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Américo Grisotto

Carlos Alberto Albertuni


Charles Feldhaus
(Organizadores)

ANAIS
V ENCONTRO DE EGRESSOS E ESTUDANTES DE
FILOSOFIA:
20 ANOS DO CURSO DE FILOSOFIA DA UEL
Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da
Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


E56a Encontro de Egressos e Estudantes de Filosofia (5 : 2013 : Londrina, PR).
Anais do V Encontro de Egressos e Estudantes de Filosofia [livro
eletrônico] : 20 anos do curso de filosofia da UEL, 30 de setembro
a 04 de outubro, Londrina, PR / Universidade Estadual de Londrina;
(organizadores) : Américo Grisotto, Carlos Alberto Albertuni e
Charles Feldhaus. - Londrina : UEL, 2014.
1 arquivo digital : il.
Disponível em: http://www.uel.br/col/filosofia/
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7846-251-2
1. Filosofia – Congressos. 2. Filosofia – Estudo e ensino – Congressos.
I. Grisotto, Américo. II. Albertuni, Carlos Alberto. III. Feldhaus, Charles.
IV. Universidade Estadual de Londrina. V. Título.
CDU 1(061.3)
Américo Grisotto
Carlos Alberto Albertuni
Charles Feldhaus
(Organizadores)

ANAIS

V ENCONTRO DE EGRESSOS E ESTUDANTES DE FILOSOFIA:

20 ANOS DO CURSO DE FILOSOFIA DA UEL

(Londrina, 30 de setembro a 04 de outubro de 2013)


Capa: Charles Feldhaus
Editoração: Charles Feldhaus
Revisão: Américo Grisotto

APOIO:
Mestrado em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina
Especialização em Filosofia Moderna e Contemporânea
Especialização em História e Filosofia da Ciência
Especialização em Filosofia Político-Jurídica

1
SUMÁRIO

PREFÁCIO
Maria Cristina Müller..............................................................................................5

RESUMOS

PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE AS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NO


PIBID DE FILOSOFIA DA UEL
Fernanda Scheel................................................................................................................10

TEORIA CAUSAL: DA LIBERDADE E INDETERMINISMO EM HUME


Thaís Poliana da Silva Ribeiro..........................................................................................11

O SIGNIFICADO DO AGIR MORAL EM KANT


Kelly Cristina dos Santos..................................................................................................12

HUME E DELEUZE: DA IMAGINAÇÃO À IMANÊNCIA


Diego de Souza Hirata...................................................................................................... 13

SE A ANGÚSTIA É O PESO DO SOFRIMENTO O AMOR É A REPARAÇÃO


Cleide Rosana Marquiori................................................................................................14

O CUIDADO EM HEIDEGGER E EM WINNICOTT


Guilherme Devequi Quintilhano.......................................................................................15

ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO E ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES


POSSÍVEIS DA PESQUISA DO ÚLTIMO FOUCAULT
Luiz Felipe Navas Podadeiras........................................................................................16

SCHOPENHAUER E AUGUSTO DOS ANJOS: MONÓLOGO DE UMA SOMBRA


ACERCA DO MUNDO COMO VONTADE E COMO REPRESENTAÇÃO
Camila Berehulka de Almeida.....................................................................................17

RELATO DE EXPERIÊNCIA: A FILOSOFIA COMO FATOR PARA PENSAR A


FUTURA PROFISSÃO
Bruno Vinicius Brandino...............................................................................................18

RELATO DE EXPERIÊNCIA NO ENSINO DE FILOSOFIA E A CRÍTICA DE


HEIDEGGER À METAFÍSICA PLATÔNICA
Vanessa dos Santos Oliveira...........................................................................................19

2
LUDWIG WITTGENSTEIN: OS JOGOS DE LINGUAGEM E A QUESTÃO DA
DÚVIDA
Leandro Sousa Costa
Bortolo Valle........................................................................................................................20

A SUBJETIVIDADE EM AUGUSTO COMTE


Sergio Tiski........................................................................................................................ 21

PRÁTICA DOCENTE NO ENSINO MÉDIO: A OLIMPÍADA DE FILOSOFIA


COMO EXPERIÊNCIA DE ENSINO E APRENDIZAGEM
Anderson Souza Oliveira e Yuri José Victor Madalosso.....................................................22

TEXTOS COMPLETOS

O ENSINO DE FILOSOFIA COMO “QUESTÃO CLÁSSICA” - NA TRADIÇÃO


DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Filipe Ceppas.......................................................................................................................24

ÁGORA VIRTUAL: A FILOSOFIA NA CIBERCULTURA


Vanderson Ronaldo Teixeira.................................................................................................34

O GRUPO PRÁTICO DE DESLOCAMENTOS E A CONSOLIDAÇÃO DAS


ESTRUTURAS COGNITIVAS
Vicente Eduardo Ribeiro Marçal.........................................................................................46

CONCEPÇÕES SOBRE O CONCEITO DE INTENCIONALIDADE NO ÂMBITO


ESCOLÁSTICO E FENOMENOLÓGICO
Edsel Pamplona Diebe.........................................................................................................58

A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA DE ARISTÓTELES: PRÁTICA, CARÁTER E O


MÉRITO
Leonardo Cosme Formaio................................................................................................66

FILOSOFIA EM EDUCAÇÃO DAS SÉRIES INICIAIS: RETORNO AO ESPANTO


E À CRIATIVIDADE
Fernanda Martins de Oliveira...........................................................................................75

O SENTIMENTO DO MUNDO: FICHTE E O PROBLEMA DA AFECÇÃO


Glauber Cesar Klein............................................................................................................83

O CULTIVO DE SI EM HUMANO DEMASIADO HUMANO


Jordan Pagani.....................................................................................................................95

BIOPODER E RACISMO DE ESTADO EM FOUCAULT


Fabio Batista......................................................................................................................105

3
SARTRE: RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E LITERATURA
Ester da Silva Gomes......................................................................................................114

MICHEL FOUCAULT E A BIOPOLÍTICA: UMA ANÁLISE REFLEXIVA


Fernanda Ramos Leão.................................................................................................. 120

ANALÍTICA DO PODER EM MICHEL FOUCAULT: DO PODER À


BIOPOLÍTICA
Franco Pereira Leite........................................................................................................129

A EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E OS DIREITOS DO HOMEM EGOÍSTA: MARX


E A SOCIEDADE MODERNA
André Ferreira...................................................................................................................142

CONSIDERAÇÕES FREUDIANAS ACERCA DA FELICIDADE


Weisell Gomes Neves..........................................................................................................150

FACTICIDADE E DIFERENÇA: ELEMENTOS DE FILOSOFIA DA


LINGUAGEM E FILOSOFIA DO DIREITO EM HABERMAS E DERRIDA
Lucas Antonio Saran
Rogério Cangussu Dantas Cachichi...................................................................................158

O DIREITO MODERNO E A INCLUSÃO DO OUTRO NAS SOCIEDADES


COMPLEXAS SEGUNDO HABERMAS
João Paulo Rodrigues........................................................................................................170

O HOMEM COMO FUNCIONÁRIO E FUNDO-DE-RESERVA:


TÉCNICA MODERNA EM HEIDEGGER E FLUSSER
Maurício Fernando Pitta...................................................................................................183

ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS DA FILOSOFIA DE JOHN DEWEY


Marileide Soares de Lima..................................................................................................195

INFERÊNCIA DA MELHOR EXPLICAÇÃO ANTE A PERSPECTIVA DO


EMPIRISMO CONSTRUTIVO DE VAN FRAASSEN: UM DEBATE ENTRE
REALISMO E ANTIRREALISMO.
Debora Domingas Minikoski.............................................................................................207

TEMPORALIDADE E ETERNO RETORNO:LIBERDADE EM FRIEDRICH


NIETZSCHE
Silmara Aparecida Villas Bôas...........................................................................................216

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM KANT RELACIONADA À TEORIA


DA JUSTIÇA DE RAWLS
Emanuel Lanzini Stobbe..................................................................................................................225

4
PREFÁCIO

Essa coletânea reúne os trabalhos apresentados durante o V Encontro de


Egressos e Estudantes de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina e II Encontro de
Dissertações em Andamento de Filosofia – EDAF –, realizado nos dias 30 de setembro a
04 de outubro de 2013, no Anfiteatro Maior do Centro Letras e Ciências Humanas da UEL.

O Encontro de Egressos e Estudantes de Filosofia de 2013 comemorou os 20


Anos de reativação do Curso de Graduação em Filosofia da UEL, festejou a consolidação
do Curso e reverenciou aqueles que fizeram parte de sua construção prestando-lhes
homenagem. O evento objetivou refletir sobre os desafios que o Curso de Graduação em
Filosofia apresenta ao final desses 20 anos. Entendeu-se que essa tarefa se fez
imprescindível para projetar o futuro do Curso uma vez que refletir sobre o presente
ilumina tanto o passado quanto o futuro. Para entender o presente é necessário inicialmente
contar a história do curso de Filosofia da UEL percebendo sua identidade e traçando
projeções para os próximos 20 anos.
A história da Filosofia na UEL se mistura à história da própria Universidade. A
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Londrina foi criada em 1956 e iniciou suas
atividades em 1958. Dez anos depois, a antiga Faculdade foi transformada em
Universidade; inicialmente foi criada a Universidade Estadual de Londrina como uma
Fundação e somente em 1991 foi transformada em Autarquia. A contribuição da Filosofia
era oferecida, em geral, através da disciplina Introdução à Filosofia nos vários Cursos
existentes.

Em 1972, construiu-se o projeto de um Curso de Filosofia contendo um currículo


mínimo, número de vagas, duração e regime do curso. No Primeiro Semestre de 1973
determinou-se a realização do vestibular com oferta de 40 vagas. O Curso de Filosofia
estava aberto. No entanto, logo a seguir, a direção da Universidade não abriu novas vagas e
os poucos alunos que estavam matriculados no recém-criado curso foram aconselhados a
migrar para outros cursos. Em 1976, o Curso de Filosofia deixou de receber matrículas e
foi considerado desativado. Não se pode negligenciar o fato de que o Brasil estava em

5
plena Ditadura Militar e cidadãos críticos não eram desejados por um regime autoritário. A
Filosofia passou novamente a fazer parte apenas das disciplinas introdutórias dos vários
cursos existentes na Universidade.

A partir da década de 1980, com a paulatina redemocratização política do país, a


vontade de reativar o Curso de Filosofia foi colocada em pauta. A Filosofia e os
Professores de Filosofia, na época, pertenciam ao Departamento de História; constituíam a
Área de Filosofia no Departamento de História. A primeira ação para a reativação do
Curso de Filosofia consistiu no desmembramento do Departamento de História e a criação
de um Departamento próprio, o Departamento de Filosofia.

Nos primeiros anos de existência do Departamento de Filosofia, a responsabilidade


permanecia na oferta de disciplinas introdutórias à Filosofia ministradas nos diversos
Cursos de Graduação e no Curso de Especialização em Filosofia Brasileira, que atendia aos
mais diversos profissionais sedentos pelas reflexões filosóficas em suas áreas de atuação.
Com a existência de um Departamento próprio e a consolidação de um corpo docente
pequeno, porém interessado na inserção da Filosofia no Paraná, o desejo de criação de um
Curso de Graduação em Filosofia foi inevitável. Começava o trabalho de construção de um
novo projeto de Curso de Graduação em Filosofia.

A Universidade não foi unânime na criação de uma Graduação em Filosofia e


muitas foram as discussões até se alcançar a aprovação. O Conselho que aprovava os
novos cursos tendia à não aprovação; no entanto, atentou-se que não se tratava de um novo
curso, mas da reativação de um curso existente que se encontrava desativado.

Finalmente no dia 24 de junho de 1992 foi reativado o Curso de Graduação em


Filosofia. O vestibular foi realizado em janeiro de 1993 e em fevereiro iniciaram as
atividades letivas do Curso de Graduação – Licenciatura em Filosofia. A primeira turma
concluiu o curso em 1996. Com o objetivo de “Desenvolver a crítica interpretativa e
conceitual de maneira radical e lógica nas mais diversas áreas da sociedade e capacitar
professores para o ensino médio e superior”, o Curso formou em torno de duzentos e
cinquenta – 250 –Licenciados em Filosofia nesses 20 anos. Atualmente o Curso conta com
180 alunos matriculados.

Ao longo desses 20 anos de Reativação do Curso, novas e importantes conquistas


se consolidaram junto ao Departamento de Filosofia. Muitos Concursos Públicos para a
contratação de Professores Efetivos foram realizados; hoje o Curso conta com um Corpo

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Docente Efetivo de vinte e quatro – 24 – Professores e três – 3 – Professores
Colaboradores. Há três – 3 – cursos de Especialização Lato Sensu em pleno
funcionamento, são elas: Especialização em Filosofia Política e Jurídica; Especialização
em Filosofia Moderna e Contemporânea: aspectos éticos e políticos; Especialização em
História e Filosofia da Ciência. Em 2010, abriu-se o Programa de Pós-Graduação em
Filosofia – Mestrado – o que veio a consolidar a vocação do Departamento para a pesquisa
e a formação de novos pesquisadores em filosofia. Nesta data, o Departamento de Filosofia
conta com dezenove – 19 – Projetos de Pesquisa, dois – 2 – Projetos de Ensino e um – 1 –
Projeto de Extensão em andamento, com uma produção relevante que caminha a largos
passos.

Vários Eventos Acadêmicos de Extensão são realizados anualmente com a


participação da comunidade externa e com a vinda para Londrina de pesquisadores
nacionais e estrangeiro de renome e importância. Com um espírito aguerrido foi realizado
no ano de 2013 o V Encontro de Egressos e Estudantes de Filosofia da UEL e II Encontro
de Dissertações em Andamento de Filosofia e constituiu-se um espaço de discussão, de
debate e de troca de saberes nas diversas mesas e salas de comunicações. Além do espaço
para a disseminação das pesquisas e das práticas docentes, pretendeu-se reverenciar
aqueles que fizeram parte da construção do Departamento e lhes prestar uma homenagem,
singela, mas quiçá significativa. Pretendeu-se fazer aquilo que é considerado a vocação da
Filosofia, isto é, colocar interrogações e partilhar um mundo comum com um pouco mais
de sabedoria, uma vez que se ousou querer amar o saber.

A temática do V Encontro de Egressos e Estudantes de Filosofia da UEL e II


Encontro de Dissertações em Andamento de Filosofia se concentraram na discussão sobre
o ensino de filosofia, o que se fez notar nas conferências de professores convidados e no
Fórum de Avaliação do Curso de Filosofia da UEL. O evento contou com a participação
de conferencistas da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da própria Universidade Estadual de
Londrina (UEL). Apesar da ênfase sobre o ensino de filosofia, variados foram os temas
abordados nas sessões de comunicações. Além das conferências, a programação colocou
em movimento dois minicursos. Os Anais ora apresentados estão divididos em duas partes:

7
I – Resumos e II – Textos Completos. Os Resumos totalizam quatorze – 14– trabalhos
apresentados e os Textos Completos totalizam vinte – 20 – trabalhos apresentados.

Profª Drª Maria Cristina Müller


Departamento de Filosofia

8
RESUMOS

9
PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE AS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS NO
PIBID DE FILOSOFIA DA UEL

Fernanda Scheel
Universidade Estadual de Londrina
fernanda_scheel@hotmail.com

Ao deparar-se com uma sala de aula, professores sempre encontraram uma diversidade de
enfrentamentos e desafios a serem superados, para desempenhar seu papel de educador
com domínio e maestria. Atualmente encontram um quadro em relação ao qual não estão
preparados para realizar tarefas e lidar com situações que transformaram a sala de aula. O
professor assume múltiplas funções além de educador, torna-se administrador, psicólogo,
sociólogo. Trabalhando muitas vezes defronte à condições adversas em relação à
infraestrutura, materiais disponíveis, diversidade sociocultural, socioeconômica. Este tem
de se reinventar a cada dia para tornar suas aulas atrativas aos olhos dos alunos e da
própria instituição. Alcançar objetivos, traçar metas, planejar, encaixar-se em todas as
diretrizes e leis educacionais, fomentar o interesse dos alunos, encontrar meios de atingi-
los, estimulá-los, superando obstáculos como a realidade em que cada aluno está inserido.
Ser professor implica em fazer uso de todas as ferramentas possíveis, e da criação de novas
para realizar uma tarefa tão nobre, que é a de educar. Acredito que minha experiência no
PIBID, tem sido de extrema valia. Foi-me proposto que encontra-se uma maneira de
trabalhar com o ensino de filosofia de forma extracurricular, que chamasse atenção, que
atraísse, e estimulasse o interesse dos alunos pela matéria, e pelos conteúdos que são
ministrados em sala. Iniciei o projeto com um grupo de alunos que prontificou-se a
trabalhar filosofia por meio da música. Que após algumas reuniões com o supervisor,
opinamos por trabalhar com a música achando que seria uma abordagem versátil, leve,
jovial, envolvente, de modo a aproximar-se da realidade dos alunos. Nosso objetivo
principal era o de tornar o ensino menos maçante, espontâneo, e que nos aproximasse dos
alunos. Em grupo, nos dividimos, para que fosse possível trabalhar com todos os anos do
ensino médio. Fiquei responsável pelo segundo, que trataria dos temas relacionados à Ética
e Política. Dei início à pesquisa pelas músicas que pudessem estar relacionadas às aulas
previstas no planejamento, e para que esta procura se tornasse possível tive que estudar,
pesquisar todo conteúdo a ser desenvolvido. Assim, me aprofundando em assuntos,
filósofos, que passam por nós sem certa profundidade, pois não podem ser relacionados
aos nossos interesses pessoais, sem interferir na linha que decidimos seguir dentro da
graduação. Utilizamo-nos da música como facilitador do entendimento, esta também
ajudou-nos a simplificar os conteúdos que usualmente podem apresentar alguma
dificuldade na maneira de ser transmitido. Apesar da vaga experiência que tive, acredito
que o PIBID seja uma excelente forma de se conhecer a realidade encontrada hoje nas
escolas, não só pelo fato de poder adentrar a este ambiente mais cedo, e estarmos
respaldados por supervisores, mas também pelas trocas de experiências entre colegas, com
o supervisor. É muito válido e enriquecedor.

10
TEORIA CAUSAL: DA LIBERDADE E INDETERMINISMO EM HUME

Thaís Poliana da Silva Ribeiro


Universidade Estadual de Londrina
poliana.rocknroll@hotmail.com

Procurou-se nesse trabalho mostrar um suposto indeterminismo na teoria de David Hume


através de sua obra: Investigação Sobre o Entendimento Humano (1973), o auxílio de
alguns comentadores ajudaram a entender melhor o ponto a ser esclarecido. Entre vários
aspectos encontrados, nota-se que em relação aos processos naturais aparenta-se que esse
fenômeno ocorre de modo determinístico, em linhas gerais se entende por determinismo
ações onde o efeito se segue de uma causa, mas para Hume sobre tudo na teoria da
causalidade, observa-se que a possibilidade de um efeito ocorrer é a mesma dele não
ocorrer, é o individuo que sente a necessidade de fazer inferências de um objeto a outro,
como pode-se notar no exemplo da bola de bilhar, posso perfeitamente conceber que se a
primeira bola tocar em uma outra ela se mova, mas também compreendo que a segunda
pode ser tocada pela primeira e está não se mover. Busca-se evidenciar nesse trabalho que
Hume não assume um forte compromisso com o determinismo, e buscando responder
como é possível liberdade sabendo o efeito determinado das ações. Logo uma concepção
causal de liberdade possui certo indeterminismo.

11
O SIGNIFICADO DO AGIR MORAL EM KANT

Kelly Cristina dos Santos


Universidade Estadual de Londrina
santoskelly149@yahoo.com.br

A filosofia moral de Kant tal como é apresentada na Fundamentação da metafísica dos


costumes tem como propósito estabelecer o significado das ações com valor moral. Para
isso, Kant define que estas ações são praticadas por dever, por oposição às ações praticadas
por inclinação. Isto porque, de acordo com Kant, para seres racionais e finitos como o
homem a lei moral tem o caráter de imperativo, de cuja observância nenhum indivíduo
pode estar totalmente seguro de si. Deste modo, uma vez que segundo Kant todo ser
racional é capaz de evidenciar os princípios práticos que existem a priori na razão, mas
que por ser afetado constantemente por inclinações não é tão facilmente dotado da força
necessária para torná-los efetivos em seu comportamento, se faz necessário uma Metafísica
dos Costumes que investigue e esclareça a fonte de tais princípios práticos, não apenas por
motivos especulativos, mas também por oferecer uma norma para o seu correto
julgamento, um critério supremo de ajuizamento da moralidade, um padrão de medida.
Assim, na I seção da Fundamentação, Kant pretende esclarecer a partir duma análise do
senso moral comum o significado do agir moral oferecendo exemplos de ações que podem
ou não serem qualificadas como contendo valor moral, com o objetivo de tornar evidente a
noção de que as ações com genuíno valor moral são aquelas praticadas por dever, por
oposição às ações que são determinadas por inclinações. Daí a distinção entre ações de
acordo com o dever e ações por dever referidas no prefácio da Fundamentação: “aquilo
que deve ser moralmente bom, não basta que seja conforme a lei moral” (KANT, 2008,
p.16), sendo apenas morais aquelas ações que são praticadas pela lei moral. Sendo assim, o
foco deste trabalho é expor em que consistem segundo Kant as ações qualificadas como
contendo valor moral, de acordo com a ideia de que para seres racionais e finitos como nós
a moral tem de ter o caráter de imperativo, duma obrigação que o indivíduo impõe a si
mesmo de modo a ultrapassar suas inclinações naturais, ressaltando a noção kantiana de
que o desafio e o esforço individual são aspectos indispensáveis ao agir moral.

12
HUME E DELEUZE: DA IMAGINAÇÃO À IMANÊNCIA

Diego de Souza Hirata


Universidade Estadual de Londrina
hiratadi@hotmail.com

O objetivo deste trabalho será de esclarecer a relação da filosofia de Hume em parte de sua
teoria do conhecimento (impressão, ideia e imaginação) com o movimento do filósofo de
Deleuze. Para tanto, utilizarei a primeira Investigação e o Tratado da Natureza Humana de
Hume e a obra O que é a Filosofia? de Deleuze e Guattari. A teoria do conhecimento
humano de Hume pode ser dividida em duas espécies de percepções da mente, a saber, as
impressões e as ideias, sendo a primeira todas as percepções mais vivas e presentes à
sensibilidade do homem. Já as ideias são as percepções despertadas pelo raciocínio, pelo
pensamento. Ou seja, as ideias nada mais são que cópias de nossas impressões. São as
cópias das sensações que foram a nós proporcionadas pelo mundo dos sentidos. Portanto,
seguindo a tese de Hume sobre a diferença entre essas duas percepções pode-se afirmar
que jamais uma ideia surgirá em nossa mente sem que antes tenha passado por nossas
impressões, isto é, sem que antes as houvéssemos experimentado em nosso mundo, seja
por nossos sentidos externos ou sentimentos internos. Seguindo o mesmo raciocínio, ainda
segundo Hume podemos associar ideias advindas de diferentes impressões. Podemos
facilmente imaginar um objeto que na realidade, no mundo propriamente dito, não exista.
Como exemplo um cavalo alado. E o motivo de nossa imaginação facilmente construir tal
objeto em nossa mente é porque os objetos enquanto separados, cavalo e asas, são
conhecidos por nós. E apenas cabe à imaginação uni-los e nos dar a ideia de cavalo alado.
A hipótese que pretendo defender é de que Deleuze, conjuntamente com Guattari, faz uso
em sua filosofia desses três pontos centrais do conhecimento humeano para elaborar uma
espécie de síntese sobre qual seria o pensamento filosófico, isto é, qual é o movimento
realizado pelo filósofo na construção e manipulação de seus pensamentos. Deleuze, na
obra O que é a Filosofia? que escreve com Guattari, diz que o pensamento filosófico tem
como requisito três movimentos: a criação de conceitos, a invenção de personagens
conceituais e a instauração de um plano de imanência. No entanto, a invenção de personagens
conceituais não será objeto de minha pesquisa pela fraca ou, penso eu, nenhuma relação com meu
trabalho, portanto me limitarei à criação de conceitos e ao plano de imanência . Sendo assim,
apresento que Deleuze e Guattari seguem nesta obra, em certa medida, a mesma tese de
Hume quanto às impressões, como sendo as primeiras vias do conhecimento. E a criação
de conceitos nada mais é que, dentro de certos limites, a manipulação racional e singular
desse conhecimento, ou em termos humeanos, a própria ideia, cabendo à imaginação, em
Hume, preencher a mente com este conhecimento. Ou então, pode-se atribuir ao plano de
imanência de Deleuze o mesmo papel da imaginação.

13
SE A ANGÚSTIA É O PESO DO SOFRIMENTO O AMOR É A REPARAÇÃO

Cleide Rosana Marquiori


Universidade Estadual de Londrina
annatexto@hotmail.com

Para o filósofo Kierkegaard, a angústia depõe contra o homem, e o amor, a favor do


homem. Dentro do conceito de angústia em Kierkegaard, vive um homem com
sentimentos de culpa e tristeza; estes sentimentos estão impregnados dentro de seu espírito
e são as sobras da inquietude por quebrar a confiança em Deus, visto que o homem foi
criado para viver ao seu bel–prazer no paraíso, um local sagrado contendo tudo que fosse
necessário para uma vida harmônica e feliz. Mas Eva foi tentada pela serpente a comer a
maçã, o único fruto que Deus impôs como regra e limite. Adão, ao experimentar a maçã,
prova o gosto que, apesar de bom no primeiro momento, torna-se amargo quando se
conscientiza que descumpriu a ordem divina. Desta forma, a angústia surge como resultado
do primeiro pecado no mundo, uma inocente e curiosa mordida que leva o homem a
desobedecer a Deus. O peso do sofrimento se mostra quando Adão se arrepende, mas isso
não reduz o pecado cometido, apenas arrasta para sua existência uma grande culpa que o
enlouquece e aterroriza, repassando a todos os homens. Porém, o amor é de fato a outra
parte do homem, e segundo Kierkegaard, que menciona em “As Obras do Amor”, tal
sentimento está presente no homem antes da angústia. O amor é um dever consciente que
foi determinado por Deus, o amor edifica, purifica, frutifica, tudo crê sem se iludir.
Podemos averiguar que é quase em estado de resiliência, que o homem consegue
desenvolver a habilidade de persistir nos momentos difíceis, fazendo-se forte e cheio de
esperança; ele passa do estágio de lamento e dor para o de reparação. Assim, o amor
explica por que consegue superar e cobrir a multidão dos pecados, pois consegue dar
condições para enfrentar a dor e a tristeza. O amor é obediente e não se entrega a
curiosidades ou tentações, mas se fortalece e, portanto, tem o poder de cobrir a multidão
dos pecados; mesmo vendo e ouvindo o que não deseja ver e ouvir, ele cobre tudo ao se
calar e propagar de forma concisa, oferecendo o perdão. E por maior que sejam as
dificuldades e o gosto amargo das perturbações, o amor supera e produz frutos doces. “Ai
do homem por quem o escândalo chega; feliz daquele que ama, e que, recusando-se a
fornecer ocasião, cobre a multidão dos pecados!” (Kierkegaard, 2005, p.337).
Palavras-chave: pecado; multidão; culpa; reparação; amor; Kierkegaard.

14
O CUIDADO EM HEIDEGGER E EM WINNICOTT

Guilherme Devequi Quintilhano


Universidade Estadual de Londrina
guidevequi@hotmail.com

O presente trabalho tem o intuito de apresentar a questão sobre o cuidado em Martin


Heidegger, filósofo alemão e em Winnicott, psicanalista Britânico. Heidegger, em sua
principal obra, Ser e Tempo, fala de um ente que questiona sobre sua própria existência, o
Dasein. O cuidado unifica o Dasein na sua existência, facticidade e decadência. Ou seja,
Dasein é cuidado, pois tudo que se realiza é cuidado. Um fator determinante na questão
sobre o cuidado é saber distinguir aquilo que me angustia daquilo que eu tenho medo. O
medo é sempre um ente intramundano, por exemplo, um cachorro, pois é possível apontar
e dizer do que se tem medo, já a angústia, encontra-se em lugar nenhum. Outro ponto de
destaque é que, o cuidado na teoria heideggeriana possibilita o querer, por preceder e
deixar a possibilidade do querer aberta. Toda esta investigação para o filósofo
contemporâneo é vista de modo originário, ou seja, parte de sua fenomenologia
hermenêutica. Tanto Heidegger quanto o psicanalista Winnicott, partem da ideia de que,
nascemos do nada e partimos para o nada. Mas onde vivemos tem uma diferença, a saber,
o ser-no-mundo em Heidegger e o ambiente em Winnicott. Para o psicanalista Britânico o
cuidado parte do não-ser para o ser onde o outro (no caso, a mãe) ajuda esse não-ser a se
constituir enquanto ser, até chegar ao ponto onde ele pode questionar sobre sua própria
existência. Aparentemente as teorias podem se relacionar muito bem, pois Winnicott parte
do nascimento (não-ser) para o ser e em Heidegger esse cuidado o constitui como tal. Mas
existe uma diferença entre as teorias, a saber, enquanto o filósofo alemão trata tal questão
no sentido ontológico, por tratar do ser do ente, o psicanalista Britânico, ao partir do não-
ser, realiza uma investigação no sentido ôntico. Ou seja, entre as duas teorias, existem
aproximações e distanciamentos que vão ser tratados durante este trabalho.

15
ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO E ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES
POSSÍVEIS DA PESQUISA DO ÚLTIMO FOUCAULT

Luiz Felipe Navas Podadeiras


Universidade estadual de Londrina
podadeiras@gmail.com

Foucault observou que as escolas produziam um tipo de sociedade disciplinada


formalmente e conforme um molde geral, onde quem foge do modelo imposto pelo
disciplinamento acaba sendo punido, percorrendo assim um caminho cuja formação
consiste, de fato, em conformação. Deste modo, ao indicar o disciplinamento como método
de dominação da sociedade, desembocou no conceito de “tecnologia política” refletindo no
ensino escolar como forma de controlar o indivíduo levando-o à passividade, mas, por
outro lado, nos ofereceu instrumentos que nos ajudam a resistir a este estado de coisas.
Assim, o que Foucault parece nos recomendar em suas pesquisas sobre o tratamento de si
para consigo é que as pessoas ousem construir para si uma vida bela, o que implica uma
ocupação na modificação e na transformação constante das pessoas, voltada para uma
técnica do viver em que sejam possíveis outras iniciativas, inclusive e principalmente a da
potencialização destas mesmas pessoas. Para Foucault a escola, como estratégia de
resistência, seria um espaço para perspectivas livres e criativas construídas no encontro dos
educandos com sua formação. De deste modo, o ensino de filosofia poderia consistir numa
iniciativa que se encaminhasse muito mais para a avaliação e problematização dos modos
de existência do que para os esforços adaptativos frente às recomendações oficiais, que ao
tornar inócuos os nossos esforços, bem como a nossa efetiva atuação na constituição de
outros modos de existência, faz com que nos adaptemos passivamente ao fascismo
capitalista. O cuidado de si na escola seria uma forma de colocar os alunos frente a essas
questões. Portanto, recorrendo às certas contribuições presentes nas últimas pesquisas de
Foucault, a presente comunicação – que consiste em algumas leituras iniciais do pré-
projeto do PROIC Ensino de Filosofia no Ensino Médio e as contribuições do último
Foucault tem como objetivo pensar o ensino de filosofia como forma de resistência aos
moldes escolares do disciplinamento e do controle apontando linhas de fuga aos modelos
escolares que nos são impostos atualmente.

16
SCHOPENHAUER E AUGUSTO DOS ANJOS: MONÓLOGO DE UMA
SOMBRA ACERCA DO MUNDO COMO VONTADE E COMO
REPRESENTAÇÃO

Camila Berehulka de Almeida


Universidade Estadual de Londrina
schopanjos@outlook.com

Este trabalho tem o intuito de apresentar uma leitura do poema Monólogo de uma Sombra
do poeta brasileiro Augusto dos Anjos à luz da obra O Mundo como Vontade e como
Representação do filósofo Arthur Schopenhauer. A leitura buscará na poesia de Augusto
dos Anjos, as influências da filosofia schopenhaueriana, como é possível constatar no
poema O Meu Nirvana em que Augusto dos Anjos relata o momento de criação artística –
no caso um relato do poeta – onde a redenção temporária oferecida pela Arte é descrita
como a “manumissão” de Schopenhauer. Além das referências de outros poemas do único
livro do poeta intitulado Eu, que podem justificar essa apresentação, temos a citação do
crítico de arte Anatol Rosenfeld, de sua obra Texto/Contexto, onde é dedicado um capítulo
à análise da poesia de Augusto dos Anjos, dizendo que alguns poemas são “inimagináveis
sem a assimilação do pensamento do filósofo alemão”, devido a influência do filósofo
sobre o poeta, que afigura-se “mais profunda do que a de Haeckel e Spencer”. Seguindo
essa linha de raciocínio foi escolhido o poema Monólogo de uma Sombra que se alia à tese
de Schopenhauer sobre o conhecimento submetido ao princípio de razão, que não adentra à
essência dos fenômenos do mundo, mas percebe somente a fugacidade da existência dos
objetos, bem como o próprio corpo; à Vontade, que nos indivíduos se manifesta como
ímpeto, movimento do corpo, bem como a satisfação das necessidades e quereres –
submetida ao princípio de razão suficiente, sempre interessada em conhecer o mundo para
satisfazer-se, e portanto, sobre o que escreve Schopenhauer no livro III de O Mundo...: a
Arte é a possibilidade de por ela encontrar um alívio momentâneo para a dor advinda da
roda dos quereres e necessidades que gira incessantemente.

17
RELATO DE EXPERIÊNCIA: A FILOSOFIA COMO FATOR PARA
PENSAR A FUTURA PROFISSÃO

Bruno Vinicius Brandino


Universidade Estadual de Londrina
brunovini0014@gmail.com

O texto irá relatar as experiências desenvolvidas, nas atividades executadas no primeiro


ano do Projeto Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), instituído pelo
Ministério da Educação e gerenciado pela Capes. O programa tem sido desenvolvido na
Universidade Estadual de Londrina desde agosto de 2010, junto ao subprojeto em
Filosofia, que tem por objetivo a inserção dos discentes no Ensino Médio, e uma melhor
qualificação dos mesmos. A experiência ocorre na instituição de ensino CEEP Professora
Maria do Rosário Castaldi, na Semana de Humanidades do mesmo. O objetivo da semana é
problematizar temas da atualidade por meio de oficinas pedagógicas e de atividades
culturais, para buscando ligar a compreensão crítica dessas temáticas, devidamente
relacionadas, às dificuldades enfrentadas pela juventude na atualidade. Aos alunos foi
apresentado um questionário com perguntas que haviam como proposta investigar a
escolha dos alunos referente à suas futuras profissões. A filosofia entra nesse debate,
polêmico para este público, quando se diz respeito das escolhas, visto que suas implicações
são morais. Outro ponto que nos faz questionar a respeito da influência que sofrem os
estudantes que determinam suas escolhas, sejam elas sociais, de aspecto escolar, familiar,
religioso, ou financeiro, visando um futuro ganho econômico afim de um melhor status
social, também podendo ser elas psicológicas, caso a escolha da profissão se dê por
afinidade dos mesmos com uma determinada área de interesse. Assim temos com essas três
prerrogativas um campo rico de estudo. Como resultado de tal esforço se tem a filosofia
aplicada aos alunos, o desenvolvimento de suas capacidades, como a de ser crítico,
segunda a capacidade de reflexão, ou seja, o pensar quais fatores exercem influências sobre
suas escolhas e a terceira capacidade, conceber indivíduos autônomos. No âmbito
pedagógico e por sua vez também filosófico cabe à filosofia desenvolver capacidades nos
educandos com o objetivo de os tornarem críticos frente ao mar de possiblidades que os
influenciam, sejam estas para bem ou para mal.

18
RELATO DE EXPERIÊNCIA NO ENSINO DE FILOSOFIA E A CRÍTICA DE
HEIDEGGER À METAFÍSICA PLATÔNICA

Vanessa dos Santos Oliveira


Universidade Estadual de Londrina
vane.riot@hotmail.com

O presente trabalho tem como objetivo, em um primeiro momento, relatar a experiência


vivida em sala de aula, como participante do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação
à Docência (PIBID). Acredito serem muitas as barreiras que precisam ser ultrapassadas
pelo professor para que com criatividade e muita força de vontade se possa dar de maneira
proveitosa e criativa o ensino de Filosofia. A aula de estética em Platão foi trabalhada com
os alunos do terceiro ano na Escola Estadual Benedita Rosa Rezende, na cidade de
Londrina, no Estado do Paraná, visando promover uma reflexão do assunto da arte versus
conhecimento, utilizando como eixo central o filósofo platônico. O método utilizado se
baseou no estudo de um artigo promovido pelo supervisor do projeto, Vanderson Ronaldo
Teixeira, método esse que busca desenvolver um plano de aula e colocá-lo em prática de
modo significativo e criativo, rompendo com os modelos transmissivos tradicionais. O
exemplo de plano de aula diário possuirá quatro passos, são eles: passo 1, mobilização
(primeiras ideias); passo 2, problematização (ideias provocativas); passo 3, investigação
(investigando ideias); e por último, no passo 4, a criação conceitual (ampliando ideias).
Passado esse primeiro momento onde irei relatar essa experiência dentro do assunto artes
versus conhecimento em Platão, desenvolverei a crítica que Heidegger faz a Platão. A
partir da metafísica estabelecida por Platão há um afastamento entre o ser, a arte e a
verdade visto que, de acordo com o pensamento platônico, a arte passa a imitar aquilo que
seria a verdade, essa que por sua vez pode ser encontrada apenas no mundo das ideias. O
conceito de ideia estabelecido por Platão passa a considerar aquilo que se encontra no
mundo sensível como errôneo e contrário à verdade, com isso a arte passa também a ser
considerada uma ilusão, chegando às últimas consequências com a teoria platônica, onde
deveria ocorrer a expulsão dos poetas da pólis. A história da metafísica iniciada na Grécia
clássica promoveu um ocultamento do ser perante o ente, ou seja, o ser passa a se
confundir como ente, manifesta-se assim uma visão implícita do ser.
.

19
LUDWIG WITTGENSTEIN: OS JOGOS DE LINGUAGEM E A QUESTÃO DA
DÚVIDA
Leandro Sousa Costa
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Bortolo Valle
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
leandro_kallas@hotmail.com

Este trabalho tem por objetivo apresentar algumas considerações sobre o papel da dúvida
na filosofia tardia de Wittgenstein. Sua filosofia apresenta-se em dois momentos distintos.
O primeiro momento volta-se para uma orientação sintático-semântica da linguagem já o
segundo momento volta-se para uma orientação pragmática da linguagem onde, certeza e
duvida terão seus desdobramentos a partir dessa perspectiva. Nesse sentido, certeza,
linguagem e dúvida estarão numa intrínseca relação. A certeza está inseparavelmente
ligada à nossa condição de humanos pois forma uma estrutura conceitual que instala-se em
nós. Através dela, molda-se o nosso conjunto de crenças. Esse suporte cognitivo nos
permite aplicar as regras no jogo de linguagem. O contexto sócio-cultural, por meio de
suas convenções primitivas e atuais nos permite organizar nosso sistema de crenças básicas
que se tornarão fundamento da nossa cognição. Através delas habilitamos os nossos jogos
de linguagem e, com isso, podemos lançar mão das inúmeras ferramentas disponíveis em
nossa linguagem, entre elas a dúvida. A dúvida ocorrerá somente quando houver elementos
suficientes para pressupô-la. É através do nosso conjunto de certezas que suscitaremos
questionamentos. A certeza é o fator básico para a construção de um sistema cognitivo de
crenças fundamentais, que se forma através da linguagem em um contexto. A dúvida, para
Wittgenstein, traduzida por expressões características de: “pensar”, “saber”, “crer”, não irá
designar qualquer tipo de processo interior, pois o ato de duvidar só poderá ser
compreendido na práxis cotidiana da linguagem. Ela, de fato, terá sentido apenas no jogo
de linguagem. Através disso, podemos aplicar a dúvida que, em certos jogos de linguagem
terá sentido, em outros não. Para o filósofo, usar expressões que, em sua gênese, remetem-
se à questão da dúvida só será possível e permitido em alguns jogos de linguagem. Pois só
é possível haver conhecimento onde a dúvida, de fato, tenha sentido. O que o filósofo quer
mostrar é que a dúvida torna-se legítima e ganha sentido, somente em uma estrutura em
que ela não é objeto de dúvida.

20
A SUBJETIVIDADE EM AUGUSTO COMTE

Sergio Tiski
Universidade Estadual de Londrina
sertis@uel.br

O objetivo deste trabalho é proporcionar uma introdução à questão da subjetividade em


Comte, propositor de uma moral científica, ao mesmo tempo teórica ou moral
propriamente dita e prática ou educação, fundador da sociologia científica e da filosofia
positiva ou positivismo, e fundador de uma religião anti-sobrenaturalista, a religião da
humanidade. Comte nasceu em Montpellier, a 19/1/1798, e faleceu em Paris, a 5/9/1857.
Passou por uma emancipação em relação ao catolicismo e ao monarquismo aos 14 anos;
por uma conversão ao relativismo e consequente anti-absolutismo (e anti-
sobrenaturalismo) aos 19; por um período de loucura inclusive com tentativa de suicídio
entre os 28 e os 30; por uma conversão artística aos 40; por uma conversão sentimental ou
moral aos 47; pela fundação da sua religião aos 50; pela afirmação da necessidade de
superar a própria ciência e a própria medicina aos 59. Com relação às suas obras, as
principais são as seguintes: Curso (6 volumes: 1830-1842); Discurso sobre o espírito
positivo (1844); Sistema de política positiva. (4 volumes: 1851-1854); Catecismo
positivista (1852); Apelo aos conservadores (1855); Síntese subjetiva – Vol. 1: Sistema de
lógica positiva ou tratado de filosofia matemática (1856). Ao contrário do que
normalmente se pensa, o Comte definitivo não é objetivista. A moral, que Comte afirma,
desde o final do Curso, dever ter a supremacia, e que ele elevou à 7ª e suprema ciência, a
partir de 12/1850-1/1851, já aparecia desde suas primeiras cartas contemplando, apesar de
que muito ambiguamente, também a subjetividade. O seu relativismo, desde 1817, já
continha o subjetivismo. Desde a primeira lição de biologia do Curso, escrita em 1836,
Comte já prometia a conciliação dos métodos objetivo e subjetivo. A afirmação explícita
de que só é possível síntese subjetiva apareceu no Discurso, que resume o Curso. A
inflexão sentimentalista propiciada pela experiência de amor com Clotilde de Vaux (1844-
1846) acentuou essa explicitação. Na Introdução fundamental do Sistema I, Comte diz que
o quadro antropológico que confeccionou a partir de 1846, e que a partir de 1854 se tornou
a "lei" para a moral e para a educação (assim como a lei dos 3 estados é a lei para a
sociologia), é subjetivo, uma teoria subjetiva do cérebro ou alma; e que essa teoria
subjetiva já o guiou na confecção do Discurso preliminar (1848), no qual aparece pela
primeira vez a religião comtiana. Finalmente, o último conjunto de tratados iniciado por
Comte, com o método subjetivo tornado método supremo, foi chamado justamente de
Síntese subjetiva (Segundo ele o Curso foi objetivo, o Sistema subjetivo e objetivo, e a
Síntese subjetiva, enfim, essencialmente subjetiva). “Subjetivo”, “subjetividade”,
“subjetivismo”, para Comte, quer dizer da interioridade dos indivíduos e, sobretudo, da
perspectiva do sujeito, isto é, do homem, da humanidade. Quer dizer que tudo é relativo ao
homem, sujeito em relação à realidade como objeto. Mesmo sendo objetivo, o
conhecimento humano é sempre subjetivo. Então, no conhecimento, para Comte,
“objetivismo” é acento e anterioridade das coisas, e “subjetivismo” do humano.
Palavras-chave: subjetividade; Augusto Comte; filosofia positiva; educação

21
PRÁTICA DOCENTE NO ENSINO MÉDIO: A OLIMPÍADA DE FILOSOFIA
COMO EXPERIÊNCIA DE ENSINO E APRENDIZAGEM

Anderson Souza Oliveira e Yuri José Victor Madalosso


Universidade Estadual de Londrina
andersonolly@live.com/joseph.requiem@gmail.com

O objetivo de nosso trabalho é expor a experiência de campo proporcionada pelo grupo do


PIBID de 2011 em sua primeira organização de uma Olimpíada de Filosofia no Colégio
Estadual Benedita Rosa Rezende, em Londrina, Paraná, onde são realizadas as práticas de
docências de nosso grupo, no qual se tem como supervisor o professor Vanderson Ronaldo
Teixeira. Pretende-se, com efeito, elucidar e mostrar, além de fundamentar com dados
estatísticos e relatos de experiência, as consequências positivas da Olimpíada para o ensino
de filosofia no ensino médio. A olimpíada, pois, foi voltada para os alunos do ensino
médio (1º, 2º e 3º anos do ensino médio). Tal olimpíada foi dividida em três fases, a saber,
a primeira de perguntas objetivas sobre os temas filosóficos de cada série (no 1º ano: Mito
e filosofia e Teoria do conhecimento; no 2º ano: Ética e Filosofia Política e no 3º ano:
Estética e Filosofia da Ciência), a segunda uma prova dissertativa sobre estes mesmos
conteúdos estruturantes para a segunda fase, e por fim, na terceira fase, elaboramos uma
avaliação oral argumentativa sobre os já citados conteúdos. Antes, porém, da realização da
Olimpíada de Filosofia houve uma trajetória iniciada pelo grupo PIBID - 2011 para estudar
e diagnosticar as melhores práticas docentes e atividades para o contexto escolar em que
estamos inseridos. Isto foi efetivado através de uma pesquisa de campo de caráter
quantitativo e qualitativo realizada em 2011. Dito isso, vale-se ressaltar os processos
institucionais e educacionais feitos para que a olimpíada fosse realizada dentro dos prazos
estipulados pelo próprio estatuto que confeccionamos, segundo o calendário escolar e a
disponibilidade de dias para os próprios alunos, a confecção de materiais de apoio, como
blogs interativos, disponibilização de horários para atendimento em monitoria, e apostilas
de apoio, como também o processo de escolha e autocrítica da forma de avaliação que já
trazíamos de formação e que poderíamos adquirir por experiência. Por fim, algo também
essencial a ser pontuado são as consequências positivas e negativas do evento realizado
para a prática e iniciação à docência, além do próprio aprendizado dos organizadores, que
serve de balanço para a realização de outros eventos.

22
TEXTOS COMPLETOS

23
O ENSINO DE FILOSOFIA COMO “QUESTÃO CLÁSSICA”
NA TRADIÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Filipe Ceppas
UFRJ (FE/PPGF)
filcepps@gmail.com

RESUMO

Ensinar e aprender filosofia são questões centrais e recorrentes para a tradição filosófica,
sobretudo se pensadas em termos da relação mestre-discípulo, ou seja, no que diz respeito
à transmissão da própria filosofia. Na tentativa de pensar essas questões para além da
relação mestre-discípulo, apresento a questão fundamental do ajuizamento, partindo da
obra A vida do Espírito, de Hannah Arendt. Em seguida, procuro pensar o desafio do
ensino de filosofia na educação básica para nós, hoje. Ao final deste percurso, retomo a
questão da importância do ajuizamento, que simultaneamente pressupõe o pensar e é por
ele pressuposto, e sua relação com o ensino e o aprendizado. Defendo que o importante
não é saber o que a filosofia pode ensinar às crianças e aos jovens, mas experimentar o que
a filosofia pode aprender com eles. O desafio não seria tanto o de ensinar filosofia ou a
filosofar, mas exercitar o pensamento filosófico com eles e pensar (aprender) o que advém
(ou com aquilo que advém) desse encontro.
Palavras-chave: Filosofia; Ensino de Filosofia; Ajuizamento; Hannah Arendt.

Em uma conversa com Günter Gaus, exibida pela TV alemã em 1964, Hannah
Arendt afirma que escrever, para ela, é um ato de compreender. “Quando estou
trabalhando, não estou interessada em como meu trabalho pode afetar outras pessoas”.1
Esse sentimento pode ser compartilhado por muitos filósofos e escritores. Estudar,
escrever, aprender, tentar compreender, pensar, enfim, não carregaria, necessariamente,
nenhum “compromisso com o outro”. Mas é curioso que, na mesma entrevista, a autora
afirme não conseguir iniciar a escrita senão no momento em que as ideias já estejam
completamente claras em sua cabeça. As duas afirmações parecem contraditórias: escrevo
para pensar melhor, mas só consigo escrever quando já pensei o melhor que pude. É certo
que ela acrescenta, ainda, que a escrita tem um papel basicamente mneumônico: se ela
tivesse uma boa memória, não se daria ao trabalho de escrever. Mas aquilo que escapa,
nestas breves considerações feitas de improviso no contexto de uma entrevista, é a questão
da publicação. Se não é por algum interesse/compromisso com o outro, em um certo
diálogo com seus pares ou com o público em geral, por que se dar ao trabalho de publicar
uma obra?

1
ARENDT, 2003, p.5.

24
Gostaria de defender, aqui, que todo pensar, o trabalho filosófico sistemático e o
que nos motiva a ele, envolve, de algum modo, intrinsecamente, ainda que não numa
relação direta, um compromisso com o outro, um dirigir-se a um outro; e que essa relação é
sempre um processo simultâneo de ensino e aprendizado. Essa é uma tese mais geral, sobre
a estrutura mesma do pensar enquanto atividade filosófica, isto é, como diz Arendt, uma
atividade que visa a compreensão dos fenômenos para além de conhecer porque as coisas
se comportam assim ou assado (isto é, para além da ciência), mas que se dá
fundamentalmente através de conceitos que respondem a problemas os mais diversos
(incluindo os da ciência). Esta atividade envolve sempre um compromisso com o outro e
esse compromisso é sempre, também, um processo de ensino-aprendizado.
Não é à toa, portanto, que começo citando Hannah Arendt. Esta autora, embora
estabeleça uma separação aparentemente bastante radical entre o pensar e o agir, conecta,
por assim dizer, essas duas pontas através da faculdade do juízo. Num determinado
momento d’A Vida do Espírito, ela escreve:

o pensamento como tal traz bem poucos benefícios à sociedade, muito menores
do que a sede de conhecimento, que usa o pensamento como um instrumento
para outros fins. Ele não cria valores; ele não encontrará o que é ‘o bem’ de uma
vez por todas; ele não confirma regras de conduta; ao contrário, dissolve-as. E
ele não tem relevância política a não ser em situações de emergência. A
consideração de que eu tenho que poder conviver comigo mesmo não tem
nenhum aspecto político, exceto em ‘situações limites’ (ARENDT, 1992, p.144).

O pensamento, fundamentalmente, reflete sobre aquilo que está “por trás” ou


“além” da vida ordinária, das coisas no mundo, das condutas, e ele tem a ver, sempre, com
um compromisso do eu consigo mesmo. Segundo Arendt, ele lida, basicamente, com o
“invisível” e, ao fazê-lo, questiona, se afasta do e dissolve o visível. Mas Arendt
complementa:
A faculdade de julgar particulares (tal como foi revelada por Kant), a habilidade de
dizer “isto é errado”, “isto é belo”, e por aí afora, não é igual à faculdade de pensar. O
pensamento lida com invisíveis, com representações de coisas que estão ausentes. O juízo
sempre se ocupa com particulares e coisas ao alcance das mãos. Mas as duas faculdades
estão inter-relacionadas (…), o juízo, o derivado do efeito liberador do pensamento, realiza
o próprio pensamento, tornando-o manifesto no mundo das aparências, onde eu nunca
estou só e estou sempre muito ocupado para poder pensar. A manifestação do vento do

25
pensamento não é o conhecimento, é a habilidade de distinguir o certo do errado, o belo do
feio. (idem)
Isso se comprova em qualquer página dos livros de Platão, onde o pensar e o ajuizar
caminham sempre juntos; isto é, onde o pensar depende tanto do juízo quanto o inverso: o
pensar (ou, ao menos, o momento em que nos sentimos forçados a enunciar esse
pensamento, a pô-lo no papel, a comunicá-lo)2 é inseparável da habilidade de distinguir o
certo do errado, o belo do feio. E esta, me parece, seria uma maneira inequívoca de
reconhecer que a questão do ensino-aprendizado está, explicitamente, presente desde
sempre na história da filosofia. Distinguir o que é certo e o que é errado, ou o que é belo e
o que é feio, sempre foi e será uma questão pedagógica e política, pelo menos desde que
inventaram a democracia, isto é: algo que fazem e faço em meio aos outros, em meio a
uma livre disputa sobre os particulares que contam ou que não deveriam contar, em função
disto ou daquilo outro.
Vale dizer, quando a questão do ensino-aprendizado comparece nos pensamentos
de Heráclito, Pitágoras, Sócrates, Platão, Descartes, Locke, Rousseau, Kant, etc, ela não o
faz somente como um tema filosófico a ser pensado (“a educação”) ou apenas como
questão relativa à transmissão da própria filosofia (a relação mestre-discípulo). A questão
do ensino-aprendizado subjaz à relação entre o pensar e o ajuizar, nesta tensão entre refletir
sobre o universal e julgar o particular, tal como essas “atividades do espírito” são
exercitadas por cada pensador, e ela então se apresenta disposta de uma determinada
maneira, indica limites e alcances, maneiras distintas de relacionar o visível e o invisível,
como bem o mostra Arendt, à exaustão.
Assim, por exemplo, apesar de todo o peso que Platão dá à intuição e à verdade do
nous, que não podem ser postas em palavras (isto é, apesar de sua descrição da verdadeira
filosofia como radicalmente livre dos sentidos e dos assuntos ordinários da pólis), é
inegável também que, em sua obra (obviamente, composta de “pensamentos postos em
palavras”), toda a discussão sobre a verdade é elaborada a partir do papel do legislador,
inseparável, por sua vez, do papel do educador. O legislador é o educador maior da

2
« …os pensamentos, para acontecer, não precisam ser comunicados; mas não podem ocorrer sem ser
falados —silenciosa ou sonoramente, em um diálogo, conforme o caso. Como o pensar, embora sempre
proceda por palavras, não necessita de ouvintes, Hegel pôde, de acordo com o testemunho da maioria dos
filósofos, dizer que “a filosofia é algo solitário”. E a razão - não porque o homem seja um ser pensante, mas
porque ele só existe no plural— também quer a comunicação e tende a perder-se caso dela tenha que se
privar; pois a razão, como observou Kant, não é de fato “talhada para isolar-se, mas para comunicar-se”. »
Arendt, 1992, p.77.

26
sociedade, e a filosofia, como busca do saber, depende dessa atividade do mesmo modo
como, segundo Platão, o legislador deveria depender da filosofia. Isto é, a questão de saber
“o que é o bem” não é separável da questão de como se pode demonstrar (ensinar,
orientar) que este é o bem para todos e para cada um na pólis. Esta é outra maneira de
dizer que o filosofar não existe sem o método, e o método é inseparável do exercício do
ajuizamento. E isso porque, ao caminhar em direção às mais imponderáveis das abstrações,
partimos sempre da percepção e de juízos particulares e, mesmo que nosso intuito seja o de
nos distanciar o mais possível deles, ou mesmo que a divisa da “volta às coisas mesmas”
não nos mobilize, em nenhum momento escapamos da percepção e dos particulares, dada a
natureza metafórica da linguagem (o que pode ser constatado nesta mesma frase que acabo
de escrever, onde caminhar, partir de, distanciar-se, mobilizar e escapar são imagens
associadas ao método, sendo impossível prescindir delas ou de outras semelhantes).
Esta questão da relação intrínseca entre pensar, ajuizar, perceber, ensinar e aprender
já estava presente em Heráclito, que, segundo Diógenes Laércio, teria escrito: “muito
aprendizado (polematin) não ensina (didaskei) saber” (na tradução de Alexandre Costa; ou,
na tradução de Carneiro Leão: “muito saber não ensina sabedoria”), o que poderíamos
interpretar como: não é através de qualquer busca do saber que nos aproximamos do
(verdadeiro) pensar; o que deveria ser lido conjuntamente com os seus outros fragmentos
que falam sobre o didaskai, o ensinar, e a mathesis, o aprender, e que via de regra nos
remetem à relação intrínseca entre o pensar e a percepção: “ o que prefiro é o que aprende
a visão, a audição”. E é curioso perceber que todos os filósofos, quando falam do ensino e
do aprendizado da filosofia, nos seus mais diversos aspectos (e também quando falam da
própria metafísica), costumam explicitar (ou, seria mais adequado dizer, costumam
escancarar) esse enraizamento metafórico da linguagem. Assim, Descartes, por exemplo,
ao falar sobre o aprendizado da filosofia, vai utilizar-se de uma metáfora oceânica (de
resto, uma figura clássica da metafísica nos mais diversos filósofos) —um mergulho no
mar que lhe permita chegar ao fundo e dar o impulso de volta à superfície—, enquanto
Kant prefere as ruínas, os germes e os vermes, como imagens próprias à incompletude e
fragilidade estrutural dos sistemas que herdamos, e a partir dos quais precisamos tentar
construir o nosso próprio pensamento, ou a filosofia enquanto uma ciência possível.
Faço uma pausa nessas elucubrações e teses muito gerais sobre a relação entre o
pensar, o juízo e o ensino-aprendizado e retomo a simples constatação de que ensinar e
aprender filosofia são questões centrais e recorrentes para a tradição filosófica, sobretudo

27
pensadas em termos da relação mestre-discípulo, ou seja, no que diz respeito à transmissão
da própria filosofia. A partir de uma breve apresentação do tema, quero pensar o desafio do
ensino de filosofia na educação básica para nós, hoje. Ao final deste percurso, retomarei a
questão da importância do ajuizamento, que simultaneamente pressupõe o pensar e é por
ele pressuposto, e sua relação com o ensino e o aprendizado. O que eu gostaria de
defender, na mesma linha do que costuma defender meu colega e amigo Walter Kohan, é
que o importante não é saber o que a filosofia pode ensinar às crianças e aos jovens, mas
experimentar o que a filosofia pode aprender com eles. O desafio não seria tanto o de
ensinar filosofia ou a filosofar, mas exercitar o pensamento filosófico com eles e pensar
(aprender) o que advém (ou com aquilo que advém) desse encontro.
A filosofia pensa tradicionalmente a sua transmissão sob duas exigências
simultâneas e conflitantes: fidelidade ao mestre e autonomia do discípulo (“mais amigo da
verdade do que de Platão”). O transmitir é sempre um convite a um pensamento autônomo,
um “deixar passar mais além”, que é o sentido etimológico estrito da palavra “transmitir”.
Mas transmitir é também uma certa fidelidade ao mestre, ou um simples convite para
pensar juntos a partir do que propõe o mestre, com relação ao qual esse “mais além”
encontra limites mais ou menos bem definidos (nem todo desvio é produtivo, nem toda
tentativa de refutação é bem vinda). A tensão entre autonomia e fidelidade, entretanto, não
se dá apenas no discípulo com relação ao mestre. Ela implica, por vezes, um
embaralhamento dos papéis de mestre e de discípulo, como acontece com Sócrates e
Alcibíades.
Neste caso clássico, o embaralhamento é sutil, como demonstrou Lyotard (2012).
Alcibíades reclama que, estando Sócrates enamorado dele, ao final é ele, Alcibíades, que
acaba ficando escravo de Sócrates, e isso porque Sócrates aceita a troca proposta pelo
primeiro: os favores de Alcibíades pela sabedoria do amante. Ao fazê-lo, Sócrates, que
desconfia do seu próprio saber, apenas deixa Alcibíades na posição de compartilhamento
deste estado de inquietação, de indagação sobre a própria possibilidade da troca proposta.
Até aí, Sócrates aparentemente continua no seu lugar de “mestre” e Alcibíades no de
“discípulo”, ainda que, ao acreditar no que diz o próprio Alcibíades, a relação entre amado
e amante tenha se invertido. No que se refere ao saber, Sócrates mostra a Alcibíades que
isto, o saber, não é uma “coisa” que possa ser trocada, nem transmitida. Mas é
precisamente aí que o discípulo pode ir “mais além do mestre”, no sentido em que o estado
de agitação de Alcibíades, o ter-se tornado “escravo” de Sócrates, é a atualização ou o

28
compartilhamento de um tipo de desejo de saber que era antes exclusivo de Sócrates. Aqui,
o único saber do mestre, o “só sei que nada sei”, se confunde com o desejo de saber e o
desejo (possibilidade-necessidade) de compartilhar esse seu desejo de saber. E seria
preciso acrescentar que esse saber paradoxal do mestre (esse desejo de saber e desejo de
compartilhar esse desejo de saber, assim como a possibilidade mesma desse
compartilhamento), ao menos nesse exemplo, parece depender da ingenuidade do
discípulo, que crê que o saber seja uma coisa que possa ser transmitida. De modo mais
geral, em todos os diálogos platônicos, parece evidente que o pôr-se em movimento do
desejo de saber depende invariavelmente do encontro com um interlocutor que o desafia.
Vimos acima que o fato do desejo de saber depender de um desejo de
compartilhamento relaciona-se com as tensas relações entre o pensar e o juízo (e, em
Platão, essa dependência se confunde com a forma do diálogo como paradigma da escrita).
Essa dependência tem a ver com a ameaça que parece pairar sobre a filosofia desde que
Thales foi vítima da risada de uma escrava trácia: o risco de ser acusada e ridicularizada na
pólis. Poder-se-ia objetar que esse retrato da filosofia é por demais platônico ou grego, que
essa necessidade de compartilhamento, essa necessidade de ensino ou da orientação do
pensar alheio em benefício do desenvolvimento do próprio pensamento advém do contexto
específico do surgimento da figura do filósofo na Grécia Antiga, mas que não haveria nada
de estritamente necessário nisso. E, tal como faz Hannah Arendt, poderíamos identificar
uma ruptura radical e irremediável com relação a esse modelo na concepção do “eu
interior” de Santo Agostinho.
Sem dúvida, com Agostinho, Descartes, Rousseau ou Nietzsche, a filosofia poderia
ser caracterizada, com propriedade, como um “mergulho nas profundezas do eu”, um
revirar aquilo que se acredita saber, seguir um caminho de investigação que é pessoal e
intransferível, o diálogo do eu consigo mesmo; e este, aparentemente, não depende da
interlocução com nenhum discípulo. Mas essa suposta independência não parece razoável.
Apenas a forma da interlocução é transformada, porque muda o contexto político e se
diversificam os interlocutores: Deus, a tradição escolástica, a nobreza europeia, os
philosophes, o nihilismo. Em primeiro lugar, a obra desses filósofos é também e sobretudo
uma escrita dirigida a um público leitor (e um público leitor que não está mais, como na
Grécia ou em Roma, fundamentalmente restrito às escolas, isto é: a interlocução parece
ampliar-se, ao invés de restringir-se); uma escrita, portanto, que nunca é meramente
mneumônica, “um armazém de mantimentos para quando a era do esquecimento chegar”,

29
na fórmula pejorativa de Platão (apud Arendt, p.88). Agostinho, Descartes, Rousseau ou
Nietzsche e todos mais não escrevem apenas para registrar seus pensamentos ou legá-los à
posteridade. Suas obras estão envolvidas em disputas, do mesmo modo que estiveram as de
Platão ou de Aristóteles. Apenas as disputas são diferentes (podendo se aproximar num ou
noutro aspecto), assim como o são seus interlocutores.
No contexto da interioridade (que se inicia com o cristianismo e sobrevive ainda
hoje na forma do mito), a questão clássica da tensão entre autonomia e fidelidade na
relação mestre-discípulo se apresenta em uma nova configuração. Em Descartes,
encontramos a ênfase na natureza única e intransferível do filosofar. Descartes se dirige
aos seus contemporâneos para convencê-los de que a busca da verdade depende de um
caminho que cada um deve encontrar por si mesmo. Por outro lado, paradoxalmente, a
verdade que Descartes encontra é tão radicalmente universal que todo leitor é levado a uma
espécie de dilema: ou bem Descartes chegou a um resultado inquestionável, e seria inútil
procurar por outro, ou bem o que parece mais universal não o é, e seria improvável
encontrar outro com as nossas próprias pernas (qualquer ambulo ergo sum seria tão
apofântico quanto o cogito ergo sum). Seria o caso, agora, então, como faz Guéroult, de
nos contentarmos com a investigação da “ordem das razões”, capaz de mensurar a
coerência e a força do cogito como um princípio absoluto, claro e distinto, incontornável
para se chegar ao conhecimento verdadeiro? Tratar-se-ia, como pensa talvez a maioria dos
nossos pares, de que apenas a alguns gênios é dado avançar num caminho verdadeiramente
próprio, restando a nós, comuns mortais, o comentário cuidadoso do que é produzido por
aqueles? Neste ponto, vale relembrar a fidelidade de Alquié às afirmações de Descartes de
que o cogito é “a minha descoberta”, “a minha busca da verdade”, e que cada um deve
buscar a sua, para destacar um aspecto paradoxal desta suposta tensão entre a
universalidade do filosofema e a singularidade do método: ora, uma obra como a de
Guéroult sobre Descartes não deixaria de ser um tipo pessoal de busca da verdade, na
medida em que o autor não se contenta em ler e repetir os raciocínios do filósofo, mas
procura dar um juízo sólido sobre as questões propostas, como sugere o próprio Descartes
nas Regras para a direção do espírito. Ainda assim, Alquié parece ter razão em sugerir
que essa espécie de “parasitismo” trai o espírito do pensamento de Descartes, quando este
nos exorta a procurar por nós mesmos o nosso próprio caminho.
Guillermo Obiols, em Uma Introdução ao Ensino de Filosofia (2012), nos propõe
uma perspectiva interessante para a leitura dessa passagem das Regras, em que Descartes

30
nos exorta a dar um “juízo sólido” acerca das questões, ao invés de nos apegarmos ao que
disseram Platão ou Aristóteles. A tensão entre autonomia e fidelidade na relação mestre-
discípulo aparece, talvez pela primeira vez, como uma clara oposição entre história da
filosofia e filosofar. É certo que esta oposição já aparece em outros autores, como
Montaigne, mas em termos ainda emprestados dos textos das escolas antigas. Descartes
parece ter sido o primeiro a formular uma oposição diante “da história da filosofia” como
sendo “tudo o que veio antes” e que necessitaria passar pelo crivo de um questionamento o
mais radical possível, bastante diferente do tipo de análise a que antes Platão ou Aristóteles
submetem o pensamento pré-socrático. Referindo-se ao aprendizado da filosofia, Descartes
opõe aprender ciência (filosofar como atividade rigorosa do pensamento) a aprender
história. É interessante perceber, como faz Obiols, que, para além da falsa contenda entre
Kant e Hegel acerca do problema, este será um topos fundamental de toda uma tradição
posterior, que identifica a fidelidade estéril a doutrinas alheias com a história da filosofia
e esta, por sua vez, com o ensino institucional da filosofia, reconhecendo na negação deste
ensino uma condição fundamental para a autonomia do pensamento. Filósofos como
Schopenhauer e Nietzsche irão ao extremo de dizer que a própria natureza estatal das
instituições de ensino exclui, necessariamente, a possibilidade de uma filosofia autêntica
nos ginásios e nas universidades. Obiols sugere, a meu ver um pouco apressadamente, que
este “desprezo” pelo ensino de filosofia nas escolas e nas universidades poderia ser
superado caso superássemos esta visão errônea de que o ensino de filosofia estará sempre
condicionado pela natureza estatal das instituições de ensino e, portanto, refém de uma
certa configuração da transmissão do saber adequada à essa natureza, que seria a do mestre
que tem o domínio da história da filosofia e se faz passar por sábio perante um auditório. O
que me parece apressado é crer que possamos superar tão facilmente assim essa forma com
que Schopenhauer e Nietzsche apresentam a questão do ensino de filosofia nas instituições
de ensino. Talvez, como argumento em seguida, a questão não seja de superação, mas de
um eterno combate.
Não bastassem as limitações institucionais ao ensino-aprendizado da filosofia, a
perspectiva do ensino de filosofia na educação básica conta ainda com outros obstáculos
difíceis, sendo a “imaturidade” ou o “desinteresse” de crianças e jovens pelo estudo em
geral, e pela filosofia em particular, o mais propalado. De fato, tudo, cada vez mais, parece
conspirar contra a ideia de que haja algum sentido em trabalhar com a filosofia dentro da
escola. Se a cultura na qual os jovens e crianças estão imersos é em grande medida

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refratária ao pensar, e se a própria instituição universitária que forma os professores
desestimula o pensar em nome da utilidade, da erudição ou de critérios endógenos de
competência e rigor, a filosofia dentro da escola estará sempre refém desta lógica,
comprimida entre os critérios acadêmicos e os ruídos da pólis, do Estado, da cultura de
massas, etc.
Contudo, esse estado de coisas não deveria dar lugar a uma visão catastrofista e
elitista (que reafirma a suspeita de que o pensar é para poucos). Esta visão não sobrevive às
nossas considerações sobre as relações entre o pensar e o juízo. A potência do pensar está
em todos e em cada um. O que podemos considerar como sendo um conjunto de
“obstáculos” para que possamos encontrar esse espaço de distanciamento frente ao mundo
visível e suas particularidades, suas contingências sem rima ou razão, estabelecendo esse
paciente e cuidadoso diálogo de mim comigo mesmo, é na verdade o horizonte onde este
diálogo pode torna-se significativo para além de si mesmo. A escola não é o lugar onde a
filosofia entra para ajudar em coisa alguma nem a quem quer que seja. O jovem não deve
ser convidado a pensar porque isso supostamente seria bom para ele ou para a sociedade. O
pensar não é necessariamente bom para a sociedade, nem para ninguém. A filosofia habita
na escola em um estado de combate entre esse desejo de saber e as particularidades do
mundo visível, um dos poucos combates (os outros dois seriam a escrita e a arte) capazes
de tornar significativo este diálogo mudo e solitário para além do estreitíssimo círculo
daqueles que nele (não) se reconhecem. Para a maioria da população, é na escola, mais do
que em qualquer outro lugar, neste espaço único ocupado, em cada turma, por um pequeno
grupo de pessoas ainda não totalmente tomadas pelas demandas do cotidiano, que o puro
apelo ao pensar tem a chance de se fazer ouvir e de se compreender a si mesmo, de
compreender o que nele, nesse diálogo mudo e solitário, faz liga com as particularidades
do mundo. Ao lado da escrita e da arte, a filosofia na escola é o espaço privilegiado para o
exercício da faculdade do juízo que dá sentido à filosofia.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah, “What remains? The Language remains”: A conversation with


Günther Gauss, in The Portabel Hannah Arendt, ed. Peter Baehr, London: Penguin, 2003.
ARENDT, Hannah A vida do Espírito. Trad. Antonio Abranches, Rio de Janeiro: Ed.
UFRJ, 1992.

