Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
I
O CONHECIMENTO COMO O
MAIS POTENTE D OS AFETOS
(Erkenntnis zum mächtigsten Affekt zu machen)
SPINOZA
Conhecimento e afetividade em Spinoza*
Pascal Sévérac**
17
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 18
Nada do que uma ideia falsa tem de positivo é suprimido pela presença do
verdadeiro enquanto verdadeiro.4
Um afeto não pode ser refreado nem suprimido senão por um afeto con-
trário e mais forte do que o afeto a ser refreado.5
18
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 19
Três problemas, portanto, dirigirão nosso estudo, que não tem pre-
tensão de ser exaustivo em cada um deles, mas que balizará as pistas a
explorar:
19
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 20
20
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 21
aquele que busca ficar espantado; não é tanto aquele que está empe-
nhado na via difícil do conhecimento racional das relações entre as coi-
sas, senão aquele que busca distrair-se (Pascal diria, sem dúvida, diver-
tir-se) pela contemplação de coisas novas, inéditas, inauditas10. Ora, essa
distração da mente admirativa, segundo a explicação que segue a defi-
nição de admiração, não se deve a uma “causa real”, ou seja, a alguma
propriedade inerente à coisa admirada. A desconexão mental não tem
causa na própria coisa, mas só em nós: deve-se a uma ausência, a um elo
de ideias imaginativas, constitutivas de nossa memória, na qual ordi-
nariamente vem se inscrever toda percepção de coisa. Com efeito, ha-
bitualmente, quando percebemos uma coisa, ela nos faz pensar em
outra coisa, faz-nos passar a outra coisa: o ordinário de nosso imagi-
nário é cairmos do pensamento de uma coisa no pensamento de outra,
conforme o encadeamento regrado das afecções de nosso corpo11. Mas
quando a coisa é para nós nova, não caímos – mantemo-nos fixados. A
admiração é, pois, uma figura de enorme passividade: ela provém de
uma imaginação fixa, obsessiva, que está em ruptura com a imaginação
móvel, movente, própria a nossa memória. Logo, a admiração não pode
ser, em Spinoza, o afeto que impele à aquisição dos conhecimentos; pelo
contrário, ela equivale a uma ruptura no encadeamento ideal e à im-
possibilidade de pensar as relações entre coisas. E, contrariamente ao
que ela é em Descartes, tampouco poderia ser o afeto pelo qual nos tor-
namos sensíveis ao infinito, pois para Spinoza nada é em si admirável,
nada é em si fora do comum, nem a infinitude divina, imanente a seus
modos, nem a infinitude do livre-arbítrio, ilusão nascida de nossa ig-
norância das causas. Deus é a comunidade universal que todas as coi-
10. Raramente encontramos o termo curiosidade sob a pena de Spinoza: de nosso conhecimento, duas
vezes apenas, e de forma mais pejorativa, em oposição à utilidade. No Tratado teológico-político, cap. VII,
§ 17, no qual Spinoza afirma que o que podemos compreender do sentido das Escrituras basta para nossa
utilidade, ou seja, para nos conduzir à beatitude, “o resto é mais uma questão de curiosidade que de uti-
lidade” (Œuvres III, PUF, 1999, trad. P.-F. Moreau e J. Lagrée, p. 311); na Ética, Parte III, proposição 59,
escólio, em que Spinoza afirma que os afetos que se podem compor a partir dos três primitivos são inu-
meráveis, e que nos bastará reter apenas os principais, “o resto, que omiti, é mais uma questão de curio-
sidade que de utilidade”.
11. Ver Ética, Parte II, proposição 18 e seu escólio.
21
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 22
Tudo aquilo pelo qual, em virtude da razão, nós nos esforçamos, não é
senão compreender; e a mente, enquanto utiliza a razão, não julga ser-lhe
útil senão aquilo que a conduz ao compreender.
Quanto mais a mente é capaz de compreender as coisas pelo terceiro gê-
nero de conhecimento, tanto mais deseja compreendê-las por esse mesmo
gênero.
