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O mais potente dos afetos p017-058 8/28/09 2:05 PM Page 17

I
O CONHECIMENTO COMO O
MAIS POTENTE D OS AFETOS
(Erkenntnis zum mächtigsten Affekt zu machen)

SPINOZA
Conhecimento e afetividade em Spinoza*
Pascal Sévérac**

A filosofia spinozista, em simultâneo, se propõe tomar a afetivi-


dade humana como objeto de conhecimento racional e, sobretudo, não
visa o aperfeiçoamento ético senão por meio da produção de afetos li-
beradores. O projeto spinozista nos propõe uma ética do conhecimento
que certamente se distingue de uma moral da obediência; mas não se
trata nunca de conhecer por conhecer, trata-se de conhecer para ser afe-
tado, e ser afetado de tal forma que possamos viver felizes.
Spinoza de fato, na Ética, visa conduzir-nos,“como que pela mão”1,
até a beatitude da mente, ou seja, a um afeto de “amor divino”2, que
nasce de a mente agir apreendendo as coisas mediante o mais alto gê-
nero de conhecimento, a ciência intuitiva. E as “coisas” a serem conhe-
cidas pelo homem são principalmente, como indica o prefácio da Ética
III, os afetos humanos, os quais explicam seus comportamentos, seus
tormentos, suas felicidades, frágeis ou duráveis. O itinerário ético é
então um percurso do conhecimento, que, simultaneamente, toma por

* Tradução de Homero Santiago, professor adjunto da USP (Universidade de São Paulo).


** Professor Doutor substituto da Université de Paris I e Diretor de Programa do Collège International
de Philosophie.
1. Preâmbulo da Parte II.
2. Ética, Parte V, proposição 42, demonstração.

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objeto a afetividade humana e pretende transformá-la, ou ao menos


vivê-la de outra maneira, para viver verdadeiramente. Trata-se de um
percurso puramente intelectualista, como puderam dizer? Em certo
sentido sim, já que, de um ponto de vista mental (mas, veremos, esse
não é o único ponto de vista considerado por Spinoza), é necessário de-
senvolver a potência do intelecto3. Entretanto, essa potência intelectual
– e é sem dúvida uma das grandes originalidades da ética spinozista –
é ao mesmo tempo uma potência afetiva. A palavra de ordem da trans-
formação ética de si, na conquista da salvação, pode sem dúvida resu-
mir-se por duas das primeiras proposições da Parte IV:

Nada do que uma ideia falsa tem de positivo é suprimido pela presença do
verdadeiro enquanto verdadeiro.4
Um afeto não pode ser refreado nem suprimido senão por um afeto con-
trário e mais forte do que o afeto a ser refreado.5

O conhecimento verdadeiro, enquanto tal, não tem nenhuma vir-


tude terapêutica. Ele não pode agir senão sendo apto a produzir afetos
que nos permitam resolver certas lógicas afetivas, as do conhecimento
parcial, mutilado, confuso. Até a última proposição, Spinoza mantém
essa ideia: o que nos salvará, não é o vão esforço, nascido talvez do co-
nhecimento claro de nossos impedimentos, para nos livrar de nossos
maus afetos; mas o gozo de certa forma de afetividade, que então nos
dará a força de experimentar menos aquela que não faz nossa felicidade.

A beatitude não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude; e não goza-


mos dela porque refreamos nossos impulsos; mas, ao contrário, podemos
refrear nossos impulsos porque gozamos dela.

Conhecer adequadamente para produzir afetos úteis; ser afetado


para lutar contra os maus afetos, nascidos do primeiro gênero de co-

3. A beatitude é identificada à liberdade, no início do escólio da proposição 36 da quinta parte da Ética;


e o título dessa Parte V, lembremos, é: “Da potência do intelecto ou da liberdade humana”.
4. Ética, Parte IV, proposição 1.
5. Ética, Parte IV, proposição 7.

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nhecimento: as dinâmicas do conhecimento e da afetividade estão es-


treitamente ligadas em Spinoza. A fim de separar os fios desse emara-
nhado, vamos organizar nossa pequena sondagem sobre as relações
entre conhecimento e afetividade em Spinoza a partir de três questões:

• primeiro, uma vez que para conhecer é preciso estar preparado


para conhecer, perguntar-nos-emos se existe uma afetividade es-
pecífica que nos dispõe ao conhecimento das coisas: existem cer-
tos afetos particulares que nos determinam a conhecer? Não se
tem, segundo Spinoza, de desenvolver certa forma de sensibilidade
– que se poderia chamar de uma “sensibilidade cognitiva” – que
nos torne aptos a experimentar afecções úteis ao conhecimento?
• em seguida, interrogar-nos-emos sobre o conhecimento que está
implicado nos afetos: a afetividade, mesmo a mais oposta ao des-
dobramento do conhecimento racional, não guarda, em seu
fundo, uma relação cognitiva com seus objetos? A afetividade,
mesmo a mais imaginária, é cega aos objetos a que ela se vincula?
Pode-se, aliás, experimentar um afeto que esteja separado de todo
conhecimento de objeto?
• enfim, uma vez que a ausência de racionalidade de certos afetos
não significa, segundo Spinoza, ausência de lógica, considerare-
mos como é possível conhecer adequadamente nossa afetividade:
que conhecimento se pode ter de nossa afetividade, mesmo a mais
passional? O que pode o conhecimento racional contra a afetivi-
dade nascida da imaginação?