32
LYOTARD, Jean-François. Porquoi philosopher? Paris: PUF, 2012.
OBIOLS, Guillermo. Uma introdução ao ensino da filosofia, Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.

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ÁGORA VIRTUAL: A FILOSOFIA NA CIBERCULTURA

Vanderson Ronaldo Teixeira


USP/UEL/SEED-PR
osabiomadruga@gmail.com

Patrícia M. Weffort Teixeira


UEL/SEED-PR
patyweffort@hotmail.com
RESUMO

O presente ensaio trata de um tema contemporâneo, ainda pouco explorado por nós
professores de filosofia do ensino médio público do Paraná, na cidade de Londrina, que é a
instrumentalização e o domínio de técnicas e conhecimentos metodológicos para a imersão
na Cibercultura para com isso tirar o maior proveito em benefício da aprendizagem e do
ensino, mais especificamente, das possibilidades do desenvolvimento de um processo
educativo dentro do cyber-espaço que se dedique exclusivamente à Filosofia, constituindo-
se como um canal e/ou canais de ensino e de aprendizagem do estudante do ensino médio.
Para essa discussão, ainda ensaística e romântica, trataremos inicialmente de maneira bem
elementar das peculiaridades e da instrumentalização do professor de filosofia e seus
primeiros cliques dentro desse universo virtual. O pano de fundo que motiva essa imersão
é a constatação básica e que qualquer professor vivencia, qual seja, a relação direta dos
estudantes com a World Wide Web (teia mundial), através das redes sociais e demais
cyber-espaços. Na descrição do processo de instrumentalização do professor,
demonstraremos como proceder nesse ambiente, explorando diversas ferramentas e
plataformas que permitirão ampliar o tempo do filosofar e romperão com o espaço de sala
de aula, pois, uma das características básicas do cyber-espaço é o rompimento com o
tempo e com o espaço. Esta demonstração servirá para corroborarmos nossa premissa que
é o ensino de filosofia, à maneira grega. Mas, com um toque de contemporaneidade, ou
seja, o estilo será aquele desenvolvido na ágora grega, com a peculiaridade atual de que
para nós será uma ágora virtual. No cyber-espaço, além das nossas próprias plataformas,
destacaremos outras plataformas e apontaremos as nossas investidas e reflexões nesses
ambientes, em busca de conteúdos filosóficos que permitam ser discutidos, pensando e
fomentando a interatividade dos estudantes, ponto fundamental para o sucesso e a
manutenção do diálogo reflexivo.
Palavras-chave: Ensaio; Filosofia; Cibercultura; Cyber-espaço (Ágora Virtual); Blogue

Nosso ensaio, sem nenhuma pretensão de ser um artigo científico, portanto


impessoal e frio, contará uma breve história que tencionamos esclarecer como o processo
de inserção no cyber-espaço pode ser simples e romântico. Vamos à história. Sugerimos
que para essa leitura, sente-se confortavelmente e lembre-se das histórias que lia quando
ainda era criança.

Sábado de manhã, por volta das 09:37 o professor de filosofia se prepara para sair
de sua casa, ambiente aonde está bem servido de livros, de discos, de cds, de dvds e de
algumas obras de artes como pintura e esculturas, o mesmo deixará esse aconchegante
lugar definido no espaço e altamente atraente para os eternos amantes da sabedoria, pois,

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na segunda-feira (re)começam as aulas e ele, como de costume, quer surpreender os seus
estudantes com aulas mais interativas, dinâmicas e com um quê de contemporaneidade.
Para isso, é necessário ir em busca de algumas ferramentas que a atualidade disponibiliza
para todos sermos mais interativos, conectados, portanto, atuais e com o perdão da palavra,
contemporâneos.

Durante todo o período destinado às férias, o professor leu e releu obras e mais
obras da filosofia, tanto os ditos filósofos clássicos quanto dos filósofos ditos menores, que
não temos aqui nenhuma pretensão de discutir e quem são os tais clássicos e os ditos
menores. E, a cada obra lida e digerida lentamente e ruminantemente, seus pensamentos
sobre quais seriam as melhores possibilidades de tornar esses pensamentos acessíveis aos
estudantes, se tornavam um imperativo e, imergir no cyberespaço e na cibercultura se
tornavam cada vez mais latentes, daí a necessidade de compreender essa atualidade
hipertextual, conectada, midiática e sociável, para tirar dela o maior proveito em benefício
da filosofia, de seu ensino e de sua aprendizagem.

Para a imersão nesse universo o professor tinha que buscar os instrumentos que lhe
permitisse o mergulho para criar e ou desenvolver as condições básicas para a tarefa
filosófica-educacional que o professor acreditava serem necessária no ambiente escolar
contemporâneo. Então, após horas e horas de completa imersão em seus pensamentos, num
diálogo profundo com os pensadores da cibercultura, percebe que deves fazer uma lista das
ferramentas que lhe permitrão acessar ao universo cibernético. Faz uma lista longa, depois
de muitas reflexões, excluí diversos itens, ficando com o que é básico e fundamental,
concluí. Feito isso se propõe a adquiri-los no sábado pela manhã. Eis os materiais
constantes na lista do nosso professor:

1 notebook (com programas de edição de vídeo e áudio, além dos editores de textos
e construtores de apresentações);

1 câmera fotográfica digital e/ou filmadora digital (com cartão de memória de 4 Gb


e entrada USB)

1 aparelho gravador de áudio (entrada USB);

1 projetor portátil (entrada USB);

1 lousa digital (entrada USB);

1 par de caixas de som (entrada USB);

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3 pendrives de 32 Gb;

10 dvds regraváveis;

Preparado, nosso professor sai de sua morada e se encaminha para o centro da


cidade para adquirir as ferramentas básicas de que precisa para amplificar as condições de
seus ensinamentos e, por consequências também, as condições de aprendizagens de seus
estudantes. As quantidades desses materiais disponíveis no mercado e os custos são
relativamente acessíveis ao professor, que, calculando bem, em quatro ou cinco parcelas,
consegue adquirir todos os produtos da lista e, já pode voltar para sua morada e começar a
planejar as futuras aulas, agora no universo cibernético.

Em casa, o professor, que começou a refletir sobre a cibercultura há muitas semanas,


já tem à sua disposição acesso à internet, pelo seu computador pessoal fixo que até então
servia como uma máquina de datilografar um tanto quanto sofisticada. Durante esses dias
de conhecimento da cibercultura e do cyber espaço, requeriu a instalação de um modem
para acesso à internet por wireless, pois com o notebook que compraria, sabia ele que
poderia utilizar esse mecanismo. Então, descarrega seu clássico carro, pede a ajuda de um
serviçal e carrega tudo o que de mais contemporâneo podia existir (até aquele momento)
para sua morada. Tudo posto em seu escritório, olha com um certo espanto, típico de
filósofo, para aquilo tudo e divaga sem dar-se muito por isso. O tempo passa lentamente e
aí, ele abre, primeiramente, a embalagem de seu notebook, pega o manual de instruções e o
lê atentamente, item a item, linha a linha e concluí pela capacidade de saber utilizar a
máquina sem grandes problemas (coisa rara para filósofos). Em seguida, mantém
sistematicamente, a mesma atitude com relação aos demais produtos adquiridos, uma a um
e, e após a compreensão de todos os mecanismos e funcionalidades de cada um deles, se
considera pronto para a tarefa seguinte, que será a tarefa instalá-los para, aquilo que é sua
ânsia cada vez maior, encontrar na rede (internet) as peças para serem trabalhadas em
conjunto com suas ferramentas, as quais lhe servirão de auxílio à preparação de suas aulas
e possibilitarão filosofar no cyber espaço.

O hábito ainda é muito forte e, sem perceber, o professor volta-se para seu pc
querendo ligá-lo para começar seus estudos, esquecendo-se que não necessita mais da
fixidez e do velho companheiro, mas, tenta se consolar, olhando para seus livros e discos,
imaginando que sempre estarão à sua disposição e que servirão para suas aulas como
sempre, agora, só um pouco mais hightech e deixar um suspiro lhe trazer de volta ao

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momento presente..

O professor liga o notebook, acessa a internet e digita no espaço destinado às


buscas a seguinte frase:

- Como criar um blogue?

Em segundos surgem milhares de sugestões, e, como ele sabe que seus estudantes
utilizarão na escola, do material que ele disponibilizar no blogue, a partir de um programa
digital do governo, ele deve escolher um blogue que tenha extensão permitida pela
secretária de educação, ou seja, deverá escolher uma plataforma que seja liberada para o
acesso dos estudantes de dentro da escola também. Em conversa com outros professores
que já estão navegando no cyberespaço, se lembra vagamente de um endereço que poderá
utilizar, chamado Blogger. Ante essa lembrança, seleciona o sítio em nova busca, que o
leva para a página específica, onde ele, passo-a-passo deverá cadastrar-se e seguir os
demais parâmetros para concluir a construção de seu blogue. Após mais ou menos 7 (sete)
minutos, seu blogue está pronto, agora é só começar a postar aquilo que lhe interessar,
desde textos simples até filmes completos.

O professor então dá uma breve pausa, antes de postar sua primeira matéria. É o
momento de acender um cigarro e ficar olhando para tela do notebook com aquele olhar de
espanto e admiração, característico dos primeiros filósofos gregos. O cigarro é consumido
com prazer e lentamente.

De volta ao blogue, o professor abre uma nova aba em seu notebook e visita alguns
blogues que se dedicam aos temas de filosofia e educação, buscando de encontrar as
primeiras postagens, para perceber qual é a linguagem mais adequada para comunicar-se
com rigor filosófico, mas, sem perder a proximidade dialógica com os jovens internautas.

Novamente em seu blogue, escreve um pequeno texto de boas vindas, coloca


algumas imagens que lhe agrada e que remete ao universo filosófico, clica em publicar. A
ansiedade lhe consome, sente vontade de escrever, de escrever mais no seu blogue e assim
o faz. Alucinadamente escreve, começa então a FILOSOFAR A CLIQUES DE MOUSE,
freneticamente, compulsivamente, é como se o seu Daimon fosse um professor ditando as
verdades filosóficas e ele o digitador incansável.

São publicações que algum tempo depois serão excluídas, ocultadas ou editadas,
mas, nesse momento, tudo é interessante, intenso, angustiante, prazeroso e merece ser

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registrado.

Ele volta para a aba da pesquisa sobre os blogues e procura agora por clipes e
vídeos que lhe agrade e tenham um quê de reflexivos, copia seus endereços (URL) e
publica-os em seu blogue. Busca por imagens, por poesias, por textos interessantes e
reflexivos e vai publicando-os, de maneira aleatória, sem muitos critérios, é um exercício,
uma terapia. De repente, olha no canto inferior direito (de seu olhar) de seu notebook e
nota que já passam das 19:37. Ele percebe que o dia já se foi e, como é sábado, tem que
sair para encontrar os amigos e discutir sobre sua nova empreitada, acompanhados de
vinhos, conversas e cigarros. Amanhã ele começará a postar conteúdos para seus
estudantes.

Domingo, 07:58. Toca seu celular/despertador. O professor se levanta, prepara seu


café da manhã, vai para o escritório, pega alguns livros de filosofia, outros de ensino de
filosofia, a Diretriz Curricular da disciplina, liga seu notebook, acende seu cigarro e se
senta confortavelmente em seu sofá clássico e confortável. Começa a ler as diretrizes, para
recuperar seus princípios filosóficos-educativos. Lê um ou outro livro de ensino de
filosofia e se cansa um pouco. Levanta-se, vai buscar seu pendrive para checar seu
planejamento e saber até que ponto avançou no primeiro semestre de aula... Depois dessa
checagem já sabe por onde deverá recomeçar suas atividades e quais os conteúdos terá para
trabalhar.

Pega sua câmera fotográfica (ou filmadora) digital, faz um pequeno teste e vê que a
mesma está em perfeitas condições de uso. Testa o gravador digital, testa as caixas de som
e deixa-as ligadas para reproduzirem algumas de suas músicas que estavam no pendrive.
Após esse prelúdio se propõe a começar a montar uma aula, que irá estar disponível para
acesso de todos os seus estudantes no blogue, logo mais.

Ao reler as diretrizes concluí que lá, embora, as aulas sendo ministradas mediante
quatro momentos distintos e interligados, estes podem ser muito bem explorados no
ambiente virtual e, então, decide-se por manter aquela estrutura para ver como funcionará
no blogue. Com seu notebook no colo, abre a página de edição de texto do blogue e
regsistra os quatro momentos que as diretrizes sugerem:

- Mobilização;

- Problematização;

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- Investigação;

- Criação conceitual:

Após um bom tempo de reflexão, o professor redefine os conceitos e os


compreende da seguinte maneira:

MOBILIZAÇÃO = Primeira(s) Ideia(s): nesse procedimento incitamos os


estudantes, propiciamos o contato inicial com a ideia que iremos investigar, é o momento
de baixar suas defesas, quebrar seus preconceitos e dogmas, etc., sem, no entanto, sufocá-
lo com os textos, sempre densos, conforme todo texto filosófico é;

PROBLEMATIZAÇÃO = Ideia(s) Provocativa(s): nesse procedimento


evidenciamos a ideia e o conteúdo que iremos estudar sempre os destacando de maneira
desafiadora e reflexiva, colocando o conhecimento do estudante em conflito, instaurando a
crise, colocando-o na posição em que o filósofo se pôs para pensar o assunto;

INVESTIGAÇÃO = Investigando Ideia(s): aqui buscamos/ oferecemos as fontes


referenciais e os métodos de pesquisa para aprender o conteúdo estudado, desde a
Primeira(s) Ideia(s) e a Ideia(s) Provocativa(s) até Ampliando Ideia(s);

CRIAÇÃO CONCEITUAL = Ampliando Ideia(s): nesse procedimento verificamos


continuamente o quanto o estudante se apropriou do conteúdo (mobilizado, problematizado
e investigado) estudado; através dos instrumentos de avaliação podemos checar e intervir
para que o aprendizado aconteça efetivamente e o conceito seja criado significativamente.

Com essas novas definições mais claramente estabelecidas o professor parte para a
preparação de sua primeira aula no cyber-espaço. O tema da aula é o relativismo sofístico.
Como representante desse movimento o autor escolhido é Protágoras de Abdera e o
professor confecciona o seguinte quadro:

TEMA: DA COSMOLOGIA PARA A ANTROPOLOGIA: OS SOFISTAS 1

PROFESSOR: VANDERSON R. TEIXEIRA

DATA:

SOFISTA: PROTÁGORAS

ASSUNTO: RELATIVISMO

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Passo 1:
PRIMEIRAS IDEIAS (COLAGEM – TAREFA -
DISCUSSÃO EM SALA);

O melhor refrigerante: o pior:

O melhor shampoo: o pior:

O melhor sabão em pó: o pior:


Procedimento:
O melhor desodorante: o pior:

O melhor salgadinho: o pior:

A melhor cerveja: o pior:

Passo 2:
IDEIAS PROVOCATIVAS

Você concorda em Mentir e conseguir tudo o que quer, no


momento, ou falar a Verdade e não conseguir nada? Por quê? Qual a
Procedimento:
maior mentira do mundo em sua opinião? Por quê? (RESPOSTA NOS
COMENTÁRIOS DO BLOGUE – DISCUSSÃO EM SALA)

Passo 3:
INVESTIGANDO IDEIA(S)

1. Pesquisar e registrar dois significados de cada verbete


(TAREFA – REGISTRO NO CADERNO):

Procedimento:
Relativismo:

Persuasão:

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Verdade:

Mentira:

2. Discussão em grupo do fragmento: “O homem é a


medida de todas as coisas” Protágoras (SALA);
3. Após a discussão cada grupo deve criar uma nova frase
que explique o que o grupo entendeu sobre o fragmento (o professor
irá de grupo em grupo para tirar as dúvidas e esclarecer as ideias
discutidas até agora) (SALA);

Passo 4: AMPLIANDO IDEIAS

1. Qual é a mentira que você sempre conta e consegue


convencer as pessoas de que é verdade? Como consegue fazer isso?
2. Você já mentiu hoje? O que você acredita ganhar
Procedimento: quando mente?
3. A verdade vale mais que a mentira para você? Por quê?
4. As pessoas com quem convive, mentem? Por quais
motivos?

Como a proposta de nosso professor é trabalhar com a internet, essa aula, ao ser
disponibilizada, exigirá do estudante, que entre no blogue, e vá no campo comentário, se
identifique e responda as questões que foram propostas no momento das Ideias
Provocativas. Essa é uma condição fundamental para que neste espaço possa surgir o
mesmo dinamismo e intensidade que havia na velha praça grega.

Em sua página de texto offline, o professor explicita cada passo de sua aula, para
poder discutir a mesma na próxima reunião de professores:

- Nas Primeiras Ideias, cada estudante deverá trazer em seu caderno as imagens dos
produtos colocados ali, para posterior discussão, pois, na sala o momento será para as
análises das ideias relativas às qualidades e intencionalidades dos discursos que sustentam
propaganda para vender determinado produto.

41
- No procedimento Investigando Ideias, os estudantes trarão os verbetes já
registrados, pois, como estão na internet, facilmente encontrarão dicionários online;
Quando estiverem em sala com os grupos formados deverão comparar suas pesquisas e
discutirão os fragmentos apresentados pelo professor, primeiramente com os membros do
grupo e na sequencia com os demais grupos e também defenderão suas ideias perante os
argumentos do professor. Concluir-se-á este procedimento de três etapas em sala de aula
com a execução da atividade já conhecida de todos (pois estava já disponível online), mas,
sua realização formal se efetivará momento presencial, para todos.

- Para a realização da atividade final (Ampliando Ideias), o professor pedirá para


que cada um grave suas respostas nos celulares e enviem para o seu e-mail (do professor),
que irá montar um vídeo clipe das mesmas para sociabilizar e discutir em sala quais as
implicações da teoria sofística sobre a relatividade de nossas proposições tanto particulares
quanto coletivas.

Após essas anotações metodológicas, o professor salva o arquivo e volta para a


página do blogue, para continuar a editar sua aula cibernética.

Chega o primeiro dia de volta às aulas, o professor avisa aos estudantes que as
atividades acontecerão em lugares e momentos distintos e esclarece o que isso quer dizer,
parte na sala de aula e outra parte no cyber espaço. Sugere como apoio aos estudantes
alguns links de texto
(http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/escola/sofistas/protagoras.htm)
para leitura e de áudio e vídeo (http://www.youtube.com/watch?v=sr2l7qQxRs4) para
apreciação, amplamente difundidos na internet, para aumentar a compreensão do assunto
que será abordado na aula presencial, pois, trarão enormes contribuições e mais dinamismo
e interatividade para dentro da sala de aula.

No dia da aula, o professor chama a todos para irem até o laboratório de informática,
pois, lá poderão acessar o conteúdo da aula, além de poderem ampliar as discussões e
pesquisas sobre os assuntos que serão abordados no decorrer do bimestre e/ou semestre. Lá,
ele pede para que acessem o seguinte endereço: http://osabiomadruga.blogspot.com.br e
que vejam a estrutura da aula, os problemas e assuntos discutidos, pois, não precisaram
mais ficar registrando tudo. Somente as atividades é que serão registradas no caderno. Um
certo entusiasmo invade a sala, os cochichos são generalizados. O professor pede atenção e
dá um bom tempo para que eles observem as atividades, vejam os textos e se ambientem

42
com essa forma (um tanto nova) de aula.

As atividades vão sendo elaboradas, algumas discussões, algumas reclamações, mas,


a aula flui. De repente o sinal...

O professor observa a saída dos estudantes. Uns diziam que fora muito rápido o
tempo, outros perguntam se vai ter tarefa e se voltarão na semana que vem... O professor se
sente bem...

Quando chega em sua casa, vai olhar para seu blogue e fica nessa meditação por
bastante tempo, até que de súbito lhe vem uma indagação:

-Será que não há uma maneira de utilizar mais espaços e mais linguagens, para que
eles não apenas respondam as atividades. O professor entra na rede, digita –
Filosofia+Histórias+em+ Quadrinhos... seleciona um endereço que promete gratuitamente
fornecer – online- os meios para se produzir hq's, e eis que ele de fato pode produzir uma
hq de caráter filosófico. Como nossa intenção é a imersão no cyber-espaço, segue o link
para visualizarem uma da produções do professor em um site gratuito:
(http://www.stripcreator.com/comics/osabiomadruga/495512). Basta um clique e você
estará realizando parte do intento do professor.

Como o professor estava fascinado em busca de outros cyber-espaços, ele descobre


um site que lhe permite criar animações, isso é incrível e para ver uma breve mostra de
uma animação que o professor fez com o tema sobre o imobilismo, mais uma vez, é só
clicar em: (http://goanimate.com/videos/0EhV9Tr02Hh4).

As aulas ficam muito mais dinâmicas e interessantes, pois, mesmo o estudante que
venha a perder a aula, poderá recuperar o conteúdo e acompanhar as discussões e tirar as
dúvidas nas próximas aulas. Bem, essa é uma pequena amostra do que o cyber-espaço e a
cibercultura pode oferecer ao professor. E, hoje o professor começa a utilizar um fórum,
para tornar mais interativa a aula, para conhecer essa nova investida, entre na seguinte
URL: (http://agoravirtual.forumeiros.com/t3-cidade-perfeita).

Chegamos ao fim dessa pequena história, baseada em fatos reais, pois, retrata
nossas mais recentes atividades. O que faremos a seguir será inscrever os estudantes nesses
cyber-espaços para que os mesmos possam expressar seus pensamentos filosóficos.

43
REFERÊNCIAS

ANTUNES, Celso. A linguagem do afeto: como ensinar virtudes e transmitir valores.


Campinas, SP: Papirus, 2005. 4ᵃ ed. 2008.
____. Professores e professauros: reflexões sobre a aula e práticas pedagógicas diversas.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Belo Horizonte:
Autêntica, 2009.
KOHAN, Walter Omar. Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar. Belo Horizonte:
Autêntica, 2009.
GALLO, Sílvio. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o ensino médio.
Campinas – São Paulo: Papirus, 2012.
____. Ensinar filosofia: um livro para professores. São Paulo: Atta Mídia e Educação,
2009.
PORTA, Mário A. G. A filosofia a partir de seus problemas: didática e metodologia do
estudo filosófico. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
RODRIGO, Lídia Maria. Filosofia em sala de aula: teoria e prática para o ensino médio.
Campinas – SP: Autores Associados, 2009.
TELES. Maria Luiza Silveira. Filosofia para o Ensino Médio. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
VELLOSO, Renato. Lecionando filosofia para adolescentes: práticas pedagógicas para o
Ensino Médio. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
BARONE. Dante A. C. Sociedades Artificiais: a nova fronteira da inteligência nas
máquinas.Porto Alegre: Bookman, 2003.
DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem.
Trad. Carlos E. Reis. Porto Alegre: Artmed, 1989.
LEMOS, André. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto
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LÉVY, Pierre. O que é virtual. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996.
____. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. Trad Luiz P. Rouanet.
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____. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Trad.
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44
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VALLE, Luiza E. L. R (et all). Educação digital: a tecnologia a favor da inclusão. Porto
Alegre: Penso, 2013.

45
O GRUPO PRÁTICO DE DESLOCAMENTOS
E A CONSOLIDAÇÃO DAS ESTRUTURAS COGNITIVAS
Vicente Eduardo Ribeiro Marçal
Universidade Federal de Rondônia
vicente.marcal@unir.br

RESUMO

No desenvolvimento do sujeito epistêmico, conforme nos apresenta a Epistemologia


Genética, o GPD – Grupo Prático de Deslocamentos desempenha papel fundamental na
consolidação das Estruturas Cognitivas. Primeiramente ao propor que a constituição do
GPD é gradativa, iniciada desde o nascimento do sujeito, pois suas condutas se manifestam
já a partir do exercício reflexo até a descoberta de novos meios por experimentação ativa –
primeira à quinta fase do período Sensório-Motor, respectivamente – formam um único e
grande período homogêneo do desenvolvimento do sujeito, com distinções tão sutis e
mudanças tão rápidas de uma para outra que nos impede de separá-las rigidamente com o
risco de incorrermos em erros de avaliação. Assim, mediante o prolongamento das reações
circulares secundárias surgem às reações circulares terciárias, pois, diante de um novo
espetáculo o sujeito poderá buscar repetir as ações que deram tal resultado, característica
da reação circular secundária, ou repeti-las com variações e graduações, por já ter
adquirido as condutas próprias das reações circulares terciárias o surgimento de cada nova
fase não elimina, de forma alguma, as condutas das fases precedentes e que as novas
condutas se sobrepõe simplesmente às anteriores. Contudo, na etapa final do período
Sensório-Motor, temos uma acelerada mudança no comportamento do sujeito, que o levará
à finalização da constituição de suas estruturas cognitivas, próprias desse período, e o
preparará para a constituição das estruturas próprias do período ulterior. A velocidade se dá
justamente porque a descoberta, conduta da fase imediatamente anterior, é dirigida pelo
empirismo da exploração por tateio e a invenção, conduta própria da última fase do
Sensório-Motor, é dirigida pela coordenação e combinação mental, ou seja, a forma
interiorizada dos esquemas de ação em jogo. Assim, a novidade da última fase, do período
Sensório-Motor, consiste em que os esquemas necessários para o êxito sobre o problema
enfrentado estão latentes e são combinados reciprocamente antes de sua aplicação externa,
por isso as condutas dessa fase parecem sempre ser repentinas. Portanto, essas condutas
nada mais são que a reorganização dos esquemas de ação, os quais se acomodam à nova
situação por assimilação recíproca, contudo tal acomodação se dá mentalmente. Essa
acomodação mental nada mais é do que o funcionamento, interior ao sujeito, dos esquemas
de ação, sem a necessidade dos mesmos serem aplicados um após o outro externamente.
Essa interiorização dos esquemas de ação permite a consolidação desse sistema que leva o
sujeito a elaborar o GPD. Essa elaboração é necessária à constituição das noções de objeto
permanente e de espaço objetivo. O conceito de GPD refere-se à compreensão do
comportamento do sujeito, referente aos deslocamentos realizados sobre si mesmo ou
sobre os objetos, os quais podem ser descritos por um grupo matemático. É a descrição
desses comportamentos, a partir de um grupo matemático, que apresentamos nesse artigo.
Palavras Chave: Grupo Matemático, Epistemologia Contemporânea, Grupo Prático de
Deslocamentos, Estrutura Cognitiva, Epistemologia Genética.

O PROCESSO BIOLÓGICO-COGNITIVO

46
A partir da consideração de que a Epistemologia Genética é uma teoria do
conhecimento, em seu sentido pleno, e que realiza também uma crítica dos conhecimentos
(portanto é Epistemologia) e de suas gêneses (no indivíduo e histórico-culturalmente),
nosso objetivo central, neste artigo, é expor como o GPD – Grupo Prático de
Deslocamentos, enquanto Grupo Matemático contribui para a consolidação das Estruturas
Cognitivas do Sujeito Epistêmico.

Para a Epistemologia Genética, o desenvolvimento do Sujeito Epistêmico e a


constituição de suas estruturas cognitivas é um processo biológico-cognitivo de adaptação
e organização que coloca a ação desse sujeito no mundo como eixo central de interpretação
dos postulados teóricos da Epistemologia Genética. O que “[...] exprime esse fato
fundamental [é] que todo conhecimento está ligado a uma ação e que conhecer um objeto
ou um evento é utilizá-lo assimilando-o aos esquemas de ação [...]”3 (PIAGET, 1970, p.
14-15), assim compreender não consiste, simplesmente, em “[...] copiar o real, mas agir
sobre ele e em transformá-lo (em aparência ou em realidade) [...]” (PIAGET, 1970, p. 15).

Ao mencionarmos o fato do conhecimento estar diretamente ligado a ação do


sujeito no mundo não nos furtamos a compreensão de que o conhecimento faz parte de um
todo interligado, ou seja, a cognição

[...] é uma atividade do indivíduo, e o conhecimento é uma construção no sentido


real da palavra. No entanto, isso não deve ser entendido como uma implicação de
que qualquer comportamento específico, humano ou animal, considerado em sua
situação concreta, nada é senão comportamento cognitivo. A atividade cognitiva,
é apenas um aspecto parcial do todo, isto é, o comportamento concreto do
organismo e existem outros aspectos que sempre fazem parte do todo, tais como
os aspectos motivacionais, os afetos e os valores (FURHT, 1974, p. 32)

Temos, então, que para a Epistemologia Genética a ação é “[...] toda e qualquer
conduta (observável exteriormente, inclusive por interrogação clínica) visando um objetivo
do ponto de vista do sujeito considerado” (APOSTEL, MAYS, et al., 1957, p. 43). Assim,
em teoria, podemos identificar dentre os movimentos executados pelo sujeito quais são
ação e quais são movimentos aleatórios. De tal forma que um movimento como balançar
os braços pode constituir uma ação se visar um objetivo do ponto de vista do sujeito
considerado ou simples movimentos aleatórios, sem qualquer finalidade.

3
Todos os textos mencionados em francês tem sua tradução feita por nós.

47
Contudo, tal distinção é tênue implicando a necessidade de um critério que permita
ao observador saber o que é ação e o que não é. Assim, à definição dada de ação segue-se o
critério de se modificar certos “[...] aspectos da situação, mantendo-os comparáveis a
outros, e ver em que medida a conduta se modifica em vista de conservar constante a
probabilidade de alcançar o efeito” (APOSTEL, MAYS, et al., 1957, p. 43). Logo, para
nos certificarmos de que o movimento observado é, de fato, uma ação, o observador pode
interferir provocando modificações no meio e mensurar até que ponto o sujeito busca se
reequilibrar diante das mudanças para manter o objetivo pretendido.

Destarte, a ação pode ser compreendida, então, como a “[...] modificação da


conduta em resposta a uma modificação da situação [...] [e] aparece como uma medida
compensatória” (APOSTEL, MAYS, et al., 1957, p. 43), i. e., ao ter o meio alterado por
um evento natural ou pelo observador, o sujeito procurará compensar a alteração
provocada para manter o objetivo de sua ação, já que “[...] o fim que persegue
subjetivamente a ação pode sempre se exprimir em termos de satisfação de uma
necessidade, quer dizer, outra vez de medida compensatória para preencher uma lacuna
momentânea [...]” (APOSTEL, MAYS, et al., 1957, p. 43-44).

O foco na ação, que damos neste artigo, só tem importância quando a


compreendemos com vistas à lógica das ações, ou seja, àquilo que a torna condição
necessária para o conhecimento, i. e., o que “[...] em cada ação, é transponível ou
generalizável [... ]” (APOSTEL, MAYS, et al., 1957, p. 45-46) ou universalizável.
Contudo a ação é efêmera, i. e., única e situada no tempo e no espaço, não podendo ser
universalizada e, assim, não pode ser condição necessária do conhecimento. Entretanto, ao
analisarmos um conjunto de ações observadas num sujeito, durante um período de tempo
determinado, podemos estabelecer as “[...] classes de equivalências cada vez mais amplas
entre essas ações [...]” (APOSTEL, MAYS, et al., 1957, p. 46) e entendemos que duas
ações são equivalentes “[...] quando o sujeito estabelece as mesmas relações entre os
mesmos objetos ou entre objetos cada vez mais diferentes (inclusive as relações entre esse
objetos e seu corpo) [...]” (APOSTEL, MAYS, et al., 1957, p. 46), i. e., o que é
transponível e generalizável, portanto, universalizável, nas ações, são as estruturas das
ações que lhe permitem as mesmas relações entre os objetos ou entre esses e seu corpo.

48
Assim, podemos falar de uma conceituação no nível sensório-motor, uma
conceituação prática, i. e., o objeto é conhecido não por seu nome ou conceito, mas sim
pela forma com a qual podemos agir sobre ele, pois, “[...] em presença de um novo objeto,
ver-se-á o bebê incorporá-lo sucessivamente a cada um de seus esquemas de ação (agitar,
esfregar ou balançar o objeto) como se se tratasse de compreendê-lo através do uso”
(PIAGET, 2005, p. 20). Por exemplo, temos objetos que são para sugar, para preender,
para ver, para ouvir etc.

Em vista dessa equivalência entre ações, podemos definir que o “[...] esquema de
uma ação, com relação a uma classe de ações equivalentes do ponto de vista do sujeito, é a
estrutura comum que caracteriza essa equivalência” (APOSTEL, MAYS, et al., 1957, p.
46). De modo que o esquema de ação é essa estrutura comum que caracteriza a
equivalência entre as ações e pode ser transponível, generalizável, universalizável na
repetição da ação, i. e., um “[...] esquema é a estrutura ou a organização das ações, as quais
se transferem ou generalizam no momento da repetição da ação, em circunstâncias
semelhantes ou análogas” (PIAGET e INHELDER, 2003, p. 16).

O fato de se tratar de um sujeito faz com que o esquema seja entendido como uma
forma de funcionamento com bases orgânicas. Isso permite entender melhor por que o
esquema de ação não só é a estrutura comum da ação, como também a condição sine qua
non para que a ação possa ser realizada, pois: o “[...] esquema é a condição primeira da
ação, ou seja, da troca do organismo com o meio” (RAMOZZI-CHIAROTTINO, 1988, p.
34), i. e., sem o esquema de ação não há ação, pois compreendemos que “[...] os esquemas
motores são a condição da ação do indivíduo no meio; é graças a eles que a criança
organiza ou estrutura sua experiência, atribuindo-lhe significado” (RAMOZZI-
CHIAROTTINO, 1988, p. 11). É, então, somente pelos esquemas de ação que o sujeito
pode agir no mundo e, desse modo, conhecê-lo.

O sistema de esquemas de ação é a condição da ação do sujeito no mundo. As


ações, por sua vez, são interações do sujeito com o meio que o cerca, de modo a
possibilitar que o mesmo se adapte. Com efeito, Piaget dá uma definição da adaptação que
permite conciliar os aspectos epistemológicos, psicológicos e biológicos. A adaptação é
entendida como a transformação ativa desse sistema de esquemas de ação que
possibilitam maior interação entre o sujeito e o próprio meio que o cerca, i. e., “[...] há

49
adaptação quando o organismo se transforma em função do meio e essa [sua] variação tem
por efeito um aumento das interações entre o meio e o próprio organismo que são
favoráveis à conservação deste” (PIAGET, 1977, p. 11).

Assim, ao agir sobre o mundo, o sistema de esquemas de ação do sujeito assimila


dados do meio. Para Piaget (1970, p. 13), assimilação é:

[...] a integração às estruturas prévias, que podem permanecer inalteradas ou


serem mais ou menos modificadas por essa integração, mas sem descontinuidade
com o estado precedente, ou seja, sem [as estruturas] serem destruídas e [com
estas] se acomodando simplesmente à nova situação.

Ante essa integração, o sistema de esquemas de ação pode ser mais ou menos
modificado por acomodação. A acomodação do sistema de esquemas de ação é toda e
qualquer modificação na forma de agir do sujeito. Nas palavras de Piaget (1970, p. 18) é
toda e qualquer “[...] modificação dos esquemas de assimilação sob a influência das
situações exteriores (meio) às quais eles se aplicam”. Notemos que essa modificação pode
ser imperceptível, como no caso do início de um novo esquema de ação. Desse modo, a
transformação do sujeito por acomodação é uma transformação ativa em seu sistema de
esquemas de ação, a qual permite ampliar a troca entre esse sujeito e o meio que o
circunda, promovendo um acréscimo em suas condições de conservação.

A adaptação, em seus polos de assimilação e acomodação, se apresenta no


funcionamento do sistema de esquemas de ação se modificando (acomodação) para que
haja maior integração de dados do meio (assimilação) e, assim, haja um aumento nas trocas
com o meio favoráveis à sua conservação, fator primordial que define a própria adaptação.
Entendemos, então, que há uma mudança na forma das ações, como a própria definição de
esquema de ação nos diz, coordenando as ações utilizadas, pelo sujeito, para atuar sobre o
mundo. Ora, a adaptação é algo próprio do sujeito e não externo a ele, portanto, tais
mudanças são ativas e não passivas, ou seja, as mudanças são reestruturações por
coordenação no sistema de esquemas de ação do sujeito e não sofridas por esse devido a
uma intervenção externa.

Vemos, nesse processo como o sujeito, ao integrar elementos do meio modifica as


próprias estruturas para ampliar as suas trocas com o meio, favoráveis à sua conservação.
Ora, tal estrutura é um todo organizado que, ao se adaptar se reorganiza. Isso nos leva à
função de organização que do ponto de vista biológico é entendida como inseparável da

50
adaptação, pois são dois processos complementares de um mecanismo único, sendo a
adaptação o aspecto interno e a organização o aspecto externo.

O funcionamento do sistema de esquemas de ação leva a um aumento de sua


organização e esse funcionamento, em termos de adaptação e organização, leva à
constituição das estruturas cognitivas do sujeito epistêmico, ou ainda, como nos diz Piaget
(1977, p. 14):

O «acordo do pensamento com as coisas» e o «acordo do pensamento consigo


mesmo» exprimem esse invariante funcional duplo da adaptação e da
organização. Ora, esses dois aspectos do pensamento são indissociáveis: é se
adaptando às coisas que o pensamento se organiza a si mesmo e é se organizando
a si mesmo que ele estrutura as coisas.

Esse processo cognitivo-biológico tem início com o nascimento do sujeito, pois


suas condutas se manifestam já a partir do exercício reflexo até a descoberta de novos
meios por experimentação ativa – primeira à quinta fase do período Sensório-Motor,
respectivamente – formando um único e grande período homogêneo do desenvolvimento
do sujeito, com distinções tão sutis e mudanças tão rápidas de uma para outra que nos
impede de separá-las rigidamente com o risco de incorrermos em erros de avaliação.

Assim, mediante o prolongamento das reações circulares secundárias surgem às


reações circulares terciárias. De modo que diante de um novo espetáculo o sujeito poderá
buscar repetir as ações que deram tal resultado, característica da reação circular secundária,
ou repeti-las com variações e graduações, por já ter adquirido as condutas próprias das
reações circulares terciárias.

O surgimento de cada nova fase não elimina, de forma alguma, as condutas das
fases precedentes e que as novas condutas se sobrepõem simplesmente às anteriores.
Contudo, na etapa final do período Sensório-Motor, temos uma acelerada mudança no
comportamento do sujeito, que o levará à finalização da constituição de suas estruturas
cognitivas, próprias desse período, e o preparará para a constituição das estruturas próprias
do período ulterior. A velocidade se dá justamente porque a descoberta, conduta da quinta
fase que é dirigida pelo empirismo da exploração por tateio e a invenção, conduta própria
da última fase do Sensório-Motor que é dirigida pela coordenação e combinação mental,
ou seja, a forma interiorizada dos esquemas de ação em jogo.

51
Assim, a novidade da última fase, do período Sensório-Motor, consiste em que os
esquemas necessários para o êxito sobre o problema enfrentado estão latentes e são
combinados reciprocamente antes de sua aplicação externa, por isso as condutas dessa fase
parecem sempre ser repentinas.

Portanto, essas condutas nada mais são que a reorganização dos esquemas de ação,
os quais se acomodam à nova situação por assimilação recíproca, contudo tal acomodação
se dá internamente. Essa acomodação mental nada mais é do que o funcionamento, interior
ao sujeito, dos esquemas de ação, sem a necessidade dos mesmos serem aplicados um após
o outro externamente. Essa interiorização dos esquemas de ação permite a consolidação
desse sistema que leva o sujeito a elaborar o GPD.

O GRUPO PRÁTICO DE DESLOCAMENTOS COMO GRUPO


MATEMÁTICO

Até o presente momento apresentamos a constituição da estrutura cognitiva do


sujeito epistêmico enquanto processo biológico-cognitivo. A coordenação dos
deslocamentos em um sistema de esquemas de ação leva o sujeito a construir o que Piaget
(1967; 1977) denomina de Grupo Prático de Deslocamentos (PIAGET e INHELDER,
2003, p. 22).

Estas relações nos remetem, na sua formalização, à noção de Grupo Matemático.


Ora, do ponto de vista matemático (cf. HOWSON (1972, p. 25), THOPSON (2010, p. 71),
AYRES JR. (1965, p. 122)), um grupo é um par ordenado no qual é um conjunto
não vazio e é uma operação binária definida sobre os elementos de . Lembremos que
uma operação binária em é uma operação que satisfaz a propriedade de fechamento, i.
e., temos que . O par ordenado deve, também, satisfazer aos
seguintes axiomas:

1. Identidade ou Elemento Neutro:

2. Elemento Inverso: ,
sendo o “elemento identidade” ou “elemento neutro”.
3. Associatividade:

52
Para compreendermos como o GPD é um grupo matemático, usamos a seguinte
notação 4 : os pontos espaciais serão designados por letras latinas maiúsculas tais como
etc, e os deslocamentos entre tais pontos, pelos pares das letras latinas maiúsculas,
com a indicação vetorial do deslocamento, tais como , etc. De tal forma que

designa o deslocamento do ponto para o ponto . Com efeito, podemos considerar,


inicialmente, o conjunto de todos os esquemas de deslocamentos possíveis (seja dos que
o sujeito pode realizar sobre si mesmo, seja os que realiza sobre os objetos) de um ponto a
outro do espaço e uma operação binária que é a composição de deslocamentos, i. e., a
coordenação dos esquemas de deslocamento. Nesse caso, podemos mostrar como o par
ordenado satisfaz as propriedades acima, como faremos a seguir. A operação binária
, de composição dos deslocamentos, será definida de forma que: . Essa

equação significa que a composição de um deslocamento de para ( ) com um

deslocamento de para ( ) resulta no deslocamento de para ( ).

Vemos, então, que o sistema de deslocamentos constitui uma estrutura de grupo


matemático5, pois satisfaz as propriedades descritas anteriormente, como veremos a seguir:

Fechamento: Dados dois deslocamentos contíguos e pertencentes ao conjunto

dos deslocamentos possíveis, temos que o resultado , obtido pela operação de

composição dos deslocamentos, também pertence a .

Elemento Inverso: interpretemos, nesse caso, o que significa o elemento inverso. O


elemento inverso de um deslocamento é o deslocamento , entendido como a Conduta

do Retorno ao ponto de partida; essa conduta se constitui da possibilidade do sujeito ser


capaz de compreender em ato, i. e., de forma prática e não necessariamente conceitual, a
reversibilidade de um deslocamento, o que torna possível o retorno ao ponto de partida.
Temos então, que se um deslocamento , então que é seu inverso. Portanto

4
Ver mais detalhes dessa notação em Tassinari (2008).
5
Para evitarmos problemas na formalização do Grupo de Deslocamentos, consideraremos aqui somente os
casos em que há contiguidade entre os deslocamentos, i. e.: o deslocamento terá uma contiguidade com
deslocamentos , mas não terá contigüidade com deslocamentos , nos quais . A contiguidade na
composição dos deslocamentos se dá na exigência do ponto espacial intermediário entre os dois
deslocamentos que resultam no terceiro, ser o mesmo. Dessa forma, o par ordenado estabelece o que
denominamos de Grupo Parcial. Tal característica não será, porém, discutida neste trabalho, pois foge a seu
escopo.

53
o par ordenado , que estamos considerando, satisfaz a propriedade do elemento
inverso.

Elemento Identidade ou Nulo: Do que vimos no parágrafo anterior, temos que o par
ordenado satisfaz a propriedade do elemento identidade ou nulo. Com efeito, o
elemento identidade, ou nulo, significa, aqui, a capacidade do sujeito de compreender em
atos a reversibilidade de suas ações ou nulidade dos deslocamentos, ou seja, o sujeito é
capaz de agir e de reverter sua ação. Assim, a composição de um deslocamento com seu
inverso resulta no elemento identidade ou nulo. Podemos representar o elemento
identidade ou nulo por já que . O resultado da anulação de um deslocamento

pode ser designado de “Deslocamento Nulo”, reforçando a interpretação do elemento


inverso como a Conduta do Retorno. Outro fator importante dessa conduta é que o sujeito
organismo é capaz de compreender em atos que uma composição de deslocamentos que
envolva o deslocamento nulo não afetará o deslocamento resultante, pois um deslocamento
que saia de retorne a e termine em será igual a um deslocamento , independente

de quantos intermediários existiram até finalizar em e que pode ser representado pela
equação .

Associatividade: Por fim, quanto à associatividade, notemos a existência de

equivalência entre a equação , que a define, e a equação

e que ambas resultam em . A associatividade tem o significado de que

o sujeito é capaz de chegar a um ponto qualquer seguindo por dois caminhos distintos:
um passando pelo ponto e outro pelo ponto . Essa capacidade é chamada de Conduta
do Desvio, pois ao ser capaz de chegar a um ponto qualquer por caminhos diferentes, o
sujeito é capaz de desviar de obstáculos que lhe impeçam de atingir o objetivo.

Um fato importante a ser observado é que, na medida em que os deslocamentos


realizados pelo sujeito constituem uma estrutura de grupo instaura-se um campo espacial
homogêneo, já que todas essas ações de deslocamento estão integradas numa estrutura
única.

Observamos, ainda, que as relações espaciais estabelecidas entre os objetos também


o são em relação ao próprio sujeito, que passa a considerar seus deslocamentos nesse

54
espaço homogêneo que construiu. Contudo, Piaget (1967, p. 171) deixa claro que tal
capacidade ainda não nos permite dizer que o sujeito situa-se a si mesmo no espaço em
relação aos outros objetos, apenas que é capaz de se deslocar na direção dos objetivos a
serem alcançados. Dessa forma,

É claro que a possibilidade de se deslocar, assim, sozinho de maneira consciente


e de formar os «grupos» por suas idas e vindas completa, necessariamente, os
grupos elaborados por meio das relações dos objetos uns com os outros. Em
suma, a criança chega, assim, em todos os domínios, à construção de grupos
realmente «objetivos» (PIAGET, 1967, p. 173)

Ao ser capaz de representar o conjunto total dos deslocamentos, o sujeito constitui


sua estrutura cognitiva. De agora em diante, o sujeito tem condições de representar —
reapresentar, mentalmente, a si o que não está presente — tanto o objeto como os
deslocamentos não percebidos, de forma que esses não necessitam estar presentes durante
a execução da ação.

Assim, graças a possibilidade de representação das relações espaciais entre os


objetos e a si próprio e a capacidade de elaborar os grupos práticos de deslocamentos que o
sujeito consolida sua estrutura cognitiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da continuidade entre o biológico e o psicológico é um tema caro e central


na Epistemologia Genética. Vimos, no decorrer do artigo, que a estrutura necessária ao
conhecimento é construída pelo sujeito, no processo biológico-cognitivo de adaptação-
organização. Processo que complexifica, cada vez mais, o sistema de esquemas de ação do
sujeito e consolida-se com a constituição do Grupo Prático de Deslocamentos.

Temos que a função da Epistemologia Genética, enquanto Teoria do


Conhecimento, não é buscar os fundamentos ontológicos do conhecimento, mas, sim,
buscar compreender a construção, pelo sujeito, das estruturas cognitivas que nos permite
não só conhecer, mas também passar de um conhecimento insuficiente para um mais
aprimorado dos fatos da realidade. É nesse sentido que entendemos, a partir de nossa
pesquisa, que o sujeito, mediante suas ações no mundo e pelo processo biológico-cognitivo
de adaptação-organização, constitui-se enquanto sujeito do conhecimento, mas não só: é a
partir dessa construção que o próprio mundo se constitui como exterior a esse sujeito e
como passível de ser conhecido.

55
A complexificação do sistema de esquemas, devido a esse processo de adaptação-
organização, culminará em estruturas mais elaboradas, com reversibilidade das ações,
como no caso do Grupo Prático de Deslocamentos, fundamental para a consolidação da
estrutura cognitiva. De modo que o sujeito não está limitado a responder por estímulos do
meio, mas ele mesmo atuará na busca de compreensão desse meio.

56
REFERÊNCIAS

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Synthétiques dans les Comportements du Sujet. Paris: Presses Universitaires de France.

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Thompson, R. (2010). A comprehensive dictionary of mathematicas. Chandigarh: Abhishek


Publications.

57
CONCEPÇÕES SOBRE O CONCEITO DE INTENCIONALIDADE NO ÂMBITO
ESCOLÁSTICO E FENOMENOLÓGICO

Edsel Pamplona Diebe


Universidade Federal de Santa Maria
E-mail: edsel_diebe@yahoo.com.br

RESUMO

O propósito do nosso trabalho é mostrar o conceito de intencionalidade a partir da


perspectiva escolástica e da perspectiva fenomenológica. No período escolástico, a
intencionalidade esteve presente na doutrina da espécie, no ato cognitivo que se
concretizava na relação entre o intelecto e o objeto: o objeto passa a ser conhecido
intencionalmente e o que o intelecto retém é apenas a imagem desse objeto, não o objeto
em si mesmo. Nesta perspectiva, o que se conhecia do objeto era apenas um aspecto, uma
qualidade, que nada mais é do que a coisa significada na mente, uma substituição do
objeto. O conceito de intencionalidade na fenomenologia, aplicado ao conhecimento, se
mostra no movimento da consciência que se volta para o objeto, e o objeto que se
apresenta à consciência. Portanto, a intencionalidade se caracteriza sempre na consciência
de algo. Um objeto pode ser um simples objeto; o que faz com que o objeto seja o que ele
é, é o movimento intencional. Segundo Sokolowski (2004, p. 21): “A mente e o mundo são
correlatos entre si. Coisas aparecem para nós, coisas verdadeiramente descobertas, e nós,
de nossa parte, revelamos, para nós mesmos e para os outros, o modo como as coisas são.”.
Na filosofia contemporânea, temos, desde Brentano (1838-1917), o conceito de
intencionalidade visto a partir da psicologia descritiva, transposto para os fenômenos
psíquicos. Os objetos da intencionalidade serão reais e, assim como na esfera psíquica, um
juízo pode ser negado ou afirmado, na esfera afetiva o objeto será para a consciência
amado ou odiado. Buscou-se em Brentano uma conexão dos fenômenos mentais que não
devem ser considerados no âmbito físico-químico. Nas vivências psíquicas, existe uma
racionalidade envolvida que não se reduz às vivências empíricas. A partir dessa
perspectiva, chega-se a certos componentes a priori que possuem validade universal. Em
Husserl (1859-1938), o conceito de intencionalidade será tomado do âmbito da
fenomenologia pura, que irá se caracterizar no movimento de transcendência da
consciência em direção ao objeto. Este, pela via da redução eidética (époche), poderá se
apresentar à consciência enquanto tal. As crenças e as opiniões são colocadas de lado e o
objeto se revela a consciência de modo imediato.
Palavras-Chave: Intencionalidade; Abstração; Escolástica; Fenomenologia; Pedro
Abelardo (1079-1142).
***

A escolástica medieval 6 , compreendida entre os séculos XI e XIV, se


caracterizou em um modo peculiar de filosofar, através das disputas entre as autoridades da
Igreja. Seu início ocorreu principalmente com Pedro Abelardo (1079-1142) no século XII,
6
Utilizaremos como autor de referência as concepções de Pedro Abelardo.

58
e se prolongou nas Universidades a partir do século XIII entre os religiosos. Por trás das
querelas estava a filosofia e o filosofar, uma tentativa de refletir sobre os problemas, de dar
sentido a uma filosofia que, embora se justificasse na fé cristã, buscava também,
principalmente pela via aristotélica, fundamentar racionalmente seus problemas. Segundo
Muralt (1998, p. 190):

Sem dúvida o caráter escolar do debate pode mascarar seu verdadeiro alcance.
Permanece o fato, pelo menos para aquele que tenta observá-lo de perto, de que
o problema das distinções implicava o próprio estatuto da filosofia e que o que
estava em jogo nele não era senão a possibilidade do ato de pensar humano.

Os temas filosóficos, abordados no período escolástico, principalmente os


de cunho aristotélico, serão em partes retomados na modernidade. Como exemplo de temas
aristotélicos, podemos destacar: a natureza dos objetos, a querela dos Universais, a ação do
conhecimento entre o sujeito enquanto potência de conhecer e o objeto enquanto potência
de ser conhecido, entre outros (MURALT, 1998).

Entre os temas em destaque, salientamos a relação de conhecer entre o


sujeito e o objeto. O sujeito conhece o objeto quando alguma propriedade deste o afeta. O
objeto é em si mesmo composto de vários aspectos, várias qualidades que formam uma
unidade7. Quando dizemos que “Pedro é um animal racional”, concluímos que as extensões
“animal” e “racional” são ambas as qualidades que predicam o sujeito “Pedro”. Muitas
outras qualidades seguem predicando o sujeito em questão, podendo ser também
contingente como “Pedro é branco” ou “Pedro é bom”. Cada uma dessas qualidades são
distintas entre si, porém, em “Pedro” formam uma unidade. Conforme Muralt (1998, p.
195): “Os “aspectos” objetivos que Pedro contém são, portanto, não somente distintos de
uma certa forma, mas idênticos no sujeito que eles afetam segundo a ordem de sua
composição própria.”.

Para Pedro Abelardo 8 , toda predicação deve necessariamente estar em


conformidade com o estado da coisa (status rei). Isso significa que o sujeito “Pedro” deve

7
“[...] Aristóteles mostra que a unidade real de uma coisa numérica e existencialmente idêntica não impede
de nenhum modo uma pluralidade de “aspectos” distintos desta coisa.” (MURALT, 1998, p. 194).
8
Este tema será desenvolvido em Pedro Abelardo no opúsculo Glossulae super porphyrium (primeira parte
da Logica ingredientibus), trabalho em que Abelardo tentará conduzir uma solução às questões deixadas por

59
predicar uma realidade. Se afirmarmos que “Pedro é um animal racional”, o predicado está
em conformidade com o que Pedro é. Se afirmarmos que “Pedro é uma pedra”, não
estamos em conformidade com a natureza de “Pedro”, que é ser “homem” e, por extensão,
“animal racional”. O mesmo vale para os objetos: inclusive os predicados contingentes
devem estar em conformidade com a natureza do mesmo (ABELARDO, 1994).

Quando conhecemos “Pedro”, apenas alguns desses aspectos ou qualidades


se manifestarão à nós; nunca reteremos “Pedro” por inteiro, em si mesmo. Quando
conhecemos algum objeto, a operação cognitiva será a mesma: apenas conheceremos
alguns de seus aspectos. A intencionalidade dessas operações mentais são denominadas de
processo abstrativo. Encontramos sua definição em Abelardo como um processo
intelectivo: “Assim, deve-se saber que a matéria e a forma sempre existem misturadas ao
mesmo tempo, mas a razão, pertencente à alma, tem o poder que é ora considerar a matéria
por si mesma, ora dirigir a atenção só para a forma, ora conceber as duas misturadas.”
(ABELARDO, 1994, p. 207).

A abstração é, portanto, um processo racional que não dirige a atenção a


unidade do objeto. O que se conhece são alguns aspectos ou qualidades que serão
inteligidos ou representados na mente de forma confusa. Muralt (1998) ressalta que o
conhecimento tomado a partir da abstração, revela uma imperfeição da inteligência:

[...] uma pluralidade de “aspectos” objetivos que são (existem) idênticos nele
[objeto] e que, por isso mesmo, só podem ser apreendidos de maneira imperfeita
e confusa no primeiro olhar da inteligência. [...] É a imperfeição da inteligência
humana que a impede de apreender num só golpe, segundo uma visão clara e
distinta, a pluralidade dos “aspectos” objetivos que a coisa concreta engloba [...]
A abstração manifesta uma enfermidade, jamais uma perfeição da inteligência.”
(MURALT, 1998, p. 203).

Na visão cristã de Pedro Abelardo, existe uma justificação em Deus para a


confusão do conhecimento gerado pela abstração. Somente Deus, o criador de tudo, poderá
ter intelecções diretas e perfeitas das coisas. O conhecimento do homem, tanto de coisas
particulares como de coisas universais, permeiam no campo da sensação e,

Porfírio (século III) acerca do estatuto ontológico dos Universais. No português, o opúsculo foi traduzido por
“Lógica para Principiantes”.

60
consequentemente, da simples opinião. O conhecimento intelectivo e verdadeiro
dificilmente acontece. Bertelloni (1998, p. 12-13) salienta que, na perspectiva de Abelardo:

Deus conhece de antemão tudo o que cria e não necessita da abstração, pois
conhece diretamente. [...] Somente esse conhecimento divino é perfeito [...] o
uso da abstração por parte do homem só oferece um conhecimento deficiente [...]
posto que conhecemos mediante os sentidos não podemos pretender conhecer
bem mediante qualquer outra faculdade que seja estranha ao modo propriamente
humano de conhecer.9

A filosofia contemporânea, em sua forma fenomenológica 10 , eliminará o


conceito de conhecimento por abstração, assim como a ideia de Deus onipotente. Segundo
Muralt (1998, p. 220):

A hipótese teológica dos medievais torna-se para os modernos fato metafísico, e


está aí a característica fundamental, paradoxal para uma filosofia pretensamente
preocupada em se desligar da teologia, de atribuir a Deus um papel tão exclusivo
em todas as formas de atividade humana.

A fenomenologia11, enquanto busca autêntica da verdade, volta-se para o


sujeito e não para Deus. Nesse sentido, a ideia de sujeito será desenvolvido a partir do
conceito de “ego transcendental”, que é responsável pelo que faz e diz. Segundo
Sokolowski (2004, p. 216):

9
“Dios conoce de antemano todo lo que crea y no necesita de la abstracción, pues conoce directamente. [...]
Sólo ese conocimiento divino es perfecto. […] el uso de la abstracción por parte del hombre sólo ofrece un
conocimiento deficiente […] puesto que conocemos mediante los sentidos no podemos pretender conocer
bien mediante cualquier otra facultad que sea extraña al modo propiamente humano de conocer.”.
10
Na fenomenologia, a filosofia é vista como ciência, mas se diferencia das demais ciências. Ela não
privilegia uma vertente em particular, mas busca a verdade tal como ela é, na realização racional do ser
humano. Sokolowski (2004, p. 167) afirma que: “A filosofia é um esforço científico, mas é diferente da
matemática e das ciências sociais e da natureza; ela não é concernente a uma região particular do ser, mas à
veracidade enquanto tal: às relações humanas, à tentativa humana de descobrir o modo como as coisas são e à
habilidade humana de agir de acordo com a natureza das coisas; por fim, é concernente ao ser enquanto ele
manifesta em si mesmo para nós.”.
11
A fenomenologia, enquanto ciência das essências: “[...] reconhece a realidade e a verdade dos fenômenos,
as coisas que aparecem. [...] As coisas não apenas existem; elas também manifestam a si mesmas como o que
elas são. [...] Quando fazemos juízos nós enunciamos a apresentação de partes do mundo; nós não
organizamos simplesmente ideias ou conceitos em nossas mentes.” (SOKOLOWSKI, 2004, p, 23).

61
Ela [a fenomenologia] introduz o papel do ego, mostrando que o conhecimento
humano não é o trabalho de um intelecto agente separado dos seres humanos,
mas a realização e posse de alguém que pode dizer “Eu” e que pode assumir
responsabilidade pelo que diz.

A compreensão, a partir da fenomenologia, está em analisar o pensamento


propriamente dito. A visão de buscar na história a compreensão para a filosofia desaparece.
As outras formas de filosofia são compreendidas, segundo Muralt (1998, p. 234), a partir
de outras filosofias: “Elas se fecham assim à autêntica compreensão filosófica,
contentando-se em aproximar e excluir por acidente, num sincretismo histórico mal
fundamentado.”. Ao fazer a análise histórica da filosofia a partir de outras filosofias, corre-
se o risco de reduzir a filosofia em descrições históricas e com isso pode-se perder seu
verdadeiro valor.

A abordagem fenomenológica considera na époque o movimento entre o


ato de pensar, de perceber (noêsis) e o objeto da consciência, da percepção (noêma), que
através da intencionalidade, se revela a consciência enquanto tal. Esse movimento entre
consciência e objeto não é fruto da abstração. Não se conhece o objeto dirigindo a atenção
para algum aspecto ou qualidade deste. Dotada de uma estrutura formal, pura e a priori, a
consciência não apreende o seu objeto desassociado da sua unidade, mas o apreende
inteiro, em uma intuição imediata.

A filosofia na escolástica desenrolou-se no campo da fé e da Revelação. A


razão, na maior parte do tempo, era concebida e justificada apenas como instrumento da
teologia. No período escolástico, a filosofia era concebida nas artes liberais como
disciplina do trivium12. Ela se caracterizava como instrumento racional de validação dos
problemas tanto de cunho filosófico quanto de cunho teológico. Leite Junior (2001, p. 43)
afirma que:

O estudo da dialética, no sistema educativo medieval, adquiriu pleno destaque


frente às demais áreas de pesquisa. Tornou-se um domínio do saber que
assegurava ao homem, de um modo racional, a possibilidade de discernir o
discurso verdadeiro do falso. [...] A dialética era empregada para uma análise
racional de problemas, inclusive os do âmbito da teologia.

12
Antes do advento das Universidades, a atividade filosófica estava ligada ao ensino das artes liberais nas
escolas monásticas. Elas se dividiam em trivium (gramática, dialética e retórica) e quadrivium (música,
aritmética, geometria e astronomia).

62
A ÉTICA NO ÂMBITO DA INTENCIONALIDADE

Em Abelardo, o conceito de intencionalidade se revela no âmbito da moral


da intensão enquanto inclinação para o pecado. O intelecto, dotado de razão, de forma
consciente e deliberada intenciona uma ação que pode tanto consentir uma ação boa como
uma ação ruim. Reconhece-se em Deus a única instância capaz de decidir sobre a
existência do pecado ou do mérito. O pecado nasce de uma intenção consciente e
deliberadamente ruim, que se caracteriza em desacordo com os desígnios de Deus.
Segundo Chaves-Tannús (1996), Abelardo tem um modo diferente de conceber à ética que
se diferencia dos demais filósofos cristãos que viveram em seu tempo: a inclinação do mal
vai além do costume, sendo uma intensão racional, consciente e deliberada:

Aceitando não só a possibilidade de existência de usos e costumes que podem


produzir em nosso espírito caracteres que nos inclinam para o mal, mas ainda a
possibilidade objetiva de decidir sempre se as ações a que nos conduzem são
boas ou ruins, exercendo, nessa medida, sobre eles, um controle a partir da razão.
Abelardo abre espaço de fato à crítica e à transformação como instâncias
possíveis e realidades eventualmente desejáveis. (CHAVES-TANNÚS, 1996, p.
47)

Dessa forma, o pecado torna-se objeto de investigação filosófica: liga-se,


portanto, ao consentimento e não simplesmente a satisfação de desejos. Existe a
possibilidade de administrar nossas inclinações pela via racional, pois ela nos torna
responsáveis pelas nossas ações. Conforme Chaves-Tannús (1996, p. 68): “[...] A culpa, ou
seja, o pecado propriamente dito, só pode existir onde há uma razão em atividade, capaz de
discernir, com pleno conhecimento de causa, pelo desprezo a Deus. [...]”.

Um desdobramentos do conhecer fenomenológico é concebido também no


âmbito da ética. Consideramos aqui os conteúdos éticos no movimento da intencionalidade
prática levado para o campo formal (formalização da ética). Ferrer (1991, p. 457), salienta
em Husserl: “A busca de paralelismo com a esfera das proposições e leis lógicas [ ..]”13. O
bem, o mal, os atos volitivos, a emoção, o prazer, o bom, a dor, etc. que em sua

13
“La búsqueda del paralelismo con la esfera de las proposiciones y leyes lógicas […]”.

63
normalidade são considerados no campo da emoção, a partir de uma análise ético-
fenomenológica, serão expressos e valorados a partir da razão:

A razão encontra aqueles dados intencionais e suas conexões que estão


implícitos na capacidade de sentir prazer, de inclinar-se, de desejar [...] O desejar
intencional não é um mero fato sobre a qual a razão julga imediatamente, mas é
um certo <<julgar>>, uma tomada de posição, um avaliar, porém a vontade em si
14
mesma não pode expressá-lo, necessita dos atos lógicos. (FERRER, 1991, p.
459).