22
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 23
14. Tratado da reforma do intelecto, § 14: “Eis, pois, o fim a que tendo: adquirir essa natureza e esforçar-
-me para que, comigo, muitos outros a adquiram; isto é, faz parte de minha felicidade o esforçar-me
para que muitos outros pensem como eu e que seu intelecto e seu desejo convenham com o meu inte-
lecto e o meu desejo”; § 16: “Já se pode ver que desejo dirigir todas as ciências a um só fim, um só escopo,
a saber, o de alcançar aquela suma perfeição humana de que falamos” (e a nota [e] precisa: “As ciências
têm um único fim para o qual devem ser todas dirigidas”).
15. Segundo uma expressão do escólio da proposição 29 da Parte II da Ética.
23
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 24
2. O conhecimento na afetividade
24
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 25
16. Ética, Parte III, definição 3: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de
agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções.”
25
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 26
26
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 27
18. O que não significa, muito evidentemente, que esse corpo exterior que nomeamos “medicamento”
seja a causa real da alegria que experimentamos; pode sempre haver, com efeito, uma diferença entre a
causa e o objeto de nosso amor; o que explica, aliás, que no amor frequentemente nos desprezemos e que
nossos amores possam tornar-se excessivos e infelizes.
27
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 28
O afeto, que se diz paixão da alma [animi pathema], é uma ideia confusa,
pela qual a mente afirma uma força de existir, maior ou menor do que
antes, de seu corpo ou de uma parte dele […]
E a explicação precisa:
28
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 29
Com efeito, todas as ideias que temos dos corpos indicam antes a consti-
tuição atual de nosso corpo (pelo corolário 2 da proposição 16 da Parte II)
que a natureza dos corpos exteriores. Ora, a ideia que constitui a forma do
afeto deve indicar ou exprimir a constituição do corpo ou de uma de suas
partes, constituição que o próprio corpo ou alguma de suas partes tem por-
que sua potência de agir ou sua força de existir é aumentada ou diminuída,
estimulada ou refreada.
29
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 30
19. Ética, Parte III, definição geral dos afetos: “O afeto, que se diz paixão do ânimo, é uma ideia confusa
[…] cuja presença determina a própria mente a pensar nisto mais que naquilo.”
30
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 31
meios que lhe permitem enfrentá-lo; mas inibida pela admiração do mal,
não pode pensar – mediante especialmente as ligações ideais constitutivas
de sua memória – nas coisas que satisfariam seu desejo de salvação. Meu
desejo é então esvaziado de suas forças pela admiração, que é conheci-
mento de alguma coisa, decerto, mas um conhecimento desligado de tudo.
Talvez a melancolia, contra a qual é tão importante lutar (melancho-
liam expellere)20, seja ela própria uma consternação referida a si: Spinoza
a define como uma tristeza total21; e ela parece deveras se identificar, na
mente, à impossibilidade de pensar os meios que nos poderiam livrar dela.
O conhecimento imaginativo, na medida em que convoca a memória, na
medida em que dinamiza o pensamento representativo, é portanto ne-
cessário, na maior parte do tempo, para conquistar sua salvação22.
Na Ética, entretanto, Spinoza confia ao conhecimento intelectual a
potência de nossa liberdade, que é antes de tudo uma liberação relati-
vamente aos afetos passionais nocivos. Como se opera, então, essa in-
teligência de nossa afetividade? Que potência o conhecimento nos dá
para lutarmos contra os maus afetos? Esse conhecimento intelectual da
afetividade pode suplantar, pura e simplesmente, o conhecimento ima-
ginativo implicado na afetividade passional?
3. O conhecimento da afetividade
20. Ética, Parte IV, proposição 45, escólio: “Por que, com efeito, seria melhor matar a fome e a sede do
que expulsar a melancolia? Este é o meu princípio e assim me orientei.”
21. Ver Ética, Parte III, proposição 11, escólio.
22. É um tema desenvolvido especialmente no Tratado teológico-político.
31
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 32
racional pode produzir uma afetividade (não mais passional, mas ela
própria racional) suscetível não somente de resistir aos piores afetos,
mas mesmo de destruí-los.