Três problemas, portanto, dirigirão nosso estudo, que não tem pre-
tensão de ser exaustivo em cada um deles, mas que balizará as pistas a
explorar:

1 – o problema do conhecimento pela afetividade: há uma afetivi-


dade para o conhecimento?
2 – o problema do conhecimento na afetividade: que saber está en-
volvido na afetividade?

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3 – o problema do conhecimento da afetividade: em que sentido a


compreensão de nossos afetos é liberadora?

1. O conhecimento pela afetividade

Pode-se dizer que para Spinoza existe um desejo de saber? A Ética


nunca faz menção de um desejo desses, que poderia ser o próprio do
homem. Existe, sim, um desejo de ser feliz, que se identifica com a na-
tureza do homem: “o desejo […] de viver feliz ou de viver e agir bem,
etc., é a própria essência do homem, isto é […], o esforço pelo qual cada
um se esforça por conservar o seu ser”, afirma a demonstração de Ética,
Parte IV, proposição 21. Mas ao contrário de Pascal, para quem a se-
gunda natureza do homem, nascida do pecado, é marcada especial-
mente pela libido sciendi6, ou, ainda, de Hobbes, que define a curiosi-
dade como um amor do conhecimento natural no homem7, Spinoza –
o filósofo que se apresenta todavia como o representante de um racio-
nalismo absoluto – não faz alarde nunca, na Ética8, de certa forma de
afetividade que disporia o homem naturalmente, e favoravelmente, para
o conhecimento. Nem curiosidade fundamental do homem, que expli-
caria seus progressos científicos; nem virtude primeira do espanto, que
excitaria essa curiosidade aplicando-se ao que é ainda desconhecido.
Ao contrário de Descartes, Spinoza não distingue uma boa admiração,
experimentada diante do que é novo e extraordinário, e uma admira-
ção excessiva (“o espanto”) que paralisa o corpo e anestesia o pensa-
mento. A admiração para ele é só essa imobilização da mente9, que,
longe de ser impelida à compreensão, é parada pelo que a ultrapassa. O
curioso, para Spinoza, não é tanto aquele que busca compreender, senão

6. Ver Pensamento 458 (ed. Brunschvicg).


7. Ver Leviatã, cap. VI, ed. Sirey, 1971, trad. F. Tricaud, pp. 52-3.
8. Precisemos: na Ética. Pois no Breve tratado, em que a herança cartesiana é ainda muito marcada, um
lugar é dado ao espanto, como primeira das paixões (ver Breve tratado, II, 3,[2]).
9. Ética, Parte III, definições dos afetos, 4: “A admiração é a imaginação de alguma coisa à qual a mente
se mantém fixada, porque essa imaginação singular não tem nenhuma conexão com as demais.”

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aquele que busca ficar espantado; não é tanto aquele que está empe-
nhado na via difícil do conhecimento racional das relações entre as coi-
sas, senão aquele que busca distrair-se (Pascal diria, sem dúvida, diver-
tir-se) pela contemplação de coisas novas, inéditas, inauditas10. Ora, essa
distração da mente admirativa, segundo a explicação que segue a defi-
nição de admiração, não se deve a uma “causa real”, ou seja, a alguma
propriedade inerente à coisa admirada. A desconexão mental não tem
causa na própria coisa, mas só em nós: deve-se a uma ausência, a um elo
de ideias imaginativas, constitutivas de nossa memória, na qual ordi-
nariamente vem se inscrever toda percepção de coisa. Com efeito, ha-
bitualmente, quando percebemos uma coisa, ela nos faz pensar em
outra coisa, faz-nos passar a outra coisa: o ordinário de nosso imagi-
nário é cairmos do pensamento de uma coisa no pensamento de outra,
conforme o encadeamento regrado das afecções de nosso corpo11. Mas
quando a coisa é para nós nova, não caímos – mantemo-nos fixados. A
admiração é, pois, uma figura de enorme passividade: ela provém de
uma imaginação fixa, obsessiva, que está em ruptura com a imaginação
móvel, movente, própria a nossa memória. Logo, a admiração não pode
ser, em Spinoza, o afeto que impele à aquisição dos conhecimentos; pelo
contrário, ela equivale a uma ruptura no encadeamento ideal e à im-
possibilidade de pensar as relações entre coisas. E, contrariamente ao
que ela é em Descartes, tampouco poderia ser o afeto pelo qual nos tor-
namos sensíveis ao infinito, pois para Spinoza nada é em si admirável,
nada é em si fora do comum, nem a infinitude divina, imanente a seus
modos, nem a infinitude do livre-arbítrio, ilusão nascida de nossa ig-
norância das causas. Deus é a comunidade universal que todas as coi-

10. Raramente encontramos o termo curiosidade sob a pena de Spinoza: de nosso conhecimento, duas
vezes apenas, e de forma mais pejorativa, em oposição à utilidade. No Tratado teológico-político, cap. VII,
§ 17, no qual Spinoza afirma que o que podemos compreender do sentido das Escrituras basta para nossa
utilidade, ou seja, para nos conduzir à beatitude, “o resto é mais uma questão de curiosidade que de uti-
lidade” (Œuvres III, PUF, 1999, trad. P.-F. Moreau e J. Lagrée, p. 311); na Ética, Parte III, proposição 59,
escólio, em que Spinoza afirma que os afetos que se podem compor a partir dos três primitivos são inu-
meráveis, e que nos bastará reter apenas os principais, “o resto, que omiti, é mais uma questão de curio-
sidade que de utilidade”.
11. Ver Ética, Parte II, proposição 18 e seu escólio.