Quando, por exemplo, um desses sentimentos nos dominam, há implícito


um assentimento, uma valoração objetiva e universal. Todos os sentimentos devem estar
fundamentados em uma valoração, sujeita à correção se necessário. Se nos alegramos, por
exemplo, há implícito uma ação, que é alegra-se e, consequentemente, uma valoração foi
concebida: “O desejar os meios é motivado pelo desejar os fins, analogamente, como
julgar a conclusão à luz das premissas vem motivada pelo assentimento destas. Alegrar-se
e entristecer-se são atos motivados racionalmente pelo prazer e o desprazer.”15 (FERRER,
1991, p. 459-460).

Em Husserl, a ética será tratada no âmbito formal. Os conteúdos éticos


possuem valor objetivo e universal. A intencionalidade existe no valorar, no ajuizar e não
no valor em si mesmo. Alguém só pode querer algo se já valorou sobre isso de forma
racional. E o querer não está atrelado à fé ou ao pecado como em Abelardo.

A ética é, então, tratada com o mesmo rigor objetivo da lógica: compreende-


se uma situação subjetiva dentro de uma perspectiva formal. A ação, neste sentido, não
está desvinculada da racionalidade prática; ela é explicitada em uma perspectiva objetiva.

As vivências subjetivas como o desejar, o querer e o sentir não são apenas


vivências subjetivas, mas modos intencionais que se dirigem aos conteúdos objetivos. A
intencionalidade é racional nos atos emotivos, se dispõe a priori segundo as normas de

14
“La razón encuentra aquellos datos intencionales y sus conexiones que están implícitos en la capa del
sentir agrado, del tender, del querer […] El querer intencional no es un mero factum sobre el cual la razón
juzgue luego sino que es un cierto <<juzgar>>, una toma de posición, un valorar, pero la voluntad misma no
puede expresarlo, necesita de los actos lógicos.”.
15
“El querer los medios es motivado por el querer los fines, análogamente a como juzgar la conclusión a la
luz de las premisas viene motivado por el asentimiento a éstas. Alegrarse y entristecerse son actos motivados
racionalmente por el agrade y el desagrado.”.

64
correção. Quando a intencionalidade é transferida para as vivências de uma pessoa, temos
que cada um participa de um mundo circundante e se relaciona com as mesmas realidades
objetivadas de outras pessoas (experiência intersubjetiva).

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho


Benedetti. 4º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 575-577, 437-439.

ABELARDO, P. Lógica Para Principiantes. Tradução de Ruy Afonso da Costa Nunes.


São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção Os Pensadores).

BERTELLONI, C. F. Pars Construens. La solución de Abelardo al problema del Universal


la 1º parte de la Logica ingredientibus. In: Patristica et Mediaevalia. Buenos Aires, 1987,
VIII, p. 39-60; 1998, IX, p. 3-25.

CHAVES-TANNÚS, M. A “Ética” de Pedro Abelardo: um modelo medieval de aplicação


da lógica à Moral. Uberlândia: EDUFU, 1996.

FERRER, U. La Etica en Husserl. in: Revista de Filosofia, vol. IV, n. 6, Madrid: Editorial
Complutense, 1991. p. 457-467.

LEITE JUNIOR, P. O Problema dos Universais: a perspectiva de Boécio, Abelardo e


Ockham. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.

MURALT, A. de. A Metafísica do Fenômeno: as origens medievais e a elaboração do


pensamento fenomenológico. Tradução de Paula Martins. São Paulo: Ed. 34, 1998.

SOKOLOWSKI, R. Introdução à Fenomenologia. Tradução de Alfredo de Oliveira


Monaes. São Paulo: Loyola, 2004.

65
A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA DE ARISTÓTELES: PRÁTICA, CARÁTER E O
MÉRITO

Leonardo Cosme Formaio


Universidade Estadual de Londrina
formaio@gregorioeformaio.adv.br

RESUMO

A análise dos conceitos de justiça ou do que é justo, tratados desde o período clássico da
filosofia, quase nunca gozou de um consenso unânime dentre os pensadores éticos. Deste
modo, o presente trabalho irá tratar do conceito de justiça ou do que é justo, preconizado
pelo pensador clássico do século IV, Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco. A justiça,
como será tratada, tem o seu campo de vigência a prática das ações humanas e está ligada
diretamente ao caráter de cada indivíduo, o qual, por sua vez, é formado pela educação e
pela prática reiterada dos atos do homem. Será demonstrada também a importância desta
virtude ou da justa medida para o indivíduo e para a polis, sendo considerada a excelência
máxima, completa e desejada por todos. A justiça, para Aristóteles se divide em duas
vertentes, a justiça distributiva e a justiça corretiva. No entanto, o presente trabalho se
limitará ao desenvolvimento da justiça distributiva, com fulcro no princípio da distribuição
de acordo com o mérito individual, baseada em quatro relações, existentes entre duas
pessoas e outras duas coisas. Também será desenvolvido, diante do campo de aplicação da
justiça, o papel da educação e das leis para o direcionamento do homem para o
desenvolvimento de seu caráter constante. Será apresentado também, a análise de outros
pensadores a respeito da justiça distributiva de Aristóteles, inclusive se seu crítico
contemporâneo, John Rawls, o qual prescreve pela justiça distributiva, pautada na
equidade, na distribuição equânime dos bens para todos, sem distinção de mérito ou
qualquer outro fator.
Palavras-chave: Justiça; Mérito; Distribuição de Bens.

INTRODUÇÃO

O direito possui como uma das suas principais finalidades, a organização social e
a consequente obtenção da justiça, a qual propicia a realização dos preceitos tutelados por
nosso estado democrático de direito, conforme disposto no texto preambular da
constituição federal brasileira.
Contudo, a conceituação, contextualização, objetivos e meios para a obtenção da
justiça se demonstra dinâmica, ganhando novos contornos, conforme a evolução da história
do direito e da filosofia política (esta, entendida como a área do conhecimento responsável
pela realização de um exame rigoroso do uso que se faz dos termos do vocabulário
político).

66
O que é justo é um tema discutido desde o período clássico da filosofia ocidental,
sendo assunto corrente na ágora ateniense e objeto de estudo por grandes pensadores como
Platão e Aristóteles.
Para o fundador do Liceu, a justiça se trata da virtude mais completa, pois além de
propiciar a boa vida ao homem, ela diz respeito ao bem de outrem, transcendendo,
portanto, a ação pautada no próprio ego e no benefício singular.
Outrossim, a justiça aristotélica se divide em duas formas: quanto a divisão dos
bens e honrarias, a chamada justiça distributiva (objeto deste trabalho), pautada no
princípio da distribuição de acordo com o mérito individual; e a corretiva, concernente as
relações de transições entre os homens, podendo ser voluntária ou involuntária.
No período medieval, em razão da forte influência clerical, a justiça (ou o que é
justo) ganha revestimentos divinos, entendimento o qual, em virtude do fortalecimento do
estado, da evolução do movimento iluminista e advento da nova classe burguesa, é
superado pelo pensamento moderno jurídico; a justiça passa ser a mera consequência da
correta aplicação da norma universal e abstrata do direito positivado, possuindo na obra
teoria pura do direito (1934), a qual prega o jus positivismo estrito do jurista Hans Kelsen,
a sua principal manifestação.
Contemporaneamente, a justiça distributiva formulada por Aristóteles ganhou
contornos distintos com John Rawls, o qual prescreve pela equidade entre os cidadãos na
divisão dos bens comerciais e não comerciais, cabendo às instituições sociais a sua
distribuição igualitária, sem distinções de mérito ou outras questões particulares.
No Brasil, diante das políticas afirmativas, como por exemplo, as quotas
aplicáveis na seleção do ingresso nas universidades e concursos públicos; nas políticas
sociais, distribuição de renda e nas questões tributárias (alíquotas progressivas, conforme o
valor do bem tributado), nota-se forte influência do pensador Norte-Americano.
Contudo, diante de nosso atual cenário político, diretamente influenciado pelos
interesses partidários, a formulação de justiça raleseana, parece ser utilizada com moeda de
barganha, ou seja, a distribuição é realizada com interesses particulares, qual seja, a
perpetuação do poder.
Diante de tal cenário, o estudo da filosofia meritocrata de Aristóteles ressurge
como mecanismo importante de análise.

67
A PRÁTICA E O CARÁTER: OS CAMPOS DE ATUAÇÃO DA JUSTIÇA
ARISTOTÉLICA

A discussão acerca da justiça pode se dar em vários campos distintos: na filosofia,


na política, no âmbito social e judiciário.
Na filosofia, o conceito de justiça se dá no campo da ética, vertente preocupada na
reflexão com o modo de ser, com o caráter, com o costume e com o comportamento dos
homens. Ou seja, a reflexão ética-filosófica se dá eminentemente na prática, na ação do
homem em suas relações particulares ou políticas.
Para Aristóteles, como prescrito na obra Ética a Nicômaco (livro II), o homem,
conforme possibilidade de ação de sua natureza, encontra na eudaimonia (boa vida ou
felicidade), o telos (a finalidade) de sua vida.
Por sua vez, a boa vida/felicidade se dá com a práxis (prática) das excelências ou
virtudes, entendidas como aquelas ações ideais, resultantes do “meio termo” ou da “justa
medida” entre os excessos e da falta.
Para o pai do Liceu, a justa medida é fundamental para a formação do bom caráter
do homem, o qual, por sua vez é formado diante das práticas reiteradas. Ou seja, o bom ou
o mal caráter é resultante das ações contínuas de cada homem. As excelências, acredita o
pensador, se dá na prática, na aprendizagem, no fazer constante, como se conclui as leitura
da citação abaixo:
Por exemplo, os construtores de casas fazem-se construtores de casa
construindo-as e os tocadores de cítara tornam-se tocadores de cítara, tocando-a.
Do mesmo modo também nos tornamos justos praticando ações justas,
temperados, agindo com temperança e, finalmente, tornamo-nos corajosos
realizando atos de coragem. (ARISTÓTELES, 2009, p. 42).

Nesse sentido, a dificuldade maior está na direção da ação pelo homem, pois o
horizonte ou a possibilidade para o sucesso ou insucesso é exatamente o mesmo. O caráter
só poderá ser definido quando houver a possibilidade de resultados opostos:

É também ao agir em face de situações terríveis, que sentimos sempre medo ou


conseguimos ganhar confiança, isto é, que podemos ficar cobardes ou tornamo-
nos corajosos. De modo idêntico a respeito das coisas que fazem nascer em nós
desejo e ira. Uns conseguem tornar-se temperados e gentis, outros, porém,
tornam-se devassos e irascíveis. Resulta, então, destas considerações que é a
respeito das mesmas, que se definem em comportamentos contrários, ou seja,
que é possível portarmo-nos de modos diferentes. Assim, numa palavra, as
disposições permanentes do caráter constituem-se através de ações levadas à

68
prática em situações que podem ter resultados opostos. Por isso que as ações
praticadas têm de restituir disposições constitutivas de uma mesma qualidade,
quer dizer, as disposições do caráter fazem depender de si as diferenças
existentes nas ações levadas à prática. Com efeito, não é uma diferença de
somemos o habituarmos-nos logo desde novos a praticar ações deste ou daquele
modo. Isso faz grande diferença. Melhor, faz toda a diferença (ARISTÓTELES,
2009, P. 234).

Conclui-se, portanto, que as respectivas virtudes estão ligadas necessariamente a


as próprias ações. Ou seja, o corajoso é assim considerado, pois pratica atos corajosos, o
bondoso é considerado bom, pois pratica atos bons, assim por diante.
Aristóteles, diante deste horizonte de possibilidades, acredita que a educação,
propiciada pela família e pelo Estado, possui papel fundamental para a construção do
caráter permanente do homem:

A lei obriga, portanto, a viver de acordo com cada excelência em particular e


proíbe agir segundo cada forma particular de perversão. Quer dizer, os
dispositivos legais produtores da excelência universal foram legislados com vista
a uma educação que possibilite a vida em sociedade. Saber que a educação que
torna cada indivíduo bom em sentido absoluto, resulta da perícia política ou de
algumas outras ciências (ARISTÓTELES, 2009. p. 41).

Assim, a educação possui papel fundamental para o desenvolvimento do caráter


permanente do homem, devendo estar presente desde a sua infância, habituando-o no
exercício das virtudes.
Em decorrência destas afirmações, o Estado, por intermédio de sua Constituição
deve legislar com o fim um fim direcionador, fomentando no homem a prática das ações
virtuosas e corrigindo as suas transgressões:

A lei prescreve, pois ações a realizar: ao corajoso, como, por exemplo, não
abandonar o seu posto, nem fugir ou deitar as armas fora; ao temperado, como
por exemplo, não cometer adultério nem ser insolente; ao gentil, como, por
exemplo, não bater, nem falar mal de alguém, e ao mesmo a respeito das outras
excelências e perversões, na medida em que exorta a umas e proíbe outras
(ARISTÓTELES, 2009. p 41).

Com efeito, verifica-se que Aristóteles atribuiu as ações reiteradas o campo de


realizações das virtudes humanas, responsável pelo desenvolvimento e pela estabilidade do
caráter permanente do homem.
Diante disto, o homem só chegará a sua virtuosidade pela prática constante das
virtudes constantemente, ao ponto de formar o seu caráter. Assim, a justiça, a mais

69
completa das virtudes, como será tratada a seguir, será alcançada pela prática reiterada das
ações justas as quais fazem parte do caráter do homem justo.

A JUSTIÇA: A MELHOR DAS VIRTUDES

Assim como as demais virtudes (coragem, temperança, dentre outras), a justiça


encontra-se presente nas ações humanas, em seu caráter permanente: “Vejamos, então, o
que todos anseiam como justiça é aquela disposição do caráter a partir da qual os homens
agem justamente, ou seja, é o fundamento das ações justas e o que faz ansiar pelo que é
justo”. (ARISTÓTELES, 2009, p. 41)
Segundo Aristóteles, como exposto até aqui, o homem possui por telos a boa vida,
a qual se dá pela práxis virtuosa. Dentre as virtudes existentes, destaca-se a justiça, como a
virtude a ser perseguida por todos:

A justiça é a única das excelências que parece também ser um bem que pertence
a outrem, porque, efetivamente, envolve uma relação com outrem, seja esse
alguém superior ou um igual. O pior de todos é, então, o que é mau para si
próprio, e também para outrem. O melhor de todos, por outro lado, é o que
aciona a excelência tanto para si próprio como para outrem. (ARISTÓTELES,
2009. p 103)

Continua mais a frente

A própria justiça é, então, uma excelência completa, não de uma forma absoluta,
mas na relação com outrem. É por esse motivo que frequentemente a justiça
aparece com a mais poderosa das excelências, e nem a estrela da tarde nem a
estrela da manha são tão maravilhosas. (ARISTÓTELES, 2009, p. 104)

Essa importância demasiada atribuída por Aristóteles à justiça, principalmente no


que tange da sua importância em relação a outrem, deve ser analisada diante do alicerce do
seu pensamento, baseada na natureza política do homem, o qual se apresenta como um
animal político.
Para ele, a cidade é uma consequência natural da estrutura do homem, a qual
possibilita a este à realização de seu fim último, a eudaimonia.
O homem é incapaz de se auto realizar sozinho. A sua coexistência com outrem é
demasiadamente importante para a sua preservação e plenitude. Assim, o bem do outrem,
dada essa coexistência política, se apresenta como algo necessário para o nosso próprio

70
bem. Daí resulta importância extrema dada a justiça, a qual, mesmo advinda de um ato
individual, comunica e reflete na vida de outrem, e vice-versa.
A importância da justiça perante outrem é clarificada na transcrição abaixo:

A justiça concentra em si todas as excelências. É, assim, de modo supremo a


mais completa das excelências. É, na verdade, o uso da excelência completa. É
completa, porque quem a possuir tem o poder de a usar não apenas só para si,
mas também com outem.

Além conclui: “Assim entendemos por justo num certo sentido o que produz e
salvaguarda a felicidade bem como as partes componentes para si e para toda a
comunidade.”

Deste modo, visto que a ação justa propicia a felicidade própria e alheia o seu o
reflexo benéfico a outrem e a coletividade como o todo, a justiça se apresenta como a
virtude máxima a ser buscada pelo homem.

A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA EM ARISTÓTELES

A justiça em Aristóteles pode ser tanto distributiva, a qual diz respeito à


distribuição de bens e honrarias, bem como a corretiva, concernente às relações de
transições entre os homens, podendo ser voluntária ou involuntária.
No que se refere à distribuição dos bens esta é regida pelo Princípio da
Distribuição de acordo com o mérito individual. Ou seja, a justiça consiste “a cada um
proporcionalmente à sua contribuição, ao seu mérito’, nada além e nada aquém, como
ensinou o pensador:

Uma vez que o injusto é o que quer ter mais do que é devido, ele é assim
definido a respeito dos bens. E, na verdade, não a respeito de todos os bens, mas
apenas a respeito daqueles que dependem da boa e da má sorte. Estes são bens
em sentido absoluto, mas nem sempre são bens por relação com cada um
individualmente. Os humanos pedem-nos em preces e perseguem-nos. Mas não
deviam. Deviam era antes pedir que os bem em sentido absoluto fossem também
bens relativos ao próprios, e assim escolher o bem absoluto em si como um bem
relativo para si. (ARISTÓTELES, 2009, p. 104/105)

Conforme dito pelo próprio Filósofo, na Ética:

“Uma das espécies de justiça em sentido estrito e do que é justo na acepção que
lhe corresponde, é a que se manifesta na distribuição de funções elevadas de

71
governo, ou de dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas entre os
cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela constituição da
cidade, pois em tais coisas uma pessoa pode ter participação desigual ou igual à
de outra pessoa.” (ARISTÓTELES, 1996, p. 197)

Nesse sentido, o que existe como critério de distribuição dos bens não é uma
divisão equânime, e sim a proporcionalidade, conforme interpretou France Farago:

Na justiça que se aplica as distribuições, a pessoa é apreendida sob o ângulo dos


méritos, segundo critérios que variarão conforme a apreciação dos governantes.
O justo será com efeito na parte que volta a cada um para recompensá-lo pelo
seu mérito, e envolve uma relação de proporcionalidade entre a coisa devida e o
resultado, socialmente controlável, na obra individual ou do trabalho fornecido.
O justo sempre supõe uma condição com quatro relações: duas coisas, duas
pessoas – medir-se-á assim, paralelamente, a remuneração do arquiteto e aquele
do construtor em proporção aos seus respectivos trabalhos. (ARISTÓTELES,
2009, p. 234)

Nesse sentido, clarifica Michael J. Sandel

Para Aristóteles, justiça significa dar às pessoas o que elas merecem, dando a
cada um o que lhe é devido. Mas o que uma pessoa merece? Quais são as
justificativas relevantes para o mérito? Isso depende do que está sendo
distribuído. A justiça envolve dois fatores: as coisas e as pessoas a quem elas são
destinadas. E geralmente dizemos que pessoas iguais devem receber coisas
também iguais. (ARISTÓTELES, 2009, p. 234)

Portanto, para auferir o que é justo, será necessário a análise dos critérios acima
elencados: duas pessoas e duas coisas. Assim, a distribuição, diante desta formulação de
Aristóteles não pode ser idealizada ou normatizada pelo Estado. A distribuição dependerá
do mérito de cada indivíduo em relação a importância da sua ação, ou seja, o justo é
variável, dependendo da análise do caso concreto.
Outrossim, a distribuição dos bens deverá levar em conta critérios relevantes as
virtudes que se pretende bonificar, como escreveu Sandel ao tecer críticas a Aristóteles:

A justiça discrimina de acordo com o mérito, de acordo com a excelência


relevante. E, no caso das flautas, o mérito relevante é a aptidão para tocar bem.
Seria injusto basear a discriminação em qualquer outro fator, como riqueza,
berço, beleza física ou sorte (como na loteria) (FARAGO, 2004, p. 75).

Assim sendo, a Polis deverá considerar o que é pertinente a cada excelência para
melhor distribuir os bens e as honrarias.

72
Também, o individuo, sob pena de se configurar a injustiça, não poderá ter o que
não é lhe devido conforme seu mérito, é a abstenção do bem alheio, como nos ensina John
Rawls, o qual acredita que caberá as instituições sociais a interpretação de tal direito:

O sentido mais específico que Aristóteles atribui a justiça, e do qual provêm as


formulações mais conhecidas , é o abster-se da pleonexia, isto é, tomando o que
pertence a outrem, sua propriedade, suas recompensas, etc., ou de negar a
alguém o que lhe é devido, o cumprimento de uma promessa, o pagamento de
uma dívida, a demonstração do devido respeito, e assim por diante. É evidente
que essa definição está estruturada para aplicar-se a ações e que as pessoas são
consideradas justas à medida que tenham, como elementos permanentes do seu
caráter, um desejo firme e eficaz de agir com justiça. A definição de Aristóteles
pressupõe claramente, porém, uma interpretação do que pertence à pessoa e do
que é lhe devido. Ora, esses direitos quase sempre provem, acredito, das
instituições sociais e das expectativas legítimas que suscitam. (RAWLS, 2008 p.
13)

Portanto, a justiça distributiva de Aristóteles consiste na justa distribuição dos


bens pelo Estado, conforme os méritos de cada indivíduo.

CONCLUSÃO

Diante de nosso contexto político e social, o conceito de justiça distributiva


apresentado por Aristóteles nos parece distante e de difícil aplicação pelo Estado em sua
atual formulação.
O que temos hoje, diante do nosso contexto assistencialista, é a distribuição
equânime dos bens pelo Estado, ou seja, a distribuição tem por critério primordial a divisão
dos bens entre todos, não levando em consideração os méritos de cada indivíduo.
Para Aristóteles, este atual contexto não representaria a correta distribuição dos
bens, pois não se leva em consideração o caráter e a ação de cada indivíduo, contudo,
atualmente, a sua possibilidade de aplicação se torna litigiosa.
Contudo, o que torna incontestável é a valorização das ações e do caráter do
indivíduo na justiça distributiva Aristotélica.
Tal valoração e disposições acerca do que é justo, certamente fomenta o indivíduo
na busca pelos seus fins. A valoração individual e o fomento do Estado pelas práticas das
ações justas, também possibilitam ao indivíduo grande incentivo no desenvolvimento de
seus potenciais e do seu fim último, o seu bem viver, e, consequentemente, diante de seu

73
campo de atuação, os benefícios dos atos justos serão comungados entre todo o Estado,
motivo pelo qual, a justiça é considerada a máxima das virtudes.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São


Paulo: Atlas, 2009.

FARAGO, France. A Justiça. São Paulo: Manole, 2004.

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.

SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias.
Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2013.

74
FILOSOFIA EM EDUCAÇÃO DAS SÉRIES INICIAIS:
RETORNO AO ESPANTO E À CRIATIVIDADE
Fernanda Martins de Oliveira
Universidade Estadual de Londrina
nand_amar@hotmail.com

RESUMO

O presente trabalho consiste na tentativa de demonstrar a possibilidade de a Filosofia ser


apresentada como uma metodologia a ser utilizada pelos educadores, com a função de
despertar na criança a disposição de um pensar que se encontra latente, à espera de algo
que o manifeste, como condição de sujeito criativo que se atenta ao mundo de uma maneira
a espantar-se com ele. Espanto esse que se perdeu em algum momento deste mundo
moderno, no qual o homem tem criado movimentos de artifícios facilitadores como se
fosse um alongamento de seu ser, tornando-se apático e sem criatividade e com a sensação
de que o mundo não é digno de ser vivido e de que não há chance de sobreviver sem a
retomada deste evento que está em sua natureza. Reiniciar a construção do processo
ensino/aprendizagem abordando a relação que há entre esses eventos e com a manifestação
desta disposição oculta em nosso ser, pode auxiliar nossa natureza a alcançar o
desenvolvimento autônomo que o acompanhará durante sua vida. A partir da aplicação
deste processo metodológico, visamos que possa haver uma emancipação social, por
intermédio da qual o sujeito participe conscientemente da sociedade. A intenção aqui foi no
sentido de tentar argumentar que a filosofia possa ajudar na construção do pensar e refletir,
estruturando desde a infância de forma criativa e autônoma, trilhando-se assim para uma
cidadania responsável. E para que isso transcorra, visa também, o acompanhamento
docente que será corresponsável para que tal método seja possível. Para isso deve estar
bem preparado, para que não ocorra nenhum acidente, tendo por tanto que se verificar a
necessidade de revisão do método docente. Vilém Flusser faz uma crítica à modernidade
no sentido de que estamos caminhando rumo a um mundo tedioso sem espanto, de
natureza morta e sem criatividade, necessitamos retomar o espanto para que se possa criar
e ser criado. Sendo assim, a conclusão a que queremos chegar é de que a disciplina de
Filosofia, muito além de uma simples orientação, seria a que despertaria e incentivaria a
disposição criativa e crítica, que se encontra latente a manifestar-se e demonstra que a vida
possa ser digna de ser vivida segunda a nossa natureza misteriosa.
Palavras-chave: Filosofia com crianças, educação infantil, anos iniciais, conhecimento,
espanto.

A INFÂNCIA E A FILOSOFIA

Várias são as discussões em torno da educação desde há muito tempo atrás, até os
dias de hoje. Os temas discutidos são muitos: analfabetos funcionais, inclusão, cotas,
ensino/aprendizagem, dentre outros; no entanto, atentar-me-ei neste trabalho em uma
proposta de discussão sobre filosofia para crianças, e no método de ensino na visão
docente, e assim às questões que serão colocadas aqui tem como propósito a tentativa de

75
entender um pouco mais desse mundo filosófico com crianças, que muitos dizem não ter
condições de acontecer, pois o pensamento que se tem é ; já é difícil ensinar filosofia para
adolescentes e adultos – imagine-se então ensinar filosofia na educação infantil e em anos
iniciais. "Mas todos aqueles que estão diretamente relacionados com crianças pequenas
sabem que as mesmas pensam e verbalizam o que pensam; às vezes, inclusive, de forma
demasiadamente enfática." (KOHAN; Leal, 2001, p. 365). A partir disso surgem os
primeiros questionamentos: como ensinar filosofia? E de que forma aconteceria o
aprendizado filosófico na fase infantil? Como tornar criativas as crianças em meio a tantas
coisas imediatas?
É na infância que o ser humano absorve boa parte daquilo que vive em seu
ambiente, e das pessoas com as quais ele convive ou são responsáveis por ele. E nesta troca
de experiências, e absorção de vivência ambiental, é que se definem os parâmetros mentais
socialmente alimentados, de tal modo que esses acúmulos de vivência vão formando o
alicerce que vai garantir a construção de sua vida. A criança começa então sua relação com
o mundo e com as pessoas que a cercam, assim como os valores éticos que essa carregará
durante toda a sua vida. Portanto remete-nos a pensar na falta de criatividade que rodeia a
humanidade perante as coisas imediatas das tecnologias avançadas das quais temos tanta
dependência atualmente. O espanto é um evento necessariamente indispensável ao sujeito
criativo, e que tem sido prejudicado e vem se perdendo na era da modernidade, e em
consequência disto, a criatividade que é essencial ao sujeito fica prejudicada ou quase nula.
Com o acumulo do processo de coisas imediatas que o mundo moderno criou, é necessário
que possamos rever e identificar nos conceitos, caminhos que levaram a um olhar mais
detalhado do problema. E assim analisar em que sentido isso possa contribuir para uma
possível saída. Ou seja, para não perder a "subjetividade" criativa, visto que essa
desconstrução parece nos tirar do espanto que é natural ao sujeito em sua natureza. E que
se não há espanto não pode haver criatividade e assim o mundo parece não ter sentido para
vida. Vilém Flusser coloca neste caminho uma questão que a primeira vista parece ser
drástica: Por que não me mato? já que estamos caminhando para tal mundo tedioso, a
solução parece que seria matar-se já que esse mundo vem massacrando com suas coisas
que se precipitam sobre ele e que cada vez mais nos tornam dependentes e alienados. A
idealização de uma educação não pode estar pautada em uma educação domesticada e
alienada, deve acima de tudo ter consciência do ser como construtor desta caminhada rumo
à autonomia, e não apenas reprodutores de algo que já está colocado, ao mesmo tempo tem

76
por dever ser constituinte dessa sociedade segundo as leis que a rege. Assim sendo não
apenas aprender sem o devido entendimento.

EDUCAÇÃO FILOSÓFICA PARA CRIANÇAS

A criança quando no âmbito escolar precisa, além de conhecimento das disciplinas,


aprender a pensar tais disciplinas. Este pensar, como já colocado acima, encontra-se latente
a espera de um evento que o apresente para este ser e o lance no mundo, contudo há uma
necessidade interna que precisa ser despertada, de uma maneira que haja um incentivo para
que tal manifestação aconteça. Incentivo esse, que viria através da filosofia com o espanto.
A criança é um corpo sem órgãos conceito de Deleuze em sua obra Mil Platôs, e como a
criança em sua pureza de pensamento faz varias conexões que se cruzam na busca de
novas informações que lhe são inquietas, que as instigam para o conhecimento criativo,
seria desta forma com o espanto que as levaria a criar e ser criadas, assim este corpo sem
órgãos viria a ser tornar o que chamaria de ser criativo e com isso iniciaria sua caminhada
rumo a autonomia.
O espanto é desde Platão posto como raiz da filosofia que auxilia na busca de
respostas para o entendimento das coisas. Sendo assim, não se trata de simplesmente
aprender o conteúdo e sim pensar sobre o instrumento de aprendizado. Portanto a
disciplina de filosofia como instrumento de aprendizagem se faz necessária desde a
educação infantil, pois, através do ensino filosófico desde os primeiros anos escolares, a
criança estaria alicerçando um caminho a ser trilhando rumo à autonomia, que aconteceria
de forma consciente e responsável. Os questionamentos de como e de que forma algo
acontece fazem com que a criança pense muito além de que “aprendi algo”; e mais: ela
passa a pensar sobre aquilo que se está aprendendo e o propósito daquilo que se investiga.

EDUCAÇÃO E FILOSOFIA

No Brasil o sistema educacional é precário e deixa a desejar em muitos sentidos: as


escolas, com pouca estrutura, formam jovens e adultos que mal sabem ler e escrever, e que,
sem um ensino adequado que os preparem para uma vida universitária, chegam aos bancos
das faculdades totalmente perdidos, e devido a isso, aparecem então as dificuldades no
ensino superior; a falta de ler e interpretar corretamente o que lhes são propostos é uma das

77
dificuldades encontradas: não permite que se dê continuidade em muitas disciplinas sem
rever partes importantes que se perderam em algum lugar lá atrás. O que fazer então?
Como mudar isso? Por onde começar? Essas são apenas algumas perguntas que já
incomodam, e mais: sem muitas respostas à vista (ou melhor dizendo, sem muitos
interessados em resolvê-las, seja de imediato ou a longo prazo).

O que se vê são programas criados que incluem a filosofia para tentar melhorar a
educação; no entanto, de nada adiantam, ou não são suficientes para que essa melhoria
aconteça. Na realidade, muito pouco se tem feito, e esse pouco caminha a passos de
tartaruga, ficando assim longe de ser modelo de educação.

Hoje infelizmente as pesquisas na área de educação, e sobre desempenho dos


alunos desde a Educação Infantil, até terminarem o ensino médio, é simplesmente um
desastre, longe de ser uma satisfação como aponta o Sistema de Avaliação da Educação
Básica (Saeb). E ainda, que uma grande parte das pessoas que chega à faculdade não está
capacitada para tal: o que presenciamos são muitos analfabetos funcionais, que mal sabem
ler e escrever, muito menos entender o que está acontecendo à sua volta – não entendem,
nem conseguem pensar no que, como, e por que fazer.

A nosso ver, não apenas um olhar sobre Filosofia para crianças em fases iniciais
seria parte de uma possível solução nesse caminho como também uma mudança nos
métodos de ensino que necessitam de cursos que preparem melhor os professores que
tratarão com tal crianças, pois não adianta pensar que o problema esta exclusivamente nas
crianças e adolescentes e sim que não há suporte para preparar melhor os profissionais da
área de educação. Assim esse tema vai muito além de ensinar filosofia e sim de como os
docentes também são preparados para tal problema. O professor deveria ser o primeira a
buscar sua criatividade de forma espantosa e somente assim poder iniciar um processo de
ensino\aprendizagem que fosse ao encontro dessa criatividade que aos poucos foi perdendo
força, romper as correntes e deste modo, buscar resoluções para tais problemas aqui
colocado, e com isso buscar verdadeiramente a emancipação de uma sociedade que esta se
formando.
É como lançar uma luz na escuridão, em se tratando de evolução da educação. E
para isso é necessário que o ser humano busque em primeiro lugar o conhecimento de si

78
mesmo, e é nisso em que a filosofia pode ajudar, despertando esse ser para uma nova
realidade, um mundo onde as possibilidades se multiplicam de acordo com seus
conhecimentos. "A busca mais importante de todos os seres humanos é a busca de si
mesmos, que a essa busca se remetem todas as outras buscas." (KOHAN, 2009; p.131).

A educação infantil é uma porta aberta para explorar a aprendizagem, e para que o
conhecimento aconteça, é necessário mudança. "No modo tradicional de pensar a educação
filosófica da infância, levamos a filosofia à escola para formar crianças que sejam, no
futuro, adultos mais democráticos, tolerantes e responsáveis." (Walter Omar KOHAN,
2006; p.132). Nesta fase, as crianças buscam o conhecimento e necessitam saber de tudo
que se mostra no mundo ao seu redor, querem desvendar os mistérios que lhes vão sendo
apresentados naturalmente pela vida e convívio com outras crianças, e isto não deve ser tão
e somente feito de forma mecanizada, e sim de modo desafiador e interessante, para que se
desenvolva em um ambiente onde o aprendizado possa se tornar instrumento de autonomia
e democratização social. Neste ponto miro um olhar em Rousseau e sua obra Emílio, será
que o autor estaria correto ao criar o seu personagem Emilio, em meio a natureza para que
este não perdesse a criatividade, e tornar o espanto algo tão natural que não se perderia
nem mesmo envolto a modernidade com seus instrumentos facilitadores? Pois ele teria
sempre um olhar voltado a sua infância já que é nela que construímos a nossa vida?

As crianças em fase escolar inicial estão sedentas pelo saber, pelo aprendizado;
essas são curiosas incansáveis, não se satisfazem com apenas meias respostas, estão
sempre prontas a perguntar os porquês dos porquês. "As crianças pequenas e a filosofia são
aliados naturais, pois ambos começam com o assombro." (KOHAN; WUENSCH, 1999, p.
24). Desse modo, as crianças nesta fase estão abertas ao conhecimento que lhes é estranho
e esperam respostas que possam satisfazê-las, de forma a compreender esse mundo novo e
cheio de novidades, e ao inquietarem-se com as respostas, passam a explorar novas coisas
que se tornam novamente interessantes, e desta forma ficam gravadas na memória. Esse
interesse maravilhado pelo mundo é o que motiva as crianças a buscarem sempre novos
conhecimentos e serem criativas, e é o espanto das coisas que as movem para o saber; por
isto, exploram de forma intensa tudo aquilo que está presente nos acontecimentos de suas
vidas, e deste interesse surge um armazenamento de aprendizado que fica gravado na
memória. Percebem, por fim, prontamente que são capazes de trilhar novos caminhos por

79
conta própria, acontecendo neste momento a apreensão do saber.

A filosofia permite, sobretudo, pensar a nossa prática, a pensarmos uma outra


vez; a pensarmos e voltarmos a pensar; repetimos o gesto de pensar
filosoficamente a prática e, nesse gesto, nos pensamos e voltamos a pensar nós
mesmos. Trata-se de um gesto do pensamento que se repete para não repetir-se,
que desdobra uma repetição complexa, repetição do diferente e não do mesmo.
(KOHAN, 2006, p. 133).

A filosofia como uma ponte no qual possa refletir e pensar novamente, pois, seria
um repetir diferente do anterior, pois o tempo não é o mesmo que a um segundo atrás, ou
seja, cada movimento do repensar de uma nova forma.A filosofia faz-se necessária não
para induzir, mas com a intenção de conduzir a criança rumo ao conhecimento,
conhecimento este não apenas externo: vai além disso, vai em direção também à busca de
seu entendimento interno, podendo conduzir questões como: De onde viemos? Para onde
vamos? Qual o propósito da vida? Aprendendo, assim, a perceber suas potencialidades e
seus próprios caminhos, buscar novas conquistas, novas descobertas, podendo inferir
acerca desses novos caminhos, e que isto não seja de forma mecanizada, e sim de forma
que se pense no que se está apreendendo. "A experiência interna separada da experiência
externa é um lugar de demônios – o mundo interno é sem sentido. O que une esses dois
mundos é a imaginação comum ou o espírito criativo." (Kohan e Leal, 2001, p.65).

Portanto, a repetição é uma técnica ultrapassada e que necessita de ser substituída


pela forma pela qual se possa pensar filosoficamente, de modo que esta prática seja um
pensar por si e pelos outros, e assim, não apenas mecânica e de avanços tecnológicos. Não
que o avanço tecnológico não cumpra seu papel, pois este serve para resolver muitos
problemas práticos de nível superficial da vida. A filosofia, porém, a nosso ver, exerce um
papel muito mais relevante e fundamental no desenvolvimento do ser humano, e que desde
o início da educação deve ser explorado, porém de forma responsável e coerente, fazendo
com que se descubra a própria natureza de ser e de estar, e por que estar, mostrando assim
que se devem respeitar as diferentes formas de pensamento, garantindo-se assim as
individualidades, e caminhando para que no futuro haja uma cidadania autônoma e
democrática. A democracia não é um lado da vida em comum dos homens, mas uma tarefa
do pensamento. (KOHAN E LEAL, 2001, p.77).
Nesse sentido percebemos que a técnica mecanizada na educação não funciona para
que isto aconteça, pois para que se chegue à autonomia e democracia, é necessário

80
desenvolver o autoconhecimento, e para isto, por sua vez, é necessário muito mais do que
repetição. O que foi explanado até aqui não tem a pretensão de que isto seja trabalhado de
forma imediata, e sim visa que se deva começar o quanto antes; ou seja, desde a Educação
Infantil, para que quando se chegar ao ensino médio ou faculdade já se tenha como expor
criticamente pensamentos e práticas.

PROPOSTAS DE PRÁTICAS FILOSÓFICAS PARA CRIANÇAS

Conforme colocado em questão no inicio deste texto, como ensinar Filosofia? E de


que forma aconteceria o aprendizado filosófico na fase infantil? A Professora do Instituto
de Pesquisa sobre Ensino de Filosofia (IREF), em Barcelona, na Espanha, Angélica Satiro,
que é impulsora de Filosofia para Crianças na rede de ensino Pitágoras (MG), sugere: "O
que é proposto é utilizar práticas habituais que já ocorrem nas escolas, mas enfocadas de
maneira diferente – reflexiva – que é a principal contribuição que a filosofia pode
oferecer." (KOHAN E LEAL, 2001; p.365). A partir disto, podemos então sugerir uma
série de exemplos, a saber, as brincadeiras infantis praticadas nas escolas; poderia ser
colocada após essas brincadeiras uma reflexão voltada para elas, que foi desenvolvida;
assim a professora e os alunos podem começar uma atividade que parte de uma
investigação concreta.

Depois de brincar de cabra cega, podemos nos assentar em círculo com as


crianças envolvidas e conversar sobre a experiência vivenciada na brincadeira.
Uma conversa reflexiva sobre ela pode começar em torno da questão – Como foi
possível adivinhar quem era essa pessoa enquanto se estava de olhos vendados?
(KOHAN e LEAL, 2001, p.366).

Assim, as brincadeiras, e as atividades desenvolvidas a partir delas, são um


caminho para o ensino de filosofia, e com isso, o professor de educação infantil e anos
iniciais passa a sistematizar as experiências vivenciadas pelas crianças, e desse modo
propor as brincadeiras de acordo com o tema filosófico a ser trabalhado, a fim de que a
criança possa futuramente pensar melhor por si mesma, praticando desse modo os
questionamentos comuns às crianças: o quê, como e porquê.

Portanto, para que no futuro possamos compartilhar um lugar em que cidadãos


saibam muito além do seu mundo exterior, e já tenham o poder de conhecer suas

81
potencialidades e seu interior, é necessário, no nosso entender, além de um simples ensino
mecanizado, um sistema com base em autoconhecimento, o qual possa despertar interesse
ético e democrático, podendo então haver mutuamente a compreensão daquilo que é
melhor para um convívio em sociedade, e assim assumir verdadeiramente o cidadão seu
papel na sociedade.

REFERÊNCIAS

FLUSSER, Vilém. - Da religiosidade: A Literatura e o Senso de Realidade. São Paulo -


2002: Escrituras Editora, coleção ensaios transversais.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. - Mil Platôs Capitalismo e Esquizofrenia. São
Paulo-1995. tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 1ª edição. Editora 34.
ROUSSEAU, J.J, - Emilio ou da Educação. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
HEIDEGGER. Martin. Qu’est-ce Que la philosophie?. In. Col. Os Pensadores. Trad.
Ernildo Stein, Rio de Janeiro: Nova Cultural, 2005.
KOHAN, Walter Omar. e WUENSCH, Ana Miriam. Filosofia para crianças, volume I,
editora Vozes 1999.
KOHAN, Walter Omar.e LEAL, Bernadina. Filosofia para crianças, volume IV, editora
Vozes 2001.

82
O SENTIMENTO DO MUNDO: FICHTE E O PROBLEMA DA AFECÇÃO

Glauber Cesar Klein


glaubercklein@gmail.com

RESUMO

A comunicação delineia a importância do conceito de sentimento no pensamento de Fichte


nos anos de 1793 a 1797. Abordaremos o tema do sentimento, em Fichte, por dois
caminhos: 1. A concepção moderna do sentimento, em divergência à noção grega de
πάθος; 2. A função que o sentimento exerce na resposta que Fichte dá ao “problema da
coisa-em-si”, particularmente às discussões em torno desta tópica por parte dos primeiros
leitores kantianos, entre os quais: Garve, Jacobi, e Heinhold.
Palavras-chave: Sentimento, afecção, coisa-em-si, idealismo alemão.

NOTAS PARA UMA GÊNESE DO SENTIMENTO16

O conceito de sentimento (Gefühl), mais precisamente, de sentimento originário


(ursprüngliche Gefühl), surge na terceira parte da GWL. Convém introduzirmos o tema do
sentimento a partir da sua especificação ao tradicional conceito de paixão. Em termos
estritos à filosofia crítica, trata-se de entender que há um progressivo distanciamento, ou
distinção conceitual, do sentimento em relação à sensação. Como é notório, tanto as
sensações, afecções dos sentidos, determinação corporal em sua exterioridade, quanto os
afetos, afecções da alma, determinação psicológica, foram reunidas pela antiguidade greco-
latina sob a generalidade do conceito de paixão. Característica essencial da paixão é a
passividade, a dependência de uma ação externa ao que é movido pelas paixões. Neste
sentindo, J.-P. Camus explica:

Não é preciso consultar longamente seu léxico para encontrar a partiendo, posto
que a alma sofre como que distorções quando é pressionada e solicitada um
pouco além da medida, de algum desses movimentos, o que poderia convir com
a opinião daquele filósofo antigo que chamava as paixões de doenças da alma.
Poder-se-ia alegar, ao contrário, que esse nome parece impróprio para a coisa à
qual se quer uni-lo, parecendo ter mais afinidade com o corpo do que com a
alma, que por sua natureza parece impassível, como uma forma viva e
vivificante, nascida mais para agir do que para sofrer a ação, se não se quisesse
dizer que nessa matéria passio tirasse sua origem do verbo grego ποιέω, que

16
Inspiramo-nos, para o tema, com a leitura do artigo do professor Rivera de Rosales: La relevancia
ontológica del sentimiento en Fichte (López-Domínguez, 1996, pp. 245-74). A nossa abordagem da questão
pressupõe – e por isso não repete – os esclarecimentos presentes no artigo. Esta comunicação é parte de
pesquisa por nós desenvolvida ao longo do curso de mestrado em filosofia pela UFPR, concluído em março
de 2013.

83
significa fazer, de onde teria procedido a palavra πάθος, de onde vem o termo
paixão. E, de fato, quem quiser considerar de perto as paixões em seu ser
específico encontrará que elas são antes movimentos da alma agindo do que
suportando: o amor, o ódio, a cólera e as outras parecem agir contra ou a favor de
seus objetos, mais do que serem atingidas por estes. (DESCARTES, 1998, p.
XXXVI)

Ainda que o grego πάθος enfatize a ação, essa é pensada como um momento do
fenômeno geral de “ação de uma realidade externa” (DESCARTES, 1998, p. XXXVI). A
modernidade, enquanto fundação da subjetividade, romperá com a noção clássica de
paixão, esforçando-se por compreender parte da vida afetiva como originária ou, pelo
menos, condicionada pela natureza do sujeito. Precisamente, o sensualismo moderno que
critica a distinção substancial entre corpo e espírito encarregar-se-á de distinguir os afetos
das afecções dos sentidos, para então, com o romantismo e suas origens, distinguir os
afetos dos sentimentos. É que o advento da subjetividade forçará o pensamento a pensar
uma instância anterior, ou pelo menos rigidamente distinta, da consciência em relação à
exterioridade física. Em termos kantianos, especialmente, isso pode ser traduzido pelo
esforço de pensar um a priori como condição de aparecimento de todo conhecimento,
inclusive do psíquico. Se em Kant, porém, ainda conserva-se a irredutibilidade da
sensibilidade em relação ao entendimento, começa a se delinear uma transcendentalização
dos sentimentos; presença ocasional do sentimento-de-si na primeira Crítica, passando pela
importância notória do sentimento de respeito na segunda, para então na terceira ocupar
lugar central os sentimentos de prazer e desprazer, para explicação dos juízos estéticos.
Contudo, como veremos, ainda em Kant os sentimentos – exceção, talvez, ao de respeito
na filosofia prática – são pensados como estritamente ligados às sensações: o sentimento
depende da sensação. Em Fichte, a sensação depende do sentimento.

O termo sentimento é uma tradução do latino sěntīre (pres. at.; o infinitivo:


17
sentiō ). A primeira coisa que chama a atenção, na etimologia da palavra, é que ela não é
uma tradução de um termo grego; a se confiar nos dicionários etimológicos, o termo parece
ter uma origem espúria. Fato é que ele já aparece na literatura latina, seguramente em
textos literários da baixa idade média. O latim da idade média (especificamente, séc. XV)
consagrou a forma que hoje conhecemos: sentīmentum. Para isso, entretanto, seu
significado passou do primordial conjecturar – mas não no sentido moderno de especular,

17
Cf. “Sed ne me putes improbasse schedium Luciliane humilitatis, quod sentio et ipse carmine effingam”
(PETRÔNIO, 2004, p. 16).

84
antes mais próximo do termo, também moderno, pressentir, isto é, entrever – para o de ser
senciente. Com efeito, o ser senciente deriva do latim (séc. XIII) sentiens, como adjetivo
de segundo grau: que sente18. Na romanização do latim, o francês é a língua que parece ter
dado mais interesse ao vocábulo, pois é dela que data – séc. XVIII – a apropriação da
forma latina mais acabada (sentīmentum), a saber, sentimental, e dele derivaram as
variações hoje usuais inclusive no português: sentimentalismo, etc.

Em termos de história da filosofia, por outro lado, parece não haver consenso
sobre seu aparecimento. O termo aparece, claramente distinto da sensação e assim
tematizado, no Traité des sensations (CONDILLAC, 1754, p. 28), de Condillac – “O
sentimento (sentiment) é capaz de ser mais vivo que a sensação (sensation)” (tradução livre
nossa). Mais importante que a mera distinção de denominação ou grau, é a ideia do
sentimento como um estado passível de existir sem uma relação causal direta pelos
sentidos, isto é, sem uma relação do corpo com algo externo a ele:

Como já distinguimos duas atenções, que estão na estátua, uma pelo olfato, a
outra pela memória, podemos agora perceber uma terceira, que dá à imaginação,
e cuja característica é fixar as impressões dos sentidos, para substituir um
sentimento independente da ação dos objetos externos (CONDILLAC, 1754, p.
57).

Porém, ainda que o conceito de sentimento, em Condillac, seja distinguido do de


sensação, seja pelo seu possível nível de vivacidade, seja por sua independência em relação
à atualidade de objetos, permanece todavia secundário, dependente da existência, primeira,
daquela.

Philippe Desan, em seu Dictionnaire de Michel de Montaigne (DESAN, 2007, pp.


1059-60), verbete Sentiment, aponta a ocorrência do termo nos Ensaios (primeira
publicação: 1580; segunda: 1588; terceira, póstuma, de acréscimos 1595): “Os usos da
palavra 'sentimento', nos Ensaios, são tão variados quanto os nossos, se não mais”
(tradução livre nossa). De um modo geral, segundo Desan, o sentimento está ligado à
opinião, à crença e à consciência, assim como à sensibilidade, à afetividade e às paixões,
porém “sua polissemia não é puro caos e, na complexidade do sentir, Montaigne liga em

18
Assim, o termo já aparece no Dolce stil novo, notadamente nos poemas de Vita nuova, de Dante Alighieri,
por exemplo, “né dentro i sento tanto di valore” (poema L), “poi tanto furo, che cio che sentire” (poema LI),
“sentiron pena de l’altrui dolore” (poema LVIII), “ché quella bella donna che tu senti” (poema LXXIX),
(ALIGHIERI, 1996).

85
uma síntese indissoluvelmente psicológica e moral, o sentimento como afeto e o
sentimento como consciência” (DESAN, 2007, p. 1059). Enquanto afeto, o sentimento não
é nada mais que o modo como somos afetados pelas coisas:

...a crítica dos sentidos que encerra a Apologia de Raimond Sebon denuncia o
caráter enganador: alterando a forma das coisas. Por isso, a sensibilidade não
pode estabelecer um conhecimento objetivo do mundo (II.12.601). Mas quando
atenta-se à maneira como ela nos afeta (que é o sentimento mesmo), sem
acreditar ingenuamente que deste modo nos são dadas as características das
coisas que nos afetam, acerta-se. Isto quer dizer que da sensibilidade Montaigne
retém apenas o sentimento, dando a ele a presidência. Não há ciência senão do e
pelo sentimento (DESAN, 2007, p. 1060).

Por outro lado, Desan julga que, após uma crítica aos “doutos que pretendem
conhecer a natureza”, mas nada mais “fazem do que reduzir suas regras à sua fantasia
(II.12.526), projetando sobre a natureza esquemas mecânicos que lhe são estrangeiros
(II.12536)”, portanto, uma crítica a um realismo ingênuo, Montaigne “reivindica um
conhecimento que procede inteiramente do sentimento” (DESAN, 2007, pp. 1059-60);
para tanto, ele cita o último dos ensaios, o Da experiência: “Nessa universalidade, deixo-
me ignorantemente e negligentemente manejar pela lei geral do mundo. Conhecê-la-ei o
suficiente quanto a sentir (III.13.1073)” (MONTAIGNE, 2001, p. 434), o que se esclarece
ainda pela frase anterior de Montaigne: “Estudo a mim mesmo mais do que a outro
assunto. Essa é a minha metafísica, essa é a minha física” (MONTAIGNE, 2001, p. 434).
Ademais, continua o comentador, “a ignorância representa o fundamento de uma ciência
genuína, que acessa a pureza do sentir por ter rompido com as construções artificiais da
opinião” (DESAN, 2007, p. 1059), referenciando: "Só me julgo por sensação real (vray
sentiment), não por raciocínio (III.13.1095)” (MONTAIGNE, 2001, p. 469). Neste
sentindo, como consequência da aproximação que o comentador faz (a partir das passagens
em que Montaigne emprega a palavra sentimento e suas flexões, da crítica dos sentidos e
da ciência) com a leitura dos Ensaios como “experiência, vivida em primeira pessoa, e
como análise”, o sentimento ganha uma segunda direção, nas palavras do comentador, “a
dupla dimensão do sentimento”. Trata-se da “efetividade do sentir e a consciência que esta
experiência implica por si mesma” (DESAN, 2007, p. 1060). A consciência do sentimento
é, para Desan, uma chave para o que ele chama de “ética sutil de Montaigne”.

86
Independentemente da correção das teses de Desan19, o que importa aqui é a presença que
ele aponta do sentiment – cremos nós, irredutível ao páthos antigo – nos Ensaios. De resto,
segundo entendemos, essa recorrência do termo, nas passagens invocadas por Desan, não
permitem por si só, sem pouca controversa, postular uma teoria do sentimento
suficientemente desenvolvida, em especial uma determinação fixa do termo, em distinção
às paixões em seu sentido lato. É esta a tarefa que Fichte pretende levar a cabo.

O SENTIMENTO ORIGINÁRIO E A RESPOSTA AO PROBLEMA DA COISA-EM-


SI

Sumariamente, podemos apontar como ponto nevrálgico da crítica de Jacobi a Kant


na segunda das objeções por ele formuladas em seu David Hume sobre a crença, ou
idealismo e realismo, um diálogo (JACOBI, 1812-1825, JACOBI, 2006). A tese de que a
atividade de nossas faculdades de conhecimento depende da afecção de objetos externos é
inconsequente com outra tese fundamental de Kant, a saber, que só temos acesso a
fenômenos, pois coisas em si são incognoscíveis.

Na Introdução à Crítica da razão Pura (KANT, 2001, B1), entre outras


passagens20, Kant afirma que todo o nosso conhecimento depende de objetos que afetem21
nossos sentidos, apenas a partir do que temos representações e atividade de nossa
faculdade intelectual. Essa tese kantiana, contudo, parece contradizer outras passagens da
mesma obra, nomeadamente os resultados da Analítica Transcendental, segundo os quais
as categorias – entre elas, a de causalidade – só têm validade quando limitadas à esfera
19
EVA (2007, p. 489), oferece um estudo mais demorado e pontual sobre o tema da subjetividade na obra de
Montaigne. Na conclusão de seu livro, ele nos diz: “Essa variedade [no “emprego do termo “faculdade” para
designar capacidades específicas da alma”] – aliada ao modo como as faculdades particulares se apresentam,
como vimos, sem que se possa definir exatamente seus limites – parece contribuir para caracterizar uma traço
recorrentemente detectado como “problemático” pelos comentadores: a fluidez e a aparente vagueza com
que, a despeito de suas diversas nuances, surgem tais conceitos. Por esse ângulo, certamente nos afastamos
das arquiteturas do sujeito cognoscente que serão produzidas por Descartes ou Kant”.
20
Cf. também KANT, 2001, B235, A190: “Com efeito, temos que nos haver apenas com as nossas
representações; quanto ao saber como podem ser as coisas em si mesmas (sem considerarmos as
representações pelas quais nos afetam), está completamente fora da nossa esfera de conhecimento”.
21
Neste ponto, KANT, 2001, B 1, o termo usado é tocar ou mover [“...die unsere Sinne rühren und teils von
selbst Vorstellungen bewirken...”]. No §1 da Estética Transcendental, aparece o termo afetar [“Diese findet
aber nur statt, so fern uns der Gegenstand gegeben wird; dieses aber ist wiederum, uns Menschen wenigstens,
nur dadurch möglich, daß er das Gemüt auf gewisse Weise affiziere” (…) “Die Fähigkeit (Rezeptivität),
Vorstellungen durch die Art, wie wir von Gegenständen affiziert werden, zu bekommen, heißt Sinnlichkeit”]
Na Segunda Analogia, B 235 [“...wie Dinge an sich selbst (ohne Rücksicht auf Vorstellungen, dadurch sie uns
affizieren) sein mögen...”] e no capítulo Do princípio da distinção de todos os objectos em geral em
fenômenos e númenos, B 309 [“denn durch bloße Anschauung wird gar nichts gedacht, und, daß diese
Affektion der Sinnlichkeit in mir ist…”], novamente aparece o termo afecção. A consulta ao original alemão
em KANT, 1910.

87
fenomênica, o que vale dizer que as categorias não têm um uso válido quando se pretende
conhecer as coisas-em-si-mesmas e o suposto papel delas no começo do conhecimento
sensível.

Jacobi alega (JACOBI, 2006, pp. 301-2) 22 então que, para não sucumbir às
consequências de um fenomenalismo fechado, portanto, à acusação de idealismo no
sentido dogmático, Kant acaba por aceitar uma tese realista que, por sua vez, contradiz
momentos fundamentais de sua teoria. Contudo, a despeito de uma aparente contradição,
Kant tem de partir da postulação de objetos que “provocam impressões, dando lugar desse
modo às representações” (KANT, 2001, B1), pois do contrário não é possível explicar
como temos representações, caso não se queira, como é o caso de Kant, derivá-las do
próprio sujeito; assim, sem este ponto de partida o idealismo transcendental não poderia se
auto sustentar:

Pergunto, como é possível conciliar a suposição de objetos que impressionam


nossos sentidos e que, deste modo, suscitam representações, com uma doutrina
que pretende reduzir a nada todos os fundamentos que apoiam esta mesma
suposição? (JACOBI, 2006, p. 307)

Se por um lado a tese da incognoscibilidade das coisas-em-si nos condena às meras


representações, por outro lado as representações nos levam a admitir coisas-em-si sendo
causas das mesmas, o que contradiz a tese da incognoscibilidade das coisas-em-mesmas,
uma vez que admitir esta afecção externa supõe conhecimento, a saber, pressupõe saber
que coisas existem fora das representações que provocam. Esta postulação, no entanto,
parece se valer de um procedimento que o próprio Kant acusa de ser o erro da metafísica
dogmática, qual seja, aceitar a existência de objetos independentes do sujeito.

22
Cf., loc. cit., “Creio que isto é o suficiente para provar que a filosofia Kantiana abandona (verläßt)
completamente o espírito de seu sistema quando diz dos objetos que estes impressionam (Eindrücke) os
sentidos, em virtude do que provocam sensações (dadurch Empfindungen erregen) e assim suscitam
representações (Weise Vorstellungen zuwege bringen): pois, segundo a doutrina kantiana, o objeto empírico,
que é sempre apenas fenômeno, não pode existir fora de nós, e não pode ser outra coisa que uma
representação; do objeto transcendental, no entanto, não sabemos sequer o mínimo (von dem
transcendentalen Gegenstande aber wissen wir nach diesem Lehrbegriffe nicht das geringste); e não se trata
dele, em absoluto, ao se considerar os objetos (wenn Gegenstände in Betrachtung kommen); seu conceito é,
ademais, um conceito problemático, o qual repousa (beruht) sobre a forma do nosso pensamento,
completamente subjetivo correspondente (zugehörigen) à sensibilidade que nos é característica (unserer
eigenthümlichen); a experiência não lhe dá nada, e não pode, de forma alguma, dar-lhe alguma coisa, posto
que aquilo que não é fenômeno, nunca pode ser um objeto da experiência; o fenômeno, no entanto, e esta ou
aquela afecção da sensibilidade em mim (und daß diese oder jener Affection der Sinnlichkei in mir ist), não
constitui (ausmacht) qualquer referência (Beziehung) de tais representações a um objeto qualquer (auf irgend
ein Object)”.

88
Também sumariamente, podemos entender do seguinte modo a réplica a Jacobi por
parte de Reinhold: As coisas-em-si não podem ser conhecidas, podem, porém, ser
pensadas. Mais, devem ser pensadas:

...tal como os próprios objectos representáveis, as coisas em si também não


podem ser negadas. Elas são esses mesmos objectos, na medida em que estes não
são representáveis. Constituem esse algo que é o fundamento, exterior à
representação, da matéria de uma representação... (REINHOLD, 1992, p. 194)

Com isso, é saliente a posição reinholdiana sobre a inutilidade da coisa-em-si para o


conhecimento positivo, determinante, a necessidade do conceito numênico de coisa-em-si
para a reflexão transcendental, reflexionante. Se estivermos corretos, o argumento de
Reinhold funda-se na consideração da unidade do objeto tomado ora como fenômeno, ora
como coisa-em-si; trata-se sempre de atermo-nos às nossas representações; mas estas
mesmas representações são – do ponto de vista oposto – ainda assim um objeto numênico
da nossa consideração reflexionante sobre o objeto do conhecimento. Negar que só temos a
ver com representações, seria o dogmatismo dos realistas transcendentais; negar que o
conceito de coisa-em-si seja necessário enquanto conceito-limite da possibilidade de todo
conhecimento humano, seria o dogmatismo dos idealistas empíricos. A lição kantiana, na
voz de Reinhold, diz: Não é possível ser realista, tampouco idealista, mas é preciso ser
ambos: ideal-realismo, real-idealismo – filosofia transcendental. E, como ser real-idealista
e ideal-realista, em suma, filósofo transcendental, sem ser contraditório? – Tomando a
distinção entre fenômenos e coisas-em-si em sua verdadeira significação: Só temos a ver
com representações (idealismo transcendental/realismo empírico), mas dentro da análise
das representações é possível distinguir as representações em classes (conceito, intuição) e
tipos (ideia da razão, categoria do entendimento, conceito empírico, conceito lógico, etc.;
intuição formal, forma da intuição, intuição sensível, intuição intelectual, etc.), e assim
distinguir as representações objetivas (conceitos e intuições) das meramente subjetivas
(conceito vazio, intuição cega); mas estas mesmas representações, se são representações,
são representação de algo, que, no entanto, não é objeto externo às representações (no
sentido de algo toto genere diverso, embora seja exterior à representação na medida que só
pode ser pensado a partir da abstração das condições transcendentais subjetivas do
conhecimento humano), mas o mesmo objeto que aparece na representação agora tomado
em outra significação, a de ser uma coisa-em-si, enquanto conceito necessário da razão

89
para dar acabamento sistemático ao edifício do nosso conhecimento empírico, admitindo
assim o conceito problemático de númeno.
A nosso ver, este argumento reinholdiano é impecável, mas limitado. Impecável,
para responder à objeção de Garve: se só temos a ver com nossas representações, a
filosofia transcendental é um idealismo superior23, isto é, empírico, como o de Berkeley, e
o conceito de coisa-em-si é arbitrário e contraditório. Limitado para responder, pelo menos,
a uma questão de Jacobi: Kant precisa admitir e admite claramente que coisas-em-si
afetam os nossos sentidos e, assim, proporcionam a matéria das nossas sensações, que
serão formalizadas pelas intuições e pelos conceitos, para construir o conhecimento
objetivo, mas, ao mesmo tempo, se admite isso, nega outra tese capital da filosofia
transcendental e da distinção entre fenômeno e coisa-em-si: as categorias do entendimento,
que Kant justificou a validade necessária e universal na Dedução das categorias do
entendimento, por isso mesmo só tem validade quando aplicadas única e exclusivamente às
representações sensíveis. Kant aqui, afirma Jacobi, não é apenas circular, é também e
sobretudo contraditório.
Em outras palavras, segundo Jacobi e seu “problema da coisa-em-si” (que tem uma
estrutura tripla, mas cuja tese forte é a do problema da afecção), ainda que Kant não seja
nem cético nem idealista empírico (eis as outras duas objeções da tríplice objeção
jacobiana), ele continua a ser algo bem pior, contraditório. Daí a conclusão de Jacobi, o
idealista transcendental “tem que negar as coisas-em-si” e “afirmar o idealismo mais forte
que já existiu” (JACOBI, 1812-1825, p. 310, JACOBI, 2006, p. 223).
Disso, chegaremos à seguinte constatação: a contra objeção reinholdiana responde
perfeitamente à objeção de Garve, mas nem arranha a objeção das afecções de Jacobi. E, à
seguinte proposta de tese de leitura da solução fichtiana ao problema da coisa-em-si: Para
Fichte, a solução ao problema de Jacobi, que ao mesmo tempo muda a contra objeção a
Garve, é: Não temos a ver apenas com representações – ideias, intuições e conceitos –, o
temos apenas do ponto de vista teórico; temos a ver também com sentimentos, isto do
ponto de vista prático; e é do ponto de vista prático que o problema de Jacobi – o problema
das afecções – é resolvido: não somos afetados pelas coisas-em-si, pois sem dúvida

23
Cf. citação de KANT (1987, p. 175, Ak. 204): “Esta obra é um sistema do idealismo transcendente (ou,
como ele traduz, superior)”. Acusação que Kant interpreta do seguinte modo: “todo o conhecimento a partir
dos sentidos e da experiência nada mais é do que ilusão, e a verdade unicamente existe nas ideias do
entendimento puro e da razão pura” (idem, p. 176, Ak. 205), opondo a seguinte sentença como sendo a
expressão de seu idealismo: “todo o conhecimento das coisas a partir unicamente do entendimento puro ou
da razão pura não é mais do que ilusão, e a verdade existe apenas na experiência” (idem, ibidem).

90
“afecção” é um termo empírico e só pode ser tomado nesta significação, somos sim
tocados, através de um sentimento, por algo que, feita a reflexão, determinados os
conceitos, aplicados – pelo poder fundamental da imaginação – os conceitos às sensações,
chamamos de coisas-em-si, mas já desde este ponto de vista empírico; do ponto de vista
transcendental, reflexionante, subjetivo, este sentimento é só um sentimento, isto é, algo
simplesmente subjetivo, que remete a um Não-Eu, que representamos como o limite da
ação prática no mundo.
Quando Kant fala de coisas-em-si do ponto de vista filosófico, o sentido do
conceito distingue-se daquele no sentido empírico. Nesse, coisas-em-si são objetos que
existem prontos independente e anteriormente ao sujeito; naquele, fala-se apenas de
númenos, de objetos pensados, não de uma existência objetiva (que só diz respeito ao
ponto de vista empírico). O númeno é o objeto posto pelas leis necessárias de nossa razão,
que acrescentamos aos fenômenos para dar-lhes objetividade. Fichte mantém este sentido,
pois com ele podemos explicar como objetos parecem independentes de nossas
representações e ainda assim não são entidades transcendentes.
Desta forma, a rejeição de Fichte se refere ao conceito de algo que não pode ser
conhecido, pois indica uma entidade que transcende o âmbito de acesso e legislação do Eu.
Mas o conceito é mantido no segundo sentido exposto: o de um pensamento necessário de
objetos que não podem ser identificados ao Eu, mas que, ao contrário, devem ser pensados
como limite de sua atividade, sendo para o Eu um Não-Eu. A oposição entre Eu e Não-Eu,
diz Fichte, é conditio sine qua non para o conhecimento do Eu, posto que conhecer é
determinar, portanto, distinguir precisamente que algo é diferente de algo outro. Esse Não-
Eu é, pois, o pensamento necessário (númeno) de algo que se opõe absolutamente ao Eu,
mas, enquanto tal, é ainda um pensamento do Eu. O limite ou choque (Anstoss) à atividade
do Eu, posta pelo Eu como a existência de um Não-Eu, não se dá por nenhum
conhecimento propriamente dito, mas por sentimento (Gefühl). Algo externo ao Eu, que o
limita, é um pensamento necessário para explicar a limitação sentida pela atividade prática
do Eu, ou melhor, da “percepção imediata da mesma” (FICHTE, 1984, p. 353).
O termo sentimento aparece justamente como uma alteração do termo usado por
Kant nos trechos que fomentaram a polêmica em torno da coisa-em-si, a saber, sensação
(Empfindung). A sensação, enquanto tal, só existe na relação com um objeto; o sentimento,
a contrario, não remete a nada, em sua origem, além do Eu, por isso Fichte chama-o
sentimento original (ursprüngliche Gefühl). Não entender este sentimento como

91
absolutamente originário, isto é, postular algo anterior a ele, que o causa, é o próton
pseudós de céticos e dogmáticos:

Pretender explicar este sentimento original a partir da operação de um algo é o


dogmatismo dos kantianos, (...) e que eles bem gostariam de atribuir a Kant. Este
seu algo é necessariamente a enfadonha coisa em si. Toda explicação
transcendental tem um fim no sentimento imediato (FICHTE, 1984, p. 353).