Spinoza não gosta de demorar-se sobre a impotência dos homens:
ele deixa aos supersticiosos e aos melancólicos a preocupação de escar-
necê-la, maldizê-la, criticá-la. Porém, como “é preciso conhecer tanto a
potência de nossa natureza como a sua impotência, para que possamos
determinar, quanto à moderação dos afetos, o que pode a razão e o que
não pode”23, não se pode fazer pouco caso da fraqueza de certos afetos
racionais relativamente, em especial, aos desejos passionais pelas coisas
prazerosas que representamos como presentes. Assim, do conhecimento
verdadeiro do bem e do mal nascem desejos que são racionais: desejos
de gozar do bem e de evitar o que dele nos afasta, o mal. Mas, em rela-
ção aos desejos “pelas coisas que são agradáveis no presente”24, esses de-
sejos racionais são impotentes. Pode-se falar de um defeito da razão, de
uma falta de conhecimento de nossas ideias verdadeiras, incapazes de
realmente nos fazer desejar o que é bom para nós? A razão em si mesma
é potência de conhecer e não envolve nenhuma privação de conheci-
mento, própria só às ideias que são ditas falsas25. Mas é frequente que
vejamos claramente o melhor, que o aprovemos, e sigamos contudo o
pior26. Por quê? Muito simplesmente porque a razão, apesar de ser um
conhecimento pelas causas, apesar de fazer-nos ver certos fenômenos
como necessários, não obstante é sempre de início abstrata, e se refere
a coisas que imaginamos como futuras ou mesmo contingentes27. Sa-
bemos, assim, que “fumar mata”, que excesso de comida, de álcool, de
velocidade nos põe em perigo: deparamos aí com conhecimentos ver-
dadeiros, que nos mostram o que é verdadeiramente bem e mal, isto é,
32
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 33
Não podemos ter da duração das coisas […] senão um conhecimento ex-
tremamente inadequado, e […] determinamos os tempos de existência das
coisas só pela imaginação, a qual não é afetada pela imagem de uma coisa
futura da mesma maneira que pela imagem de uma coisa presente. Daí que
o conhecimento verdadeiro que temos do bem e do mal só pode ser abs-
trato ou universal, e que o juízo que fazemos sobre a ordem das coisas e a
conexão das causas, para podermos determinar o que é, no presente, bom
ou mau para nós, é mais imaginário que real.28
33
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 34
fazer desejar outra coisa que não aquilo que um conhecimento imagi-
nativo nos apresenta como prazeroso. Em compensação, é possível tra-
balhar para o futuro, exercitando-nos em imaginar os meios de lutar, de
não “ceder à tentação”, que será sempre grande. A proposição 7 da Parte
V da Ética afirma assim:
Os afetos que nascem da razão ou que ela suscita são mais potentes que
aqueles que estão referidos às coisas singulares que contemplamos como
ausentes.
34
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 35
35
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 36
NIETZSCHE
“Fazer do conhecimento o mais potente dos afetos”*
Olivier Ponton**
36
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 37
1. Gênese da fórmula
32. Não trataremos aqui da assustadora questão da terminologia nietzschiana: qual a diferença precisa
entre “instinto” (Instinkt), “impulso” (Trieb) e “afeto” (Affekt)? Sobre esse ponto, ver Patrick Wotling, es-
pecialmente: Nietzsche et Le Probleme de la civilization, Paris, PUF, 1995, p. 91. A multiplicidade de ter-
mos parece se explicar principalmente pela diversidade de perspectivas de análise: um afeto é um impulso,
mas considerado do ponto de vista da sua “capacidade de ser afetado” é um impulso-pathos, um im-
pulso-sentimento. Evidentemente, se Nietzsche fala sobre afetos na carta de 30 de julho de 1881, é para
retomar o termo utilizado por Spinoza. Mas podemos dar a esse uso do termo “afeto” um sentido pro-
priamente nietzschiano: dizer que o conhecimento é o “afeto mais potente”, ou seja, que o impulso do
conhecimento é mais forte do que outros e que o pathos do conhecimento é o mais forte de todos –
o conhecimento é isto que me afeta mais intensamente, o que suscita em mim os sentimentos mais for-
tes: o conhecimento tornou-se para mim uma paixão.
33. Kuno Fischer, Geschichte der neuern Philosophie, I/2, Munique, Verlagsbuchhandlung von Fr. Vasser-
mann, 1880.