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sas envolvem, enquanto modificações de sua infinita potência. E essa


potência infinita não excede toda compreensão; ela é, ao contrário, um
objeto de conhecimento intelectual progressivo: “quanto mais com-
preendemos as coisas singulares, tanto mais compreendemos Deus”12.
Em suma, não há, para Spinoza, paixão do conhecimento que nos
impeliria a buscar automaticamente a verdade e permitiria reconhecer
o que tem um valor inestimável. Há antes um esforço para conservar-se,
que se realiza tanto através das ideias inadequadas da imaginação
quanto através das ideias adequadas da razão13. Noutras palavras, um
certo desejo de conhecimento – e até, mais precisamente, de conheci-
mento racional – não está ausente, em filigrana, da antropologia spi-
nozista dos afetos. Esse desejo, porém, não é mais fundamental que o
desejo de crer ou de imaginar. Muito pelo contrário, é mais raro, uma
vez que a mente está mais acomodada no pensamento imaginativo que
no racional. Quanto mais a mente está no conhecimento inadequado,
mais persevera nele, é consciente de seu esforço e, portanto, deseja afir-
mar sua potência nesse conhecimento inadequado (de que o próprio é
ignorar-se como inadequado). Inversamente, quanto mais a mente está
no conhecimento adequado, tanto mais deseja perseverar nele. Assim se
compreende a proposição 26 das Partes IV e V da Ética:

Tudo aquilo pelo qual, em virtude da razão, nós nos esforçamos, não é
senão compreender; e a mente, enquanto utiliza a razão, não julga ser-lhe
útil senão aquilo que a conduz ao compreender.
Quanto mais a mente é capaz de compreender as coisas pelo terceiro gê-
nero de conhecimento, tanto mais deseja compreendê-las por esse mesmo
gênero.

O desejo de conhecimento adequado é um desejo que compreende


a suma utilidade do conhecimento: por meio dele, a mente se fortifica,

12. Ética, Parte V, proposição 24.


13. Ver Ética, Parte III, proposição 9: “a mente, quer enquanto tem ideias claras e distintas, quer enquanto
tem ideias confusas, esforça-se por perseverar em seu ser por uma duração indefinida, e está consciente
desse seu esforço”.

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torna-se mais perfeita e convém com as outras mentes, também elas


ativas. Um desejo tal, que não é espontâneo mas se desenvolve pouco a
pouco, está portanto muitíssimo distante de uma paixão amorosa que
se fixaria sobre o conhecimento como objeto a possuir, ou até colecio-
nar: não possuímos o conhecimento racional senão partilhando-o, e
não o partilhamos senão aumentando-o. O desejo ativo de conheci-
mento adequado em Spinoza só pode ser um desejo que compreende a
finalidade ética. Todo o prólogo do Tratado da reforma do intelecto já
orientava o desenvolvimento dos conhecimentos científicos para a in-
vestigação de uma natureza mais perfeita, que fosse partilhada com os
outros14; o que a Ética confirmará, como já assinalamos, indicando no
início da Parte II que não se deduzirá da natureza divina “tudo que dela
deve ter se seguido” (o que seria de qualquer forma impossível, já que
se segue uma infinidade de coisas), “mas apenas aquelas que possam
nos conduzir, como que pela mão, ao conhecimento da mente humana
e de sua suma beatitude”.
Se não há afeto essencial que volte o esforço humano para o co-
nhecimento verdadeiro, se a investigação da verdade só tem valor por
sua finalidade ética (a busca da beatitude), há não obstante uma impli-
cação de toda a sensibilidade humana no desenvolvimento do conhe-
cimento adequado. A essência do corpo humano define-se, em Spinoza,
por sua aptidão a ser afetado e afetar. Ora, quanto maior essa aptidão
afetiva, maior é a capacidade da mente de pensar várias coisas simulta-
neamente, e, por conseguinte, de compreender-lhes as relações de con-
veniência, diferença e oposição15. Um corpo ativo não é, pois, um corpo
que consegue tornar-se insensível ao mundo, que chegaria a furtar-se ao
determinismo das causas exteriores. A atividade não nasce de um pro-

14. Tratado da reforma do intelecto, § 14: “Eis, pois, o fim a que tendo: adquirir essa natureza e esforçar-
-me para que, comigo, muitos outros a adquiram; isto é, faz parte de minha felicidade o esforçar-me
para que muitos outros pensem como eu e que seu intelecto e seu desejo convenham com o meu inte-
lecto e o meu desejo”; § 16: “Já se pode ver que desejo dirigir todas as ciências a um só fim, um só escopo,
a saber, o de alcançar aquela suma perfeição humana de que falamos” (e a nota [e] precisa: “As ciências
têm um único fim para o qual devem ser todas dirigidas”).
15. Segundo uma expressão do escólio da proposição 29 da Parte II da Ética.