O que ainda vale ser mencionado aqui, é: a solução fichtiana, isto é, a volta aos
sentimentos, pela reflexão, para resolver o problema da coisa-em-si tal como ele foi
elaborado por Jacobi, sem contudo deixar de responder, de outro modo, ao problema de
Garve e a outros tantos problemas livremente admitidos por Kant, esta solução, dizíamos,
aproxima Fichte de Rousseau, concretamente do Discurso sobre a origem da desigualdade
entre os homens, o que trataremos a seguir.

REFERÊNCIAS

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Acesso em 10/10/2010.
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92
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____________. Crítica da razão pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
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JACOBI, F. H. Friedrich Heinrich Jacobi’s Werke. Herausgegeben von Friedrich Roth.


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LÓPEZ-DOMÍNGUEZ, V. Fichte, 200 años después. Madrid, Editorial Complutense,


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_________________. Sobre a possibilidade da filosofia como ciência rigorosa. Trad.


bras.: Ricardo Barbosa. In: Analytica, Rio de Janeiro, vol 13 nº 1, 2009, p. 291-306.
_________________. Cartas sobre a filosofia kantiana (excertos) e Ensaio sobre uma
nova teoria da faculdade humana de representação (excertos). Trad. port.: Irene Borges

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Duarte, 1992. In: GIL, F., Recepção da crítica da razão pura: antologia de escritos sobre
Kant 1786-1844. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Educação, 1992.
PETRÔNIO, Satyricon (edição bilíngüe), trad. Sandra M. G. Braga Bianchet, Belo
Horizonte: Crisálidas, 2004.

94
O CULTIVO DE SI EM HUMANO DEMASIADO HUMANO

Jordan Pagani
Universidade Estadual de Londrina
paganijordan@yahoo.com.br

RESUMO
Nietzsche, em Humano Demasiado Humano, concebe a moral como um comportamento
de rebanho no qual tanto o pastor – como por exemplo um sacerdote – bem como a ovelha
– tal como o cristão – como sendo mutuamente dependentes. O pastor apesar de guiar as
ovelhas, de certo modo depende de determinadas nuances impostas pelas ovelhas, ou seja,
não age autonomamente. As ovelhas, por sua vez, agem segundo os mandamentos do
pastor, portanto não são livres, em um movimento de desprezo de si no qual sua força
reside no seu poder de contágio paralisante na compaixão. Este comportamento observado
através do filosofar histórico parece produzir um ressentimento causado pelo agir – no caso
de não se agir de acordo com a moral ou mesmo faze-lo quando esta não se configura de
acordo com a própria vontade. Além disso o comportamento de rebanho parece ser nocivo
ao próprio pensamento e à cultura visto que, por se basear na reprodução do mesmo
(moral), faz com que permaneçamos paralisados. Ora, nota-se nas obras analisadas o devir
do ser humano, de onde se segue que devemos viver nossa vida através da perspectiva das
coisas humanas demasiadas humanas. Além disso, para superar esse tipo de
comportamento, parece ser de fundamental importância a radicalização, pois a moral bem
como todas as concepções de verdade metafísica, deve ser levada até às últimas
consequências pois, tal como defende Nietzsche, para se superar qualquer concepção deve-
se conhecer com profundidade aquilo que se quer superar, afim de que não passe
desapercebido nenhum erro, ou seja, se inserir de modo radical, bem como compreendendo
todo o horizonte que fundamenta uma dada perspectiva. O autor nos sugere então um
modo díspar de agir: o caminhar por si. Com efeito, somente a partir dessa perspectiva
Nietzsche parece estabelecer um modo de afirmar a vida e mesmo de aliviá-la. O presente
trabalho tem como objetivo demonstrar, a partir da reconstrução dos argumentos presentes
em Humano Demasiado Humano, Opiniões e Sentenças Diversas bem como em O
andarilho e Sua Sombra, como se dá o aliviamento da vida proposto no final do segundo
texto de Humano, bem como a afirmação da vida, através da libertação do espírito no
âmbito da construção e cultivo de si.
Palavras-chave: Nietzsche; Cultivo de si; Humano.

INTRODUÇÃO

O autor alemão, Friedrich Wilhelm Nietzsche no seu livro Humano Demasiado


Humano, trabalha a filosofia na perspectiva estrita do humano onde visa atingir a
libertação do espírito vendo a necessidade de buscar o domínio de si, percebendo os
valores embutidos nas coisas, tomando consciência da injustiça do julgar, indissociável da
vida.

95
O ser humano tem construído historicamente a pretensão de basear seus
conhecimentos em verdades universais e metafísicas. Nietzsche, apesar de considerar a
hipótese da existência de um mundo eterno e imutável, alerta que toda e qualquer crença
em semelhantes concepções foram sempre embasadas em erros da razão, imersas no hábito
de mentir para si mesmo por um longo período de tempo, até que se conceba como verdade
através da força do hábito e finalmente adquiram seu valor. Apesar de não podermos
afirmar consistentemente a inexistência dessas visões de mundo, nada podemos dizer senão
que o ser-outro, mesmo que se tivesse provado, na esfera do ser humano de nada serviria
uma vez que aquilo que faz com que afirmemos e mesmo aliviemos nossa existência é
composto de concepções humanas.

Humano Demasiado Humano é finalizado tendo como base duas promessas, quais
sejam: o aliviamento da vida e a afirmação da vida por meio de uma libertação. O presente
trabalho pretende demonstrar como seria possível atingir estas metas por meio do cultivo
de si.

O PROBLEMA DO MAL

Nietzsche nos sugere que no sonho ocorre algo semelhante ao que ocorre quando se
criam mitos. No sonho o homem tem acesso à retalhos imperfeitos do que vivencia, no
mito o homem tenta fundamentar uma concepção de verdade que explique tudo ou uma
parcela daquilo que o faz sofrer. Nos dois casos imperam eros, com efeito o mito muitas
vezes é criado através de sonhos – ditos revelações – ou mesmo de ilusões provocadas
quando ocasionalmente o (s) individuo (s) não está (ão) em seu estado perfeito da razão em
alucinações.

Mas qual o motivo pelo qual recorremos à instituições metafísicas? Isso se deve ao
fato de que, ao duplicarmos a realidade segundo a qual temos acesso nós a transferimos
para um plano no qual tudo é perfeito, então sentimos algo de belo frente à nossos olhos
visto que atribuímos sentido à todo o mundo, sem nos preocuparmos pelas causas de tal, de
modo que nos tornamos menos responsáveis, transferindo para essa esfera o móbile de
nossas ações.

Diante desse modo de pensar o ser humano adquiriu historicamente o hábito de


estabelecer uma lógica na natureza, sem dúvida um grande erro, pois, devido à necessidade

96
que criamos para satisfazer nossa vaidade, nós a forçamos a se enquadrar em nossas leis,
estas ultimas não existem, mas nós a criamos.

Na filosofia, consequentemente pretende-se acessar o ser das coisas, observando a


repetição de fenômenos, observação esta considerada como correta. Desse modo comete o
erro de não considerar o movimento das coisas, o vir a ser destas. Tal é o modo com que
concebe a moral, estabelecendo, através do efeito que uma determinada ação possui em um
determinado momento, através do hábito estabelecendo-a como boa ou má. Contudo, o
contraste entre uma ação boa e uma ação má, isto é, moral e imoral, consiste na capacidade
em sentir dor com o que é considerado uma ignomínia e em sentir prazer com o que é
considerado uma virtude pela cultura vigente: “entre as boas e as más ações não há uma
diferença de espécie, mas de grau, quando muito. Boas ações são más ações sublimadas;
más ações são boas ações embrutecidas, bestificadas. (HDH 107 p.76). Entretanto, com o
passar do tempo formulamos juízos sobre essas ações que, por sua vez, baseiam-se em
sensações de prazer ou de dor. Dessas duas camadas, consequentemente, obtemos um
estado no qual nos estagnamos, cessamos de sentir e apenas repetimos esse modo de viver.
Com efeito, estes valores se alteram com o passar do tempo, tal é o caso, por exemplo, da
vingança vista como virtude na época dos gregos e concebida como vício pela sociedade
cristã.

Mencionado o movimento moral através de uma análise histórica dos sentimentos


morais, por que razão agimos moralmente? Agimos segundo a moral devido às ações
estabelecidas ter se mostrado anteriormente de modo edificante de maneira a não exigir
grande empenho, por se basear num mecanismo de repetição e ainda dar a sensação de
atingir a verdade absoluta.

É desse modelo que surge o julgamento moral que, por sua vez, se baseia no
conceito de livre-arbítrio não levando em conta que o indivíduo o faz segundo a
intelectualidade que possui ou seja, ele não poderia agir de outro modo senão do modo
como age.

Toda espécie de moralidade é denominada por Nietzsche como um comportamento


de rebanho, desse modo, estabelece duas maneiras de agir, quais sejam: sendo pastor,
como aquele que vai à frente da massa e aquele que conduz a massa; mas também como
ovelha – a massa, esta reproduz a doutrina. Nas duas castas o autor nos chama a atenção

97
para a relação de escravidão recíproca, já que aquele caminha à frente da massa depende
inteiramente da massa para determinar sua conduta. Na massa ocorre o mesmo movimento,
sendo que esta depende do pastor para agir.

Uma vez que são mutuamente dependentes, o pastor e a ovelha, não agem
completamente por si, mas pela doutrina:

Enquanto alguém conhece muito bem a força e a fraqueza de sua doutrina, de sua
arte, de sua religião, a força delas ainda é pequena. O discípulo e o apóstolo que,
cegado pelo prestígio do mestre e pelo respeito a ele devido, não enxerga a
fraqueza da doutrina, da religião e assim por diante, geralmente tem, graças a
isso, mais poder do que o mestre. Sem os discípulos cegos a influência de um
homem e de sua obra nunca se tornou grande. Ajudar no triunfo de um
conhecimento significa muitas vezes isto: irmaná-lo à estupidez de modo tal que
o peso desta consiga também a vitória daquele (HDH I 122 p. 90)

Dado os dois comportamentos no âmbito do rebanho, Nietzsche nos apresenta uma


maneira alternativa a estes, o caminhar por si, independente dos costumes e de qualquer
circunstância moral que nos sugere a filosofia da relha do arado, que remeche os solos da
metafísica. Aspectos presentes em toda a sua filosofia a partir da consciência de todos os
valores vigentes, bem como, as concepções de verdades como sendo algo construído
historicamente que, portanto, não se configura efetivamente como uma verdade:

Um súbito horror e suspeita daquilo que amava, um clarão de desprezo pelo que
chamava “dever”, um rebelde, arbitrário, vulcânico anseio de viagem, de exílio,
afastamento, esfriamento, enregelamento, sobriedade, um ódio ao amor, talvez
um gesto profanador para trás, para onde até então amava e adorava, talvez um
rubor de vergonha pelo que acabava de fazer, e ao mesmo tempo uma alegria por
fazê-lo, um ébrio, íntimo, alegre tremor, no qual se revela uma vitória – uma
vitória? Sobre o que? Sobre quem? Enigmática, plena de questões, questionável,
mas a primeira vitória – tais coisas ruins e penosas pertencem à história da
grande liberação. (HDH I pr3 p. 9).

Assim o comportamento de rebanho apoia sua crença no escopo de tornar aquele


que não se enquadra nessa relação, parte integrante deste movimento de desprezo de si, sua
única força se configura no seu poder de contágio paralisante não se fundamentando em
uma autofluição, mas no entorpecer das pulsões.

Nota-se na filosofia do espírito-livre o desprezo por toda e qualquer compaixão, um


dos sentimentos mais nocivos ao espírito. Com efeito, todas as formas de compaixão são
nocivas, tanto em sua espécie ativa, onde somos paralisados por alguém que sofre e
deixamos de viver nossa própria vida, como na espécie passiva, onde por não possuirmos

98
mais nenhuma força, senão a de contagiarmos o outro com nossa dor. Efetivamente o
escravo, em oposição ao indivíduo nobre que, por sua vez, tem no cultivo de si o
pensamento autônomo, sente a necessidade de se tornar doente e então suscitar compaixão
pois, assim exibe sua única força, o seu poder paralisante. A maldade então retrata uma
vingança que tem por conta da sua mediocridade em relação ao outro, afim de prejudica-lo
de algum modo.

Por isso, os indivíduos religiosos vivem em uma mentira astuta por somente agirem
moralmente onde rege a dor e esporadicamente experimentam momentos de dúvida que,
por não se permitirem pensar nada além do que se segue na doutrina, atribuem à algum
inimigo fantasioso como um demônio. Num exercício de mentir para si mesmos por um
longo período onde finalmente terminam acreditando e as máscaras com as quais cobrem
seus rostos tornam-se por fim partes dos seus.

Devido à ação do cristianismo o ser humano se tornou ressentido do agir por


virtude da imobilização causada pela moral. Tudo aquilo que pressupõe uma doutrina é
nocivo ao ser humano justamente pelo ressentimento causado frente a tudo aquilo que não
condiz com o conjunto de valores adotado e sendo que nada que se refere à vontade não há
nada que se possa fazer visto que não temos controle sobre esta, sofremos apenas com o
fato de senti-la, mesmo que não ajamos segundo a mesma. O livre-arbítrio, por sua vez, é o
elemento que mais torna o indivíduo dependente da concepção metafísica do cristianismo.
Pois as pessoas criam a necessidade de se sentirem livres no intuito de aliviar o peso
necessário de novas amarras - daí a necessidade de buscarmos um horizonte de vida
desapegado à qualquer moral uma vez que somente mediante isto podemos aliviar nossa
existência.

Isso se dá através da radicalização, para Nietzsche é somente através da


radicalização que se supera algo, tal acontece com o cristianismo pois, na medida em que
se leva até as últimas consequências mais se entende seus erros fundamentais, o que se dá
somente através do intelecto. Tal é o caso da bíblia que, deveria se tornar inútil mas,
devido à desonestidade dos cristãos, ela é cada vez mais indispensável visto que os cristão
não seguem aquilo que defendem.

Toda doutrina primeiro inventa uma doença para depois oferecer o remédio. Com
efeito é importante aos indivíduos fortes adoecerem as vezes, pois assim podem produzir

99
antídotos permanentes às mesmas. O problema está em que existe a possibilidade da
doutrina oferecer veneno como antídoto que, apesar de geralmente não matar, dependendo
da espécie do veneno, pode degenerar o indivíduo em vício como, por exemplo, o caso do
cristianismo que, ao demonizar o corpo, ofereceu a onipotência de Deus e seus
mandamentos para a salvação da alma. Assim a cultura finalmente criou o hábito de
demonizar tudo o que é humano. Daí o pensamento nietzschiano de que “é preciso termos
nascido para o nosso médico, senão perecemos por causa dele.” (HDH I 573 p. 249) Pois
todo indivíduo fraco age de modo agressivo e iníquo para parecer forte e todo aquele que
se constitui na escravidão e fraqueza, ao se deparar com o espírito-livre tentará aniquilar ou
mesmo prejudicar sua força.

Sendo assim, a filosofia nietzschiana nos sugere um novo renascimento da cultura


por meio da autofluição individual, é necessário potencializar-se em meio à doença, este
antídoto é produzido individualmente pelo esfriamento espiritual; é preciso tornar-se frio
frente as concepções de verdade, afim de compreender o que há de fábula em cada
valoração.

Além disso, a filosofia de Nietzsche pretende o aliviamento da vida, parte de


extrema importância de sua obra pois, como ocorre na arte, não há outra função senão a de
aliviamento da vida, por isso o poeta assim como o filósofo, pelo fato de sofrer com sua
própria existência procura em sua arte (no caso do poeta) e em sua filosofia (no caso do
filósofo) um refúgio, um horizonte de vida palpável – visto que é impossível viver sem um
horizonte que o oriente - um meio de auto-conservar-se de si mesmo e dos outros, para
libertar-se de toda moral vigente. O espírito-livre investe sua força na autofluição;
pensamento autônomo que se distingue pela criação, afirmando sua vontade e
consequentemente a sua vida.

No conhecimento da verdade o que importa é possui-la, e não o impulso que nos


fez busca-la nem o caminho pelo qual foi achada. [...] De resto, não é próprio da
essência do espírito-livre ter opiniões mais corretas, mas sim ter se libertado da
tradição, com felicidade ou com um fracasso. Normalmente, porém, ele terá ao
seu lado a verdade, ou pelo menos o espírito da busca da verdade: ele exige
razões, os outros fé. (HDH I 225 p. 144)

Apesar de pretender superar a metafísica, Nietzsche nos recomenda prevenirmo-nos


dado que corremos o perigo de não empreendermos projetos a longo prazo, trabalhando em

100
projetos em que pode-se obter resultados a curto prazo vivendo-se em fragmentos de
experiências, negando a própria vida.

A LIBERTAÇÃO DO ESPÍRITO

O processo de libertação do espírito proposto em Humano Demasiado Humano faz


parte de um experimento filosófico. De fato, toda espécie de movimento filosófico deve ser
parte de um experimento de vida pois, uma vez que não temos acesso à verdade absoluta,
de onde se segue a possibilidade de jamais podermos acessa-la, todavia se mostrar
fundamentada em erros da razão já que é estabelecida pelo seu caráter de utilidade em um
determinado momento e, mediante o hábito este último é esquecido e então concebe-se
uma verdade universal. A vida como um experimento filosófico concebe-se mediante a
busca de um horizonte fecundo e a radicalização deste. Este solo fecundo, para ser
concebido como tal, deve levar em conta aquilo que há de perspectivista em cada ação,
ambientado em uma esfera puramente humana visto que, pelo fato de o indivíduo estar em
constante devir, deve-se concebe-lo como um jogo de pulsões. A filosofia, portanto, não
deve possuir uma pretensão exorbitante justamente pelo movimento, de onde se segue que,
para o filosofar se dar de modo efetivo necessita-se da análise histórica, afim de que se
conscientizar-se do vir-a-ser das coisas e desse modo não renovar os mesmos erros, tal
como o esgotamento do conhecimento, considerando a impossibilidade de acessar a
totalidade das coisas mas, meramente recortes das mesmas. Daí a indispensabilidade da
criação no espírito-livre.

Assim, na filosofia do espírito-livre, parte-se por um imoderado apreço pelo ente e um


desprezo para com o ser. Para Nietzsche somente nos é acessível o ente das coisas
entrementes somente no campo da representação constitui-se o humano, portanto é nesta
que devemos investir a construção da nossa perspectiva de vida.

A radicalização na filosofia é de fundamental importância para superar os


experimentos, levando-os até as últimas consequências, desse modo uma teoria pouco
consistente logo sucumbirá em seu próprio absurdo.

Com os gregos tudo avança rapidamente, mas também declina rapidamente; o


movimento da máquina é tão intensificado, que uma única pedra no movimento
das engrenagens a faz explodir. Uma tal pedra foi Sócrates, por exemplo; numa a

101
evolução da ciência filosófica, até então maravilhosamente regular, mas sem
dúvida acelerada demais, foi destruída. [...] O período dos tiranos do espírito
passou. Pois em geral a doutrina oposta e o ceticismo falam agora com muito
mais força, e com voz bastante alta. Nas esferas da cultura superior sempre
haverá um predomínio, sem dúvida – mas esse predomínio está, de ora em
diante, nas mãos dos oligarcas do espírito. Apesar da separação espacial e
política, eles foram uma sociedade coesa, cujos membros se conhecem e se
reconhecem, seja qual for a avaliação favorável ou desfavorável disseminada
pela opinião pública e pelos julgamentos de jornalistas e folhetinistas influentes
na massa. [...] Os oligarcas são necessários uns aos outros, têm um no outro a sua
maior alegria, conhecem seus emblemas – mas apesar disso cada um deles é
livre, combate e vence no eu oposto e prefere sucumbir a sujeitar-se. (HDH I 261
p. 163 – 166)

Como se pode notar, a radicalização, apesar de ser de extrema importância para a


filosofia, deve ser efetuada de modo lento pois, inversamente, num movimento
demasiadamente rápido corre-se o risco de entrar em declínio; como no caso da cultura
grega que, apesar de toda a sua potência, por se efetivar de modo impulsivo, com um
movimento brusco de uma força contrária (Sócrates) entrou em declínio acelerado com a
tirania da razão. Isso se deve ao fato de não ser estruturada de modo efetivo nos
pormenores, pois assim poderia evitar tal catástrofe, consequentemente todo pensamento
deve ser maturado lentamente, uma vez que, caso contrário pela fragilidade de sua
estrutura se torna facilmente vicioso.

Dito isto, Nietzsche parece nos sugerir que todo homem de espírito elevado têm o
domínio de si como objetivo indissociável da vida, consciente de que o bem e o mal não
difere senão em proporção de prazer e de dor em relação ao conjunto de valores em que se
está inserido.

Por essa razão, o espírito superior deve dedicar a maior parte do seu tempo ao ócio
que, na concepção do Humano, consiste em um ócio produtivo, a dedicação de seu tempo
para si, mas não à preguiça. Assim sendo, os negócios que, inevitavelmente o ser humano
se dedica para a nutrição e a sobrevivência de modo geral, devem ser efetuados somente
quando irremediavelmente for necessário. Em consequência disso, deve-se ter cuidado com
o convívio com os outros, para não se confundir e viver pelos mesmos em detrimento de si
aniquilando-se.

A atividade superior, portanto, se caracteriza em um caminhar por si, buscando


sempre a criação, onde objetiva estabelecer conhecimentos simplificadamente objetivos,
aceitando pragmaticamente a impossibilidade de esgotar o saber e disso deriva sua força.

102
Inversamente toda a inteligência inferior concentra sua energia na representação do que lhe
é imposto culturalmente, pensando o mesmo, do mesmo modo. Por conseguinte, no que se
refere à educação, o espírito-livre aspira ser um exemplo de superação de si, expondo os
erros fundamentais da moral, remexendo os campos da metafísica, contudo, sem doutrinar
uma vez que, as opiniões, tal como as crenças ideais se caracterizam como um movimento,
sempre se alterando e, além disso, parece importante para Nietzsche que as opiniões não
nasçam prontas e, em algum momento, mudem de direção já que, contrariamente, o
espírito pode se tornar inerte e preguiçoso o que faz com que formule verdades universais
que, através da análise histórica jamais alguma se mostrou passível de demonstração,
portanto deve-se falar apenas em probabilidade; todo educador, por conseguinte, é uma
agressão ao pensamento elevado. Ora, todo indivíduo que aspira nobreza deve ter
consciência de sua própria imperfeição e não buscar, evidentemente, algo completamente
perfeito pois, se assim for, acabará ruindo em proposições universais de maneira que se faz
necessário, para viver, possuir vontade de viver, sem este estado de espírito não há
filosofia, não há ciência e não há arte que substitua uma inevitável tendência ao nada.

O ser humano tende a criar sistemas onde se é juiz, acusado, promotor e vítima
manipulando a verdade - característica da vaidade humana. Isso se dá pela falta de
probidade que geralmente as pessoas agem em suas empresas. Por isso, deve-se recear este
tipo de comportamento. Para Nietzsche vida e obra, mediante um experimento corroboram
e efetivam-se nesta última.

Desse modo, é mais interessante ao saber trabalhar com a matéria bruta do que com
coisas consumadas, a fim de possibilitar a criação da própria perspectiva de vida,
afirmando-a e aliviando-a. Assim a relação de um filósofo por excelência com a tradição
somente será interessante na medida em que este seleciona o que lhe parece pertinente para
a construção de si, descartando o que lhe parece nocivo para o mesmo fim.

A matéria bruta apoia-se no que lhe é próximo, de onde entende-se que o indivíduo
que nega o que lhe é próximo, acaba negando a própria vida, afim de acessar mundos
ideais. É da busca destes mundos ideais que surgem as enfermidades do espírito, uma vez
que, o ser humano se ressente com a condição imperfeita segundo a qual constitui-se,
fundamentando uma moral e uma realidade metafísica. O que faz com que Nietzsche
afirme a fórmula de Epicuro “não existem deuses ou, se existem, estes não se ocupam de
nós” (AS 7 p. 167).

103
CONCLUSÃO

Para Nietzsche, é fundamental para o ser humano conscientizar-se de que não há


necessidade de possuirmos perspectivas e metas distantes para vivermos, estas por
basearem-se pelo seu caráter de incerteza e pelo idealismo suscitados por uma crença,
parecem ser nocivas à vida pelo fato de serem fundamentadas através do erro metafísico,
visto que são estabelecidas arbitrariamente através de uma’ aparência melhorada do que se
é vivido. A crença religiosa encontra-se também na ciência que tenta estabelecer verdades
essências acerca do mundo e das coisas através da indução, no entanto, Nietzsche
considera isto benéfico na medida em que é útil.

Todos esses erros das explicações de realidade são provenientes da ambição e da


vaidade humana, o que faz com que os cientistas, religiosos e artistas manipulem a
natureza para se encaixar em suas teorias, razão pela qual neguem o movimento das coisas.

Em virtude disso, Nietzsche nos sugere uma autoafirmação através de uma


construção individual e interna de si, a fim de buscarmos um horizonte tangível, através da
aceitação das coisas próximas que o compõe tal como o corpo.

Somente por meio da delineação de semelhante horizonte é que será possível o


aliviamento da vida – desconsiderando as concepções metafísicas e a moral (relação de
escravidão) - e consolidar um modo próprio de pensar e de viver, maneira de viver
saudável para análogo indivíduo. Cria-se portanto os valores segundo os quais parecem
pertinentes para semelhante vida, o que é benéfico para um pode ser nocivo ao outro.

REFERÊNCIAS

NIETZSCHE, Friedrich. Humano Demasiado Humano: um livro para espíritos. Vol. I


Tradução, notas e posfácio Paulo Cezar de Souza – São Paulo: Companhia das Letras,
2000.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano Demasiado Humano: um livro para espíritos. Vol. II.
Tradução, notas e posfácio Paulo Cezar de Souza – São Paulo: Companhia das Letras,
2008.

GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche: o humano como memória e como promessa.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

104
BIOPODER E RACISMO DE ESTADO EM FOUCAULT

Fabio Batista
Universidade Estadual de Londrina
fabiobatist1985@bol.com.br

RESUMO
Vamos apresentar aqui dois conceitos de Foucault: biopoder e racismo de Estado. E para
tal dois textos seus foram estudados: o último capítulo de História da Sexualidade Vol. I e
a última aula de Em defesa da sociedade. De acordo com Foucault o soberano ao ser
ameaçado por inimigos externos poderia dispor da vida de seus súditos para defender-se,
expondo-os assim a morte de forma indireta. E se atacado por algum súdito poderia então
exercer seu direito de matar de forma direta. O direito de vida e morte do soberano era,
portanto, um direito de defender-se que ele possuía contra as ameaças de fora e de dentro.
O que Foucault chamou de direito de fazer morrer e deixar viver. Temos aí o poder
soberano. A partir do século XVII o poder não só mais se exercerá sobre a vida de uma
forma negativa, com o fim de retirá-la de cena; mas sobre a vida se exercerá para torná-la
cada vez mais saudável, melhor, com o fim de talvez aperfeiçoá-la. O poder exerce desse
modo uma positividade sobre a vida, propicia seus meios de longevidade, natalidade. Mas
não nos deixemos nos ludibriar, se isto é feito é a expensas da própria vida. Poder que a
torna calculável, passível de ser manipulada, que a normaliza; através de práticas
higienistas e eugênicas. É a tomada de poder sobre a vida; expressado no conceito de
biopoder, o qual põe sob si: poder disciplinar e biopolítca. Ora, se a biopolítica, e por que
não dizermos biopoder, tem por objetivo fazer viver, como explicarmos os massacres na
modernidade? A saída de um biopoder para esse impasse se dá com a formulação e uso de
um racismo, um racismo de Estado. Racismo de Estado na medida em que o Estado
moderno enquanto aquele que se utiliza dos procedimentos biopolíticos só poderá matar se
justificar a morte em termos de racismo.
Palavras-chave: Foucault; Biopoder; Poder disciplinar; Biopolítica; Racismo de Estado.

BIOPOLÍTICA E PODER DISCIPLINAR

O conceito de biopoder em Foucault indicará dois tipos de poder que se


complementam em seus modos de exercícios. O primeiro Foucault denominou de poder
disciplinar e o segundo de biopolítica. Veremos aqui suas dimensões e suas articulações. E,
por fim, aquilo que Foucault chamou de racismo de Estado.
Foi em 1976 que Foucault expôs de forma evidente o tema da biopolítica. O qual se
encontra no último capítulo de um pequeno livro. O livro em questão é História da
sexualidade: a vontade de saber Vol. I; e o capítulo: “Direito de morte e poder sobre a
vida”.
Ele foi publicado a pouco mais de um ano após Vigiar e punir. São dois livros com
um forte tom combativo como observou Defert:

105
Dezembro, publicação de vontade de saber, primeiro volume da História da
sexualidade. Este livro, Foucault o concebeu como um manifesto com o qual se
deve marcar um encontro. Como Vigiar e punir, ele vai na contramão da
expectativa do público, por sua crítica à hipótese repressiva, cara aos
movimentos de liberação. (DEFERT, 1999, p. 45-46)

Ambos alteraram as perspectivas reinantes até então sobre o poder: poder pautado
no modelo jurídico enquanto lei e proibição; poder que se encontra nas relações de
produção; poder que se encontra no Estado; enfim, poder enquanto repressão. Foucault não
refuta por inteiro essas perspectivas, mas provoca um deslocamento. Ao demonstrar que o
poder também é mais que negar e proibir; mas que também encerra “em si” uma
positividade na medida em que “cria”, “fabrica” o próprio indivíduo moderno; o qual em
última instância nada mais seria que produto do poder disciplinar. O poder também não se
encontra no Estado. Mas, ao lado, abaixo do Estado. Em várias instituições. Em várias
formas de poder-saber.
Mas voltemos a biopolítica. Muitos estudiosos disseram que ele foi um tema pouco
explorado por muitos anos após vir a lume. Foi somente a partir da década de 1990 que ele
parece tomar importância, como observou Duarte. (Cf. 2008, p.2) O próprio Foucault uns
dois anos após a publicação de A vontade de saber reconhecia isso com um certo tom de
decepção: “A.G.: Em relação a última parte de seu livro...
M.F.: Sim, ninguém fala desta última parte. Entretanto, o livro é pequeno, mas desconfio
que as pessoas nunca chegaram a este capítulo. E contudo é o essencial do livro”.
(FOUCAULT, 2004, 27)
E além de o encontrarmos em tal livro também o encontramos no curso ministrado
no Collège de France no início de 1976: “Em defesa da sociedade”. E aqui exploraremos,
sobretudo, a aula de 17 de março de 1976. Que entre o tema da biopolítica e poder
disciplinar, trás também o do racismo de Estado.
Vamos agora passar a análise da biopolitica e sua caracterização. E ver como
Foucault o introduz em sobreposição ao poder soberano.
Uma forma de poder a muito conhecida no ocidente e anterior a biopolítica foi o
poder soberano o qual se exercia sobre a vida através do direito de matar. O direito de vida
e morte. Ou seja, na medida em que o soberano detinha o direito de vida e morte sobre seus
súditos, ele exercia um poder sobre suas vidas de forma negativa: exercia um poder sobre
suas vidas através da morte. Porque parece que na perspectiva de Foucault não havia até
então uma tomada da vida pelo poder no sentido de torná-la melhor, prolongá-la. Por isso o
poder sobre ela tinha esse caráter negativo, na medida em que se exercia sobre ela para

106
usurpá-la.
O soberano ao ser ameaçado por inimigos externos poderia dispôr da vida de seus
súditos para defender-se, expondo-os assim a morte de forma indireta. E se atacado por
algum súdito poderia então exercer seu direito de matar de forma direta. O direito de vida e
morte do soberano era, portanto, um direito de defender-se que ele possuía contra as
ameaças de fora e de dentro. O que Foucault chamou de direito de fazer morrer e deixar
viver. Portanto, “o soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu
direito de matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem
condições de exigir”. (FOUCAULT, 2007, p. 148) Contudo, a partir do momento em que a
vida biológica, a vida do homem enquanto espécie é tomada pela política, inverte-se a
perspectiva: não mais fazer morrer e deixar viver, mas fazer viver e deixar morrer. Não se
exerce mais o poder sobre a vida através da morte, mas através da regulamentação dos
processos vitais.
De modo que a biopolítica nasceu ao lado do poder soberano, e é, assim, uma
outra face, uma outra modalidade de poder; que não embarga o exercício do poder
soberano, contudo, tem outros objetos de aplicação. E que passo a passo o torna menor,
sem muita funcionalidade. A biopolítica, afirma Duarte, pode ser assim compreendida:
“com tal conceito, visa-se a explicar o aparecimento, ao longo da segunda metade do
século XVIII, de um poder disciplinador e normalizador que já não se exercia sobre os
corpos individuais, mas sobre o corpo da espécie ou da população”. (DUARTE, 2010, p.
221).
Doravante o poder não mais se exercerá sobre a vida de uma forma negativa, com o
fim de retirá-la de cena; mas sobre a vida se exercerá para torná-la cada vez mais saudável,
melhor, com o fim de talvez aperfeiçoá-la. O poder exerce desse modo uma positividade
sobre a vida, propicia seus meios de longevidade, natalidade. Mas não nos deixemos nos
ludibriar, se isto é feito é a expensas da própria vida. Poder que a torna calculável, passível
de ser manipulada, que a normaliza; através de práticas higienistas e eugênicas 24 . É a
tomada de poder sobre a vida; expressado no conceito de biopoder 25, o qual põe sob si:

24 “Ele” (Foucault) “compreendeu que, a partir do momento em que a vida passou a se constituir no
elemento político por excelência, o qual tem de ser administrado, calculado, gerido, regrado e normalizado, o
que se observa não é um decréscimo da violência. Muito pelo contrário, pois tal cuidado da vida trouxe
consigo a exigência contínua e crescente da morte em massa, visto que é no contraponto da violência
depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de vida e sobrevivência a uma dada população”.
(DUARTE, 2010, 226-227)
25 “A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente,
recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Abre-se, assim, a era de um 'bio-

107
poder disciplinar e biopolítca. É o momento e que Foucault realiza o desdobramento do
primeiro para o segundo. O qual pode ser assim compreendido:
Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII,
em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário
dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de
relações. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no
corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões - tudo
isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas:
anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais
tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no
corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos
biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, tais
processos são assumidos mediante uma série de intervenções e controles
reguladores: uma bio-política da população. As disciplinas do corpo e as
regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se
desenvolveu a organização do poder sobre a vida. (FOUCAULT, 2007, 151-152)

O poder disciplinar se desenvolveu a partir de técnicas específicas com o fim de


adestramento do corpo do indivíduo. Seu exercício se deu nas instituições disciplinares -
(família, escolas, fábricas, hospitais, prisões, etc) - nas quais os homens modernos passam
a maior parte de suas vidas. Mas, em meados do século XVIII vemos aparecer um outro
tipo de poder que é, de acordo com Foucault, a biopolítica cujo fim é gerir a vida da
população. Esboça-se assim tal quadro: nas técnicas do poder disciplinar o que importa é
fabricar o corpo individual, localizado nas instituições, já “[...] para a biopolítica, o que
importa passa a ser temas como a fecundidade, a morbidade, a higiene ou saúde pública, a
segurança social, etc". (BRANCO, 2008, p.85). Trata-se de um conjunto de processos com
o apoio da estatística, demografia e medicina. A biopolítica se ocupara da fecundidade, mas
também da morbidade, e daquilo que pode fazer morrer uma população. Cuidar-se-á de
saber e combater a endemias. Pois, se nos séculos passados o que preocupava eram as
epidemias, aquela explosão de uma doença que atingia e matava rapidamente uma dada
população como a peste. Agora importava acima de tudo aquilo que se chamava de
endemias, “(...) ou seja, a forma, a natureza, a extensão, a duração, a intensidade das
doenças reinantes na população”. (FOUCAULT, 1999, p. 290) Foucault falara na
instauração de um tipo de poder que regulamenta e visa à previdência. E a medicina foi um
dois maiores aliados dessa forma de poder. Com ações higienistas e eugênicas no decorrer
do século XIX e XX e talvez até hoje. Na procura de uma população limpa, pura, sadia e
“bonita”. Também procurara se ocupar da velhice: o que fazer com aquele que não mais

poder'”. (FOUCAULT, 2007, p. 152) E vale observar que no curso “Em defesa da sociedade” Foucault não
parece marcar uma diferença entre biopoder e biopolítica de forma efetiva. Já em A vontade de saber sim. O
termo biopoder será usado aqui para se referir aos dois polos de poder que tomaram a vida com objeto: poder
disciplinar e biopolítica.

108
serve para o trabalhar; com aquele que envelheceu e não pode ser utilizado. Espera-se,
como Foucault disse alhures: “que morra rápido e em silêncio de um infarto”. E por outro
lado se ocupara com “(…), os acidentes, as enfermidades, as anomalias diversas”.
(FOUCAULT, 1999, p. 291) E também nascera uma constante preocupação com as
relações entre a espécie humana e seu meio – os efeitos de seu meio geográfico, climático,
hidrográfico sobre os seres humanos. Por exemplo: o problema dos pântanos e da
epidemiais ligados a eles. (Cf. FOUCAULT, 1999, p. 292) É disto tudo que biopolítica vai
se ocupar. Da fecundidade, da morbidade, dos acidentes, da velhice, do meio. E o
denominador comum, o pano de fundo é a tomada de poder sobre a vida. A vida de uma
dada população. Vai se ocupar de fenômenos coletivos. Entra em cena aquilo que Foucault
chamou de homem-espécie, ou corpo-espécie. Enquanto a disciplina se ocupara do corpo
do indivíduo do corpo-máquina, do corpo-organismo. Era o treinamento do indivíduo, o
processo de individualização que importara a disciplina. “A biopolítica lida com a
população, e a população como problema político, como problema a um só tempo
científico e político, como problema biológico e como problema de poder, (…)”.
(FOUCAULT, 1999, p. 292-293)
E ambos os mecanismos disciplinares e biopolíticos por caminhos diferentes se
complementaram. Duas tecnologias de poder que se sobrepuseram. Há uma passagem
longa em “Em defesa da sociedade” que Foucault dedica a esta comparação da qual vale
citar a seguinte parte:
uma tecnologia que é mesmo, em ambos os casos, tecnologia do corpo, mas,
num caso, trata-se de uma tecnologia em que o corpo é individualizado como
organismo dotado de capacidades e, no outro, de uma tecnologia em que os
corpos são recolocados nos processos biológicos de conjunto. (…): tudo sucedeu
como se o poder, que tinha como modalidade, como esquema organizador, a
soberania, tivesse ficado inoperante para reger o corpo econômico e político de
um sociedade em via, a um só tempo, de explosão demográfica e de
industrialização. De modo que à velha mecânica do poder de soberania
escapavam muitas coisas, tanto por baixo quanto por cima, no nível do detalhe e
no nível da massa. Foi para recuperar o detalhe que se deu a primeira
acomodação: acomodação dos mecanismos de poder sobre o corpo individual,
com vigilância e treinamento – isso foi a disciplina. (…). E, depois, vocês tem
em seguida, no final do século XVIII, uma segunda acomodação, sobre os
fenômenos globais, sobre os fenômenos de população, com os processos
biológicos e bio-sociológicos das massas humanas. (FOUCAULT, 1999, p. 297-
298)

Ambos, de acordo com Foucault, poder disciplinar e biopolítica tiveram uma


importância enorme para o desenvolvimento do capitalismo. Foram os procedimentos de
organização do espaço, controle do tempo, aumento e uso das forças do corpo, por um
lado, que permitiram ligar o corpo dos indivíduos ao aparelho de produção. Pois, ao

109
sucesso do capitalismo eram imprescindíveis corpos dóceis e úteis na mesma proporção. E
por outro lado os controles reguladores da população permitiram ajustar o crescimento
demográfico ao crescimento econômico.
Os rudimentos de anátomo e de bio-política, inventados no século XVIII como
técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por
instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina
individual ou a administração das coletividades), agiram no nível dos processos
econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão em ação em tais processos e
os sustentaram; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a
articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças
produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados
possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos
múltiplos. (FOUCAULT, 2007, p. 153- 154)

Vale dizer que bio-poder – compreendido como um conjunto de técnicas de poder


disciplinar e biopolítica – parece ser um conceito de importante valia para pensarmos a
tomada do corpo do indivíduo e do corpo espécie como objetos de poder. Isto é, para
pensarmos a investida do poder sobre a vida. Para torná-la mais saudável e útil. Para fazê-
la “crescer” na medida em que este crescimento também majore o desenvolvimento do
capitalismo. Existiu, portanto, uma necessidade por parte do capitalismo de se apropriar do
bio-poder e seus procedimentos para que ele viesse a se desenvolver nas sociedades
ocidentais.

RACISMO DE ESTADO: OU COMO JUSTIFICAR O PARADOXO DOS


MASSACRES NO ÃMBITO DO PODER QUE TEM COMO FOCO FAZER VIVER

Ora, se a biopolítica é uma forma de poder que tem como alvo a vida de uma dada
população. É uma série de conjunto de procedimentos de poder-saber que se articulam na
procura de controlar, melhorar a vida da espécie. Como podemos compreender a existência
dos inúmeros massacres que desde o século XIX não deixaram de crescer. Vide as atuações
do imperialismo de fins do século XIX e XX na Africa; a Primeira e Segunda Guerras
Mundiais; confrontos bélicos nos Balcãs na de década de 1990, e assim por diante. Não
seria um paradoxo um poder que tem por fim fazer viver também faze morrer? Pois, se
[…] estamos num poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida, ou que
se incumbiu, se vocês preferirem, da vida em geral, com o pólo do corpo e o pólo
da população. Biopoder, por seguinte, do qual logo podemos localizar os
paradoxos que aparecem no próprio limite de seu exercício. (…), como vai se
exercer o direito de matar e a função do assassínio, se é verdade que o poder de
soberania recua cada vez mais e que, ao contrário, avança cada vez mais o
biopoder disciplinar ou regulamentador? (…). Como, nessas condições, é
possível, para um poder político, matar, reclamar a morte, pedir a morte,
mandar matar, dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos mas
mesmo seus próprios cidadãos? (FOUCAULT, 1999, 302-303-304. Itálico

110
nosso)

A saída de um biopoder, ou melhor, da biopolítica para esse impasse se dá com a


formulação e uso de um racismo, um racismo de Estado. Racismo de Estado na medida em
que o Estado moderno enquanto aquele que se utiliza dos procedimentos biopolíticos só
poderá matar se justificar a morte em termos de racismo.
Sobre o racismo forram criados muitos discursos e práticas no decorre da
modernidade. Arendt além de Foucault também o pensara. Para ela haveria um pensamento
de raça, o racismo do século XIX e o racismo nazista. E entre estas formas uma
descontinuidade. “A tese de Arendt é que antes do fim do século XIX o pensamento de
raça não estava vinculado a uma prática racista assassina. (…). A ligação entre uma teoria
racista e uma prática racista e homicida é possibilitada pelo imperialismo”. (ORTEGA,
2001, p. 72) Já para Foucault haveria uma continuidade entre essas práticas e discursos.
Inclusive Foucault evocaria em suas análises a conquista da América pelos espanhóis.
Retrocedendo para bem antes do pensamento de raça e do Imperialismo analisados por
Arendt. Contudo, não importa aqui esclarecer as teses de Arendt acerca desse tema. Mas
tão somente mencionar a existência de uma outra posição acerca dele.
Mas, na ótica de Foucault, o que é o racismo, o qual permite a biopolítica matar?
“É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se
incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver eu que deve morrer”. (FOUCAULT,
1999, p. 304) Assim, a partir do momento em que o discurso e prática políticos se
apropriaram das teorias raciais fora possível no interior mesmo daquilo que chamamos de
espécie humana divisões e cortes. Eles puderam matar na medida em que as teorias raciais
afirmaram a existir de raças superiores e inferiores. Que as inferiores devem ser
aniquiladas para que as superiores possam prosperar. E isto não só em relação a um outro
país, mas num grupo da própria sociedade. O caso do nazismo é o exemplo maior desse
tipo de biopolítica em que a morte de milhares é justificada em função de sua
inferioridade; judeus; ciganos; eslavos; pessoas com problemas físicos e mentais, etc. No
cerne da relação da biopolítica com o racismo reside essa posição:
a morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria
minha segurança; a morte do outro, a morte da raça ruim, raça inferior (ou
degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais
sadia e mais pura. (…). Em outras palavras, tirar a vida, o imperativo da morte,
só é admissível, no sistema de biopoder, se tende não à vitória sobre os
adversários políticos, mas à eliminação do perigo biológico e ao fortalecimento,
diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou da raça.
(FOUCAULT, 1999, p. 305-306)

111
A meta é eliminar os perigos externos e internos em relação a população e para a
população. População que em certa medida é composta por raças. Mas na qual deve
prevalecer aquela que apresentar traços de superioridade. Obviamente que Foucault aqui
não estava fazendo apologia a teorias raciais. Mas, procedendo a um diagnóstico da
modernidade: em que política e princípios das teorias da biologia estão se entrecruzando
(sobretudo a partir do século XIX quando a biologia tende-se a adquirir o estatuto de
ciência). Estamos novamente no terreno da tese central de Foucault: poder-saber, um
imbricamento.
Foucault encerra a aula de 17 de março de 1976 discutindo o Estado nazista e as
relações entre poder soberano, disciplinar e biopolítica. E se indagando se essa mesma
relação não estaria presente também em todos Estados modernos, ainda que em medidas
menores. Seja ele socialista ou capitalista.
E para encerrar perguntamos: como justificar a pena de morte hoje? A entrada da
polícia nas favelas e a morte daqueles que lá vivem, por vezes indiscriminadamente? Por
que armas químicas são usadas em Estados do Oriente Médio? Acreditamos que a
perspectiva foucaultiana do biopoder seja uma importante ferramenta para podermos
pensar e compreender tais questões.

REFERÊNCIAS

BRANCO, Guilherme Castelo. Ontologia do presente, racismo, lutas de resistência. In.:


PASSOS, Izabel C. Friche (org.). Poder, normalização e violência: incursões foucaultianas
para a atualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 83-89.

CANDIOTTO, Cesar; D'ESPÍNDULA, Thereza Salomé. Biopoder e racismo político: uma


análise a partir de Michel Foucault. Revista Internacional Interdisciplinar - INTERthesis.
Florianópolis, SC. UFSC. Vol. 09, n° 2, Jul. Dez. 2012. p. 20-38

DEFERT, Daniel. Cronologia. In.: FOCAULT, Michel. Ditos e escritos: psicologia,


psiquiatria, psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. Vol. I

DUARTE, André. De Michel Foucault a Giorgio Agamben: a trajetória do conceito de


biopolítica. Em http://.bepress.com/andre_duarte/17 Acessado em abril de 2012

112
_____. Vidas em Risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad.


ALBUQUERQUE, Maria Thereza da Costa; ALBUQUERQUE J. A. Guilhon. 18° ed. Rio
de Janeiro: Graal, 2007.

____. Em defesa da sociedade: curso do Collège de France (1975-1976). Trad. Maria


Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999,

____. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Ed. 19ª. Rio de Janeiro: Edições
Graal. 2004.

ORTEGA, Francisco. Racismo e biopolítica. In.: AGUIAR, Odílio Alves (org. et al.).
Origens do Totalitarismo: 50 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

113
SARTRE: RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E LITERATURA

Ester da Silva Gomes


Unesp –FCL de Assis.
esters.gomes@hotmail.com

RESUMO

Esta comunicação consiste em falar do escritor – filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980),


um dos grandes pensadores do século XX pertencente à corrente filosófica existencialista.
Sartre atrela tanto questões filosóficas como literárias dentro de suas obras, logo, existe
uma relação muito próxima da sua filosofia com a literatura, ou seja, o filósofo se dedica à
aproximação das duas áreas. Por isso, aqui será exposto tal relação de alguns pontos da
filosofia de Sartre com a literatura, deixando claro que para este escritor-filósofo, a
literatura em si já pode ser problematizada dentro de parâmetros específicos e singulares
concernentes a ela. Um desses problemas refere-se à própria conceituação do termo
literatura, pois esta, para Sartre, não se distancia da experiência vital, por isso o autor aqui
em questão direcionou a literatura de acordo com seu pensamento e suas experiências (O
que é a literatura?). Na obra o autor relata esse universo da escrita e, ao colocar no título
uma interrogação, observamos que serão levantadas questões para serem refletidas sobre
esse assunto e uma visão do que se pensa. Percebemos que nas suas obras há um tom
engajador, principalmente na sua segunda fase, período que corresponde à Segunda Guerra
Mundial (1939-1945). Diferente de outros escritores Sartre coloca a obra como um fator
social, ele utilizava elementos da história para situar o espaço e relatar algo daquele
período histórico. Assim, a comunicação tem como objetivo levantar pontos da literatura
compreendida pelo pensamento filosófico sartriano, lembrando que estes são apenas
aspectos da sua filosofia, assim, mostraremos como a filosofia não se restringe a si mesma,
possibilitando uma visão de diferentes áreas. A literatura, vista como uma arte, faz parte de
nossa história, em que diversas pessoas leem e escutam a respeito. Sartre, possui uma
maneira de escrever, de modo que está entrelaçado com sua visão filosófica, pois, para ele
o que se escreve deve falar de alguma coisa a respeito do mundo, e essa coisa ser percebida
por quem lê. Com isso, a comunicação é somente uma exposição da relação entre filosofia
e literatura, a intenção é levantar alguns pontos e relacionar essas duas áreas, além de
comentar alguns pontos do pensamento filosófico sartriano.
Palavras-chaves: Literatura; Filosofia; Sartre; Engajamento.

O escritor-filósofo Jean-Paul Sartre entrelaça seu pensamento filosófico


existencialista com sua literatura. Ao iniciar sua fase engajada, que está ligada ao período
da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Sartre evoluiu seu conceito de liberdade,
percebeu que ela só teria sentido se fosse comprometida numa causa e ao escolher escrever,
já está agindo. Sua literatura se torna uma maneira de agir, além da escrita ser direcionada,
ou seja, possui um papel importante na sociedade, ela foi influenciada diretamente pelo
contexto histórico, de forma que a literatura para ele deve se comprometer com a sociedade,
mostrando suas mazelas.
Sartre atrela tanto questões filosóficas quanto literárias dentro de suas obras, logo

114
existe uma relação muito próxima da sua filosofia com a literatura, e aqui serão expostas
ideias com base no seu livro O que é literatura?, no qual o escritor acaba orientando a
literatura por um caminho, um caminho engajado. Aqui também serão expostos alguns
aspectos da filosofia do autor que estará ligada com sua fase engajada.
Neste livro, O que é literatura? Sartre levanta algumas questões acerca do termo,
ele encaminhou a literatura de acordo com seu pensamento e suas experiências, o livro
relata o mundo da escrita, e ao colocar no título uma interrogação, observamos que serão
colocadas questões para serem refletidas. O livro é formado pelas seguintes perguntas: O
que é escrever? Por que se escreve? Para quem se escreve?, perguntas que são de certo
modo para pensar na criação literária e de como essa atividade pode transformar e refletir
na realidade.
Uma das reflexões que Sartre aborda é “[...] que aspecto do mundo você quer
desvendar, que mudanças quer trazer ao mundo por esse desvendamento? O escritor
‘engajado’ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode
desvendar senão tencionando mudar” (SARTRE, 2004, p. 20). Esta citação refere-se ao
escritor e sua criação literária, o texto em si, além de colocar que a palavra é importante na
reflexão acerca do mundo, que ela faz parte de nós, “[...] a linguagem é: nossa carapaça e
nossas antenas, protege-nos contra os outros e informa-nos a respeito deles, é um
prolongamento de nossos sentidos” (SARTRE, 2004, p.19), ou seja, a linguagem é a
comunicação.
Para o escritor o objeto literário existe somente em movimento, para que ele seja
essencial é preciso o ato da leitura para completar o que o autor começou, a existência do
livro permanece viva enquanto durar a leitura, existe uma relação de dependência, o que
escrevemos na maioria é para que os outros leiam, assim a obra só existe por meio da
leitura. Para Sartre, tanto o escritor se engaja ao escrever o livro, como o leitor também se
engaja ao ler o livro, os dois partem de sua liberdade para tal ação, tanto da criação como
da leitura.
Sartre comenta que ao escolher o tema do livro, o escritor escolhe seu público,
primeiro que ele (autor) não escreve para eternizar na história o seu livro, mas escreve para
sujeitos que estão situados naquele momento histórico. Um exemplo é o próprio Sartre,
que durante a Segunda Guerra Mundial, quando a França foi invadida por tropas alemãs,
período conhecido como Governo de Vichy, escreveu e encenou As Moscas, 1943, uma
peça de teatro que faz alusão ao que estava acontecendo naquele período, de forma que o

115
escritor propõe ao público daquela época que assistiu à peça, resistir às forças externas,
neste caso às tropas alemãs, e não aceitar de forma pacífica o problema vivido naquela
época, que tirava a própria liberdade de viver, a submissão. Assim, essa é a maneira de um
escritor se engajar, ele tem consciência do seu momento histórico, das suas mazelas e com
isto ele passa de si para os outros, essa consciência, esse modo de engajar é do ponto de
vista de Sartre.
O escritor possui um ponto de vista em relação à literatura, de modo que ele cria
esse conceito para si e estabelece uma separação em relação a ela, o que é literatura para
ele, Sartre, não é favor da literatura de Proust, o modo como ele escreve, primeiro que as
obras do Proust não estão ligadas a um comprometimento com a sociedade, o modo como
ele escreve é totalmente distinto de como escreve Sartre, o primeiro possui uma escrita de
estilo, ele recorre ao uso das figuras de linguagem, a metáfora, por exemplo, que é bastante
trabalhada pelos escritores e particularmente por esse, já Sartre é objetivo nos seus livros,
ele não trabalha com a intensificação da palavra e sua pluralidade, ele é direto e preciso no
que escreve.
Podemos pensar que essa divergência vem de que Sartre possui um outro estilo de
escrita, pautada na objetividade, suas frases são claras, sem o uso, por exemplo, das figuras
de linguagem, ele se apropria das palavras concretas, ou seja, que não se desprendem da
nossa realidade. Sartre possui essa diferença em escrever porque ele é filósofo, suas
palavras não serão palavras poéticas, pois seu principal aliado é a razão, e ele passa essa
escrita objetiva dos seus livros filosóficos para suas obras literárias, ele continua com o
mesmo emprego da palavra, da sua racionalidade, comentando brevemente, é por meio da
razão que investiga e questiona o homem e o mundo, o filósofo está inserido no campo da
conceituação, sua linguagem é totalmente racional, sua preocupação é outra, diferente de
Proust, de forma que Sartre leva esse modo de escrita para suas obras literárias, como nas
obras literárias ele incorpora sua filosofia em que é preciso usar a linguagem objetiva.
O pensamento filosófico é um dos elementos mais importantes que compõe não só
as obras do escritor, mas também sua vida, ele pertence à corrente filosófica existencialista.
O existencialismo tem como princípio: a existência precede a essência, e assim "[...] o
homem só adquire uma essência depois de existir, a posteriori” (MACIEL, 1970, p. 123,
§2), entretanto, esta definição só é válida para os humanos, pois para os objetos é
justamente o contrário, primeiro pensa-se na essência do objeto, depois ele passa a existir,
ele é definido antes de existir. Esta segunda definição é cabível ao livro, pois sua essência

116
vem primeiro e quando ela é escrita e lida ela passa a existir.
Com a Segunda Guerra Mundial foi possível, no meio de tantos desastres (político,
social, econômico, moral, financeiro etc), o surgimento de novos ideais, novas formas de
pensar, e é nesse meio que surge o existencialismo, uma doutrina que trata diretamente da
existência humana, e a literatura de Sartre representou esse momento histórico, de modo
que “[...] a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e
considerar-se inocente diante dele” (SARTRE, 2004, p.21).
Sartre poderia somente discutir a filosofia, mas preferiu partir para a literatura, e
essas duas áreas possuem uma relação muito próxima, ambas tratam da realidade humana,
ou seja, da existência humana, contudo cada uma a apresenta de uma maneira distinta, elas
abordam o assunto de acordo com o plano em que cada uma está. A literatura sai do plano
conceitual ao qual a filosofia pertence e cria uma representação do mundo (narrações),
baseado em uma realidade concreta. Uma complementa a outra, e as duas são necessárias
para a compreensão da realidade humana. Sendo assim, é possível dentro da literatura uma
realidade paralela, ou seja, uma realidade criada por meio de uma ficção e que parte da
liberdade criativa do escritor.
Assim, não podemos pensar que as obras literárias de Sartre são uma simplificação
de sua filosofia, pois nas palavras de seus livros é atribuído seu pensamento filosófico, e
ainda, a literatura não é um acessório da filosofia, mas com o direcionamento de Sartre, um
engajamento em si. Por isso, cada qual possui um papel diverso de compreender o ser
humano e o mundo, além de possuir uma linguagem própria criando dois modos de ver sob
um mesmo assunto.
O encontro da literatura e filosofia, constrói-se de acordo com cada escritor e
filósofo. O termo literatura já é complicado, pois como definir ou padronizar obras que não
seguem um modelo, já que cada obra literária é única, ela cria seus personagens, o meio, o
tema e nunca será igual um livro com o outro por mais que tratem do mesmo assunto, cada
autor atribui um sentido no seu livro de acordo com suas experiências, o que sugerimos a
respeito da literatura são alguns aspectos dela, alguns. Sartre se apropria da literatura
justamente por ter a liberdade de criar um outro mundo paralelo ao nosso, construindo
personagens que ganham vida na leitura, como dito, o escritor trata da literatura em prol da
sociedade, em que livros tem uma função no meio onde vivem as pessoas.
A peça de teatro em Sartre é muito importante na época na qual ele presenciou, pois
elucidava melhor o que ele queria, representava os problemas vívidos, colocava em prática

117
o termo engajar. A peça de teatro é regida pelo momento da escolha, de criar os próprios
valores por meio desta, é assim que a liberdade do indivíduo se constrói, mas esta
liberdade "pura" não existe, pois ela é limitada pelos valores já instaurados, ela é uma
vontade do ser humano colocado em ação e assim Sartre levanta a questão da ação livre e
suas implicações. Com o teatro, o público está interagindo com os personagens que
ganham vida para falar, diferentemente do monólogo do leitor, uma maneira eficaz de
aproximar a plateia da encenação, como se fosse verdadeira a representação.
O escritor percebeu que o teatro era uma maneira de falar diretamente ao povo, com
as falas dos personagens passava sua filosofia de que o homem é livre, que através de suas
escolhas ele se define, e que ao escolher deve aceitar as consequências. Segue um trecho da
peça As Moscas que elucida tal afirmação “Não voltarei à tua natureza: mil caminhos nela
estão traçados que conduzem a ti, mas não posso seguir senão o meu caminho. Pois eu sou
um homem, Júpiter, e cada homem deve inventar seu caminho” (SARTRE, 2005, p. 105).
Nesta frase, a fala é de um personagem principal (Orestes) para o deus Júpiter, Orestes diz
que ele é livre, nem a religião e nem a sociedade vai ditar suas escolhas, este personagem
quer a libertação do homem em relação aos valores instaurados pela religião que inibe
muitas vezes o indivíduo de tomar atitudes, ou acaba justificando seus atos pelos valores
religiosos.
O teatro do escritor tem uma ênfase e prossegue a partir da sua segunda fase
engajada, (período da Segunda Guerra), o uso delas foi a melhor maneira naquele tempo
que Sartre encontrou para descrever e colocar em prática a sua filosofia, além de incitar o
público não ser pacífico com aquela realidade, ele mesmo se engaja ao escrever as peças e
encená-las, para ele “[...] a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e,
ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do
porvir” (SARTRE, 2004, p.20).
Assim como Sartre crítica outros escritores a partir do seu ponto vista, ele também é
criticado, e Adorno é um deles, este crítica o teatro sartriano, pois para ele o conceito de
engajamento segue uma outra linha, para ele o engajar está na forma e não no conteúdo
como faz Sartre em suas peças, para Adorno as obras sartrianas são apresentadas ao
público prontas, o conteúdo só é passado, não propõe nada de novo, apenas representa.
Para Adorno as peças de Brecht são engajadas, justamente porque ele trabalha com a forma
no teatro, ele rompe com o modelo teatral, e revela uma maneira diferente de representar o
teatro, por exemplo, os personagens interagem com a plateia, conversam com a ela, fazem

118
comentários, eles criam uma reflexão do que está acontecendo na peça, isto acontece
quando ela está sendo encenada. Essas características marcam a divergência entre o teatro
de Sartre e de Brecht, mas um ponto extremamente importante de Sartre é o seu contexto
histórico, ele criou de acordo com sua visão um modo de denunciar as barbáries de seu
tempo. Este breve comentário entre Sartre e Adorno foi somente para mostrar que cada
filósofo ou escritor vai trabalhar com um direcionamento no seu texto, e como um assunto
nunca se restringe a ele mesmo, temos vários posicionamentos, como no engajamento.
Adorno tomou uma postura oposta a de Sartre, o que faz enriquecer e ganhar novos pontos
de vista através de um mesmo tema.
Sartre crítica, por exemplo, o teatro do absurdo, que está desligado da história, a
questão histórica para o escritor é crucial, pois a época que viveu estava dilacerada pela
Segunda Guerra Mundial, pela Guerra Fria, a Crise Financeira, e o homem perdido nesse
caos, além do teatro do absurdo não retratar a realidade, é justamente o oposto, ela
desconstrói essa realidade, como dito anteriormente Sartre coloca nos seus livros e peças
teatrais, a racionalidade das palavras e a própria palavra absurdo se afasta do que ele
trabalha.

REFERÊNCIAS

MACIEL, Luiz Carlos. Sartre: vida e obra. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra. 1970.
SARTRE, J. P. As Moscas. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira. 2005.
___________. O que é literatura? São Paulo. Ed. Ática. 2004.
___________ O existencialismo é um humanismo. Os pensadores. São Paulo. Ed. Abril
Cultura. 1973.

119
MICHEL FOUCAULT E A BIOPOLÍTICA: UMA ANÁLISE REFLEXIVA

Fernanda Ramos Leão


Universidade Estadual de Londrina
mrs.leao@gmail.com

RESUMO

A presente comunicação possui, como objetivo principal, a análise crítico-reflexiva da


concepção foucaltiana de biopolítica, tal como foi articulada pelo autor, já que este tema,
além de importante elemento das investigações filosóficas de Michel Foucault, o que
propicia um avanço no conhecimento de sua obra, constitui-se de ferramenta teórica
necessária na compreensão e interpretação da nossa realidade, estudo este que certamente
viabiliza o debate em torno de questões das mais variadas e dos problemas dos mais atuais,
além, é claro, de contribuir nas pesquisas do projeto maior ao qual este trabalho se vincula.
Para isso, faremos uma reconstrução de alguns pontos-chave sobre este assunto na obra de
Foucault, a saber: o caminho genealógico das variadas formas e mecanismos de poder
articulados historicamente, desde o poder soberano, em que o rei detinha o direito absoluto
de matar seus súditos, até sua inversão completa, definida como biopoder, que se
caracteriza, em termos gerais, pelo domínio político em torno da vida humana, em seu
sentido biológico. Trata-se da regulamentação política da população, que pretende garantir-
lhe e proteger-lhe a vida, utilizando para este fim tecnologias e estratégias cada vez mais
sutis, refinadas e eficazes. O embasamento teórico dessa empreitada encontra-se
especialmente nos textos que Foucault escreveu em 1976, em forma de curso e de livro:
Em defesa da sociedade e História da Sexualidade I: A vontade de saber, respectivamente,
com o auxílio de outros recursos como artigos e entrevistas sobre o tema. Os dados e
informações contidas nesta pesquisa possuem caráter clarificador das idéias acerca do tema
da biopolítica desenvolvidas pelo filósofo francês, na medida em que permitem, por meio
do conhecimento de tais mecanismos, aprofundarmos também o conhecimento sobre o
nosso contexto atual, que ainda se insere – apesar de suas constantes e inerentes mutações
– dentro desse esquema de poder, ou melhor, de biopoder.
Palavras-chave: Foucault; biopolítica; poder.

“Eu espero ainda que um médico filosófico, no sentido excepcional do termo –


alguém que persiga o problema da saúde geral de um povo, uma época, de uma
raça, da humanidade – tenha futuramente a coragem de levar ao cúmulo a
minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmação: em todo o filosofar, até o
momento, a questão não foi absolutamente a “verdade”, mas algo diferente,
como saúde, futuro, poder, crescimento, vida...”

(NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.)

É comum entre os comentadores da obra de Michel Foucault classificá-la em três


fases, de acordo com certa ordem cronológica e temática que seus textos possuem. A
primeira, chamada de fase arqueológica, inicia-se com a publicação de sua tese de
doutorado, intitulada História da Loucura, em 1961 e abrange os demais livros escritos na

120
década de 1960: O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A
arqueologia do saber (1969). Nesse período, destacam-se os temas relacionados à
constituição dos saberes acerca do homem, as chamadas ciências humanas. O momento
seguinte é o da genealogia, em que Foucault concentra sua atenção na análise do poder e
seus mecanismos. Compreende os textos da década de 1970: Vigiar e punir (1975) e o
primeiro volume da História da sexualidade, cujo título é A vontade de saber (1976). Por
fim, o terceiro período abarca as suas últimas publicações, os volumes II e III da História
da sexualidade, que se intitulam respectivamente O uso dos prazeres e O cuidado de si,
ambos de 1984 e tratam dos processos de subjetivação, em uma análise da relação sujeito-
verdade.

Assim, optamos como primeiro passo na caminhada de apresentação deste trabalho,


situá-lo no referido esquema, para que se possa, com isso, avistar os primeiros contornos
do nosso universo de interesse, ou seja, do recorte temático de nosso estudo. Importa-nos,
então, o segundo eixo das pesquisas foucaultianas, no qual se destaca a famosa analítica do
poder. Durante esse período (anos 1970), conforme os registros de sua obra – livros,
artigos, entrevistas e cursos – nosso autor procura, ao traçar essa genealogia do “como” do
poder, vislumbrar suas estratégias e mecanismos, assim como seus efeitos e o modo como
eles agem e reagem no indivíduo, na sociedade, na população. Dentro desse contexto,
buscamos especialmente compreender a noção de biopolítica, tal como foi descrita e
trabalhada pelo filósofo francês, no intuito de obter a apreensão necessária a uma posterior
análise crítico-reflexiva do tema.

Para empreender tal objetivo, tomamos como ponto de partida teórico as primeiras
abordagens sistematizadas sobre o assunto, que encontram-se simultaneamente em dois
textos, ambos de 1976, a saber: na aula de 17 de março, a última do curso proferido
naquele ano no Collège de France, e que recebeu o título de Em defesa da sociedade e no
último capítulo do primeiro volume de História da Sexualidade, intitulado A vontade de
saber.
Logo no início do primeiro dos textos, já podemos identificar um esboço de
definição para um biopoder:
Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi, é o que se
poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma
tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização
do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia
chamar de estatização do biológico (FOUCAULT, 2005, p. 285 - 286).

121
Já no texto de A vontade de saber, os primeiros traços desse mesmo movimento de
demarcação do biopoder são assim expressos:

Ora, a partir da época clássica, o Ocidente conheceu uma transformação muito


profunda desses mecanismos de poder. O “confisco” tendeu a não ser mais sua
forma principal, mas somente uma peça, entre outras com funções de incitação,
de reforço, de controle, de vigilância, de majoração e de organização das forças
que lhe são submetidas: um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer
e a ordená-las mais do que a barrá-las, dobrá-las ou destruí-las (FOUCAULT,
1999, p. 128).

