homem em relação aos valores instaurados pela religião que inibe
muitas vezes o indivíduo de tomar atitudes, ou acaba justificando seus atos pelos valores
religiosos.
O teatro do escritor tem uma ênfase e prossegue a partir da sua segunda fase
engajada, (período da Segunda Guerra), o uso delas foi a melhor maneira naquele tempo
que Sartre encontrou para descrever e colocar em prática a sua filosofia, além de incitar o
público não ser pacífico com aquela realidade, ele mesmo se engaja ao escrever as peças e
encená-las, para ele “[...] a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e,
ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do
porvir” (SARTRE, 2004, p.20).
Assim como Sartre crítica outros escritores a partir do seu ponto vista, ele também é
criticado, e Adorno é um deles, este crítica o teatro sartriano, pois para ele o conceito de
engajamento segue uma outra linha, para ele o engajar está na forma e não no conteúdo
como faz Sartre em suas peças, para Adorno as obras sartrianas são apresentadas ao
público prontas, o conteúdo só é passado, não propõe nada de novo, apenas representa.
Para Adorno as peças de Brecht são engajadas, justamente porque ele trabalha com a forma
no teatro, ele rompe com o modelo teatral, e revela uma maneira diferente de representar o
teatro, por exemplo, os personagens interagem com a plateia, conversam com a ela, fazem
118
comentários, eles criam uma reflexão do que está acontecendo na peça, isto acontece
quando ela está sendo encenada. Essas características marcam a divergência entre o teatro
de Sartre e de Brecht, mas um ponto extremamente importante de Sartre é o seu contexto
histórico, ele criou de acordo com sua visão um modo de denunciar as barbáries de seu
tempo. Este breve comentário entre Sartre e Adorno foi somente para mostrar que cada
filósofo ou escritor vai trabalhar com um direcionamento no seu texto, e como um assunto
nunca se restringe a ele mesmo, temos vários posicionamentos, como no engajamento.
Adorno tomou uma postura oposta a de Sartre, o que faz enriquecer e ganhar novos pontos
de vista através de um mesmo tema.
Sartre crítica, por exemplo, o teatro do absurdo, que está desligado da história, a
questão histórica para o escritor é crucial, pois a época que viveu estava dilacerada pela
Segunda Guerra Mundial, pela Guerra Fria, a Crise Financeira, e o homem perdido nesse
caos, além do teatro do absurdo não retratar a realidade, é justamente o oposto, ela
desconstrói essa realidade, como dito anteriormente Sartre coloca nos seus livros e peças
teatrais, a racionalidade das palavras e a própria palavra absurdo se afasta do que ele
trabalha.
REFERÊNCIAS
MACIEL, Luiz Carlos. Sartre: vida e obra. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra. 1970.
SARTRE, J. P. As Moscas. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira. 2005.
___________. O que é literatura? São Paulo. Ed. Ática. 2004.
___________ O existencialismo é um humanismo. Os pensadores. São Paulo. Ed. Abril
Cultura. 1973.
119
MICHEL FOUCAULT E A BIOPOLÍTICA: UMA ANÁLISE REFLEXIVA
RESUMO
120
década de 1960: O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A
arqueologia do saber (1969). Nesse período, destacam-se os temas relacionados à
constituição dos saberes acerca do homem, as chamadas ciências humanas. O momento
seguinte é o da genealogia, em que Foucault concentra sua atenção na análise do poder e
seus mecanismos. Compreende os textos da década de 1970: Vigiar e punir (1975) e o
primeiro volume da História da sexualidade, cujo título é A vontade de saber (1976). Por
fim, o terceiro período abarca as suas últimas publicações, os volumes II e III da História
da sexualidade, que se intitulam respectivamente O uso dos prazeres e O cuidado de si,
ambos de 1984 e tratam dos processos de subjetivação, em uma análise da relação sujeito-
verdade.
Para empreender tal objetivo, tomamos como ponto de partida teórico as primeiras
abordagens sistematizadas sobre o assunto, que encontram-se simultaneamente em dois
textos, ambos de 1976, a saber: na aula de 17 de março, a última do curso proferido
naquele ano no Collège de France, e que recebeu o título de Em defesa da sociedade e no
último capítulo do primeiro volume de História da Sexualidade, intitulado A vontade de
saber.
Logo no início do primeiro dos textos, já podemos identificar um esboço de
definição para um biopoder:
Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi, é o que se
poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma
tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização
do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia
chamar de estatização do biológico (FOUCAULT, 2005, p. 285 - 286).
121
Já no texto de A vontade de saber, os primeiros traços desse mesmo movimento de
demarcação do biopoder são assim expressos:
Mas afinal, a que espécie de poder se refere Foucault? Qual sua concepção de
poder? Responder a essa pergunta, ao menos em linhas gerais, é nosso segundo passo,
antes de aprofundarmos a reflexão sobre a biopolítica, já que é justamente daí que parte o
próprio filósofo.
Para Foucault, o poder não é algo que se possa simplesmente definir, por meio de
uma determinação clara e precisa do seu conceito. Assim, não existe “o Poder”. Ele é antes
uma relação, ou melhor, “uma multiplicidade de correlações de força” (FOUCAULT,
1999, p. 88) e seu significado encontra-se na própria analítica dessas relações, dessas
práticas de poder. Não há, portanto, uma teoria sobre o poder, ou ainda um sistema geral e
fechado de postulados que o delimite. Além disso, o poder não deve ser identificado
somente com o Estado, com instituições ou qualquer outra forma de dominação – ainda
que dominar, subjugar ou reprimir façam parte do repertório de inúmeras possibilidades e
recursos variados de que o poder pode dispor. Em suma, o poder é onipresente e circula
por todos os modos de ação humanos e cotidianos, em espécies de micro-poderes que se
desenvolvem em todos os lugares, em todos os sentidos e direções, num jogo assimétrico e
constante de oposições, conflitos e enfrentamentos, que por sua vez, também estão em
constante mutação, alteração, inversão ou reforço.
122
evidente, a partir da intimidade progressiva que se cria com a leitura dos textos e apreensão
das idéias de Foucault, que ele sabe e reconhece que a capacidade humana esteve, está e
sempre estará presa a uma complexa rede de influências históricas, culturais, religiosas e
políticas que interferem radicalmente em seu agir, pensar e conceber o “verdadeiro” e o
“falso”, ou ainda “o certo” e o “errado”. Dito de outra forma: a verdade é produzida
historicamente e pelas relações de força que atuam num dado contexto. O que importa, em
última instância, é a efetividade dos discursos considerados verdadeiros, que
constantemente retroalimentam as relações de poder.
O princípio de soberania, que marcou o período entre a Idade Média até o início do
século XVII, tinha como uma de suas características principais, o direito de vida e de
morte sobre os súditos. Contudo, constata Foucault, há um desequilíbrio nessa dualidade
vida-morte, pois na prática, dizer que o soberano pode matar ou deixar viver, significa que
ele pode efetivamente tirar a vida, ou seja, matar. Pode parecer redundante, mas um olhar
mais atento permite identificar que o poder soberano é antes um poder sobre a morte, e
dele é que decorre o poder sobre a vida.
Eis o paradoxo da teoria clássica da soberania: não é para preservar a vida que se
constitui um soberano? Como justificar o fato, então, de que seu poder se exerça sobretudo
do lado da morte? Foucault observa que a história nos fornece dados e fatos que
123
demonstram como se deu a passagem do poder soberano ao poder disciplinar e à
biopolítica. Esse processo não se deu de forma abrupta. Pouco a pouco a vida foi sendo
valorizada, ascendendo em destaque e importância perante estratégias políticas. O que
ocorre é a inversão do poder soberano, o que não significa seu abandono, mas o resultado
de sua adequação, transformação e integração.
Nesse contexto, o que de fato interessa ao filósofo, como já foi dito anteriormente,
é o “como” do poder: seus mecanismos, seu funcionamento, suas técnicas. Assim, ele
constata essa mudança no comportamento do poder, que foi ocorrendo conforme as
transformações da própria sociedade, em conjunto com sua economia, política e
estratégias. Passou-se a investir na vigilância e punição dos corpos individuais.
[...] nos séculos XVII e XVIII, viram-se aparecer técnicas de poder que eram
essencialmente centradas no corpo, no corpo individual. Eram todos aqueles
procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos
individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em
vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais, de todo um
campo de visibilidade. Eram também as técnicas pelas quais se incumbiam
desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil através do exercício, do
treinamento etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e de economia
estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos onerosa possível,
mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de
escriturações, de relatórios (...) (FOUCAULT, 2005, p. 288).
Eis aí uma das formulações, por meio da qual Foucault nos apresenta o poder
disciplinar em sua obra, que é descrita pormenorizadamente em um de seus mais famosos e
polêmicos livros: Vigiar e Punir, publicado em 1975. Como visto, a função da disciplina é
administrar a vida em seus mínimos detalhes. Ela age sobre o corpo, adestrando e
condicionando os indivíduos, através do controle do tempo e do espaço, só para citar
alguns exemplos, e através de instituições como a prisão, a escola, o hospital. “A disciplina
tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve
redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados,
eventualmente punidos” (FOUCAULT, 2005, p. 289).
124
Por fim, um novo movimento toma forma, no final do século XVIII, e novamente
há um processo de modificação, de assimilação, de “digestão” do poder disciplinar. Trata-
se do poder em outro nível, em outra escala; trata-se do biopoder, que não abandona por
completo nem mesmo o poder do tipo soberano, podendo servir-se inclusive dele, se assim
for necessário ao seu exercício (uma espécie de contradição da biopolítica, sendo este um
assunto que necessita maior aprofundamento e investigação, o que seria inviável perante os
objetivos da presente pesquisa). A novidade introduzida aqui é que essa nova tecnologia de
poder não se aplica ao “homem-corpo”, como faz a disciplina, mas age sobre o “homem-
espécie”. Nas palavras do próprio Foucault:
[...] a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não
na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma,
ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são
próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a
doença etc. [...] Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no
decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já
não é uma da anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma
‘biopolítica’ da espécie humana (FOUCAULT, 2005, p. 289).
125
com indivíduos. E assim, ele nos apresenta esse novo elemento político, objeto essencial e
alvo do biopoder:
É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito
pelo menos necessariamente numerável. É a noção de ‘população’. A biopolítica
lida com a população, e a população como problema político, como problema a
um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de
poder, acho que aparece nesse momento (FOUCAULT, 2005, p.292 - 293).
Apesar dessas distinções que muito bem explicam as características gerais do poder
disciplinar e do biopoder, Foucault volta a frisar que este é um campo complexo, uma
trama onde modos diferentes de poder se enveredam:
126
É na esteira dessa análise de coexistência do poder disciplinar com o poder
regulamentador que Foucault desliza ao descrever a idéia de “sociedade de normalização”,
na qual se inscreve a biopolítica.
Pois bem, de que nos serve esse diagnóstico oferecido por Foucault para o
entendimento da sociedade, da comunidade ou do meio em que vivemos? A resposta
parece simples: a posse de tal conhecimento, por si só, já constitui-se de um rico
instrumento de saber, de poder, de ação. “O papel da teoria, hoje, parece-me ser justamente
este: não formular a sistemática global que repõe tudo no lugar, mas analisar a
especificidade dos mecanismos de poder, balizar as ligações, as extensões, edificar pouco a
pouco um saber estratégico” (FOUCAULT, 2006, p. 251).
127
próprias necessidades humanas. Há uma passagem de uma entrevista, de 1978, em que
Foucault explicita muito bem esse caráter ambíguo dos sistemas de poder, assim como
compara o poder disciplinar e a biopolítica naquele contexto, numa avaliação crítica que,
por sinal, continua em plenamente válida nos dias atuais:
Hoje, o controle é menos severo e mais refinado, sem contudo ser menos
aterrorizador. Durante todo o percurso de nossa vida, todos nós somos
capturados em diversos sistemas autoritários; logo no início na escola, depois em
nosso trabalho e até em nosso lazer. (...) Em nossa sociedade, estamos chegando
a refinamentos de poder os quais aqueles que manipulavam o terror sequer
haviam sonhado. [...] O ponto em que chegamos está além de qualquer
possibilidade de retificação, porque o encadeamento desses sistemas continuou a
impor esse esquema, até fazê-lo ser aceito pela geração atual como uma forma da
normalidade. Não obstante, não é dito que isso seja um grande mal. O controle
contínuo dos indivíduos conduz a uma ampliação do saber sobre eles, que produz
hábitos de vida refinados e superiores. Se o mundo está a ponto de se tornar uma
prisão, é para satisfazer as exigências humanas (FOUCAULT, 2006, p. 307).
REFERÊNCIAS
RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
128
ANALÍTICA DO PODER EM MICHEL FOUCAULT: DO PODER À
BIOPOLÍTICA
RESUMO
INTRODUÇÃO
129
conceber o poder, à que consistiu e afirma que o mundo ocidental conheceu três maneiras
de se exercer o poder: O Soberano; O Disciplinar; O Biopolítico.
Como dissemos, as divisões do pensamento de Foucault devem ser encaradas para
meros fins metodológicos, pois o filósofo, em entrevista a Rabinow e Dreyfus, diz que sua
obra constitui um todo que tem por mote a questão do sujeito, ou seja, que suas
investigações não têm essa cesura tão clara. Portanto, o pensamento de Foucault não é algo
que pode ser divido tão facilmente, de modo que para estudar um assunto, por exemplo, da
Estética da Existência, talvez seja necessário recorrer a temas da Arqueologia e da
Genealogia.
Em nossa empreitada sobre a biopolítca tivemos que fazer algo semelhante, mas
sempre tentando nos ater a Genealogia foucaultiana, de modo que fizemos um percurso
desde as produções do início dessa fase até os últimos textos que a encerram.
Passamos pelos conceitos de poder, poder soberano, poder disciplinar, para
finalmente chegarmos ao cerne de nosso trabalho: as teses Foucaultianas sobre os
conceitos de biopoder e biopolítica. Para mostrarmos como, no final do século XVIII e
início do século XIX, vemos emergir um poder que vai agir de forma positiva sobre a vida,
mas não a vida individual, e sim da população, que aparece como um corpo múltiplo cuja
sobrevivência, deve ser assegurada.
Porém, esse formidável poder de fazer viver mostrará sua outra face, se
transformando em um poder que pode reclamar a morte daqueles indivíduos que de alguma
maneira representam um perigo biológico para espécie humana, sendo assim autorizada
sua eliminação. Esse reclamo da vida será impetrado mediante o racismo de Estado, cujo
exemplo mais alto é o do Estado nazista.
A biopolitica é uma forma de exercer o poder, que, segundo Foucault, tem seu início
no século XVIII, e substitui a Sociedade Disciplinar. A biopolítica tem como função
garantir a sobrevivência da população, para isso ela criará estratégias - o biopoder - que
incita à vida, que a majora, porém, paradoxalmente, cria também estratégias que assimilam
e até tornam até desejável a morte de alguns indivíduos para garantir a vida da população.
Para entendermos o que é a biopolitica, como ela se exerce, seus efeitos sobre a
população, se faz necessário uma breve exposição dos seguintes conceitos: Poder, Poder
130
Soberano, Poder Disciplinar. Isso, pois Foucault, em sua Analítica do Poder analisou como
o poder foi exercido desde a Idade Clássica a Idade Moderna26.
PODER
26
Foucault chamou de Idade Clássica o período que compreende os séculos XVII e XVIII, enquanto a Idade
Moderna compreende os séculos XIX e XX.
131
Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos rituais de verdade
(FOUCAULT, 2010c, p.185)”.
Para Foucault, o poder é um gênero de relação. Não é uma coisa estática, ele circula,
é um exercício, é um enfrentamento, onde ambos os lados são dotados de poder, lógico, de
uma forma assimétrica, em suma o poder funciona. E ele funciona nessa rede complexa
que é a sociedade, de modo que qualquer indivíduo pode exercer o poder ou ser submetido
a ele. E sendo o poder um exercício, sempre está posta a possibilidade de resistência, de
modo que os indivíduos que estão submetidos às relações de poder podem moldá-las,
tornado-as mais desiguais.
O poder, acho eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor,
como uma coisa que só funciona em cadeia. Jamais ele está localizado aqui ou
ali, jamais está entre as mãos de alguns, jamais é apossado como uma riqueza ou
um bem. O poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os
indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse
poder e também de exercê-lo. Jamais eles são eles são o alvo inerte ou
consentidor do poder, são sempre seus intermediários. Em outras palavras, o
poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles (FOUCAULT, 2010a, p.26).
132
primeiros têm como objetivo o indivíduo isoladamente e, no último, o indivíduo,
isoladamente, é dispensado, pois o que está em jogo é a sobrevivência da população e não
a do indivíduo separado desta. O Poder Soberano atua de forma a posteriori, ou seja, tendo
um determinado fenômeno ocorrido, digamos um crime, ele só irá atuar depois que tal
delito for deflagrado. Já o Poder Disciplinar terá tanto um caráter a posteriori quanto a
priori, pois ele tanto tentará impedir que um crime ocorra, como punirá os que forem
efetivamente consumados. A biopolítca, por seu lado, tem um caráter puramente a priori,
ela sempre tentará impedir que algum mal assole a população, independente dos meios que
usará. Mas analisemos cada um separadamente.
Quando Foucault fez suas analises sobre a punição, em Vigiar e Punir, dois modelos
logo lhe saltaram aos olhos: o suplicio e a prisão. Cada um correspondia a um tipo de
exercício do poder de punir. Enquanto a prisão surge com o advento da sociedade
disciplinar, o suplicio é caracterizado pelo Poder soberano. Este poder é caracterizado pelo
direito de vida e morte que o soberano tem sobre seus súditos, e está amalgamado com o
direito, com a lei e tem seu surgimento quando são instituídas as primeiras monarquias
nacionais.
O Poder soberano tende ao confisco: do tempo, dos bens e da vida. Este “poder era,
antes de tudo,... direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da
vida; culminava com o privilegio de se apoderar da vida para suprimi-la (Foucault, 1988,
p. 148)”. Este privilégio, o de vida e morte, deriva-se da patria potestas, que se reporta ao
direito romano, que concedia ao pai de família o direito de dispor da vida de seus filhos e
escravos: já que ele lhes deu a vida tem o direito de retirá-lá. Para Foucault o direito de
vida e morte é uma forma bem atenuada da patria potestas, que não pode ser exercido de
forma absoluta, mas é condicionado à proteção do soberano, ele pode usar esse direito,
para se proteger, quando sua pessoa está em perigo, podendo dispor da vida de seus súditos
de duas maneiras, uma indireta e outra direta: a primeira, quando o soberano é ameaçado
por um “inimigo externo”, nesta situação pode ele pedir para seus súditos pegarem armas
para defendê-lo, enviando-lhes à guerra, “neste sentido, exerce sobre ele um direito
“indireto” de vida e morte (FOUCAULT, 1988, p.147)”, a segunda, quando um súdito do
soberano se levanta contra ele, neste caso “pode exercer um poder direto sobre sua vida:
matá-lo a título de castigo (FOUCAULT, 1988, p. 147)”. O direito que o soberano tem
sobre a vida de seus súditos é condicionado à sua defesa e só é exercido se ele contiver seu
direito de matar. No entanto Foucault verá nisso uma forma de direito que surge com esse
133
novo ser jurídico, o de soberania, ou seja, um direito de “causar” a morte ou “deixar” viver.
“O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu direito de matar ou
contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições de exigir. O
direito que é formulado como “de vida e morte” é, de fato, o direito de causar a morte ou
de deixar viver (FOUCAULT, 1988, p. 148)”.
Mais adiante veremos que esse direito de soberania será “invertido” pela biopolítica,
de um direito de deixar viver fazer morrer, veremos surgir, ao “contrário”, um direito fazer
viver deixar morrer.
PODER DISCIPLINAR
134
Como bem disse Foucault, fábricas, escolas, hospitais e outros segmentos da sociedade têm
um caráter extremamente disciplinar, de modo que um se pareça com o outro.
O poder disciplinar, que surge na Idade Clássica, aparece concomitantemente com o
desenvolvimento do capitalismo, pois “O principal objetivo do poder disciplinar era
produzir um ‘corpo dócil’. Este corpo dócil também deveria ser um corpo produtivo”. E o
capitalismo precisava dos chamados “corpos dóceis” que a disciplina produz, de modo que
“o controle disciplinar e a criação dos corpos dóceis estão incontestavelmente ligados ao
surgimento do capitalismo (DREYFUS; RABINOW, 1995, p.149)”.
Por outro lado, as técnicas disciplinares não eliminaram o princípio da soberania,
pelo contrário, a sociedade disciplinar, fez uso dele para poder se incrustar e se mascarar
na sociedade. A disciplina fez uso do direito, que é uma encomenda régia27, mas não mais
tendo em vista a proteção do soberano, porém da sociedade.
No entanto, a partir dos séculos XVII e XVIII, surgiu uma nova forma de poder,
a disciplina. Se, nessa reorganização do poder, a teoria da soberania sobreviveu,
foi porque permitiu o desenvolvimento das disciplinas como mecanismo de
dominação e permitiu ocultar efetivamente o exercício do poder. Contudo,
apesar de a teoria da soberania ter servido para formação histórica do poder
disciplinar, é claro que se trata de duas formas diferentes de poder e que as
podemos opor como se segue. A soberania é uma forma que se exerce sobre os
bens, a terra e seus produtos... A disciplina, no entanto, orienta-se para os corpos
e o que eles fazem, seu objetivo é extrair deles tempo e trabalho. Exerce-se de
maneira contínua mediante a vigilância (CASTRO, 2009, p. 404-405).
A técnica disciplinar, que se instalou no final do século XVII, e perdurou até meados
do século XVIII, vai ser substituída por outra tecnologia do poder, que fará uso dos saberes
que a Sociedade Disciplinar produz; portanto não é uma tecnologia que excluía a
Sociedade Disciplinar, mas que faz uso dela para melhor gerenciar a População.
BIOPOLÍTICA
27
Sobre a questão do poder ser uma encomenda régia Cf. Em Defesa da Sociedade, aula de 14 de janeiro.
135
O conceito de biopoder vai ser descrito pelo filósofo como o complemento de um
poder que durou até o final do século XVIII: O Poder Disciplinar. Mas ao contrário deste,
o biopoder não vai mais centrar-se no corpo do individuo que deve ser adestrado,
disciplinado, mas sim no nível da população, que deve ser gerida e sustentada. Para tanto,
o biopoder irá criar mecanismos que incitam a vida, porém paradoxalmente criará também
mecanismos que assimila e, até torna desejável, a morte para garantir a vida da população.
Essa nova tecnologia de poder que vemos surgir no final do século XVIII que vai
substituir a técnica disciplinar de poder é, segundo o autor, uma tecnologia de poder que
não dispensará a disciplina, pelo contrário, assim como fez a disciplina, quando seu
instalou no século XVII, em relação ao Poder Soberano, o biopoder fará o mesmo, ou seja,
se apoiará nas disciplinas para implantar-se na sociedade.
Agora não é mais através da sociedade disciplinar que seremos governados, não
seremos mais esquadrinhados, nossos gestos não serão mais vigiados e moldados,
tampouco seremos classificados em normais e anormais. Agora as técnicas de poder irão
centrar-se nos processos de natalidade, de longevidade, de mortalidade, em questões
econômicas ente outros pontos.
Logo, depois de uma primeira tomada do poder sobre o corpo que se fez
consoante o modo da individualização, temos uma segunda tomada de poder que,
por sua vez, não é individualizante, mas que é massificante, se vocês quiserem,
que se fez não em direção ao homem-corpo, mas do homem-espécie. Depois da
anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII,
vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-
política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma biopolítica da espécie
humana (FOUCAULT, 2010a, p.204).
136
deixar morrer. Porém enquanto o primeiro se dirige ao indivíduo o segundo se atém a
população. O que vemos com essa nova tecnologia de poder é uma investida sobre a vida,
a vida da população, a vida do homem-espécie.
É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos
necessariamente numerável. É a noção de “população”. A biopolítica lida com a população, e a
população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como
problema biológico e como problema de poder (FOUCAULt, 2010a, p. 206)”.