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cesso de “desafecção” ou “insensibilização”. Decerto, trata-se sim de não


mais sofrer passivamente as coisas que encontramos; mas tornar-se
ativo, para o corpo, é tornar-se pouco a pouco capaz de não mais viver
segundo um número reduzido de normas afetivas, que polarizam o
corpo em alegrias ou tristezas obsessivas. Um corpo ativo é um corpo
cuja sensibilidade afetiva é forte, flexível, lábil. Com efeito, ser afetado
não significa, em si, padecer. Muito pelo contrário, quanto mais a apti-
dão do corpo a ser afetado é reduzida, mais o corpo vive num meio res-
trito, insensível a um grande número de coisas, às múltiplas distinções
delas: esse corpo não sabe responder, se não for de maneira unilateral, às
solicitações de seu meio exterior, aos problemas que o mundo lhe põe.
A atividade do corpo e da mente não se dá, portanto, contra o de-
terminismo, ou seja, contra a determinação pelos corpos e mentes ex-
teriores; pelo contrário, tornar-se cada vez mais apto a ser afetado não
é padecer cada vez mais, mas ser cada vez mais capaz de formar ima-
gens, e ideias dessas imagens, de tal sorte que fiquemos aptos a ser causa
adequada dos encadeamentos de afecções corporais e das ideias que
formamos. É na conveniência com os corpos e mentes exteriores que se
dá o tornar-se ativo; isto equivale, portanto, a uma abertura da sensibi-
lidade humana, a um aumento de sua aptidão a ser afetado e afetar.
Aumento da sensibilidade afetiva do corpo e aumento da potência
de pensar da mente, portanto, vão de par: o que uma mente pode co-
nhecer é correlato ao que um corpo pode experimentar. Para aprofun-
dar essa ideia, ser-nos-á preciso doravante passar a nosso segundo
ponto, consagrado ao conhecimento envolvido na afetividade, e distin-
guir, melhor do que o fizemos, entre, por um lado, as afecções corpo-
rais e mentais (as imagens e as ideias), e, por outro, os afetos (tanto
corporais quanto mentais) que elas são suscetíveis de engendrar.

2. O conhecimento na afetividade

A presença de afetos parece implicar a presença de um conheci-


mento, mesmo que parcial, de alguma coisa, ao passo que a presença da

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ideia de uma coisa não parece implicar necessariamente a presença de


um afeto. Tal implicação, simples e não recíproca, é tirada do terceiro
axioma da Parte II da Ética:

Os modos de pensar tais como o amor, o desejo, ou qualquer outro que se


designa pelo nome de afeto do ânimo, não podem existir se não existir, no
mesmo indivíduo, a ideia da coisa amada, desejada, etc. Uma ideia, em
troca, pode existir ainda que não exista outro modo de pensar.

Poderíamos, então, pensar em uma coisa sem amá-la ou desejá-la;


não poderíamos, porém, amar ou desejar sem pensar em uma coisa.
Que seja. Mas e quanto aos afetos, ditos primários por Spinoza, que são
a alegria e a tristeza? São necessariamente, como o desejo, o amor ou o
ódio, vinculados à ideia de uma coisa? O que nos dão a conhecer tais
afetos, se é possível experimentar alegrias puras ou tristezas puras, que
não sejam referidas a nenhuma coisa exterior?
A definição do afeto, dada no início da terceira parte da Ética, mos-
tra que este é indissoluvelmente afecção corporal (se considerado no
atributo extensão) e ideia dessa afecção (se considerado no atributo
pensamento)16. Mesmo uma simples alegria, que se caracteriza como a
passagem de uma menor a uma maior perfeição, é afecção corporal e
ideia dessa afecção. Ela é no corpo uma afecção que aumenta ou esti-
mula sua potência de agir, e na mente uma ideia que aumenta ou estimula
sua potência de pensar. Mas qual é o objeto dessa ideia ou desse modo
do pensar? Tal ideia, que favorece a potência mental, é ela própria um
conhecimento de alguma coisa?
A experiência parece nos mostrar que é possível nos sentirmos ale-
gres, ou tristes, sem saber por que (quer esse saber seja racional, isto é,
provenha de uma ideia adequada, quer seja, como é mais frequente, pu-
ramente imaginativo, isto é, inadequado). Noutras palavras, é possível
estar alegre, sentir-se “bem”, sem estar amoroso, isto é, sem que essa ale-

16. Ética, Parte III, definição 3: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de
agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções.”