Mas afinal, a que espécie de poder se refere Foucault? Qual sua concepção de
poder? Responder a essa pergunta, ao menos em linhas gerais, é nosso segundo passo,
antes de aprofundarmos a reflexão sobre a biopolítica, já que é justamente daí que parte o
próprio filósofo.

Para Foucault, o poder não é algo que se possa simplesmente definir, por meio de
uma determinação clara e precisa do seu conceito. Assim, não existe “o Poder”. Ele é antes
uma relação, ou melhor, “uma multiplicidade de correlações de força” (FOUCAULT,
1999, p. 88) e seu significado encontra-se na própria analítica dessas relações, dessas
práticas de poder. Não há, portanto, uma teoria sobre o poder, ou ainda um sistema geral e
fechado de postulados que o delimite. Além disso, o poder não deve ser identificado
somente com o Estado, com instituições ou qualquer outra forma de dominação – ainda
que dominar, subjugar ou reprimir façam parte do repertório de inúmeras possibilidades e
recursos variados de que o poder pode dispor. Em suma, o poder é onipresente e circula
por todos os modos de ação humanos e cotidianos, em espécies de micro-poderes que se
desenvolvem em todos os lugares, em todos os sentidos e direções, num jogo assimétrico e
constante de oposições, conflitos e enfrentamentos, que por sua vez, também estão em
constante mutação, alteração, inversão ou reforço.

A condição de possibilidade do poder, em todo caso, o ponto de vista que


permite tornar seu exercício inteligível até em seus efeitos mais “periféricos” e,
também, enseja empregar seus mecanismos como chave de inteligibilidade do
campo social, não deve ser procurada na existência primeira de um ponto central,
num foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e descendentes;
é o suporte móvel das correlações de força que, devido a sua desigualdade,
induzem continuamente estados de poder, mas sempre localizados e instáveis
(FOUCAULT, 1999, p. 89).

Um último ponto a ser destacado na concepção foucaultiana de poder é o seu


vínculo inerente à produção de saberes. Foucault (assim como Nietzsche) não acredita na
existência de verdades eternas ou de conhecimentos absolutos, a priori. Fica bastante

122
evidente, a partir da intimidade progressiva que se cria com a leitura dos textos e apreensão
das idéias de Foucault, que ele sabe e reconhece que a capacidade humana esteve, está e
sempre estará presa a uma complexa rede de influências históricas, culturais, religiosas e
políticas que interferem radicalmente em seu agir, pensar e conceber o “verdadeiro” e o
“falso”, ou ainda “o certo” e o “errado”. Dito de outra forma: a verdade é produzida
historicamente e pelas relações de força que atuam num dado contexto. O que importa, em
última instância, é a efetividade dos discursos considerados verdadeiros, que
constantemente retroalimentam as relações de poder.

Produz-se verdade. Essas produções de verdades não podem ser dissociadas do


poder e dos mecanismos do poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos
de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdade, e porque essas
produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, que nos
atam (FOUCAULT, 2006, p. 229).

Partindo dessas informações, podemos então compreender como o poder se


manifestou e se articulou historicamente, desde a teoria clássica da soberania, onde o poder
estava representado e concentrado na figura do rei, até sua forma mais refinada,
tecnológica e sutil, a biopolítica.

O princípio de soberania, que marcou o período entre a Idade Média até o início do
século XVII, tinha como uma de suas características principais, o direito de vida e de
morte sobre os súditos. Contudo, constata Foucault, há um desequilíbrio nessa dualidade
vida-morte, pois na prática, dizer que o soberano pode matar ou deixar viver, significa que
ele pode efetivamente tirar a vida, ou seja, matar. Pode parecer redundante, mas um olhar
mais atento permite identificar que o poder soberano é antes um poder sobre a morte, e
dele é que decorre o poder sobre a vida.

O direito de vida e de morte só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre


do lado da morte. O efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce a partir
do momento em que o soberano pode matar. Em última análise, o direito de
matar é que detém efetivamente em si a própria essência desse direito de vida e
de morte: é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a
vida. É essencialmente um direito de espada. [...] Não é o direito de fazer morrer
ou de fazer viver. Não é tampouco o direito de deixar viver e de deixar morrer. É
o direito de fazer morrer ou de deixar viver (FOUCAULT, 2005, p. 286 - 287).

Eis o paradoxo da teoria clássica da soberania: não é para preservar a vida que se
constitui um soberano? Como justificar o fato, então, de que seu poder se exerça sobretudo
do lado da morte? Foucault observa que a história nos fornece dados e fatos que

123
demonstram como se deu a passagem do poder soberano ao poder disciplinar e à
biopolítica. Esse processo não se deu de forma abrupta. Pouco a pouco a vida foi sendo
valorizada, ascendendo em destaque e importância perante estratégias políticas. O que
ocorre é a inversão do poder soberano, o que não significa seu abandono, mas o resultado
de sua adequação, transformação e integração.

Uma das mais maciças transformações do direito político do século XIX


consistiu, não digo exatamente em substituir, mas em contemplar esse velho
direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver – com outro direito novo, que
não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai
ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de “fazer” viver e
de “deixar” morrer. O direito de soberania é, portanto, o de fazer morrer ou de
deixar viver. E depois, este novo direito é que se instala: o direito de fazer viver
e de deixar morrer (FOUCAULT, 2005, p. 287).

Nesse contexto, o que de fato interessa ao filósofo, como já foi dito anteriormente,
é o “como” do poder: seus mecanismos, seu funcionamento, suas técnicas. Assim, ele
constata essa mudança no comportamento do poder, que foi ocorrendo conforme as
transformações da própria sociedade, em conjunto com sua economia, política e
estratégias. Passou-se a investir na vigilância e punição dos corpos individuais.

[...] nos séculos XVII e XVIII, viram-se aparecer técnicas de poder que eram
essencialmente centradas no corpo, no corpo individual. Eram todos aqueles
procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos
individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em
vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais, de todo um
campo de visibilidade. Eram também as técnicas pelas quais se incumbiam
desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil através do exercício, do
treinamento etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e de economia
estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos onerosa possível,
mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de
escriturações, de relatórios (...) (FOUCAULT, 2005, p. 288).

Eis aí uma das formulações, por meio da qual Foucault nos apresenta o poder
disciplinar em sua obra, que é descrita pormenorizadamente em um de seus mais famosos e
polêmicos livros: Vigiar e Punir, publicado em 1975. Como visto, a função da disciplina é
administrar a vida em seus mínimos detalhes. Ela age sobre o corpo, adestrando e
condicionando os indivíduos, através do controle do tempo e do espaço, só para citar
alguns exemplos, e através de instituições como a prisão, a escola, o hospital. “A disciplina
tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve
redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados,
eventualmente punidos” (FOUCAULT, 2005, p. 289).

124
Por fim, um novo movimento toma forma, no final do século XVIII, e novamente
há um processo de modificação, de assimilação, de “digestão” do poder disciplinar. Trata-
se do poder em outro nível, em outra escala; trata-se do biopoder, que não abandona por
completo nem mesmo o poder do tipo soberano, podendo servir-se inclusive dele, se assim
for necessário ao seu exercício (uma espécie de contradição da biopolítica, sendo este um
assunto que necessita maior aprofundamento e investigação, o que seria inviável perante os
objetivos da presente pesquisa). A novidade introduzida aqui é que essa nova tecnologia de
poder não se aplica ao “homem-corpo”, como faz a disciplina, mas age sobre o “homem-
espécie”. Nas palavras do próprio Foucault:

[...] a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não
na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma,
ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são
próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a
doença etc. [...] Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no
decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já
não é uma da anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma
‘biopolítica’ da espécie humana (FOUCAULT, 2005, p. 289).

Podemos dizer que a biopolítica é uma aproximação entre a biologia e o Estado.


Um olhar político sobre a vida, que reúne em si um conjunto de estratégias
governamentais, visando administrar a vida da população com fins políticos e econômicos.
São mecanismos contínuos, reguladores, corretivos e principalmente preventivos. Para
tanto, a biopolítica se apóia na estatística, que lhe permite mapear os fenômenos próprios
da vida humana enquanto população, como taxas de nascimento, de fecundidade, de óbitos.
O objetivo é conquistar uma espécie de homeostase social, ou seja, um equilíbrio geral que
garante a segurança do todo pelo controle e pela prevenção dos perigos e acidentes
internos a esse sistema político. Há ainda diversos outros pontos em que incidirá a
biopolítica: higiene pública, velhice, acidentes, enfermidades, anomalias e sexualidade,
enfim, os problemas que envolvem seres humanos (como seres vivos, portanto, biológicos)
e seu meio, como questões ecológicas e urbanas.

No campo de domínio instalado pela biopolítica, Foucault destaca três aspectos


importantes, conforme sua análise. São eles: a) a noção de população; b) os fenômenos
considerados pela biopolítica e c) a natureza dos mecanismos biopolíticos.

A população é, para Foucault, o novo personagem sobre o qual incidirá o biopoder.


Personagem até então desconhecido pela teoria do direito e pela disciplina, que lidavam

125
com indivíduos. E assim, ele nos apresenta esse novo elemento político, objeto essencial e
alvo do biopoder:

É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito
pelo menos necessariamente numerável. É a noção de ‘população’. A biopolítica
lida com a população, e a população como problema político, como problema a
um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de
poder, acho que aparece nesse momento (FOUCAULT, 2005, p.292 - 293).

O segundo aspecto considerado por Foucault, diz respeito à natureza dos


fenômenos biopolíticos. São eventos coletivos com implicações no campo político e
econômico, conforme o filósofo observa:

São fenômenos aleatórios e imprevisíveis, se os tomarmos neles mesmos,


individualmente, mas que apresentam, no plano coletivo, constantes que é fácil,
ou em todo caso possível, estabelecer. E, enfim, são fenômenos que se
desenvolvem essencialmente na duração, que devem ser considerados num certo
limite de tempo relativamente longo; são fenômenos de série. A biopolítica vai
se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população
considerada em sua duração (FOUCAULT, 2005, p. 293).

Quanto aos mecanismos implantados pela biopolítica, sua natureza também se


difere da disciplina. A biopolítica trabalha com dados estatísticos, globais e no nível da
população, enquanto o poder disciplinar age sempre no corpo individual. O próprio
Foucault esclarece:

Pois aí não se trata, diferentemente das disciplinas, de um treinamento individual


realizado por um trabalho no próprio corpo. Não se trata absolutamente de ficar
ligado a um corpo individual, como faz a disciplina. Não se trata, por
conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas,
pelo contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se
obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em resumo, de levar em
conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre
eles não uma disciplina, mas uma regulamentação (FOUCAULT, 2005, p. 294).

Apesar dessas distinções que muito bem explicam as características gerais do poder
disciplinar e do biopoder, Foucault volta a frisar que este é um campo complexo, uma
trama onde modos diferentes de poder se enveredam:

Por outro lado, esses dois conjuntos de mecanismos, um disciplinar, o outro


regulamentador, não estão no mesmo nível. Isso lhes permite, precisamente, não
se excluírem e poderem articular-se um com o outro. Pode-se mesmo dizer que,
na maioria dos casos, os mecanismos disciplinares de poder e os mecanismos
regulamentadores de poder, os mecanismos disciplinares do corpo e os
mecanismos regulamentadores da população, são articulados um com o outro
(FOUCAULT, 2005, p. 299).

126
É na esteira dessa análise de coexistência do poder disciplinar com o poder
regulamentador que Foucault desliza ao descrever a idéia de “sociedade de normalização”,
na qual se inscreve a biopolítica.

A sociedade de normalização é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma


articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamentação. [...]
Dizer que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que o
poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda
a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população,
mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das
tecnologias de regulamentação, de outra (FOUCAULT, 2005, p. 302).

Diante do cenário montado a partir da reconstrução de alguns dos pontos e aspectos


mais relevantes do pensamento desenvolvido por Foucault nos textos aqui analisados, é
possível entender como se apresenta, atua e reativa-se constantemente a biopolítica. Enfim,
podemos lançar um olhar para o caminho traçado pelo filósofo – que para o presente
trabalho foi guia e mapa – e seguir-lhe pela mesma trilha, levantando algumas questões,
talvez alguns apontamentos, sobre as formas modernas, refinadas e sutis das tecnologias de
poder de nossa atual realidade.

Pois bem, de que nos serve esse diagnóstico oferecido por Foucault para o
entendimento da sociedade, da comunidade ou do meio em que vivemos? A resposta
parece simples: a posse de tal conhecimento, por si só, já constitui-se de um rico
instrumento de saber, de poder, de ação. “O papel da teoria, hoje, parece-me ser justamente
este: não formular a sistemática global que repõe tudo no lugar, mas analisar a
especificidade dos mecanismos de poder, balizar as ligações, as extensões, edificar pouco a
pouco um saber estratégico” (FOUCAULT, 2006, p. 251).

Outra questão que podemos levantar é sobre as consequências de tal regime


biopolítico em nosso presente, em nosso cotidiano. Porém, não há respostas exatas,
definitivas ou maniqueístas. A questão é complexa, não linear ou passível de uma
interpretação única. Assim, nossa análise deve sempre partir de diferentes perspectivas.
Não se trata de apontar, por exemplo, apenas os aspectos negativos de um poder que,
acima de tudo, trabalharia apenas em favor de um Estado que nos submeteria de acordo
com sua racionalidade própria e segundo seus interesses de automanutenção. Essa é apenas
uma de suas características, um dos pontos possíveis de sua inteligibilidade e compreensão.
É necessário, seguindo o mesmo procedimento, verificar em que medida esses mesmos
mecanismos nos são úteis ou até desejáveis, visto que podem decorrer justamente das

127
próprias necessidades humanas. Há uma passagem de uma entrevista, de 1978, em que
Foucault explicita muito bem esse caráter ambíguo dos sistemas de poder, assim como
compara o poder disciplinar e a biopolítica naquele contexto, numa avaliação crítica que,
por sinal, continua em plenamente válida nos dias atuais:

Hoje, o controle é menos severo e mais refinado, sem contudo ser menos
aterrorizador. Durante todo o percurso de nossa vida, todos nós somos
capturados em diversos sistemas autoritários; logo no início na escola, depois em
nosso trabalho e até em nosso lazer. (...) Em nossa sociedade, estamos chegando
a refinamentos de poder os quais aqueles que manipulavam o terror sequer
haviam sonhado. [...] O ponto em que chegamos está além de qualquer
possibilidade de retificação, porque o encadeamento desses sistemas continuou a
impor esse esquema, até fazê-lo ser aceito pela geração atual como uma forma da
normalidade. Não obstante, não é dito que isso seja um grande mal. O controle
contínuo dos indivíduos conduz a uma ampliação do saber sobre eles, que produz
hábitos de vida refinados e superiores. Se o mundo está a ponto de se tornar uma
prisão, é para satisfazer as exigências humanas (FOUCAULT, 2006, p. 307).

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

CASTRO, E. Vocabulário de Foucault – Um percurso pelos seus temas, conceitos e


autores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

____________. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,


1999.

____________. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

____________. Estratégia, poder-saber. Coleção Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2006.

MUCHAIL, S. Foucault, simplesmente. São Paulo: Loyola, 2004.

RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

128
ANALÍTICA DO PODER EM MICHEL FOUCAULT: DO PODER À
BIOPOLÍTICA

Franco Pereira Leite


Universidade Estadual de Londrina
francopereiraleite@hotmail.com

RESUMO

O presente trabalho tem por finalidade reconstruir a Analítica do Poder de Michel


Foucault, desde sua concepção sobre o poder, até o que ele denominou de Biopolítica da
população, uma modalidade de exercício do poder que surge como complemento do poder
disciplinar. O limiar da modernidade biológica para Foucault é quando a vida, com todos
os seus processos, entra nos cálculos políticos, ou seja, quando todas as ações políticas
estão voltadas para a promoção da vida, de modo que todas as estratégias do poder irão
centrar-se em garantir uma homeostase da população. No processo de garantia da vida, as
estratégias podem ter de operar paradoxalmente ao levar a morte àqueles que de alguma
forma representam um perigo à população; nas palavras de Foucault, “são mortos
legitimamente aqueles que de alguma forma representam um perigo para espécie”, isto
porque a morte não é algo separado da vida, pelo contrário, é algo que faz parte da vida.
Portanto, a morte não é algo que deva ser evitado, mas gerido num nível aceitável, fazendo
assim da biopolítica, talvez, uma tanatopolítica.
Palavras-chave: Foucault; Poder; Biopolítica; Morte; Vida.

INTRODUÇÃO

O pensamento de Michel Foucault pode ser divido em três momentos diferentes,


divisão que é aceita pelo próprio filósofo, desde que atenda meros fins metodológicos. Em
um primeiro momento Foucault se voltou para a constituição dos saberes, que ficou
conhecida como a Fase Arqueológica, que compreende o período de 1961, com o
lançamento de História da Loucura, até o final da década de sessenta com a publicação de
Arqueologia do Saber. A partir do início da década de setenta, Foucault se pergunta pelo
“como do poder”, esse período ficou conhecido como a Fase Genealógica, que é sua fase
política marcada por livros como Vigiar e Punir e História da Sexualidade I: a vontade de
saber. E por fim, do começo dos anos oitenta até 1984, ano de sua morte, o filósofo se
voltou para aquilo que constituiria sua terceira fase, uma analítica ética, buscando na
Grécia Antigas e no pensamento romano a bases da nossa moral, naquilo que ficou
conhecida como a Fase da Estética da Existência.
É na sua Fase Genealógica que Foucault se interessará, com maior ênfase, pela
questão política. De suas pesquisas históricas, o filósofo propôs uma nova maneira de

129
conceber o poder, à que consistiu e afirma que o mundo ocidental conheceu três maneiras
de se exercer o poder: O Soberano; O Disciplinar; O Biopolítico.
Como dissemos, as divisões do pensamento de Foucault devem ser encaradas para
meros fins metodológicos, pois o filósofo, em entrevista a Rabinow e Dreyfus, diz que sua
obra constitui um todo que tem por mote a questão do sujeito, ou seja, que suas
investigações não têm essa cesura tão clara. Portanto, o pensamento de Foucault não é algo
que pode ser divido tão facilmente, de modo que para estudar um assunto, por exemplo, da
Estética da Existência, talvez seja necessário recorrer a temas da Arqueologia e da
Genealogia.
Em nossa empreitada sobre a biopolítca tivemos que fazer algo semelhante, mas
sempre tentando nos ater a Genealogia foucaultiana, de modo que fizemos um percurso
desde as produções do início dessa fase até os últimos textos que a encerram.
Passamos pelos conceitos de poder, poder soberano, poder disciplinar, para
finalmente chegarmos ao cerne de nosso trabalho: as teses Foucaultianas sobre os
conceitos de biopoder e biopolítica. Para mostrarmos como, no final do século XVIII e
início do século XIX, vemos emergir um poder que vai agir de forma positiva sobre a vida,
mas não a vida individual, e sim da população, que aparece como um corpo múltiplo cuja
sobrevivência, deve ser assegurada.
Porém, esse formidável poder de fazer viver mostrará sua outra face, se
transformando em um poder que pode reclamar a morte daqueles indivíduos que de alguma
maneira representam um perigo biológico para espécie humana, sendo assim autorizada
sua eliminação. Esse reclamo da vida será impetrado mediante o racismo de Estado, cujo
exemplo mais alto é o do Estado nazista.
A biopolitica é uma forma de exercer o poder, que, segundo Foucault, tem seu início
no século XVIII, e substitui a Sociedade Disciplinar. A biopolítica tem como função
garantir a sobrevivência da população, para isso ela criará estratégias - o biopoder - que
incita à vida, que a majora, porém, paradoxalmente, cria também estratégias que assimilam
e até tornam até desejável a morte de alguns indivíduos para garantir a vida da população.
Para entendermos o que é a biopolitica, como ela se exerce, seus efeitos sobre a
população, se faz necessário uma breve exposição dos seguintes conceitos: Poder, Poder

130
Soberano, Poder Disciplinar. Isso, pois Foucault, em sua Analítica do Poder analisou como
o poder foi exercido desde a Idade Clássica a Idade Moderna26.

PODER

É, sobretudo, em um segundo momento de suas formulações teóricas, que o filósofo


irá se voltar à questão do poder com todo seu rigor argumentativo. No entanto, ele não
mais abordará o poder como fora antes, ou seja, o poder como algo ontológico, que possui
uma realidade efetiva, algo que alguns possuem e outros não.
Portanto: como podemos entender o poder em Michel Foucault?
O próprio Foucault reconhece que ele não apresentou uma teoria unitária e global do
poder, procurando uma legitimidade para o poder; o que ele fez foi uma analítica do poder,
tentando entender como o poder funciona, pois mais importante que entender a
legitimidade do poder, é entender que ele se exerce, sendo legítimo ou não, isso, a
legitimidade do poder, para Foucault, são as “formas terminais” do poder. “O que está em
jogo nas investigações que virão a seguir é dirigirmo-nos menos para uma “teoria” do que
para uma “analítica” do poder... Ora, parece-me que essa analítica só poder ser constituída
fazendo tabula rasa e libertando-se de uma certa representação do poder, que eu chamaria
... de “jurídico-discursiva” (FOUCAULT, 1988, p. 92)”.
Para Foucault não há uma sinonímia entre Estado e poder. Não foi o Estado quem
criou os mecanismos de poder, tampouco o Estado os utiliza na repressão dos indivíduos.
O poder não é um bem que o Estado possua e o utiliza na dominação e sujeição dos
indivíduos pela violência a partir dos aparelhos de Estado. Sendo assim o filósofo
abandona aquela interpretação do poder relacionado à soberania, que remonta a figura do
rei que tinha por direito, através do pacto social, exercer um poder sobre seus súditos.
Outra interpretação que Foucault rejeitará é aquela que toma o poder de uma forma
negativa, que o concebe como repressão. O poder, para Foucault, também não será algo
que reprime, que diz não, que interdita, que veda, ao contrario, a característica do poder
não é reprimir e sim produzir. “Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em
termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”.

26
Foucault chamou de Idade Clássica o período que compreende os séculos XVII e XVIII, enquanto a Idade
Moderna compreende os séculos XIX e XX.

131
Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos rituais de verdade
(FOUCAULT, 2010c, p.185)”.
Para Foucault, o poder é um gênero de relação. Não é uma coisa estática, ele circula,
é um exercício, é um enfrentamento, onde ambos os lados são dotados de poder, lógico, de
uma forma assimétrica, em suma o poder funciona. E ele funciona nessa rede complexa
que é a sociedade, de modo que qualquer indivíduo pode exercer o poder ou ser submetido
a ele. E sendo o poder um exercício, sempre está posta a possibilidade de resistência, de
modo que os indivíduos que estão submetidos às relações de poder podem moldá-las,
tornado-as mais desiguais.

O poder, acho eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor,
como uma coisa que só funciona em cadeia. Jamais ele está localizado aqui ou
ali, jamais está entre as mãos de alguns, jamais é apossado como uma riqueza ou
um bem. O poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os
indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse
poder e também de exercê-lo. Jamais eles são eles são o alvo inerte ou
consentidor do poder, são sempre seus intermediários. Em outras palavras, o
poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles (FOUCAULT, 2010a, p.26).

Daí o propósito de se fazer uma microfísica do poder. Não analisar as relações de


poder de modo global, mas sim em suas pequenas manifestações na sociedade, não
procurar um ponto central de onde o poder emana, mas sim reconhecê-lo nos pontos dessa
trama que é a sociedade. “o poder não é uma instituição, nem uma estrutura, nem uma
certa potência da qual alguns seriam dotados: é o nome que damos a uma situação
estratégica complexa numa sociedade dada (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 205)”.
Trata-se de entender “que o poder vem de baixo”.
Sendo o poder um exercício que perpassa toda sociedade, que a apóia, que a incita,
que a modifica. Não tem como escapar das relações de poder, não porque elas nos
dominam, mas sim porque “o poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim
porque provem de todos os lugares (FOUCAULT, 1988, p. 103)”. E, além disso, “não há
poder que se exerça sem uma série de miras e objetivos (FOUCAULT, 1988, p. 105)”, e
nos modos de exercício do poder analisados por Foucault, o que se tinha como objetivos
era o individuo ou a população.
Desde o nascimento dos Estados Nacionais Modernos, foram desenvolvidas artes de
governar. Ora se preocupando com o individuo isoladamente, ora com o gerenciamento da
população. Da Idade Clássica à Idade Moderna, Foucault identificou três formas de
exercício do poder: Poder Soberano, Poder Disciplinar e a Biopolítica. Sendo que os dois

132
primeiros têm como objetivo o indivíduo isoladamente e, no último, o indivíduo,
isoladamente, é dispensado, pois o que está em jogo é a sobrevivência da população e não
a do indivíduo separado desta. O Poder Soberano atua de forma a posteriori, ou seja, tendo
um determinado fenômeno ocorrido, digamos um crime, ele só irá atuar depois que tal
delito for deflagrado. Já o Poder Disciplinar terá tanto um caráter a posteriori quanto a
priori, pois ele tanto tentará impedir que um crime ocorra, como punirá os que forem
efetivamente consumados. A biopolítca, por seu lado, tem um caráter puramente a priori,
ela sempre tentará impedir que algum mal assole a população, independente dos meios que
usará. Mas analisemos cada um separadamente.
Quando Foucault fez suas analises sobre a punição, em Vigiar e Punir, dois modelos
logo lhe saltaram aos olhos: o suplicio e a prisão. Cada um correspondia a um tipo de
exercício do poder de punir. Enquanto a prisão surge com o advento da sociedade
disciplinar, o suplicio é caracterizado pelo Poder soberano. Este poder é caracterizado pelo
direito de vida e morte que o soberano tem sobre seus súditos, e está amalgamado com o
direito, com a lei e tem seu surgimento quando são instituídas as primeiras monarquias
nacionais.
O Poder soberano tende ao confisco: do tempo, dos bens e da vida. Este “poder era,
antes de tudo,... direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da
vida; culminava com o privilegio de se apoderar da vida para suprimi-la (Foucault, 1988,
p. 148)”. Este privilégio, o de vida e morte, deriva-se da patria potestas, que se reporta ao
direito romano, que concedia ao pai de família o direito de dispor da vida de seus filhos e
escravos: já que ele lhes deu a vida tem o direito de retirá-lá. Para Foucault o direito de
vida e morte é uma forma bem atenuada da patria potestas, que não pode ser exercido de
forma absoluta, mas é condicionado à proteção do soberano, ele pode usar esse direito,
para se proteger, quando sua pessoa está em perigo, podendo dispor da vida de seus súditos
de duas maneiras, uma indireta e outra direta: a primeira, quando o soberano é ameaçado
por um “inimigo externo”, nesta situação pode ele pedir para seus súditos pegarem armas
para defendê-lo, enviando-lhes à guerra, “neste sentido, exerce sobre ele um direito
“indireto” de vida e morte (FOUCAULT, 1988, p.147)”, a segunda, quando um súdito do
soberano se levanta contra ele, neste caso “pode exercer um poder direto sobre sua vida:
matá-lo a título de castigo (FOUCAULT, 1988, p. 147)”. O direito que o soberano tem
sobre a vida de seus súditos é condicionado à sua defesa e só é exercido se ele contiver seu
direito de matar. No entanto Foucault verá nisso uma forma de direito que surge com esse

133
novo ser jurídico, o de soberania, ou seja, um direito de “causar” a morte ou “deixar” viver.
“O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu direito de matar ou
contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições de exigir. O
direito que é formulado como “de vida e morte” é, de fato, o direito de causar a morte ou
de deixar viver (FOUCAULT, 1988, p. 148)”.
Mais adiante veremos que esse direito de soberania será “invertido” pela biopolítica,
de um direito de deixar viver fazer morrer, veremos surgir, ao “contrário”, um direito fazer
viver deixar morrer.

PODER DISCIPLINAR

Como dissemos anteriormente, Foucault tece suas considerações sobre o Poder


Disciplinar fazendo uma genealogia da prisão. No estudo sobre o surgimento da prisão o
filósofo viu delinear-se uma porção de mecanismos de poder, que ao contrário do Poder
Soberano, se apossará dos corpos, mas não mais para marcá-los, ferí-los e extrair a vida,
mas “um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a
barrá-las, dobrá-las ou destruí-las (Foucault, 1988, p.148)”. A disciplina tende a produzir
corpos dóceis, para isso exerce sobre eles um poder contínuo e vigilante, que se apodera do
corpo, por exemplo, do preso, para corrigir-lo, reeducar-lo, de uma forma eficiente para
que a partir desse processo ele possa ser reintegrado na sociedade. Essa disciplina se opera
em todos os âmbitos possíveis. Vejamos o exemplo do Panopticon de Jeremy Bentham,
que nada mais é que um modelo arquitetônico de prisão onde o preso é vigiado e, além
disso, ele tem a consciência de que é vigiado, de forma que ele evitará alguns gestos, os
indesejados pela disciplina, e incitará outros, os desejados pela disciplina. A prisão, com
essa disciplinada generalizada, tomando o indivíduo isoladamente, produzirá saber.
“Organiza-se todo um saber individualizante que toma como campo de referência não tanto
o crime cometido... mas a virtualidade de perigos contido num indivíduo e que se
manifesta no comportamento observado cotidianamente. A prisão funciona aí como um
aparelho de saber (FOUCAULT, 2010a, p.122)”.
Essa Disciplina, que na prisão se evidencia em seus limites e em seus elementos
constituintes de modo mais contundente e pleno, fez dela um aparelho de saber, de modo
que a disciplina não vai ficar encerrada atrás do muro da prisão, ela vai atuar em outros
campos da sociedade: escolas, quartéis, hospitais. Fazendo deles aparelhos de saber.

134
Como bem disse Foucault, fábricas, escolas, hospitais e outros segmentos da sociedade têm
um caráter extremamente disciplinar, de modo que um se pareça com o outro.
O poder disciplinar, que surge na Idade Clássica, aparece concomitantemente com o
desenvolvimento do capitalismo, pois “O principal objetivo do poder disciplinar era
produzir um ‘corpo dócil’. Este corpo dócil também deveria ser um corpo produtivo”. E o
capitalismo precisava dos chamados “corpos dóceis” que a disciplina produz, de modo que
“o controle disciplinar e a criação dos corpos dóceis estão incontestavelmente ligados ao
surgimento do capitalismo (DREYFUS; RABINOW, 1995, p.149)”.
Por outro lado, as técnicas disciplinares não eliminaram o princípio da soberania,
pelo contrário, a sociedade disciplinar, fez uso dele para poder se incrustar e se mascarar
na sociedade. A disciplina fez uso do direito, que é uma encomenda régia27, mas não mais
tendo em vista a proteção do soberano, porém da sociedade.

No entanto, a partir dos séculos XVII e XVIII, surgiu uma nova forma de poder,
a disciplina. Se, nessa reorganização do poder, a teoria da soberania sobreviveu,
foi porque permitiu o desenvolvimento das disciplinas como mecanismo de
dominação e permitiu ocultar efetivamente o exercício do poder. Contudo,
apesar de a teoria da soberania ter servido para formação histórica do poder
disciplinar, é claro que se trata de duas formas diferentes de poder e que as
podemos opor como se segue. A soberania é uma forma que se exerce sobre os
bens, a terra e seus produtos... A disciplina, no entanto, orienta-se para os corpos
e o que eles fazem, seu objetivo é extrair deles tempo e trabalho. Exerce-se de
maneira contínua mediante a vigilância (CASTRO, 2009, p. 404-405).

A técnica disciplinar, que se instalou no final do século XVII, e perdurou até meados
do século XVIII, vai ser substituída por outra tecnologia do poder, que fará uso dos saberes
que a Sociedade Disciplinar produz; portanto não é uma tecnologia que excluía a
Sociedade Disciplinar, mas que faz uso dela para melhor gerenciar a População.

BIOPOLÍTICA

No dia 17 de março de 1976, Foucault encerrava mais um de seus cursos no Collège


de France intitulado Em Defesa da Sociedade, nove meses depois, sai o primeiro volume
de sua História da Sexualidade. Tanto o último capítulo do livro, como a última aula
pronunciada, tratam do mesmo tema: o conceito de biopoder.

27
Sobre a questão do poder ser uma encomenda régia Cf. Em Defesa da Sociedade, aula de 14 de janeiro.

135
O conceito de biopoder vai ser descrito pelo filósofo como o complemento de um
poder que durou até o final do século XVIII: O Poder Disciplinar. Mas ao contrário deste,
o biopoder não vai mais centrar-se no corpo do individuo que deve ser adestrado,
disciplinado, mas sim no nível da população, que deve ser gerida e sustentada. Para tanto,
o biopoder irá criar mecanismos que incitam a vida, porém paradoxalmente criará também
mecanismos que assimila e, até torna desejável, a morte para garantir a vida da população.
Essa nova tecnologia de poder que vemos surgir no final do século XVIII que vai
substituir a técnica disciplinar de poder é, segundo o autor, uma tecnologia de poder que
não dispensará a disciplina, pelo contrário, assim como fez a disciplina, quando seu
instalou no século XVII, em relação ao Poder Soberano, o biopoder fará o mesmo, ou seja,
se apoiará nas disciplinas para implantar-se na sociedade.
Agora não é mais através da sociedade disciplinar que seremos governados, não
seremos mais esquadrinhados, nossos gestos não serão mais vigiados e moldados,
tampouco seremos classificados em normais e anormais. Agora as técnicas de poder irão
centrar-se nos processos de natalidade, de longevidade, de mortalidade, em questões
econômicas ente outros pontos.

Logo, depois de uma primeira tomada do poder sobre o corpo que se fez
consoante o modo da individualização, temos uma segunda tomada de poder que,
por sua vez, não é individualizante, mas que é massificante, se vocês quiserem,
que se fez não em direção ao homem-corpo, mas do homem-espécie. Depois da
anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII,
vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-
política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma biopolítica da espécie
humana (FOUCAULT, 2010a, p.204).

As decisões que serão tomadas a partir do momento do aparecimento da biopolítica,


terão em vista este novo ser político que entra em cena: a população. Todos os
mecanismos, todas as ações, terão como escopo gerir a vida, mas não simplesmente a vida
individual e sim da população. Assim sendo, não é mais o individuo como na sociedade
disciplinar, ou o soberano, como na teoria da soberania, que está em questão, mas sim a
vida da população. O que vemos surgir com isso é a entrada da vida no jogo político.
Mas, que se poderia chamar de “limiar da modernidade biológica” de uma
sociedade se situa no momento em que a espécie entra como algo em jogo em
suas próprias estratégias políticas. O homem, durante milênios, permaneceu o
que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência
política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo
está em questão (FOUCAULT, 1988, p. 156).

Como dissemos anteriormente, a biopolítica fará a inversão do chamado “princípio


de soberania”. Daquele fazer morrer ou deixar viver, veremos surgir um fazer viver ou

136
deixar morrer. Porém enquanto o primeiro se dirige ao indivíduo o segundo se atém a
população. O que vemos com essa nova tecnologia de poder é uma investida sobre a vida,
a vida da população, a vida do homem-espécie.
É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos
necessariamente numerável. É a noção de “população”. A biopolítica lida com a população, e a
população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como
problema biológico e como problema de poder (FOUCAULt, 2010a, p. 206)”.

Se o poder soberano agia sobre a vida dos súditos na forma de confisco - de bens,
riquezas, e por fim sobre a vida para suprimi-la – ou seja, de uma forma negativa, a
biopolítica incidirá sobre a vida para aumentar sua longevidade: é um poder que age de
forma positiva sobre a vida. Para isso a biopolítica levará em contra processos que giram
em torno da população: Taxa de natalidade, número de óbitos, o nível de saúde, e tudo
aquilo que está ligado a longevidade da população. Haverá também uma preocupação
especial com as epidemias, porém, “não mais como a morte que se abate brutalmente sobre
a vida... mas como a morte permanente, que se introduz sorrateiramente na vida, a corrói
perpetuamente, a diminui e a enfraquece (FOUCAULT, 2010a, p. 205)”, é a doença como
fenômeno da população. Não é mais a peste que vai tirar o sono dos governos, pois ela foi
suprimida em boa parte com o surgimento da disciplina, através de um processo de
segregação e vigilância. O que se tem com o advento da biopolítica é uma preocupação
com as epidemias, que pode causar um grande corte na população, por isso todas as
investidas dos governos para afastar as doenças que podem enfraquecer a população
diminuindo seu contingente.
É a vida, mais do que o corpo, que está em jogo agora, e tudo o que a cerca desde o
nascimento até a morte, é isto que a biopolítica gerenciará.
O segundo - a Biopolítica – que se formou um pouco mais tarde, por volta da
metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transplantado
pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a
proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida,
a longevidade, com todas as condições que pode fazê-los variar; tais processos
são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controle reguladores:
uma bio-política da população (FOUCAULT, 1988, p. 151-152).

Como nos é claro, a biopolítica faz uma inversão do princípio de soberania, vimos
como ele age de forma positiva sobre a população, agora nos resta entender como ele pode
agir de forma negativa, criando mecanismos que não incitam a vida, mas a morte.

BIOPOLÍTICA OU TANATOPOLÍTICA?

O paradoxo que biopolítica instaura é:

137
Como um poder como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente
de aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades,
de desviar seus acidentes, ou então de compensar suas deficiências? Como,
nessas condições, é possível, para um poder político, matar, reclamar a morte,
pedir a morte, mandar matar, dar ordem de matar, expor à morte não só seus
inimigos mas mesmo seus próprios cidadãos? Como esse poder que tem
essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o
poder de morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado
no biopoder (FOUCAULT, 2010a, p. 214).

A morte na biopolítica não é visto como algo que deva ser evitado, mas sim gerenciado,
isso porque a morte não é mais um uma coisa extrínseca à vida, mas sim, intrínseca a ela.
“Em suma, a morte não é mais o negativo extremo da vida, mas é o cume de todo um
processo vital do qual lhe é imanente. Jocosamente falando: também faz parte da vida
morrer (NALLI, 2012, p.168-169)”. Para manter a população viva será necessário extirpar
tudo aquilo que representa um perigo para ela, tudo aquilo que enfraqueça a população,
pois, se essa nova modalidade de exercício do poder tem como escopo garantir a
sobrevivência dos ditos “dignos de viver”, se faz necessário que os proteja. Porém, como
protegê-los? Como dissemos, eliminando tudo aquilo que é prejudicial à população, como
fez o Estado Nazista, quando era de seu intuito proteger a raça ariana, eliminando os
judeus, que representava um perigo para o povo alemão.
“Quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos
anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu –
não enquanto individuo mas enquanto espécie – viverei, mais forte serei, mais vigoroso
serei, mais poderei proliferar (FOUCAULT, 2010a, p. 215)”.

O poder de matar do soberano ficou cada vez mais difícil de ser exercido quando
aparece essa nova tecnologia de poder no final do século XVIII, porém ele não será
eliminado, mas também só poderá ser invocado quando se trata de eliminar um perigo
biológico, ou quando visa o fortalecimento da dita raça superior, digna de prevalecer sobre
outra.

São mortos legitimamente aqueles que representam uma espécie de perigo


biológico para os outros... Em outras palavras, tirar a vida,o imperativo da morte,
só é admissível, no sistema de biopoder, se tende não a vitória sobre os
adversários políticos, mas à eliminação do perigo biológico e ao fortalecimento,
diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou da própria raça
(FOUCAULT, 2010a, p. 215).

138
As lutas a partir de agora não se travam mais em relação à figura do soberano que deve
ser protegido, nem da sociedade, mas visando a população. É em nome da existência de
todos que serão autorizados os holocausto que assistimos no século XX, foi por uma
necessidade de viver que os regimes mataram tanto, que categorias inteiras forem levadas à
destruição, não por uma irracionalidade do poder, mas, e é aí que nos vem o choque, por
uma racionalidade levado ao paroxismo. Se no século passado os Estados totalitários
fizeram grandes holocaustos em suas populações, não foi por que ali reinava um poder que
tinha por finalidade suprimir a vida, mas pelo contrário, ali atuava um poder que tinha
como escopo aumentar a vida da raça dita digna de viver.

Contudo, jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX e
nunca, guardada as proporções, os regimes haviam, até então, praticado tais
holocaustos em suas próprias populações. Mas esse formidável poder de
morte...apresenta-se agora como complemento de um poder que se exerce,
positivamente, sobre a vida que empreende sua gestão, sua majoração, sua
multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de
conjunto (FOUCAULT, 1988, p. 149).

Esse efeito mortífero da bipolitica é assegurado pelo dito princípio de soberania, que
dava ao rei o direito de matar quando sua pessoa era ameaçada. A figura do rei já não é
mais o que se deve protegido, mas é graça a um direito advindo dela que ultimamente se
tem praticado o direito de matar, que pode ser aplicado de duas formas:

A morte pode ser incitada e produzida biopoliticamente, basicamente, de dois


modos: (a) numa estratégia não sacrificial pela qual os indivíduos cuja vida fora
julgada perniciosa e, portanto, podem ser dispensada – com as dos doentes
mentais franceses, à época do regime de Vichy, que foram abandonados à sua
própria sorte, de modo que milhares morreram desesperadamente de fome... ou
então aquelas mortes “administrativamente aceitáveis” diante de um quadro
estatisticamente benfazejo de proteção à maioria da população; (b) ou por meio
de estratégias evidente e diretamente genocidas, como os campos de
concentração ou nos Gulags, que introduziram técnicas de morte, seja pelo
trabalho forçado, seja pelas câmaras de gás... Mas até que ponto o homicídio de
Estado impetrado por diversos Estados norte-americanos, sob a égide legal da
pena de morte, pertence a uma economia política distinta? Não é de certo modo a
eliminação de uma vida perniciosa para garantir a vida qualitativamente
desejável e boa da maioria? (NALLI, 2012, p.73).

Para poder reclamar a morte, além do princípio de soberania, o biopoder precisa do


“Racismo de Estado”, faz uso dele para reclamar esse ponto secreto que agora faz parte da

139
vida, para poder retirar a vida dos indivíduos que são tidos como perniciosas à espécie o
racismo se torna indispensável em um horizonte biopolítico.
Quanto mais racista um Estado for, mais assassino ele será, por exemplo, o Estado
nazista, que se caracteriza por ser um Estado extremamente racista, só matou inúmeras
pessoas por ter levado o biopoder aos seus limites mais extremos, ou seja, o biopoder, só
pode atuar graças ao Racismo de Estado, que antes mesmo de Hitler assumir o poder em
1933, já havia enraizado no povo alemão um sentimento anti-semita, de modo que “a
palavra “alemão” tornava-se para eles, na verdade, uma noção ética, que opunha de modo
taxativo a tudo que lhes era estranho... Constituíram-se sobretudo de ideologias
defensivistas na base do nacionalismo e do racismo, que se apresentavam como doutrinas
salvadoras de um mundo em perigo (FEST, 1991, p. 27)”.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault- um percurso por seus temas, conceitos e


autores. (trad. Ingrid Müller Xavier). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
DREYFUS, Hubert L. RABINOW, Paul: Michel Foucault, uma trajetória: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. (trad. Vera Porto Carrero). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995.
ERIBON, Didier. Michel Foucault, 1926-1984. (trad. Hildegard Feist). São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
FEST, Joachim. Hitler. (trad. Analúcia Teixeira Ribeiro). Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1991.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. (trad. Maria Thereza
da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Graal, 1988.
__________. Em defesa da sociedade: curso no collège de France (1975-1976). (trad. Maria
Ermantina Galvão). São Paulo: Martins Fontes, 2010a.
__________. Os anormais: curso no collège de France (1974-1975). (trad. Eduardo Brandão).
São Paulo: Martins Fontes, 2010b.
__________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. (trad. Raquel Ramalhete). Rio de Janeiro:
Vozes, 2010c.
__________. Microfísica do poder. (tad. Roberto machado). Rio de Janeiro: Edições Graal,
1979.

140
NALLI, Marcos. “A imanência normativa da vida (e da morte) na análise foucaultina da
biopolítica: uma resposta a Roberto Esposito. In. Muricy, Katia (org). O que nos faz pensar.
Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2012 p. 149-174.

141
A EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E OS DIREITOS DO HOMEM EGOÍSTA: MARX E A
SOCIEDADE MODERNA.
André Ferreira.
Universidade Estadual de Londrina
andresilvaferreira@gmail.com

RESUMO
Nesta comunicação, temos como objetivo, apresentar a crítica que Karl Marx faz à
emancipação política, nos textos de inícios dos anos quarenta do século dezenove. “Já em
1843”, Marx “havia chegado à conclusão de que a demanda por livrar o Estado das suas
deficiências, se analisada por completo, resulta na demanda pela dissolução deste”
(ARTHUR, 1974 apud MARX, ENGELS, 1974, p. 5). Este é o ponto de culminância da
discussão que apresentamos neste trabalho. Desde os anos da sua formação, na
universidade de Berlim, Marx esteve envolvido na discussão acerca da emancipação
política. Nos círculos que o filósofo de Trier frequentou durante a juventude, a idéia da
emancipação política, tornada efetiva em outras nações, era palavra de ordem. Marx, no
entanto, logo começa a divergir dos companheiros que estavam lutando pela emancipação
política, pelo Estado moderno. Em uma polêmica contra um dos principais nomes da sua
geração, dos frequentadores dos clubes aos quais se associou, Marx começa a mostrar a
limitação, o significado limitado, da emancipação política. O filósofo de Trier torna
explícita a relação existente entre a constituição do Estado moderno e o dilaceramento do
gênero humano em tantos indivíduos, egoístas, fechados em si mesmo, na esfera privada,
quantos forem os homens determinados, vivos, concretos. A emancipação política, no
limite, mostra-se como o acabamento, a forma acabada, da separação entre gênero, ser
genérico, social, e o indivíduo determinado. Nesta discussão Marx torna explícita a relação
existente entre a sociedade civil e a emancipação política. Esta última não é nada mais do
que a emancipação dos elementos que compõe a sociedade civil, os homens egoístas e sua
propriedade. Isto fica expresso no fato de que os direitos naturais do homem que orientam
o Estado são, em última instância, os direitos do homem egoísta, tal como ele aparece na
sociedade civil.
Palavras-chave: Emancipação Política; Sociedade civil; Homem egoísta; Propriedade
privada.

O texto a seguir é a apresentação dos resultados parciais da pesquisa realizada para


nossa dissertação de mestrado. Neste texto, o objeto que orienta a argumentação é a crítica
que Karl Marx dedica à emancipação política. Em um primeiro momento rascunhamos
uma caricatura do ambiente em que Marx se envolve com a discussão. O ponto seguinte é
dedicado a uma caracterização da emancipação política. O objetivo é chamar atenção para
as relações entre a emancipação política e a sociedade civil. No próximo passo procuramos
explicitar que os direitos do homem, o alvo da emancipação política, estão intimamente
ligados com as demandas da sociedade civil. Por todo o texto podemos observar a sombra

142
da emancipação humana, que Marx contrapõe à emancipação política. Infelizmente, o
espaço desta comunicação não nos permite definir esta última de maneira positiva, no texto
ela sempre aparece negativamente, sabe-se o que ela não é. No entanto a falta de definição
do que seja emancipação humana, neste momento, não significa prejuízo nenhum para a
compreensão do tópico.

A sociedade feudal foi dissolvida no seu fundamento [...], no homem egoísta (MARX).

1. Emancipação política? Emancipação humana!


O tema da emancipação política – encarnada na figura do estado moderno, da
sociedade liberal, fruto das conquistas das revoluções burguesas que tiveram lugar desde o
século dezessete – aparece de maneira muito clara, no ambiente cultural em que Karl Marx
(1818 – 1883) viveu. Desde os anos de sua formação, do seu amadurecimento intelectual,
este pensador esteve em contato com esta problemática. Em inícios da década de trinta do
século dezenove o jovem de Trier muda-se de Bonn para Berlim. Na universidade de
Berlim este se aproxima de um grupo de jovens estudantes da filosofia de Hegel,
conhecidos como os jovens hegelianos ou hegelianos de esquerda. Marx começa a
participar das discussões do grupo de estudos destes, chamado Doktor Klub. E toma parte
no debate a respeito da sociedade alemã do seu tempo.
Neste período, a situação do país que viu Marx, Feuerbach, Bruno Bauer, Strauss, e
outros companheiros do “clube dos doutores” nascerem, era descrita como miserável. O
estado de coisas era tal que de fato o termo miséria alemã é empregado para se referir à
situação da confederação germânica naquele momento. No prólogo escrito para a edição
brasileira de Para questão judaica, de Marx, José Paulo Netto nos adverte que “não se
tratava apenas da penúria material da massa da população: tratava-se, antes, da situação
sociopolítica alemã [...]. O mais importante dado da miséria alemã era o atraso das suas
instituições sociopolíticas”. (NETTO, 2009 apud MARX, 2009, p. 10).
Os rumos que países como França e Inglaterra haviam tomado, em direção à
modernização, ao estado laico, a sociedade liberal, seduziam os associados do Doktor
Klub. O ponto que os une é a crítica das instituições da sociedade alemã, instituições estas
que – como o próprio Marx salienta na introdução, que escreve para a sua Crítica da
filosofia do direito de Hegel, produzida em finais de 1843 inícios de 1844 – representavam
a resistência, a existência prolongada, e em certa medida já anacrônica, do ancien régime.

143
A confederação germânica, em flagrante oposição aos Estados modernos, era
formada por um conjunto de Estados “com sistemas de representação política
diversificados e restritivos, inexistência de laicização de fato, burocracias de raiz feudal, e
uma inequívoca dominação da nobreza fundiária.” (NETTO, 2009 apud MARX, 2009, p.
11 – 12). A batalha que se desenrolava, no ambiente cultural em que Marx viveu sua
juventude, era entre os ideais liberais de emancipação política e social e as instituições do
mundo feudal, que, em certa medida, ainda persistiam.
Marx, no entanto, logo começa a se distanciar, em aspectos fundamentais, destes
colegas de estudos. É justamente em uma polêmica contra um ex-companheiro do ‘clube
dos doutores’ que este filósofo encontra a oportunidade para marcar sua posição em
relação ao Estado moderno e à emancipação política. O ano é 1843, o texto, Para a
questão judaica – um comentário de Die Judenfrage de Bruno Bauer.
O texto de Bauer parte de um debate com limites regionais, a contenda entre os
Judeus alemães e o Estado da Renânia, envolvendo a emancipação dos primeiros, a
reivindicação por liberdade de culto. ‘São Bruno’ – para lembramos o modo sarcástico
com que Marx irá se referir a ele daí a algum tempo n’A sagrada família – começa sua
intervenção na discussão, rejeitando a possibilidade de que o Estado Cristão emancipe
quem quer que seja, e vai além, dizendo que ao invés de exigir junto a este Estado a
emancipação, o que, tanto Judeus como Cristãos, deveriam fazer é renunciar a religião, e
demandar um Estado Laico. A argumentação marxiana, na crítica do texto de Bauer, segue
rumo a um problema que extrapola os limites regionais desta querela entre os judeus
alemães e o Estado. O ponto de culminância do desenvolvimento argumentativo de Marx é
a definição dos limites da emancipação política – reclamada por Bauer e pelos outros
‘doutores’ – e a diferenciação desta em relação à emancipação humana.
Na apresentação escrita para a edição inglesa de A Ideologia alemã, Christopher
John Arthur chama atenção para o fato de que “já em 1843”, Marx “havia chegado à
conclusão de que a demanda por livrar o Estado das suas deficiências, se analisada por
completo, resulta na demanda pela dissolução deste.” (ARTHUR, 1974 apud MARX,
ENGELS, 1974, p. 5). Mesmo o Estado na sua forma acabada, na figura do Estado
Moderno, Laico, não é capaz de emancipar o gênero humano, permitir que ele experimente
a liberdade gravada na sua essência. A emancipação política, palavra de ordem entre os
jovens hegelianos, “é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, a
indivíduo egoísta independente; por outro, a cidadão, a pessoa moral.” (MARX, 2009, p.

144
71), abstrato. Nesta medida, ela é apenas o acabamento, a forma acabada, da separação
entre indivíduo e gênero.
Neste comentário ao texto de Bauer, Marx encontra o ensejo para, assim como faria
também na Introdução da sua Crítica da filosofia do direito, colocar a questão do
estranhamento da essência humana tornado efetivo nas relações entre Estado moderno e
sociedade civil, e ainda, mesmo que de maneira tímida, exclamar a necessidade da
supressão das determinações que esferas da existência humana experimentam neste status
quo. Aqui Marx já está abrindo a trilha que o levará em direção à teoria da emancipação do
gênero humano, a se realizar, segundo o ‘corifeu da filosofia da práxis’, na forma do
Comunismo.

2. A conjuração dos egoístas.


A revolução liberal, a liberação do homem egoísta, a garantia dos direitos deste
assegurada pela universalização da esfera política, marcas do Estado moderno, de
imediato, mostram-se como avanços, históricos; necessários para trazer a Alemanha – ao
menos praticamente, já que teoricamente ela estava pari passu com as nações modernas –
ao mundo contemporâneo. No entanto, esta emancipação é, conforme lemos na Introdução
da Crítica de 1843, uma “revolução parcial, meramente política, revolução que deixa de pé
os pilares do edifício” (MARX, 2010, p. 154). Marx opõe essa ‘revolução parcial’ à
“revolução radical, a emancipação humana universal” (MARX, 2010, p. 154), que
pressupõe a supressão dos elementos que sustentam o Estado moderno.
Neste momento, o filósofo eleva-se da discussão sobre os rumos que a
confederação germânica poderia tomar até àquela sobre os limites e deficiências da
experiência, atual, concreta, das sociedades mais avançadas do mundo moderno, cujas
características fundamentais estavam destinadas – como o próprio Manifesto Comunista
nos adverte – a se espalharem por toda a face da Terra. A discussão é deslocada do futuro
da Alemanha, atrasada em relação às revoluções burguesas, para o futuro do gênero
humano.
Já na epígrafe que aparece no frontispício deste texto está expressa, em forma
sintética, a conclusão que Marx tira do fato da emancipação política. Na sociedade
moderna o filósofo encontra sustentação para a tese de que “a sociedade feudal foi
dissolvida no seu fundamento [...], no homem egoísta.” (MARX, 2009, p. 69). “A
emancipação política”, o filósofo escreve, “é, simultaneamente, a dissolução da velha

145
sociedade sobre que repousa o sistema de Estado alienado do povo, o poder do soberano. A
revolução política é a revolução da sociedade civil.” (MARX, 2009, p. 68). Em outras
palavras, é a liberação da sociedade civil do significado político, que as corporações de
ofício e os privilégios característicos do mundo feudal conferiam-lhe.
“A revolução política”, conforme vemos na letra do filósofo: “suprimiu... o caráter
político da sociedade civil.” (MARX, 2009, p. 69). Em The Young Karl Marx, David
Leopold nos adverte que “isto é o mesmo que dizer que eles” (os elementos que compõe a
sociedade civil) “foram liberados até mesmo da aparência de preocupação com o bem
comum.” (LEOPOLD, 2007, p. 136). Com a transformação do Estado moderno no
elemento mediador, com um caráter universal, abstrato, distanciado da vida concreta, “a
atividade de vida determinada e a situação de vida determinada decaíram para um
significado apenas individual.” (MARX, 2009, p. 69). O indivíduo deixa de estar em
oposição às outras corporações e instituições feudais, por meio da corporação a que
pertence, para se colocar individualmente, de forma privada, em oposição ao gênero
humano, a todos os outros indivíduos tomados de forma privada. O homem aparece como
“um indivíduo remetido a si, ao seu interesse privado.” (MARX, 2009, p. 66).
Neste ponto o futuro crítico da economia política lança luz sobre o movimento
dialético existente entre a emancipação política e o acabamento da esfera dos assuntos
privados do homem egoísta. No Estado moderno a política diz respeito a todo indivíduo,
“os assuntos públicos, como tais, tornaram-se antes assunto universal de cada indivíduo”
(MARX, 2009, p. 69). No entanto, não se pode perder de vista que, em última instância,
são os interesses do homem egoísta, que esta esfera universal defende. Marx observa que o
“citoyen”, ou seja, “o homem político”, é um “servidor do homme egoísta”. O Estado
moderno nada mais é do que a garantia dos direitos do “homme”, i.e., do membro da
sociedade civil. -“A segurança”, observa o filósofo, “é o supremo conceito social da
sociedade civil, o conceito da polícia, porque a sociedade toda apenas existe para garantir a
cada um dos seus membros a conservação da sua pessoa, dos seus direitos e da sua
propriedade.” (MARX, 2009, p. 65).

3. Os direitos do homem.
A emancipação política – que concretamente significa: a subversão de um status
quo em que a nobreza, o clero da igreja católica, e a monarquia absolutista, impunham-se,
ou, os seus interesses, àquela esfera que vai constituir a sociedade civil – suprime a

146
alienação da esfera política em relação à sociedade civil, na medida em que transforma as
demandas desta última em princípios universais que passam a orientar a primeira. Quando
Marx exclama que a revolução política é a liberação da sociedade civil da política, o que
ele está fazendo não é outra coisa senão nos lembrar que: os privilégios, as superstições, e
a autoridade, as marcas típicas e fundamentais do mundo feudal, que se emaranhavam com
a vida concreta, e determinavam as possibilidades da ação, foram retiradas do caminho da
sociedade civil, dos produtores, particulares, pelas próprias mãos, tornadas tão hábeis pela
prática, destes sujeitos. Não só a política deixa de determinar a vida da sociedade civil,
como, em um movimento inversamente proporcional, a sociedade civil passa a determinar
a esfera política. David Leopold põe a questão nos seguintes termos: “A constituição do
estado político e a dissolução da sociedade civil nos indivíduos independentes […] são
realizadas em um só ato.” (LEOPOLD, 2007, p. 138).
Os ideais que o Estado moderno torna efetivo não são a expressão da vontade, da
sabedoria, da iluminação, provindas do caráter divino, de um homem, do Soberano,
colocado em uma esfera fora do domínio público. Pelo contrário, este Estado é, justamente,
a retirada da política das mãos particulares deste Soberano e a transferência desta para as
mãos dos membros da sociedade civil. O que este Estado esta encarregado de efetivar daí
em diante são os direitos ‘naturais’ do homem. A baliza que serve de referência é a
generalização do homem tal como ele aparece na sociedade civil. O homem, ‘natural’, é o
burguês, e “os direitos naturais e imprescritíveis’’ deste “são: a igualdade, a liberdade, a
segurança, a propriedade.” (MARX, 2009, p. 63). Em Para a questão judaica Marx
observa que “nenhum dos chamados direitos do homem vai [...] além do homem egoísta,
além do homem tal como ele é membro da sociedade civil, a saber: [um] indivíduo
remetido a si, ao seu interesse privado e ao seu arbítrio privado.” (MARX, 2009, p. 65 –
66).
“Antes de tudo”, adverte Marx, “constatemos o fato de que os chamados direitos do
homem [...], não são outra coisa senão os direitos do membro da sociedade civil [burguesa]
i.e., do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade.” (MARX, 2009,
p. 63). O sentido que o direito à liberdade – sob o qual o Estado moderno se funda – tem,
limita-se pelas demandas da vida prática na sociedade civil. - “A liberdade”, afirma o
filósofo, “é, portanto, o direito de fazer e empreender tudo o que não prejudique nenhum
outro.” (MARX, 2009, p. 63). Para aqueles produtores que se livraram das guildas, e se
isolaram, trancados na esfera privada, a liberdade significa: “o direito desse isolamento, o

147
direito do indivíduo limitado, limitado a si” (MARX, 2009, p. 64). Em suma, podemos
dizer que, aqui, “trata-se da liberdade do homem como mônada isolada, virada sobre si
própria”. (MARX, 2009, p. 64).
Neste reino do egoísmo, a propriedade privada é o elemento que media as relações
que os homens estabelecem entre si. “A aplicação prática do direito humano à liberdade”,
Marx escreve, “é o direito humano à propriedade privada.” (MARX, 2009, p. 64). Em
última instância, o objeto que está no centro, em foco neste quadro – em que a liberdade
humana é pintada com as cores e os traços típicos da burguesia – é o direito de,
“arbitrariamente, sem referência a outros homens, independentemente da sociedade – gozar
a sua fortuna e dispor dela; é o direito do interesse próprio.” (MARX, 2009, p. 64).
Estes direitos ‘naturais’ do ‘homem’ expressam as características fundamentais do
mundo moderno, burguês. Marx salienta que “aquela liberdade individual, assim como esta
aplicação dela, formam a base da sociedade civil.” (MARX, 2009, p. 64). Através do
direito fundamental à liberdade a sociedade civil vê sancionado o estado de coisas que ela
produz: o homem egoísta, isolado do gênero humano, sentado em cima da sua propriedade
privada. “A égalité”, Marx afirma por fim, “não é senão a igualdade da liberté acima
descrita, a saber: que cada homem seja, de igual modo considerado como essa mônada que
repousa sobre si [própria].” (MARX, 2009, p. 64 - 65). Os direitos do homme, no limite,
dispõem sobre conteúdo da vida da sociedade civil, tendo como axioma o homem egoísta,
isolado do, e mesmo oposto ao gênero humano.

4. Conclusão.
A emancipação política é a institucionalização da idiossincrasia do homem egoísta.
“A liberdade do homem egoísta e o reconhecimento dessa liberdade” Marx escreve, “é [...]
o reconhecimento do movimento desenfreado dos elementos espirituais e materiais que
formam o seu conteúdo de vida.” (MARX, 2009, p. 70). Esta representa o último passo, a
forma acabada, do homem estranhado de si. Neste momento “o homem não foi [...]
libertado da religião; recebeu a liberdade de religião. Não foi libertado da propriedade.
Recebeu a liberdade de propriedade. Não foi libertado do egoísmo do ofício, recebeu a
liberdade de ofício.” (MARX, 2009, p. 70). A limitação da emancipação política mostra-se
no fato de que esta não liberta o ser humano, não torna o homem consciente de si mesmo,
enquanto um ser genérico, social, mas antes, afunda de vez os indivíduos na sua
particularidade, egoísta, finita, limitada.

148
REFERÊNCIAS

LEOPOLD, D. The young Karl Marx: German philosophy, modern politics, and human
flourishing. New York: Cambridge University Press, 2007.
MARX, K. ENGELS, F. The German ideology. 2. ed. London: Lawrence & Wishart, 1974.
MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle, Leonardo de
Deus. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.
_________ Para a questão judaica. Trad. José Barata-Moura. São Paulo, Expressão
Popular, 2009.

149
CONSIDERAÇÕES FREUDIANAS ACERCA DA FELICIDADE

Weisell Gomes Neves


Universidade Estadual de Londrina
weisellgn@hotmail.com

RESUMO

A Proposta que aqui será apresentada vê o potencial dessa discussão em um autor pouco
lembrado em seus feitos filosóficos, a saber, Sigmund Freud. Com base nos textos Totem e Tabu
(1913-14) e O Futuro de uma Ilusão (1927), passaremos a buscar apontamentos que nos levem a
entender como o psicanalista compreeende a felicidade e como esse conceito tão complexo pode
ser visto em uma civilização ou uma cultura, compreendendo a cultura ou civilização como
sérios complicantes ao indivíduo que busca sua felicidade, já que em uma sociedade é sempre
determinante limitar os direitos indivíduais em vista de um bem maior e coletivo, além do fato de
haver uma parcela de coercividade nas civilizações contemporâneas. Sempre ao longo do
pensamento filosófico discute-se sobre qual seria o sentido ou a finalidade da vida, e com
algumas respostas chega-se à ideia de que a finalidade da vida é a vida feliz, porém muitas
divergências se formam quando o objetivo é definir de modo claro o que é a felicidade enquanto
o conceito fundamental da existência humana. Esta discussão de suma importância para a
filosofia estende-se desde a antiguidade e podemos lembrar aqui de Aristóteles como um
representante dessa discussão, passando ainda por vários outros pensadores clássicos como
Agostinho, Immanuel Kant, e ainda alguns filósofos contemporâneos, como Habermas,
Heidegger, e muitos outros que ainda poderiam ser lembrados. A perspectiva freudiana de
felicidade é uma proposta que analisa do ponto de vista libidinal o ponto em questão, ou seja, a
felicidade dos indivíduos estaria segundo o autor, estritamente ligada à sexualidade e sendo
assim o indivíduo compreendendo sua sexualidade conseguiria ter uma vida mais próxima do
que se possa chamar feliz, já que Freud não vê a possibilidade de felicidade plena. É então a
partir desse grupo de ideias freudianas que desenvolver-se-á a pesquisa a seguir tendo por foco
sempre a análise feita por Freud nos textos acima citados, porém sem desconsiderar outros textos
de suma importância em sua estupenda obra literária.
Palavras-chave: Freud; Felicidade; Cultura; Civilizações; Libidinal.

RELAÇÃO ENTRE A FELICIDADE E O AMOR SEXUAL, EM UMA CIVILIZAÇÃO


ORGANIZADA

A pesquisa que será apresentada aqui terá por base duas questões a respeito do tema
de como Sigmund Freud analisa a relação da civilização com a felicidade humana; primeira
questão como pode a cultura ou civilização interferir na busca por felicidade? E segunda será
que nem ao menos é possível alcança-la em um contexto civilizado? De acordo com a tese de
Freud a felicidade humana teria sua gênese no amor sexual e assim os indivíduos
conseguiriam experimentar a mais próxima da felicidade plena possível, quando
determinarem para si objetos sexuais e os alcançarem satisfatoriamente. Essa ideia de Freud

150
sobre a felicidade traz consigo uma interdependência entre o sujeito e o objeto sexual
escolhido (FREUD, 2011, p. 46). Devemos nesse instante nos pôr a entender melhor essa
relação entre o amor e a felicidade e é a respeito disso que nos ocuparemos a seguir.

A civilização original segundo o autor é uma evolução da família originária, sendo


que o macho que tinha como foco final de sua existência a busca por satisfação sexual, sendo
assim optou por manter seu objeto libidinal próximo de si (a família original não
necessariamente é monogâmica, porém mesmo que houvesse a eleição de várias fêmeas o
mesmo processo seria possível), a fêmea28 por sua vez necessitava de proteção, pois estava
em meio a vários machos e outras fêmeas que fossem mais fortes do que ela e poderiam lhe
fazer mal e até mesmo mata-la, portanto escolheu eleger um macho que lhe desse um
sentimento de proteção; por ultimo os filhotes que são provavelmente o ponto mais delicado
da teoria freudiana, eles alimentavam um amor sexual por suas mães e por isso deveriam ficar
próximos a elas a fim de alcançar satisfação.

A explicação que foi feita acima definiu a formação da família original como a
gênese da civilização original, já que apresentamos de modo razoavelmente simplista acho
interessante observarmos nas palavras de Freud: “Assim o macho teve um motivo para
conservar junto a si a mulher ou, de modo mais geral os objetos sexuais; as fêmeas, que não
queriam separar-se de seus filhotes desamparados, também no interesse deles tinham que ficar
junto ao macho forte.” (Idem, p. 44).

Quando buscamos um modo de apresentar as possibilidades da felicidade em uma


civilização nos deparamos com a definição de amor, assim como também na definição de
família, segundo Freud o amor que antes compunha a família está ainda presente na
civilização, o autor parece dividir esse amor em três tipos, “amor genital”, “amor inibido na
meta” e uma forma de amor em que ele não separa claramente mais que pode ser
compreendido como “amizade”. Salvando as representativas medidas uma civilização é
composta dos três tipos de amor em relação contínua entre si, com isso devemos agora
entender cada definição de amor separadamente.