Se o poder soberano agia sobre a vida dos súditos na forma de confisco - de bens,
riquezas, e por fim sobre a vida para suprimi-la – ou seja, de uma forma negativa, a
biopolítica incidirá sobre a vida para aumentar sua longevidade: é um poder que age de
forma positiva sobre a vida. Para isso a biopolítica levará em contra processos que giram
em torno da população: Taxa de natalidade, número de óbitos, o nível de saúde, e tudo
aquilo que está ligado a longevidade da população. Haverá também uma preocupação
especial com as epidemias, porém, “não mais como a morte que se abate brutalmente sobre
a vida... mas como a morte permanente, que se introduz sorrateiramente na vida, a corrói
perpetuamente, a diminui e a enfraquece (FOUCAULT, 2010a, p. 205)”, é a doença como
fenômeno da população. Não é mais a peste que vai tirar o sono dos governos, pois ela foi
suprimida em boa parte com o surgimento da disciplina, através de um processo de
segregação e vigilância. O que se tem com o advento da biopolítica é uma preocupação
com as epidemias, que pode causar um grande corte na população, por isso todas as
investidas dos governos para afastar as doenças que podem enfraquecer a população
diminuindo seu contingente.
É a vida, mais do que o corpo, que está em jogo agora, e tudo o que a cerca desde o
nascimento até a morte, é isto que a biopolítica gerenciará.
O segundo - a Biopolítica – que se formou um pouco mais tarde, por volta da
metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transplantado
pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a
proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida,
a longevidade, com todas as condições que pode fazê-los variar; tais processos
são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controle reguladores:
uma bio-política da população (FOUCAULT, 1988, p. 151-152).
Como nos é claro, a biopolítica faz uma inversão do princípio de soberania, vimos
como ele age de forma positiva sobre a população, agora nos resta entender como ele pode
agir de forma negativa, criando mecanismos que não incitam a vida, mas a morte.
BIOPOLÍTICA OU TANATOPOLÍTICA?
137
Como um poder como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente
de aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades,
de desviar seus acidentes, ou então de compensar suas deficiências? Como,
nessas condições, é possível, para um poder político, matar, reclamar a morte,
pedir a morte, mandar matar, dar ordem de matar, expor à morte não só seus
inimigos mas mesmo seus próprios cidadãos? Como esse poder que tem
essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o
poder de morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado
no biopoder (FOUCAULT, 2010a, p. 214).
A morte na biopolítica não é visto como algo que deva ser evitado, mas sim gerenciado,
isso porque a morte não é mais um uma coisa extrínseca à vida, mas sim, intrínseca a ela.
“Em suma, a morte não é mais o negativo extremo da vida, mas é o cume de todo um
processo vital do qual lhe é imanente. Jocosamente falando: também faz parte da vida
morrer (NALLI, 2012, p.168-169)”. Para manter a população viva será necessário extirpar
tudo aquilo que representa um perigo para ela, tudo aquilo que enfraqueça a população,
pois, se essa nova modalidade de exercício do poder tem como escopo garantir a
sobrevivência dos ditos “dignos de viver”, se faz necessário que os proteja. Porém, como
protegê-los? Como dissemos, eliminando tudo aquilo que é prejudicial à população, como
fez o Estado Nazista, quando era de seu intuito proteger a raça ariana, eliminando os
judeus, que representava um perigo para o povo alemão.
“Quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos
anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu –
não enquanto individuo mas enquanto espécie – viverei, mais forte serei, mais vigoroso
serei, mais poderei proliferar (FOUCAULT, 2010a, p. 215)”.
O poder de matar do soberano ficou cada vez mais difícil de ser exercido quando
aparece essa nova tecnologia de poder no final do século XVIII, porém ele não será
eliminado, mas também só poderá ser invocado quando se trata de eliminar um perigo
biológico, ou quando visa o fortalecimento da dita raça superior, digna de prevalecer sobre
outra.
138
As lutas a partir de agora não se travam mais em relação à figura do soberano que deve
ser protegido, nem da sociedade, mas visando a população. É em nome da existência de
todos que serão autorizados os holocausto que assistimos no século XX, foi por uma
necessidade de viver que os regimes mataram tanto, que categorias inteiras forem levadas à
destruição, não por uma irracionalidade do poder, mas, e é aí que nos vem o choque, por
uma racionalidade levado ao paroxismo. Se no século passado os Estados totalitários
fizeram grandes holocaustos em suas populações, não foi por que ali reinava um poder que
tinha por finalidade suprimir a vida, mas pelo contrário, ali atuava um poder que tinha
como escopo aumentar a vida da raça dita digna de viver.
Contudo, jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX e
nunca, guardada as proporções, os regimes haviam, até então, praticado tais
holocaustos em suas próprias populações. Mas esse formidável poder de
morte...apresenta-se agora como complemento de um poder que se exerce,
positivamente, sobre a vida que empreende sua gestão, sua majoração, sua
multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de
conjunto (FOUCAULT, 1988, p. 149).
Esse efeito mortífero da bipolitica é assegurado pelo dito princípio de soberania, que
dava ao rei o direito de matar quando sua pessoa era ameaçada. A figura do rei já não é
mais o que se deve protegido, mas é graça a um direito advindo dela que ultimamente se
tem praticado o direito de matar, que pode ser aplicado de duas formas:
139
vida, para poder retirar a vida dos indivíduos que são tidos como perniciosas à espécie o
racismo se torna indispensável em um horizonte biopolítico.
Quanto mais racista um Estado for, mais assassino ele será, por exemplo, o Estado
nazista, que se caracteriza por ser um Estado extremamente racista, só matou inúmeras
pessoas por ter levado o biopoder aos seus limites mais extremos, ou seja, o biopoder, só
pode atuar graças ao Racismo de Estado, que antes mesmo de Hitler assumir o poder em
1933, já havia enraizado no povo alemão um sentimento anti-semita, de modo que “a
palavra “alemão” tornava-se para eles, na verdade, uma noção ética, que opunha de modo
taxativo a tudo que lhes era estranho... Constituíram-se sobretudo de ideologias
defensivistas na base do nacionalismo e do racismo, que se apresentavam como doutrinas
salvadoras de um mundo em perigo (FEST, 1991, p. 27)”.
REFERÊNCIAS
140
NALLI, Marcos. “A imanência normativa da vida (e da morte) na análise foucaultina da
biopolítica: uma resposta a Roberto Esposito. In. Muricy, Katia (org). O que nos faz pensar.
Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2012 p. 149-174.
141
A EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E OS DIREITOS DO HOMEM EGOÍSTA: MARX E A
SOCIEDADE MODERNA.
André Ferreira.
Universidade Estadual de Londrina
andresilvaferreira@gmail.com
RESUMO
Nesta comunicação, temos como objetivo, apresentar a crítica que Karl Marx faz à
emancipação política, nos textos de inícios dos anos quarenta do século dezenove. “Já em
1843”, Marx “havia chegado à conclusão de que a demanda por livrar o Estado das suas
deficiências, se analisada por completo, resulta na demanda pela dissolução deste”
(ARTHUR, 1974 apud MARX, ENGELS, 1974, p. 5). Este é o ponto de culminância da
discussão que apresentamos neste trabalho. Desde os anos da sua formação, na
universidade de Berlim, Marx esteve envolvido na discussão acerca da emancipação
política. Nos círculos que o filósofo de Trier frequentou durante a juventude, a idéia da
emancipação política, tornada efetiva em outras nações, era palavra de ordem. Marx, no
entanto, logo começa a divergir dos companheiros que estavam lutando pela emancipação
política, pelo Estado moderno. Em uma polêmica contra um dos principais nomes da sua
geração, dos frequentadores dos clubes aos quais se associou, Marx começa a mostrar a
limitação, o significado limitado, da emancipação política. O filósofo de Trier torna
explícita a relação existente entre a constituição do Estado moderno e o dilaceramento do
gênero humano em tantos indivíduos, egoístas, fechados em si mesmo, na esfera privada,
quantos forem os homens determinados, vivos, concretos. A emancipação política, no
limite, mostra-se como o acabamento, a forma acabada, da separação entre gênero, ser
genérico, social, e o indivíduo determinado. Nesta discussão Marx torna explícita a relação
existente entre a sociedade civil e a emancipação política. Esta última não é nada mais do
que a emancipação dos elementos que compõe a sociedade civil, os homens egoístas e sua
propriedade. Isto fica expresso no fato de que os direitos naturais do homem que orientam
o Estado são, em última instância, os direitos do homem egoísta, tal como ele aparece na
sociedade civil.
Palavras-chave: Emancipação Política; Sociedade civil; Homem egoísta; Propriedade
privada.
142
da emancipação humana, que Marx contrapõe à emancipação política. Infelizmente, o
espaço desta comunicação não nos permite definir esta última de maneira positiva, no texto
ela sempre aparece negativamente, sabe-se o que ela não é. No entanto a falta de definição
do que seja emancipação humana, neste momento, não significa prejuízo nenhum para a
compreensão do tópico.
A sociedade feudal foi dissolvida no seu fundamento [...], no homem egoísta (MARX).
143
A confederação germânica, em flagrante oposição aos Estados modernos, era
formada por um conjunto de Estados “com sistemas de representação política
diversificados e restritivos, inexistência de laicização de fato, burocracias de raiz feudal, e
uma inequívoca dominação da nobreza fundiária.” (NETTO, 2009 apud MARX, 2009, p.
11 – 12). A batalha que se desenrolava, no ambiente cultural em que Marx viveu sua
juventude, era entre os ideais liberais de emancipação política e social e as instituições do
mundo feudal, que, em certa medida, ainda persistiam.
Marx, no entanto, logo começa a se distanciar, em aspectos fundamentais, destes
colegas de estudos. É justamente em uma polêmica contra um ex-companheiro do ‘clube
dos doutores’ que este filósofo encontra a oportunidade para marcar sua posição em
relação ao Estado moderno e à emancipação política. O ano é 1843, o texto, Para a
questão judaica – um comentário de Die Judenfrage de Bruno Bauer.
O texto de Bauer parte de um debate com limites regionais, a contenda entre os
Judeus alemães e o Estado da Renânia, envolvendo a emancipação dos primeiros, a
reivindicação por liberdade de culto. ‘São Bruno’ – para lembramos o modo sarcástico
com que Marx irá se referir a ele daí a algum tempo n’A sagrada família – começa sua
intervenção na discussão, rejeitando a possibilidade de que o Estado Cristão emancipe
quem quer que seja, e vai além, dizendo que ao invés de exigir junto a este Estado a
emancipação, o que, tanto Judeus como Cristãos, deveriam fazer é renunciar a religião, e
demandar um Estado Laico. A argumentação marxiana, na crítica do texto de Bauer, segue
rumo a um problema que extrapola os limites regionais desta querela entre os judeus
alemães e o Estado. O ponto de culminância do desenvolvimento argumentativo de Marx é
a definição dos limites da emancipação política – reclamada por Bauer e pelos outros
‘doutores’ – e a diferenciação desta em relação à emancipação humana.
Na apresentação escrita para a edição inglesa de A Ideologia alemã, Christopher
John Arthur chama atenção para o fato de que “já em 1843”, Marx “havia chegado à
conclusão de que a demanda por livrar o Estado das suas deficiências, se analisada por
completo, resulta na demanda pela dissolução deste.” (ARTHUR, 1974 apud MARX,
ENGELS, 1974, p. 5). Mesmo o Estado na sua forma acabada, na figura do Estado
Moderno, Laico, não é capaz de emancipar o gênero humano, permitir que ele experimente
a liberdade gravada na sua essência. A emancipação política, palavra de ordem entre os
jovens hegelianos, “é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, a
indivíduo egoísta independente; por outro, a cidadão, a pessoa moral.” (MARX, 2009, p.
144
71), abstrato. Nesta medida, ela é apenas o acabamento, a forma acabada, da separação
entre indivíduo e gênero.
Neste comentário ao texto de Bauer, Marx encontra o ensejo para, assim como faria
também na Introdução da sua Crítica da filosofia do direito, colocar a questão do
estranhamento da essência humana tornado efetivo nas relações entre Estado moderno e
sociedade civil, e ainda, mesmo que de maneira tímida, exclamar a necessidade da
supressão das determinações que esferas da existência humana experimentam neste status
quo. Aqui Marx já está abrindo a trilha que o levará em direção à teoria da emancipação do
gênero humano, a se realizar, segundo o ‘corifeu da filosofia da práxis’, na forma do
Comunismo.
145
sociedade sobre que repousa o sistema de Estado alienado do povo, o poder do soberano. A
revolução política é a revolução da sociedade civil.” (MARX, 2009, p. 68). Em outras
palavras, é a liberação da sociedade civil do significado político, que as corporações de
ofício e os privilégios característicos do mundo feudal conferiam-lhe.
“A revolução política”, conforme vemos na letra do filósofo: “suprimiu... o caráter
político da sociedade civil.” (MARX, 2009, p. 69). Em The Young Karl Marx, David
Leopold nos adverte que “isto é o mesmo que dizer que eles” (os elementos que compõe a
sociedade civil) “foram liberados até mesmo da aparência de preocupação com o bem
comum.” (LEOPOLD, 2007, p. 136). Com a transformação do Estado moderno no
elemento mediador, com um caráter universal, abstrato, distanciado da vida concreta, “a
atividade de vida determinada e a situação de vida determinada decaíram para um
significado apenas individual.” (MARX, 2009, p. 69). O indivíduo deixa de estar em
oposição às outras corporações e instituições feudais, por meio da corporação a que
pertence, para se colocar individualmente, de forma privada, em oposição ao gênero
humano, a todos os outros indivíduos tomados de forma privada. O homem aparece como
“um indivíduo remetido a si, ao seu interesse privado.” (MARX, 2009, p. 66).
Neste ponto o futuro crítico da economia política lança luz sobre o movimento
dialético existente entre a emancipação política e o acabamento da esfera dos assuntos
privados do homem egoísta. No Estado moderno a política diz respeito a todo indivíduo,
“os assuntos públicos, como tais, tornaram-se antes assunto universal de cada indivíduo”
(MARX, 2009, p. 69). No entanto, não se pode perder de vista que, em última instância,
são os interesses do homem egoísta, que esta esfera universal defende. Marx observa que o
“citoyen”, ou seja, “o homem político”, é um “servidor do homme egoísta”. O Estado
moderno nada mais é do que a garantia dos direitos do “homme”, i.e., do membro da
sociedade civil. -“A segurança”, observa o filósofo, “é o supremo conceito social da
sociedade civil, o conceito da polícia, porque a sociedade toda apenas existe para garantir a
cada um dos seus membros a conservação da sua pessoa, dos seus direitos e da sua
propriedade.” (MARX, 2009, p. 65).
3. Os direitos do homem.
A emancipação política – que concretamente significa: a subversão de um status
quo em que a nobreza, o clero da igreja católica, e a monarquia absolutista, impunham-se,
ou, os seus interesses, àquela esfera que vai constituir a sociedade civil – suprime a
146
alienação da esfera política em relação à sociedade civil, na medida em que transforma as
demandas desta última em princípios universais que passam a orientar a primeira. Quando
Marx exclama que a revolução política é a liberação da sociedade civil da política, o que
ele está fazendo não é outra coisa senão nos lembrar que: os privilégios, as superstições, e
a autoridade, as marcas típicas e fundamentais do mundo feudal, que se emaranhavam com
a vida concreta, e determinavam as possibilidades da ação, foram retiradas do caminho da
sociedade civil, dos produtores, particulares, pelas próprias mãos, tornadas tão hábeis pela
prática, destes sujeitos. Não só a política deixa de determinar a vida da sociedade civil,
como, em um movimento inversamente proporcional, a sociedade civil passa a determinar
a esfera política. David Leopold põe a questão nos seguintes termos: “A constituição do
estado político e a dissolução da sociedade civil nos indivíduos independentes […] são
realizadas em um só ato.” (LEOPOLD, 2007, p. 138).
Os ideais que o Estado moderno torna efetivo não são a expressão da vontade, da
sabedoria, da iluminação, provindas do caráter divino, de um homem, do Soberano,
colocado em uma esfera fora do domínio público. Pelo contrário, este Estado é, justamente,
a retirada da política das mãos particulares deste Soberano e a transferência desta para as
mãos dos membros da sociedade civil. O que este Estado esta encarregado de efetivar daí
em diante são os direitos ‘naturais’ do homem. A baliza que serve de referência é a
generalização do homem tal como ele aparece na sociedade civil. O homem, ‘natural’, é o
burguês, e “os direitos naturais e imprescritíveis’’ deste “são: a igualdade, a liberdade, a
segurança, a propriedade.” (MARX, 2009, p. 63). Em Para a questão judaica Marx
observa que “nenhum dos chamados direitos do homem vai [...] além do homem egoísta,
além do homem tal como ele é membro da sociedade civil, a saber: [um] indivíduo
remetido a si, ao seu interesse privado e ao seu arbítrio privado.” (MARX, 2009, p. 65 –
66).
“Antes de tudo”, adverte Marx, “constatemos o fato de que os chamados direitos do
homem [...], não são outra coisa senão os direitos do membro da sociedade civil [burguesa]
i.e., do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade.” (MARX, 2009,
p. 63). O sentido que o direito à liberdade – sob o qual o Estado moderno se funda – tem,
limita-se pelas demandas da vida prática na sociedade civil. - “A liberdade”, afirma o
filósofo, “é, portanto, o direito de fazer e empreender tudo o que não prejudique nenhum
outro.” (MARX, 2009, p. 63). Para aqueles produtores que se livraram das guildas, e se
isolaram, trancados na esfera privada, a liberdade significa: “o direito desse isolamento, o
147
direito do indivíduo limitado, limitado a si” (MARX, 2009, p. 64). Em suma, podemos
dizer que, aqui, “trata-se da liberdade do homem como mônada isolada, virada sobre si
própria”. (MARX, 2009, p. 64).
Neste reino do egoísmo, a propriedade privada é o elemento que media as relações
que os homens estabelecem entre si. “A aplicação prática do direito humano à liberdade”,
Marx escreve, “é o direito humano à propriedade privada.” (MARX, 2009, p. 64). Em
última instância, o objeto que está no centro, em foco neste quadro – em que a liberdade
humana é pintada com as cores e os traços típicos da burguesia – é o direito de,
“arbitrariamente, sem referência a outros homens, independentemente da sociedade – gozar
a sua fortuna e dispor dela; é o direito do interesse próprio.” (MARX, 2009, p. 64).
Estes direitos ‘naturais’ do ‘homem’ expressam as características fundamentais do
mundo moderno, burguês. Marx salienta que “aquela liberdade individual, assim como esta
aplicação dela, formam a base da sociedade civil.” (MARX, 2009, p. 64). Através do
direito fundamental à liberdade a sociedade civil vê sancionado o estado de coisas que ela
produz: o homem egoísta, isolado do gênero humano, sentado em cima da sua propriedade
privada. “A égalité”, Marx afirma por fim, “não é senão a igualdade da liberté acima
descrita, a saber: que cada homem seja, de igual modo considerado como essa mônada que
repousa sobre si [própria].” (MARX, 2009, p. 64 - 65). Os direitos do homme, no limite,
dispõem sobre conteúdo da vida da sociedade civil, tendo como axioma o homem egoísta,
isolado do, e mesmo oposto ao gênero humano.
4. Conclusão.
A emancipação política é a institucionalização da idiossincrasia do homem egoísta.
“A liberdade do homem egoísta e o reconhecimento dessa liberdade” Marx escreve, “é [...]
o reconhecimento do movimento desenfreado dos elementos espirituais e materiais que
formam o seu conteúdo de vida.” (MARX, 2009, p. 70). Esta representa o último passo, a
forma acabada, do homem estranhado de si. Neste momento “o homem não foi [...]
libertado da religião; recebeu a liberdade de religião. Não foi libertado da propriedade.
Recebeu a liberdade de propriedade. Não foi libertado do egoísmo do ofício, recebeu a
liberdade de ofício.” (MARX, 2009, p. 70). A limitação da emancipação política mostra-se
no fato de que esta não liberta o ser humano, não torna o homem consciente de si mesmo,
enquanto um ser genérico, social, mas antes, afunda de vez os indivíduos na sua
particularidade, egoísta, finita, limitada.
148
REFERÊNCIAS
LEOPOLD, D. The young Karl Marx: German philosophy, modern politics, and human
flourishing. New York: Cambridge University Press, 2007.
MARX, K. ENGELS, F. The German ideology. 2. ed. London: Lawrence & Wishart, 1974.
MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle, Leonardo de
Deus. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.
_________ Para a questão judaica. Trad. José Barata-Moura. São Paulo, Expressão
Popular, 2009.
149
CONSIDERAÇÕES FREUDIANAS ACERCA DA FELICIDADE
RESUMO
A Proposta que aqui será apresentada vê o potencial dessa discussão em um autor pouco
lembrado em seus feitos filosóficos, a saber, Sigmund Freud. Com base nos textos Totem e Tabu
(1913-14) e O Futuro de uma Ilusão (1927), passaremos a buscar apontamentos que nos levem a
entender como o psicanalista compreeende a felicidade e como esse conceito tão complexo pode
ser visto em uma civilização ou uma cultura, compreendendo a cultura ou civilização como
sérios complicantes ao indivíduo que busca sua felicidade, já que em uma sociedade é sempre
determinante limitar os direitos indivíduais em vista de um bem maior e coletivo, além do fato de
haver uma parcela de coercividade nas civilizações contemporâneas. Sempre ao longo do
pensamento filosófico discute-se sobre qual seria o sentido ou a finalidade da vida, e com
algumas respostas chega-se à ideia de que a finalidade da vida é a vida feliz, porém muitas
divergências se formam quando o objetivo é definir de modo claro o que é a felicidade enquanto
o conceito fundamental da existência humana. Esta discussão de suma importância para a
filosofia estende-se desde a antiguidade e podemos lembrar aqui de Aristóteles como um
representante dessa discussão, passando ainda por vários outros pensadores clássicos como
Agostinho, Immanuel Kant, e ainda alguns filósofos contemporâneos, como Habermas,
Heidegger, e muitos outros que ainda poderiam ser lembrados. A perspectiva freudiana de
felicidade é uma proposta que analisa do ponto de vista libidinal o ponto em questão, ou seja, a
felicidade dos indivíduos estaria segundo o autor, estritamente ligada à sexualidade e sendo
assim o indivíduo compreendendo sua sexualidade conseguiria ter uma vida mais próxima do
que se possa chamar feliz, já que Freud não vê a possibilidade de felicidade plena. É então a
partir desse grupo de ideias freudianas que desenvolver-se-á a pesquisa a seguir tendo por foco
sempre a análise feita por Freud nos textos acima citados, porém sem desconsiderar outros textos
de suma importância em sua estupenda obra literária.
Palavras-chave: Freud; Felicidade; Cultura; Civilizações; Libidinal.
A pesquisa que será apresentada aqui terá por base duas questões a respeito do tema
de como Sigmund Freud analisa a relação da civilização com a felicidade humana; primeira
questão como pode a cultura ou civilização interferir na busca por felicidade? E segunda será
que nem ao menos é possível alcança-la em um contexto civilizado? De acordo com a tese de
Freud a felicidade humana teria sua gênese no amor sexual e assim os indivíduos
conseguiriam experimentar a mais próxima da felicidade plena possível, quando
determinarem para si objetos sexuais e os alcançarem satisfatoriamente. Essa ideia de Freud
150
sobre a felicidade traz consigo uma interdependência entre o sujeito e o objeto sexual
escolhido (FREUD, 2011, p. 46). Devemos nesse instante nos pôr a entender melhor essa
relação entre o amor e a felicidade e é a respeito disso que nos ocuparemos a seguir.
A explicação que foi feita acima definiu a formação da família original como a
gênese da civilização original, já que apresentamos de modo razoavelmente simplista acho
interessante observarmos nas palavras de Freud: “Assim o macho teve um motivo para
conservar junto a si a mulher ou, de modo mais geral os objetos sexuais; as fêmeas, que não
queriam separar-se de seus filhotes desamparados, também no interesse deles tinham que ficar
junto ao macho forte.” (Idem, p. 44).