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gria seja acompanhada da ideia de uma causa exterior. Como explicá-


-lo, em termos spinozistas?
Spinoza define, assim, a imaginação:

Chamaremos de imagens de coisas as afecções do corpo humano, cujas


ideias representam os corpos exteriores como nos estando presentes, em-
bora elas não reproduzam as figuras das coisas. E quando a mente con-
templa os corpos sob essa relação, diremos que ela os imagina.17

Pode-se entender, por essa definição, que só as afecções corporais


cujas ideias nos representem algum corpo exterior como presente são
imagens. Noutras palavras, nem todas as afecções corporais são repre-
sentativas, ou antes: nem todas são imagens, e, portanto, não são men-
talmente correlatas a ideias representativas, pelas quais a mente imagina
as coisas. Por conseguinte, seria possível experimentar o que chama-
mos de “uma alegria pura”, que não seria acompanhada de nenhum co-
nhecimento de algum objeto exterior.
Só uma afecção corporal que dá a imaginar alguma coisa estaria
em condições de nos fazer experimentar amor (ou ódio). Com efeito, se
uma tal afecção aumenta ou estimula a potência de agir de nosso corpo,
produz um afeto, no caso uma alegria; e se, ao mesmo tempo, essa afec-
ção é a imagem de uma coisa, representar-nos-emos essa coisa como
nos estando presente, ao mesmo tempo que estaremos alegres. Mas será
que se pode assimilar, assim, a ideia da coisa que imaginamos estando
alegres à ideia da causa exterior que atribuímos a nossa alegria? Vários
casos podem aqui se apresentar:

• suponhamos que experimentássemos uma alegria e contemplás-


semos ao mesmo tempo nosso corpo, ou uma de suas partes,
como sendo isso a que é referida essa alegria: por exemplo, esta-
mos aliviados por não ter mais dor de dente. Nesse caso, uma
ideia que nos representa uma parte de nosso corpo (aqui, o dente)

17. Ética, Parte II, proposição 17, escólio.

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acompanha sim nossa alegria, mas essa ideia não é propriamente


falando a ideia da causa pela qual experimentamos essa alegria; ela
é a ideia da parte de nosso corpo à qual referimos nossa alegria.
Somos alegres por nós mesmos (talvez mesmo por nosso dente),
mas não amamos a nós mesmos (não experimentamos amor por
nosso dente);
• suponhamos agora que ao mesmo tempo que estamos alegres por
nosso dente não nos fazer mais sofrer, contemplamos um medi-
camento como a causa exterior de nosso alívio. Ao mesmo tempo
que nos regozijamos, e que representamos eventualmente nosso
dente como aliviado, nossa alegria é acompanhada da ideia de
uma causa exterior: experimentamos uma forma de amor por
esse medicamento que imaginamos ser a causa de nosso alívio18.

Há, portanto, três tipos de ideias a eventualmente distinguir:

• primeiro, há a ideia que constitui mentalmente a forma do afeto


de alegria ou de tristeza; essa ideia é aquela que, na mente, cor-
responde à passagem a uma potência superior ou inferior do
corpo;
• em seguida, há a ideia representativa do corpo próprio (ou de
uma de suas partes) à qual referimos eventualmente o afeto de
alegria ou de tristeza experimentado. Imaginamos então nosso
corpo (mediante a ideia representativa) ao mesmo tempo que o
sentimos (mediante a ideia da alegria corporal);
• enfim, há a ideia de um corpo exterior que representamos como
sendo a causa do afeto de alegria ou de tristeza que experimenta-
mos; imagina-se então uma causa exterior ao afeto alegre ou triste
que sentimos, e experimentamos amor ou ódio relativamente a
essa causa.

18. O que não significa, muito evidentemente, que esse corpo exterior que nomeamos “medicamento”
seja a causa real da alegria que experimentamos; pode sempre haver, com efeito, uma diferença entre a
causa e o objeto de nosso amor; o que explica, aliás, que no amor frequentemente nos desprezemos e que
nossos amores possam tornar-se excessivos e infelizes.

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Quando há amor ou ódio, há, por conseguinte, ligação de duas


ideias ao menos diferentes: uma ideia, ao que parece, não cognitiva (um
modo do pensar que seria alegria ou tristeza mental) e uma ideia cog-
nitiva (um modo do pensar que seria representação de uma causa ex-
terior). Assim, o amor, que é “uma alegria acompanhada da ideia de uma
causa exterior”, seria constituído mentalmente de duas ideias: por um lado,
uma ideia que é alegria mental, na medida em que é ideia de uma afec-
ção que aumenta a potência de agir do corpo, e por outro uma ideia
que é imaginação de uma causa exterior, na medida em que é ideia de
uma afecção corporal pela qual representamos um corpo exterior como
presente.
É tanto mais fácil distinguir a ideia que mentalmente é alegria e a
ideia da causa exterior que associamos a essa alegria, quanto mais a afec-
ção que aumenta a potência de agir de nosso corpo é ao mesmo tempo
uma imagem desse corpo à qual referimos nossa alegria. Se referirmos
essa alegria a nosso corpo, ela se distinguirá mentalmente da represen-
tação (no mais das vezes imaginativa) de sua causa.
Mas é igualmente possível – e é, parece-nos, o caso mais frequente
no amor – que nossa alegria não se distinga para nós verdadeira-
mente da ideia da causa exterior que lhe atribuímos. Amar um prato
ou uma pessoa é experimentar uma alegria ao pensar nesse prato ou
nessa pessoa: nossa boca saliva, nosso coração bate (de alegria) ao
mesmo tempo que formamos a ideia de uma causa exterior (com re-
lação à qual, a partir daí, experimentamos amor). Precisamos distin-
guir aqui, entretanto, duas dimensões dessa ideia alegre que tem por
objeto uma causa exterior.
A definição geral dos afetos, que fecha a Parte III da Ética, de fato
afirma:

O afeto, que se diz paixão da alma [animi pathema], é uma ideia confusa,
pela qual a mente afirma uma força de existir, maior ou menor do que
antes, de seu corpo ou de uma parte dele […]

E a explicação precisa:

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Com efeito, todas as ideias que temos dos corpos indicam antes a consti-
tuição atual de nosso corpo (pelo corolário 2 da proposição 16 da Parte II)
que a natureza dos corpos exteriores. Ora, a ideia que constitui a forma do
afeto deve indicar ou exprimir a constituição do corpo ou de uma de suas
partes, constituição que o próprio corpo ou alguma de suas partes tem por-
que sua potência de agir ou sua força de existir é aumentada ou diminuída,
estimulada ou refreada.

Quando uma ideia é representativa de um corpo exterior, ela é ao


mesmo tempo indicativa da constituição do corpo próprio: tal é a dupla
dimensão – representativa e indicativa – da ideia de uma coisa amada,
odiada ou desejada. Noutras palavras, se imaginamos um corpo exte-
rior no momento em que estamos alegres, não temos somente conhe-
cimento da existência de um objeto exterior (representado como es-
tando em nossa presença); temos conhecimento igualmente de uma
variação de potência de nosso próprio corpo: a ideia “que constitui a
forma do afeto”, aqui de alegria, “deve indicar ou exprimir a constitui-
ção do corpo”, aqui uma constituição alegre, ou seja, um aumento da
força de existir de nosso corpo.
Por conseguinte, se se considera apenas a forma do afeto de alegria
ou de tristeza, esta é, do ponto de vista mental, uma ideia indicativa do
estado do corpo; todo afeto envolve, pois, ao menos um conhecimento
indicativo do corpo próprio – e eventualmente um conhecimento re-
presentativo de um corpo exterior. Como afirma o axioma 3 da Parte II,
que citamos, nos afetos de amor ou de desejo há necessariamente a ideia
ou o conhecimento representativo de um corpo exterior, amado ou de-
sejado. Pode-se doravante acrescentar: nos afetos de alegria ou de tris-
teza, se não há necessariamente conhecimento representativo de um
corpo exterior (pois nossas alegrias e nossas tristezas não são sempre
amores e ódios), há, como em todo afeto, ao menos um conhecimento
indicativo da disposição em que se encontra nosso próprio corpo – esse
corpo que, como afirma o corolário de Ética, Parte II, proposição 13,
“existe tal como o sentimos”.
Esse conhecimento indicativo, que exprime algo do corpo, que é o
signo de que “se passa” algo nele ou numa de suas partes, pode não ser

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representativo em si mesmo de uma coisa. É possível – vimos – estar


alegre ou triste, “se” sentir bem ou mal, não pensando nem em seu pró-
prio corpo (como sendo isso a que é referido esse sentimento), nem em
um corpo exterior (como sendo isso que é a causa desse sentimento).
Entretanto, a crer no fim da definição geral dos afetos, que não men-
cionáramos, tal alegria ou tal tristeza, que em si mesma não é necessa-
riamente representativa do corpo próprio ou de um corpo exterior, não
obstante nos determina a pensar em alguma coisa19. Ora, essa determi-
nação, precisa Spinoza na explicação da definição, esclarece a natureza
do desejo: quando estamos alegres ou tristes (e eventualmente quando
amamos ou odiamos), somos determinados a pensar em uma coisa e,
portanto, a desejá-la. Por quê? Sem dúvida isso se deve à própria es-
sência de nossa mente, que se esforça por conservar-se: afetados por
um afeto de alegria ou de tristeza, desejamos conhecer os meios para
conservar essa alegria ou destruir essa tristeza (desejamos simplesmente
conhecer a sua causa, se a ignoramos, ou desejamos conhecer os meios
de reproduzir ou impedir sua ação, se a conhecemos).
Pode ocorrer, entretanto, em certas situações, que não cheguemos
a pensar em alguma coisa: é justamente o caso nessa figura de passivi-
dade que já encontramos, a saber, a admiração, que não é em si mesma
um afeto, mas que equivale à ausência de conexão de um conhecimento
imaginativo com outros conhecimentos Por exemplo, no afeto de cons-
ternação, como tristeza paralisada pela admiração:

A admiração de um mal mantém o homem de tal maneira suspenso na só


contemplação desse mal que não é capaz de pensar em outras coisas, pelas
quais poderia evitar esse mal.

A admiração corresponde aqui a uma suspensão do desejo, ou antes:


à impossibilidade de satisfazê-lo. Entristecida pelo conhecimento repre-
sentativo de uma coisa má, minha mente é determinada a pensar nos

19. Ética, Parte III, definição geral dos afetos: “O afeto, que se diz paixão do ânimo, é uma ideia confusa
[…] cuja presença determina a própria mente a pensar nisto mais que naquilo.”