O amor genital representa o centro das ações dos indivíduos é, portanto o mais forte
dentre os três, funcionada do seguinte modo, após ter determinado para si o objeto sexual de

28
Freud ao descrever a família utiliza-se da união entre um macho e uma fêmea, porém por uma questão
histórica e cultural e não por homofobia, além do fato que caso houvesse uma união homossexual o processo
seria o mesmo, sendo que em grande parte dos casos há ainda uma figura de macho e fêmea.

151
desejo o indivíduo apresenta determinadas ações com a finalidade de alcançar e satisfazer esse
amor genital, ou seja, essas ações são movidas por uma força psíquica originada na libido dos
indivíduos, mas que não é restritamente sexual é como se todas as ações tivessem como plano
de fundo a libido sendo elas ações sexuais ou não. O amor inibido na meta é definido por
Freud como um amor que sofreu recalque na instituição familiar e civilizatória, isso por que
segundo o autor a natureza dos homens tem uma vontade sexual insaciável que
impossibilitaria a vida em família e em sociedade, portanto na instituição familiar primeira ele
é inibido por uma problemática maior que é da sobrevivência facilitada em sociedade e em
família, troca-se a facilidade alcançada pelo direito de agir com livre sexualidade. Por último
a amizade que é por sua vez produto do amor inibido na meta, sendo que ele apresenta várias
características que o amor genital não permitiria entre eles a “exclusividade, por exemplo,”, o
amor genital mesmo que inconscientemente prevê uma exclusividade e isso pode ser visto nos
ciúmes ou em outras ações do tipo, enquanto a amizade apesar de ainda não estar
completamente livre desses ciúmes, tem uma menor exigência de exclusividade (Idem, p. 46)
e é paralelo ao amor inibido na meta já que quando se restringe o direito de exercer livremente
a sexualidade os indivíduos encontram outras formas de satisfação dentre elas está atividades
que possam ser feitas entre “amigos”, assim a amizade pode ser vista como um escape de
energia libidinal.

A partir desses três tipos de amor a sociedade se ergue começando pela família e
posteriormente com a união de várias famílias a civilização maior, porém essa ideia de
unidade das várias famílias traz um problema crucial para esta pesquisa, qual seja, para que as
famílias possam unir-se em uma sociedade também devem sofrer restrições e segundo Freud
quanto mais famílias comporem essa união maior o número de restrições a cada uma delas, é
então onde reside em grande parte a dificuldade de ser feliz em comunidade, ou seja, há
sempre uma necessidade de renúncia cada vez mais perturbadora ou haverá conflito.

Essa tese com relação aos filhotes elegerem a mãe como objeto sexual é alvo de
grande resistência de outros teóricos entre eles citarei apenas Gilles Deleuze, esse filósofo
francês do século XX é um grande crítico do pensamento freudiano; e em seu texto
denominado O Anti-Édipo juntamente com Felix Guatarri, o autor demonstra grande
insatisfação pela tese psicanalítica. Porém antes de entendermos a crítica de Deleuze vamos
apresentar rapidamente a tese freudiana do Complexo de Édipo. Primeiramente o termo é
derivado da tragédia de Sófocles chamada de Édipo Rei (427 a.C.), na tragédia grega de modo

152
bem resumido após alguns acontecimentos um herói chamado Édipo assassina seu pai e casa-
se com sua mãe e mantem essa relação incestuosa sem saber, porém ao descobrir que seu
objeto sexual era a própria mãe ele acaba por arrancar seus olhos. Mesmo que seja breve essa
síntese já servirá para entendermos do que se trata a tese de Freud, o autor acredita que a
criança retira de sua mãe o primeiro objeto de desejo libidinal a partir do seio dela, já que na
infância primeira a criança tem dificuldades em discernir aquilo que deseja e aquilo que
necessita, ou seja, o alimento (leite materno) do desejo (seio materno). Com isso a criança
alimenta um amor sexual pela mãe e com o passar do tempo e das observações feitas por essa
criança ele cria uma aversão à figura do pai já que este representa o macho que consegue
extrair o prazer dela, mesmo a criança não compreendendo ao certo o que seja o prazer, ele
parte da observação do espaço de convívio percebe que tem de dividir aquilo que mais deseja
com outro indivíduo, então com isso a criança se vê na mesma situação de Édipo, porém sem
que possa concretizar seu desejo que é matar o pai e casar-se com a mãe, e aqui se instala o
primeiro grande recalque.

A crítica de Deleuze não é estritamente com relação ao complexo de Édipo, mas sim
com relação ao inconsciente como um todo, o filósofo acredita que as ações humanas devem
ser observadas a partir de um plano inconsciente criativo, diferente do que dizia Freud, os
homens agem de acordo com sua vontade, e esse é o ponto crucial dessa crítica, segundo
Deleuze o modo como a psicanálise freudiana compreende o inconsciente seria um modo de
tentar analisar algo que não é passível de compreensão que é um impulso criativo, esse
impulso é o que move o homem em suas ações e sua produtividade, e quando se tenta
quantificar ou cientificar essa criatividade estabelece-se o erro, e é isso que ele acredita fazer
a psicanálise. Nas palavras de Deleuze e Guatarri:

Como é que a psicanálise consegue reduzir o neurótico a uma pobre criatura que
consome eternamente o papá-mamã, e nada mais? Como é que se pôde reduzir a
síntese conjuntiva do «Afinal era isto! », do «Afinal sou eu», à eterna e triste
descoberta do Édipo, «Afinal é o meu pai, afinal é a minha mãe...» Não podemos
ainda responder a estas questões. Para já, vemos apenas como o consumo de
intensidades puras é estranho às figuras familiares, como o tecido conjuntivo do
«Afinal! » é estranho ao tecido edipiano. (2004, p. 24-25)

A linguagem de Deleuze e Guatarri dificulta um pouco a compreensão, porém é


possível interpretarmos esse trecho de acordo com a tese deles em que equipara os homens a
Máquinas Desejantes, desse modo o foco de movimento de um indivíduo são seus desejos
sejam eles de qualquer origem possível, com isso percebemos que tentar analisar ou
quantificar isso através de um estudo do inconsciente é incabível para os autores.

153
Voltando a compreensão da vida feliz e da sociedade nos chegamos à ideia de que
além de um constante conflito de interesses individuais há ainda outro grande problema na
vida em uma civilização, a falta de força psíquica suficiente nos indivíduos. Isso deve ser
observado da seguinte forma, o macho que vive em sociedade é submetido a várias “tarefas”
que sublimam em parte suas atividades instintivas mais básicas, com isso há uma regulação
dos instintos e grande parte do poder libidinal que compõe o sujeito acaba se dissipando
fazendo com que lhe falte energia psíquica para gastar com a atividade que o aproxima da
felicidade que é a atividade plenamente libidinal com seu objeto sexual. Essa falta de energia
psíquica também reflete uma insatisfação na fêmea que compõe o contexto familiar, fazendo
com que os conflitos existentes na civilização maior venham a existir também em sua família
e isso gera ainda mais restrições para o macho e para a fêmea, cito Freud:

Depois são as mulheres que contrariam a corrente da civilização e exercem a sua


influência refreadora e retardadora, elas, que no início estabeleceram o fundamento
da civilização através das exigências de seu amor. As mulheres representam os
interesses da família e da vida sexual. [...] Como o indivíduo não dispõe de
quantidades ilimitadas de energia psíquicas, tem que dar conta de suas tarefas
mediante uma adequada distribuição da libido. Aquilo que gasta para fins culturais,
retira na maior parte das mulheres e da vida sexual: a assídua convivência com
homens, a sua dependência das reações com eles o alienam inclusive de seus deveres
como marido e pai. (Idem, p. 48-49).

Freud ao fazer esses apontamentos mostra que a felicidade mesmo que seja parcial e
imperfeita em grande medida é difícil de se alcançar tanto no estado pré-civil como em uma
civilização ou até mesmo em uma família. Essa proposta faz-se ainda mais clara quando
recorremos às definições de “Ego” e “Id”, por exemplo, o Ego pode ser definido inicialmente
como a parte racional do indivíduo, isso já traz consigo a ideia de uma instância que restringe
o Id quando necessário, sabendo que o Id é o inconsciente primitivo nos homens e apresenta-
se nas ações mais primitivas como vontade sexual ou desejo de morte por exemplo. O
indivíduo que hipoteticamente alcança-se a felicidade plena já teria em si toda restrição que
fosse necessária e então a civilização representa um excesso de restrição, com relação a isso
Theodor Reik apresenta a seguinte tese:

Sob a ação do conhecimento, êsses impulsos em partes são aproveitados em


finalidades mais altas. O desenvolvimento cultural subjulga-os rapidamente e
aproveita sua energia em seu próprio benefício. Esta formação mental, altamente
organizada, que conhecemos com o ego – rejeita a porção restante do mesmo
impulso elementar como inútil, ou porque êsses impulsos não se acomodam à
unidade orgânica do indivíduo, ou porque entram em conflito com suas finalidades
culturais. (REIK in NELSON , 1959, p.34)

154
A tese de Reik mostra a fragilidade do sistema cognitivo humana, trazendo uma
grande dificuldade em conciliar as exigências culturais e os impulsos individuais.

Havendo encontrado tantas dificuldades no que diz respeito à vida feliz é interessante
analisar uma das possibilidades de encontrar a satisfação necessária para a felicidade, segundo
a observação que vem sendo feita até aqui os indivíduos que buscam a vida feliz podem
apoiar-se no amor que reside na constituição familiar. A satisfação do amor genital no
contexto familiar e ainda a existência das amizades parece ser algo muito próximo da
felicidade para quem vive em sociedade segundo Freud, cabe saber se o homem que é
submetido a essas restrições ficaria satisfeito com tal parcela de prazer que é proporcionada
por sua família e amigos.

É imprescindível discutir a felicidade humana sem que entremos na questão sobre a


finalidade da vida; nesse ponto deve-se lembrar de que Freud rejeitava a teoria religiosa, e
quando observarmos Totem e Tabu o autor admite que a civilização instalou-se sobre um
molde religioso primitivo e por muito mantem-se até os dias atuais. Uma questão que pode ser
pertinente nesse momento é a seguinte: em uma sociedade que segue firmemente bases
religiosas não seria mais fácil encontrar a felicidade? Se Freud concordasse com isso seria
realmente mais fácil de concluirmos nossa pesquisa, porém receio que a resposta para tal
questão é não. Segundo o autor a religião repousa sobre uma ilusão e como tal não passaria de
uma medida que estaria restringindo a satisfação dos fortes prazeres sem trazer nada “real”
em troca, em outras palavras a religião dificultaria ainda mais a busca por felicidade e
alimentaria o número de cerceamentos da libido por visa-los como pecados.

Para Freud o que deve estar no centro teórico de uma civilização é a ciência, sendo
que esta proporcionaria respostas reais dos fatos que nos cercam e não traz nenhuma
militância contra a satisfação libidinal.

Em O Futuro de Uma Ilusão Freud mostra-se otimista em mostrar que a ciência em


correspondência mútua com a educação cientifica e não mais religiosa pode vir a ser base da
sociedade deixando assim de lado a religião, porém ele mesmo percebe a dificuldade disso e
mostra-se modesto quanto a discussão do tema, cito Freud:

Ao agir assim, impõe-se a ele a idéia de que a religião é comparável a uma neurose
da infância, e é otimista bastante para imaginar que a humanidade superará essa fase
neurótica, tal como muitas crianças evolvem de suas neuroses semelhantes. Essas
descobertas derivadas da psicologia individual podem ser insuficientes, injustificada

155
sua aplicação à raça humana, e infundado otimismo o dele. Concedo-lhes todas essas
incertezas. Mas freqüentemente não podemos impedir-nos de dizer o que pensamos,
e nos desculpamos disso com o fundamento de que só o dizemos pelo que vale.
(FREUD, [1927] 2006, p. 29)

A felicidade estaria mais próxima nessa civilização hipotética em que a razão supera
a religião e seu conjunto de crenças, isso por que o indivíduo teria em si próprio àquilo que é
necessário para alcançar a felicidade, ou seja, quando o indivíduo deposita a felicidade em
uma instância superior ele fica limitado a agir de acordo com a vontade de outro (Deus), e
quando a razão é o princípio da felicidade ele contém em si as limitações que acha necessárias
sem precisar apoiar-se em outra figura. Segundo Freud nessa civilização hipotética o homem
“estabelecerá para si os mesmos objetos que aqueles cuja realização você espera de Deus [...]
a saber, o amor do homem e a diminuição do sofrimento” (Idem, p.29). É evidente que caso
fosse possível o homem conhecer cientificamente a origem dos mais fortes prazeres e dos
mais temidos sofrimentos elevaria a possibilidade de se encontrar a felicidade, mesmo que
não plena29.

Para o autor a civilização do modo como se segue concluir-se-á em uma


predominância da razão e mesmo os ideias e dogmas religiosos um dia hão de ceder à ciência
isso por que segundo ele os indivíduos cansar-se-ão de esperar por uma solução tão distante
como a oferecida pela religião enquanto sofre o peso da angustiante 30 vida, esse homem
perceberá que a razão é uma “saída” muito mais palpável e merece ser observada com
atenção.

A felicidade segundo o que foi estabelecido até aqui, está então relacionada à ciência,
não pensada como forma de estudo que formaliza as situações para compreendê-las, mas a
ciência no sentido de razão, mesmo com as implicações encontradas nos instintos mais
poderosos e incontroláveis a razão é que traz o entendimento possível para esses instintos se
for preciso admoesta-los assim a razão nos instruirá a fazer. Desse modo a relação de
momentos prazerosos e a fuga das frustrações também podem ser administradas pela razão,
em outras palavras com o bom uso da razão o desfrute dos prazeres é mais próximo e o
afastamento das frustrações é mais provável.

29
Freud não se utiliza dessas hipóteses aqui lançadas como exemplos, porém partindo da leitura de O Futuro
de Uma Ilusão é totalmente possível usar o texto para perceber as implicações que ele traz no caso de ser
aceito como tese vigente da sociedade e é a isso que estas hipóteses referem-se.
30
É interessante observar que o século XX é repleto de autores que compreendem a vida como um fardo, e a
angustia é um tema extremamente recorrente durante esse período.

156
A administração da vida através da razão deve ser a base para alcançar aquilo que se
pode chamar felicidade, através de escolhas que nos aproxime dos objetivos sexuais e afaste-
nos das frustrações de qualquer espécie. O fato é que o centro da felicidade possível é o Ego
enquanto instância necessária para a sobrevivência em uma determinada civilização e até
mesmo em família.

Não é fácil concluir com razoável certeza qual é o molde de vida que possibilitaria
alcançar a felicidade, talvez isso nem seja possível devido à liberdade nas escolhas de objetos
sexuais dos mais variados existentes, porém com base em nossa pesquisa até aqui é possível
estabelecer algumas coisas que dificultariam chegar aos objetivos estabelecidos, sendo que a
religião enquanto ilusão restringente dos prazeres é um dos maiores restringentes da
felicidade e a sociedade que exerce excessiva coerção também é um dos grandes empecilhos.
De modo simplista e conclusivo pode se dizer que aquilo que aceitamos como verdade última
(dogma) e que nos gera limitações sexuais ou libidinais são os afastadores da vida feliz por
mais trivial que seja, portanto não apenas a religião ou a sociedade são empecilhos para a
felicidade, mas ainda qualquer coisa que elegemos para nos mesmos como verdades últimas
refreadoras.

REFERÊNCIAS

DELEUZE & GUATARRI, Gilles e Felix. O Anti-Édipus: Capitalismo e Esquizofrenia 1.


Trad. Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho. Ed. Assírio & Alvin, Lisboa, Portugual,
2004.
FREUD, S. Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud Standard Brasileira vol. XXI. O
Futuro de uma Ilusão (1927). Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2006.
_____. O Mal-Estar na Civilização. Trad. Paulo César Souza. 1° Ed. São Paulo: Penguim
Classics Companhia das Letras, 2011.

_____. Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud Standard Brasileira vol. XIII. Totem
e o Tabu E Outros Trabalhos (1913-1914). Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2006.

NELSON, Benjamin. Vários autores. O Século de Freud. Trad. Maslowa Gomes Venturi e Dr.
Caetano Trapé. Ed. IBRASA, São Paulo, 1959.

157
FACTICIDADE E DIFERENÇA: ELEMENTOS DE FILOSOFIA DA
LINGUAGEM E FILOSOFIA DO DIREITO EM HABERMAS E DERRIDA
Lucas Antonio Saran
Universidade Estadual de Londrina
lucasasaran@gmail.com

Rogério Cangussu Dantas Cachichi


Universidade Estadual de Londrina
rogeriocangussu@gmail.com

RESUMO
Dutra (2013) chama atenção para o fato de que há um claro ponto de discordância entre
Habermas e Derrida. Com certeza, Dutra possui razão em sua postura, e, muito
provavelmente, uma consulta direta a Habermas acabaria por confirmar a discordância do
filósofo alemão com relação ao filósofo francês (Derrida). Apesar disso, esta comunicação
possui a pretensão de realizar um esboço de aproximação entre Habermas e Derrida.
Deveras, analisadas separadamente a estrutura das reflexões gerais de ambos os autores,
observar-se-á que, ao final, a despeito das discordâncias, o filósofo da ação comunicativa e
o filósofo da différance possuem, inexoravelmente, pontos de similaridade. Este modesto
projeto de correlação entre Habermas e Derrida nasce delimitado pelos campos da filosofia
do direito e da filosofia da linguagem. Nessa toada, o texto encontra-se dividido em três
momentos centrais: primeiro, alguns elementos do pensamento de Habermas (filosofia da
linguagem, facticidade, validade etc) são consignados, especialmente a configuração da
modernidade a partir da dualidade entre os sistemas e o mundo da vida, apresentando-se o
direito como importante elementos de mediação. Na sequência, focam-se Derrida e suas
reflexões sobre a filosofia da linguagem e a filosofia do direito, sobretudo na particular
crítica à metafísica da presença levada a efeito em duas importantes obras desse autor, a
saber, Gramatologia e Força de lei. Ao final, os dois autores são objeto de aproximação e,
como prometido, são apresentadas certas relações entre ambos. Pedimos que nossos
leitores entendam que o objetivo nesse desenvolvimento não é desconsiderar as
idiossincrasias dos dois autores estudados, mas mostrar que, por assim dizer, não deixa,
também, de existir consenso entre eles. Acreditamos que esse tipo de trabalho é lícito e
importante: por vezes, tanto os filósofos, quando seus admiradores tomam uma postura
demasiado combativa e destrutiva; acreditamos ser uma possível função do historiador da
filosofia mostrar até que ponto tal postura (combativa) é razoável e lícita.
Palavras-chave: Habermas; Derrida; linguagem; direito.

INTRODUÇÃO

Dutra (2013) chama atenção para o fato de que há um claro ponto de discordância
entre Habermas e Derrida. Com certeza, Dutra possui razão em sua postura, e, muito
provavelmente, uma consulta direta a Habermas acabaria por confirmar a discordância do
filosofo alemão com relação ao filósofo francês (Derrida).

158
Apesar disso, esta comunicação possui a pretensão de realizar um esboço de
aproximação entre Habermas e Derrida. Deveras, analisadas separadamente a estrutura das
reflexões gerais de ambos os autores, observar-se-á que, ao final, a despeito das
discordâncias, o filósofo da ação comunicativa e o filósofo da différance possuem,
inexoravelmente, pontos de similaridade.

Este modesto projeto de correlação entre Habermas e Derrida nasce delimitado


pelos campos da filosofia do direito e da filosofia da linguagem. Nessa toada, o texto
encontra-se dividido em três momentos centrais: primeiro, alguns elementos do
pensamento de Habermas (filosofia da linguagem, facticidade, validade etc) são
consignados; depois, focam-se Derrida e suas reflexões sobre a filosofia da linguagem e a
filosofia do direito; ao final, os dois autores são objeto de aproximação e, como prometido,
são apresentadas certas relações entre ambos.

Pedimos que nossos leitores entendam que o objetivo nesse desenvolvimento não é
desconsiderar as idiossincrasias dos dois autores estudados, mas mostrar que, por assim
dizer, não deixa, também, de existir consenso entre eles. Acreditamos que esse tipo de
trabalho é lícito e importante: por vezes, tanto os filósofos, quando seus admiradores
tomam uma postura demasiado combativa e destrutiva; acreditamos ser uma possível
função do historiador da filosofia mostrar até que ponto tal postura (combativa) é razoável
e lícita.

MODERNIDADE, RACIONALIZAÇÃO, FACTICIDADE E VALIDADE:


BREVE INTERCURSO PELO PENSAMENTO DE HABERMAS

Na condição de assistente de Adorno, “Habermas leu a Dialética do Esclarecimento


de Adorno e Horkheimer já em 1953. Nesta obra de 1947, que teve uma grande influência,
os dois autores tinham como objetivo, entre outros, mostrar como o Esclarecimento,
entendido como filosofia da razão, se tinha transformado no seu contrário, isto é, em
irracionalidade e autodestruição” (PINZANI, 2009, p.19). Como reconheceram Adorno e
Horkheimer, o próprio esclarecimento não deixou de ser um mito na modernidade
(BANNWART JÚNIOR, 2008, p.72).

Diante disso, viu-se Habermas motivado a repensar a modernidade. Para tanto,


partiu do diagnóstico de Max Weber para quem o que caracteriza a modernidade foi um
processo de desacoplamento entre mundo da vida e sistemas. Para Weber a modernidade

159
está caracterizada por um processo de racionalização. A modernidade veio ao lume com
uma promessa: libertar os homens do julgo da religião. Essa é a promessa (não cumprida)
da modernidade. O ethos é substituído pela razão e a teleologia pela imparcialidade. A
ética é baseada pelo sujeito, com pretensão de universalidade. Diz Habermas:

Max Weber introduziu o conceito de “racionalidade” para definir a forma da


atividade econômica capitalista, do tráfego social regido pelo direito privado
burguês e da dominação burocrática. Racionalização significa, em primeiro
lugar, a ampliação das esferas sociais, que ficam submetidas aos critérios de
decisão racional. (HABERMAS, 1968, p.45)

Essa racionalização incide no quadro institucional que no período medieval era


composto de elementos: cultura, sociedade, personalidade, tudo sob a base da religião.
Com a racionalização, sai de cena a religião; os saberes (direito, ciência, técnica, ética,
moral, política, economia, estado) miram para fora do quadro institucional (mundo da
vida), inaugurando racionalidades próprias.

Houve uma perda de sentido no mundo da vida. A razão se partiu em várias razões.
Esse desacoplamento entre sistemas e mundo da vida é o que caracteriza a modernidade.
Com efeito, nesse processo de racionalizar as esferas de produção do saber migraram de
dentro do mundo da vida (onde se encontravam fundadas na religião) para fora, criando
sistemas dotados de racionalidade própria.

Dentro do mundo da vida, houve um processo de racionalização da cultura, da


sociedade e da personalidade, que deixaram de ser fulcrados na religião. Habermas chamou
esse processo de descentralização, e não de desacoplamento. O conceito de
descentralização é tomado por Habermas a partir de Piaget (BANNWART JÚNIOR, 2008,
p. 54).

Como se vê, Habermas enxerga a sociedade de modo dual: de um lado as esferas


ligadas à produção do saber; de outro, as esferas ligadas ao modo pelo qual os indivíduos
dão sentido à sua existência. Essa última é o mundo da vida propriamente dito, que possui
três elementos: cultura, sociedade e personalidade agora sem base na religião. Os sistemas,
externos ao mundo da vida, passam a ter racionalidades próprias. O problema, como
destacou Pinzani, é que "na sociedade atual (...) o mundo da vida corre o risco de ser
'colonizado' pelos sistemas da economia e da administração - e isso leva a uma corrosão
dos âmbitos de ação estruturados em termos comunicativos" (2009, p.98). As interações

160
sociais perpassam prioritariamente não por valores ou normas, mas por dinheiro e poder
administrativo:

Sociedades modernas são integradas não somente através de valores, normas e


processos de entendimento, mas também sistemicamente, através de mercados e
do poder administrativo. Dinheiro e poder administrativo constituem
mecanismos da integração social, formadores de sistema, que coordenam as
ações de forma objetiva, como que por trás das costas dos participantes da
interação, portanto não necessariamente através da sua consciência intencional
ou comunicativa. (HABERMAS, 1997, p.61)

Põe-se em questão como a moral secularizada poderá subsistir (PINZANI, 2009,


p.107). Nessa empresa, Habermas não vê alternativa senão a necessidade de reabilitar a
razão prática, a fim de que a razão comunicativa, não a instrumental, assuma sua função de
governar as relações entre seres humanos, produzindo agir comunicativo, não instrumental.
O agir comunicativo difere do agir instrumental na medida em que o primeiro orienta-se
pelo entendimento; o segundo pela manipulação dentro do binômio meio-fim. "Somente
essa racionalidade comunicativa permite, porém, uma resistência eficaz contra a
colonização do mundo da vida por parte dos subsistemas" (PINZANI, 2009, p.111).
Habermas escreveu: "O conceito do agir comunicativo atribui as forças ilocucionárias da
linguagem orientada ao entendimento a função importante da coordenação da ação" (1997,
p.25).

Isso implica a rejeição de soluções monologicamente estabelecidas, mas "exigem


esforço de cooperação", porquanto, "ao entrarem numa argumentação moral, os
participantes prosseguem seu agir comunicativo numa atitude reflexiva co o objetivo de
restaurar um consenso perturbado" (HABERMAS, 2003, p.87). Diversamente das ações
estratégicas - direcionadas a um fim -, a ação comunicativa são orientadas pelo consenso,
de modo que a moral agora secularizada - antes baseada na religião - obtém arrimo no
entendimento, na linguagem.

A relação entre facticidade e validade após a guinada linguística apresenta-se


mergulhada na linguagem e em seu uso pela comunidade de falantes (linguagem ordinária
do mundo da vida). Segundo Habermas, "...a tensão entre ideia e realidade irrompe na
própria facticidade de formas de vida estruturadas liguisticamente" (1997, p.21), de tal
modo que "a teoria do agir comunicativo tenta assimilar a tensão que existe entre
facticidade e validade"(1997, p.25).

161
Nesse quadro, o direito assume papel importante, cabendo-lhe tripla função.
Pinzani nos ensina:

Ele é, em primeiro lugar, um espaço de mediação entre facticidade e


validade(...). Em segundo lugar, ele é meio de integração social que é ameaçada
pela mediação entre mundo da vida e sistemas parciais. Finalmente, ele é meio
de uma integração social que já não pode ser alcançada por forças morais. Deste
último ponto de vista, o direito contempla ou até substitui a moral. (2009, p.145)

E de fato, logo nos capítulos iniciais de Direito e Democracia, Habermas deixa


claro que procura "atingir um duplo fim: esclarecer por que a teoria do agir comunicativo
concede um valor posicional central à categoria do direito e por que ela mesma forma, por
seu turno, um contexto apropriado para uma teoria do direito apoiada no princípio do
discurso" (1997, p.24). E, de fato, como acentuou Durão:

...o direito funciona como transformador linguístico, traduzindo a linguagem


estratégica dos sistemas para a linguagem comunicativa do mundo da vida e
vice-versa, o que possibilidade, por exemplo, que as reivindicações do mundo da
vida, expressas comunicativamente, como a proteção da esfera privada contra
disfunções ocasionadas pelos sistemas sociais ou a preservação do meio
ambiente, possam ser promulgadas na forma de leis que os agentes envolvidos
com os sistemas sociais têm que levar em consideração para realizar a escolha
racional da melhor estratégia de ação a partir da lógica própria de cada sistema.
(2006, p.105)

Interessa frisar, entretanto, que, mesmo estando o direito na condição de


intermediador entre os subsistemas e o mundo da vida, "o teórico do direito não pode
reclamar para si nenhuma posição privilegiada" (PINZANI, 2009, p.143), porque não deixa
de estar na posição de participante do mundo da vida devendo a isso sua posição
hermenêutica. Isso, à evidência, aplica-se ao cientista social:

O agir social recebe seu sentido, então, do mundo da vida, no qual se encontram
os atores assim como o observador, isto é, o cientista social. As ciências sociais
enquanto ciências interpretativas estão presas em um círculo hermenêutico: elas
não podem fugir do mundo da vida na qual o próprio observador se encontra. O
mundo da vida constitui o horizonte no qual não somente se dá o objeto de tais
ciências, a saber, o agir social, mas também acontecem as análises delas.
(PINZANI, 2009, p.108)

JUSTIÇA E DIFERENÇA: ELEMENTOS DE LINGUAGEM E FILOSOFIA DO


DIREITO EM DERRIDA

A nosso ver, seria muito pretensioso de nossa parte sintetizar as linhas mestras do
pensamento de Derrida nas poucas páginas que se seguem. Com efeito, iremos nos

162
circunscrever a dois trabalhos específicos: 1- a Gramatologia31 que nos permitirá trabalhar
questões de filosofia da linguagem; 2- a coletânea Força de lei (DERRIDA, 2010) que
usaremos, principalmente, para trabalhar questões de filosofia do direito.

Começando, pois, pela filosofia da linguagem, devemos de saída afirmar que um


dos principais (senão o principal) objetivo do pensamento de Derrida (naquilo que
concerne à linguagem) consiste em estabelecer uma crítica àquilo que o filosofo francês
denomina “a metafísica da presença” (cf DERRIDA, 2011, p.368-369); essa noção, longe
de remeter diretamente a alguma das definições mais clássicas de metafísica, almeja, antes
de qualquer coisa, remeter a uma ilusão que, vinda de uma má compreensão da linguagem,
infiltrou-se em boa parte do pensamento ocidental.

Em sua busca por combater essa má compreensão da linguagem, Derrida na


Gramatologia faz rigoroso estudo crítico de um tratado póstumo de Rosseau em que este
tentaria refletir a respeito da linguagem. Analisando Rosseau, Derrida procura demonstrar
os problemas nos quais o filósofo suíço, sem perceber, incide por pensar a linguagem sob a
égide da “metafísica da presença”.32

Mas o que seria essa metafísica da presença? Para Derrida, a metafísica da presença
seria um tipo de pensamento que cai nas armadilhas de uma dualidade inexorável: a
dualidade significado-significante. De onde viria essa dualidade? A dualidade viria de um
fato óbvio, porém, nem sempre percebido: ao se representar o mundo por intermédio da
linguagem, pressuposta, desde já, está a distância entre a linguagem e o mundo. Noutros
termos, apenas se pode dizer que se representa o mundo quando aberta está a possibilidade
para que a representação possa ser ruim (falsa, imprópria etc) ou boa (bela, correta,

31
Recentemente, devido aos acontecimentos do famoso caso Sokal, muitas obras de autores pós-
estruturalistas (como Derrida) têm sido desacreditadas por, muitas vezes, apresentarem uma linguagem, por
assim dizer, “abstrusa”, beirando à falta de sentido. Esse tipo de característica “abstrusa”, a nosso ver, não
está na Gramatologia, porquanto, ainda que admitíssemos ser o primeiro grande movimento dessa obra
demasiado complexo e quase ininteligível, temos de admitir que, no segundo grande movimento, o autor
repete boa parte das idéias postas no início sob a perspectiva de um claro e rigoroso trabalho historiográfico
sobre as obras de Rosseau. Inclusive, para gerar o mínimo de polêmica, procuraremos nos ater a esse segundo
movimento da obra.
32
Ao dirigir esse tipo de crítica, Derrida pretende que Rosseau deva ser visto como sendo apenas um
exemplo de uma série de erros que, ao longo de boa parte da história da filosofia (pelo menos, até
Heidegger), estariam presentes. Não iremos, aqui, desenvolver essa postura de Derrida, tampouco expor o
tipo de justificativa que, implícita ou explicitamente, o filosofo francês utiliza para eleger Rosseau como foco
de sua percuciente análise.Essa nossa decisão deve-se tanto à brevidade do espaço deste artigo, quanto ao
fato de que o objetivo deste trabalho é antes estabelecer um diálogo entre dois autores (Habermas e Derrida),
do que tomar um posicionamento a respeito da validade, ou não, do pensamento desses autores.

163
verdadeira etc), e, por outro lado, só conseguimos distinguir os objetos da representação
quando nos distanciamos deles ao tentarmos representá-los. Isso fica mais claro ao
pensarmos em um exemplo: quando tentamos representar o mundo (o real, o Ser, o
universo etc) podemos parar para pensar e constatar que tal mundo não é verdadeiro nem
falso, visto que são as representações do mundo que são verdadeiras ou falsas; por outro
lado, só distinguimos a própria existência do mundo (o real, o Ser, o universo e etc.)
quando, ao tentarmos representá-lo, passamos a tratá-lo como um objeto (um ideal) ao ser
atingido por um mecanismo de representação (como um objeto externo à linguagem e ao
qual devemos tentar atingir através de tal linguagem).

A essa dualidade presente no coração da linguagem e da representação, Derrida dá


o nome de différance33; a différance, para Derrida, é a prova de que nunca poderemos
atingir ideais de unidade como “Deus”, “O Ser”, “A natureza” etc.34 Esses ideais só podem
ser pensados enquanto pares da dualidade primordial (différance), notando-se que, mesmo
sem perceber, fazemos confusões e caímos em paradoxos. Um exemplo gritante dessa
situação, na leitura de Derrida, está em Rosseau (cf, por exemplo, DERRIDA, 2011, p.378-
379): tanto em sua reflexão a respeito da linguagem, quanto em outras reflexões, Rosseau
(segundo Derrida) procura, ao mesmo tempo, elogiar uma espécie de instância metafísica
primordial (a Natureza) e criticar tudo que nos afasta de tal instância (a sociedade, a
linguagem etc); o problema aí, com o qual Rosseau parece se debater, é que, ao mesmo
tempo em que se define a natureza por oposição a seus “inimigos” (a sociedade, a
linguagem etc), tenta-se dizer que a natureza é o que há de mais primordial (de onde,
paradoxalmente, inimigos como a sociedade e a linguagem teriam de ter surgido). Como
conciliar essa situação? Para Derrida, qualquer tipo de conciliação é impossível, pois
Rosseau descobre, no par “sociedade-natureza”, a différance e, ao mesmo tempo, tenta
contornar tal différance concedendo prioridade à natureza.

33
Na tradução da Gramatologia que estamos utilizando, o termo é traduzido através do neologismo
diferência . Há, no entanto, quem prefira usar outros neologismos (como diferança) de modo que, para evitar
polêmica, optamos, aqui, por não traduzir o termo.
34
Vale chamar a atenção para o fato de que, ao que parece, devamos ter cuidado para não tratar a própria
différance como um ideal metafísico: se pararmos para pensar, veremos que sequer se deve falar muito a
respeito da différance, pois esta representa a própria dualidade e quando tentamos falar dela, fatalmente,
tratamo-la como um objeto de representação e, conseqüentemente, como um dos termos da dualidade a que
ela deveria remeter.Esse caráter complexo da différance talvez seja o motivo pelo qual, como ressalta Rorty
(1991), Derrida, conforme sua obra evolui, foi aos poucos abandonando, cada vez mais, a tentativa de
oferecer qualquer versão demasiado sistemática de sua filosofia.

164
Vemos, nesse contexto, o caráter constrangedor da filosofia antimetafísica de
Derrida. Isso significa que estamos presos em uma espécie de maldição da différance?
Não, e é aí que entramos no ponto, por assim dizer, filosófico-jurídico deste texto: libertos
da metafísica, podemos utilizar a différance como instrumento crítico e perceber que a
metafísica pode, também, ocultar algo de nefasto. Um exemplo disso encontra-se,
principalmente, no primeiro e no terceiro textos de Força de lei. Tais textos, de fato,
possuem algo de obscuro, mas, com uma boa leitura prévia da Gramatologia, podem, a
nosso ver, ser bem compreendidos: no Post-scriptum a Prenome de Benjamin, Derrida, a
partir da interpretação que havia feito de um texto de Benjamin, investe contra a crítica
benjaminiana segundo a qual o direito seria ilegítimo, pois seria fundado sobre uma
violência primeira que, por ser anterior ao próprio direito (e sua condição de
possibilidade), jamais poderia ter a própria legitimidade jurídica; em Do direito à justiça,
Derrida, de modo mais claro, expõe aquilo que poderia se aproximar de uma filosofia do
direito baseada no conceito de différance, notando-se que a principal característica dessa
filosofia do direito derridiana seria pensar a lei como envolvida na inexorável dualidade da
significação de modo que o papel do filósofo (cf DERRIDA, 2010, p.27-28) seria o de
propor uma crítica constante em que se mostrasse a irredutível différance entre a lei (a
representação) e a justiça (aquilo que se pretende representar com a lei).

Em que sentido esses dois textos (o Post-scriptum e Do direito à justiça) nos


permitem ver o caráter nocivo da “metafísica da presença” criticada por Derrida? Encetar
uma resposta a tal pergunta implica admitir que, tal como havia feito com o caso de
Rosseau em Gramatologia, Derrida, em Prenome de Benjamim, culmina por demonstrar
que Benjamim acaba caindo em paradoxo similar ao do autor do Contrato social quando
desconsidera a différrance inexorável entre o direito e a justiça. Para bem se compreender
isso, convém sublinhar que Derrida mostra que o filosofo alemão (Benjamim), ao se
deparar com o fato de que o direito não pode se furtar a uma violência que o funda, é
forçado a buscar a legitimidade do direito em uma justiça essencial que se oporia ao direito
(na arbitrariedade violenta que o funda) da mesma maneira que instâncias como a
linguagem e a sociedade se oporiam natureza de Rosseau. O problema dessa situação é
que, segundo Derrida, ao abrir mão do direito enquanto instância representativa, Benjamim
é forçado a recorrer à sua formação religiosa e invocar uma justiça divina. No entanto, a
única forma de sustentar esse tipo de justiça é pensando que ela se manifesta na forma de

165
catástrofes naturais. Benjamim, no final das contas, estaria substituindo um tipo de
violência por outra; e isso se agrava quando, como faz Derrida no Post-scriptum, pensamos
que a ideia de uma justiça divina que daria uma solução definitiva para o problema da
justiça é (uma tal ideia) muito similar à postura de regimes totalitários que, como o
nazismo, buscaram, em algum tipo de ufanismo patriótico, uma solução definitiva. 35
Contra esse tipo de postura (quase fascista), Derrida, embora não dê uma solução, acaba, a
nosso ver, deixando subentendida a postura de Do direito à justiça: a justiça, entendida

como entidade metafísica definitiva, não existe. O que se pode fazer é tomar a justiça
como uma espécie de polo oposto (no par significado-significante) ao direito (cf
DERRIDA, 2010, p.41). Tal justiça, para uma filosofia da différrance, constituir-se-ia em
algo que, além de impedir expedientes como o de Benjamim, permitiria um processo de
reflexão crítica constante a respeito do direito.

O FORA E O JURÍDICO: PONTES ENTRE UM TEÓRICO CRÍTICO E UM PÓS-


ESTRUTURALISTA

Gilles Deleuze defendia que começamos a pensar quando chegamos ao limite do


nosso próprio pensamento. Isso pode parecer muito profundo, mas, na verdade, constitui-se
em algo bastante simples. Não se trata de inserir, neste trabalho, a menção a um novo
teórico ou a novas categorias filosóficas. Trata-se, na verdade, de se constatar o seguinte:
começamos a pensar (nos questionar, raciocinar, pesquisar etc) quanto percebemos que não
estamos compreendendo algo, ou não sabemos algo; pensamos para compreender ou
aprender o não sabido, o desconhecido, o impensado.

Mas por que essa constatação nos é tão importante neste momento? Porque
acreditamos que a relação entre Derrida e Habermas, naquilo que concerne ao pensamento
da linguagem e do direito, manifesta, não obstante a divergência entre os dois autores, a
característica comum de que ambos os autores estudados são descobridores da situação de
que o direito encontra, devido a elementos decorrentes da própria filosofia da linguagem,
limites que o levam, através de um diálogo com aquilo que lhe é externo (com seu fora), a
manter uma situação de constante autocrítica: os limites decorrentes da filosofia da

35
Nesse sentido, Derrida chama atenção para o fato de que um leitor de Benjamim poderia, facilmente, partir
das posturas do autor (Benjamim) para concluir que, de alguma forma, o holocausto, ainda que não se
concorde com as ideias que o embasam, foi um castigo divino. A esse respeito e de toda a crítica que Derrida
faz a Benjamim, recomendamos, principalmente: Post-scriptum (DERRIDA, 2010, p.143-144).

166
linguagem levam o direito a estar, constantemente, em uma busca por questionar (pensar) a
si mesmo.

O que queremos dizer com tudo isso? Comecemos nos lembrando do que decorreu
daquilo que trabalhamos a respeito de Derrida: o direito é a tentativa de representar a
justiça e, no entanto, sempre deve se pensar em uma relação de exterioridade com relação a
esta última; para verificar a validade de uma proposição jurídica (significante)
pressupomos a justiça (significado) de modo que acabamos tendo de aceitar que esta
última é algo externo ao direito. Por outro lado, só começamos a falar de justiça quando
procuramos representá-la por algum meio (como o direito).

Com tudo isso, vivemos o inexorável paradoxo: pressupomos a justiça para avaliar
o direito, e pressupomos o direito para trazer a justiça à luz; há certo distanciamento
necessário entre direito e justiça de modo que o primeiro está sempre sujeito, por assim
dizer, à justa crítica.

Essa proposta derridiana que procuramos detalhar em nosso segundo capítulo não
deixa de ter algumas similaridades bastante interessantes com o pensamento habermasiano
estudado em nosso primeiro capítulo. Com certeza Habermas não parte de uma reflexão
sobre a significação similar à de Derrida, pois seu pensamento (o de Habermas) baseia-se
em uma visão pragmática da linguagem36. Apesar desse posicionamento de Habermas (que
difere do de Derrida), vemos que o filosofo alemão chega a um tipo de conclusão bastante
similar àquela do filósofo francês: o direito precisa pensar-se em constante autocrítica, pois
ele (o direito) encontra-se em meio a uma tensão entre facticidade e validade gerada pela
situação de que as comunidades linguísticas geram valores morais (validade) que estão
sempre ameaçados pelos fatos produzidos pelo pensamento técno-científico37. Em meio a
essa situação de tensão, o direito é sempre forçado a manter-se em autocrítica: o direito
deve, por assim dizer, viver em um movimento pendular em que, ora se deixa conduzir
pelos sistemas (ciência, técnica, movimentos da grande economia etc), ora se deixa
conduzir pelas comunidades linguísticas (formas de vida) e seus valores; cabe assim, ao
pensamento jurídico ter, a todo tempo, senso crítico suficiente para saber de que elemento

36
Trata-se de algo próximo (senão idêntico) ao que poderíamos chamar de “filosofia da linguagem ordinária”
cuja referência, a nosso ver, ficou explícita quando, no primeiro capítulo, fez-se menção a noções como
“comunidade de falantes” e “formas de vida”.
37
Aqui nos referimos, especificamente, àquela instância que, em nosso primeiro capítulo, foi referida com a
palavra sistemas.

167
deve aproximar-se (como manter uma equilibrada a complexa balança entre “sistemas” e
“mundo da vida”?).

Tomando esse último raciocínio, como negar a similaridade entre muitas das ideias
propostas por Habermas e por Derrida? A causa dos problemas habermasianos que
acabamos de retomar não é outra senão a esfera da linguagem: são os valores do “mundo
da vida” (espaço das comunidades linguísticas) que são condição de possibilidade da
tensão entre tal “mundo da vida” e os “sistemas”. Se olharmos com atenção essa situação
veremos que o pensamento de Habermas, tal como o de Derrida, depara-se com as
complexas relações entre a linguagem e aquilo que lhe é externo, e, consequentemente,
permite se pensar a difícil relação entre o direito e aquilo que lhe é alheio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: DIFERENÇA E FACTICIDADE

Vimos que, além da oposição que já é rotineira (como mostra o texto de Dutra,
2013), Habermas e Derrida possuem algumas proximidades. Para alguns, a percepção
dessas similaridades, do modo como a empreendemos, poderia parecer mero exercício de
futilidade: poder-se-ia alegar que a concepção do direito como autocrítico e das complexas
relações entre a linguagem e aquilo que lhe é externo são, do ponto de vista do pensamento
do século XX, um fato tão genérico que não faria sentido aproximar dois autores
específicos através dele.

À parte essa possível objeção, invocando algo que dissemos na introdução,


defenderemos aqui a validade de nosso texto: não é preciso passar muito tempo nas
academias de filosofia para se perceber, principalmente no campo da filosofia
contemporânea, o quão vorazes são as disputas entre autores, discípulos de autores e
tendências filosóficas. Acreditamos que tentativas como a feita neste trabalho são
propostas válidas permitem o historiador da filosofia contribuir com seu tempo, lembrando
aos representantes das divergências filosóficas que, não obstante suas divergências, os
diversos autores da filosofia contemporânea possuem, também, projetos em comum.
Prestar a atenção a essa comunidade de projetos (como é o caso daquilo que mostramos ser
comum entre Habermas e Derrida) pode, talvez, permitir que, em um futuro próximo, as
diversas doutrinas e autores possam se focar mais à complementação mútua, do que à
guerra teórica.

168
REFERÊNCIAS

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social de Habermas. 2008. 265p. Tese (Doutorado em Filosofia). Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Campinas.

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Habermas. Ethic@, Florianópolis, v.5, n.1, p. 103-120, Jun. 2006.

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http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/antigas/dissertatio19-20.pdf. Consulta
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_____. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol.I. Rio de Janeiro: Templo
brasileiro, 1997.
_____. Técnica e ciência como “ideologia”. In: HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência
como “ideologia”. Lisboa: Edições 70, 1968. pp.45-92.

PINZANI, Alessandro. Habermas. Porto Alegre: Artmed, 2009.

169
O DIREITO MODERNO E A INCLUSÃO DO OUTRO NAS SOCIEDADES
COMPLEXAS SEGUNDO HABERMAS

João Paulo Rodrigues


Universidade Estadual de Londrina
j.p_rodrigues@hotmail.com

RESUMO

O propósito de Jürgen Habermas é o de apresentar uma teoria da sociedade com propósito


prático, visando a autonomia dos indivíduos e a emancipação da sociedade moderna,
desacoplada em mundo da vida e sistema e que não pode mais fundamentar o direito
através da tradição cultural e sua racionalidade prática. O mesmo filósofo, em seu livro
Direito e Democracia, mostra que a fonte da legitimação do direito moderno se encontra
no processo democrático da legislação, e esta recorre, por sua vez, para o princípio da
soberania do povo. Então, se é a soberania do povo quem garante a legitimação do direito
moderno, através da democracia, como garantir a inclusão do outro nas atuais sociedades
pluralistas? Como aplicar as legítimas leis do direito moderno em uma sociedade
complexa? Pois é preciso saber que direitos tais cidadãos diferentes entre si devem atribuir
uns aos outros para que possam conviver em tal sociedade complexa. Os livros A inclusão
do outro e Direito e Democracia, ambos do autor Habermas, apresentam um ponto em
comum: o desejo pela questão do resultado aos quais as conclusões do conteúdo
universalista dos princípios republicanos chegaram, mais especificamente para as
sociedades complexas. Primeiramente, será apresentado o direito moderno e o seu papel de
mediador da integração social entre os cidadãos do mundo da vida e do sistema.
Posteriormente, será demonstrado que a legitimidade do direito moderno está fundada no
princípio da democracia, institucionalização jurídica do princípio do discurso ‘D’. Logo
após, será explicitado o significado do conceito “inclusão do outro”, expondo uma moral
com conteúdo racional, que busca o mesmo respeito por todos e traz à tona a
responsabilidade da solidariedade universal entre os cidadãos, revelando que as fronteiras
da comunidade estão abertas a todos, inclusive aos que são estranhos uns aos outros e
desejam continuar sendo estranhos. Para isso, serão apresentadas duas questões
sistemáticas, na qual uma fala sobre de quais intuições morais é possível reconstruir de
forma sensata, e a outra que fala da possibilidade de se fundamentar o ponto de vista que
encontra a sua abertura, a partir da teoria do discurso.
Palavras-chave: Habermas. Direito Moderno. Inclusão do Outro. Sociedades complexas.

ÉTIDA DO DISCURSO E TEORIA DA SOCIEDADE

Habermas tem como propósito desenvolver uma teoria da sociedade com propósito
prático, reconstruindo38 a razão prática de Kant através de sua teoria da ação comunicativa,
visando a autonomia dos indivíduos e a emancipação da sociedade moderna, esta que foi
desacoplada em mundo da vida e sistema e não pode mais fundamentar o direito através da
38
Habermas, em seu livro Para a reconstrução do materialismo histórico, mostra que reconstrução significa
“que uma teoria é desmontada e recomposta de modo novo, a fim de melhor atingir a meta que ela própria se
fixou” (HABERMAS, 1983, p. 11).

170
tradição cultural e sua racionalidade prática. Nesta sociedade moderna, ou sociedade
complexa, aparecem dois tipos de racionalidade: a racionalidade comunicativa 39 , que
substituiu a razão prática após o giro linguístico40, e a racionalidade estratégica41.
Para fundamentar a validade dos enunciados e juízos morais, Habermas e Apel
desenvolveram a “Ética do Discurso”42, que seria uma extensão da ação comunicativa. Tal
ética propõe empregar na sociedade moderna os valores de liberdade, justiça e
solidariedade através do diálogo, posta como a única maneira de se respeitar a
subjetividade das pessoas e também a sua inegável dimensão solidária, visto que no
processo dialógico precisamos contar com pessoas e com a ligação que existe entre os
indivíduos, sendo assim justa.
Para Habermas (1989, p. 115-6), todos os que entram em argumentações devem
fazer com que todos, ao empreenderem seriamente a tentativa de resgatar discursivamente
pretensões de validades normativas, aceitem intuitivamente o princípio da universalização
‘U’, visto que, a partir das mencionadas regras do Discurso, uma norma controversa só
poderá encontrar assentimento entre os participantes de um Discurso prático, se o princípio
da universalidade ‘U’ for aceito, isto é: “Se as consequências e efeitos colaterais, que
previsivelmente resultam de uma obediência geral da regra controversa para a satisfação
dos interesses de cada indivíduo, podem ser aceitos sem coação por todos” (HABERMAS,
1989, p. 116).
Apesar disso, a própria Ética do Discurso pode ser reduzida ao princípio do
discurso ‘D’ segundo o qual: “D: São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis

39
A razão comunicativa está inserida no telos do entendimento através do medium linguístico na qual, a
partir dos atos de linguagem reproduzidos comunicativamente às formas de vida, busca-se o entendimento
com alguém sobre algo no mundo.
40
Do original lingustic turn. “Giro linguístico foi a mudança de paradigma que ocorreu no pensamento
filosófico ao longo do séc. XX. Aqui a linguagem deixa de ser um objeto de estudo entre outros e passa a ter
uma referência inevitável e fundamental onde se abordam todos os problemas filosóficos. Razão e linguagem
se tornam idênticos de tal modo que a linguagem se torna a única forma racional de se conhecer a realidade.
Nossa relação com o mundo passa a ter um caráter simbolicamente mediado, visto que a linguagem
desempenha um papel fundamental. A linguagem não é mais um meio de conhecimento, ela passa a ser a
condição de possibilidade de conhecimento” (VELASCO, 2003, p. 171).
41
A racionalidade estratégica “consiste na orientação da ação para o êxito a partir de uma avaliação das
condições dadas” (DURÃO, 2006, p. 103). Mas o êxito da ação irá depender do sistema envolvido, por
exemplo, o êxito no sistema econômico será medido pelo meio dinheiro, já no sistema político o êxito é
medido pelo meio poder, sendo assim, “a estratégia na economia deve ser maximizar o benefício em função
do custo na obtenção do lucro, enquanto na política tem que ser a conquista da confiança dos eleitores
traduzida em votos” (DURÃO, 2006, p. 103).
42
A Ética do Discurso tem como finalidade separar a norma socialmente vigente da moralmente válida, pois
em um discurso os indivíduos argumentam sobre normas e tentam verificar quais são moralmente corretas.
Habermas mostra, em seu livro Consciência Moral e Agir Comunicativo (1989, p. 112), que a ética do
discurso pretende revelar os pressupostos que tornam racional a argumentação.

171
atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos
racionais” (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 142).
Para Habermas, a sociedade moderna foi desacoplada em mundo da vida 43 e
sistema 44 , e estas que se necessitam e se complementam. Ora, não se pode explicar a
sociedade atual sem reconhecer sua existência. Entretanto, nas sociedades complexas, o
sistema acaba sendo o elemento que mais se expande, e cabe observar uma constante
dinâmica mediadora do sistema no âmbito especifico do mundo da vida, fenômeno este
que Habermas chamará de colonização do mundo da vida. Isto ocorre quando a reprodução
simbólica do mundo da vida começa a se fundar sobre a base do sistema, o que acaba
trazendo danos para o Estado social, pois o mundo da vida se reproduz quando se
apreendem as condições de uma ação formalmente organizada e entendida como relação
expressada pelo direito (MOREIRA, 2004, p. 53).

O DIREITO MODERNO E A SUA LEGITIMIDADE

Diante desta sociedade complexa, que vive dia após dia o risco de dissenso entre a
racionalidade comunicativa, empregada pelos indivíduos do mundo da vida, e a
racionalidade estratégica, utilizada pelos agentes situados no sistema, tenta-se resolver o
seguinte problema: sabendo que só é possível ocorrer uma integração social entre os
cidadãos que se utilizam destes dois tipos distintos de racionalidade através do direito
moderno, o que legitimaria este possível responsável? Ora, a fonte da legitimação do
direito moderno se encontra no processo democrático da legislação, e esta recorre, por sua
vez, para o princípio da soberania do povo.
O direito moderno45, “em reação ao processo de racionalização característico da
modernidade” (PINZANI, 2009, p. 146), acaba recebendo uma dupla função no âmbito

43
Este conceito se refere “ao ambiente imediato do agente individual, o ambiente simbólico e cultural que
forma a camada profunda de evidências, certezas e realidades que não são normalmente colocadas em
questão” (VELASCO, 2003, p. 47). É neste horizonte comum de compreensão que os sujeitos podem atuar
de modo comunicativo. O mundo da vida é o limite que circunscreve nossa vida.
44
O sistema possui um equilíbrio que se autorregula por meio da especificação funcional dos diferentes
subsistemas que apareceram após o desacoplamento presente na teoria da sociedade de Habermas. No
sistema, as ações de cada indivíduo são determinadas por cálculos de interesse, que maximizam a utilidade. É
também um conjunto social formado por diversos mecanismos anônimos dotados de lógica própria que, na
sociedade moderna, se cristalizou em subsistemas sociais diferenciados e regidos por regras estratégicas, e
por meios materiais ou técnicos: o subsistema Estado e o subsistema Economia (VELASCO, 2003, p. 48).
45
O tipo de direito que interessa para Habermas seria o direito: (1) como uma manifestação do direito
temporalmente limitada e condicionada, ou seja, o direito moderno; (2) determina o tipo de direito como
sendo direito normatizado ou positivo; (3) como uma ordem normativa que é justificada “somente apelando
para um sistema coerente que possibilita a produção de normas segundo um procedimento exatamente
determinado por regras precisas” (PINZANI, 2009, p. 141); (4) o direito moderno se depara com normas

172
desta sociedade complexa. Primeiramente, o direito, “através de uma prática de
autodeterminação, que exige dos cidadãos o exercício comum de suas liberdades
comunicativas” (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 62), deve assegurar a solidariedade social na
sociedade complexa. Com isso, os conflitos acabam sendo resolvidos agora juridicamente
e não mais pela ética como era antigamente. Isto acontece pelo fato de que, não havendo
mais valores comuns, o consenso só poderá ser obtido através de procedimentos
regularizados juridicamente.
Por segundo, o direito possui a tarefa de se opor à colonização do mundo da vida,
funcionando como um objeto que une os agentes do mundo da vida e do sistema e acaba se
tornando “uma correia de transmissão abstrata e obrigatória, através do qual é possível
passar solidariedade para as condições anônimas e sistematicamente mediadas de uma
sociedade complexa” (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 107).
O direito moderno acaba sendo o único instrumento capaz de resolver os riscos de
dissenso entre os indivíduos situados no mundo da vida e no sistema após a colonização do
mundo da vida, pois tal direito é somente legítimo quando ocorrer a democracia, esta que
terá a função de reduzir a complexidade social. A democracia é, então, “a única forma que
uma ordem jurídica legítima pode tomar”, pois “não há direito democrático sem
democracia” (PINZANI, 2009, p. 147).
Sendo assim, como poderá ser resolvida a questão da legitimidade do direito
moderno? Para Habermas, a legitimação do direito moderno parte do próprio conceito
kantiano de legalidade, fundada no princípio da democracia (institucionalização jurídica do
princípio do discurso ‘D’), pois, ao empregar a racionalidade comunicativa ao direito,
Habermas acaba construindo uma teoria discursiva do direito, trazendo também uma
possível saída do ceticismo no campo da filosofia do direito.
Ora, o princípio da democracia46 tem a missão de se prender a um procedimento de
normatização legítima do direito. Tal princípio traz a possibilidade de se decidir
racionalmente às questões práticas em geral, ou seja, diz respeito à legitimação daquelas

jurídicas interpretadas apenas por uma instância autorizada a fazê-lo e da qual sua interpretação é vinculante;
e (5) as normas positivas do direito moderno são caracterizadas por serem instaladas por uma instância
legítima ordenado da força necessária. Resumindo, Habermas só entende o Direito em seu nível pós-
convencional, ou seja, no direito moderno, na qual “as estruturas da consciência moderna materializam-se no
sistema jurídico” (MOREIRA, 2004, p. 36).
46
“Ele [o princípio da democracia] significa, com efeito, que somente podem pretender validade legítima as
leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito num processo jurídico de
normatização discursiva. O princípio da democracia explica, noutros termos, o sentido performativo da
prática de autodeterminação de membros do direito que se reconhecem mutuamente como membros iguais e
livres de uma associação estabelecida livremente” (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 145).

173
normas de ação que surgem sob a forma do direito. O princípio da democracia nada diz
sobre e se é possível tratar discursivamente questões prático-morais, pois trata apenas das
condições abstratas de institucionalização da formação racional da opinião e da vontade,
garantindo a todos igual participação no processo de normatização jurídica, ao se utilizar
de um determinado sistema de direitos (WERLE, 2009, p. 279).
Assim, será através do princípio do discurso, transformado em princípio da
democracia, que Habermas fundamentará o Direito, estabilizando a tensão entre autonomia
privada e pública que se dá através do procedimento legislativo. Deste modo, a
apresentação da co-originariedade da autonomia privada e pública só aparece quando se
decifra o modelo de autolegislação proveniente da teoria do discurso, que ensina os
destinatários serem ao mesmo tempo os autores de seus direitos. Portanto, o Direito é
criação e reflexo da produção discursiva da opinião e da vontade dos cidadãos. Aqui, a
soberania do povo assume figura jurídica, pois a substância dos direitos humanos introduz-
se “nas condições formais para a institucionalização jurídica desse tipo de formação
discursiva da opinião e da vontade, na qual a soberania do povo assume figura jurídica”
(MOREIRA, 2004, p. 139).

A INCLUSÃO DO OUTRO NAS SOCIEDADES COMPLEXAS

Então, se a soberania do povo é quem vai garantir a legitimação do direito


moderno, através da democracia, como garantir a inclusão de todos os cidadãos nas atuais
sociedades pluralistas? Ora, Habermas defende o conteúdo racional de uma moral que tem
por base o respeito mútuo e uma responsabilidade pela solidariedade recíproca. É claro que
a modernidade fica desconfiada de tal universalidade que assimila e iguala todos os
indivíduos, e que não compreende o sentido dessa moral, fazendo com que desapareça a
relação existente entre a alteridade e a diferença, esta que continua tendo a sua validade por
um universalismo bem compreendido. Habermas formula, na Teoria da Ação
Comunicativa, os princípios básicos dessa moral, de um jeito que os mesmos formassem
boas condições de vida que quebrassem a alternativa entre “comunidade” e “sociedade”,
visto por Habermas como se fosse algo falso.
O livro A inclusão do outro do autor Jürgen Habermas surgiu depois da publicação
do livro Direito e Democracia. O que estes dois livros têm em comum seria “o interesse
pela questão das consequências que hoje resultam do conteúdo universalista dos princípios

174
republicanos” (HABERMAS, 2002, p. 7), mais especificamente: para as sociedades
complexas, no qual os contrastes multiculturais se tornam questões urgentes; para os
estados nacionais, que se ligam em unidades supranacionais; “e para os cidadãos de uma
sociedade mundial que foram reunidos numa involuntária comunidade de risco, sem ter
sido consultados” (HABERMAS, 2002, p. 7).
Conforme Velasco (2003, p. 123-4), Habermas pretende estabelecer uma distinção
entre os elementos que configuram a cultura política e as diversas formas de vida que
indivíduos livremente podem abraçar. Trata-se aqui de evitar que a definição de identidade
coletiva acabe sendo utilizado como mecanismo de exclusão do diferente e se torne, como
acontece com certa facilidade, uma vontade consciente de homogeneidade que provoque a
marginalização interna de grupos sociais inteiros. Daí sairia a sua convicção de que, para
resolver esse problema, as atuações políticas próprias de uma democracia devem se dirigir
para a “inclusão do outro”, de certa maneira que, a partir da independência da procedência
cultural de cada um, as vias de acesso da comunidade política sempre permaneçam abertas.
Mas, para que isso ocorra, é indispensável que as instituições públicas sejam desprovidas,
em seu maior grau possíveis, de conotações morais densas e adotem características
procedimentais do direito moderno que garantam a neutralidade. Leva-se isso em
consideração, pois, em um Estado constitucional democrático, a maioria não pode
prescrever para as minorias a própria forma de vida cultural, na medida em que divirja da
cultura política comum do país, como sendo a cultura dominante. Sendo assim, somente
através das próprias instituições dessa forma de Estado, seria possível estabelecer, de uma
maneira confiante, relações de respeito mútuo entre sujeitos com diferentes bagagens
socioculturais.
Tal respeito mútuo (para todos e cada um) não é apenas para aqueles que são
semelhantes, mas também à pessoa do outro ou dos outros em suas diferenças (alteridade).
A responsabilidade pela solidariedade com o outro, como sendo uma pessoa igual a nós, se
refere a um “nós” flexível em uma comunidade que se conserva firmemente a tudo o que é
material e possui uma amplitude constante de suas fáceis fronteiras. A constituição dessa
comunidade moral é feita basicamente da ideia negativa do fim do preconceito e do
sofrimento, além da inclusão de todos os marginalizados em uma relação de respeito
recíproco. Porém, tal comunidade não pode ser considerada um coletivo que impõe a
obrigação de que todos os indivíduos afirmem a índole própria de cada um. Habermas
apresenta o conceito de inclusão não como um aprisionamento dentro de si mesmo e um

175
bloqueio frente ao alheio, mas sim, a “inclusão do outro” diz respeito ao significado de que
as fronteiras da comunidade estão abertas a todos os indivíduos, principalmente para os
indivíduos que são diferentes aos olhos dos outros e desejam continuar sendo diferentes
(HABERMAS, 2002, p. 7-8).
Ora, a Ética do discurso, conforme Habermas (2002, p. 48), ordena argumentações
de autoentendimento e argumentações de fundamentação normativa (ou de aplicação).
Porém, a mesma não reduz a moral a um tratamento confuso, já que pretende dar mérito à
justiça e à solidariedade. O acordo alcançado através do discurso é dependente do “sim” ou
do “não” de todos os participantes, além de ser preciso superar o egocentrismo, pois uma
práxis argumentativa pretende se regular pelo convencimento recíproco. Assim, a partir do
momento em que os discursos racionais obtêm novamente o seu fundamento, através do
ponto de vista moral, a Ética do Discurso irá forçar a separação intelectualista entre juízo
moral e ação.

O discernimento a que se chega discursivamente não assegura nenhuma


transferência para a ação. Com certeza os juízos morais nos dizem o que
devemos fazer; e boas razões afetam nossa vontade. Isso se revela na má
consciência que nos “aflige” quando agimos contra nosso discernimento. Mas o
problema da fraqueza da vontade também revela que o discernimento moral se
deve à pouca força das razões epistêmicas, sem constituir ele mesmo um motivo
racional. Quando sabemos o que é moralmente correto fazer, até sabemos que
não há qualquer boa razão – epistêmica – para agir de outra maneira. Isso não
impede, porém, que outros motivos acabem sendo mais fortes. (HABERMAS,
2002, p. 48-9).

Aqui surge a necessidade de se complementar a moral com um Direito coercitivo e


positivo. Segundo Habermas (2002, p. 49), com a apresentação da diferença entre o dever e
o que é almejado pela ética, o dever consegue a sua validade e se torna normatividade.
Compreende-se por “validade” que as normas morais obterão o assentimento de todos os
participantes do discurso prático, que testarão em conjunto a possibilidade da respectiva
práxis ser de interesse mútuo. No momento em que se encontra esse assentimento, fica em
destaque a razão falível dos sujeitos em conselho, já que são convencidos reciprocamente
de que encontraram o devido reconhecimento da norma, e a liberdade dos indivíduos que
legislam, pois são compreendidos ao mesmo tempo como autores e destinatários das
normas, reconhecendo assim tanto a falha do espírito humano quanto à capacidade de
construção que o mesmo projeta.
O que foge à intenção e se obriga a todos não é uma ordem moral suposta, na qual a
sua existência não dependeria das descrições, mas sim o ponto de vista moral. Não é o
mundo social em si que fugiu, mas as estruturas e procedimentos de processo de

176
argumentação que se faz necessário tanto à criação quanto à descoberta das normas de uma
convivência controlada pela retidão. “O sentido construtivista de uma formação de juízos
morais concebida segundo o modelo da autolegislação não se pode perder, mas ele
tampouco pode destruir o sentido epistêmico das fundamentações morais" (HABERMAS,
2002, p. 52).

A RELAÇÃO ENTRE A ÉTICA DO DISCURSO E A INCLUSÃO DO


OUTRO

O teor de uma moral do respeito sem distinções e da responsabilidade solidária por


cada um é justificada por Habermas (2002, p. 53) através da Ética do discurso, sendo
somente alcançada por meio da reconstrução racional dos conteúdos de uma tradição moral
religiosa. Caso o princípio do discurso ‘D’ conservasse sua ligação com essa tradição da
origem, tal genealogia iria se intercalar ao objetivo de justificar o teor cognitivo dos juízos
morais em toda a sua totalidade. Portanto, é preciso fundamentar também o próprio ponto
de vista moral, através da teoria moral.
O princípio do discurso ‘D’ é a saída da coação, que se faz presente nos
participantes de certas comunidades morais quando os mesmos, transferidos para as
sociedades complexas, são atraídos no dilema de continuar discursando sobre juízos e
posicionamentos morais portando seu tipo de razão, tal como eles faziam antes. As
pessoas, em nível global ou em uma comunidade local, participam de conflitos de conduta
que elas mesmas, ainda que seu ethos não tenha mais valor, compreendem como conflitos
morais, e que são solucionados partindo de alguma fundamentação. Será visualizado agora
um percurso estilizado de maneira ideal e tipificada, demonstrando como tal moral
ocorreria sob condições reais (HABERMAS, 2002, p. 53).
Habermas (2002, p. 53) parte da ideia de que os participantes pretendam resolver
seus conflitos sem a utilização de violência ou acertos ao acaso, por meio de um acordo
recíproco. Seria proposto, agora, determinar uma auto-compreensão ética que fosse aceita
universalmente, porém, encontraria seu fracasso devido às condições de uma sociedade
complexa. Apesar de suas fortes convicções valorativas serem certificadas através da
crítica preservada na prática, os participantes percebem que existem concepções diferentes
sobre o que seja o bem. Mas ainda será suposto que tais participantes ainda queiram chegar
a um acordo recíproco, sem querer substituir o convívio moral que já é ameaçado por
acordos entre partes cujas opiniões diferem.