O amor genital representa o centro das ações dos indivíduos é, portanto o mais forte
dentre os três, funcionada do seguinte modo, após ter determinado para si o objeto sexual de
28
Freud ao descrever a família utiliza-se da união entre um macho e uma fêmea, porém por uma questão
histórica e cultural e não por homofobia, além do fato que caso houvesse uma união homossexual o processo
seria o mesmo, sendo que em grande parte dos casos há ainda uma figura de macho e fêmea.
151
desejo o indivíduo apresenta determinadas ações com a finalidade de alcançar e satisfazer esse
amor genital, ou seja, essas ações são movidas por uma força psíquica originada na libido dos
indivíduos, mas que não é restritamente sexual é como se todas as ações tivessem como plano
de fundo a libido sendo elas ações sexuais ou não. O amor inibido na meta é definido por
Freud como um amor que sofreu recalque na instituição familiar e civilizatória, isso por que
segundo o autor a natureza dos homens tem uma vontade sexual insaciável que
impossibilitaria a vida em família e em sociedade, portanto na instituição familiar primeira ele
é inibido por uma problemática maior que é da sobrevivência facilitada em sociedade e em
família, troca-se a facilidade alcançada pelo direito de agir com livre sexualidade. Por último
a amizade que é por sua vez produto do amor inibido na meta, sendo que ele apresenta várias
características que o amor genital não permitiria entre eles a “exclusividade, por exemplo,”, o
amor genital mesmo que inconscientemente prevê uma exclusividade e isso pode ser visto nos
ciúmes ou em outras ações do tipo, enquanto a amizade apesar de ainda não estar
completamente livre desses ciúmes, tem uma menor exigência de exclusividade (Idem, p. 46)
e é paralelo ao amor inibido na meta já que quando se restringe o direito de exercer livremente
a sexualidade os indivíduos encontram outras formas de satisfação dentre elas está atividades
que possam ser feitas entre “amigos”, assim a amizade pode ser vista como um escape de
energia libidinal.
A partir desses três tipos de amor a sociedade se ergue começando pela família e
posteriormente com a união de várias famílias a civilização maior, porém essa ideia de
unidade das várias famílias traz um problema crucial para esta pesquisa, qual seja, para que as
famílias possam unir-se em uma sociedade também devem sofrer restrições e segundo Freud
quanto mais famílias comporem essa união maior o número de restrições a cada uma delas, é
então onde reside em grande parte a dificuldade de ser feliz em comunidade, ou seja, há
sempre uma necessidade de renúncia cada vez mais perturbadora ou haverá conflito.
Essa tese com relação aos filhotes elegerem a mãe como objeto sexual é alvo de
grande resistência de outros teóricos entre eles citarei apenas Gilles Deleuze, esse filósofo
francês do século XX é um grande crítico do pensamento freudiano; e em seu texto
denominado O Anti-Édipo juntamente com Felix Guatarri, o autor demonstra grande
insatisfação pela tese psicanalítica. Porém antes de entendermos a crítica de Deleuze vamos
apresentar rapidamente a tese freudiana do Complexo de Édipo. Primeiramente o termo é
derivado da tragédia de Sófocles chamada de Édipo Rei (427 a.C.), na tragédia grega de modo
152
bem resumido após alguns acontecimentos um herói chamado Édipo assassina seu pai e casa-
se com sua mãe e mantem essa relação incestuosa sem saber, porém ao descobrir que seu
objeto sexual era a própria mãe ele acaba por arrancar seus olhos. Mesmo que seja breve essa
síntese já servirá para entendermos do que se trata a tese de Freud, o autor acredita que a
criança retira de sua mãe o primeiro objeto de desejo libidinal a partir do seio dela, já que na
infância primeira a criança tem dificuldades em discernir aquilo que deseja e aquilo que
necessita, ou seja, o alimento (leite materno) do desejo (seio materno). Com isso a criança
alimenta um amor sexual pela mãe e com o passar do tempo e das observações feitas por essa
criança ele cria uma aversão à figura do pai já que este representa o macho que consegue
extrair o prazer dela, mesmo a criança não compreendendo ao certo o que seja o prazer, ele
parte da observação do espaço de convívio percebe que tem de dividir aquilo que mais deseja
com outro indivíduo, então com isso a criança se vê na mesma situação de Édipo, porém sem
que possa concretizar seu desejo que é matar o pai e casar-se com a mãe, e aqui se instala o
primeiro grande recalque.
A crítica de Deleuze não é estritamente com relação ao complexo de Édipo, mas sim
com relação ao inconsciente como um todo, o filósofo acredita que as ações humanas devem
ser observadas a partir de um plano inconsciente criativo, diferente do que dizia Freud, os
homens agem de acordo com sua vontade, e esse é o ponto crucial dessa crítica, segundo
Deleuze o modo como a psicanálise freudiana compreende o inconsciente seria um modo de
tentar analisar algo que não é passível de compreensão que é um impulso criativo, esse
impulso é o que move o homem em suas ações e sua produtividade, e quando se tenta
quantificar ou cientificar essa criatividade estabelece-se o erro, e é isso que ele acredita fazer
a psicanálise. Nas palavras de Deleuze e Guatarri:
Como é que a psicanálise consegue reduzir o neurótico a uma pobre criatura que
consome eternamente o papá-mamã, e nada mais? Como é que se pôde reduzir a
síntese conjuntiva do «Afinal era isto! », do «Afinal sou eu», à eterna e triste
descoberta do Édipo, «Afinal é o meu pai, afinal é a minha mãe...» Não podemos
ainda responder a estas questões. Para já, vemos apenas como o consumo de
intensidades puras é estranho às figuras familiares, como o tecido conjuntivo do
«Afinal! » é estranho ao tecido edipiano. (2004, p. 24-25)
153
Voltando a compreensão da vida feliz e da sociedade nos chegamos à ideia de que
além de um constante conflito de interesses individuais há ainda outro grande problema na
vida em uma civilização, a falta de força psíquica suficiente nos indivíduos. Isso deve ser
observado da seguinte forma, o macho que vive em sociedade é submetido a várias “tarefas”
que sublimam em parte suas atividades instintivas mais básicas, com isso há uma regulação
dos instintos e grande parte do poder libidinal que compõe o sujeito acaba se dissipando
fazendo com que lhe falte energia psíquica para gastar com a atividade que o aproxima da
felicidade que é a atividade plenamente libidinal com seu objeto sexual. Essa falta de energia
psíquica também reflete uma insatisfação na fêmea que compõe o contexto familiar, fazendo
com que os conflitos existentes na civilização maior venham a existir também em sua família
e isso gera ainda mais restrições para o macho e para a fêmea, cito Freud:
Freud ao fazer esses apontamentos mostra que a felicidade mesmo que seja parcial e
imperfeita em grande medida é difícil de se alcançar tanto no estado pré-civil como em uma
civilização ou até mesmo em uma família. Essa proposta faz-se ainda mais clara quando
recorremos às definições de “Ego” e “Id”, por exemplo, o Ego pode ser definido inicialmente
como a parte racional do indivíduo, isso já traz consigo a ideia de uma instância que restringe
o Id quando necessário, sabendo que o Id é o inconsciente primitivo nos homens e apresenta-
se nas ações mais primitivas como vontade sexual ou desejo de morte por exemplo. O
indivíduo que hipoteticamente alcança-se a felicidade plena já teria em si toda restrição que
fosse necessária e então a civilização representa um excesso de restrição, com relação a isso
Theodor Reik apresenta a seguinte tese:
154
A tese de Reik mostra a fragilidade do sistema cognitivo humana, trazendo uma
grande dificuldade em conciliar as exigências culturais e os impulsos individuais.
Havendo encontrado tantas dificuldades no que diz respeito à vida feliz é interessante
analisar uma das possibilidades de encontrar a satisfação necessária para a felicidade, segundo
a observação que vem sendo feita até aqui os indivíduos que buscam a vida feliz podem
apoiar-se no amor que reside na constituição familiar. A satisfação do amor genital no
contexto familiar e ainda a existência das amizades parece ser algo muito próximo da
felicidade para quem vive em sociedade segundo Freud, cabe saber se o homem que é
submetido a essas restrições ficaria satisfeito com tal parcela de prazer que é proporcionada
por sua família e amigos.
Para Freud o que deve estar no centro teórico de uma civilização é a ciência, sendo
que esta proporcionaria respostas reais dos fatos que nos cercam e não traz nenhuma
militância contra a satisfação libidinal.
Ao agir assim, impõe-se a ele a idéia de que a religião é comparável a uma neurose
da infância, e é otimista bastante para imaginar que a humanidade superará essa fase
neurótica, tal como muitas crianças evolvem de suas neuroses semelhantes. Essas
descobertas derivadas da psicologia individual podem ser insuficientes, injustificada
155
sua aplicação à raça humana, e infundado otimismo o dele. Concedo-lhes todas essas
incertezas. Mas freqüentemente não podemos impedir-nos de dizer o que pensamos,
e nos desculpamos disso com o fundamento de que só o dizemos pelo que vale.
(FREUD, [1927] 2006, p. 29)
A felicidade estaria mais próxima nessa civilização hipotética em que a razão supera
a religião e seu conjunto de crenças, isso por que o indivíduo teria em si próprio àquilo que é
necessário para alcançar a felicidade, ou seja, quando o indivíduo deposita a felicidade em
uma instância superior ele fica limitado a agir de acordo com a vontade de outro (Deus), e
quando a razão é o princípio da felicidade ele contém em si as limitações que acha necessárias
sem precisar apoiar-se em outra figura. Segundo Freud nessa civilização hipotética o homem
“estabelecerá para si os mesmos objetos que aqueles cuja realização você espera de Deus [...]
a saber, o amor do homem e a diminuição do sofrimento” (Idem, p.29). É evidente que caso
fosse possível o homem conhecer cientificamente a origem dos mais fortes prazeres e dos
mais temidos sofrimentos elevaria a possibilidade de se encontrar a felicidade, mesmo que
não plena29.
A felicidade segundo o que foi estabelecido até aqui, está então relacionada à ciência,
não pensada como forma de estudo que formaliza as situações para compreendê-las, mas a
ciência no sentido de razão, mesmo com as implicações encontradas nos instintos mais
poderosos e incontroláveis a razão é que traz o entendimento possível para esses instintos se
for preciso admoesta-los assim a razão nos instruirá a fazer. Desse modo a relação de
momentos prazerosos e a fuga das frustrações também podem ser administradas pela razão,
em outras palavras com o bom uso da razão o desfrute dos prazeres é mais próximo e o
afastamento das frustrações é mais provável.
29
Freud não se utiliza dessas hipóteses aqui lançadas como exemplos, porém partindo da leitura de O Futuro
de Uma Ilusão é totalmente possível usar o texto para perceber as implicações que ele traz no caso de ser
aceito como tese vigente da sociedade e é a isso que estas hipóteses referem-se.
30
É interessante observar que o século XX é repleto de autores que compreendem a vida como um fardo, e a
angustia é um tema extremamente recorrente durante esse período.
156
A administração da vida através da razão deve ser a base para alcançar aquilo que se
pode chamar felicidade, através de escolhas que nos aproxime dos objetivos sexuais e afaste-
nos das frustrações de qualquer espécie. O fato é que o centro da felicidade possível é o Ego
enquanto instância necessária para a sobrevivência em uma determinada civilização e até
mesmo em família.
Não é fácil concluir com razoável certeza qual é o molde de vida que possibilitaria
alcançar a felicidade, talvez isso nem seja possível devido à liberdade nas escolhas de objetos
sexuais dos mais variados existentes, porém com base em nossa pesquisa até aqui é possível
estabelecer algumas coisas que dificultariam chegar aos objetivos estabelecidos, sendo que a
religião enquanto ilusão restringente dos prazeres é um dos maiores restringentes da
felicidade e a sociedade que exerce excessiva coerção também é um dos grandes empecilhos.
De modo simplista e conclusivo pode se dizer que aquilo que aceitamos como verdade última
(dogma) e que nos gera limitações sexuais ou libidinais são os afastadores da vida feliz por
mais trivial que seja, portanto não apenas a religião ou a sociedade são empecilhos para a
felicidade, mas ainda qualquer coisa que elegemos para nos mesmos como verdades últimas
refreadoras.
REFERÊNCIAS
_____. Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud Standard Brasileira vol. XIII. Totem
e o Tabu E Outros Trabalhos (1913-1914). Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2006.
NELSON, Benjamin. Vários autores. O Século de Freud. Trad. Maslowa Gomes Venturi e Dr.
Caetano Trapé. Ed. IBRASA, São Paulo, 1959.
157
FACTICIDADE E DIFERENÇA: ELEMENTOS DE FILOSOFIA DA
LINGUAGEM E FILOSOFIA DO DIREITO EM HABERMAS E DERRIDA
Lucas Antonio Saran
Universidade Estadual de Londrina
lucasasaran@gmail.com
RESUMO
Dutra (2013) chama atenção para o fato de que há um claro ponto de discordância entre
Habermas e Derrida. Com certeza, Dutra possui razão em sua postura, e, muito
provavelmente, uma consulta direta a Habermas acabaria por confirmar a discordância do
filósofo alemão com relação ao filósofo francês (Derrida). Apesar disso, esta comunicação
possui a pretensão de realizar um esboço de aproximação entre Habermas e Derrida.
Deveras, analisadas separadamente a estrutura das reflexões gerais de ambos os autores,
observar-se-á que, ao final, a despeito das discordâncias, o filósofo da ação comunicativa e
o filósofo da différance possuem, inexoravelmente, pontos de similaridade. Este modesto
projeto de correlação entre Habermas e Derrida nasce delimitado pelos campos da filosofia
do direito e da filosofia da linguagem. Nessa toada, o texto encontra-se dividido em três
momentos centrais: primeiro, alguns elementos do pensamento de Habermas (filosofia da
linguagem, facticidade, validade etc) são consignados, especialmente a configuração da
modernidade a partir da dualidade entre os sistemas e o mundo da vida, apresentando-se o
direito como importante elementos de mediação. Na sequência, focam-se Derrida e suas
reflexões sobre a filosofia da linguagem e a filosofia do direito, sobretudo na particular
crítica à metafísica da presença levada a efeito em duas importantes obras desse autor, a
saber, Gramatologia e Força de lei. Ao final, os dois autores são objeto de aproximação e,
como prometido, são apresentadas certas relações entre ambos. Pedimos que nossos
leitores entendam que o objetivo nesse desenvolvimento não é desconsiderar as
idiossincrasias dos dois autores estudados, mas mostrar que, por assim dizer, não deixa,
também, de existir consenso entre eles. Acreditamos que esse tipo de trabalho é lícito e
importante: por vezes, tanto os filósofos, quando seus admiradores tomam uma postura
demasiado combativa e destrutiva; acreditamos ser uma possível função do historiador da
filosofia mostrar até que ponto tal postura (combativa) é razoável e lícita.
Palavras-chave: Habermas; Derrida; linguagem; direito.
INTRODUÇÃO
Dutra (2013) chama atenção para o fato de que há um claro ponto de discordância
entre Habermas e Derrida. Com certeza, Dutra possui razão em sua postura, e, muito
provavelmente, uma consulta direta a Habermas acabaria por confirmar a discordância do
filosofo alemão com relação ao filósofo francês (Derrida).
158
Apesar disso, esta comunicação possui a pretensão de realizar um esboço de
aproximação entre Habermas e Derrida. Deveras, analisadas separadamente a estrutura das
reflexões gerais de ambos os autores, observar-se-á que, ao final, a despeito das
discordâncias, o filósofo da ação comunicativa e o filósofo da différance possuem,
inexoravelmente, pontos de similaridade.
Pedimos que nossos leitores entendam que o objetivo nesse desenvolvimento não é
desconsiderar as idiossincrasias dos dois autores estudados, mas mostrar que, por assim
dizer, não deixa, também, de existir consenso entre eles. Acreditamos que esse tipo de
trabalho é lícito e importante: por vezes, tanto os filósofos, quando seus admiradores
tomam uma postura demasiado combativa e destrutiva; acreditamos ser uma possível
função do historiador da filosofia mostrar até que ponto tal postura (combativa) é razoável
e lícita.
159
está caracterizada por um processo de racionalização. A modernidade veio ao lume com
uma promessa: libertar os homens do julgo da religião. Essa é a promessa (não cumprida)
da modernidade. O ethos é substituído pela razão e a teleologia pela imparcialidade. A
ética é baseada pelo sujeito, com pretensão de universalidade. Diz Habermas:
Houve uma perda de sentido no mundo da vida. A razão se partiu em várias razões.
Esse desacoplamento entre sistemas e mundo da vida é o que caracteriza a modernidade.
Com efeito, nesse processo de racionalizar as esferas de produção do saber migraram de
dentro do mundo da vida (onde se encontravam fundadas na religião) para fora, criando
sistemas dotados de racionalidade própria.
160
sociais perpassam prioritariamente não por valores ou normas, mas por dinheiro e poder
administrativo:
161
Nesse quadro, o direito assume papel importante, cabendo-lhe tripla função.
Pinzani nos ensina:
O agir social recebe seu sentido, então, do mundo da vida, no qual se encontram
os atores assim como o observador, isto é, o cientista social. As ciências sociais
enquanto ciências interpretativas estão presas em um círculo hermenêutico: elas
não podem fugir do mundo da vida na qual o próprio observador se encontra. O
mundo da vida constitui o horizonte no qual não somente se dá o objeto de tais
ciências, a saber, o agir social, mas também acontecem as análises delas.
(PINZANI, 2009, p.108)
A nosso ver, seria muito pretensioso de nossa parte sintetizar as linhas mestras do
pensamento de Derrida nas poucas páginas que se seguem. Com efeito, iremos nos
162
circunscrever a dois trabalhos específicos: 1- a Gramatologia31 que nos permitirá trabalhar
questões de filosofia da linguagem; 2- a coletânea Força de lei (DERRIDA, 2010) que
usaremos, principalmente, para trabalhar questões de filosofia do direito.
Mas o que seria essa metafísica da presença? Para Derrida, a metafísica da presença
seria um tipo de pensamento que cai nas armadilhas de uma dualidade inexorável: a
dualidade significado-significante. De onde viria essa dualidade? A dualidade viria de um
fato óbvio, porém, nem sempre percebido: ao se representar o mundo por intermédio da
linguagem, pressuposta, desde já, está a distância entre a linguagem e o mundo. Noutros
termos, apenas se pode dizer que se representa o mundo quando aberta está a possibilidade
para que a representação possa ser ruim (falsa, imprópria etc) ou boa (bela, correta,
31
Recentemente, devido aos acontecimentos do famoso caso Sokal, muitas obras de autores pós-
estruturalistas (como Derrida) têm sido desacreditadas por, muitas vezes, apresentarem uma linguagem, por
assim dizer, “abstrusa”, beirando à falta de sentido. Esse tipo de característica “abstrusa”, a nosso ver, não
está na Gramatologia, porquanto, ainda que admitíssemos ser o primeiro grande movimento dessa obra
demasiado complexo e quase ininteligível, temos de admitir que, no segundo grande movimento, o autor
repete boa parte das idéias postas no início sob a perspectiva de um claro e rigoroso trabalho historiográfico
sobre as obras de Rosseau. Inclusive, para gerar o mínimo de polêmica, procuraremos nos ater a esse segundo
movimento da obra.
32
Ao dirigir esse tipo de crítica, Derrida pretende que Rosseau deva ser visto como sendo apenas um
exemplo de uma série de erros que, ao longo de boa parte da história da filosofia (pelo menos, até
Heidegger), estariam presentes. Não iremos, aqui, desenvolver essa postura de Derrida, tampouco expor o
tipo de justificativa que, implícita ou explicitamente, o filosofo francês utiliza para eleger Rosseau como foco
de sua percuciente análise.Essa nossa decisão deve-se tanto à brevidade do espaço deste artigo, quanto ao
fato de que o objetivo deste trabalho é antes estabelecer um diálogo entre dois autores (Habermas e Derrida),
do que tomar um posicionamento a respeito da validade, ou não, do pensamento desses autores.
163
verdadeira etc), e, por outro lado, só conseguimos distinguir os objetos da representação
quando nos distanciamos deles ao tentarmos representá-los. Isso fica mais claro ao
pensarmos em um exemplo: quando tentamos representar o mundo (o real, o Ser, o
universo etc) podemos parar para pensar e constatar que tal mundo não é verdadeiro nem
falso, visto que são as representações do mundo que são verdadeiras ou falsas; por outro
lado, só distinguimos a própria existência do mundo (o real, o Ser, o universo e etc.)
quando, ao tentarmos representá-lo, passamos a tratá-lo como um objeto (um ideal) ao ser
atingido por um mecanismo de representação (como um objeto externo à linguagem e ao
qual devemos tentar atingir através de tal linguagem).
33
Na tradução da Gramatologia que estamos utilizando, o termo é traduzido através do neologismo
diferência . Há, no entanto, quem prefira usar outros neologismos (como diferança) de modo que, para evitar
polêmica, optamos, aqui, por não traduzir o termo.
34
Vale chamar a atenção para o fato de que, ao que parece, devamos ter cuidado para não tratar a própria
différance como um ideal metafísico: se pararmos para pensar, veremos que sequer se deve falar muito a
respeito da différance, pois esta representa a própria dualidade e quando tentamos falar dela, fatalmente,
tratamo-la como um objeto de representação e, conseqüentemente, como um dos termos da dualidade a que
ela deveria remeter.Esse caráter complexo da différance talvez seja o motivo pelo qual, como ressalta Rorty
(1991), Derrida, conforme sua obra evolui, foi aos poucos abandonando, cada vez mais, a tentativa de
oferecer qualquer versão demasiado sistemática de sua filosofia.
164
Vemos, nesse contexto, o caráter constrangedor da filosofia antimetafísica de
Derrida. Isso significa que estamos presos em uma espécie de maldição da différance?
Não, e é aí que entramos no ponto, por assim dizer, filosófico-jurídico deste texto: libertos
da metafísica, podemos utilizar a différance como instrumento crítico e perceber que a
metafísica pode, também, ocultar algo de nefasto. Um exemplo disso encontra-se,
principalmente, no primeiro e no terceiro textos de Força de lei. Tais textos, de fato,
possuem algo de obscuro, mas, com uma boa leitura prévia da Gramatologia, podem, a
nosso ver, ser bem compreendidos: no Post-scriptum a Prenome de Benjamin, Derrida, a
partir da interpretação que havia feito de um texto de Benjamin, investe contra a crítica
benjaminiana segundo a qual o direito seria ilegítimo, pois seria fundado sobre uma
violência primeira que, por ser anterior ao próprio direito (e sua condição de
possibilidade), jamais poderia ter a própria legitimidade jurídica; em Do direito à justiça,
Derrida, de modo mais claro, expõe aquilo que poderia se aproximar de uma filosofia do
direito baseada no conceito de différance, notando-se que a principal característica dessa
filosofia do direito derridiana seria pensar a lei como envolvida na inexorável dualidade da
significação de modo que o papel do filósofo (cf DERRIDA, 2010, p.27-28) seria o de
propor uma crítica constante em que se mostrasse a irredutível différance entre a lei (a
representação) e a justiça (aquilo que se pretende representar com a lei).
165
catástrofes naturais. Benjamim, no final das contas, estaria substituindo um tipo de
violência por outra; e isso se agrava quando, como faz Derrida no Post-scriptum, pensamos
que a ideia de uma justiça divina que daria uma solução definitiva para o problema da
justiça é (uma tal ideia) muito similar à postura de regimes totalitários que, como o
nazismo, buscaram, em algum tipo de ufanismo patriótico, uma solução definitiva. 35
Contra esse tipo de postura (quase fascista), Derrida, embora não dê uma solução, acaba, a
nosso ver, deixando subentendida a postura de Do direito à justiça: a justiça, entendida
como entidade metafísica definitiva, não existe. O que se pode fazer é tomar a justiça
como uma espécie de polo oposto (no par significado-significante) ao direito (cf
DERRIDA, 2010, p.41). Tal justiça, para uma filosofia da différrance, constituir-se-ia em
algo que, além de impedir expedientes como o de Benjamim, permitiria um processo de
reflexão crítica constante a respeito do direito.