30
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O conhecimento como o mais potente dos afetos

meios que lhe permitem enfrentá-lo; mas inibida pela admiração do mal,
não pode pensar – mediante especialmente as ligações ideais constitutivas
de sua memória – nas coisas que satisfariam seu desejo de salvação. Meu
desejo é então esvaziado de suas forças pela admiração, que é conheci-
mento de alguma coisa, decerto, mas um conhecimento desligado de tudo.
Talvez a melancolia, contra a qual é tão importante lutar (melancho-
liam expellere)20, seja ela própria uma consternação referida a si: Spinoza
a define como uma tristeza total21; e ela parece deveras se identificar, na
mente, à impossibilidade de pensar os meios que nos poderiam livrar dela.
O conhecimento imaginativo, na medida em que convoca a memória, na
medida em que dinamiza o pensamento representativo, é portanto ne-
cessário, na maior parte do tempo, para conquistar sua salvação22.
Na Ética, entretanto, Spinoza confia ao conhecimento intelectual a
potência de nossa liberdade, que é antes de tudo uma liberação relati-
vamente aos afetos passionais nocivos. Como se opera, então, essa in-
teligência de nossa afetividade? Que potência o conhecimento nos dá
para lutarmos contra os maus afetos? Esse conhecimento intelectual da
afetividade pode suplantar, pura e simplesmente, o conhecimento ima-
ginativo implicado na afetividade passional?

3. O conhecimento da afetividade

Não é possível, em algumas páginas, querer dar conta de uma


questão tão crucial na filosofia spinozista. Não obstante, desejamos in-
dicar aqui algumas pistas de reflexão, que se organizarão em torno da
seguinte ideia: há, em Spinoza, uma firme insistência sobre a impotên-
cia do puro conhecimento racional perante a força de certos afetos pas-
sionais; entretanto – e é o paradoxo –, esse mesmo conhecimento

20. Ética, Parte IV, proposição 45, escólio: “Por que, com efeito, seria melhor matar a fome e a sede do
que expulsar a melancolia? Este é o meu princípio e assim me orientei.”
21. Ver Ética, Parte III, proposição 11, escólio.
22. É um tema desenvolvido especialmente no Tratado teológico-político.

31
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O mais potente dos afetos

racional pode produzir uma afetividade (não mais passional, mas ela
própria racional) suscetível não somente de resistir aos piores afetos,
mas mesmo de destruí-los.
Spinoza não gosta de demorar-se sobre a impotência dos homens:
ele deixa aos supersticiosos e aos melancólicos a preocupação de escar-
necê-la, maldizê-la, criticá-la. Porém, como “é preciso conhecer tanto a
potência de nossa natureza como a sua impotência, para que possamos
determinar, quanto à moderação dos afetos, o que pode a razão e o que
não pode”23, não se pode fazer pouco caso da fraqueza de certos afetos
racionais relativamente, em especial, aos desejos passionais pelas coisas
prazerosas que representamos como presentes. Assim, do conhecimento
verdadeiro do bem e do mal nascem desejos que são racionais: desejos
de gozar do bem e de evitar o que dele nos afasta, o mal. Mas, em rela-
ção aos desejos “pelas coisas que são agradáveis no presente”24, esses de-
sejos racionais são impotentes. Pode-se falar de um defeito da razão, de
uma falta de conhecimento de nossas ideias verdadeiras, incapazes de
realmente nos fazer desejar o que é bom para nós? A razão em si mesma
é potência de conhecer e não envolve nenhuma privação de conheci-
mento, própria só às ideias que são ditas falsas25. Mas é frequente que
vejamos claramente o melhor, que o aprovemos, e sigamos contudo o
pior26. Por quê? Muito simplesmente porque a razão, apesar de ser um
conhecimento pelas causas, apesar de fazer-nos ver certos fenômenos
como necessários, não obstante é sempre de início abstrata, e se refere
a coisas que imaginamos como futuras ou mesmo contingentes27. Sa-
bemos, assim, que “fumar mata”, que excesso de comida, de álcool, de
velocidade nos põe em perigo: deparamos aí com conhecimentos ver-
dadeiros, que nos mostram o que é verdadeiramente bem e mal, isto é,

23. Ética, Parte IV, proposição 17, escólio.


24. Ética, Parte IV, proposição 16.
25. Ver Ética, Parte II, proposição 35.
26. Segundo a célebre expressão das Metamorfoses, de Ovídio, retomada por Spinoza no escólio de Ética,
Parte IV, proposição17.
27. Ver Ética, Parte IV, proposição 15.