34. Ver a carta de 8 de julho de 1881. É necessário notar que Nietzsche, tendo recorrido várias vezes ao
Geschichte der neuern Philosophie, não pede a Overbeck para enviar-lhe os dois volumes dedicados à es-
cola cartesiana, mas apenas o dedicado a Geulinx, Malebranche e Spinoza, no qual somente Spinoza o
interessa (pede a Overbeck “o volume de Kuno Fischer sobre Spinoza”).
37
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 38
35. Os fragmentos 11[193] e 11[194] são posteriores ao fragmento 11[141], datado do início de agosto
de 1881, no qual Nietzsche formula pela primeira vez o pensamento do eterno retorno. Os fragmentos
anteriores a essa primeira formulação, como os fragmentos 11[132] e 11[137], comportam, no entanto,
reflexões sobre Spinoza: é, por conseguinte, bem no meio da sua “descoberta” de Spinoza que Nietzsche
“descobre” o pensamento do eterno retorno.
36. Kuno Fischer, op. cit., p. 494.
37. Ibidem, p. 495. Fischer reenvia aqui à proposição 14 da Parte IV da Ética.
38
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 39
nará, portanto, nosso agir, apenas se for afeto, e o mais forte de todos os
afetos humanos”. Dessa força depende, com efeito, a nossa liberdade,
ou seja, a nossa liberdade em relação às paixões. Fischer explica que Spi-
noza distingue entre afetos “passivos” (as paixões) e “ativos”: “Se existe
em geral uma liberdade, essa pode consistir apenas em uma potência
que faz calar o poder das paixões, e essa potência pode encontrar-se
apenas nos afetos ativos” – quer dizer, no conhecimento: só o conheci-
mento é “pura atividade, potência exercida sobre as paixões ou liber-
dade”38. Acedemos, assim, à liberdade apenas se o conhecimento for em
nós “o mais potente dos afetos” (der mächtigste Affect). A fórmula re-
torna frequentemente sob a pluma de Fischer, especialmente no capí-
tulo consagrado “à doutrina da liberdade humana”39.
Antes de Nietzsche é, portanto, Kuno Fischer que vê na filosofia de
Spinoza o projeto de “fazer do conhecimento o mais potente dos afetos”.
Essa fórmula não deveria, no entanto, ser aplicada tal qual, ou seja, com
o sentido que tem no livro de Fischer, à filosofia de Nietzsche. A preci-
são do fragmento 11[193] é aqui essencial: para Nietzsche, o conheci-
mento é mais uma paixão do que um afeto − o que significa que “a ten-
dência geral” da sua filosofia é apenas aparentemente idêntica à de
Spinoza: a potência do conhecimento não é para ele “uma potência exer-
cida sobre as paixões” (Macht über die Leidenschaften), mas a potência de
uma paixão. Em outras palavras, e para utilizar os termos de A gaia ciên-
cia, o conhecimento não seria para Nietzsche “o meio” da felicidade, da
virtude ou da liberdade: afirmar que o conhecimento tornou-se paixão
é precisamente dizer que “o conhecimento quer ser mais que um meio”40.
39
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 40
40
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 41
44. Fragmento 5[188], de 1875. Sobre essas perguntas, permitimo-nos reenviar à nossa obra, Nietzsche.
Philosophie de la légèreté, Berlim/Nova York, Walter de Gruyter, 2007, pp. 254-316.
45. A gaia ciência, § 3.
46. Fragmento 6[64], outono de 1880.
41
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 42
42
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 43
43
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 44
que Nietzsche distingue nos textos do início dos anos 1880, com-
preende-se que, para ele, o conhecimento era de certa maneira desti-
nado a tornar-se paixão. Concentrar-nos-emos, aqui, em duas dessas
características: o heroísmo e o desinteresse.
57. Fragmento 6[137], outono de 1880: “Sacrifica-se, por exemplo, a sua própria criança à sua vingança.
Ou sacrifica-se a sua vingança à sua criança – tudo depende do sentimento que é mais forte.”
58. Fragmento 6[178], outono de 1880. O que faz a nobreza da paixão não é o sacrifício, é a escassez, a
singularidade do sacrifício: “Compete ao objeto da paixão enobrecê-la e deixar a marca de uma natureza
superior. […] Qualquer coisa, portanto, que deixa geralmente frio é objeto de paixão – é o que constitui
a natureza superior: seu gosto é orientado para exceções” (fragmento 6[175]).