Mas por que essa constatação nos é tão importante neste momento? Porque
acreditamos que a relação entre Derrida e Habermas, naquilo que concerne ao pensamento
da linguagem e do direito, manifesta, não obstante a divergência entre os dois autores, a
característica comum de que ambos os autores estudados são descobridores da situação de
que o direito encontra, devido a elementos decorrentes da própria filosofia da linguagem,
limites que o levam, através de um diálogo com aquilo que lhe é externo (com seu fora), a
manter uma situação de constante autocrítica: os limites decorrentes da filosofia da
35
Nesse sentido, Derrida chama atenção para o fato de que um leitor de Benjamim poderia, facilmente, partir
das posturas do autor (Benjamim) para concluir que, de alguma forma, o holocausto, ainda que não se
concorde com as ideias que o embasam, foi um castigo divino. A esse respeito e de toda a crítica que Derrida
faz a Benjamim, recomendamos, principalmente: Post-scriptum (DERRIDA, 2010, p.143-144).
166
linguagem levam o direito a estar, constantemente, em uma busca por questionar (pensar) a
si mesmo.
O que queremos dizer com tudo isso? Comecemos nos lembrando do que decorreu
daquilo que trabalhamos a respeito de Derrida: o direito é a tentativa de representar a
justiça e, no entanto, sempre deve se pensar em uma relação de exterioridade com relação a
esta última; para verificar a validade de uma proposição jurídica (significante)
pressupomos a justiça (significado) de modo que acabamos tendo de aceitar que esta
última é algo externo ao direito. Por outro lado, só começamos a falar de justiça quando
procuramos representá-la por algum meio (como o direito).
Com tudo isso, vivemos o inexorável paradoxo: pressupomos a justiça para avaliar
o direito, e pressupomos o direito para trazer a justiça à luz; há certo distanciamento
necessário entre direito e justiça de modo que o primeiro está sempre sujeito, por assim
dizer, à justa crítica.
Essa proposta derridiana que procuramos detalhar em nosso segundo capítulo não
deixa de ter algumas similaridades bastante interessantes com o pensamento habermasiano
estudado em nosso primeiro capítulo. Com certeza Habermas não parte de uma reflexão
sobre a significação similar à de Derrida, pois seu pensamento (o de Habermas) baseia-se
em uma visão pragmática da linguagem36. Apesar desse posicionamento de Habermas (que
difere do de Derrida), vemos que o filosofo alemão chega a um tipo de conclusão bastante
similar àquela do filósofo francês: o direito precisa pensar-se em constante autocrítica, pois
ele (o direito) encontra-se em meio a uma tensão entre facticidade e validade gerada pela
situação de que as comunidades linguísticas geram valores morais (validade) que estão
sempre ameaçados pelos fatos produzidos pelo pensamento técno-científico37. Em meio a
essa situação de tensão, o direito é sempre forçado a manter-se em autocrítica: o direito
deve, por assim dizer, viver em um movimento pendular em que, ora se deixa conduzir
pelos sistemas (ciência, técnica, movimentos da grande economia etc), ora se deixa
conduzir pelas comunidades linguísticas (formas de vida) e seus valores; cabe assim, ao
pensamento jurídico ter, a todo tempo, senso crítico suficiente para saber de que elemento
36
Trata-se de algo próximo (senão idêntico) ao que poderíamos chamar de “filosofia da linguagem ordinária”
cuja referência, a nosso ver, ficou explícita quando, no primeiro capítulo, fez-se menção a noções como
“comunidade de falantes” e “formas de vida”.
37
Aqui nos referimos, especificamente, àquela instância que, em nosso primeiro capítulo, foi referida com a
palavra sistemas.
167
deve aproximar-se (como manter uma equilibrada a complexa balança entre “sistemas” e
“mundo da vida”?).
Tomando esse último raciocínio, como negar a similaridade entre muitas das ideias
propostas por Habermas e por Derrida? A causa dos problemas habermasianos que
acabamos de retomar não é outra senão a esfera da linguagem: são os valores do “mundo
da vida” (espaço das comunidades linguísticas) que são condição de possibilidade da
tensão entre tal “mundo da vida” e os “sistemas”. Se olharmos com atenção essa situação
veremos que o pensamento de Habermas, tal como o de Derrida, depara-se com as
complexas relações entre a linguagem e aquilo que lhe é externo, e, consequentemente,
permite se pensar a difícil relação entre o direito e aquilo que lhe é alheio.
Vimos que, além da oposição que já é rotineira (como mostra o texto de Dutra,
2013), Habermas e Derrida possuem algumas proximidades. Para alguns, a percepção
dessas similaridades, do modo como a empreendemos, poderia parecer mero exercício de
futilidade: poder-se-ia alegar que a concepção do direito como autocrítico e das complexas
relações entre a linguagem e aquilo que lhe é externo são, do ponto de vista do pensamento
do século XX, um fato tão genérico que não faria sentido aproximar dois autores
específicos através dele.
168
REFERÊNCIAS
169
O DIREITO MODERNO E A INCLUSÃO DO OUTRO NAS SOCIEDADES
COMPLEXAS SEGUNDO HABERMAS
RESUMO
Habermas tem como propósito desenvolver uma teoria da sociedade com propósito
prático, reconstruindo38 a razão prática de Kant através de sua teoria da ação comunicativa,
visando a autonomia dos indivíduos e a emancipação da sociedade moderna, esta que foi
desacoplada em mundo da vida e sistema e não pode mais fundamentar o direito através da
38
Habermas, em seu livro Para a reconstrução do materialismo histórico, mostra que reconstrução significa
“que uma teoria é desmontada e recomposta de modo novo, a fim de melhor atingir a meta que ela própria se
fixou” (HABERMAS, 1983, p. 11).
170
tradição cultural e sua racionalidade prática. Nesta sociedade moderna, ou sociedade
complexa, aparecem dois tipos de racionalidade: a racionalidade comunicativa 39 , que
substituiu a razão prática após o giro linguístico40, e a racionalidade estratégica41.
Para fundamentar a validade dos enunciados e juízos morais, Habermas e Apel
desenvolveram a “Ética do Discurso”42, que seria uma extensão da ação comunicativa. Tal
ética propõe empregar na sociedade moderna os valores de liberdade, justiça e
solidariedade através do diálogo, posta como a única maneira de se respeitar a
subjetividade das pessoas e também a sua inegável dimensão solidária, visto que no
processo dialógico precisamos contar com pessoas e com a ligação que existe entre os
indivíduos, sendo assim justa.
Para Habermas (1989, p. 115-6), todos os que entram em argumentações devem
fazer com que todos, ao empreenderem seriamente a tentativa de resgatar discursivamente
pretensões de validades normativas, aceitem intuitivamente o princípio da universalização
‘U’, visto que, a partir das mencionadas regras do Discurso, uma norma controversa só
poderá encontrar assentimento entre os participantes de um Discurso prático, se o princípio
da universalidade ‘U’ for aceito, isto é: “Se as consequências e efeitos colaterais, que
previsivelmente resultam de uma obediência geral da regra controversa para a satisfação
dos interesses de cada indivíduo, podem ser aceitos sem coação por todos” (HABERMAS,
1989, p. 116).
Apesar disso, a própria Ética do Discurso pode ser reduzida ao princípio do
discurso ‘D’ segundo o qual: “D: São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis
39
A razão comunicativa está inserida no telos do entendimento através do medium linguístico na qual, a
partir dos atos de linguagem reproduzidos comunicativamente às formas de vida, busca-se o entendimento
com alguém sobre algo no mundo.
40
Do original lingustic turn. “Giro linguístico foi a mudança de paradigma que ocorreu no pensamento
filosófico ao longo do séc. XX. Aqui a linguagem deixa de ser um objeto de estudo entre outros e passa a ter
uma referência inevitável e fundamental onde se abordam todos os problemas filosóficos. Razão e linguagem
se tornam idênticos de tal modo que a linguagem se torna a única forma racional de se conhecer a realidade.
Nossa relação com o mundo passa a ter um caráter simbolicamente mediado, visto que a linguagem
desempenha um papel fundamental. A linguagem não é mais um meio de conhecimento, ela passa a ser a
condição de possibilidade de conhecimento” (VELASCO, 2003, p. 171).
41
A racionalidade estratégica “consiste na orientação da ação para o êxito a partir de uma avaliação das
condições dadas” (DURÃO, 2006, p. 103). Mas o êxito da ação irá depender do sistema envolvido, por
exemplo, o êxito no sistema econômico será medido pelo meio dinheiro, já no sistema político o êxito é
medido pelo meio poder, sendo assim, “a estratégia na economia deve ser maximizar o benefício em função
do custo na obtenção do lucro, enquanto na política tem que ser a conquista da confiança dos eleitores
traduzida em votos” (DURÃO, 2006, p. 103).
42
A Ética do Discurso tem como finalidade separar a norma socialmente vigente da moralmente válida, pois
em um discurso os indivíduos argumentam sobre normas e tentam verificar quais são moralmente corretas.
Habermas mostra, em seu livro Consciência Moral e Agir Comunicativo (1989, p. 112), que a ética do
discurso pretende revelar os pressupostos que tornam racional a argumentação.
171
atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos
racionais” (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 142).
Para Habermas, a sociedade moderna foi desacoplada em mundo da vida 43 e
sistema 44 , e estas que se necessitam e se complementam. Ora, não se pode explicar a
sociedade atual sem reconhecer sua existência. Entretanto, nas sociedades complexas, o
sistema acaba sendo o elemento que mais se expande, e cabe observar uma constante
dinâmica mediadora do sistema no âmbito especifico do mundo da vida, fenômeno este
que Habermas chamará de colonização do mundo da vida. Isto ocorre quando a reprodução
simbólica do mundo da vida começa a se fundar sobre a base do sistema, o que acaba
trazendo danos para o Estado social, pois o mundo da vida se reproduz quando se
apreendem as condições de uma ação formalmente organizada e entendida como relação
expressada pelo direito (MOREIRA, 2004, p. 53).
Diante desta sociedade complexa, que vive dia após dia o risco de dissenso entre a
racionalidade comunicativa, empregada pelos indivíduos do mundo da vida, e a
racionalidade estratégica, utilizada pelos agentes situados no sistema, tenta-se resolver o
seguinte problema: sabendo que só é possível ocorrer uma integração social entre os
cidadãos que se utilizam destes dois tipos distintos de racionalidade através do direito
moderno, o que legitimaria este possível responsável? Ora, a fonte da legitimação do
direito moderno se encontra no processo democrático da legislação, e esta recorre, por sua
vez, para o princípio da soberania do povo.
O direito moderno45, “em reação ao processo de racionalização característico da
modernidade” (PINZANI, 2009, p. 146), acaba recebendo uma dupla função no âmbito
43
Este conceito se refere “ao ambiente imediato do agente individual, o ambiente simbólico e cultural que
forma a camada profunda de evidências, certezas e realidades que não são normalmente colocadas em
questão” (VELASCO, 2003, p. 47). É neste horizonte comum de compreensão que os sujeitos podem atuar
de modo comunicativo. O mundo da vida é o limite que circunscreve nossa vida.
44
O sistema possui um equilíbrio que se autorregula por meio da especificação funcional dos diferentes
subsistemas que apareceram após o desacoplamento presente na teoria da sociedade de Habermas. No
sistema, as ações de cada indivíduo são determinadas por cálculos de interesse, que maximizam a utilidade. É
também um conjunto social formado por diversos mecanismos anônimos dotados de lógica própria que, na
sociedade moderna, se cristalizou em subsistemas sociais diferenciados e regidos por regras estratégicas, e
por meios materiais ou técnicos: o subsistema Estado e o subsistema Economia (VELASCO, 2003, p. 48).
45
O tipo de direito que interessa para Habermas seria o direito: (1) como uma manifestação do direito
temporalmente limitada e condicionada, ou seja, o direito moderno; (2) determina o tipo de direito como
sendo direito normatizado ou positivo; (3) como uma ordem normativa que é justificada “somente apelando
para um sistema coerente que possibilita a produção de normas segundo um procedimento exatamente
determinado por regras precisas” (PINZANI, 2009, p. 141); (4) o direito moderno se depara com normas
172
desta sociedade complexa. Primeiramente, o direito, “através de uma prática de
autodeterminação, que exige dos cidadãos o exercício comum de suas liberdades
comunicativas” (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 62), deve assegurar a solidariedade social na
sociedade complexa. Com isso, os conflitos acabam sendo resolvidos agora juridicamente
e não mais pela ética como era antigamente. Isto acontece pelo fato de que, não havendo
mais valores comuns, o consenso só poderá ser obtido através de procedimentos
regularizados juridicamente.
Por segundo, o direito possui a tarefa de se opor à colonização do mundo da vida,
funcionando como um objeto que une os agentes do mundo da vida e do sistema e acaba se
tornando “uma correia de transmissão abstrata e obrigatória, através do qual é possível
passar solidariedade para as condições anônimas e sistematicamente mediadas de uma
sociedade complexa” (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 107).
O direito moderno acaba sendo o único instrumento capaz de resolver os riscos de
dissenso entre os indivíduos situados no mundo da vida e no sistema após a colonização do
mundo da vida, pois tal direito é somente legítimo quando ocorrer a democracia, esta que
terá a função de reduzir a complexidade social. A democracia é, então, “a única forma que
uma ordem jurídica legítima pode tomar”, pois “não há direito democrático sem
democracia” (PINZANI, 2009, p. 147).
Sendo assim, como poderá ser resolvida a questão da legitimidade do direito
moderno? Para Habermas, a legitimação do direito moderno parte do próprio conceito
kantiano de legalidade, fundada no princípio da democracia (institucionalização jurídica do
princípio do discurso ‘D’), pois, ao empregar a racionalidade comunicativa ao direito,
Habermas acaba construindo uma teoria discursiva do direito, trazendo também uma
possível saída do ceticismo no campo da filosofia do direito.
Ora, o princípio da democracia46 tem a missão de se prender a um procedimento de
normatização legítima do direito. Tal princípio traz a possibilidade de se decidir
racionalmente às questões práticas em geral, ou seja, diz respeito à legitimação daquelas
jurídicas interpretadas apenas por uma instância autorizada a fazê-lo e da qual sua interpretação é vinculante;
e (5) as normas positivas do direito moderno são caracterizadas por serem instaladas por uma instância
legítima ordenado da força necessária. Resumindo, Habermas só entende o Direito em seu nível pós-
convencional, ou seja, no direito moderno, na qual “as estruturas da consciência moderna materializam-se no
sistema jurídico” (MOREIRA, 2004, p. 36).
46
“Ele [o princípio da democracia] significa, com efeito, que somente podem pretender validade legítima as
leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito num processo jurídico de
normatização discursiva. O princípio da democracia explica, noutros termos, o sentido performativo da
prática de autodeterminação de membros do direito que se reconhecem mutuamente como membros iguais e
livres de uma associação estabelecida livremente” (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 145).
173
normas de ação que surgem sob a forma do direito. O princípio da democracia nada diz
sobre e se é possível tratar discursivamente questões prático-morais, pois trata apenas das
condições abstratas de institucionalização da formação racional da opinião e da vontade,
garantindo a todos igual participação no processo de normatização jurídica, ao se utilizar
de um determinado sistema de direitos (WERLE, 2009, p. 279).
Assim, será através do princípio do discurso, transformado em princípio da
democracia, que Habermas fundamentará o Direito, estabilizando a tensão entre autonomia
privada e pública que se dá através do procedimento legislativo. Deste modo, a
apresentação da co-originariedade da autonomia privada e pública só aparece quando se
decifra o modelo de autolegislação proveniente da teoria do discurso, que ensina os
destinatários serem ao mesmo tempo os autores de seus direitos. Portanto, o Direito é
criação e reflexo da produção discursiva da opinião e da vontade dos cidadãos. Aqui, a
soberania do povo assume figura jurídica, pois a substância dos direitos humanos introduz-
se “nas condições formais para a institucionalização jurídica desse tipo de formação
discursiva da opinião e da vontade, na qual a soberania do povo assume figura jurídica”
(MOREIRA, 2004, p. 139).
174
republicanos” (HABERMAS, 2002, p. 7), mais especificamente: para as sociedades
complexas, no qual os contrastes multiculturais se tornam questões urgentes; para os
estados nacionais, que se ligam em unidades supranacionais; “e para os cidadãos de uma
sociedade mundial que foram reunidos numa involuntária comunidade de risco, sem ter
sido consultados” (HABERMAS, 2002, p. 7).
Conforme Velasco (2003, p. 123-4), Habermas pretende estabelecer uma distinção
entre os elementos que configuram a cultura política e as diversas formas de vida que
indivíduos livremente podem abraçar. Trata-se aqui de evitar que a definição de identidade
coletiva acabe sendo utilizado como mecanismo de exclusão do diferente e se torne, como
acontece com certa facilidade, uma vontade consciente de homogeneidade que provoque a
marginalização interna de grupos sociais inteiros. Daí sairia a sua convicção de que, para
resolver esse problema, as atuações políticas próprias de uma democracia devem se dirigir
para a “inclusão do outro”, de certa maneira que, a partir da independência da procedência
cultural de cada um, as vias de acesso da comunidade política sempre permaneçam abertas.
Mas, para que isso ocorra, é indispensável que as instituições públicas sejam desprovidas,
em seu maior grau possíveis, de conotações morais densas e adotem características
procedimentais do direito moderno que garantam a neutralidade. Leva-se isso em
consideração, pois, em um Estado constitucional democrático, a maioria não pode
prescrever para as minorias a própria forma de vida cultural, na medida em que divirja da
cultura política comum do país, como sendo a cultura dominante. Sendo assim, somente
através das próprias instituições dessa forma de Estado, seria possível estabelecer, de uma
maneira confiante, relações de respeito mútuo entre sujeitos com diferentes bagagens
socioculturais.
Tal respeito mútuo (para todos e cada um) não é apenas para aqueles que são
semelhantes, mas também à pessoa do outro ou dos outros em suas diferenças (alteridade).
A responsabilidade pela solidariedade com o outro, como sendo uma pessoa igual a nós, se
refere a um “nós” flexível em uma comunidade que se conserva firmemente a tudo o que é
material e possui uma amplitude constante de suas fáceis fronteiras. A constituição dessa
comunidade moral é feita basicamente da ideia negativa do fim do preconceito e do
sofrimento, além da inclusão de todos os marginalizados em uma relação de respeito
recíproco. Porém, tal comunidade não pode ser considerada um coletivo que impõe a
obrigação de que todos os indivíduos afirmem a índole própria de cada um. Habermas
apresenta o conceito de inclusão não como um aprisionamento dentro de si mesmo e um
175
bloqueio frente ao alheio, mas sim, a “inclusão do outro” diz respeito ao significado de que
as fronteiras da comunidade estão abertas a todos os indivíduos, principalmente para os
indivíduos que são diferentes aos olhos dos outros e desejam continuar sendo diferentes
(HABERMAS, 2002, p. 7-8).
Ora, a Ética do discurso, conforme Habermas (2002, p. 48), ordena argumentações
de autoentendimento e argumentações de fundamentação normativa (ou de aplicação).
Porém, a mesma não reduz a moral a um tratamento confuso, já que pretende dar mérito à
justiça e à solidariedade. O acordo alcançado através do discurso é dependente do “sim” ou
do “não” de todos os participantes, além de ser preciso superar o egocentrismo, pois uma
práxis argumentativa pretende se regular pelo convencimento recíproco. Assim, a partir do
momento em que os discursos racionais obtêm novamente o seu fundamento, através do
ponto de vista moral, a Ética do Discurso irá forçar a separação intelectualista entre juízo
moral e ação.
176
argumentação que se faz necessário tanto à criação quanto à descoberta das normas de uma
convivência controlada pela retidão. “O sentido construtivista de uma formação de juízos
morais concebida segundo o modelo da autolegislação não se pode perder, mas ele
tampouco pode destruir o sentido epistêmico das fundamentações morais" (HABERMAS,
2002, p. 52).
177
O indivíduo somente adquire a sua individualidade quando se integra a uma
sociedade, resultando na aprovação de uma moral válida tanto para o indivíduo
irrepresentável quanto para quem faz parte da sociedade, ligando a justiça com a
solidariedade, o que faz com que sejam tratados com igualdade os desiguais, esses que são
conscientes de um pertencimento em comum na sociedade. Agora, o aspecto conforme o
qual todas as pessoas são iguais não encontra a sua validade a partir de outro aspecto,
como se os mesmos fossem absolutamente diferentes de todos os outros. “O respeito
reciprocamente equânime por cada um, exigido pelo universalismo sensível a
diversificações, é do tipo de uma inclusão não-niveladora e não-apreensória do outro em
sua alteridade ” (HABERMAS, 2002, p. 55).
Surge, assim, a necessidade de se justificar a passagem para uma moral pós-
convencional. As obrigações que têm por base a ação comunicativa e se ajustam pela
tradição não vão, através delas mesmas, para fora da comunidade. Mas, para Habermas
(2002, p. 55), a forma reflexiva da ação comunicativa é diferente, já que argumentações
apontam por si só para além de toda individualidade. Ora, isso é possível levando em
consideração que nos pressupostos programáticos de discursos racionais, o teor normativo
de suposições é ampliado a uma comunidade que insere todos, não excluindo ninguém que
possua a capacidade de dar contribuições relevantes.
Verificando a fragilidade dessa base, percebe-se que o conteúdo neutro de sua
subsistência comum representa ao mesmo tempo uma chance, tendo em vista o
constrangimento que surge pelo fato do pluralismo de cosmovisões. É necessário achar
uma fundamentação conteudística-tradicional de um comum acordo normativo básico, se o
mesmo tipo de comunicação que está de acordo com as reflexões práticas comuns
resultasse em certo aspecto na qual haveria a possibilidade de fundamentar normas morais
e na qual haveria a necessidade de ser convincente para todos os participantes. A carência
desse bem universal encontraria sua superação de forma permanente apenas através do
caráter próprio da práxis de reuniões em conselho. Habermas dá três passos para se
alcançar uma fundamentação do ponto de vista moral, através da teoria moral
(HABERMAS, 2002, p. 55-6).
Primeiro passo: partindo da ideia que o único expediente possível para o ponto de
vista do julgamento imparcial de questões morais seria a práxis de reuniões em conselho,
aparece a necessidade de se alterar a referência a conteúdos morais pela referência que se
auto envia à forma dessa práxis. Será através da compreensão dessa situação que o
178
princípio do discurso ‘D’ aparece. Assim, o acordo conquistado pela base das condições
discursivas é compreendido por um comum acordo aprovado por razões epistêmicas, ou
seja, não se compreende esse acordo como um acerto ocasional motivado através de uma
visão egocêntrica racional. Porém, ‘D’ abre um caminho no qual há todo o tipo de
argumentação que tem por objetivo o comum acordo discursivo. “Com ‘D’ não se supõe de
saída que uma fundamentação de normas morais seja sequer possível fora do contexto de
um acordo substancial” (HABERMAS, 2002, p. 56).
Segundo passo: quando se introduz ‘D’ de forma condicional, ele acaba por
apresentar a própria condição a ser seguida por normas válidas, desde que as mesmas
encontrem a possibilidade de serem fundamentadas. Deve-se, então, explicar agora o
conceito de norma moral. Os participantes de um discurso sabem intuitivamente como
tomar parte em argumentações, e apesar de terem familiaridade apenas com a
fundamentação de sentenças assertivas, e não tomarem conhecimento de se as
reivindicações de validação moral são possíveis de serem julgadas de modo igual, estão
dispostos a pensar o que seria fundamentar normas. Porém, para se utilizar ‘D’, é
necessária uma regra para a argumentação que aponte como pode se fundamentar as
normas morais (HABERMAS, 2002, p. 56).
Por fim, Habermas (2002, p. 57) diz que o terceiro passo seria a de que os próprios
participantes se dão por satisfeitos com tal regra de argumentação, desde que a mesma se
mostre útil e não os levem a resultados que não sejam obtidas através da intuição. Há aqui
a necessidade de mostrar que normas, possuidoras da capacidade de conquistar
concordância geral (Habermas cita o exemplo dos Direitos Humanos), estão marcadas por
uma práxis fundadora orientada assim mesma. Então, falta apenas um último passo
fundador, conforme o ponto de vista do teórico da moral.