177
O indivíduo somente adquire a sua individualidade quando se integra a uma
sociedade, resultando na aprovação de uma moral válida tanto para o indivíduo
irrepresentável quanto para quem faz parte da sociedade, ligando a justiça com a
solidariedade, o que faz com que sejam tratados com igualdade os desiguais, esses que são
conscientes de um pertencimento em comum na sociedade. Agora, o aspecto conforme o
qual todas as pessoas são iguais não encontra a sua validade a partir de outro aspecto,
como se os mesmos fossem absolutamente diferentes de todos os outros. “O respeito
reciprocamente equânime por cada um, exigido pelo universalismo sensível a
diversificações, é do tipo de uma inclusão não-niveladora e não-apreensória do outro em
sua alteridade ” (HABERMAS, 2002, p. 55).
Surge, assim, a necessidade de se justificar a passagem para uma moral pós-
convencional. As obrigações que têm por base a ação comunicativa e se ajustam pela
tradição não vão, através delas mesmas, para fora da comunidade. Mas, para Habermas
(2002, p. 55), a forma reflexiva da ação comunicativa é diferente, já que argumentações
apontam por si só para além de toda individualidade. Ora, isso é possível levando em
consideração que nos pressupostos programáticos de discursos racionais, o teor normativo
de suposições é ampliado a uma comunidade que insere todos, não excluindo ninguém que
possua a capacidade de dar contribuições relevantes.
Verificando a fragilidade dessa base, percebe-se que o conteúdo neutro de sua
subsistência comum representa ao mesmo tempo uma chance, tendo em vista o
constrangimento que surge pelo fato do pluralismo de cosmovisões. É necessário achar
uma fundamentação conteudística-tradicional de um comum acordo normativo básico, se o
mesmo tipo de comunicação que está de acordo com as reflexões práticas comuns
resultasse em certo aspecto na qual haveria a possibilidade de fundamentar normas morais
e na qual haveria a necessidade de ser convincente para todos os participantes. A carência
desse bem universal encontraria sua superação de forma permanente apenas através do
caráter próprio da práxis de reuniões em conselho. Habermas dá três passos para se
alcançar uma fundamentação do ponto de vista moral, através da teoria moral
(HABERMAS, 2002, p. 55-6).
Primeiro passo: partindo da ideia que o único expediente possível para o ponto de
vista do julgamento imparcial de questões morais seria a práxis de reuniões em conselho,
aparece a necessidade de se alterar a referência a conteúdos morais pela referência que se
auto envia à forma dessa práxis. Será através da compreensão dessa situação que o

178
princípio do discurso ‘D’ aparece. Assim, o acordo conquistado pela base das condições
discursivas é compreendido por um comum acordo aprovado por razões epistêmicas, ou
seja, não se compreende esse acordo como um acerto ocasional motivado através de uma
visão egocêntrica racional. Porém, ‘D’ abre um caminho no qual há todo o tipo de
argumentação que tem por objetivo o comum acordo discursivo. “Com ‘D’ não se supõe de
saída que uma fundamentação de normas morais seja sequer possível fora do contexto de
um acordo substancial” (HABERMAS, 2002, p. 56).
Segundo passo: quando se introduz ‘D’ de forma condicional, ele acaba por
apresentar a própria condição a ser seguida por normas válidas, desde que as mesmas
encontrem a possibilidade de serem fundamentadas. Deve-se, então, explicar agora o
conceito de norma moral. Os participantes de um discurso sabem intuitivamente como
tomar parte em argumentações, e apesar de terem familiaridade apenas com a
fundamentação de sentenças assertivas, e não tomarem conhecimento de se as
reivindicações de validação moral são possíveis de serem julgadas de modo igual, estão
dispostos a pensar o que seria fundamentar normas. Porém, para se utilizar ‘D’, é
necessária uma regra para a argumentação que aponte como pode se fundamentar as
normas morais (HABERMAS, 2002, p. 56).
Por fim, Habermas (2002, p. 57) diz que o terceiro passo seria a de que os próprios
participantes se dão por satisfeitos com tal regra de argumentação, desde que a mesma se
mostre útil e não os levem a resultados que não sejam obtidas através da intuição. Há aqui
a necessidade de mostrar que normas, possuidoras da capacidade de conquistar
concordância geral (Habermas cita o exemplo dos Direitos Humanos), estão marcadas por
uma práxis fundadora orientada assim mesma. Então, falta apenas um último passo
fundador, conforme o ponto de vista do teórico da moral.
A linguagem é encontrada em todas as culturas e sociedades, e não há nenhum
outro tipo de solução de problemas igual a esse. Sendo assim, essa difusão universal da
linguagem e a falta de uma outra saída para ela, não seria fácil achar uma contestação à
neutralidade de ‘D’. Porém, a partir da abdução de ‘U’, pode haver, mesmo que de forma
camuflada, uma compreensão prévia etnocêntrica não distribuída por outras culturas,
juntamente com uma concepção do que é bom. Quando a suposição de que um
comprometimento eurocêntrico, que entende uma moral operacionalizada por ‘U’, poderia
perder força caso existisse a possibilidade de tornar permanente a explicação para o ponto
de vista moral, dito de outro modo, caso esse ponto de vista moral tivesse o poder de

179
explicar sobre o que deve ser feito quando o participante se envolve em uma práxis
argumentativa (HABERMAS, 2002, p. 57-8).
Habermas (2002, p. 58) se dá por satisfeito com o seguinte vestígio
fenomenológico: a argumentação acontece através da intenção de um convencimento
mútuo, no que diz respeito à legitimação das reivindicações de validação que os
participantes mostram e defendem a favor deles. Através da prática da argumentação,
começa a se instalar, em cooperação recíproca, uma concorrência por argumentos
melhores, partindo da união dos participantes desde o inicio que se orientam por um
acordo recíproco. Ora, a concorrência, que pode levar a resultados racionalmente aceitáveis
e convincentes, se fundamenta sobre a força de convencimento dos próprios argumentos,
além do que, um argumento bom ou ruim pode ser colocado em discussão. Assim, uma
afirmação, aceita racionalmente, encontra a sua base sobre razões ligadas a certas
características do mesmo processo de argumentação (pressuposições pragmáticas) presente
na Ética do Discurso.

Se cada um que se envolver em uma argumentação tiver que fazer ao menos


essas pressuposições pragmáticas, então nos discursos práticos, (a) por causa do
caráter público e inserção de todos os envolvidos e (b) por causa da igualdade de
direitos de comunicação para todos os participantes, só poderão ter espaço as
razões que levem em conta, de forma equânime, os interesses e as orientações de
valor de cada um; e por causa da ausência de (c) engano e (d) coação, só poderão
ser decisivas as razões para o assentimento de uma norma discutível. Por fim,
sob a premissa de uma orientação segundo o acordo mútuo, presumida
reciprocamente em todos os envolvidos, essa aceitação “não coativa” só pode
dar-se “em comum” (HABERMAS, 2002, p. 58-9).

Conforme a Ética do Discurso, o núcleo de fundamentação do ponto de vista moral


reside no fato de que, apenas por meio de uma regra argumentativa, há a possibilidade de
mudar o teor normativo desse jogo de linguagem epistêmico para a escolha de normas
acionais, propostas em discursos práticos juntamente com a reclamação de validade da
moral. Por si mesmo, não há como a obrigação moral ser dependente de, por exemplo, uma
imposição transcendental de pressupostos argumentativos que não se possam evitar, já que
ela também se une às normas inseridas no discurso prático e que traz à tona as razões
agrupadas nas reuniões em conselho. Isso é realçado, tendo em consideração que ‘U’ é
aceito através do teor normativo de pressupostos argumentativos unidos a um conceito de
fundamentação de normas (HABERMAS, 2002, p. 59).
Tal fundamentação divide, conforme Habermas (2002, p. 59-60), o peso dos
esforços para ser aceito juntamente com um questionamento genealógico disfarçado,
através de suposições caras à teoria da modernidade. Confirma-se, através da reflexão, que

180
‘U’ traz uma substância normativa excedente em sociedades complexas, tendo em vista
que se mostram a partir da forma de um resíduo de si próprio poupado de argumentação, e
através da forma da ação que segue o caminho do acordo recíproco.
Sobra, então, a questão da aplicação da norma, já que o ponto de vista moral é
validado em sua plenitude apenas através do princípio da adequação e levando em
consideração os juízos morais singulares. Concluído que discursos de fundamentação e
aplicação são transmitidos com sucesso, é mostrado que questões práticas são divergentes,
partindo do ponto de vista moral, já que questões morais referentes ao convívio correto são
divididos entre questões pragmáticas da escolha racional e questões éticas do bem viver.
Fica evidente também, retrospectivamente falando, que ‘U’ funciona a partir de um
princípio discursivo mais extenso, de inicio com o objetivo de um questionamento de
ordem moral. ‘D’ pode ser trabalhado, igualmente, como favorecedor de outras questões,
como, por exemplo, para reuniões em conselho de um legislador político como também
para discursos jurídicos (HABERMAS, 2002, p. 60).

REFERÊNCIAS

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Habermas. ethic@, Florianópolis, v.5, n.1, p. 103-120, Jun. 2006.

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181
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Delamar José Volpato (Coord.). O pensamento vivo de Habermas: uma visão
interdisciplinar. Florianópolis: NEFIPO, 2009.

182
O HOMEM COMO FUNCIONÁRIO E FUNDO-DE-RESERVA:
TÉCNICA MODERNA EM HEIDEGGER E FLUSSER

Maurício Fernando Pitta


Universidade Estadual de Londrina
mauriciopitta@hotmail.com

RESUMO

No presente trabalho, serão explicitadas as concepções sobre a técnica moderna, por um


lado, do filósofo alemão Martin Heidegger, sobretudo a partir de sua conferência “A
questão da técnica”, e, por outro, do filósofo tcheco Vilém Flusser, especialmente com
base em seu ensaio “Filosofia da caixa-preta: por uma filosofia da fotografia”, partindo-se
da hipótese de que, dada certa contemporaneidade entre esses dois autores e seus campos
de interesse e produções filosóficas afins, como a fenomenologia, torna-se possível
sintetizá-los em um diálogo e um reforço argumentativo mútuo com relação à tecnologia,
ao mundo contemporâneo e ao ser humano. No decorrer do trabalho, tal diálogo é
explorado a fim de se compreender o modo de ser do homem contemporâneo em sua
relação com o mundo em meio a tal contexto tecnológico. Para tanto, primeiramente fez-se
necessária devida explanação dos pressupostos heideggerianos a partir de seus problemas
centrais, como o esquecimento do ser e seu decorrente abandono na história da metafísica,
e de seus principais conceitos, como armação e fundo-de-reserva, a fim de evidenciar a
tese heideggeriana de que o ente humano corre o perigo de perder sua essência, enquanto
aquele que pode desvelar o ser de maneira originária, e de transformar-se em mero recurso.
Posteriormente, o mesmo deve ser feito com relação aos pressupostos da maturidade
flusseriana, partindo de problemas como a idolatria, a textolatria e a programação, assim
como com relação a seus conceitos principais, como pós-história, tecno-imagem, aparelho,
funcionário etc., para demonstrar a tese de que o homem, programado pelo código
unidimensional, não pode ser mais nada senão funcionário de aparelhos. Como objetivo
final, pretende-se evidenciar as devidas concordâncias e disparidades entre as teses desses
dois pensadores quanto à relação entre o homem e seu mundo no contexto da técnica
moderna, com o fim de comprovar a hipótese de reforço mútuo entre seus diagnósticos e
prognósticos sobre a situação contemporânea do ser humano.
Palavras-chave: técnica, Martin Heidegger, Vilém Flusser.

INTRODUÇÃO

183
Passada a primeira década do século XXI, a colocação de um questionamento
apropriado sobre a técnica moderna47 e sobre o lugar do homem frente a ela permanece
relevante. Fenômenos como a manipulação genética ou o aparelhamento do corpo (cf.
RÜDIGER, 2006; SLOTERDIJK, 2011) reforçam sua emergência, hoje, assim como
fizeram o Holocausto e o perigo atômico nos idos do século passado (cf. SAFRANSKI,
2005b, p. 460). Diante desse quadro, faz-se necessário reforçar o posicionamento do
devido problema: de que maneira o homem contemporâneo se relaciona com seu mundo
frente à vigência da tecnologia? Disso, faz-se necessário também questionar se haveria
escapatória viável frente ao domínio da técnica moderna para o ser humano ou se estaria
ele fadado a manter-se sempre no horizonte dela?
Martin Heidegger, em sua conferência intitulada A questão da técnica 48 ([1953]
2000a), apresentou uma concepção peculiar acerca da técnica moderna que se desviou das
teorias apocalípticas ou apologistas, comumente aceitas por parte de seus contemporâneos,
com relação ao tema. Por essa razão, sua conferência será abordada no segundo capítulo
deste trabalho, iluminando causas da permanência da técnica até os dias de hoje e de sua
transformação. O filósofo tcheco Vilém Flusser, por outro lado, com sua Filosofia da
caixa-preta: por uma filosofia da fotografia ([1983a] 2002a) e sua teoria fenomenológica
dos media, vem ao encontro no terceiro capítulo para complementar os diagnósticos do
filósofo alemão sobre a contemporaneidade tecnológica, especialmente considerando-se a
influência de Heidegger nas primeiras obras flusserianas (cf. GULDIN, 2008b). Flusser, por
sua vez, questiona explicitamente a liberdade do homem nesse contexto tecnológico.
Pretendemos, neste trabalho, fazer a comparação entre ambas as concepções de
técnica com a pretensão de que as hipóteses de ambos os filósofos ganhem consistência
dialógica frente a situação do homem em seu mundo. Partir-se-á, pois, de sucinto
esclarecimento das duas concepções para que se aponte, no quarto capítulo, possível
intercâmbio entre elas, em resposta aos problemas levantados.

47
O termo “técnica” será usado doravante em sentido amplo, e possuirá como sinônimo o termo “tecnologia”
apenas quando em referência à técnica moderna ou contemporânea, i.e., à técnica enquanto ciência aplicada
(cf. ELDRED, 2007), abrigando-se assim a ambiguidade apontada por Eldred do termo alemão “Technik”,
usado por Heidegger (2002b).
48
As traduções em português (2002b) e em inglês (1977) do ensaio “Die Frage nach der Technik”
(HEIDEGGER, [1953] 2000a, pp. 7-36) serão constantemente cotejadas aqui à edição alemã constada na
bibliografia; para fins de citação, será utilizada a paginação dessa última apenas. Os termos, contudo, foram
postos em sua maioria aqui baseados nas traduções de Emmanuel Carneiro Leão (2002b), Marco Antônio
Casanova (2012a), Francisco Rüdiger (2006) e William Lovitt (1977).

184
HEIDEGGER E A PERGUNTA PELA ESSÊNCIA DA TÉCNICA

A preocupação de Heidegger quanto ao domínio da técnica moderna difere quando


comparada às demais, que constituem o que o próprio autor chamou de “filosofias da
técnica”, por pressuporem-na sem sua devida problematização (HEIDEGGER apud
RÜDIGER, op. cit., p. 25). A divergência, contudo, só é devidamente posta à luz quando
clarificada a problemática geral que motivou e orientou todas as reflexões heideggerianas a
partir de Ser e Tempo ([1927] 2012c), a saber, do sentido do ser. É essa questão que, nas
reflexões maduras de Heidegger, permite concentrar as atenções menos ao domínio do que
é técnico do que à essência mesma da técnica (id., op. cit., p. 9).
Tal concentração só é possível a partir da diferença ontológica posta entre ser e
ente. Ser é o que “determina o ente como ente, aquilo em relação a que o ente, como quer
que ele seja discutido, já é entendido cada vez.” (id. op. cit., p. 43). Portanto, os dois
conceitos não podem ser confundidos. Essa distinção pode parecer banal, mas justifica-se
quando contraposta ao pano de fundo da tradição da metafísica ocidental. Heidegger
apresenta a história da metafísica como história do esquecimento da pergunta pelo sentido
do ser (Ibid., p. 85), posto que sempre, desde os gregos, o ser foi tido como mero ente entre
outros entes, reduzindo-se assim a necessidade de pôr-se a pergunta sobre seu sentido
(DUBOIS, 2004, p. 15). Em Ser e tempo, Heidegger defende que, para se chegar
propriamente à questão, deve-se fazer uma ontologia fundamental que abarque uma
desconstrução mesma da história da metafísica, a fim de se compreender o porquê do
esquecimento do ser e perceber as mudanças em seu sentido no decorrer de sua história
sem que haja interferência dos preconceitos sedimentados em anos de tradição filosófica
(CASANOVA, op. cit., p. 79).
É essa lida histórica 49 com a metafísica que permite a Heidegger conceber a
contemporaneidade técnica à luz não de seus entes—máquinas, aparelhos, gadgets—mas,
sim, do ser que os determina. Devem-se abrir parênteses para reconhecer a existência de
diferenças entre o foco teórico de Heidegger em Ser e tempo e na obra a partir dos anos
3050. No entanto, parte-se aqui da premissa de que a lida histórica com o ser, seja por

49
Devem ser abertos parênteses para entender aqui a compreensão do termo “história” por Heidegger. A
“história” (Geschichte, cf. INWOOD, 1999, p. 93) a que ele se refere, posteriormente remetida à história do
ser (Seinsgeschichte, cf. ibid., p. 95) nos escritos posteriores à década de 30, antecede todo tipo de história
como estudo sistemático de eventos passados (Historie, cf. ibid., p. 93), pois essa já é regida, de início, pela
determinação do ser daquela.
50
“Em Ser e tempo há evidentemente um primado da ekstase futuro. [...] No período posterior à viragem, por
outro lado, como o ser-aí [Dasein] humano depende das interpelações da história, o primado passa a recair

185
intermédio de um ente privilegiado ou pela historicidade do ser ela mesma, permanece no
horizonte heideggeriano durante toda a sua obra. Concentramo-nos, neste trabalho,
sobretudo na obra de Heidegger posterior aos anos 30, onde se encontram expressas as
preocupações principais sobre o problema da técnica.
A época da técnica moderna, isto é, a nossa era, pode ser entendida como momento
derradeiro da história da metafísica, momento em que o esquecimento do ser se radicaliza;
momento de abandono do ser. Essa expressão define a essência do niilismo contemporâneo
conforme entendida por Heidegger, designando “o surgimento de uma determinada
abertura do ente na totalidade (um mundo), na qual o ser abandona tão radicalmente o ente
que esse parece vigorar como a única instância real.” (CASANOVA, 2012b, p. 191) Essa
supressão de tudo ao plano ôntico das “configurações fugazes de duração relativa no devir”
(id., op. cit., p. 210) coaduna-se à interpretação heideggeriana da vontade de poder (Wille
zur Macht) nietzscheana, tida como consumação da metafísica da subjetividade moderna
(RÜDIGER, op. cit., p. 65): o homem, entendido como subjectum, centro de síntese
representativa de todo o real, compreende o mundo como totalidade de objetos calculáveis,
em conformação com suas vivências e à disposição de seu domínio (HEIDEGGER, 2002c).
A compreensão objetificada dos entes em geral abre precedentes para a vigência do
que Heidegger chamou de armação (Gestell; id., op. cit., p. 20), maneira em que ele
compreende e conceitua a essência historial da técnica moderna (RÜDIGER, op. cit., p. 45).
Opõe-se aqui a técnica moderna 51 à técnica clássica 52 , a τέχνη grega, que pauta-se no
desvelamento 53 do ente como ποίησις, um pro-duzir ou um trazer-a-tona (Her-von-
bringen) do velado para o desvelado que, no entanto, deixa-viger (An-wesen) o real, isto é,
deixa-o se presentar sem tentar tematizá-lo e conformá-lo, como faz o homem sob vigência
do ser da técnica moderna; esse, no caso, ao invés de deixar o ente ser, provoca-o
(Herausfordern) a desvelar-se como mero fundo-de-reserva (Bestand), ou seja, mero
recurso inesgotável, sempre à disposição. Armação é, portanto, o modo de ser dos entes na
contemporaneidade, apelo originário do ser que reúne e dispõe (bestellte), no sentido de

sobre o que foi e continua sendo, sobre aquilo no passado que realmente foi, para o poder inicial das
ontologias históricas.” (CASANOVA, op. cit., p. 169) O foco do segundo Heidegger é evidentemente
histórico e voltado à historicidade mesma do Ser e a apropriação (Ereignis) sobre o Dasein, não mais à
temporalidade do Dasein como condição de desvelamento do ser (cf. ibid.).
51
No inglês, technology (cf. HEIDEGGER, 1977; ELDRED, op. cit.).
52
O termo “clássico” aqui será utilizado apenas de modo didático, em oposição à técnica moderna;
Heidegger, não obstante, não usa esse termo em seus textos e conferências.
53
O termo “desvelamento” (Entbergung; HEIDEGGER, op. cit., p. 13) refere-se tanto ao modo de aparição
do ente na totalidade quanto ao acontecimento da verdade do ser, isso é, de sua determinação sobre o ente,
entendida a partir da αλήθεια grega (ibid.).

186
“ordenar”54, o homem a desvelar o real como fundo-de-reserva (HEIDEGGER, op. cit., p.
23).
Heidegger diz que tal entrega de si ao desvelamento provocador é o destino de ser
(Geschick) a que está submetido o homem contemporâneo (ibid., p. 25). Isso significa dizer
não necessariamente que o Dasein se depara com uma espécie de fatalismo inexorável
(ibid.), pois a escuta (Hörender) ao destino, no sentido de “dar-se conta”, segundo o autor,
implica em liberdade (Freiheit) 55 . “Abrindo-nos expressamente à essência da técnica,
encontramo-nos, de súbito, tomados por um apelo de libertação” (id., op. cit., p. 26), em
que se abre caminho para conceber no ente uma perspectiva de desvelamento mais
originária, como no caso da poética, ποίησις, espaço “fundamentalmente estranho” (ibid.,
p. 36) à técnica moderna.
No entanto, do destino provocador, diz Heidegger, também emana um perigo: a
perda da essência do homem enquanto aquele que pode desvelar o ente como um deixar-
viger (ibid., p. 29). “Onde [a armação] domina, afasta-se qualquer outra possibilidade de
desvelamento.” (ibid., p. 28) O próprio homem, enquanto ente humano que só pode
desvelar o real de forma provocadora, também termina por se conceber enquanto fundo-de-
reserva (CASANOVA, op. cit., p. 208). O ente humano se vê malfadado à
“unidimensionalidade”, ao “agir sempre igual” em função de uma subjetividade autônoma
que o transcende. “[...] o homem não pode senão se colocar na posição aberta pela
composição, ou seja, a posição daquele que requisita.” (ibid.) Com isso, a pretensão do
homem moderno, sujeito, de dominar a natureza se inverte para a subjugação do humano,
objetificado, à lógica calculadora da técnica moderna (RÜDIGER, op. cit., p. 45).

FLUSSER E A ERA DAS IMAGENS TÉCNICAS

A teoria da comunicação de Flusser, dada à influência de Wittgenstein, Husserl e


Heidegger em sua obra (BATLICKOVA, 2008a, p. 174), só pode ser entendida a luz de
pressupostos filosóficos. Comunicação, em Flusser, tem caráter existencial para o homem:
imortalidade (FLUSSER, [1985] 2008c). “A comunicação [para Flusser] é um ato coletivo,
dialógico, intencional e artificial de liberdade, visando a criar códigos que nos ajudem a

54
Sugestão de tradução utilizada por Francisco Rüdiger (op. cit.).
55
No alemão, muitas vezes é usado “das Freie”—“o livre”, no sentido de “o aberto” ou “o desvelado” (cf.
LOVITT in HEIDEGGER, op. cit., p. 25, nota 23); liberdade, em Heidegger, relaciona-se menos ao âmbito
moral e mais à abertura do ente na totalidade. ou seja, à verdade do ser.

187
esquecer da morte inevitável e a falta de sentido de nossa existência absurda.” (GULDIN,
op. cit., p. 79) A “existência absurda” a qual o filósofo tcheco se refere pode ser
compreendida apenas através de uma noção sugerida por ele do universo como um sistema
termicamente fechado, regido pela noção de entropia, i.e., de que tudo tende a desinformar-
se. Essa é uma tendência rumo ao provável, rumo ao fim derradeiro da “morte térmica”
(FLUSSER, op. cit., p. 32). O homem é o único ente que pode negar a morte e, portanto, a
entropia mesma, tendo em vista que ele é o único ente que tem capacidade de
comunicação, no sentido estrito de criação e acúmulo de informação (GULDIN, op. cit., p.
83). Informação é um processo “estatisticamente improvável” (FLUSSER apud GULDIN,
op. cit., p. 84), pois vai contra a tendência desinformativa do todo—por isso, a
comunicação é afirmação da liberdade humana e é aquilo que dá a ela sentido (ibid., p. 86).
Os pressupostos teóricos de Flusser acerca da comunicação humana vão ao
encontro, finalmente, de sua concepção de media em um sentido particular, diverso do
pretendido por teorias da comunicação como a de Marshall McLuhan (ibid., p. 97).
Medium, em Flusser equivale, sobretudo em seus escritos tardios, ao conceito de
linguagem em seu sentido lato—de código. “Códigos são definidos como sistema de
símbolos” (ibid., p. 98) que operam na comunicação humana sempre como substituintes de
fenômenos ou de outros códigos. É o código que intermedeia a relação entre o homem e
seu mundo. O homem enquanto homem sempre compreende o mundo, segundo Flusser,
por códigos. Eles, portanto, tornam-se seu horizonte e modificam seu “estar-no-mundo”
(FLUSSER, op. cit., p. 25). O filósofo tcheco faz um histórico dos códigos, também
chamado de “escalada de abstração” (ibid., p. 29), a fim de se chegar à derradeira imagem
técnica, produto do código primordial da contemporaneidade. As imagens tradicionais—
bidimensionais, míticas e circulares—e os textos—unidimensionais, conceituais, causais e
lineares—por outro lado, são códigos referentes aos períodos da pré-história e da história,
respectivamente (id., op. cit., p. 10); o primeiro representa e substitui o mundo enquanto
circunstância para ajudar o ente humano a se guiar nele; o segundo, as imagens, como
forma de escapar à “alucinação” que elas causam, isto é, à “idolatria” (ibid., p. 9). Toda a
consciência histórica que surge doravante, desde as filosofias pré-socráticas até as teorias
científicas da atualidade, provém dessa tentativa de explicar o mundo de forma causal, por
“linhas” (ibid., p. 10). No entanto, com a chegada da modernidade e a abstração cada vez
mais intensa dos textos, surge um novo nível alucinatório: a “textolatria” (ibid., p. 11),
donde há emergência de um novo tipo de código, provindo da desconstrução de linhas,

188
como, por exemplo, teorias, em pontos nulodimensionais, como, por exemplo, proposições
calculáveis da lógica, formando assim uma consciência pós-histórica (id., op. cit., p. 18,
27).
A nulodimensionalidade do novo código implica em que o mundo, agora calculável
e computável, engendra-se no absurdo abismo do “nada” entrópico, pois é um mundo “no
qual todas as coisas surgem por acidente.” (ibid., p. 20) Para o homem, que só vê sentido
na comunicação, isto é, na neguentropia (GULDIN, op. cit., p. 83), torna-se necessário
concretizar o nada do código nulodimensional, cume da abstração (FLUSSER, op. cit., p.
28).
Essa concretização é feita pelas tecno-imagens, sucessoras do texto em sua tentativa
de superar a “textolatria”. A definição de tecno-imagem é de “imagem produzida por
aparelhos” (id., op. cit., p. 12); aparelhos são, em síntese, “produtos da técnica” (ibid.), que
por sua vez—e eis a definição flusseriana de técnica—é “texto científico aplicado” (ibid.).
Aparelho, em Flusser, tem sentido amplo e conceitual: pode significar tanto o aparato
técnico, como uma câmera fotográfica, quanto um gigantesco complexo administrativo
(ibid., p. 67). O aparelho é condição de possibilidade de concretização dos códigos
nulodimensionais, i.e., das diversas teorias científicas complexas, em imagens (id., op. cit.,
pp. 28-29). Todo aparelho é “caixa preta”56, pois esconde seu complexo funcionamento
interno, produto de tais teorias complexas; por isso, ele dá a impressão àquele que o utiliza
de que se trata de mero instrumento do qual se tem total liberdade quando, no entanto, o
aparelho carrega um complexo programa interno (FLUSSER, op. cit., pp. 19-23). Como o
homem que o utiliza compreende o mundo por códigos, sua orientação fica a cargo das
virtualidades inseridas no programa do aparelho (ibid., p. 23); o fato, porém, de que o
aparelho é caixa preta faz com que o seu usuário acredite dominar com plena liberdade seu
funcionamento, sem se dar conta de suas virtualidades (ibid., p. 24).
Flusser frequentemente faz analogia com a fotografia para explicar esse e outros
pontos, pensando-a como forma de imagem técnica. Diz ele: “o universo fotográfico é um
dos meios do aparelho para transformar homens em funcionários, em pedras de seu jogo
absurdo” (id., op. cit., p. 65). O fotógrafo acredita ser livre em meio às virtualidades do
programa assim como o funcionário. O fotógrafo, a propósito, já é funcionário e funciona
apenas em função do aparelho (KRAUSE, 2002b, p. 20). Não apenas o homem, porém,

56
“O termo “caixa-preta” veio da eletrônica, que o usava para designar parte complexa de um circuito
eletrônico omitida intencionalmente no desenho de um circuito maior e substituída por uma caixa (box)
vazia, sobre a qual se escreve apenas o nome do circuito omitido.” (KRAUSE apud COSTA, 2009, p. 52)

189
mas os próprios aparelhos tornam-se funcionários de meta-aparelhos. “O fotógrafo exerce
poder sobre quem vê suas fotografias, [...] o aparelho fotográfico exerce poder sobre o
fotógrafo. [...] E assim ad infinitum.” (FLUSSER, op. cit., p. 27) Acontece que o homem,
agora funcionário, acredita controlar o aparelho e utilizá-lo a seu favor para emancipar-se
do trabalho; no entanto, ele sucumbe ao programa pré-estabelecido do aparelho (KRAUSE,
op. cit., p. 21). “A contradição [...] deveria ser flagrante: a fé do homem no progresso
depende da descrença do homem em si mesmo.” (ibid., p. 20)
Krause, parafraseando o comentador Arlindo Machado, argumenta, enfim, que a
programação, isto é, o acúmulo gerenciado de um número finito de informações, leva à
repetição e à redundância, sendo que ambas implicam em “estereotipia, [...]
homogeneidade e previsibilidade dos resultados”, isto é, “padronização e [...]
impessoalidade” (ibid., p. 22). Sendo o ente humano, na concepção flusseriana, um ente
comunicacional e, portanto, neguentrópico, a condição de previsibilidade do programa
emparelha-se à sua capacidade de causar acidentes programáveis (FLUSSER, op. cit., p.
33), isto é, de transformar informação improvável em desinformação provável. Ao invés de
informarem e comunicarem, os aparelhos acabam por gerar informação redundante e
programável: entrópica. Para Flusser, uma saída possível seria “utilizar os aparelhos contra
seus programas”, isto é, “lutar contra a sua automaticidade” (ibid., p. 34), “jogar contra o
aparelho” (id., op. cit., p. 75), o que implica em um ato de liberdade (ibid.).

UM POSSÍVEL DIÁLOGO HEIDEGGER–FLUSSER SOBRE A SITUAÇÃO


DO HOMEM FRENTE À TÉCNICA

Vale salientar, de início, que tanto Heidegger quanto Flusser se concentram, nos
textos aqui expostos, no tema da técnica moderna entendida como tecnologia, no sentido
de conhecimento científico aplicado (ELDRED, op. cit.), mesmo se ora afastam-se da
ciência para tratar do problema de forma mais fundamental. Contudo, enquanto Heidegger
trata da técnica moderna a partir de seus pressupostos ontológicos sobre o sentido do ser e
sua história, concentrando-se em definir a essência da técnica como um desvelar
provocador do ente na totalidade (HEIDEGGER, op. cit.), Flusser, partindo de uma
abordagem de cunho mais antropológico, se concentra nos media, entendidos como
códigos que intermedeiam a relação entre homem e mundo; mais especificamente, no

190
medium nulodimensional. Ele caracteriza, pois, a tecno-imagem, tal como outros produtos
de aparelhos programados, como a concretização de tal código articulado que culmina, por
fim, na programação do usuário do aparelho—ou melhor, de seu funcionário (FLUSSER,
op. cit.).
Quanto às consequências da técnica moderna para o ente humano, erige-se logo
uma possível concordância. Heidegger, primeiramente, considera, conforme já exposto,
que o homem, imerso no desvelar provocador da armação, revela-se a si mesmo como
mero fundo-de-reserva, tal quais os diversos entes que o cerca; ele se objetifica como ente
calculável e mensurável, sempre como um meio disposto a outro fim que não ele mesmo.
Flusser, tomando uma abordagem argumentativa semelhante, diz que o homem, agora em
função do aparato técnico, torna-se, para usar o termo empregado por Krause, mero
“funcionário fascinado” (KRAUSE, op. cit.), variável do programa do aparelho. Além do
fato de ambos os conceitos, em suas respectivas medidas, derivarem da pretensão moderna
de objetificação do mundo (HEIDEGGER, op. cit.; FLUSSER, op. cit.), parecem também
carregar parentesco suficiente para possibilitar entre si intercâmbio. O funcionário
flusseriano (e.g. o fotógrafo) é um ente humano disposto como fundo-de-reserva do
aparelho (e.g. fotográfico), entendido como outro ente posto-a-ordem de um meta-aparelho
(e.g. indústria fotográfica), e assim por diante ad infinitum (ibid., p. 27). O exemplo
heideggeriano do silvicultor parece ecoar essa ideia de “cadeia funcionarista” flusseriana,
pois, segundo Heidegger (op. cit., pp. 18-19):

O silvicultor [die Forstwart] que, na floresta, mede a lenha abatida e que,


aparentemente, como seu avô, percorre os mesmos caminhos silvestres, está hoje
à disposição da indústria madeireira quer o saiba, quer não. Ele está disposto ao
fornecimento de celulose exigido pela demanda do papel, encomendado pelos
jornais e revistas ilustradas. Estes, por sua vez, dispõem a opinião pública a
consumir as mensagens impressas e a tornar-se disponível à manipulação
disposta de opiniões. 57

Da mesma maneira, o silvicultor à disposição da indústria madeireira pode ser


interpretado como um funcionário em função do aparelho industrial-administrativo que o
pressupõe como variável. Diante desse quadro, propõe-se aqui reforçar que ambas as teses
quanto à posição do homem frente à vigência da tecnologia na contemporaneidade são

57
Tradução, como explicitada na nota 4, adaptada das versões brasileira e inglesa.

191
possíveis, seja do ponto de vista ontológico-historial de Heidegger, como um fundo-de-
reserva, seja da perspectiva antropológica de Flusser, como um funcionário programado.
Vale salientar que ambos, em dado momento, parecem acenar para a possibilidade,
mesmo que remota, de saída à vigência totalitária da técnica ou, em outras palavras, de
salvaguarda à liberdade humana. Cabe esclarecer, no entanto, que, embora ambos usem o
termo “liberdade” em dado momento, seu sentido carrega nuances diferentes para cada um
deles. A liberdade a que se refere Heidegger58 não carrega sentido moral e se restringe a
possibilidades mais originárias de abertura, vedadas pelo desvelar provocador, mas que se
fazem presentes no dar-se conta do destino pelo homem. Para Flusser, por outro lado,
liberdade, atrelada à comunicação humana e à produção de informação, aparece como a
capacidade humana fazer frente à ordem universal entrópica (cf. FLUSSER, op. cit.), que
arrasta tudo para a morte inevitável. No domínio da nulodimensionalidade técnica,
liberdade é tentativa de superar os limites do programa do aparelho porque o próprio
aparelho não faz mais do que ordenar informação improvável, tornando-a provável e,
novamente, entrópica. Jogar contra o aparelho é, pois, ato de liberdade porque implica em
negar a entropia e, assim, reconquistar a humanidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, concluímos pela possibilidade de troca conceitual entre Martin Heidegger
e Vilém Flusser quanto à posição do homem frente ao mundo no domínio da técnica
moderna. Ambas as concepções acabam por oferecer imagem semelhante do homem
contemporâneo que culminam, de uma maneira ou de outra, na demanda por uma “crítica
do funcionalismo”, termo esse utilizado por Flusser (op. cit., p. 73), como busca da
liberdade humana em um mundo já de antemão tecnicista. Porém, tais considerações só
podem ser devidamente explanadas fora do escopo limitado deste trabalho, que se propôs
de início apenas a apontar possíveis diálogos entre os dois fenomenólogos a fim de tratar
da relação entre homem e mundo no domínio da técnica.
Talvez seja necessário, em trabalhos posteriores, explorar possíveis contendas entre
ambos os autores quanto a seus pressupostos teóricos, como o caráter ontológico de

58
Ao menos dentro dos limites de sua conferência A questão da técnica (ibid.); para considerações sobre o
conceito de liberdade em um sentido mais global pela obra de Heidegger, fazem-se necessárias pesquisas
outras, alhures a este trabalho.

192
Heidegger em contraste com a filosofia “ôntica”, de caráter antropológico, de Flusser.
Sugiro que também seja posta em análise a afirmação de Heidegger em sua Carta sobre o
humanismo (HEIDEGGER, [1946] 2008d) de que “a linguagem é a morada do ser” (ibid.,
p. 326), considerando-se que é pela linguagem que o homem guarda o ser e, assim, tem no
seu mundo sentido. Se considerarmos “linguagem” no sentido lato correspondente ao
medium flusseriano, não estaria a filosofia de Flusser inserida no contexto da verdade do
ser e de sua história também ao traçar uma escalada de abstração?
Admito aqui, novamente, que questões como essas excedem a pretensão deste
texto, tomadas neste por meio de abordagem assumidamente lateral, com o propósito de
serem apontadas para possíveis pesquisas e considerações posteriores.

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194
ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS DA FILOSOFIA DE JOHN DEWEY

Marileide Soares de Lima


Universidade Estadual de Londrina
ledaleda55@hotmail.com

RESUMO

Este artigo objetiva apresentar aspectos da teoria do conhecimento de John Dewey (1859-
1953), suas críticas aos dualismos presentes na Filosofia tradicional que se refletem nas
demais áreas do viver humano. Dewey desenvolve uma teoria empírica naturalista com
bases na Biologia e na Psicologia Social. Nela, o indivíduo é dependente, com
possibilidades de emancipação devido a sua capacidade elástica de desenvolvimento da
inteligência. Seu instrumento de emancipação é o pensamento reflexivo.
Palabras-chave: Dewey. Conhecimento; Pensamento reflexivo; Adaptação; Crescimento.

INTRODUÇÃO

A teoria do conhecimento ou o modo como o indivíduo compreende o universo e


sua relação com o mesmo, determina suas demais teorias e, portanto o seu modo de pensar
e viver. A atuação humana ao longo da história se sucedeu de diferentes formas. A
princípio, a vida era pautada nos costumes rotineiros de repetição vigentes em cada uma
das comunidades. Qualquer mudança que houvesse era conseqüência de fatores
unicamente externos. Na antiguidade grega há um avanço significativo na relação do
indivíduo com o mundo com a possibilidade de explicar ou teorizar a vida. A razão é tida
como uma entidade universal que pode ser captada pelo pensamento de fluxo livre, perante
rigorosa observação da realidade. Se houver erro, o mesmo se refere apenas ao indivíduo.

A sociedade na antiguidade helênica é dividida por classes, cabendo a poucos a


vida sedentária dedicada ao ócio, à reflexão, e aos demais o trabalho indispensável às
necessidades básicas do viver. Dewey, depreende da necessidade de justificar esse
ambiente de desigualdades, a formulação das teorias dicotômicas. Mais que isso, a
valorização da razão e depreciação da natureza.

Na Idade Média, a universalidade da razão é tomada pelo cristianismo e


transformada na divindade do Espírito. O pensamento perde sua liberdade, no entanto há o

195
surgimento de uma democratização, pois qualquer indivíduo pode aspirar ao céu após sua
morte. A natureza passa a ser valorizada como obra divina.

A idéia da criação do mundo e a do pecado original, trazidas pelos cristãos e


oriundas da tradição judaica, viriam, por um lado, tornar a "natureza" respeitável,
por haver sido criada por Deus, e, por outro, dar nova explicação aos elementos
constitutivos do homem, já agora carne e espírito, os quais, longe de serem
suscetíveis de contrôle pelo desenvolvimento do espírito, se encontrariam em
luta permanente, não sendo a vitória do espírito sôbre a carne o privilégio de
alguns, mas a luta de todos os homens, do mais humilde ao mais bem dotado
(TEIXEIRA, 1959, p. 14-27).

Na modernidade, com o surgimento do individualismo econômico, há um


expressivo movimento filosófico em busca de emancipação. A verdade dogmática
escolástica é por esse movimento, rejeitada, buscando-se novos rumos para o
conhecimento. Surgem duas importantes correntes filosóficas, a saber, o Racionalismo e o
Empirismo. A primeira, defendendo o conhecimento, sobretudo pelo intelecto e a segunda,
pela experiência. Em ambas as correntes, o indivíduo, em busca de certificações da
verdade, se isola do mundo. A separação é tão grande que foi necessária a criação de uma
área específica da filosofia, a Epistemologia, para estudar uma forma de transpor o abismo
criado entre o indivíduo, como sujeito e o mundo objetivo.

Dewey considera um erro filosófico, uma falácia, a idéia de considerar a matéria,


a vida e o espírito gêneros distintos do Ser, porque converte funções em
substâncias, as conseqüências das interações dos acontecimentos, em causas da
produção dessas conseqüências [...] (MURARO, 2012, p.9).

A crítica deweyana incide com isso na ideia dualista que confere denotação de
existência à matéria (ao físico) e de essência à mente. Esse suposto dualismo no indivíduo,
entre espírito e corpo ou corpo e alma e a dicotomia entre o mesmo e a natureza são
responsáveis, de acordo com a teoria deweyana, pelo desconhecimento e, portanto pela
falta de controle sobre o viver da maioria ou massa humana, que não encontra socialmente
as condições necessárias para apreender o hábito de pensar. Dessa forma, a mesma é
manipulada para satisfazer interesses utilitaristas e gananciosos de poucos.

DESENVOLVIMENTO

A teoria empírica naturalista deweyana pode ser representada a partir de um zoom


no universo - composto essencialmente de relações energéticas e forças - que atuam de
inúmeras formas entre si produzindo, com isso, os acontecimentos. Portanto, essa teoria

196
tem suas bases no dinamismo provocado por um contínuo movimento, que por sua vez
implica em constantes mudanças. Tais transformações, relações ou acontecimentos
produzem e reproduzem constantemente seus corpos. Podemos representar o cosmos,
significativamente, com a palavra: ATIVIDADE.
A antropologia deweyana objetiva demonstrar a incoerência das filosofias dualistas
que se escoram na metafísica. O filósofo propõe, inclusive, uma reconstrução na filosofia,
pois a mesma, não acompanhou o desenvolvimento dos métodos de investigação oriundos
da revolução científica do século XVII. Dewey apóia-se na Biologia, mais precisamente na
teoria evolucionista de Charles Darwin, e elabora uma matriz de comportamento vital a
partir de três plateaus de desenvolvimento, a saber: o físico, psicofísico e mental, para
conceituar a relação entre corpo e mente. É importante destacar que esta fundamentação
teórica deweyana, está relacionada em todos os seus níveis de evolução, com as questões
do desenvolvimento humano, tendo em vista o fato de que, o desenvolvimento da mente
estar intrinsecamente relacionado ao desenvolvimento do organismo. O primeiro estágio é
o físico e dele pertencem os seres inorgânicos que não reagem ao sofrerem a ação de forças
maiores que sua resistência. Portanto, sua transformação ocorre apenas como resultado da
influência do ambiente. Dewey conceitua tal fenômeno como saturação e exemplifica essa
situação com o ferro. “O ferro não se esforça para continuar ferro: se entra em contato com
a água, breve se transforma em bióxido de ferro” (TEIXEIRA, 1959, p. 13).
Quanto aos seres vivos, que compõem os universos, vegetal e animal, pertencem ao
estágio psicofísico e diferenciam-se do estágio anterior pela luta incessante por manter seu
padrão de existência, a saber, sua sobrevivência. “[...] denota que a atividade física
adquiriu propriedades adicionais, a aptidão para obter dos meios circundantes uma classe
peculiar de satisfação interativa das necessidades; não denota uma abolição do físico-
químico, nem uma estranha mescla de algo físico e algo psíquico [...]” (DEWEY, 1958, p.
255, apud, MURARO, 2012, p.4). Utilizam-se, para isso, do esforço que se caracteriza por
um dispêndio maior de energias. Exemplifica Dewey, a diferença entre o estágio físico e
psicofísico:
Ao receber uma pancada, a pedra opõe resistência. Se a resistência for maior do
que a força da pancada, ela exteriormente não apresentará mudança; no caso
contrário se partirá em fragmentos menores que ela. A pedra nunca procura
reagir de modo a defender-se contra a pancada e muito menos a tornar a dita
pancada um fator que contribua para a própria continuidade de sua ação. Quanto
à coisa viva, pode ser facilmente esmagada por uma força superior, mas jamais
deixa de tentar converter as energias, que sobre ela atuam, em elementos
favoráveis a sua existência ulterior. Se não o consegue, não se fragmenta em

197
pedaços menores (pelo menos nas mais elevadas formas da vida), mas perde sua
identidade como coisa viva (DEWEY, 1979b, p. 1).

Os organismos vivem em virtude do ambiente, sua única fonte de reposição das


energias gastas para a manutenção da vida. A conservação dos organismos decorre de sua
atividade em um contínuo e ilimitado número de circuitos energéticos que tem seu fluxo a
partir de uma necessidade, como a fome, a sede, o calor, entre outras. Há com isso, um
desequilíbrio, em relação ao ambiente. Nisso, todo o organismo entra em tensão. Reage
então, por meio do esforço, em busca daquilo que lhe falta, comida, água, uma sombra.
Assim que recompõe o que necessita, tem sua satisfação, seu equilíbrio. Trata-se de um
processo onde graças às contínuas interações, o estágio posterior acumula, conserva e
integra o anterior. Ao final de cada circuito ou integração, (necessidade – tensão – esforço
- satisfação) tanto o meio quanto o indivíduo se transformam pela aquisição de novas
eficiências. “Poderemos dizer que um ser vivo é aquele que domina e regula em benefício
de sua atividade incessante as energias que de outro modo o destruiriam. A vida é um
processo que se renova a si mesmo por intermédio da ação sobre o meio ambiente”
(DEWEY, 1979b, p. 1).
Entre as qualidades adicionais acrescidas como resultado de interações, a primeira
delas é a organização que representa a unidade funcional do organismo. A organização não
pode ser compreendida a priori, é um fato que deve ser investigado de acordo com a
situação real em que se encontra o organismo e suas consequências. Dewey depreende da
organização a ideia de sensibilidade, diz ele “Sempre que as atividades das partes
constitutivas de um padrão organizado de atividades são de tal natureza que conduzem a
perpetuar a atividade padrão, existe a base da sensibilidade” (DEWEY, 1958, p. 256 apud
MURARO, 2008, p. 82). A citação a seguir nos mostra a conexão direta de interação e
transformação do universo vegetal com o ambiente. São atividades denominadas
realizadoras ou consumadoras:

Utiliza-se da luz, do ar, da umidade e das matérias do solo. Dizer que as utiliza,
importa em reconhecer que as transforma em meios para sua conservação.
Enquanto se acha a crescer, a energia que despende para tirar vantagens do
ambiente é mais que compensada pelo que obtém: ela cresce. (DEWEY, 1979b,
p. 2).

198
Figura 1 – Esquema simplificado do ciclo de vida
da samambaia. Fonte: Lopes (2004, p. 242).

Figura 2 – Esquema simplificado do ciclo de vida de


Pinus, uma gimnosperma Fonte: Lopes (2004, p. 243).

Já o universo animal, composto por organismos superiores (mais complexos) e com


capacidade de movimento, dotados de receptores à distância como a vista, o ouvido, e em
menor grau, o olfato e de órgãos de locomoção que lhes permite conectar-se tanto com o
próximo, quanto com o mais remoto, desenvolvem atividades de interação à distância ou
indiretas. Tais atividades são denominadas preparatórias ou antecipativas, pois o

199
organismo, com a capacidade de discernir entre o que lhe é útil e prejudicial no ambiente,
tem com isso uma espécie de premunição que o dirige para um foco discriminado. O
comportamento é sequencial e dividido em fases, a saber, inicial, intermediária e final. Esta
distância entre a primeira e a última fase gera maior tensão. Importa lembrar que cada
consumação ou encerramento de um circuito, funciona como fase preparatória para outro.
Este tipo de movimento estratégico permite a transformação da sensibilidade que, então é
atualizada em sentido.

Figura 3 – Esquema simplificado representando o ciclo da matéria e o fluxo de energia


Fonte: Lopes (2004, p. 541).

A espécie humana encontra-se em um nível superior de desenvolvimento devido à


complexidade de seu organismo. Superou o estágio psicofísico, alcançado pelos animais
inferiores, com a aquisição da linguagem que lhe possibilitou a comunicação do “sentido”
entre os membros da mesma espécie. Com a nomeação do ‘sentido’ qualidades como
tristeza, fome, saudade, medo, etc., deixam de ser submersas e subjetivas, e objetivam-se -
possibilitando com isso, o diálogo, o compartilhamento. Neste processo de interação, surge
o milagre da mente. Afirma o filósofo “[...] mente ou espírito não é denominação a dar-se a
alguma coisa completa em si mesma [...]” (DEWEY, 1979b, p. 144). Mas a algo contínuo e
dinâmico, pois espírito “[...] é o nome de uma atividade em desenvolvimento na proporção
em que seja inteligentemente dirigida; na proporção, quer dizer, conforme nela entrem
objetivos, fins, com a seleção dos meios para favorecer a realização dos mesmos”
(DEWEY, 1979b, p. 144). Prossegue o filósofo empírico naturalista:

200
A inteligência não é uma coisa particular que alguém possua; mas uma pessoa é
mais ou menos inteligente, na proporção em que as atividades de que é
participante tenham mais ou menos as qualidades mencionadas. Nem são as
atividades em que uma pessoa se empenha, inteligentemente ou não, exclusiva
propriedade sua; são alguma coisa em que a referida pessoa se empenha e toma
parte. Colaboram com ela ou a embaraçam outras coisas, os movimentos
independentes de outras coisas e pessoas. O indivíduo pode iniciar uma série de
atos, mas o resultado depende da interação de suas reações e das energias dos
outros agentes. Conceba-se o espírito como alguma coisa que não seja um fator
cooperando com outros para a produção de conseqüências, e espírito ou mente
torna-se coisa sem sentido (DEWEY, 1979b, p. 144-145).

O desenvolvimento da inteligência acontece quando os objetivos são perseguidos,


sobretudo quando há um crescimento ou ampliação do conhecimento conquistado até
então. Este crescimento é possível devido à incompletude, dependência e elasticidade
humana. Diferente dos outros animais, não temos a princípio, uma direção instintiva
especializada que nos possibilite viver. No entanto trazemos inclinações naturais, traços de
singularidade, com capacidade de discriminar no ambiente aquilo que nos satisfaça. Esse
processo onde a composição do “eu” é realizada pela capacidade natural, biológica, mais
os elementos sociais ou culturais, caracterizam a categoria de hábito na teoria deweyana. O
conceito de educação em Dewey tem o fim em si mesmo e consiste, justamente, neste
processo contínuo, com duração equivalente à vida, do aprender a aprender. A aquisição de
conhecimento é, portanto constante e faz com que o indivíduo cresça, ao reter de suas
experiências, elementos que possam ser utilizados posteriormente. O acúmulo, a
conservação e a integração do indivíduo com seu meio, sua dinâmica adaptação, são
fatores históricos condicionados ao crescimento. Crescimento que além de temporal,
também é espacial, na medida em que amplia seu espaço de atuação. E como todo
comportamento envolve relações, o crescimento é o imperativo moral deweyano. Há uma
relação funcional entre inteligência, conhecimento e moral como um todo, visto atuarem,
necessariamente, no campo social.
O instrumento do conhecimento, o pensamento reflexivo é subjetivo. A diferença é
que o mesmo não é nem uma entidade, nem auto-suficiente, e sim provocado por uma
situação problemática. Dewey enfatiza que o pensamento cuidadoso, só acontece nestas
situações específicas; atende esse critério não apenas uma situação ou um problema
nascido do vácuo. A situação indeterminada, necessariamente tem de ser atual e autêntica.
“[...] estabelecer um problema que não se desenvolva a partir de uma situação atual é pôr-
se sobre a trajetória de um trabalho inútil, não menos inútil por ser “trabalhoso””
(DEWEY, 1985, p.61, grifo nosso). Essa asserção deweyana tem íntima ligação com os

201
métodos necessários ao aprendizado nas escolas. No momento, é importante
especificarmos o que o filósofo caracteriza como situação e como problema.
Dewey critica a psicologia e a epistemologia quando as mesmas identificam
pensamento ou ideia e objeto de forma imediata. Uma situação refere-se a um contexto ou
circunstância onde vários objetos ou eventos são parte. Uma situação confusa, a que se
aplica o processo de pensar, não é obscura totalmente, pois se assim o fosse,
necessariamente causaria pânico e desespero. No curso de uma atividade ou determinada
situação, podemos nos deparar com algum impedimento ou resistência. A nossa tendência
é querer prosseguir, contornado o problema ou seguindo a primeira sugestão que nos
ocorre. No entanto, caso nos sobrevenha mais de uma sugestão, paralisamos a ação, todo
nosso organismo se coloca em estado de tensão, diante da dúvida. Esta é a fase pré-
reflexiva que ocorre em uma situação indeterminada. São cinco fases ou aspectos do
pensamento reflexivo expostos por Dewey:
Dentro de tais limites, situam-se os vários estados do ato de pensar que são: (1)
as sugestões, nas quais o espírito salta para uma possível solução; (2) uma
intelectualização da dificuldade ou perplexidade que foi sentida (diretamente
experimentada) e que passa, então, a constituir um problema a resolver, uma
questão cuja resposta deve ser procurada; (3) o uso de uma sugestão em seguida
a outra, como idéia-guia ou hipótese, a iniciar e guiar a observação e outra
operações durante a coleta de fatos; (4) a elaboração mental da idéia ou
suposição, como idéia ou suposição (raciocínio, no sentido de parte da inferência
e não da inferência inteira); e (5) a verificação da hipótese, mediante ação
exterior ou imaginativa (DEWEY, 1979a, p.111-112)

Dewey considera problema, qualquer impedimento, mesmo nas situações mais


simples do cotidiano, que nos obrigue a converter a qualidade, a princípio emocional, que
compõe a situação em sua totalidade, em intelectualização, ou seja, a investigação que
visa conhecer exatamente o problema que pode contaminar a situação como um todo.
Quando o mesmo emerge, simultaneamente emerge sua solução. “Um problema representa
a transformação parcial, pela investigação, de uma situação problemática em uma situação
determinada. É conhecida e significativa a frase segundo a qual um problema bem
colocado está semi-resolvido” (DEWEY, 1985, p.61). Devemos considerar neste processo
investigativo, duas espécies de conteúdos: o dos fatos e os do pensamento. A relação entre
esses conteúdos é funcional, pois ambos não são auto-suficientes. Todo o processo de
investigação é mental, embora inicie e tenha sua conclusão final em fatos. O indivíduo
observa, colhe dados ou “fatos do caso”, inclusive sua condição emocional, e analisa essas
condições existentes.

202
As primeiras sugestões brotam espontaneamente sem que, para isso, necessite
algum elemento intelectual. A intelectualização se efetiva dependendo do que se faz com
este material fornecido pelas sugestões. O raciocínio é uma das fases mais elaboradas, pois
opera em zig-zag, ou seja, relaciona vários elementos presentes na memória59, originários
das mais variadas fontes. Elementos retidos de experiências anteriores, conhecimentos
técnicos, intuições, mentalidade da época e lugar, entre outros. Buscam em condições
similares anteriores, prever conseqüências da ação que visa solucionar a dificuldade
presente. Tais operações avaliam as várias sugestões, buscando compor com as mesmas
uma ideia, uma hipótese-guia, que atenda as necessidades, que se encaixe, no que falta,
para que, a situação em questão possa atingir sua consumação. Toda a ação é mental, até
que atendidos os critérios necessários, possa, finalmente ser posta a prova
experimentalmente, quando necessário.
Dessa forma acorre a inferência, o alargamento da experiência. Mesmo em
situações em que a hipótese efetivamente não solucione o problema, há acréscimo de
conhecimento pelo próprio exercício do pensamento. Dessa forma, podemos perceber que
o conhecimento para Dewey, se dá de forma espiralada, ou seja, diante de uma situação
obscura, nova, o conhecimento familiar é operacionalizado pela imaginação com os dados
da nova situação produzindo com isso, um conhecimento transformado pela ação da
inteligência. Neste processo, o pensamento é subjetivo e o conhecimento é objetivo e
público.
A filosofia deweyana, pautada na epistemologia, utiliza o método científico, no
entanto diferencia-se da ciência. O material operacional da investigação, ou a adaptação
dinâmica entre indivíduo e meio, acontece continuamente a partir do conhecimento
familiar deste indivíduo. Este conhecimento engloba a totalidade necessária a manutenção
da vida, diferente da ciência que opera com conhecimentos específicos. Estes
conhecimentos também são importantes na composição da bagagem presente na memória
individual, visto também pertencerem à memória cultural. No entanto, a bagagem
individual é mais ampla em significação. Nela estão presentes seus ideais, sonhos, projetos,

59
Neste ponto é importante ressaltar e esclarecer um equívoco muito comum que se faz em relação à teoria
deweyana. Sua crítica não é à teoria, mas ao material teórico que cobramos do aprendiz para a ampliação do
conhecimento. O material teórico é indispensável, no entanto, o mesmo deve servir de base para a
continuidade e ampliação do conhecimento do indivíduo. Em outras palavras, se propusermos a solução de
um problema muito além do alcance do aprendiz, o mesmo não terá como relacioná-lo ao seu material
familiar; haverá um abismo entre o conhecido e o confuso. Infelizmente é isso que ocorre na maioria das
vezes na educação escolar.

203
anseios, sentimentos, valores, entre outros, em um ambiente, por natureza, social. Outro
dado significativo no processo de conhecimento deweyano é o poder de maravilhar-se pela
nova descoberta individual, mesmo que esta já não seja novidade para muitos. A satisfação
de comunicar a “novidade”. Não é isso que fazemos em nossas pesquisas bibliográficas?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A amplitude e importância da epistemologia na formação da mentalidade social são


dados que requerem reflexão. Dewey defende uma evolução biológica, com possibilidades
de um desenvolvimento ilimitado da inteligência humana. Entretanto, faz severas críticas
às concepções escolásticas, dualistas, que desvinculam a inteligência da moral. A esta
última, tais teorias atrelam crenças baseadas em superstições e fantasias que alimentam o
imaginário humano, poupando-lhe, muitas vezes, a responsabilidade sobre as
consequências de suas ações. Outra forte possibilidade para tais crenças é a preguiça de
enfrentar as dificuldades e a angústia provocadas pelo pensar. Entretanto, nem tudo
podemos conhecer, nos coloca Dewey:
O visível está assentado no invisível; e, no fim, o que é não visto decide o que
acontece no que se vê. O que é tangível descansa de forma precária sobre o que
não é tocado nem agarrado. O contraste e o mal ajustamento potencial do
imediato, a óbvia e focal fase das coisas, com estes fatores indiretos e ocultos
que determinam a origem e o curso do que está presente, são fatores
indestrutíveis de todas e de cada uma de nossas experiências. Podemos qualificar
de supersticiosa a forma de fazer frente ao contraste de nossos antepassados,
porém o contraste mesmo não é superstição. É um dado primário de toda
experiência (Dewey, 1958, p. 43-44 apud MURARO, 2008, p.60).

A natureza humana, na concepção deweyana, é biológica e social. “[...] a


experiência é da tanto quanto em a natureza. Não é a experiência que é experienciada, e
sim a natureza - pedras, plantas, animais, doenças, saúde, temperatura, eletricidade, e assim
por diante (DEWEY, 1974, p.163). Prossegue o filósofo, “Coisas interagindo de
determinadas maneiras são a experiência; elas são aquilo que é experienciado. Ligadas de
determinadas outras maneiras com outro objeto natural – o organismo humano -, elas são,
ademais, como as coisas são experimentadas (DEWEY, 1974, p.163, grifos nossos). Nesta
concepção não há um “eu” formado, nem uma alma que habite esse “eu”. O corpo é a
natureza. No entanto o filósofo critica o materialismo, pois, como dissemos na introdução
deste artigo, matéria, espírito e tudo mais que compõe o universo são qualidades,
resultantes dos acontecimentos. Portanto, há um espírito em Dewey, que é uma capacidade,

204
uma força: “O indivíduo cria o espírito, desenvolve a mente na proporção em que o
conhecimento das coisas se acha corporificado na vida que o cerca; o eu não é um espírito
isolado a criar novos conhecimentos por sua conta própria” (DEWEY, 1979b, p.325).
Quanto à possibilidade de uma vida em ostracismo difundida por algumas filosofias, alerta
Dewey:
Existe sempre o perigo de que a crescente independência pessoal faça decrescer a
capacidade social de um indivíduo. O tornar-se mais confiante em si pode fazê-lo
bastar-se mais a si mesmo; pode levá-lo ao insulamento e à indiferença. Isto
torna muitas vezes o indivíduo tão insensível em suas relações com os outros,
que lhe faz nascer a ilusão de ser realmente capaz de manter-se e agir isolado –
forma esta, ainda sem nome, de insanidade mental que é responsável por grande
parte de sofrimentos remediáveis deste mundo (DEWEY, 1979b, p.47).

A composição do “eu” é de responsabilidade social, a inteligência é uma força que


se desenvolve socialmente em ações compartilhadas. O ambiente ideal para que esta se
desenvolva, pelo seu caráter horizontal de colaboração, é a democracia. Dewey, quando se
refere à democracia, não se restringe a uma forma de governo, como estamos habituados.
Refere-se a uma mentalidade democrática, a percepção inteligente de que com o
compartilhamento do trabalho e seus resultados, todos tendem a ganhar. O crescimento não
é só do indivíduo, mas de toda a comunidade, quando neste há o sentimento de pertença.

Infelizmente, os hábitos cultivados em nossa sociedade não são os relacionados à


inteligência, ao hábito de pensar, mas os de reproduzir, copiar, obedecer. Muitas vezes,
uma contestação, ou determinação de se alcançar um fim que realmente interesse, que se
identifique com o “eu”, é interpretado como arrogância. Vivemos em uma sociedade que
cultua a “humildade”. Uma sociedade com excesso de estímulos com vistas de se manter o
controle. Dewey faz uma analogia entre estes excessos em relação às crianças. Diz ele, que
estas se tornam tão dependentes destes estímulos quanto um alcoólatra do álcool.

No entanto, o pensamento reflexivo, não é livre. Como vimos, ele se limita as


circunstâncias e as condições presentes na ação do indivíduo. A ação não deve estar
submetida apenas aos impulsos ou conteúdo emocional. Perante obstáculos, a paralisação e
o esforço são imprescindíveis. Lembremo-nos que o caminho da saída da caverna de Platão
é uma elevação. O que na teoria deweyana, pode representar o esforço.

Dewey, em sua teoria não nos oferece forma alguma de apoio fixo, nem mesmo um
imperativo categórico kantiano como modelo. Cumpre-nos o trabalho e a criatividade no
desenvolvimento e direção de nossa existência.

205
REFERÊNCIAS

DEWEY, John. Experiência e natureza. Tradução Murilo Otávio R. Paes Leme. São
Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção os Pensadores).
______. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo
educativo: uma reexposição. 4. ed. Tradução Haydée Camargo Campos. São Paulo:
Nacional, 1979a.
______. Democracia e educação. 4. ed. Tradução Godofredo Rangel e Anísio Teixeira.
São Paulo: Nacional, 1979b.
______. Experiência e natureza. 2. ed. Tradução Murilo Otávio R. Paes Leme, Anísio S.
Teixeira e Leonidas Gontijo de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Coleção os
Pensadores).
______. Lógica, a teoria da investigação. 2. ed. Tradução Murilo Otávio R. Paes Leme,
Anísio S. Teixeira e Leonidas Gontijo de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
(Coleção os Pensadores).
LOPES, Sonia. Bio: volume único. São Paulo: Saraiva, 2004.
MURARO, Darcísio. A importância do conceito no pensamento deweyano: relação entre
pragmatismo e educação. 2008. 229 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
______. A concepção da mente-corpo em John Dewey. In: CHITOLINA, Claudinei Luiz,
et al. (Org.). II Colóquio nacional de filosofia da mente e ciências cognitivas... Maringá:
Humanitas Vivens, 2012. p. 104-130. Disponível em:
<http://www.humanitasvivens.com.br/livro/485589d90324ad7.pdf>. Acesso em: 2 nov.
2012.
TEIXEIRA, Anísio. Educação progressiva: uma introdução à filosofia da educação. 2. ed.
São Paulo: Nacional. Resenha de: FILOSOFIA e educação. Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 32, n. 75, p. 14-27, 1959. Disponível em:
<http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/filosofia.html>. Acesso em: 9 abr. 2012.

206
INFERÊNCIA DA MELHOR EXPLICAÇÃO ANTE A PERSPECTIVA DO
EMPIRISMO CONSTRUTIVO DE VAN FRAASSEN: UM DEBATE ENTRE
REALISMO E ANTIRREALISMO.

Debora Domingas Minikoski


Universidade Estadual de Londrina
debora.minkoski@gmail.com

RESUMO

Na filosofia da ciência, seja qual for sua orientação teórica, seus representantes se
debruçam ante a tarefa de responder duas questões básicas: no que consiste a atividade
cientifica e o que esta realiza. No contexto filosófico-cientifico contemporâneo, vigora um
grande debate acerca dessas questões norteadoras, o realismo e o antirrealismo; em
aspectos gerais, o primeiro caracteriza uma teoria cientifica como um relato acerca do que
existe efetivamente na realidade e a atividade cientifica como um empreendimento de
descoberta, não de invenção; posto desse modo, a aceitação e a sustentação de dadas
hipóteses, teses ou teorias cientificas, envolvem a crença de que estas sejam verdadeiras. A
sustentação dos argumentos do realismo cientifico se faz por meio de uma especifica regra
de inferência, a inferência da melhor explicação, onde consideramos uma série de
hipóteses para explicar um dado fato ocorrido. Dentre essas hipóteses, se elege a melhor
para explicar o referido fato; ao passo que, na perspectiva do empirismo construtivo, não é
afirmado a veracidade de uma dada hipótese, tese ou teoria, mas estas são expostas de
modo a alegar que possuem certas virtudes com relação a outras concorrentes, virtudes
essas exprimidas em sua adequação empírica, ou seja, quando a mesma possui ao menos
um modelo onde todos os fenômenos reais se ajustam a ela, assim sendo, a ciência
pretende nos fornecer teorias empiricamente adequadas e sua aceitação implica somente
nessa adequação. Os termos do empirismo construtivo representam uma de muitas
alternativas possíveis ao realismo epistêmico, de modo a porta-se como uma concepção
antirrealista. O presente escrito tem por objetivo explorar as condições argumentativas do
realismo, respaldado na inferência da melhor explicação, sob uma ótica epistemológica e
de aceitação das teses cientificas. Posteriormente, analisar-se-á suas problemáticas
assinaladas pelo empirismo construtivo de Van Fraassen, tendo em vista, principalmente,
uma critica construída por um viés lógico; a inferência da melhor explicação seria um
recurso suficiente para a afirmação de que a ciência constrói teorias legitimamente
verdadeiras?
Palavras-chave: inferência da melhor explicação; realismo; antirrealismo; empirismo
construtivo.