59. Aurora, aforismo 429, e fragmento 8[94], inverno de 1880-1881.
60. Ibidem, §§ 45 e 429; fragmento 7[171], final de 1880.
44
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 45
45
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 46
Nietzsche anota que a Tapferkeit “não é uma virtude, mas uma questão
de temperamento”64; também afirma, às vezes, que a Tapferkeit é um
sentimento e, ainda, “o sentimento mais elevado” (der erhebendste Ge-
fühl) – a mesma fórmula que utiliza para qualificar o sentimento de po-
tência65. Há, de fato, um parentesco psicológico e afetivo evidente entre
a Tapferkeit e o sentimento de potência, dado que toda vitória supõe a
Tapferkeit e dado que a Tapferkeit é o contrário do sentimento de fra-
queza e de medo. A Tapferkeit consiste primeiro em não temer nenhum
sacrifício, em enfrentar todos os perigos em nome de uma paixão, ousar
ser um indivíduo e se opor à civilização (essa se apoia, com efeito, sobre
“o sentimento da tradição”, ou seja, sobre o medo)66. É a própria força
de um afeto, de um impulso que se tornou mais potente que os outros,
é a própria potência de uma paixão que gera a Tapferkeit.
A paixão torna-se, por conseguinte, corajosa, brava, audaciosa; há
em toda paixão algo de heroico, algo como uma necessidade ou uma
vontade de perigo: Nietzsche escreve num fragmento de 1880 que é a
própria Tapferkeit que “reclama sua porção de perigo”67. Trata-se mais de
uma exigência dos impulsos do que de um ideal ou de um projeto cons-
ciente, trata-se de uma verdadeira necessidade fisiológica: “o coração deve
bater, os músculos, vibrar de atividade tensa”68. Tornou-se para Nietzs-
che uma questão de gosto: assim, anota num fragmento de 1880 que ele
glorifica “a aflição” do conhecimento, pois prefere “estar sempre preo-
cupado, com o coração batendo por causa de uma espera ou de uma de-
cepção”, a aspirar a uma coisa como “uma serena felicidade do conheci-
mento” – “não quero mais conhecimento sem perigo”, afirma ainda69.
Esse heroísmo se exprime em um lema que retorna frequentemente
em Aurora e nos fragmentos de 1880-1881: “Que importa eu!” (Was
46
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 47
70. Fragmento 7[45], fim de 1880, § 494 de Aurora, e fragmento 7[102], fim de 1880.
71. Fragmento 15[59], outono de 1881. Cf. Aurora, § 195.
72. Fragmentos 7[159] e 7[157], fim de 1880, e 6[228], outono de 1880.
73. Aurora, § 547.
47
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 48
74. Fragmentos 8[1], 8[7] e 8[8], inverno de 1880-1881; fragmentos 6[163], outono de 1880; fragmento
8[34], inverno de 1880-1881, e § 283, de A gaia ciência.
75. Aurora, § 501. Cf. § 198, no qual Nietzsche explica que é preciso ter “muitas experiências interiores
grandes [Erfahrungen]”, ou o fragmento 6[448], outono de 1880, no qual ele afirma que os seus pensa-
mentos são também as suas experiências (Erlebnisse).
76. A gaia ciência, aforismo 324.
48
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 49
cimento”, “uma época mais viril e mais bélica que saberá, sobretudo, re-
meter a coragem à honra [Tapferkeit]”77. Essa época será efetivamente a
de uma humanidade para a qual o conhecimento tornar-se-á o afeto mais
potente, um afeto tão potente que tudo poderá ser-lhe sacrificado.
2.4. O desprendimento
Se a paixão é definida pelo heroísmo, define-se também pela re-
núncia: todo sacrifício é renúncia, mas o sacrifício apaixonado é uma
renúncia dionisíaca (no sentido que Nietzsche dará a esta palavra no
aforismo 370 de A gaia ciência ou na Tentativa de autocrítica), uma po-
breza na superabundância e na plenitude.