A linguagem é encontrada em todas as culturas e sociedades, e não há nenhum
outro tipo de solução de problemas igual a esse. Sendo assim, essa difusão universal da
linguagem e a falta de uma outra saída para ela, não seria fácil achar uma contestação à
neutralidade de ‘D’. Porém, a partir da abdução de ‘U’, pode haver, mesmo que de forma
camuflada, uma compreensão prévia etnocêntrica não distribuída por outras culturas,
juntamente com uma concepção do que é bom. Quando a suposição de que um
comprometimento eurocêntrico, que entende uma moral operacionalizada por ‘U’, poderia
perder força caso existisse a possibilidade de tornar permanente a explicação para o ponto
de vista moral, dito de outro modo, caso esse ponto de vista moral tivesse o poder de
179
explicar sobre o que deve ser feito quando o participante se envolve em uma práxis
argumentativa (HABERMAS, 2002, p. 57-8).
Habermas (2002, p. 58) se dá por satisfeito com o seguinte vestígio
fenomenológico: a argumentação acontece através da intenção de um convencimento
mútuo, no que diz respeito à legitimação das reivindicações de validação que os
participantes mostram e defendem a favor deles. Através da prática da argumentação,
começa a se instalar, em cooperação recíproca, uma concorrência por argumentos
melhores, partindo da união dos participantes desde o inicio que se orientam por um
acordo recíproco. Ora, a concorrência, que pode levar a resultados racionalmente aceitáveis
e convincentes, se fundamenta sobre a força de convencimento dos próprios argumentos,
além do que, um argumento bom ou ruim pode ser colocado em discussão. Assim, uma
afirmação, aceita racionalmente, encontra a sua base sobre razões ligadas a certas
características do mesmo processo de argumentação (pressuposições pragmáticas) presente
na Ética do Discurso.
180
‘U’ traz uma substância normativa excedente em sociedades complexas, tendo em vista
que se mostram a partir da forma de um resíduo de si próprio poupado de argumentação, e
através da forma da ação que segue o caminho do acordo recíproco.
Sobra, então, a questão da aplicação da norma, já que o ponto de vista moral é
validado em sua plenitude apenas através do princípio da adequação e levando em
consideração os juízos morais singulares. Concluído que discursos de fundamentação e
aplicação são transmitidos com sucesso, é mostrado que questões práticas são divergentes,
partindo do ponto de vista moral, já que questões morais referentes ao convívio correto são
divididos entre questões pragmáticas da escolha racional e questões éticas do bem viver.
Fica evidente também, retrospectivamente falando, que ‘U’ funciona a partir de um
princípio discursivo mais extenso, de inicio com o objetivo de um questionamento de
ordem moral. ‘D’ pode ser trabalhado, igualmente, como favorecedor de outras questões,
como, por exemplo, para reuniões em conselho de um legislador político como também
para discursos jurídicos (HABERMAS, 2002, p. 60).
REFERÊNCIAS
VELASCO ARROYO, Juan Carlos. Para Leer a Habermas. Madrid: Alianza Editorial,
2003.
181
WERLE, Denilson Luis. Pluralismo e tolerância: sobre o uso público da razão em
Habermas. p. 263-288. In: PINZANI, Alessandro; DE LIMA, Clóvis M.; DUTRA,
Delamar José Volpato (Coord.). O pensamento vivo de Habermas: uma visão
interdisciplinar. Florianópolis: NEFIPO, 2009.
182
O HOMEM COMO FUNCIONÁRIO E FUNDO-DE-RESERVA:
TÉCNICA MODERNA EM HEIDEGGER E FLUSSER
RESUMO
INTRODUÇÃO
183
Passada a primeira década do século XXI, a colocação de um questionamento
apropriado sobre a técnica moderna47 e sobre o lugar do homem frente a ela permanece
relevante. Fenômenos como a manipulação genética ou o aparelhamento do corpo (cf.
RÜDIGER, 2006; SLOTERDIJK, 2011) reforçam sua emergência, hoje, assim como
fizeram o Holocausto e o perigo atômico nos idos do século passado (cf. SAFRANSKI,
2005b, p. 460). Diante desse quadro, faz-se necessário reforçar o posicionamento do
devido problema: de que maneira o homem contemporâneo se relaciona com seu mundo
frente à vigência da tecnologia? Disso, faz-se necessário também questionar se haveria
escapatória viável frente ao domínio da técnica moderna para o ser humano ou se estaria
ele fadado a manter-se sempre no horizonte dela?
Martin Heidegger, em sua conferência intitulada A questão da técnica 48 ([1953]
2000a), apresentou uma concepção peculiar acerca da técnica moderna que se desviou das
teorias apocalípticas ou apologistas, comumente aceitas por parte de seus contemporâneos,
com relação ao tema. Por essa razão, sua conferência será abordada no segundo capítulo
deste trabalho, iluminando causas da permanência da técnica até os dias de hoje e de sua
transformação. O filósofo tcheco Vilém Flusser, por outro lado, com sua Filosofia da
caixa-preta: por uma filosofia da fotografia ([1983a] 2002a) e sua teoria fenomenológica
dos media, vem ao encontro no terceiro capítulo para complementar os diagnósticos do
filósofo alemão sobre a contemporaneidade tecnológica, especialmente considerando-se a
influência de Heidegger nas primeiras obras flusserianas (cf. GULDIN, 2008b). Flusser, por
sua vez, questiona explicitamente a liberdade do homem nesse contexto tecnológico.
Pretendemos, neste trabalho, fazer a comparação entre ambas as concepções de
técnica com a pretensão de que as hipóteses de ambos os filósofos ganhem consistência
dialógica frente a situação do homem em seu mundo. Partir-se-á, pois, de sucinto
esclarecimento das duas concepções para que se aponte, no quarto capítulo, possível
intercâmbio entre elas, em resposta aos problemas levantados.
47
O termo “técnica” será usado doravante em sentido amplo, e possuirá como sinônimo o termo “tecnologia”
apenas quando em referência à técnica moderna ou contemporânea, i.e., à técnica enquanto ciência aplicada
(cf. ELDRED, 2007), abrigando-se assim a ambiguidade apontada por Eldred do termo alemão “Technik”,
usado por Heidegger (2002b).
48
As traduções em português (2002b) e em inglês (1977) do ensaio “Die Frage nach der Technik”
(HEIDEGGER, [1953] 2000a, pp. 7-36) serão constantemente cotejadas aqui à edição alemã constada na
bibliografia; para fins de citação, será utilizada a paginação dessa última apenas. Os termos, contudo, foram
postos em sua maioria aqui baseados nas traduções de Emmanuel Carneiro Leão (2002b), Marco Antônio
Casanova (2012a), Francisco Rüdiger (2006) e William Lovitt (1977).
184
HEIDEGGER E A PERGUNTA PELA ESSÊNCIA DA TÉCNICA
49
Devem ser abertos parênteses para entender aqui a compreensão do termo “história” por Heidegger. A
“história” (Geschichte, cf. INWOOD, 1999, p. 93) a que ele se refere, posteriormente remetida à história do
ser (Seinsgeschichte, cf. ibid., p. 95) nos escritos posteriores à década de 30, antecede todo tipo de história
como estudo sistemático de eventos passados (Historie, cf. ibid., p. 93), pois essa já é regida, de início, pela
determinação do ser daquela.
50
“Em Ser e tempo há evidentemente um primado da ekstase futuro. [...] No período posterior à viragem, por
outro lado, como o ser-aí [Dasein] humano depende das interpelações da história, o primado passa a recair
185
intermédio de um ente privilegiado ou pela historicidade do ser ela mesma, permanece no
horizonte heideggeriano durante toda a sua obra. Concentramo-nos, neste trabalho,
sobretudo na obra de Heidegger posterior aos anos 30, onde se encontram expressas as
preocupações principais sobre o problema da técnica.
A época da técnica moderna, isto é, a nossa era, pode ser entendida como momento
derradeiro da história da metafísica, momento em que o esquecimento do ser se radicaliza;
momento de abandono do ser. Essa expressão define a essência do niilismo contemporâneo
conforme entendida por Heidegger, designando “o surgimento de uma determinada
abertura do ente na totalidade (um mundo), na qual o ser abandona tão radicalmente o ente
que esse parece vigorar como a única instância real.” (CASANOVA, 2012b, p. 191) Essa
supressão de tudo ao plano ôntico das “configurações fugazes de duração relativa no devir”
(id., op. cit., p. 210) coaduna-se à interpretação heideggeriana da vontade de poder (Wille
zur Macht) nietzscheana, tida como consumação da metafísica da subjetividade moderna
(RÜDIGER, op. cit., p. 65): o homem, entendido como subjectum, centro de síntese
representativa de todo o real, compreende o mundo como totalidade de objetos calculáveis,
em conformação com suas vivências e à disposição de seu domínio (HEIDEGGER, 2002c).
A compreensão objetificada dos entes em geral abre precedentes para a vigência do
que Heidegger chamou de armação (Gestell; id., op. cit., p. 20), maneira em que ele
compreende e conceitua a essência historial da técnica moderna (RÜDIGER, op. cit., p. 45).
Opõe-se aqui a técnica moderna 51 à técnica clássica 52 , a τέχνη grega, que pauta-se no
desvelamento 53 do ente como ποίησις, um pro-duzir ou um trazer-a-tona (Her-von-
bringen) do velado para o desvelado que, no entanto, deixa-viger (An-wesen) o real, isto é,
deixa-o se presentar sem tentar tematizá-lo e conformá-lo, como faz o homem sob vigência
do ser da técnica moderna; esse, no caso, ao invés de deixar o ente ser, provoca-o
(Herausfordern) a desvelar-se como mero fundo-de-reserva (Bestand), ou seja, mero
recurso inesgotável, sempre à disposição. Armação é, portanto, o modo de ser dos entes na
contemporaneidade, apelo originário do ser que reúne e dispõe (bestellte), no sentido de
sobre o que foi e continua sendo, sobre aquilo no passado que realmente foi, para o poder inicial das
ontologias históricas.” (CASANOVA, op. cit., p. 169) O foco do segundo Heidegger é evidentemente
histórico e voltado à historicidade mesma do Ser e a apropriação (Ereignis) sobre o Dasein, não mais à
temporalidade do Dasein como condição de desvelamento do ser (cf. ibid.).
51
No inglês, technology (cf. HEIDEGGER, 1977; ELDRED, op. cit.).
52
O termo “clássico” aqui será utilizado apenas de modo didático, em oposição à técnica moderna;
Heidegger, não obstante, não usa esse termo em seus textos e conferências.
53
O termo “desvelamento” (Entbergung; HEIDEGGER, op. cit., p. 13) refere-se tanto ao modo de aparição
do ente na totalidade quanto ao acontecimento da verdade do ser, isso é, de sua determinação sobre o ente,
entendida a partir da αλήθεια grega (ibid.).
186
“ordenar”54, o homem a desvelar o real como fundo-de-reserva (HEIDEGGER, op. cit., p.
23).
Heidegger diz que tal entrega de si ao desvelamento provocador é o destino de ser
(Geschick) a que está submetido o homem contemporâneo (ibid., p. 25). Isso significa dizer
não necessariamente que o Dasein se depara com uma espécie de fatalismo inexorável
(ibid.), pois a escuta (Hörender) ao destino, no sentido de “dar-se conta”, segundo o autor,
implica em liberdade (Freiheit) 55 . “Abrindo-nos expressamente à essência da técnica,
encontramo-nos, de súbito, tomados por um apelo de libertação” (id., op. cit., p. 26), em
que se abre caminho para conceber no ente uma perspectiva de desvelamento mais
originária, como no caso da poética, ποίησις, espaço “fundamentalmente estranho” (ibid.,
p. 36) à técnica moderna.
No entanto, do destino provocador, diz Heidegger, também emana um perigo: a
perda da essência do homem enquanto aquele que pode desvelar o ente como um deixar-
viger (ibid., p. 29). “Onde [a armação] domina, afasta-se qualquer outra possibilidade de
desvelamento.” (ibid., p. 28) O próprio homem, enquanto ente humano que só pode
desvelar o real de forma provocadora, também termina por se conceber enquanto fundo-de-
reserva (CASANOVA, op. cit., p. 208). O ente humano se vê malfadado à
“unidimensionalidade”, ao “agir sempre igual” em função de uma subjetividade autônoma
que o transcende. “[...] o homem não pode senão se colocar na posição aberta pela
composição, ou seja, a posição daquele que requisita.” (ibid.) Com isso, a pretensão do
homem moderno, sujeito, de dominar a natureza se inverte para a subjugação do humano,
objetificado, à lógica calculadora da técnica moderna (RÜDIGER, op. cit., p. 45).
54
Sugestão de tradução utilizada por Francisco Rüdiger (op. cit.).
55
No alemão, muitas vezes é usado “das Freie”—“o livre”, no sentido de “o aberto” ou “o desvelado” (cf.
LOVITT in HEIDEGGER, op. cit., p. 25, nota 23); liberdade, em Heidegger, relaciona-se menos ao âmbito
moral e mais à abertura do ente na totalidade. ou seja, à verdade do ser.
187
esquecer da morte inevitável e a falta de sentido de nossa existência absurda.” (GULDIN,
op. cit., p. 79) A “existência absurda” a qual o filósofo tcheco se refere pode ser
compreendida apenas através de uma noção sugerida por ele do universo como um sistema
termicamente fechado, regido pela noção de entropia, i.e., de que tudo tende a desinformar-
se. Essa é uma tendência rumo ao provável, rumo ao fim derradeiro da “morte térmica”
(FLUSSER, op. cit., p. 32). O homem é o único ente que pode negar a morte e, portanto, a
entropia mesma, tendo em vista que ele é o único ente que tem capacidade de
comunicação, no sentido estrito de criação e acúmulo de informação (GULDIN, op. cit., p.
83). Informação é um processo “estatisticamente improvável” (FLUSSER apud GULDIN,
op. cit., p. 84), pois vai contra a tendência desinformativa do todo—por isso, a
comunicação é afirmação da liberdade humana e é aquilo que dá a ela sentido (ibid., p. 86).
Os pressupostos teóricos de Flusser acerca da comunicação humana vão ao
encontro, finalmente, de sua concepção de media em um sentido particular, diverso do
pretendido por teorias da comunicação como a de Marshall McLuhan (ibid., p. 97).
Medium, em Flusser equivale, sobretudo em seus escritos tardios, ao conceito de
linguagem em seu sentido lato—de código. “Códigos são definidos como sistema de
símbolos” (ibid., p. 98) que operam na comunicação humana sempre como substituintes de
fenômenos ou de outros códigos. É o código que intermedeia a relação entre o homem e
seu mundo. O homem enquanto homem sempre compreende o mundo, segundo Flusser,
por códigos. Eles, portanto, tornam-se seu horizonte e modificam seu “estar-no-mundo”
(FLUSSER, op. cit., p. 25). O filósofo tcheco faz um histórico dos códigos, também
chamado de “escalada de abstração” (ibid., p. 29), a fim de se chegar à derradeira imagem
técnica, produto do código primordial da contemporaneidade. As imagens tradicionais—
bidimensionais, míticas e circulares—e os textos—unidimensionais, conceituais, causais e
lineares—por outro lado, são códigos referentes aos períodos da pré-história e da história,
respectivamente (id., op. cit., p. 10); o primeiro representa e substitui o mundo enquanto
circunstância para ajudar o ente humano a se guiar nele; o segundo, as imagens, como
forma de escapar à “alucinação” que elas causam, isto é, à “idolatria” (ibid., p. 9). Toda a
consciência histórica que surge doravante, desde as filosofias pré-socráticas até as teorias
científicas da atualidade, provém dessa tentativa de explicar o mundo de forma causal, por
“linhas” (ibid., p. 10). No entanto, com a chegada da modernidade e a abstração cada vez
mais intensa dos textos, surge um novo nível alucinatório: a “textolatria” (ibid., p. 11),
donde há emergência de um novo tipo de código, provindo da desconstrução de linhas,
188
como, por exemplo, teorias, em pontos nulodimensionais, como, por exemplo, proposições
calculáveis da lógica, formando assim uma consciência pós-histórica (id., op. cit., p. 18,
27).
A nulodimensionalidade do novo código implica em que o mundo, agora calculável
e computável, engendra-se no absurdo abismo do “nada” entrópico, pois é um mundo “no
qual todas as coisas surgem por acidente.” (ibid., p. 20) Para o homem, que só vê sentido
na comunicação, isto é, na neguentropia (GULDIN, op. cit., p. 83), torna-se necessário
concretizar o nada do código nulodimensional, cume da abstração (FLUSSER, op. cit., p.
28).
Essa concretização é feita pelas tecno-imagens, sucessoras do texto em sua tentativa
de superar a “textolatria”. A definição de tecno-imagem é de “imagem produzida por
aparelhos” (id., op. cit., p. 12); aparelhos são, em síntese, “produtos da técnica” (ibid.), que
por sua vez—e eis a definição flusseriana de técnica—é “texto científico aplicado” (ibid.).
Aparelho, em Flusser, tem sentido amplo e conceitual: pode significar tanto o aparato
técnico, como uma câmera fotográfica, quanto um gigantesco complexo administrativo
(ibid., p. 67). O aparelho é condição de possibilidade de concretização dos códigos
nulodimensionais, i.e., das diversas teorias científicas complexas, em imagens (id., op. cit.,
pp. 28-29). Todo aparelho é “caixa preta”56, pois esconde seu complexo funcionamento
interno, produto de tais teorias complexas; por isso, ele dá a impressão àquele que o utiliza
de que se trata de mero instrumento do qual se tem total liberdade quando, no entanto, o
aparelho carrega um complexo programa interno (FLUSSER, op. cit., pp. 19-23). Como o
homem que o utiliza compreende o mundo por códigos, sua orientação fica a cargo das
virtualidades inseridas no programa do aparelho (ibid., p. 23); o fato, porém, de que o
aparelho é caixa preta faz com que o seu usuário acredite dominar com plena liberdade seu
funcionamento, sem se dar conta de suas virtualidades (ibid., p. 24).
Flusser frequentemente faz analogia com a fotografia para explicar esse e outros
pontos, pensando-a como forma de imagem técnica. Diz ele: “o universo fotográfico é um
dos meios do aparelho para transformar homens em funcionários, em pedras de seu jogo
absurdo” (id., op. cit., p. 65). O fotógrafo acredita ser livre em meio às virtualidades do
programa assim como o funcionário. O fotógrafo, a propósito, já é funcionário e funciona
apenas em função do aparelho (KRAUSE, 2002b, p. 20). Não apenas o homem, porém,
56
“O termo “caixa-preta” veio da eletrônica, que o usava para designar parte complexa de um circuito
eletrônico omitida intencionalmente no desenho de um circuito maior e substituída por uma caixa (box)
vazia, sobre a qual se escreve apenas o nome do circuito omitido.” (KRAUSE apud COSTA, 2009, p. 52)
189
mas os próprios aparelhos tornam-se funcionários de meta-aparelhos. “O fotógrafo exerce
poder sobre quem vê suas fotografias, [...] o aparelho fotográfico exerce poder sobre o
fotógrafo. [...] E assim ad infinitum.” (FLUSSER, op. cit., p. 27) Acontece que o homem,
agora funcionário, acredita controlar o aparelho e utilizá-lo a seu favor para emancipar-se
do trabalho; no entanto, ele sucumbe ao programa pré-estabelecido do aparelho (KRAUSE,
op. cit., p. 21). “A contradição [...] deveria ser flagrante: a fé do homem no progresso
depende da descrença do homem em si mesmo.” (ibid., p. 20)
Krause, parafraseando o comentador Arlindo Machado, argumenta, enfim, que a
programação, isto é, o acúmulo gerenciado de um número finito de informações, leva à
repetição e à redundância, sendo que ambas implicam em “estereotipia, [...]
homogeneidade e previsibilidade dos resultados”, isto é, “padronização e [...]
impessoalidade” (ibid., p. 22). Sendo o ente humano, na concepção flusseriana, um ente
comunicacional e, portanto, neguentrópico, a condição de previsibilidade do programa
emparelha-se à sua capacidade de causar acidentes programáveis (FLUSSER, op. cit., p.
33), isto é, de transformar informação improvável em desinformação provável. Ao invés de
informarem e comunicarem, os aparelhos acabam por gerar informação redundante e
programável: entrópica. Para Flusser, uma saída possível seria “utilizar os aparelhos contra
seus programas”, isto é, “lutar contra a sua automaticidade” (ibid., p. 34), “jogar contra o
aparelho” (id., op. cit., p. 75), o que implica em um ato de liberdade (ibid.).
Vale salientar, de início, que tanto Heidegger quanto Flusser se concentram, nos
textos aqui expostos, no tema da técnica moderna entendida como tecnologia, no sentido
de conhecimento científico aplicado (ELDRED, op. cit.), mesmo se ora afastam-se da
ciência para tratar do problema de forma mais fundamental. Contudo, enquanto Heidegger
trata da técnica moderna a partir de seus pressupostos ontológicos sobre o sentido do ser e
sua história, concentrando-se em definir a essência da técnica como um desvelar
provocador do ente na totalidade (HEIDEGGER, op. cit.), Flusser, partindo de uma
abordagem de cunho mais antropológico, se concentra nos media, entendidos como
códigos que intermedeiam a relação entre homem e mundo; mais especificamente, no
190
medium nulodimensional. Ele caracteriza, pois, a tecno-imagem, tal como outros produtos
de aparelhos programados, como a concretização de tal código articulado que culmina, por
fim, na programação do usuário do aparelho—ou melhor, de seu funcionário (FLUSSER,
op. cit.).
Quanto às consequências da técnica moderna para o ente humano, erige-se logo
uma possível concordância. Heidegger, primeiramente, considera, conforme já exposto,
que o homem, imerso no desvelar provocador da armação, revela-se a si mesmo como
mero fundo-de-reserva, tal quais os diversos entes que o cerca; ele se objetifica como ente
calculável e mensurável, sempre como um meio disposto a outro fim que não ele mesmo.
Flusser, tomando uma abordagem argumentativa semelhante, diz que o homem, agora em
função do aparato técnico, torna-se, para usar o termo empregado por Krause, mero
“funcionário fascinado” (KRAUSE, op. cit.), variável do programa do aparelho. Além do
fato de ambos os conceitos, em suas respectivas medidas, derivarem da pretensão moderna
de objetificação do mundo (HEIDEGGER, op. cit.; FLUSSER, op. cit.), parecem também
carregar parentesco suficiente para possibilitar entre si intercâmbio. O funcionário
flusseriano (e.g. o fotógrafo) é um ente humano disposto como fundo-de-reserva do
aparelho (e.g. fotográfico), entendido como outro ente posto-a-ordem de um meta-aparelho
(e.g. indústria fotográfica), e assim por diante ad infinitum (ibid., p. 27). O exemplo
heideggeriano do silvicultor parece ecoar essa ideia de “cadeia funcionarista” flusseriana,
pois, segundo Heidegger (op. cit., pp. 18-19):
57
Tradução, como explicitada na nota 4, adaptada das versões brasileira e inglesa.
191
possíveis, seja do ponto de vista ontológico-historial de Heidegger, como um fundo-de-
reserva, seja da perspectiva antropológica de Flusser, como um funcionário programado.
Vale salientar que ambos, em dado momento, parecem acenar para a possibilidade,
mesmo que remota, de saída à vigência totalitária da técnica ou, em outras palavras, de
salvaguarda à liberdade humana. Cabe esclarecer, no entanto, que, embora ambos usem o
termo “liberdade” em dado momento, seu sentido carrega nuances diferentes para cada um
deles. A liberdade a que se refere Heidegger58 não carrega sentido moral e se restringe a
possibilidades mais originárias de abertura, vedadas pelo desvelar provocador, mas que se
fazem presentes no dar-se conta do destino pelo homem. Para Flusser, por outro lado,
liberdade, atrelada à comunicação humana e à produção de informação, aparece como a
capacidade humana fazer frente à ordem universal entrópica (cf. FLUSSER, op. cit.), que
arrasta tudo para a morte inevitável. No domínio da nulodimensionalidade técnica,
liberdade é tentativa de superar os limites do programa do aparelho porque o próprio
aparelho não faz mais do que ordenar informação improvável, tornando-a provável e,
novamente, entrópica. Jogar contra o aparelho é, pois, ato de liberdade porque implica em
negar a entropia e, assim, reconquistar a humanidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, concluímos pela possibilidade de troca conceitual entre Martin Heidegger
e Vilém Flusser quanto à posição do homem frente ao mundo no domínio da técnica
moderna. Ambas as concepções acabam por oferecer imagem semelhante do homem
contemporâneo que culminam, de uma maneira ou de outra, na demanda por uma “crítica
do funcionalismo”, termo esse utilizado por Flusser (op. cit., p. 73), como busca da
liberdade humana em um mundo já de antemão tecnicista. Porém, tais considerações só
podem ser devidamente explanadas fora do escopo limitado deste trabalho, que se propôs
de início apenas a apontar possíveis diálogos entre os dois fenomenólogos a fim de tratar
da relação entre homem e mundo no domínio da técnica.