INTRODUÇÃO

Analisando a problemática epistemológica referente a aceitação de teorias


cientificas, cujo respaldo aqui tratado, se faz por dois posicionamentos epistemológicos
distintos: o realismo e o antirrealismo; o primeiro argumenta que a eficiência instrumental
de uma dada tese autoriza-nos a creditar a esta um teor que além de consistir em utilidade,

207
se correta, também nos demonstra a veracidade de seu conteúdo; ainda, mesmo que os
realistas admitam que a ciência não chegou a verdades, os mesmos afirmam que ela esta se
aproximando cada vez mais dos conteúdos verdadeiros.

O realismo cientifico diz que aqueles entes, estados e processos descritos por
teorias corretas realmente existem. Protons, photons, campos de força e buracos
negros são reais como as unhas do pé, turbinas, redemoinhos em um riacho e
vulcões [...]
Mesmo quando nossa ciência ainda não tenha conseguido chegar a coisas
verdadeiras, o realista assegura que frequentemente nós chegamos perto da
verdade. (HACKING,1983,p,21)

O trecho de Hacking fornece-nos algo mais além de uma definição das crenças a
respeito de teorias cientificas para um realista: ela nos entrega também os desdobrares da
aceitação das mesmas; o realista não postula somente a veracidade das teorias cientificas
enquanto construções teóricas, mas também pode afirmar a existência das entidades, os
processos e os estados descritos por ela 60 . Para a sustentação da verdade atribuida às
teorias cientificas, uma regra de inferência se faz amplamente utilizada pelos adeptos ao
realismo: esta é a inferência da melhor explicação61, uma regra de raciocinio que nos
permite selecionar a melhor hipótese explicativa para um dado fato ocorrido. Portanto, ante
a perspectiva de um realista, o fato de que a referida hipótese fora classificada como a
melhor opção para se explicar um dado fenômeno, faz desta uma hipótese verdadeira.
Sendo uma concepção proveitosa ao realista cientifico, a IBE torna-se problemática
ante a perspectiva de um empirista construtivo, pois nos moldes desta perspectiva, Van
Fraassen partilha da concepção de que as proposições teóricas da ciência são proposições
genuínas e devem ser interpretadas literalmente; porém, a determinação de seu valor de
verdade não constitui o objetivo da ciência. Além disso, o conhecimento cientifico não se
atém a análise de realidades inobserváveis, mas o de buscar o conhecimento a respeito dos
fenômenos observáveis, isto é, uma classificação de entidades postuladas que podem ou
não existir; por exemplo, um cavalo alado é uma entidade observável, em razão disso,
estamos tão seguros de que não haja nenhum, pois até hoje, nenhum fora visto 62 . Ao

60
Mais adiante, no mesmo livro, Hacking faz uma descrição de dois realismos; um deles postula somente a
verdade de teorias, o outro afirma a verdade das entidades descritas por essa teoria. (HACKING, 1983, p.27).
Contudo, faz-se perfeitamente plausível a existência de teóricos realistas, cuja crença de veracidade, esteja
contida tanto no âmbito teórico, quanto no âmbito ontológico.
61
Grifo nosso. Doravante utilizaremos aqui a abreviatura do termo em inglês “Inference of the best
Explanation” (IBE).
62
VAN FRAASSEN, 2007, p 38.

208
contrário de entidades observáveis, as inobserváveis simplesmente não podem ser passiveis
de observação, como o numero 17, por exemplo. Ainda, em contraste à concepção do
realista, para quem a aceitação de uma teoria autoriza a crença em sua verdade, para um
empirista construtivo a aceitação de uma teoria bem sucedida envolve apenas a crença em
sua adequação empírica: ou seja, apenas a respeito dos fenômenos observáveis que se
encaixam nos moldes da tese cientifica mais adequada.
A ciência visa dar-nos teorias que sejam empiricamente adequadas; e a aceitação
de uma teoria envolve, como crença, apenas aquela de que ela é empiricamente
adequada [...].
Uma teoria é empiricamente adequada exatamente se é verdadeiro o que ela
diz sobre as coisas observáveis e eventos no mundo – exatamente se ela ‘’salva
os fenômenos’’. Um pouco mais precisamente: tal teoria possui pelo menos um
modelo tal que todos os fenômenos reais a ele se ajustam. (VAN FRAASSEN,
2007, p.34)

Ainda, segundo Van Fraassen, propor uma teoria cientifica é fazer especificações
de uma família de estruturas ou de modelos, e nestes, indicar as partes que representam de
modo direto as coisas observáveis, essas partes são denominadas subestruturas empíricas
63
; ao dizer que uma teoria é empiricamente adequada, Van Fraassen afirma que ela possui
ao menos um modelo tal que os relatos experimentais são isomórficos a subestruturas
empíricas, isto é, existe uma representação dos relatos experimentais no modelo de uma
teoria64.
Posto deste modo, a pesquisa orientada por um viés empírico-construtivo trata-se
em ultima instância, de uma alternativa ao pensamento realista, sendo então, um
antirrealismo epistêmico. Com base nos pressupostos deste arcabouço teórico,
analisaremos a concepção realista de inferência e suas inconsistências no que se diz
respeito à promessa de um alcance a verdade.

INFERÊNCIA ABDUTIVA E IBE

O seguinte esquema de raciocínio exprime um dos modos nos quais Peirce (1934-
1935) introduziu a noção de inferência abdutiva:
O fato surpreendente, C, é observado.

Mas se A fosse verdade C seria um fato natural.

63
Grifo de Dutra.
64
DUTRA, 1998, p.52.

209
Logo, há razões para suspeitar que A seja verdade. (PEIRCE, apud CHIBENI,
2006, p.2).

Ao observar que os empregos dessas inferências encontravam-se frequentemente


ligadas a uma comparação entre diversas hipóteses para explicar um fato ocorrido, as
pesquisas posteriores de Harman (1938) propuseram renomear tais inferências de
“inferências da melhor explicação”; essas elegiam a melhor explicação dentre outras para
elucidar um dado fato observado.
A utilização dessa estrutura de raciocínio fornece-nos, além de uma melhor
explicação para um fato ocorrido, oferta-nos também o respaldo para afirmar que a
hipótese eleita para explica-lo, é a verdadeira. Essa inferência pode vir a ser demonstrada,
de modo simplificado, da seguinte maneira: ‘’Suponhamos que temos a evidencia E, e que
estejamos considerando diversas hipóteses, digamos H e H´. A regra diz então que
devemos inferir H em vez de H´ se H é uma melhor explicação de E que H´ ‘’. (VAN
FRAASSEN, 2007, p.46)
Deste modo, a IBE se presta ao papel resolutivo de uma problemática central a respeito da
legitimidade dos procedimentos realizados pelos cientistas, que afirmam a existência de
entes mesmo que estes não sejam passiveis de observação empírica; nesse sentido, Harman
afirma: “Quando um cientista infere a existência de átomos e partículas subatômicas ele
está inferindo a verdade de uma explicação para vários dados que ele deseja explicar”
(HARMAN, apud RODRIGUES, 2011, p 274.).
Com efeito, as observações que o cientista realizou o levaram a acreditar que a
melhor explicação dentre outras possíveis, fora a existência de átomos e partículas
subatômicas, ou seja, os fatos observáveis o levaram a formular a existência de algo que
não fora observado, mas inferido a partir de dadas circunstancias relatadas pelo
pesquisador.
Pautada agora na licença de inferir entidades inobserváveis a partir das observáveis, a
inferência passa a ter um novo elemento em sua conclusão:
a) uma evidência E deve ser explicada;
b) a hipótese H explica melhor E do que outras hipóteses rivais;
c) conclusão: H é passível de crença em sua verdade e as entidades inobserváveis
postuladas por H podem ser inferidas. (Ibidem, p. 275)

Ingenuamente, podemos vir a pensar que o fato de que uma tese, hipótese ou teoria
seja verdadeira quando esta em comparação a outras, nos fornece um valor explicativo
melhor que suas rivais. Podemos concordar que esta condição é necessária para que uma

210
teoria seja verdadeira, mas poderíamos fazer o movimento inverso de raciocínio e ousar
dizer que um teor mais satisfatório de explicação é suficiente para afirmamos sua verdade?

JUSTIFICAÇÃO DO USO DA INFERENCIA REALISTA COMO UMA


HIPÓTESE PSICOLÓGICA.

No segundo capitulo de A imagem cientifica, Van Fraassen coloca em pauta a


afirmação realista de que todos nós tendemos a seguir essa regra em casos ordinários e que,
em razão disso, estamos autorizados a aplica-la no âmbito cientifico65 . Na tentativa de
justificar o uso da IBM, alguns realistas analisados pelo autor apresentam um argumento
pautado nas seguintes premissas: 1) seguimos essa regra em todos os casos ‘’ordinários’’
onde não há entidades inobserváveis. 2) esse padrão de inferência não nos conduz a crença
de entidades inobserváveis. 3) logo, todos devem usar esta inferência no contexto cientifico
que envolve entidades inobserváveis66.
Van Fraassen admite a segunda premissa, todavia, discorda da primeira e da própria
conclusão do argumento. A primeira premissa é analisada pelo autor e este chega à
conclusão de que ela pode ser interpretada de dois modos: O primeiro deles consistiria em
afirmar que nós aplicamos essa regra de modo consciente e deliberado; um segundo modo
afirma que seguimos essa regra de modo inconsciente. A primeira hipótese apresenta uma
específica problemática: é certo que os indivíduos sigam regras lógicas na maior parte do
tempo, contudo, poucos são aqueles no âmbito do dia-a-dia que estão capacitados a
formulá-las. Parece-nos necessário que, para seguir uma dada regra lógica, de modo
deliberativo, precisemos possuir conhecimento dessa regra, tanto no sentido formal, quanto
em seu sentido de aplicação, isto é, como poderíamos escolher utilizar um especifico tipo
de inferência se nem sequer sabemos formula-lo?
A segunda alternativa concebe que seguimos essa regra inconscientemente;
entretanto, regras lógicas sempre são regras que nos permitem inferir um elemento a partir
de outro elemento; assim, sempre poderíamos encontrar a conclusão em meio às premissas
e vice-versa. Posto deste modo, ao utilizarmos uma regra lógica, não poderíamos estar

65
VAN FRAASSEN, 2007, p.46
66
A estruturação do argumento de Van Fraassen esta contida no já citado texto de Chibeni (1996), contudo, a
partir desse formato do argumento oferecido por Chibeni, alterei alguns termos de suas premissas e
conclusão, a fim de que este se aproximasse mais do texto de Van Fraassen. A mudança se fez necessária
principalmente no que se diz respeito à introdução do quantificador universal ‘’todos’’ na premissa do
argumento, este esta presente no texto de Van Fraassen, mas foi ausentado nos escritos de Chibeni. Ver
Chibeni, 1996, p. 5-6 e Van Fraassen 2007, p. 46-47.

211
indiferentes ao que dela resulta, pois um elemento dentro de uma estrutura formal sempre
estará interligado a outro; logo, sabemos que usamos um dado sistema inferencial para
atingir um dado elemento por meio de outros. Parece razoável concluir que sempre
estamos conscientes dessa escolha, pois sabemos o ponto em desejamos chegar.
Ao findar essas possíveis interpretações acerca da primeira premissa do argumento,
Van Fraassen chega à conclusão que esta se trata de uma hipótese psicológica67 acerca do
que estamos ou não dispostos a fazer, e na condição de uma hipótese, esta necessita de
dados empíricos para respalda-la e, além disso, é preciso confronta-la com hipóteses rivais;
a hipótese proposta pelo empirista construtivo seria justamente que possuímos a tendência
de acreditar que teorias que melhor explicam as evidências são empiricamente adequadas.
Por fim, mesmo que questões psicológicas sejam de menor importância, a premissa de que
todos68 nós seguimos uma regra de inferência precisa ser demonstrada.

NECESSIDADE DE UMA PREMISSA COMPLEMENTAR À IBE

Nosso autor apresenta ainda mais uma objeção à inferência realista, agora pautada
na necessidade de uma premissa que se ausenta no argumento.
A IBE se constitui em uma regra que nos guia na escolha de uma dada hipótese
dentre um conjunto de hipóteses alternativas, entretanto, como ocorre essa escolha? Isto é,
quais as condições necessárias que as referidas hipóteses precisam preencher para serem a
melhor explicação para um dado fato ocorrido? E por fim, quem determina quais serão as
condições necessárias e quais não serão? Deste modo, precisamos nos comprometer com
algo que esteja além dessa simples operação entre escolhas de hipóteses, precisamos nos
ligar a uma crença 69 para que esta possa nos dizer qual hipótese deve ser escolhida dentre
o conjunto de hipóteses analisadas70.
Utilizando a exemplificação de Van Fraassen: suponha-se que inúmeros dados observados
nos leve a concordar com os modelos propostos por T; então, T é uma possível explicação

67
Grifo de Van Fraassen.
68
Grifo nosso.
69
Grifo nosso.
70
VAN FRAASSEN, 2010, p 49. Vale salientar que neste trecho Van Fraassen já esta abrindo margens a
uma saída argumentativa de cunho pragmático a discussão. Este trabalho propõe, como se encontra no
resumo, uma analise das criticas do empirista construtivo que estão fundadas por um viés lógico. Essa
instância do texto de Van Fraassen foi inserida com foco na critica da falta de premissas no argumento da
IBE; quanto à razoabilidade dos argumentos aqui apresentados e da necessidade de uma analise pragmática,
fico de ater-me a isso no desenvolvimento deste mesmo trabalho.

212
para os referidos dados. Existem alternativas a T, uma delas é não- T (T é falsa), e essa
71
explicação não nos fornece uma boa descrição dos dados. Assim, sempre temos
hipóteses alternativas em um dado conjunto de explicações. Contudo, em razão de seu alto
conteúdo explicativo, a IBE sempre nos levará a T. A questão é: estamos, com certeza,
comprometidos com a perspectiva de que T é verdadeira ou T é falsa? Se nos
comprometemos com a concepção de que T é verdadeira ou falsa não estaremos
necessariamente dando um passo inferencial que leve a uma delas (T ou não-T). A regra
inferencial valeria então somente se não nos mantivermos neutros ao analisar ambas as
hipóteses. (VAN FRASSEN, 2010, p.49)
O problema exposto acima é de grande relevância á IBE; Van Fraassen aponta de
modo muito coerente que a utilização da inferência realista não teria direcionamento algum
na ausência de uma crença, ou seja, na falta de um respaldo fixo que a direcione em seu
objetivo de encontrar uma melhor explicação, e por sua vez, encontrar uma verdade. A
utilização da inferência, no que se diz respeito a descobrir72 verdades, não nos fornece a
informação de como chegamos até essas inferências e do por que as consideramos verdade.

A POSSIBILIDADE DE UM CONJUNTO DEFEITUOSO

Nos escritos de Laws and symmetry, Van Fraassen constrói um argumento


direcionado a critica de que podemos esgotar as possibilidades de formulações teóricas
bem sucedidas; este argumento é conhecido como o argumento do conjunto defeituoso73,
este que se apresenta do seguinte modo:

Suponhamos que estamos diante de uma série de teorias que rivalizam entre si
para fornecer a melhor explicação de um determinado fenômeno; além disso,
supõe-se que foi possível determinar que uma destas teorias fora eleita como a
melhor explicação do fenômeno em questão. Segundo a concepção do realista,
sustenta-se mediante a inferência da melhor explicação, que deve ser atribuída a
essa teoria a crença em sua veracidade; contudo, como podemos saber se não
estávamos diante de um conjunto defeituoso? ( VAN FRAASSEN, apud,
RODRIGUES, p 276)

Primeiramente, a expressão ‘’conjunto defeituoso’’ é remetida a existência de um


conjunto de hipóteses que não contenha a hipótese com o melhor conteúdo explicativo

possível, por exemplo: consideremos que haja um conjunto que contenha as hipóteses α,

71
Grifo de Van Fraassen.
72
Grifo nosso.
73
Grifo nosso.

213
β e β’ com a pretensão de se explicar um dado fenômeno, digamos a interferência da

gravidade nos corpos em meio ao vácuo; neste ambiente, é observado que a queda de
objetos com diferentes massas, quando soltos no mesmo tempo, atingem o chão juntos. Isto
ocorrera quando Armstrong soltou um martelo e uma pena na lua e esses objetos, com
massas tão distintas, caíram ao chão ao mesmo tempo. Nesse sentido, ao analisar a
hipótese alfa, constata-se que esta possui um conteúdo explicativo satisfatório com relação
ao fenômeno descrito, porém, ao ser comparada com a hipótese beta, alfa apresenta certas
limitações que são superadas por beta, deste modo, é constatado que beta possui um
conteúdo explicativo maior que o de alfa. Mas ao analisar a hipótese beta linha, o físico
verifica que esta responde algumas problemáticas que foram apresentadas por beta; assim
sendo, dentro deste conjunto de hipóteses, beta linha possui a melhor explicação do porque
corpos com diferentes massas caem na mesma velocidade na presença do vácuo.
Pois bem, o ponto de critica de Van Fraassen se concentra na seguinte questão:
como podemos saber que não existe uma teoria, que esteja fora deste conjunto, que
explique este fenômeno físico de modo ainda melhor que a hipótese beta linha?
Ainda, utilizando a IBE, ao encontrarmos a teoria de melhor explicação estaremos
com passe livre para acreditar em sua verdade, entretanto, se não sabemos se a teoria de
melhor classificação no conjunto realmente nos fornece a melhor explicação possível ao
fato ocorrido, como poderemos fazer da melhor explicação um critério suficiente para
atestar a veracidade de teorias cientificas? Parece-nos que ao fazer isto, estaríamos nos
precipitando com um passo inferencial que se inviabiliza por seus próprios termos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com efeito, ao menos em uma instância preliminar, coloca-se em suspensão a


plausividade das sentenças realistas, no que se diz respeito a sua justificação de uso e de
atribuição de veracidade em teses científicas, justamente porque dizer que a utilizamos em
todos os contextos, e que em razão disso devemos utiliza-la no âmbito cientifico, não é
uma resposta aceitável, pois além de necessitar de fatos observacionais que corroborem
com esta teses, esta trata-se em ultima instância, de uma hipótese psicológica. Tendo em
vista isso, poderíamos ir além da critica da ausência de suas provas e nos perguntarmos

214
também se uma hipótese psicológica poderia sustentar uma hipótese de cunho
epistemológico.
Van Fraassen ainda nos mostra, de modo pertinente, que o uso da inferência realista
do modo como os representantes dessa corrente fazem não se sustenta, justamente porque
essas inferências só seriam eficientes inseridas em um dado conjunto de crenças de uma
comunidade cientifica e esta premissa fundamental é negligenciada pelos teóricos do
realismo. Vale ressaltar também que essa eficiência que a IBE poderia alcançar se diz
respeito a tão e somente sua possibilidade de encontrar uma boa explicação para um dado
fenômeno em um dado contexto, mas isso ainda não seria suficiente para afirmar a verdade
das teorias cientificas.
Por fim, os cientistas podem perfeitamente classificar as teorias de acordo com seu
teor explicativo; entretanto, não se faz possível conhecer se a teoria melhor classificada é a
melhor teoria possível de existência; então, já que não podemos afirmar que a teoria com o
melhor conteúdo explicativo é a melhor teoria possível de ser formulada, não poderíamos
afirmar, como faz o realismo, que este é um critério para atestar a veracidade da ciência.
Isto simplesmente não se sustenta.

REFERÊNCIAS

VAN FRAASSEN, B. (2007) A imagem científica; tradução: Luís Araújo de Henrique


Dutra. - São Paulo: editora UNESP.

_______________ (1989) Laws and Symmetry. Oxford: Oxford University Press.

SILVA, Marcos. "Inferência da melhor explicação: Peter Lipton e o debate realismo/ anti-
realismo". In Princípios vol. 17, n. 27, 2010.

__________________. 2011. O problema da aceitação de teorias e a inferência da melhor


explicação. In Cognitio 2011).

CHIBENI, Silvio Seno. Afirmando o consequente: uma defesa do realismo científico


(?!). Sci. stud., São Paulo, v. 4, n. 2, junho 2006 . Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-
31662006000200004&lng=en&nrm=iso>. access
on 12 May 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S1678-31662006000200004.

215
TEMPORALIDADE E ETERNO RETORNO: LIBERDADE EM FRIEDRICH
NIETZSCHE

Silmara Aparecida Villas Bôas


Universidade Estadual de Londrina
silmaravillasboas@hotmail.com

RESUMO

A presente comunicação, na qual se pretende discorrer acerca da noção de temporalidade


para o filósofo Friedrich Nietzsche, propõe-se a constituir uma primeira etapa de um futuro
trabalho monográfico sobre o conceito de liberdade na perspectiva de tal filósofo, atrelada
a sua crítica da metafísica e da moral europeia e de sua original concepção de
temporalidade. Neste trabalho, entretanto, resumir-se-ão esforços a fim de se pensar esse
último âmbito, na tentativa de se pensar a salvaguarda da liberdade em vista das
interpretações distintas que há acerca do conceito de eterno retorno do mesmo (ewige
Wiederkehr des Gleichen), exposto primeiramente na A Gaia Ciência (2012) e revisitado
em textos posteriores da obra nietzscheana. Amparado sobretudo em alguns ensaios de
Gianni Vattimo, expostos no livro Diálogo com Nietzsche (2010), em algumas das
principais obras de Nietzsche, como A Gaia Ciência (op. cit.), Assim falou Zaratustra
(2011), A Vontade de Poder (2008), Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e
desvantagens da história para vida (2003), e em textos de comentadores auxiliares, este
trabalho explicita primeiramente a ambiguidade presente no conceito de eterno retorno, se
tomado através das interpretações comumente aceitas, e o caminho apresentado por
Vattimo como alternativa que permite conceber a liberdade como possível no contexto
ilustrado pelo conceito. Para isso, contudo, faz-se necessário explicitar a crítica
nietzschiana à visão historicista de Historie, pautada na mera sucessão de momentos
desconectados uns dos outros, em que o presente e, portanto, o instante da decisão é
destituído de valor em consequência de uma finalidade última que o oriente e que o supere,
tornando-o simplesmente um instante a mais na historiografia compilada pelos
historiadores, jornalistas e eruditos. Em seguida, faz-se necessário explicitar a noção
propriamente nietzschiana de temporalidade, atrelada ao conceito de eterno retorno do
mesmo sob uma interpretação de tempo “existencial” (VATTIMO, op. cit., p. 12), em que
o que condiciona o passado e o futuro como momentos do tempo – não necessariamente
“instantâneos”, no sentido de instantes independentes, desvencilhados de outros – é
justamente o momento da decisão. Pretende-se, por fim, evidenciar que é no momento da
decisão, sob tal prisma, que entra em jogo a liberdade propriamente nietzschiana, muito
afastada da concepção de liberdade moralizante dos filósofos da modernidade.
Palavras-chave: eterno retorno, Friedrich Nietzsche, liberdade, temporalidade.

Reproduzo de início a seguinte passagem de Nietzsche que permite introduzir a


questão (2012, p. 205):

216
E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em
sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está
vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis
vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada
suspiro e pensamento e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em
sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e
ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e
também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será
sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!”. – Você
não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim
falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe
responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse
pensamento tomasse conta de você é, tal como você é, ele o transformaria
e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso
mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como
o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e
com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação
e chancela?

Nesse parágrafo de A Gaia Ciência (2012), intitulado O mais pesado dos pesos,
encontra-se um dos grandes conceitos da filosofia madura de Nietzsche: o eterno retorno.
Esse conceito, em princípio, que se apresenta hipoteticamente na frase “e se um dia” de
maneira emblemática, parte de um demônio, porém ganha maior força em seu
desenvolvimento, sendo tido como “concepção fundamental de Assim Falou Zaratustra”
(NIETZSCHE, 2008a, p. 79, grifo meu).
As interpretações que surgiram em torno de tal conceito muitas vezes apontam para
um sentido ambíguo, como observado por Vattimo (2010), que explicita duas
interpretações diversas, a saber, do ponto de vista cosmológico e do ponto de vista moral,
sendo a conciliação destes, no mínimo, problemática. Na interpretação cosmológica a
eterna repetição daquilo que acontece é tida como um fato, enunciando-se assim a
“necessária estrutura da realidade” (ibid., p. 8). Essa necessidade atrelada ao eterno retorno
implica que os acontecimentos não podem ocorrer de maneiras diferentes. Nesse sentido,
não há espaço para a liberdade, pois “as ações do homem são simplesmente o produto do
devir cíclico do cosmos” (ibid., p.10). No tocante à interpretação moral, o eterno retorno
não é visto como um fato condicionante onde a liberdade é suprimida; aliás, vale ressaltar
que em A Gaia Ciência a primeira enunciação do conceito do eterno retorno é exposta de
forma hipotética, pois pode inferir-se, ao menos da expressão literal, que se trata de uma
proposta feita ao homem: “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?” (id.,
2012, p. 205). Esse sentido apresenta-se como um dever, um imperativo, ou seja, um

217
critério para a escolha moral, pois soa como se se devesse agir de maneira que se quisesse
que todos os instantes da vida se repetissem eternamente.
Não é arbitrariamente que Nietzsche define o conceito como o mais pesado dos
pesos, pois esse desejo de retorno não se refere exclusivamente às dimensões desejáveis da
vida, onde o que acabaria por retornar seria apenas o que nos agrada e apraz. Pelo
contrário: de maneira geral, desejar o retorno é desejar a vida por inteira em todos os seus
aspectos, e querer todas as dimensões da vida é afirmar o mundo, sendo o sim a este
mundo como algo a ser desejado e amado.
Ao analisar essa afirmação do mundo, nos parece que deve haver uma ligação mais
profunda e estreita entre a eternidade do mundo e a decisão do homem. Primeiramente
deve-se esclarecer que a visão de mundo nietzschiana está atrelada a dois extremos: o
primeiro constitui-se em que, após caírem todas as amarras e preceitos que mantêm o
homem preso, resta-lhe se perguntar pelo que ainda existe, ou o que fica para este homem,
e posteriormente, no outro extremo, cabe a ele construir o próprio mundo, o horizonte onde
deve colocar sua vida, já que não há nada para determiná-lo, permitindo-se assim que ele
se torne de algum modo seu próprio Deus (cf. VATTIMO, 2010), esse processo e seu
resultado são nomeados por Nietzsche pelo termo niilismo. “O cair das amarras caracteriza
o desaparecimento do mundo verdadeiro e este desaparece porque se transforma em fabula,
pois desde o inicio não passou disso” (ibid., p. 56). O ponto de partida para se afirmar isso
se localiza na crítica à verdade baseada na evidencia. Tal crítica pode ser corroborada na
passagem em que Nietzsche afirma ser o primeiro princípio “[...] o modo de pensar mais
fácil triunfa sobre o mais difícil – como dogma: simlex sigillum veri. – Dico [sic]: que
clareza deva atestar algo em favor da verdade é uma perfeita criancice... [...]”
(NIETZSCHE, 2008b, p. 282, grifo meu), também presente em Além do bem e do mal,
onde escreve Nietzsche: “Ainda há ingênuos observadores de si mesmos que acreditam
existir ‘certezas imediatas’ [...]’’(id., 2013, p. 20). Isso significa que não existem verdades
por si só evidentes, sendo que a evidencia de uma proposição não passa de “sua adaptação
perfeita e sem dificuldades ao sistema de preconceitos que constituem as condições de
conservação e desenvolvimento de um certo mundo histórico a que pertencemos”
(VATTIMO, 2010, p. 58). Assim a verdade é tida como conformidade e adaptação a
realidade – explicada através de fatos históricos em um sentido linear de tempo que visa
um fim – de maneira que inferimos com base nessa conformidade a verdade das demais

218
que se seguem, sendo essa inferência, resultado de um processo histórico em que um fato é
inferido a partir de outro, sendo assumido como sinal fiel e confiável de verdade.
Engendrada na concepção temporal de Nietzsche está à recusa a historicidade, vista
por ele como sinal de decadência de uma sociedade. Em tal sociedade, há excesso de
consciência histórica, pois a cultura se tornou “história da cultura”, ou seja, a cultura se
tornou erudição: o indivíduo erudito passa a acumular conhecimentos passados sem
selecioná-los, sendo a seleção é a marca distintiva do indivíduo que possui estilo. A
extrema consciência histórica mata o desejo de criar, pois o homem perante fatos passados
tende a mumificá-los, torná-los permanentes, impossibilitando-se assim a criação e a
autenticidade, de forma que para a ocorrência da ação é necessário que haja esquecimento.
Em contrapartida, também deve haver certa relação com o passado, mas sem que se tente
tornar-se um continuador dele. Essa possibilidade se dá somente quando a história é posta
a serviço de uma força criativa. Advém do ato criador a finalidade para o passado – isso
não implica que o passado caminhe para um fim, mas sim, entendido como finalidade para
a criação. Nas palavras de Nietzsche, entende-se que “o histórico e o a-histórico são na
mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo e uma cultura”
(NIETZSCHE, 2003, p. 11). A vida é criação; o individuo é resultado dessa unidade
histórica; quando estabelecido um fim, o passado é transformado em novidade. Modelos
dessa proficuidade atribuída ao passado são a arte e a religião, que o remontaram em vista
de algo.
A partir do momento em que o homem aprende a dizer es war (“foi”, em uma
tradução literal), se condena a uma luta contínua contra o passado, pois os homens não têm
a capacidade de esquecer como os animais, que vivem a cada instante sem saber o que é o
ontem ou o hoje. Assim sendo, o passado cai como um peso sobre o homem: este vive
apenas uma sucessão de instantes, cada um dos quais sendo a negação do outro, de maneira
que o passado esvazia o presente, pois o homem não consegue se libertar do es war (cf. id.
2013). A doença histórica está atrelada à interpretação linear de tempo, que visa um telos,
de maneira que o presente se torna negativo, como falta de algo, já que sempre se busca
um fim, isto é, se vive o agora apenas visando à chegada de um futuro.
O problema da “doença histórica” continua nas obras da maturidade nietzschiana,
onde tal problema se revela como um dos “aspectos fundamentais pelos quais o niilismo se
define em sua origem e desenvolvimento” (VATTIMO, 2010, p. 54). A perda de sentido e
valor do mundo advindos do socratismo, do platonismo e do cristianismo define o

219
significado mais geral do niilismo. Esse, porém, tem um alcance muito maior. Podem-se
indicar aqui três etapas para o seu acontecimento: em um primeiro momento, encontra-se a
perda de ânimo do homem ao descobrir o desperdício de força empregado na busca de um
“sentido” para os acontecimentos, pois esse sentido inexiste; não se encontrando uma
ordem moral para o mundo, compreende-se que a ideia de alcançar-se algo é puro
equívoco, pois “[...] com o devir nada se alcança, nada é alcançado [...] (NIETZSCHE,
2008b, p. 31); em um segundo estágio o homem sedento por uma totalidade e organização
nos acontecimentos, busca conformidade em uma suprema forma de governo e de domínio,
assim estabelecendo uma dependência de um todo infinitamente superior a ele; porém, essa
ilusória segurança se esvai com a tomada de consciência de que sua crença em algo divino
e universal é infundada; esse último aspecto tem ligação direta com os anteriores, pois
quando se compreende que nada é alcançado com o devir e que sobre ele não impera
nenhuma força universal que venha agregar valor ao homem, incide-se na total condenação
desse mundo do devir e assim inventa-se um mundo que fica além do mesmo, como
verdadeiro mundo; ao compreender, no entanto, que esse subterfúgio é fruto de uma
necessidade psicológica, ocorre a última forma do niilismo, caracterizada pela descrença
em um mundo metafísico. Assim sendo não há mais a possibilidade de refugiar-se em um
mundo do além, porém “[...] não se suporta este mundo, que já não se está disposto a
negar” (ibid., p. 32).
Niilismo e historicismo desenvolvem-se paralelamente, trazendo ambos um duplo
sentido, positivo e negativo, que ocorre simultaneamente: negativo na medida em que é
indicador de fraqueza e de perda de iniciativa por parte do homem; positivo na medida em
que, com o fim das construções providencialistas da história, o campo está livre para uma
nova perspectiva que restitua ao homem a plena liberdade de iniciativa no mundo histórico
(cf. ibid). Esvaída a crença em uma ordem em que os acontecimentos estão ligados à
determinação de um deus, o homem encontra-se imerso em um fluxo irrefreável das coisas,
submetido a um tempo onde não se é capaz de reagir por imediato. Sua natureza mostra-se
em aguardar e adiar uma reação, e tais indícios são sinais de fraqueza, sinais de um tipo
decadente, pois tal homem decadente desaprende a reagir, de modo que a ação se torna
apenas resposta a um estímulo externo, e não iniciativa do agente (cf. ibid., p. 46 e p. 62).
Como observado anteriormente, a doença histórica configura os meios pelos quais o
niilismo se desenvolve, porém a “relação com o passado e a luta com o peso do es war
abrangem, um aspecto universal, tornam-se o próprio problema do niilismo” (VATTIMO,

220
2010, p. 30). Encontra-se na segunda Extemporânea a menção de que esses aspectos são a
base da doença histórica, “mas ao mesmo tempo constituem a essência do homem” (ibid.,
p.31), de maneira que o niilismo tem um caráter histórico, como indicado no parágrafo 12
de A vontade de poder (NIETZSCHE, 2008. p. 31), mas também é condição do homem
que não resolveu o problema do es war.
A incapacidade do homem de resolver o problema do es war e de se libertar do
peso do passado tem como consequência o instinto de vingança, pois o homem não
consegue transformar o “assim foi” em um “eu quis que assim fosse”, e essa transformação
de aceitar o passado tal como é, sem buscar alguém ou alguma circunstância para depositar
a responsabilidade dos acontecimentos caracteriza a renovação necessária para que haja
libertação do niilismo. “Redimir o passado no homem e recriar todo ‘‘foi até que a vontade
diga: ‘Mas assim eu quis!, Assim querei’’... a isso denominei redenção ” (id., 2011, p.189).
No entanto, o querer para trás é uma tarefa que parece impossível para a vontade, já que
ela se encontra em uma situação que não escolheu, e ao perceber sua impotência ante ao
passado, cria para si uma visão de mundo para comportar suas frustrações e justificar a
necessidade, daquele que sofre, de encontrar culpados. Essa maneira de reagir moldou toda
a metafísica, a psicologia, a representação histórica e, sobretudo, a moral, para que se
legitimasse o direito a vingança, que busca impor castigos; tal constatação encontra-se no
discurso de Zaratustra sobre a redenção (cf. ibid., p. 134). Desse processo entende-se que o
princípio de causalidade é expressão desse espírito de vingança, o qual se manifesta não
apenas pela procura de responsabilidade em sentido próprio: qualquer busca por
fundamento carrega tal instinto.
Pode se estabelecer, em um apanhado geral, que a moral, a metafísica e
cristianismo são instrumentos do espírito de vingança e que apresentam em sua origem a
busca de uma ordem, de uma estabilidade e de um valor independente da vontade; quando
tais anseios se revelam ilusórios, tende-se para o advento do niilismo. A perda das ilusões
pode ter dois sentidos: ou a absoluta incapacidade de ainda querer, ou o reconhecimento
alegre e criador do fato de que não existem tais ilusões; do “fato que não existir nenhuma
ordem fora da vontade significa que tudo deve ser criado” (VATTIMO, 2010, p. 40).
Porém, para se chegar ao ponto em que a vontade não mais busca fora de si mesma
fundamentos ou responsabilidades, e para que isso implique na resolução do problema do
es war e possibilite a passagem do niilismo em seu sentido negativo para o niilismo
superado, em que a vontade se reconheça como criadora, é necessário transpor o

221
paradigma da incapacidade de “querer para trás”, como exposto por Nietzsche no final do
discurso de Zaratustra sobre a redenção: “Quem ensinará a vontade a querer para trás?”
(NIETZSCHE, 2011, p. 135). Para resolver esse problema é imprescindível que se altere o
modo de pensar a temporalidade, o que implica em descobrir uma nova estrutura temporal
que não seja linear, em que o tempo se apresenta como uma série irreversível de instantes,
cada um dos quais sendo a sucessão de outro. Deve-se pensar uma estrutura temporal onde
a vontade possa realmente “querer para trás”, implicando assim na libertação do espirito de
vingança e do niilismo. Uma possível solução para o problema temporal encontra-se em
Assim Falou Zaratustra (ibid.), formulada sob a perspectiva da doutrina do eterno retorno
do mesmo; no entanto, este não deve ser pensado sob a perspectiva puramente moral, a
qual faz do conceito um critério de escolha referente apenas ao homem e suas ações e que
tem por premissa o dever de escolher aquilo que gostaria de escolher para a eternidade;
também não por um viés cosmológico, no qual tende-se a afirmar uma estrutura de mundo
em que a escolha do homem já não tenha sentido algum e em que já não pode haver nada
de novo, distanciando-se do discurso sobre a redenção de Zaratustra, que prega a existência
de uma vontade criadora.

A interpretação que aqui servirá de base para desenvolver uma possível solução de
tal problema será a utilizada por Vattimo em seus primeiros ensaios de Dialogo com
Nietzsche (2010). O eterno retorno do mesmo é evidenciado na passagem Da visão e do
enigma, onde Zaratustra relata uma visão tida em sonho (NIETZSCHE, 2011, p. 150):

“Olhe para este instante” – diz Zaratustra. – “Desta porta sai uma longa
e eterna estrada que volta: atrás de nós jaz uma eternidade. Tudo o que
pode correr não deve já ter uma vez percorrido essa estrada? Tudo o que
pode acontecer não deve ter já uma vez ocorrido, ter-se realizado, ter
transcorrido?... E não estão as coisas estreitamente entrelaçadas de tal
modo que este instante arrasta consigo as coisas vindouras? Portanto
também a si mesmo?”

O conceito de eterno retorno a partir dessa passagem pode ser visto como uma
inversão da visão comum de tempo, sendo concebido por Zaratustra como tempo cíclico,
possibilitando assim a retirada da pedra do passado, que era o empecilho de não poder “se
querer para trás”. Nessa estrutura circular, o que dá significado a doutrina é a função que
nela exerce o instante: dada a estrutura circular de tempo, cai-se por terra o aspecto

222
retilíneo em que o passado se tornaria um peso irreversível sobre o presente e o futuro,
onde um instante por si só não tem consistência e necessita da relação com os demais
instantes para ganhar fisionomia. Essa nova visão temporal possibilita uma determinação
recíproca entre passado e futuro que se constitui a partir do presente como momento da
decisão. É nesse momento que o passado e o futuro se unem de fato no presente, como
evidenciado em O convalescente: “O instante traz consigo todo o passado e todo o futuro:
cada momento da história torna-se decisivo para toda a eternidade: em cada instante a
existência começa... O centro está em toda a parte” (ibid., p.209). Assim sendo temos no
desenrolar de tal interpretação a superação do passado, o esquecimento reparador que abre
as portas para um mundo no qual o homem pode novamente criar.
Nesse âmbito em que o instante, a saber, o momento da decisão se torna um
absoluto, já que não há mais um devir historicista, e em que impera a impossibilidade de
recorrer a uma ordem constituída de uma vez por todas, nenhuma decisão podendo se dizer
determinada ou condicionada, recai sobre ela, a decisão, a criação dos horizontes onde
colocar o mundo desse homem que não já não possui amarras e que se libertou de todas as
justificativas ilusórias que antes o guiava. Em um mundo onde os atos praticados trarão
consigo o peso de se repetir eternamente, a irresponsabilidade do homem não mais se
justificará por conta de uma necessidade e causalidades do devir, isto é, o homem não
poderá responsabilizar outrem por suas ações. A liberdade consiste nesse instante no qual
as decisões são tomadas; esse homem terá de ser capaz de assumir plenamente suas
próprias responsabilidades.

REFERÊNCIAS

NIETZSCHE, Friedrich W. Assim Falou Zaratustra. Traduzido por Paulo C. de Souza.


São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

________. A Gaia Ciência. Traduzido por Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.

________. A vontade de poder. Traduzido por Marcos S. P. Fernandes e Francisco J. Dias


de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008b.

________. Ecce homo. Traduzido por Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008a.

________. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagens da história


para a vida. Traduzido por Marco A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
(Coleção Conexões)

223
VATTIMO, Gianni. Diálogo com Nietzsche. Traduzido por Silvana C. Leite. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2010.

224
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM KANT RELACIONADA À TEORIA
DA JUSTIÇA DE RAWLS

Emanuel Lanzini Stobbe74


Universidade Estadual de Londrina
E-mail: e.l.stobbe@t-online.de

RESUMO

Resumo: Este trabalho tem por objetivo relacionar a noção de dignidade da pessoa
humana (Menschenwürde), na filosofia de Kant (em especial na Fundamentação da
Metafísica dos Costumes), com a teoria da justiça elaborada por John Rawls, visando
apresentar em que medida Rawls leva em conta os conceitos de autonomia e dignidade. A
dignidade da pessoa, em Kant, é teorizada nas segunda e terceira formulações do
imperativo categórico, e se dá por meio tanto da autonomia da vontade como da noção de
fim em si mesmo (a partir de um reino dos fins, segundo o qual tudo possui uma dignidade
ou um preço). Considerado o ser humano como livre, e potencialmente autônomo, tal
autonomia assegura-lhe uma dignidade, sendo tal pessoa capaz de construir sua própria
personalidade (que a torna única). Em Uma Teoria da Justiça, o autor estadunidense
fundamenta sua visão acerca da justiça, levando em consideração o entendimento do ser
humano enquanto fim em si mesmo. Visando tratar da justiça como equidade, estabelece
dois princípios de justiça, sendo que do primeiro são defendidas as liberdades
fundamentais dos indivíduos (que devem ser garantidas, para uma sociedade ser justa).
Pressupõe-se, assim, uma posição original na qual os indivíduos estabeleceriam tais
princípios, partindo de um véu de ignorância (para Rawls, a melhor caracterização da
posição original) acerca do papel de cada um na sociedade. Nesta posição original, Rawls
pensa os indivíduos enquanto mutuamente desinteressados (sem terem interesse nos
interesses dos demais). Apresentados os principais argumentos de Rawls, traça-se um
paralelo entre ambos os filósofos, ao relacionar (1) a autonomia ao desinteresse mútuo, (2)
a liberdade em Kant às liberdades básicas em Rawls, e (3) o imperativo categórico aos
princípios da justiça. No primeiro ponto, pode-se dizer que os indivíduos mutuamente
desinteressados escolhem de modo efetivamente autônomo (desprovidos de motivações
externas) os princípios da justiça. Deste modo, posteriormente considerariam os demais
indivíduos como dotados de dignidade (enquanto fins em si mesmos), ao reconhecer nos
outros a liberdade (logo, sua possível autonomia). No segundo ponto, pode-se relacionar as
liberdades básicas em Rawls com a liberdade em Kant, observando-se que, para ele, o
direto à liberdade estaria relacionado à possibilidade da autonomia. De modo similar,
Rawls estabelece liberdades básicas para os indivíduos que, através de sua autonomia (isto
é, do desinteresse mútuo), escolheram equitativamente os princípios da justiça. Ao tratar da
coerção, contudo, de certo modo observa-se um possível distanciamento entre Kant e
Rawls, na medida em Rawls ampliaria o uso da coerção para além da coerção legítima,
podendo ser esse um problema a ser debatido. No terceiro ponto, temos a comparação entre
os princípios da justiça e o imperativo categórico, do modo como o próprio Rawls expõe,
que agir com base nos princípios da justiça equivale a agir com base em imperativos
categóricos, ao pensarmos que são aplicados, independendo de objetivos particulares. Uma
vez observados esses pontos principais, é possível esboçar em que medida Rawls leva em

74
Graduando em Filosofia na Universidade Estadual de Londrina (UEL), e bolsista de iniciação científica
pelo CNPq, sob orientação do prof. Dr. Aguinaldo Pavão.

225
consideração a autonomia e a dignidade da pessoa, do modo como foram teorizadas por
Kant.
Palavras-chaves: Kant, Rawls, dignidade da pessoa humana, liberdades fundamentais

A DIGNIDADE DA PESSOA EM KANT

A filosofia moral de Kant, pode-se dizer, tem por base a autonomia da vontade, da
qual, ao se pensar em uma dignidade da pessoa humana (Menschenwürde), considera uma
pessoa como autônoma no uso de sua razão, uma vez que é livre para estabelecer e seguir
leis de como deve agir. Deste modo, um dos mais importantes pontos da filosofia kantiana
é justamente o conceito de dignidade da pessoa.
No artigo "Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento?" 75 , Kant inicialmente
esboça seu conceito de autonomia, como o uso do seu próprio entendimento, conceito este
que é desenvolvido em obras posteriores. A saída da menoridade e o desenvolvimento da
capacidade de se servir do seu próprio entendimento demarcam exatamente o propósito da
autonomia, de tal modo que o "uso público da razão" reafirmaria a liberdade como
condição de possibilidade do exercício da autonomia.
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant trata dos conceitos de
autonomia e dignidade, que estariam vinculados entre si. A autonomia está relacionada à
vontade, ou, no caso, à boa vontade (guter Wille), sendo, deste modo, a autonomia da
vontade (do uso da razão prática). A vontade, por si, não é nem boa, nem má; depende do
uso que dela é feito. Assim, uma boa vontade é resultado de seu bom uso. Diz Kant: "não
há nada em lugar algum, no mundo e até mesmo fora dele, que se possa pensar como
irrestritamente bom, a não ser tão-somente uma boa vontade (KANT, 2009, p. 101).
A autonomia, para Kant, seria "o fundamento da dignidade da natureza humana e
de toda natureza racional" (ibid., p. 269). O ser humano, partindo do bom uso de sua
vontade, deveria, para agir moralmente, agir por dever (não meramente conforme a ele), ou
seja, por respeito à lei moral. A razão é autônoma quando dá a si mesma tal lei, e assim
respeita a lei que ela própria propôs. Para isso, tal razão deve eliminar de seu princípio de
ação conteúdos empíricos, pois, de outro modo, seria heterônoma (quer dizer, não

75
Abreviaturas utilizadas no trabalho: de Kant: GMS (Fundamentação da Metafísica dos Costumes), MS
(Metafísica dos Costumes), RL (Doutrina da Direito), e WA ("Resposta à pergunta: O que é
Esclarecimento?"). De Rawls: TJ (Uma Teoria da Justiça), e HMP (História da Filosofia Moral). As
indicações concernentes às traduções estão contidas nas referências bibliográficas.

226
determinaria a si mesma). Para que possa escolher as máximas que possam ser
universalizadas, isto é, para ser autônoma, a vontade deve ser livre. Deste modo,
considerando a vontade livre, pode ser imputada por seus atos, tanto a autônoma como a
heterônoma (que, por mais que possa não ter seu fundamento na razão, ainda assim pode
ser considerada livre, e, logo, imputável).
Kant, ao tratar do imperativo categórico, apresenta três formulações, das quais a
primeira e a terceira possuem variantes. A dignidade, isto é, o tratamento de um ser
racional enquanto fim em si mesmo, é introduzida na segunda formulação do imperativo
categórico: "age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na
pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como
meio" (ibid., p. 243).
A autonomia é mais claramente abordada na fórmula da autonomia, terceira
formulação do imperativo categórico, para agir de tal modo que "(...) a vontade possa,
mediante sua máxima, se considerar ao mesmo tempo a si mesma como legislando
universalmente" (ibid., p. 263).
Deve-se estabelecer, na segunda formulação, uma distinção entre "meramente como
meio" (bloß als Mittel) e "como meio". É possível agir moralmente mesmo considerando
uma outra pessoa como meio, desde que também seja considerada como fim em si mesmo.
Isto é, a dignidade do outro deve ser respeitada, uma vez que ele também é dotado de uma
vontade livre, e potencialmente autônoma. Para Kant, somente a humanidade e a
moralidade possuem dignidade, de tal modo que a moralidade garanta à humanidade o
tratamento de fim em si mesmo:

Ora, a moralidade é a única condição sob a qual um ser racional pode ser fim em
si mesmo: pois só através dela é possível ser membro legislante no reino dos
fins. Portanto, a moralidade e a humanidade, na medida em que ela é capaz da
mesma, é a única coisa que tem dignidade (ibid., p. 265).

Pode-se pensar que, com "humanidade", Kant esteja se referindo a seres racionais
autônomos. Isto é, outros seres racionais além dos humanos também possuiriam dignidade,
uma vez que os conceitos de dignidade e autonomia não são antropológicos. Acerca disso,
diz Allen Wood:

Kant chama a natureza racional (em qualquer ser possível) de "humanidade", na


medida em que a razão é usada para construir fins de qualquer espécie.
Humanidade é distinguida de "personalidade", que é a capacidade racional de ser
moralmente responsável. Dizer que a "humanidade" é um fim em si mesma é
atribuir valor a todos os nossos fins permissíveis, sejam eles apreciados pela
moralidade ou não (WOOD, 2008, p. 170).

227
Rawls entende, comentando Kant, a humanidade como "nossas faculdades e
capacidades que nos caracterizam como pessoas razoáveis e racionais que pertencem ao
mundo natural" (RAWLS, 2005, p. 217).
Considerando isso, a partir da concepção de Wood, observa-se a noção de
"humanidade" enquanto natureza racional em qualquer ser possível. Deste modo, tem-se
que um ser (mesmo um ser não humano), pelo fato de ser racional, possui (de algum modo)
humanidade, e portanto dignidade. Isto é, o conceito de humanidade está relacionado ao
conceito de pessoa (como aponta Rawls), que por sua vez está ligado ao de racionalidade.
A humanidade, no caso, não é entendida exclusivamente como propriedade de seres
"humanos", mas sim de seres racionais. De certo, este é um ponto que mereceria ser tratado
mais afundo para um melhor entendimento da questão propriamente dita, não obstante
imagino que esta abordagem já é suficiente para o propósito desta comunicação.
Sobre o conceito de fim em si mesmo, Kant estabelece que tudo, em um reino dos
fins, "tem ou bem um preço ou bem uma dignidade" (KANT, op. cit., p. 265). Enquanto o
primeiro seria substituível, o segundo seria exclusivo, no caso, de cada pessoa (ser racional
dotado de uma personalidade). A pessoa humana, individual, deve ser compreendida
enquanto fim em si mesma, já que é racional e possuidora de uma boa vontade, assim
como da liberdade de utilizar autonomamente sua razão prática. Cada pessoa constrói sua
personalidade, inerente a cada indivíduo (tornando-o único), e essa personalidade garante a
dignidade da pessoa humana. Para Kant, "a dignidade do homem consiste exatamente
nessa capacidade de ser universalmente legislante, ressalvada a condição de estar ao
mesmo tempo submetido a exatamente essa legislação" (ibid., p. 285).
Pode-se aplicar a fórmula da humanidade em alguns exemplos já anteriormente
utilizados para a primeira formulação do imperativo categórico (a fórmula da lei universal,
da universalização das máximas). Podemos dizer, assim, que uma pessoa, ao prometer
falsamente, não está respeitando a dignidade da outra pessoa, e assim não está tomando a
humanidade como um fim, mas como um mero meio. Deste modo, a falsa promessa é
imoral, visto que não condiz com o tratamento adequado da humanidade como fim em si
mesmo. Também no exemplo do suicídio pode-se pensar que o indivíduo não toma a
humanidade como fim em si mesmo, sendo assim considerado como eticamente
condenável (por mais que seja possível pensá-lo como juridicamente permitido, de modo a
não ser uma proibição necessariamente moral, mas apenas ética).

228
Kant também trata da dignidade da pessoa na Metafísica dos Costumes. Mais
especificamente na Doutrina do Direito, observamos que tal dignidade é respeitada mesmo
no que tange ao direito privado, no caso, o da posse jurídica de uma pessoa. Ao distinguir
"posse"76 (Besitz) de "uso" (Gebrauch) (id., 2008, p. 121), Kant encontra uma possível
saída para como seria possível, ao mesmo tempo, ter um direto sobre uma pessoa como
coisa (no caso dos direitos de matrimônio77, dos pais e do chefe do lar) e usá-la como
pessoa, isto é, respeitando sua condição de fim em si mesmo (dotada de dignidade).
Por mais que tal distinção seja suficiente para resolver o problema, para Otfried
Höffe:

É verdade que Kant não considera o cônjuge, os filhos e o pessoal da casa como
uma "posse"; só é lícito dispor livremente de coisas materiais; nenhum ser
humano é "proprietário de si mesmo..., e muito menos ainda de outras pessoas"
(§ 17); mas eles fazem parte dos "bens" (§ 4); um cônjuge que foge sempre pode
ser buscado pelo outro, "como uma coisa" (§ 25) (HÖFFE, 2005, p. 245).

Kant faz uma distinção entre "ser seu próprio senhor " e ser "proprietário de si
mesmo" (KANT, op. cit., p. 115). Deste modo, a primeira condição não implicaria
necessariamente a segunda. Deste modo, como Höffe sublinha, não seria possível ser
proprietário de outras pessoas, uma vez que não seria nem mesmo o seu próprio
proprietário, "posto que é responsável pela humanidade em sua própria pessoa" (op. cit.).
Isto é, não se pode dispor de si do modo como lhe agrade, porque deve respeitar sua
própria humanidade. Considerar-se-ia, assim, a importância do conceito de "uso" dado por
Kant (e sua diferença do de "posse"), uma vez que através dele seria respeitada a
humanidade em questão. Dada esta explicitação, pode-se seguir agora o curso proposto
nesta comunicação.

76
Acerca do conceito de posse, é interessante ressaltar que "Kant distingue duas espécies de posse, que ele
chama de posse 'fenomenal' e posse 'noumenal' (ou 'inteligível')" (WOOD, op. cit., p. 207). A posse
fenomenal se daria através de um contato corporal imediato (por exemplo, uma mão que está ligada a um
corpo, sendo posse de uma determinada pessoa). A posse inteligível, por sua vez, se daria partindo de um
conceito puro do entendimento. A noção de propriedade (Eigentum) em Kant depende da posse inteligível.
77
Não obstante, ainda restaria uma abordagem mais profunda para apurar, em especial no exemplo do
matrimônio, se e como ambos os cônjuges poderiam utilizar-se mutuamente e ainda assim garantir a
dignidade.

229
A TEORIA DA JUSTIÇA DE RAWLS

Partindo do conceito de dignidade da pessoa humana, podemos fazer agora algumas


considerações acerca da teoria da justiça de Rawls, em especial da obra Uma Teoria da
Justiça.
A justiça, para Rawls, é a primeira virtude das instituições sociais, de modo análogo
ao papel da verdade nos sistemas de pensamento. Tem por objeto primário a estrutura
básica da sociedade, isto é, "a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes
distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão das vantagens
provenientes da cooperação social" (RAWLS, 1997, p. 7-8).
Logo no início do livro, diz Rawls:

Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o
bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça
nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior
partilhado por todos (ibid., p. 4).

A consideração de uma inviolabilidade de cada indivíduo, levando em conta sua


autonomia, é compatível com o ponto defendido por Kant, através do qual o indivíduo não
poderia ser tratado enquanto mero meio para se atingir um bem maior em prol da maior
parte dos indivíduos (que seria, de acordo com Rawls, uma abordagem utilitarista). Se
assim fosse, não seria possível garantir uma universalidade ao tratar do valor que cada
pessoa possui, ou seja, como fim em si mesmo.
Tal inviolabilidade de cada indivíduo é traduzida na teoria de Rawls com a
priorização de certas liberdades fundamentais, que serão retomadas na sequência. Ela se
observa quando o autor trata da posição original e do véu de ignorância78. Rawls estabelece
que uma sociedade, para ser justa, pressupõe79 uma posição original (no caso, sua melhor
caracterização seria o véu de ignorância), na qual os indivíduos deveriam decidir os
princípios da justiça, através de sua autonomia, desprovidos de qualquer conhecimento
acerca de qual papel cada indivíduo desempenharia nesta sociedade (por conta disso, se faz
necessário um véu de ignorância):

78
Posição original e véu de ignorância são, de fato, coisas distintas. O véu de ignorância é uma das possíveis
caracterizações da posição original (que, em termos contratualistas, é uma posição hipotética), sendo, para
Rawls, a melhor caracterização, uma vez que garante à concepção de justiça em questão imparcialidade.
79
"Pressupõe", no sentido que a sociedade existe independente da deliberação hipotética sobre princípios de
justiça. Ainda assim, pode-se pensar que os indivíduos que deliberadamente agem de acordo com os
princípios da justiça agem também de acordo com a posição original (por mais que hipotética) e com as
restrições que lhe são concernentes.

230
Como cada pessoa deve decidir com o uso da razão o que constitui o seu bem,
isto é, o sistema de finalidades que, de acordo com a sua razão, ela deve buscar,
assim um grupo de pessoas deve decidir de uma vez por todas tudo aquilo que
entre elas se deve considerar justo e injusto (ibid., p. 13).

Rawls trata da justiça como equidade, ou seja, um tratamento menos desigual de


cada indivíduo, sendo que tal teoria serve de contraponto às teorias anteriores, como o
utilitarismo. Uma vez que não se pode atribuir um preço para uma dignidade (no caso, uma
pessoa), a distribuição da justiça 80 deve se dar de modo equivalente 81 para todos os
cidadãos. A posição original se daria de tal modo que caracterizaria as decisões de homens
racionais e livres, remetendo assim à legislação moral indicada por Kant (ibid., p. 276).

A DIGNIDADE DA PESSOA EM KANT RELACIONADA À TEORIA DA


JUSTIÇA DE RAWLS

Pode-se traçar uma comparação entre o que Rawls chama de "desinteresse mútuo",
e o conceito kantiano de autonomia. Ao pensar a justiça como equidade tal qual as pessoas
livres e racionais aceitariam os princípios da justiça escolhidos por todos em uma posição
original, admite-se que estas estariam preocupadas em promover seus interesses próprios,
isto é, sem interesse nos interesses dos demais. Para Rawls, "uma característica da justiça
como equidade é a de conceber as partes da situação inicial como racionais e mutuamente
desinteressadas" (ibid., p. 15), de modo que elas próprias escolheriam, sem influências
exteriores, os princípios da justiça. Ele próprio reconhece a possibilidade de tal analogia:
"podemos também observar que o pressuposto, no que concerne aos motivos, do
desinteresse mútuo, é paralelo à noção kantiana de autonomia (...)" (ibid., p. 278). Se
pensamos em pessoas mutuamente desinteressadas, como seria possível chegar ao ponto de
um indivíduo reconhecer o outro como um fim em si mesmo? Ora, encontra-se aqui uma
possível explicação na motivação moral teorizada por Kant. Para Kant, um indivíduo
reconhece o outro como fim em si mesmo na medida em que admite sua liberdade (e,
consequentemente, a possibilidade de sua autonomia). Entendendo o outro como

80
A distribuição da justiça se daria com a distribuição dos bens sociais primários: direitos, liberdades, renda,
riqueza e as bases sociais do autorrespeito.
81
A distribuição pode se dar de modo desigual, na medida em que seja aceitável também aos que possuem
menos liberdade, desde que o montante destinado aos menos favorecidos seja maior do que o montante
destinado a todos numa situação hipotética de igualdade. A exigência de iguais liberdades fundamentais é
mais importante do que a exigência de uma maior igualdade na distribuição da renda, riqueza e propriedade,
uma vez que o primeiro princípio possui maior prioridade que o segundo. Neste caso, a distribuição não
necessita ser estritamente igual, basta ser equitativa.

231
autônomo, considera-o como possuidor de uma dignidade, de tal modo que, através da
própria lei moral, no caso, o imperativo categórico, reconhece que não pode agir tomando
o outro como coisa (meio), pois aquele próprio é autônomo quanto ao uso de sua razão
prática, sua vontade. Com respeito daí derivado, os indivíduos mutuamente desinteressados
passariam a respeitar o papel de cada um na escolha dos princípios da justiça, em razão de
sua própria autonomia.
Os princípios da justiça, que para Rawls são definidos na posição original pelos
indivíduos (racionais, livres, e autônomos), seriam estabelecidos partindo de escolhas
destes.
Tais princípios, segundo Rawls, seriam82:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de
liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de
liberdades para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal
modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos
dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a
todos (ibid., p. 64).

Por mais que o segundo princípio também possua sua importância para a questão, é
no primeiro princípio da justiça que se assenta a mais nítida influência do conceito da
dignidade da pessoa de Kant. Uma vez que uma pessoa possui direitos iguais aos das
demais, possui consequentemente liberdades básicas equivalentes, já que, por não poder
estabelecer uma hierarquização dos valores das pessoas (uma vez que, por possuir
dignidade, cada pessoa é única), não se faz possível distribuir as liberdades de um modo
não equitativo. Por mais que Kant não trate de liberdades básicas, mas sim de uma
liberdade pura e simples, para se respeitar a dignidade dos demais indivíduos faz-se
necessário observar também a liberdade da vontade de cada um, já que, ao possuir tal
liberdade, por consequência pode possuir também autonomia, de tal modo que deva ser
tomado enquanto detentor de uma dignidade. O direto à liberdade, isto é, à não coerção
ilegítima por parte de outros, deveria ser garantido, para que seja respeitada a dignidade,
uma vez observada tal "qualidade humana de ser o seu próprio senhor (sui iuris), bem
como ser um ser humano irrepreensível (iusti)" (KANT, op. cit., p. 84), sendo que, antes de
realizar algum ato concernente a direitos, não causou dano a ninguém. Diz Kant:

82
Em função do desenvolvimento argumentativo de Rawls na Teoria da Justiça, é apresentada no parágrafo
46 a versão final dos dois princípios. Apesar disso, não há diferença significativa para o desenvolvimento do
presente trabalho tratar desta primeira versão.

232
A liberdade (a independência de ser constrangido pelo arbítrio 83 alheio), na
medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo com
uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens, em
virtude da humanidade destes (ibid., p. 83).

Rawls considera que as liberdades básicas mais importantes são:

(...) a liberdade política (o direito de votar e ocupar um cargo público) e a


liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as
liberdades da pessoa, que incluem a proteção contra a opressão psicológica e a
agressão física (integridade da pessoa); o direito à propriedade privada e a
proteção contra a prisão e detenção arbitrárias, de acordo com o conceito do
estado de direito (RAWLS, op. cit. p. 65).

Dentre as liberdades básicas, pode-se observar que Rawls inclui as liberdades da


pessoa, isto é, o direito à não coerção (psicológica ou física). Em Kant, temos que uma
pessoa é autônoma quando ela própria possui condições, através do uso de sua razão, de
agir livremente, conforme sua vontade. Kant considera que, devido a tal autonomia (logo,
tal dignidade), nenhuma outra pessoa pode exercer qualquer tipo de coerção sobre a aquela
que é autônoma, a não ser no caso da coerção legítima. Para Kant, "ligada ao direito pelo
princípio de contradição há uma competência de exercer coerção sobre alguém que o
viola" (KANT, op. cit., p. 78), isto é, se um uso da liberdade, feito por uma pessoa, é
obstáculo à liberdade de outra, faz-se conforme à liberdade, de acordo com leis universais
(de modo a ser justo), uma outra coerção, visando retirar o obstáculo (coerção legítima).
Rawls, por sua vez, ampliaria o uso da coerção para além da coerção legítima, em especial
ao tratar do segundo princípio (isto é, tal ampliação estaria na distribuição vantajosa para
todos). Encontra-se, neste aspecto, a possibilidade de um distanciamento entre Kant e
Rawls, um problema tal que seria válido tratar com maior profundidade em trabalhos
posteriores.
Sobre o entendimento de Rawls acerca do tratamento da pessoa humana como fim
em si mesmo, ele diz, apoiado na possível interpretação kantiana dos princípios da justiça:

Um outro modo de colocar a questão é dizer que os princípios da justiça


manifestam, na estrutura básica da sociedade, o desejo dos homens de tratar uns
aos outros não apenas como meios, mas como finalidades em si mesmos
(RAWLS, op. cit., p. 195).

Mais claramente no parágrafo 40 da Teoria da Justiça, Rawls apresenta alguns


argumentos sobre a possível comparação entre sua teoria e a de Kant. Para ele, os
princípios da justiça podem ser comparados aos imperativos categóricos, de modo que
83
Na tradução utilizada da MS, "Willkür" é equivocadamente traduzido como "escolha". A tradução mais
coerente, neste caso, seria "arbítrio" (por exemplo, a expressão "freier Willkür" refere-se ao "livre-arbítrio", e
não a uma livre escolha). O equivalente de "escolha", em alemão, seria "Wahl".

233
"agir com base nos princípios da justiça é agir com base em imperativos categóricos, no
sentido de que eles se aplicam a nós, quaisquer sejam os nossos objetivos particulares"
(ibid., p. 278).

Rawls considera, deste modo, que a posição original pode ser entendida como "uma
interpretação procedimental da concepção kantiana de autonomia, e do imperativo
categórico, dentro da estrutura de uma teoria empírica" (ibid., p. 281). Para ele, uma vez
que os indivíduos são de modo similar racionais e livres, cada um tem, assim, uma voz
igual na escolha dos princípios da justiça, que se darão para todos, sendo que "isso de
forma alguma anula os interesses da pessoa, como a natureza coletiva da escolha talvez
pareça sugerir" (ibid., p. 282).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, Rawls afirma ter se distanciado de Kant em vários aspectos, uma vez que
sua teoria trata de uma justiça mais no sentido social, enquanto o problema de Kant seria
outro. Não obstante, ainda assim podemos observar que, como era o objetivo desta
comunicação apresentar, o conceito de dignidade da pessoa humana teorizado por Kant é
levado em consideração na tese de Rawls, em especial se tratando da posição original (no
caso, do véu de ignorância) que sugere a autonomia dos indivíduos (através do desinteresse
mútuo), e dos princípios de justiça que, provenientes da escolha desses indivíduos
autônomos, guardam sua dignidade, através da manutenção das liberdades fundamentais.

REFERÊNCIAS

HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini,
2ª ed. rev. Bauru, SP: Edipro, 2008.

______. (MS, RL): Die Metaphysik der Sitten. Mit einer Einleitung herausgegeben von Hans
Ebeling. Stuttgart: Reclam Universal-Bibliothek, 1990.

______. (GMS): Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Edição bilíngue, tradução de Guido
Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009.

______. Practical philosophy. Edited by Mary J. Gregor. Cambridge: Cambridge University Press,
1999.

234
______. (WA): Textos seletos. Traduções de Raimundo Vier e Floriano de Sousa Fernandes,
introdução de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. (Coleção Textos
Filosóficos).

RAWLS, John. A Theory Of Justice. Revised edition. Cambridge, Massachusetts: The Harvard
University Press, 1999.

______. (HMP): História da Filosofia Moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

______. (TJ): Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.

WOOD, Allen. Kant – Introdução. Tradução de Delamar José Volpato Dutra. Porto Alegre:
Artmed, 2008.

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