Nietzsche reconstitui o mecanismo dessa renúncia no aforismo 304
de A gaia ciência, descrevendo o destino do homem apaixonado, que se
separa pouco a pouco de tudo o que não se incorpora à sua paixão – de
tudo o que resiste a esse processo de fusão, de estímulo e de dissimula-
ção, que descrevemos acima: “sem ódio nem aversão, vê hoje se separar
disto, amanhã daquilo, similar às folhas amareladas que um vento li-
geiro arranca da árvore: ou, ainda, não se apercebe mesmo dessa sepa-
ração, tão rigorosamente o seu olhar se fixa no objetivo, olhando,
sobretudo, para a frente de si, e nunca para o lado, nem para trás, nem
para baixo”. A paixão gera, assim, a indiferença, e um desprendimento
que Nietzsche opõe a qualquer espécie “de virtudes negativas”: não há
nela nenhuma abnegação, nenhuma vontade de renúncia ou de empo-
brecimento. Basicamente, não é o homem apaixonado que se separa
das coisas, são as coisas que se afastam dele, porque não lhe interessam.
O que define aqui a paixão é, por conseguinte, a ideia fixa, a foca-
lização sobre um único objetivo, um único objeto. A ideia fixa é tam-
bém, para Nietzsche, uma característica geral da paixão: ser apaixonado
significa pensar unicamente no que se ama. Nietzsche pôde encontrar
essa ideia em Stendhal, mas também em Pascal, que vê na digressão o
próprio do discurso amoroso (retorna-se sempre ao que se ama, não se
77. Ver Ecce Homo, “Por que escrevo livros tão bons: A gaia ciência”.
49
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 50
78. Cf. PASCAL, Blaise. Pensées. Oevres complètes. Estabelecimento do texto por Louis Lafuma. Paris,
Seuil, 1963, p. 298.
79. Ver, sobre esse ponto, certos fragmentos autobiográficos, como os fragmentos 7[9] ou 7[156], final
de 1880. Cf. Aurora, aforismo 572: “Quando alguém, como o pensador, vive habitualmente na grande cor-
rente dos pensamentos e dos sentimentos, e mesmo nossos sonhos, na noite, seguem esta corrente: pede-
se à vida tranquilidade e silêncio.”
80. Fragmento 6[202], outono de 1880.
81. Aurora, § 429.
50
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 51
82. Aurora, § 394. Nietzsche reivindica às vezes essa indiferença: ver, por exemplo, o fragmento 11[1], de
1881, no qual propõe buscar receitas para “tornar-se indiferente ao elogio e à censura”, e § 289, de A gaia
ciência.
83. Nietzsche retoma essa definição da vaidade especialmente no § 385 de Aurora.
84. Fragmento 11[110], de 1881.
85. Fragmento 7[111], final de 1880, e § 206 de Aurora.
86. Fragmento 4[208], verão de 1880, e § 566 de Aurora. Fragmento 6[341], outono de 1880, e § 566 de
Aurora.
51
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 52
o homem que tem espírito é, para Nietzsche, o mais rico e o mais po-
tente dos homens: deve poder “privar-se sem tomar ares de mártir” – so-
mente pode privar-se de tudo, porque renunciar ao melhor (ou seja, ao
conhecimento) seria para ele uma “insuportável privação”87. Mas o co-
nhecimento, que torna essa simplicidade suportável, tem também ca-
rência de uma tal simplicidade, para aceder à independência de espírito
que lhe é necessária. O conhecimento, a pobreza e a liberdade são in-
dissociáveis: o amigo da verdade é também o amigo da independência:
“Eu sou apaixonado pela independência”, afirma Nietzsche, “sacrifico-
-lhe tudo”; a independência é o berço “da paixão do infinito.”88 Essa
independência pode tomar a forma do isolamento, ou mesmo do de-
senraizamento e do exílio: “Somos emigrantes”, dispara Nietzsche,
emigrantes que aspiram à “independência absoluta.”89 Reencontra-
-se, assim, a figura do andarilho que se acha no coração da filosofia
do espírito livre.
Não há, portanto, conhecimento sem independência, e não há in-
dependência sem simplicidade – pelo menos sem uma simplicidade he-
roica e dionisíaca. Não se trata de uma simplicidade negativa, que seria
a consequência de um processo de empobrecimento e de perda de po-
tência, mas de uma simplicidade da superabundância, simplicidade do
que se sente de modo tão rico, tão forte e tão livre que permite viver no
exílio e na pobreza. Também não há, por conseguinte, conhecimento
sem paixão, dado que só a paixão pode engendrar tal simplicidade: um
afeto tornou-se mais potente, porque um impulso reduziu todos os ou-
tros ao silêncio, por isso a vida pode ser simples e heroica: há apenas um
impulso a satisfazer e tudo lhe é sacrificado.