Talvez seja necessário, em trabalhos posteriores, explorar possíveis contendas entre
ambos os autores quanto a seus pressupostos teóricos, como o caráter ontológico de
58
Ao menos dentro dos limites de sua conferência A questão da técnica (ibid.); para considerações sobre o
conceito de liberdade em um sentido mais global pela obra de Heidegger, fazem-se necessárias pesquisas
outras, alhures a este trabalho.
192
Heidegger em contraste com a filosofia “ôntica”, de caráter antropológico, de Flusser.
Sugiro que também seja posta em análise a afirmação de Heidegger em sua Carta sobre o
humanismo (HEIDEGGER, [1946] 2008d) de que “a linguagem é a morada do ser” (ibid.,
p. 326), considerando-se que é pela linguagem que o homem guarda o ser e, assim, tem no
seu mundo sentido. Se considerarmos “linguagem” no sentido lato correspondente ao
medium flusseriano, não estaria a filosofia de Flusser inserida no contexto da verdade do
ser e de sua história também ao traçar uma escalada de abstração?
Admito aqui, novamente, que questões como essas excedem a pretensão deste
texto, tomadas neste por meio de abordagem assumidamente lateral, com o propósito de
serem apontadas para possíveis pesquisas e considerações posteriores.
REFERÊNCIAS
BATLICKOVA, Eva. “Em busca dos fundamentos do pensamento de Vilém Flusser”. In:
Revista Ghrebh-, São Paulo, v. 1, n. 11, mar. 2008a, pp. 172-183.
DUBOIS, Christian. “Ser e tempo, 1”. In: ______, Heidegger: introdução a uma leitura.
Trad. Bernardo B. C. de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, pp. 13-43.
ELDRED, Michael. “Technology, technique, interplay: questioning Die Frage nach der
Technik”. In: Proceedings of the 41st North American Heidegger Conference. Chicago:
DePaul University, 2007. Disponível em: <www.arte-fact.org/untpltcl/tchniply.html>.
Acesso em: 24 maio 2013.
193
______. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo:
Annablume, 2008c.
______. “Carta sobre o humanismo”. In: ______. Marcas do caminho. Trad. de Enio P.
Giachini e Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 2008d, pp. 326-376.
______. “Die Frage nach der Technik”. In: ______. Gesamtausgabe: Vorträge und
Aufsätze. Vol. 7. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2000a, pp. 7-36. (Col. Gesamtausgabe)
______. Ser e tempo. Trad., org., notas etc. de Fausto Castilho. Campinas: Unicamp;
Petrópolis: Vozes, 2012c. (Col. Multilíngues de Filosofia Unicamp)
______. “The age of the world picture”. In: ______. Off the beaten track. Trad. de Julian
Young e Kenneth Haynes. Cambridge: Cambridge University Press, 2002c, pp. 57-85.
______. “The question concerning technology”. In: ______. The question concerning
technology and other essays. Trad. e introdução de William Lovitt. Londres: Garland
Publishing Inc., 1977, pp. 3-35.
SLOTERDIJK, Peter. “La domesticación del ser: por uma clarificación del claro”. In:
______. Sin salvación: tras las huellas de Heidegger. Trad. de Joaquín C. Mielke. Madrid:
Akal, 2011, pp. 93-152.
194
ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS DA FILOSOFIA DE JOHN DEWEY
RESUMO
Este artigo objetiva apresentar aspectos da teoria do conhecimento de John Dewey (1859-
1953), suas críticas aos dualismos presentes na Filosofia tradicional que se refletem nas
demais áreas do viver humano. Dewey desenvolve uma teoria empírica naturalista com
bases na Biologia e na Psicologia Social. Nela, o indivíduo é dependente, com
possibilidades de emancipação devido a sua capacidade elástica de desenvolvimento da
inteligência. Seu instrumento de emancipação é o pensamento reflexivo.
Palabras-chave: Dewey. Conhecimento; Pensamento reflexivo; Adaptação; Crescimento.
INTRODUÇÃO
195
surgimento de uma democratização, pois qualquer indivíduo pode aspirar ao céu após sua
morte. A natureza passa a ser valorizada como obra divina.
A crítica deweyana incide com isso na ideia dualista que confere denotação de
existência à matéria (ao físico) e de essência à mente. Esse suposto dualismo no indivíduo,
entre espírito e corpo ou corpo e alma e a dicotomia entre o mesmo e a natureza são
responsáveis, de acordo com a teoria deweyana, pelo desconhecimento e, portanto pela
falta de controle sobre o viver da maioria ou massa humana, que não encontra socialmente
as condições necessárias para apreender o hábito de pensar. Dessa forma, a mesma é
manipulada para satisfazer interesses utilitaristas e gananciosos de poucos.
DESENVOLVIMENTO
196
tem suas bases no dinamismo provocado por um contínuo movimento, que por sua vez
implica em constantes mudanças. Tais transformações, relações ou acontecimentos
produzem e reproduzem constantemente seus corpos. Podemos representar o cosmos,
significativamente, com a palavra: ATIVIDADE.
A antropologia deweyana objetiva demonstrar a incoerência das filosofias dualistas
que se escoram na metafísica. O filósofo propõe, inclusive, uma reconstrução na filosofia,
pois a mesma, não acompanhou o desenvolvimento dos métodos de investigação oriundos
da revolução científica do século XVII. Dewey apóia-se na Biologia, mais precisamente na
teoria evolucionista de Charles Darwin, e elabora uma matriz de comportamento vital a
partir de três plateaus de desenvolvimento, a saber: o físico, psicofísico e mental, para
conceituar a relação entre corpo e mente. É importante destacar que esta fundamentação
teórica deweyana, está relacionada em todos os seus níveis de evolução, com as questões
do desenvolvimento humano, tendo em vista o fato de que, o desenvolvimento da mente
estar intrinsecamente relacionado ao desenvolvimento do organismo. O primeiro estágio é
o físico e dele pertencem os seres inorgânicos que não reagem ao sofrerem a ação de forças
maiores que sua resistência. Portanto, sua transformação ocorre apenas como resultado da
influência do ambiente. Dewey conceitua tal fenômeno como saturação e exemplifica essa
situação com o ferro. “O ferro não se esforça para continuar ferro: se entra em contato com
a água, breve se transforma em bióxido de ferro” (TEIXEIRA, 1959, p. 13).
Quanto aos seres vivos, que compõem os universos, vegetal e animal, pertencem ao
estágio psicofísico e diferenciam-se do estágio anterior pela luta incessante por manter seu
padrão de existência, a saber, sua sobrevivência. “[...] denota que a atividade física
adquiriu propriedades adicionais, a aptidão para obter dos meios circundantes uma classe
peculiar de satisfação interativa das necessidades; não denota uma abolição do físico-
químico, nem uma estranha mescla de algo físico e algo psíquico [...]” (DEWEY, 1958, p.
255, apud, MURARO, 2012, p.4). Utilizam-se, para isso, do esforço que se caracteriza por
um dispêndio maior de energias. Exemplifica Dewey, a diferença entre o estágio físico e
psicofísico:
Ao receber uma pancada, a pedra opõe resistência. Se a resistência for maior do
que a força da pancada, ela exteriormente não apresentará mudança; no caso
contrário se partirá em fragmentos menores que ela. A pedra nunca procura
reagir de modo a defender-se contra a pancada e muito menos a tornar a dita
pancada um fator que contribua para a própria continuidade de sua ação. Quanto
à coisa viva, pode ser facilmente esmagada por uma força superior, mas jamais
deixa de tentar converter as energias, que sobre ela atuam, em elementos
favoráveis a sua existência ulterior. Se não o consegue, não se fragmenta em
197
pedaços menores (pelo menos nas mais elevadas formas da vida), mas perde sua
identidade como coisa viva (DEWEY, 1979b, p. 1).
Utiliza-se da luz, do ar, da umidade e das matérias do solo. Dizer que as utiliza,
importa em reconhecer que as transforma em meios para sua conservação.
Enquanto se acha a crescer, a energia que despende para tirar vantagens do
ambiente é mais que compensada pelo que obtém: ela cresce. (DEWEY, 1979b,
p. 2).
198
Figura 1 – Esquema simplificado do ciclo de vida
da samambaia. Fonte: Lopes (2004, p. 242).
199
organismo, com a capacidade de discernir entre o que lhe é útil e prejudicial no ambiente,
tem com isso uma espécie de premunição que o dirige para um foco discriminado. O
comportamento é sequencial e dividido em fases, a saber, inicial, intermediária e final. Esta
distância entre a primeira e a última fase gera maior tensão. Importa lembrar que cada
consumação ou encerramento de um circuito, funciona como fase preparatória para outro.
Este tipo de movimento estratégico permite a transformação da sensibilidade que, então é
atualizada em sentido.
200
A inteligência não é uma coisa particular que alguém possua; mas uma pessoa é
mais ou menos inteligente, na proporção em que as atividades de que é
participante tenham mais ou menos as qualidades mencionadas. Nem são as
atividades em que uma pessoa se empenha, inteligentemente ou não, exclusiva
propriedade sua; são alguma coisa em que a referida pessoa se empenha e toma
parte. Colaboram com ela ou a embaraçam outras coisas, os movimentos
independentes de outras coisas e pessoas. O indivíduo pode iniciar uma série de
atos, mas o resultado depende da interação de suas reações e das energias dos
outros agentes. Conceba-se o espírito como alguma coisa que não seja um fator
cooperando com outros para a produção de conseqüências, e espírito ou mente
torna-se coisa sem sentido (DEWEY, 1979b, p. 144-145).
201
métodos necessários ao aprendizado nas escolas. No momento, é importante
especificarmos o que o filósofo caracteriza como situação e como problema.
Dewey critica a psicologia e a epistemologia quando as mesmas identificam
pensamento ou ideia e objeto de forma imediata. Uma situação refere-se a um contexto ou
circunstância onde vários objetos ou eventos são parte. Uma situação confusa, a que se
aplica o processo de pensar, não é obscura totalmente, pois se assim o fosse,
necessariamente causaria pânico e desespero. No curso de uma atividade ou determinada
situação, podemos nos deparar com algum impedimento ou resistência. A nossa tendência
é querer prosseguir, contornado o problema ou seguindo a primeira sugestão que nos
ocorre. No entanto, caso nos sobrevenha mais de uma sugestão, paralisamos a ação, todo
nosso organismo se coloca em estado de tensão, diante da dúvida. Esta é a fase pré-
reflexiva que ocorre em uma situação indeterminada. São cinco fases ou aspectos do
pensamento reflexivo expostos por Dewey:
Dentro de tais limites, situam-se os vários estados do ato de pensar que são: (1)
as sugestões, nas quais o espírito salta para uma possível solução; (2) uma
intelectualização da dificuldade ou perplexidade que foi sentida (diretamente
experimentada) e que passa, então, a constituir um problema a resolver, uma
questão cuja resposta deve ser procurada; (3) o uso de uma sugestão em seguida
a outra, como idéia-guia ou hipótese, a iniciar e guiar a observação e outra
operações durante a coleta de fatos; (4) a elaboração mental da idéia ou
suposição, como idéia ou suposição (raciocínio, no sentido de parte da inferência
e não da inferência inteira); e (5) a verificação da hipótese, mediante ação
exterior ou imaginativa (DEWEY, 1979a, p.111-112)
202
As primeiras sugestões brotam espontaneamente sem que, para isso, necessite
algum elemento intelectual. A intelectualização se efetiva dependendo do que se faz com
este material fornecido pelas sugestões. O raciocínio é uma das fases mais elaboradas, pois
opera em zig-zag, ou seja, relaciona vários elementos presentes na memória59, originários
das mais variadas fontes. Elementos retidos de experiências anteriores, conhecimentos
técnicos, intuições, mentalidade da época e lugar, entre outros. Buscam em condições
similares anteriores, prever conseqüências da ação que visa solucionar a dificuldade
presente. Tais operações avaliam as várias sugestões, buscando compor com as mesmas
uma ideia, uma hipótese-guia, que atenda as necessidades, que se encaixe, no que falta,
para que, a situação em questão possa atingir sua consumação. Toda a ação é mental, até
que atendidos os critérios necessários, possa, finalmente ser posta a prova
experimentalmente, quando necessário.
Dessa forma acorre a inferência, o alargamento da experiência. Mesmo em
situações em que a hipótese efetivamente não solucione o problema, há acréscimo de
conhecimento pelo próprio exercício do pensamento. Dessa forma, podemos perceber que
o conhecimento para Dewey, se dá de forma espiralada, ou seja, diante de uma situação
obscura, nova, o conhecimento familiar é operacionalizado pela imaginação com os dados
da nova situação produzindo com isso, um conhecimento transformado pela ação da
inteligência. Neste processo, o pensamento é subjetivo e o conhecimento é objetivo e
público.
A filosofia deweyana, pautada na epistemologia, utiliza o método científico, no
entanto diferencia-se da ciência. O material operacional da investigação, ou a adaptação
dinâmica entre indivíduo e meio, acontece continuamente a partir do conhecimento
familiar deste indivíduo. Este conhecimento engloba a totalidade necessária a manutenção
da vida, diferente da ciência que opera com conhecimentos específicos. Estes
conhecimentos também são importantes na composição da bagagem presente na memória
individual, visto também pertencerem à memória cultural. No entanto, a bagagem
individual é mais ampla em significação. Nela estão presentes seus ideais, sonhos, projetos,
59
Neste ponto é importante ressaltar e esclarecer um equívoco muito comum que se faz em relação à teoria
deweyana. Sua crítica não é à teoria, mas ao material teórico que cobramos do aprendiz para a ampliação do
conhecimento. O material teórico é indispensável, no entanto, o mesmo deve servir de base para a
continuidade e ampliação do conhecimento do indivíduo. Em outras palavras, se propusermos a solução de
um problema muito além do alcance do aprendiz, o mesmo não terá como relacioná-lo ao seu material
familiar; haverá um abismo entre o conhecido e o confuso. Infelizmente é isso que ocorre na maioria das
vezes na educação escolar.
203
anseios, sentimentos, valores, entre outros, em um ambiente, por natureza, social. Outro
dado significativo no processo de conhecimento deweyano é o poder de maravilhar-se pela
nova descoberta individual, mesmo que esta já não seja novidade para muitos. A satisfação
de comunicar a “novidade”. Não é isso que fazemos em nossas pesquisas bibliográficas?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
204
uma força: “O indivíduo cria o espírito, desenvolve a mente na proporção em que o
conhecimento das coisas se acha corporificado na vida que o cerca; o eu não é um espírito
isolado a criar novos conhecimentos por sua conta própria” (DEWEY, 1979b, p.325).
Quanto à possibilidade de uma vida em ostracismo difundida por algumas filosofias, alerta
Dewey:
Existe sempre o perigo de que a crescente independência pessoal faça decrescer a
capacidade social de um indivíduo. O tornar-se mais confiante em si pode fazê-lo
bastar-se mais a si mesmo; pode levá-lo ao insulamento e à indiferença. Isto
torna muitas vezes o indivíduo tão insensível em suas relações com os outros,
que lhe faz nascer a ilusão de ser realmente capaz de manter-se e agir isolado –
forma esta, ainda sem nome, de insanidade mental que é responsável por grande
parte de sofrimentos remediáveis deste mundo (DEWEY, 1979b, p.47).
Dewey, em sua teoria não nos oferece forma alguma de apoio fixo, nem mesmo um
imperativo categórico kantiano como modelo. Cumpre-nos o trabalho e a criatividade no
desenvolvimento e direção de nossa existência.
205
REFERÊNCIAS
DEWEY, John. Experiência e natureza. Tradução Murilo Otávio R. Paes Leme. São
Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção os Pensadores).
______. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo
educativo: uma reexposição. 4. ed. Tradução Haydée Camargo Campos. São Paulo:
Nacional, 1979a.
______. Democracia e educação. 4. ed. Tradução Godofredo Rangel e Anísio Teixeira.
São Paulo: Nacional, 1979b.
______. Experiência e natureza. 2. ed. Tradução Murilo Otávio R. Paes Leme, Anísio S.
Teixeira e Leonidas Gontijo de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Coleção os
Pensadores).
______. Lógica, a teoria da investigação. 2. ed. Tradução Murilo Otávio R. Paes Leme,
Anísio S. Teixeira e Leonidas Gontijo de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
(Coleção os Pensadores).
LOPES, Sonia. Bio: volume único. São Paulo: Saraiva, 2004.
MURARO, Darcísio. A importância do conceito no pensamento deweyano: relação entre
pragmatismo e educação. 2008. 229 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
______. A concepção da mente-corpo em John Dewey. In: CHITOLINA, Claudinei Luiz,
et al. (Org.). II Colóquio nacional de filosofia da mente e ciências cognitivas... Maringá:
Humanitas Vivens, 2012. p. 104-130. Disponível em:
<http://www.humanitasvivens.com.br/livro/485589d90324ad7.pdf>. Acesso em: 2 nov.
2012.
TEIXEIRA, Anísio. Educação progressiva: uma introdução à filosofia da educação. 2. ed.
São Paulo: Nacional. Resenha de: FILOSOFIA e educação. Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 32, n. 75, p. 14-27, 1959. Disponível em:
<http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/filosofia.html>. Acesso em: 9 abr. 2012.
206
INFERÊNCIA DA MELHOR EXPLICAÇÃO ANTE A PERSPECTIVA DO
EMPIRISMO CONSTRUTIVO DE VAN FRAASSEN: UM DEBATE ENTRE
REALISMO E ANTIRREALISMO.
RESUMO
Na filosofia da ciência, seja qual for sua orientação teórica, seus representantes se
debruçam ante a tarefa de responder duas questões básicas: no que consiste a atividade
cientifica e o que esta realiza. No contexto filosófico-cientifico contemporâneo, vigora um
grande debate acerca dessas questões norteadoras, o realismo e o antirrealismo; em
aspectos gerais, o primeiro caracteriza uma teoria cientifica como um relato acerca do que
existe efetivamente na realidade e a atividade cientifica como um empreendimento de
descoberta, não de invenção; posto desse modo, a aceitação e a sustentação de dadas
hipóteses, teses ou teorias cientificas, envolvem a crença de que estas sejam verdadeiras. A
sustentação dos argumentos do realismo cientifico se faz por meio de uma especifica regra
de inferência, a inferência da melhor explicação, onde consideramos uma série de
hipóteses para explicar um dado fato ocorrido. Dentre essas hipóteses, se elege a melhor
para explicar o referido fato; ao passo que, na perspectiva do empirismo construtivo, não é
afirmado a veracidade de uma dada hipótese, tese ou teoria, mas estas são expostas de
modo a alegar que possuem certas virtudes com relação a outras concorrentes, virtudes
essas exprimidas em sua adequação empírica, ou seja, quando a mesma possui ao menos
um modelo onde todos os fenômenos reais se ajustam a ela, assim sendo, a ciência
pretende nos fornecer teorias empiricamente adequadas e sua aceitação implica somente
nessa adequação. Os termos do empirismo construtivo representam uma de muitas
alternativas possíveis ao realismo epistêmico, de modo a porta-se como uma concepção
antirrealista. O presente escrito tem por objetivo explorar as condições argumentativas do
realismo, respaldado na inferência da melhor explicação, sob uma ótica epistemológica e
de aceitação das teses cientificas. Posteriormente, analisar-se-á suas problemáticas
assinaladas pelo empirismo construtivo de Van Fraassen, tendo em vista, principalmente,
uma critica construída por um viés lógico; a inferência da melhor explicação seria um
recurso suficiente para a afirmação de que a ciência constrói teorias legitimamente
verdadeiras?
Palavras-chave: inferência da melhor explicação; realismo; antirrealismo; empirismo
construtivo.
INTRODUÇÃO
207
se correta, também nos demonstra a veracidade de seu conteúdo; ainda, mesmo que os
realistas admitam que a ciência não chegou a verdades, os mesmos afirmam que ela esta se
aproximando cada vez mais dos conteúdos verdadeiros.
O realismo cientifico diz que aqueles entes, estados e processos descritos por
teorias corretas realmente existem. Protons, photons, campos de força e buracos
negros são reais como as unhas do pé, turbinas, redemoinhos em um riacho e
vulcões [...]
Mesmo quando nossa ciência ainda não tenha conseguido chegar a coisas
verdadeiras, o realista assegura que frequentemente nós chegamos perto da
verdade. (HACKING,1983,p,21)
O trecho de Hacking fornece-nos algo mais além de uma definição das crenças a
respeito de teorias cientificas para um realista: ela nos entrega também os desdobrares da
aceitação das mesmas; o realista não postula somente a veracidade das teorias cientificas
enquanto construções teóricas, mas também pode afirmar a existência das entidades, os
processos e os estados descritos por ela 60 . Para a sustentação da verdade atribuida às
teorias cientificas, uma regra de inferência se faz amplamente utilizada pelos adeptos ao
realismo: esta é a inferência da melhor explicação61, uma regra de raciocinio que nos
permite selecionar a melhor hipótese explicativa para um dado fato ocorrido. Portanto, ante
a perspectiva de um realista, o fato de que a referida hipótese fora classificada como a
melhor opção para se explicar um dado fenômeno, faz desta uma hipótese verdadeira.
Sendo uma concepção proveitosa ao realista cientifico, a IBE torna-se problemática
ante a perspectiva de um empirista construtivo, pois nos moldes desta perspectiva, Van
Fraassen partilha da concepção de que as proposições teóricas da ciência são proposições
genuínas e devem ser interpretadas literalmente; porém, a determinação de seu valor de
verdade não constitui o objetivo da ciência. Além disso, o conhecimento cientifico não se
atém a análise de realidades inobserváveis, mas o de buscar o conhecimento a respeito dos
fenômenos observáveis, isto é, uma classificação de entidades postuladas que podem ou
não existir; por exemplo, um cavalo alado é uma entidade observável, em razão disso,
estamos tão seguros de que não haja nenhum, pois até hoje, nenhum fora visto 62 . Ao
60
Mais adiante, no mesmo livro, Hacking faz uma descrição de dois realismos; um deles postula somente a
verdade de teorias, o outro afirma a verdade das entidades descritas por essa teoria. (HACKING, 1983, p.27).
Contudo, faz-se perfeitamente plausível a existência de teóricos realistas, cuja crença de veracidade, esteja
contida tanto no âmbito teórico, quanto no âmbito ontológico.
61
Grifo nosso. Doravante utilizaremos aqui a abreviatura do termo em inglês “Inference of the best
Explanation” (IBE).
62
VAN FRAASSEN, 2007, p 38.
208
contrário de entidades observáveis, as inobserváveis simplesmente não podem ser passiveis
de observação, como o numero 17, por exemplo. Ainda, em contraste à concepção do
realista, para quem a aceitação de uma teoria autoriza a crença em sua verdade, para um
empirista construtivo a aceitação de uma teoria bem sucedida envolve apenas a crença em
sua adequação empírica: ou seja, apenas a respeito dos fenômenos observáveis que se
encaixam nos moldes da tese cientifica mais adequada.
A ciência visa dar-nos teorias que sejam empiricamente adequadas; e a aceitação
de uma teoria envolve, como crença, apenas aquela de que ela é empiricamente
adequada [...].
Uma teoria é empiricamente adequada exatamente se é verdadeiro o que ela
diz sobre as coisas observáveis e eventos no mundo – exatamente se ela ‘’salva
os fenômenos’’. Um pouco mais precisamente: tal teoria possui pelo menos um
modelo tal que todos os fenômenos reais a ele se ajustam. (VAN FRAASSEN,
2007, p.34)
Ainda, segundo Van Fraassen, propor uma teoria cientifica é fazer especificações
de uma família de estruturas ou de modelos, e nestes, indicar as partes que representam de
modo direto as coisas observáveis, essas partes são denominadas subestruturas empíricas
63
; ao dizer que uma teoria é empiricamente adequada, Van Fraassen afirma que ela possui
ao menos um modelo tal que os relatos experimentais são isomórficos a subestruturas
empíricas, isto é, existe uma representação dos relatos experimentais no modelo de uma
teoria64.
Posto deste modo, a pesquisa orientada por um viés empírico-construtivo trata-se
em ultima instância, de uma alternativa ao pensamento realista, sendo então, um
antirrealismo epistêmico. Com base nos pressupostos deste arcabouço teórico,
analisaremos a concepção realista de inferência e suas inconsistências no que se diz
respeito à promessa de um alcance a verdade.
O seguinte esquema de raciocínio exprime um dos modos nos quais Peirce (1934-
1935) introduziu a noção de inferência abdutiva:
O fato surpreendente, C, é observado.
63
Grifo de Dutra.
64
DUTRA, 1998, p.52.
209
Logo, há razões para suspeitar que A seja verdade. (PEIRCE, apud CHIBENI,
2006, p.2).
Ingenuamente, podemos vir a pensar que o fato de que uma tese, hipótese ou teoria
seja verdadeira quando esta em comparação a outras, nos fornece um valor explicativo
melhor que suas rivais. Podemos concordar que esta condição é necessária para que uma
210
teoria seja verdadeira, mas poderíamos fazer o movimento inverso de raciocínio e ousar
dizer que um teor mais satisfatório de explicação é suficiente para afirmamos sua verdade?
65
VAN FRAASSEN, 2007, p.46
66
A estruturação do argumento de Van Fraassen esta contida no já citado texto de Chibeni (1996), contudo, a
partir desse formato do argumento oferecido por Chibeni, alterei alguns termos de suas premissas e
conclusão, a fim de que este se aproximasse mais do texto de Van Fraassen. A mudança se fez necessária
principalmente no que se diz respeito à introdução do quantificador universal ‘’todos’’ na premissa do
argumento, este esta presente no texto de Van Fraassen, mas foi ausentado nos escritos de Chibeni. Ver
Chibeni, 1996, p. 5-6 e Van Fraassen 2007, p. 46-47.
211
indiferentes ao que dela resulta, pois um elemento dentro de uma estrutura formal sempre
estará interligado a outro; logo, sabemos que usamos um dado sistema inferencial para
atingir um dado elemento por meio de outros. Parece razoável concluir que sempre
estamos conscientes dessa escolha, pois sabemos o ponto em desejamos chegar.
Ao findar essas possíveis interpretações acerca da primeira premissa do argumento,
Van Fraassen chega à conclusão que esta se trata de uma hipótese psicológica67 acerca do
que estamos ou não dispostos a fazer, e na condição de uma hipótese, esta necessita de
dados empíricos para respalda-la e, além disso, é preciso confronta-la com hipóteses rivais;
a hipótese proposta pelo empirista construtivo seria justamente que possuímos a tendência
de acreditar que teorias que melhor explicam as evidências são empiricamente adequadas.
Por fim, mesmo que questões psicológicas sejam de menor importância, a premissa de que
todos68 nós seguimos uma regra de inferência precisa ser demonstrada.
Nosso autor apresenta ainda mais uma objeção à inferência realista, agora pautada
na necessidade de uma premissa que se ausenta no argumento.
A IBE se constitui em uma regra que nos guia na escolha de uma dada hipótese
dentre um conjunto de hipóteses alternativas, entretanto, como ocorre essa escolha? Isto é,
quais as condições necessárias que as referidas hipóteses precisam preencher para serem a
melhor explicação para um dado fato ocorrido? E por fim, quem determina quais serão as
condições necessárias e quais não serão? Deste modo, precisamos nos comprometer com
algo que esteja além dessa simples operação entre escolhas de hipóteses, precisamos nos
ligar a uma crença 69 para que esta possa nos dizer qual hipótese deve ser escolhida dentre
o conjunto de hipóteses analisadas70.
Utilizando a exemplificação de Van Fraassen: suponha-se que inúmeros dados observados
nos leve a concordar com os modelos propostos por T; então, T é uma possível explicação
67
Grifo de Van Fraassen.
68
Grifo nosso.
69
Grifo nosso.
70
VAN FRAASSEN, 2010, p 49. Vale salientar que neste trecho Van Fraassen já esta abrindo margens a
uma saída argumentativa de cunho pragmático a discussão. Este trabalho propõe, como se encontra no
resumo, uma analise das criticas do empirista construtivo que estão fundadas por um viés lógico. Essa
instância do texto de Van Fraassen foi inserida com foco na critica da falta de premissas no argumento da
IBE; quanto à razoabilidade dos argumentos aqui apresentados e da necessidade de uma analise pragmática,
fico de ater-me a isso no desenvolvimento deste mesmo trabalho.
212
para os referidos dados. Existem alternativas a T, uma delas é não- T (T é falsa), e essa
71
explicação não nos fornece uma boa descrição dos dados. Assim, sempre temos
hipóteses alternativas em um dado conjunto de explicações. Contudo, em razão de seu alto
conteúdo explicativo, a IBE sempre nos levará a T. A questão é: estamos, com certeza,
comprometidos com a perspectiva de que T é verdadeira ou T é falsa? Se nos
comprometemos com a concepção de que T é verdadeira ou falsa não estaremos
necessariamente dando um passo inferencial que leve a uma delas (T ou não-T). A regra
inferencial valeria então somente se não nos mantivermos neutros ao analisar ambas as
hipóteses. (VAN FRASSEN, 2010, p.49)
O problema exposto acima é de grande relevância á IBE; Van Fraassen aponta de
modo muito coerente que a utilização da inferência realista não teria direcionamento algum
na ausência de uma crença, ou seja, na falta de um respaldo fixo que a direcione em seu
objetivo de encontrar uma melhor explicação, e por sua vez, encontrar uma verdade. A
utilização da inferência, no que se diz respeito a descobrir72 verdades, não nos fornece a
informação de como chegamos até essas inferências e do por que as consideramos verdade.
Suponhamos que estamos diante de uma série de teorias que rivalizam entre si
para fornecer a melhor explicação de um determinado fenômeno; além disso,
supõe-se que foi possível determinar que uma destas teorias fora eleita como a
melhor explicação do fenômeno em questão. Segundo a concepção do realista,
sustenta-se mediante a inferência da melhor explicação, que deve ser atribuída a
essa teoria a crença em sua veracidade; contudo, como podemos saber se não
estávamos diante de um conjunto defeituoso? ( VAN FRAASSEN, apud,
RODRIGUES, p 276)
possível, por exemplo: consideremos que haja um conjunto que contenha as hipóteses α,
71
Grifo de Van Fraassen.
72
Grifo nosso.
73
Grifo nosso.
213
β e β’ com a pretensão de se explicar um dado fenômeno, digamos a interferência da
gravidade nos corpos em meio ao vácuo; neste ambiente, é observado que a queda de
objetos com diferentes massas, quando soltos no mesmo tempo, atingem o chão juntos. Isto
ocorrera quando Armstrong soltou um martelo e uma pena na lua e esses objetos, com
massas tão distintas, caíram ao chão ao mesmo tempo. Nesse sentido, ao analisar a
hipótese alfa, constata-se que esta possui um conteúdo explicativo satisfatório com relação
ao fenômeno descrito, porém, ao ser comparada com a hipótese beta, alfa apresenta certas
limitações que são superadas por beta, deste modo, é constatado que beta possui um
conteúdo explicativo maior que o de alfa. Mas ao analisar a hipótese beta linha, o físico
verifica que esta responde algumas problemáticas que foram apresentadas por beta; assim
sendo, dentro deste conjunto de hipóteses, beta linha possui a melhor explicação do porque
corpos com diferentes massas caem na mesma velocidade na presença do vácuo.
Pois bem, o ponto de critica de Van Fraassen se concentra na seguinte questão:
como podemos saber que não existe uma teoria, que esteja fora deste conjunto, que
explique este fenômeno físico de modo ainda melhor que a hipótese beta linha?
Ainda, utilizando a IBE, ao encontrarmos a teoria de melhor explicação estaremos
com passe livre para acreditar em sua verdade, entretanto, se não sabemos se a teoria de
melhor classificação no conjunto realmente nos fornece a melhor explicação possível ao
fato ocorrido, como poderemos fazer da melhor explicação um critério suficiente para
atestar a veracidade de teorias cientificas? Parece-nos que ao fazer isto, estaríamos nos
precipitando com um passo inferencial que se inviabiliza por seus próprios termos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
214
também se uma hipótese psicológica poderia sustentar uma hipótese de cunho
epistemológico.
Van Fraassen ainda nos mostra, de modo pertinente, que o uso da inferência realista
do modo como os representantes dessa corrente fazem não se sustenta, justamente porque
essas inferências só seriam eficientes inseridas em um dado conjunto de crenças de uma
comunidade cientifica e esta premissa fundamental é negligenciada pelos teóricos do
realismo. Vale ressaltar também que essa eficiência que a IBE poderia alcançar se diz
respeito a tão e somente sua possibilidade de encontrar uma boa explicação para um dado
fenômeno em um dado contexto, mas isso ainda não seria suficiente para afirmar a verdade
das teorias cientificas.
Por fim, os cientistas podem perfeitamente classificar as teorias de acordo com seu
teor explicativo; entretanto, não se faz possível conhecer se a teoria melhor classificada é a
melhor teoria possível de existência; então, já que não podemos afirmar que a teoria com o
melhor conteúdo explicativo é a melhor teoria possível de ser formulada, não poderíamos
afirmar, como faz o realismo, que este é um critério para atestar a veracidade da ciência.
Isto simplesmente não se sustenta.
REFERÊNCIAS
SILVA, Marcos. "Inferência da melhor explicação: Peter Lipton e o debate realismo/ anti-
realismo". In Princípios vol. 17, n. 27, 2010.
215
TEMPORALIDADE E ETERNO RETORNO: LIBERDADE EM FRIEDRICH
NIETZSCHE
RESUMO
216
E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em
sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está
vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis
vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada
suspiro e pensamento e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em
sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e
ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e
também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será
sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!”. – Você
não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim
falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe
responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse
pensamento tomasse conta de você é, tal como você é, ele o transformaria
e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso
mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como
o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e
com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação
e chancela?
Nesse parágrafo de A Gaia Ciência (2012), intitulado O mais pesado dos pesos,
encontra-se um dos grandes conceitos da filosofia madura de Nietzsche: o eterno retorno.
Esse conceito, em princípio, que se apresenta hipoteticamente na frase “e se um dia” de
maneira emblemática, parte de um demônio, porém ganha maior força em seu
desenvolvimento, sendo tido como “concepção fundamental de Assim Falou Zaratustra”
(NIETZSCHE, 2008a, p. 79, grifo meu).
As interpretações que surgiram em torno de tal conceito muitas vezes apontam para
um sentido ambíguo, como observado por Vattimo (2010), que explicita duas
interpretações diversas, a saber, do ponto de vista cosmológico e do ponto de vista moral,
sendo a conciliação destes, no mínimo, problemática. Na interpretação cosmológica a
eterna repetição daquilo que acontece é tida como um fato, enunciando-se assim a
“necessária estrutura da realidade” (ibid., p. 8). Essa necessidade atrelada ao eterno retorno
implica que os acontecimentos não podem ocorrer de maneiras diferentes. Nesse sentido,
não há espaço para a liberdade, pois “as ações do homem são simplesmente o produto do
devir cíclico do cosmos” (ibid., p.10). No tocante à interpretação moral, o eterno retorno
não é visto como um fato condicionante onde a liberdade é suprimida; aliás, vale ressaltar
que em A Gaia Ciência a primeira enunciação do conceito do eterno retorno é exposta de
forma hipotética, pois pode inferir-se, ao menos da expressão literal, que se trata de uma
proposta feita ao homem: “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?” (id.,
2012, p. 205). Esse sentido apresenta-se como um dever, um imperativo, ou seja, um
217
critério para a escolha moral, pois soa como se se devesse agir de maneira que se quisesse
que todos os instantes da vida se repetissem eternamente.
Não é arbitrariamente que Nietzsche define o conceito como o mais pesado dos
pesos, pois esse desejo de retorno não se refere exclusivamente às dimensões desejáveis da
vida, onde o que acabaria por retornar seria apenas o que nos agrada e apraz. Pelo
contrário: de maneira geral, desejar o retorno é desejar a vida por inteira em todos os seus
aspectos, e querer todas as dimensões da vida é afirmar o mundo, sendo o sim a este
mundo como algo a ser desejado e amado.
Ao analisar essa afirmação do mundo, nos parece que deve haver uma ligação mais
profunda e estreita entre a eternidade do mundo e a decisão do homem. Primeiramente
deve-se esclarecer que a visão de mundo nietzschiana está atrelada a dois extremos: o
primeiro constitui-se em que, após caírem todas as amarras e preceitos que mantêm o
homem preso, resta-lhe se perguntar pelo que ainda existe, ou o que fica para este homem,
e posteriormente, no outro extremo, cabe a ele construir o próprio mundo, o horizonte onde
deve colocar sua vida, já que não há nada para determiná-lo, permitindo-se assim que ele
se torne de algum modo seu próprio Deus (cf. VATTIMO, 2010), esse processo e seu
resultado são nomeados por Nietzsche pelo termo niilismo. “O cair das amarras caracteriza
o desaparecimento do mundo verdadeiro e este desaparece porque se transforma em fabula,
pois desde o inicio não passou disso” (ibid., p. 56). O ponto de partida para se afirmar isso
se localiza na crítica à verdade baseada na evidencia. Tal crítica pode ser corroborada na
passagem em que Nietzsche afirma ser o primeiro princípio “[...] o modo de pensar mais
fácil triunfa sobre o mais difícil – como dogma: simlex sigillum veri. – Dico [sic]: que
clareza deva atestar algo em favor da verdade é uma perfeita criancice... [...]”
(NIETZSCHE, 2008b, p. 282, grifo meu), também presente em Além do bem e do mal,
onde escreve Nietzsche: “Ainda há ingênuos observadores de si mesmos que acreditam
existir ‘certezas imediatas’ [...]’’(id., 2013, p. 20). Isso significa que não existem verdades
por si só evidentes, sendo que a evidencia de uma proposição não passa de “sua adaptação
perfeita e sem dificuldades ao sistema de preconceitos que constituem as condições de
conservação e desenvolvimento de um certo mundo histórico a que pertencemos”
(VATTIMO, 2010, p. 58). Assim a verdade é tida como conformidade e adaptação a
realidade – explicada através de fatos históricos em um sentido linear de tempo que visa
um fim – de maneira que inferimos com base nessa conformidade a verdade das demais
218
que se seguem, sendo essa inferência, resultado de um processo histórico em que um fato é
inferido a partir de outro, sendo assumido como sinal fiel e confiável de verdade.
Engendrada na concepção temporal de Nietzsche está à recusa a historicidade, vista
por ele como sinal de decadência de uma sociedade. Em tal sociedade, há excesso de
consciência histórica, pois a cultura se tornou “história da cultura”, ou seja, a cultura se
tornou erudição: o indivíduo erudito passa a acumular conhecimentos passados sem
selecioná-los, sendo a seleção é a marca distintiva do indivíduo que possui estilo. A
extrema consciência histórica mata o desejo de criar, pois o homem perante fatos passados
tende a mumificá-los, torná-los permanentes, impossibilitando-se assim a criação e a
autenticidade, de forma que para a ocorrência da ação é necessário que haja esquecimento.
Em contrapartida, também deve haver certa relação com o passado, mas sem que se tente
tornar-se um continuador dele. Essa possibilidade se dá somente quando a história é posta
a serviço de uma força criativa. Advém do ato criador a finalidade para o passado – isso
não implica que o passado caminhe para um fim, mas sim, entendido como finalidade para
a criação. Nas palavras de Nietzsche, entende-se que “o histórico e o a-histórico são na
mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo e uma cultura”
(NIETZSCHE, 2003, p. 11). A vida é criação; o individuo é resultado dessa unidade
histórica; quando estabelecido um fim, o passado é transformado em novidade. Modelos
dessa proficuidade atribuída ao passado são a arte e a religião, que o remontaram em vista
de algo.
A partir do momento em que o homem aprende a dizer es war (“foi”, em uma
tradução literal), se condena a uma luta contínua contra o passado, pois os homens não têm
a capacidade de esquecer como os animais, que vivem a cada instante sem saber o que é o
ontem ou o hoje. Assim sendo, o passado cai como um peso sobre o homem: este vive
apenas uma sucessão de instantes, cada um dos quais sendo a negação do outro, de maneira
que o passado esvazia o presente, pois o homem não consegue se libertar do es war (cf. id.
2013). A doença histórica está atrelada à interpretação linear de tempo, que visa um telos,
de maneira que o presente se torna negativo, como falta de algo, já que sempre se busca
um fim, isto é, se vive o agora apenas visando à chegada de um futuro.
O problema da “doença histórica” continua nas obras da maturidade nietzschiana,
onde tal problema se revela como um dos “aspectos fundamentais pelos quais o niilismo se
define em sua origem e desenvolvimento” (VATTIMO, 2010, p. 54). A perda de sentido e
valor do mundo advindos do socratismo, do platonismo e do cristianismo define o
219
significado mais geral do niilismo. Esse, porém, tem um alcance muito maior. Podem-se
indicar aqui três etapas para o seu acontecimento: em um primeiro momento, encontra-se a
perda de ânimo do homem ao descobrir o desperdício de força empregado na busca de um
“sentido” para os acontecimentos, pois esse sentido inexiste; não se encontrando uma
ordem moral para o mundo, compreende-se que a ideia de alcançar-se algo é puro
equívoco, pois “[...] com o devir nada se alcança, nada é alcançado [...] (NIETZSCHE,
2008b, p. 31); em um segundo estágio o homem sedento por uma totalidade e organização
nos acontecimentos, busca conformidade em uma suprema forma de governo e de domínio,
assim estabelecendo uma dependência de um todo infinitamente superior a ele; porém, essa
ilusória segurança se esvai com a tomada de consciência de que sua crença em algo divino
e universal é infundada; esse último aspecto tem ligação direta com os anteriores, pois
quando se compreende que nada é alcançado com o devir e que sobre ele não impera
nenhuma força universal que venha agregar valor ao homem, incide-se na total condenação
desse mundo do devir e assim inventa-se um mundo que fica além do mesmo, como
verdadeiro mundo; ao compreender, no entanto, que esse subterfúgio é fruto de uma
necessidade psicológica, ocorre a última forma do niilismo, caracterizada pela descrença
em um mundo metafísico. Assim sendo não há mais a possibilidade de refugiar-se em um
mundo do além, porém “[...] não se suporta este mundo, que já não se está disposto a
negar” (ibid., p. 32).
Niilismo e historicismo desenvolvem-se paralelamente, trazendo ambos um duplo
sentido, positivo e negativo, que ocorre simultaneamente: negativo na medida em que é
indicador de fraqueza e de perda de iniciativa por parte do homem; positivo na medida em
que, com o fim das construções providencialistas da história, o campo está livre para uma
nova perspectiva que restitua ao homem a plena liberdade de iniciativa no mundo histórico
(cf. ibid). Esvaída a crença em uma ordem em que os acontecimentos estão ligados à
determinação de um deus, o homem encontra-se imerso em um fluxo irrefreável das coisas,
submetido a um tempo onde não se é capaz de reagir por imediato. Sua natureza mostra-se
em aguardar e adiar uma reação, e tais indícios são sinais de fraqueza, sinais de um tipo
decadente, pois tal homem decadente desaprende a reagir, de modo que a ação se torna
apenas resposta a um estímulo externo, e não iniciativa do agente (cf. ibid., p. 46 e p. 62).
Como observado anteriormente, a doença histórica configura os meios pelos quais o
niilismo se desenvolve, porém a “relação com o passado e a luta com o peso do es war
abrangem, um aspecto universal, tornam-se o próprio problema do niilismo” (VATTIMO,
220
2010, p. 30). Encontra-se na segunda Extemporânea a menção de que esses aspectos são a
base da doença histórica, “mas ao mesmo tempo constituem a essência do homem” (ibid.,
p.31), de maneira que o niilismo tem um caráter histórico, como indicado no parágrafo 12
de A vontade de poder (NIETZSCHE, 2008. p. 31), mas também é condição do homem
que não resolveu o problema do es war.
A incapacidade do homem de resolver o problema do es war e de se libertar do
peso do passado tem como consequência o instinto de vingança, pois o homem não
consegue transformar o “assim foi” em um “eu quis que assim fosse”, e essa transformação
de aceitar o passado tal como é, sem buscar alguém ou alguma circunstância para depositar
a responsabilidade dos acontecimentos caracteriza a renovação necessária para que haja
libertação do niilismo. “Redimir o passado no homem e recriar todo ‘‘foi até que a vontade
diga: ‘Mas assim eu quis!, Assim querei’’... a isso denominei redenção ” (id., 2011, p.189).
No entanto, o querer para trás é uma tarefa que parece impossível para a vontade, já que
ela se encontra em uma situação que não escolheu, e ao perceber sua impotência ante ao
passado, cria para si uma visão de mundo para comportar suas frustrações e justificar a
necessidade, daquele que sofre, de encontrar culpados. Essa maneira de reagir moldou toda
a metafísica, a psicologia, a representação histórica e, sobretudo, a moral, para que se
legitimasse o direito a vingança, que busca impor castigos; tal constatação encontra-se no
discurso de Zaratustra sobre a redenção (cf. ibid., p. 134). Desse processo entende-se que o
princípio de causalidade é expressão desse espírito de vingança, o qual se manifesta não
apenas pela procura de responsabilidade em sentido próprio: qualquer busca por
fundamento carrega tal instinto.
Pode se estabelecer, em um apanhado geral, que a moral, a metafísica e
cristianismo são instrumentos do espírito de vingança e que apresentam em sua origem a
busca de uma ordem, de uma estabilidade e de um valor independente da vontade; quando
tais anseios se revelam ilusórios, tende-se para o advento do niilismo. A perda das ilusões
pode ter dois sentidos: ou a absoluta incapacidade de ainda querer, ou o reconhecimento
alegre e criador do fato de que não existem tais ilusões; do “fato que não existir nenhuma
ordem fora da vontade significa que tudo deve ser criado” (VATTIMO, 2010, p. 40).
Porém, para se chegar ao ponto em que a vontade não mais busca fora de si mesma
fundamentos ou responsabilidades, e para que isso implique na resolução do problema do
es war e possibilite a passagem do niilismo em seu sentido negativo para o niilismo
superado, em que a vontade se reconheça como criadora, é necessário transpor o
221
paradigma da incapacidade de “querer para trás”, como exposto por Nietzsche no final do
discurso de Zaratustra sobre a redenção: “Quem ensinará a vontade a querer para trás?”
(NIETZSCHE, 2011, p. 135). Para resolver esse problema é imprescindível que se altere o
modo de pensar a temporalidade, o que implica em descobrir uma nova estrutura temporal
que não seja linear, em que o tempo se apresenta como uma série irreversível de instantes,
cada um dos quais sendo a sucessão de outro. Deve-se pensar uma estrutura temporal onde
a vontade possa realmente “querer para trás”, implicando assim na libertação do espirito de
vingança e do niilismo. Uma possível solução para o problema temporal encontra-se em
Assim Falou Zaratustra (ibid.), formulada sob a perspectiva da doutrina do eterno retorno
do mesmo; no entanto, este não deve ser pensado sob a perspectiva puramente moral, a
qual faz do conceito um critério de escolha referente apenas ao homem e suas ações e que
tem por premissa o dever de escolher aquilo que gostaria de escolher para a eternidade;
também não por um viés cosmológico, no qual tende-se a afirmar uma estrutura de mundo
em que a escolha do homem já não tenha sentido algum e em que já não pode haver nada
de novo, distanciando-se do discurso sobre a redenção de Zaratustra, que prega a existência
de uma vontade criadora.