52
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 53
90. Aqui, o termo do original, accomplissement, tem o sentido de realização, mas uma realização que é
quase uma destinação, pois o autor trabalha com a ideia de que para Nietzsche é um destino do conhe-
cimento tornar-se paixão. (N. do T.)
91. Fragmento 7[45], final de 1880.
92. Fragmentos 7[158] e 7[106], final de 1880.
93. Nietzsche evoca também Byron, que, como escrevia Stendhal, “constantemente era ocupado de si e
do efeito que produzia sobre os outros” (fragmento 7[151], final de 1880).
53
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 54
94. Aurora, § 549. Cf. o fragmento 7[96], final de 1880, e os §§ 131 e 516 de Aurora.
95. Ibidem, § 43.
96. Ibidem, § 339.
97. Ibidem, § 327.
54
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 55
c) Um amor infeliz
A diferença fundamental entre a paixão do conhecimento e a caça
do Don Juan do conhecimento é, portanto, esta: paixão é amor. A pai-
xão parece ser mesmo, acrescenta Nietzsche, um amor infeliz: “Talvez
sejamos nós mesmos, à nossa maneira, os amantes infelizes!”100 Nietzs-
che inscreve-se ainda na esteira de Do amor, de Stendhal, mas também
na esteira do Tristão, de Wagner, e de uma concepção romântica e cristã,
uma visão crística do amor. Aliás, ele assume essa herança complexa no
aforismo 429 de Aurora, no qual não hesita em declarar: “O cristianismo
se atemorizou alguma vez com um semelhante pensamento? O amor e
a morte não são irmão e irmã?” Em uma primeira versão, Nietzsche
havia escrito assim: “Todo homem que ama quer morrer.”
55
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 56
Se há prazer pela caça, esse prazer é, por isso, “uma sombra da bea-
titude”101. Há na paixão do conhecimento uma obscuridade (Düsterkeit)
que define de fato, para Nietzsche, a paixão em geral: toda grande paixão
é “um braseiro silencioso e sombrio”102. Nietzsche às vezes afirma mesmo
“a beatitude da desgraça do conhecimento”103. Esse oxímoro resume um
dos paradoxos centrais do código do amor-paixão, tal como descreve
Stendhal em Do amor: o amante infeliz não trocaria por nenhum preço
o seu amor (a sua desgraça) contra um estado de indiferença.
Mas por que a paixão do conhecimento seria, por conseguinte, um
amor infeliz? Por que a sua beatitude deveria ser “sombria” e obscure-
cida pela melancolia? Simplesmente porque o amor do conhecimento
é sem dúvida um amor impossível: o drama da paixão do conheci-
mento consiste em desviar o olhar de si para ver algo fora de si – mas o
que vê fora de si nada mais é do que si mesmo. Isso que Nietzsche
chama “a aterrorizante comédia” do conhecimento: na caverna do saber,
o homem reencontra apenas o seu próprio fantasma e os seus próprios
órgãos104. Essa comédia, que significa talvez “a impossibilidade do co-
nhecimento”, dá a chave do enigmático aforismo 423 de Aurora: a be-
leza da natureza é muda (o mar que se estende cintilante, o céu em
espetacular crepúsculo), não pode falar; e ao contemplá-la somos ten-
tados a abandonar-nos ao seu grande silêncio (“monstruoso mutismo”)
e, assim, “cessar de ser um homem” (ou seja, parar de falar, de pensar,
de conhecer). O que fala na natureza é sempre o homem, e o prazer de
conhecer não é senão “um prazer humano”105.
A paixão do conhecimento é um amor infeliz, porque é o amor do
homem para conhecer as coisas, no entanto, o homem conhece apenas
ele mesmo quando procura conhecer as coisas: “O amante do conheci-
mento deseja unir-se às coisas e vê-se separado delas – é esta a sua pai-
56
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 57
57
O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 58
58