A interpretação que aqui servirá de base para desenvolver uma possível solução de
tal problema será a utilizada por Vattimo em seus primeiros ensaios de Dialogo com
Nietzsche (2010). O eterno retorno do mesmo é evidenciado na passagem Da visão e do
enigma, onde Zaratustra relata uma visão tida em sonho (NIETZSCHE, 2011, p. 150):
“Olhe para este instante” – diz Zaratustra. – “Desta porta sai uma longa
e eterna estrada que volta: atrás de nós jaz uma eternidade. Tudo o que
pode correr não deve já ter uma vez percorrido essa estrada? Tudo o que
pode acontecer não deve ter já uma vez ocorrido, ter-se realizado, ter
transcorrido?... E não estão as coisas estreitamente entrelaçadas de tal
modo que este instante arrasta consigo as coisas vindouras? Portanto
também a si mesmo?”
O conceito de eterno retorno a partir dessa passagem pode ser visto como uma
inversão da visão comum de tempo, sendo concebido por Zaratustra como tempo cíclico,
possibilitando assim a retirada da pedra do passado, que era o empecilho de não poder “se
querer para trás”. Nessa estrutura circular, o que dá significado a doutrina é a função que
nela exerce o instante: dada a estrutura circular de tempo, cai-se por terra o aspecto
222
retilíneo em que o passado se tornaria um peso irreversível sobre o presente e o futuro,
onde um instante por si só não tem consistência e necessita da relação com os demais
instantes para ganhar fisionomia. Essa nova visão temporal possibilita uma determinação
recíproca entre passado e futuro que se constitui a partir do presente como momento da
decisão. É nesse momento que o passado e o futuro se unem de fato no presente, como
evidenciado em O convalescente: “O instante traz consigo todo o passado e todo o futuro:
cada momento da história torna-se decisivo para toda a eternidade: em cada instante a
existência começa... O centro está em toda a parte” (ibid., p.209). Assim sendo temos no
desenrolar de tal interpretação a superação do passado, o esquecimento reparador que abre
as portas para um mundo no qual o homem pode novamente criar.
Nesse âmbito em que o instante, a saber, o momento da decisão se torna um
absoluto, já que não há mais um devir historicista, e em que impera a impossibilidade de
recorrer a uma ordem constituída de uma vez por todas, nenhuma decisão podendo se dizer
determinada ou condicionada, recai sobre ela, a decisão, a criação dos horizontes onde
colocar o mundo desse homem que não já não possui amarras e que se libertou de todas as
justificativas ilusórias que antes o guiava. Em um mundo onde os atos praticados trarão
consigo o peso de se repetir eternamente, a irresponsabilidade do homem não mais se
justificará por conta de uma necessidade e causalidades do devir, isto é, o homem não
poderá responsabilizar outrem por suas ações. A liberdade consiste nesse instante no qual
as decisões são tomadas; esse homem terá de ser capaz de assumir plenamente suas
próprias responsabilidades.
REFERÊNCIAS
________. A Gaia Ciência. Traduzido por Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
________. Ecce homo. Traduzido por Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008a.
223
VATTIMO, Gianni. Diálogo com Nietzsche. Traduzido por Silvana C. Leite. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2010.
224
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM KANT RELACIONADA À TEORIA
DA JUSTIÇA DE RAWLS
RESUMO
Resumo: Este trabalho tem por objetivo relacionar a noção de dignidade da pessoa
humana (Menschenwürde), na filosofia de Kant (em especial na Fundamentação da
Metafísica dos Costumes), com a teoria da justiça elaborada por John Rawls, visando
apresentar em que medida Rawls leva em conta os conceitos de autonomia e dignidade. A
dignidade da pessoa, em Kant, é teorizada nas segunda e terceira formulações do
imperativo categórico, e se dá por meio tanto da autonomia da vontade como da noção de
fim em si mesmo (a partir de um reino dos fins, segundo o qual tudo possui uma dignidade
ou um preço). Considerado o ser humano como livre, e potencialmente autônomo, tal
autonomia assegura-lhe uma dignidade, sendo tal pessoa capaz de construir sua própria
personalidade (que a torna única). Em Uma Teoria da Justiça, o autor estadunidense
fundamenta sua visão acerca da justiça, levando em consideração o entendimento do ser
humano enquanto fim em si mesmo. Visando tratar da justiça como equidade, estabelece
dois princípios de justiça, sendo que do primeiro são defendidas as liberdades
fundamentais dos indivíduos (que devem ser garantidas, para uma sociedade ser justa).
Pressupõe-se, assim, uma posição original na qual os indivíduos estabeleceriam tais
princípios, partindo de um véu de ignorância (para Rawls, a melhor caracterização da
posição original) acerca do papel de cada um na sociedade. Nesta posição original, Rawls
pensa os indivíduos enquanto mutuamente desinteressados (sem terem interesse nos
interesses dos demais). Apresentados os principais argumentos de Rawls, traça-se um
paralelo entre ambos os filósofos, ao relacionar (1) a autonomia ao desinteresse mútuo, (2)
a liberdade em Kant às liberdades básicas em Rawls, e (3) o imperativo categórico aos
princípios da justiça. No primeiro ponto, pode-se dizer que os indivíduos mutuamente
desinteressados escolhem de modo efetivamente autônomo (desprovidos de motivações
externas) os princípios da justiça. Deste modo, posteriormente considerariam os demais
indivíduos como dotados de dignidade (enquanto fins em si mesmos), ao reconhecer nos
outros a liberdade (logo, sua possível autonomia). No segundo ponto, pode-se relacionar as
liberdades básicas em Rawls com a liberdade em Kant, observando-se que, para ele, o
direto à liberdade estaria relacionado à possibilidade da autonomia. De modo similar,
Rawls estabelece liberdades básicas para os indivíduos que, através de sua autonomia (isto
é, do desinteresse mútuo), escolheram equitativamente os princípios da justiça. Ao tratar da
coerção, contudo, de certo modo observa-se um possível distanciamento entre Kant e
Rawls, na medida em Rawls ampliaria o uso da coerção para além da coerção legítima,
podendo ser esse um problema a ser debatido. No terceiro ponto, temos a comparação entre
os princípios da justiça e o imperativo categórico, do modo como o próprio Rawls expõe,
que agir com base nos princípios da justiça equivale a agir com base em imperativos
categóricos, ao pensarmos que são aplicados, independendo de objetivos particulares. Uma
vez observados esses pontos principais, é possível esboçar em que medida Rawls leva em
74
Graduando em Filosofia na Universidade Estadual de Londrina (UEL), e bolsista de iniciação científica
pelo CNPq, sob orientação do prof. Dr. Aguinaldo Pavão.
225
consideração a autonomia e a dignidade da pessoa, do modo como foram teorizadas por
Kant.
Palavras-chaves: Kant, Rawls, dignidade da pessoa humana, liberdades fundamentais
A filosofia moral de Kant, pode-se dizer, tem por base a autonomia da vontade, da
qual, ao se pensar em uma dignidade da pessoa humana (Menschenwürde), considera uma
pessoa como autônoma no uso de sua razão, uma vez que é livre para estabelecer e seguir
leis de como deve agir. Deste modo, um dos mais importantes pontos da filosofia kantiana
é justamente o conceito de dignidade da pessoa.
No artigo "Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento?" 75 , Kant inicialmente
esboça seu conceito de autonomia, como o uso do seu próprio entendimento, conceito este
que é desenvolvido em obras posteriores. A saída da menoridade e o desenvolvimento da
capacidade de se servir do seu próprio entendimento demarcam exatamente o propósito da
autonomia, de tal modo que o "uso público da razão" reafirmaria a liberdade como
condição de possibilidade do exercício da autonomia.
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant trata dos conceitos de
autonomia e dignidade, que estariam vinculados entre si. A autonomia está relacionada à
vontade, ou, no caso, à boa vontade (guter Wille), sendo, deste modo, a autonomia da
vontade (do uso da razão prática). A vontade, por si, não é nem boa, nem má; depende do
uso que dela é feito. Assim, uma boa vontade é resultado de seu bom uso. Diz Kant: "não
há nada em lugar algum, no mundo e até mesmo fora dele, que se possa pensar como
irrestritamente bom, a não ser tão-somente uma boa vontade (KANT, 2009, p. 101).
A autonomia, para Kant, seria "o fundamento da dignidade da natureza humana e
de toda natureza racional" (ibid., p. 269). O ser humano, partindo do bom uso de sua
vontade, deveria, para agir moralmente, agir por dever (não meramente conforme a ele), ou
seja, por respeito à lei moral. A razão é autônoma quando dá a si mesma tal lei, e assim
respeita a lei que ela própria propôs. Para isso, tal razão deve eliminar de seu princípio de
ação conteúdos empíricos, pois, de outro modo, seria heterônoma (quer dizer, não
75
Abreviaturas utilizadas no trabalho: de Kant: GMS (Fundamentação da Metafísica dos Costumes), MS
(Metafísica dos Costumes), RL (Doutrina da Direito), e WA ("Resposta à pergunta: O que é
Esclarecimento?"). De Rawls: TJ (Uma Teoria da Justiça), e HMP (História da Filosofia Moral). As
indicações concernentes às traduções estão contidas nas referências bibliográficas.
226
determinaria a si mesma). Para que possa escolher as máximas que possam ser
universalizadas, isto é, para ser autônoma, a vontade deve ser livre. Deste modo,
considerando a vontade livre, pode ser imputada por seus atos, tanto a autônoma como a
heterônoma (que, por mais que possa não ter seu fundamento na razão, ainda assim pode
ser considerada livre, e, logo, imputável).
Kant, ao tratar do imperativo categórico, apresenta três formulações, das quais a
primeira e a terceira possuem variantes. A dignidade, isto é, o tratamento de um ser
racional enquanto fim em si mesmo, é introduzida na segunda formulação do imperativo
categórico: "age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na
pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como
meio" (ibid., p. 243).
A autonomia é mais claramente abordada na fórmula da autonomia, terceira
formulação do imperativo categórico, para agir de tal modo que "(...) a vontade possa,
mediante sua máxima, se considerar ao mesmo tempo a si mesma como legislando
universalmente" (ibid., p. 263).
Deve-se estabelecer, na segunda formulação, uma distinção entre "meramente como
meio" (bloß als Mittel) e "como meio". É possível agir moralmente mesmo considerando
uma outra pessoa como meio, desde que também seja considerada como fim em si mesmo.
Isto é, a dignidade do outro deve ser respeitada, uma vez que ele também é dotado de uma
vontade livre, e potencialmente autônoma. Para Kant, somente a humanidade e a
moralidade possuem dignidade, de tal modo que a moralidade garanta à humanidade o
tratamento de fim em si mesmo:
Ora, a moralidade é a única condição sob a qual um ser racional pode ser fim em
si mesmo: pois só através dela é possível ser membro legislante no reino dos
fins. Portanto, a moralidade e a humanidade, na medida em que ela é capaz da
mesma, é a única coisa que tem dignidade (ibid., p. 265).
Pode-se pensar que, com "humanidade", Kant esteja se referindo a seres racionais
autônomos. Isto é, outros seres racionais além dos humanos também possuiriam dignidade,
uma vez que os conceitos de dignidade e autonomia não são antropológicos. Acerca disso,
diz Allen Wood:
227
Rawls entende, comentando Kant, a humanidade como "nossas faculdades e
capacidades que nos caracterizam como pessoas razoáveis e racionais que pertencem ao
mundo natural" (RAWLS, 2005, p. 217).
Considerando isso, a partir da concepção de Wood, observa-se a noção de
"humanidade" enquanto natureza racional em qualquer ser possível. Deste modo, tem-se
que um ser (mesmo um ser não humano), pelo fato de ser racional, possui (de algum modo)
humanidade, e portanto dignidade. Isto é, o conceito de humanidade está relacionado ao
conceito de pessoa (como aponta Rawls), que por sua vez está ligado ao de racionalidade.
A humanidade, no caso, não é entendida exclusivamente como propriedade de seres
"humanos", mas sim de seres racionais. De certo, este é um ponto que mereceria ser tratado
mais afundo para um melhor entendimento da questão propriamente dita, não obstante
imagino que esta abordagem já é suficiente para o propósito desta comunicação.
Sobre o conceito de fim em si mesmo, Kant estabelece que tudo, em um reino dos
fins, "tem ou bem um preço ou bem uma dignidade" (KANT, op. cit., p. 265). Enquanto o
primeiro seria substituível, o segundo seria exclusivo, no caso, de cada pessoa (ser racional
dotado de uma personalidade). A pessoa humana, individual, deve ser compreendida
enquanto fim em si mesma, já que é racional e possuidora de uma boa vontade, assim
como da liberdade de utilizar autonomamente sua razão prática. Cada pessoa constrói sua
personalidade, inerente a cada indivíduo (tornando-o único), e essa personalidade garante a
dignidade da pessoa humana. Para Kant, "a dignidade do homem consiste exatamente
nessa capacidade de ser universalmente legislante, ressalvada a condição de estar ao
mesmo tempo submetido a exatamente essa legislação" (ibid., p. 285).
Pode-se aplicar a fórmula da humanidade em alguns exemplos já anteriormente
utilizados para a primeira formulação do imperativo categórico (a fórmula da lei universal,
da universalização das máximas). Podemos dizer, assim, que uma pessoa, ao prometer
falsamente, não está respeitando a dignidade da outra pessoa, e assim não está tomando a
humanidade como um fim, mas como um mero meio. Deste modo, a falsa promessa é
imoral, visto que não condiz com o tratamento adequado da humanidade como fim em si
mesmo. Também no exemplo do suicídio pode-se pensar que o indivíduo não toma a
humanidade como fim em si mesmo, sendo assim considerado como eticamente
condenável (por mais que seja possível pensá-lo como juridicamente permitido, de modo a
não ser uma proibição necessariamente moral, mas apenas ética).
228
Kant também trata da dignidade da pessoa na Metafísica dos Costumes. Mais
especificamente na Doutrina do Direito, observamos que tal dignidade é respeitada mesmo
no que tange ao direito privado, no caso, o da posse jurídica de uma pessoa. Ao distinguir
"posse"76 (Besitz) de "uso" (Gebrauch) (id., 2008, p. 121), Kant encontra uma possível
saída para como seria possível, ao mesmo tempo, ter um direto sobre uma pessoa como
coisa (no caso dos direitos de matrimônio77, dos pais e do chefe do lar) e usá-la como
pessoa, isto é, respeitando sua condição de fim em si mesmo (dotada de dignidade).
Por mais que tal distinção seja suficiente para resolver o problema, para Otfried
Höffe:
É verdade que Kant não considera o cônjuge, os filhos e o pessoal da casa como
uma "posse"; só é lícito dispor livremente de coisas materiais; nenhum ser
humano é "proprietário de si mesmo..., e muito menos ainda de outras pessoas"
(§ 17); mas eles fazem parte dos "bens" (§ 4); um cônjuge que foge sempre pode
ser buscado pelo outro, "como uma coisa" (§ 25) (HÖFFE, 2005, p. 245).
Kant faz uma distinção entre "ser seu próprio senhor " e ser "proprietário de si
mesmo" (KANT, op. cit., p. 115). Deste modo, a primeira condição não implicaria
necessariamente a segunda. Deste modo, como Höffe sublinha, não seria possível ser
proprietário de outras pessoas, uma vez que não seria nem mesmo o seu próprio
proprietário, "posto que é responsável pela humanidade em sua própria pessoa" (op. cit.).
Isto é, não se pode dispor de si do modo como lhe agrade, porque deve respeitar sua
própria humanidade. Considerar-se-ia, assim, a importância do conceito de "uso" dado por
Kant (e sua diferença do de "posse"), uma vez que através dele seria respeitada a
humanidade em questão. Dada esta explicitação, pode-se seguir agora o curso proposto
nesta comunicação.
76
Acerca do conceito de posse, é interessante ressaltar que "Kant distingue duas espécies de posse, que ele
chama de posse 'fenomenal' e posse 'noumenal' (ou 'inteligível')" (WOOD, op. cit., p. 207). A posse
fenomenal se daria através de um contato corporal imediato (por exemplo, uma mão que está ligada a um
corpo, sendo posse de uma determinada pessoa). A posse inteligível, por sua vez, se daria partindo de um
conceito puro do entendimento. A noção de propriedade (Eigentum) em Kant depende da posse inteligível.
77
Não obstante, ainda restaria uma abordagem mais profunda para apurar, em especial no exemplo do
matrimônio, se e como ambos os cônjuges poderiam utilizar-se mutuamente e ainda assim garantir a
dignidade.
229
A TEORIA DA JUSTIÇA DE RAWLS
Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o
bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça
nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior
partilhado por todos (ibid., p. 4).
78
Posição original e véu de ignorância são, de fato, coisas distintas. O véu de ignorância é uma das possíveis
caracterizações da posição original (que, em termos contratualistas, é uma posição hipotética), sendo, para
Rawls, a melhor caracterização, uma vez que garante à concepção de justiça em questão imparcialidade.
79
"Pressupõe", no sentido que a sociedade existe independente da deliberação hipotética sobre princípios de
justiça. Ainda assim, pode-se pensar que os indivíduos que deliberadamente agem de acordo com os
princípios da justiça agem também de acordo com a posição original (por mais que hipotética) e com as
restrições que lhe são concernentes.
230
Como cada pessoa deve decidir com o uso da razão o que constitui o seu bem,
isto é, o sistema de finalidades que, de acordo com a sua razão, ela deve buscar,
assim um grupo de pessoas deve decidir de uma vez por todas tudo aquilo que
entre elas se deve considerar justo e injusto (ibid., p. 13).
Pode-se traçar uma comparação entre o que Rawls chama de "desinteresse mútuo",
e o conceito kantiano de autonomia. Ao pensar a justiça como equidade tal qual as pessoas
livres e racionais aceitariam os princípios da justiça escolhidos por todos em uma posição
original, admite-se que estas estariam preocupadas em promover seus interesses próprios,
isto é, sem interesse nos interesses dos demais. Para Rawls, "uma característica da justiça
como equidade é a de conceber as partes da situação inicial como racionais e mutuamente
desinteressadas" (ibid., p. 15), de modo que elas próprias escolheriam, sem influências
exteriores, os princípios da justiça. Ele próprio reconhece a possibilidade de tal analogia:
"podemos também observar que o pressuposto, no que concerne aos motivos, do
desinteresse mútuo, é paralelo à noção kantiana de autonomia (...)" (ibid., p. 278). Se
pensamos em pessoas mutuamente desinteressadas, como seria possível chegar ao ponto de
um indivíduo reconhecer o outro como um fim em si mesmo? Ora, encontra-se aqui uma
possível explicação na motivação moral teorizada por Kant. Para Kant, um indivíduo
reconhece o outro como fim em si mesmo na medida em que admite sua liberdade (e,
consequentemente, a possibilidade de sua autonomia). Entendendo o outro como
80
A distribuição da justiça se daria com a distribuição dos bens sociais primários: direitos, liberdades, renda,
riqueza e as bases sociais do autorrespeito.
81
A distribuição pode se dar de modo desigual, na medida em que seja aceitável também aos que possuem
menos liberdade, desde que o montante destinado aos menos favorecidos seja maior do que o montante
destinado a todos numa situação hipotética de igualdade. A exigência de iguais liberdades fundamentais é
mais importante do que a exigência de uma maior igualdade na distribuição da renda, riqueza e propriedade,
uma vez que o primeiro princípio possui maior prioridade que o segundo. Neste caso, a distribuição não
necessita ser estritamente igual, basta ser equitativa.
231
autônomo, considera-o como possuidor de uma dignidade, de tal modo que, através da
própria lei moral, no caso, o imperativo categórico, reconhece que não pode agir tomando
o outro como coisa (meio), pois aquele próprio é autônomo quanto ao uso de sua razão
prática, sua vontade. Com respeito daí derivado, os indivíduos mutuamente desinteressados
passariam a respeitar o papel de cada um na escolha dos princípios da justiça, em razão de
sua própria autonomia.
Os princípios da justiça, que para Rawls são definidos na posição original pelos
indivíduos (racionais, livres, e autônomos), seriam estabelecidos partindo de escolhas
destes.
Tais princípios, segundo Rawls, seriam82:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de
liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de
liberdades para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal
modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos
dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a
todos (ibid., p. 64).
Por mais que o segundo princípio também possua sua importância para a questão, é
no primeiro princípio da justiça que se assenta a mais nítida influência do conceito da
dignidade da pessoa de Kant. Uma vez que uma pessoa possui direitos iguais aos das
demais, possui consequentemente liberdades básicas equivalentes, já que, por não poder
estabelecer uma hierarquização dos valores das pessoas (uma vez que, por possuir
dignidade, cada pessoa é única), não se faz possível distribuir as liberdades de um modo
não equitativo. Por mais que Kant não trate de liberdades básicas, mas sim de uma
liberdade pura e simples, para se respeitar a dignidade dos demais indivíduos faz-se
necessário observar também a liberdade da vontade de cada um, já que, ao possuir tal
liberdade, por consequência pode possuir também autonomia, de tal modo que deva ser
tomado enquanto detentor de uma dignidade. O direto à liberdade, isto é, à não coerção
ilegítima por parte de outros, deveria ser garantido, para que seja respeitada a dignidade,
uma vez observada tal "qualidade humana de ser o seu próprio senhor (sui iuris), bem
como ser um ser humano irrepreensível (iusti)" (KANT, op. cit., p. 84), sendo que, antes de
realizar algum ato concernente a direitos, não causou dano a ninguém. Diz Kant:
82
Em função do desenvolvimento argumentativo de Rawls na Teoria da Justiça, é apresentada no parágrafo
46 a versão final dos dois princípios. Apesar disso, não há diferença significativa para o desenvolvimento do
presente trabalho tratar desta primeira versão.
232
A liberdade (a independência de ser constrangido pelo arbítrio 83 alheio), na
medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo com
uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens, em
virtude da humanidade destes (ibid., p. 83).
233
"agir com base nos princípios da justiça é agir com base em imperativos categóricos, no
sentido de que eles se aplicam a nós, quaisquer sejam os nossos objetivos particulares"
(ibid., p. 278).
Rawls considera, deste modo, que a posição original pode ser entendida como "uma
interpretação procedimental da concepção kantiana de autonomia, e do imperativo
categórico, dentro da estrutura de uma teoria empírica" (ibid., p. 281). Para ele, uma vez
que os indivíduos são de modo similar racionais e livres, cada um tem, assim, uma voz
igual na escolha dos princípios da justiça, que se darão para todos, sendo que "isso de
forma alguma anula os interesses da pessoa, como a natureza coletiva da escolha talvez
pareça sugerir" (ibid., p. 282).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, Rawls afirma ter se distanciado de Kant em vários aspectos, uma vez que
sua teoria trata de uma justiça mais no sentido social, enquanto o problema de Kant seria
outro. Não obstante, ainda assim podemos observar que, como era o objetivo desta
comunicação apresentar, o conceito de dignidade da pessoa humana teorizado por Kant é
levado em consideração na tese de Rawls, em especial se tratando da posição original (no
caso, do véu de ignorância) que sugere a autonomia dos indivíduos (através do desinteresse
mútuo), e dos princípios de justiça que, provenientes da escolha desses indivíduos
autônomos, guardam sua dignidade, através da manutenção das liberdades fundamentais.
REFERÊNCIAS
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini,
2ª ed. rev. Bauru, SP: Edipro, 2008.
______. (MS, RL): Die Metaphysik der Sitten. Mit einer Einleitung herausgegeben von Hans
Ebeling. Stuttgart: Reclam Universal-Bibliothek, 1990.
______. (GMS): Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Edição bilíngue, tradução de Guido
Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009.
______. Practical philosophy. Edited by Mary J. Gregor. Cambridge: Cambridge University Press,
1999.
234
______. (WA): Textos seletos. Traduções de Raimundo Vier e Floriano de Sousa Fernandes,
introdução de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. (Coleção Textos
Filosóficos).
RAWLS, John. A Theory Of Justice. Revised edition. Cambridge, Massachusetts: The Harvard
University Press, 1999.
______. (HMP): História da Filosofia Moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. (TJ): Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
WOOD, Allen. Kant – Introdução. Tradução de Delamar José Volpato Dutra. Porto Alegre:
Artmed, 2008.
235