32
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O conhecimento como o mais potente dos afetos

bom e mau para nosso esforço de perseveração no ser. Necessariamente,


um indivíduo fumante tem uma esperança de vida inferior a um indi-
víduo não fumante (sendo tudo o mais igual); necessariamente, um in-
divíduo habituado aos excessos de velocidade ou de consumo de álcool
ao volante corre mais perigo que um indivíduo dito prudente. Porém,
embora todos o saibamos, esse conhecimento racional do necessário é
referido concretamente a um conhecimento muito aproximado de
nossa duração de vida e da data de nossa morte:

Não podemos ter da duração das coisas […] senão um conhecimento ex-
tremamente inadequado, e […] determinamos os tempos de existência das
coisas só pela imaginação, a qual não é afetada pela imagem de uma coisa
futura da mesma maneira que pela imagem de uma coisa presente. Daí que
o conhecimento verdadeiro que temos do bem e do mal só pode ser abs-
trato ou universal, e que o juízo que fazemos sobre a ordem das coisas e a
conexão das causas, para podermos determinar o que é, no presente, bom
ou mau para nós, é mais imaginário que real.28

Nosso conhecimento concreto do que é verdadeiramente bom ou


mau é um conhecimento racional mesclado de imaginário: os desejos
que daí nascem são menos potentes que os desejos que dependem só da
imaginação dos prazeres presentes. Uma grande parte da empresa spi-
nozista consistirá, dado isso, em reformar o imaginário passional, em si-
multâneo racionalizando esse imaginário e imaginando o racional.
Expliquemo-nos.
Em vez de opor frontalmente imaginação e razão, afetos passionais
e desejos racionais, Spinoza propõe outro uso do conhecimento imagi-
nativo, pelo qual os conhecimentos racionais são vivificados, inscritos
na memória, a fim de, ou bem destruir as paixões mais nocivas, ou bem
viver de outra maneira, mais ativamente, as paixões que convêm com a
razão. De certa maneira, quando um prazer contrário à regra de nossa
utilidade se apresenta a nós, quando é “contemplado como presente”, é
tarde demais: o simples conhecimento racional é impotente para nos

28. Ética, Parte IV, proposição 62, escólio.

33
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O mais potente dos afetos

fazer desejar outra coisa que não aquilo que um conhecimento imagi-
nativo nos apresenta como prazeroso. Em compensação, é possível tra-
balhar para o futuro, exercitando-nos em imaginar os meios de lutar, de
não “ceder à tentação”, que será sempre grande. A proposição 7 da Parte
V da Ética afirma assim:

Os afetos que nascem da razão ou que ela suscita são mais potentes que
aqueles que estão referidos às coisas singulares que contemplamos como
ausentes.

O que está em jogo, portanto, é habituar-se a combater as “tenta-


ções” futuras, aquelas concernentes a objetos imaginados não como
presentes, mas como ausentes. E fazemos isso imaginando o racional,
ou seja, os princípios de uma vida reta, ou as propriedades de uma exis-
tência verdadeiramente útil. Noutras palavras, trata-se de imaginar, de
forma cada vez mais precisa, o modelo da natureza humana que está
em questão desde o prefácio da Parte IV da Ética, ao mesmo tempo que
as situações concretas nas quais esse modelo pode nos servir.

Por exemplo, estabelecemos, entre as regras de vida (ver a proposição 46 da


Parte IV com o seu escólio), que o ódio deve ser combatido com o amor ou
com a generosidade, em vez de ser retribuído com um ódio recíproco. En-
tretanto, para que esse preceito da razão esteja sempre à nossa disposição
quando dele precisarmos, deve-se pensar e meditar sobre as ofensas costu-
meiras dos homens, bem como sobre a maneira e a via pelas quais elas
podem ser mais efetivamente rebatidas por meio da generosidade. Ligare-
mos, assim, a imagem da ofensa à imaginação dessa regra, e ela estará sem-
pre à nossa disposição (pela proposição 18 da Parte IV) quando nos
infligirem uma tal ofensa.29

Os desejos que se vinculam ao conhecimento racional de nossa uti-


lidade são menos potentes que aqueles que dependem do conhecimento
imaginativo de objetos presentes. Mas eles são, com o tempo, mais po-
tentes que aqueles que provêm da imaginação antecipadora de objetos

29. Ética, Parte V, proposição 10, escólio.

34
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O conhecimento como o mais potente dos afetos

ainda ausentes. Assim, o desejo de vingar-se de uma ofensa presente,


ou, ainda, o prazer de defender presentemente sua honra ferida, são
mais fortes que qualquer outro afeto racional. Mas quando o afeto pas-
sional se vincula a uma causa imaginada como ausente, ou seja, quando
são imaginadas coisas que excluem a existência presente da causa, então
a potência afetiva da razão é relativamente mais potente, e isso tanto
mais quanto os princípios racionais são necessariamente imaginados
como presentes e constantes.

Um afeto que nasce da razão está necessariamente referido às propriedades


comuns das coisas (ver a definição da razão no escólio 2 da proposição 40
da Parte II), as quais contemplamos sempre como presentes (pois nada
pode haver que exclua sua existência presente) e que imaginamos sempre
da mesma maneira (pela proposição 38 da Parte II).30

Quando a ofensa se apresenta, é tarde demais, se nenhum exercí-


cio da imaginação do racional houver sido anteriormente empreen-
dido. Não é possível combatê-la da melhor forma (da maneira mais
útil) a não ser que estejamos já habituados a não cair no ódio (isto é, a
não ligar a tristeza experimentada à imaginação dessa ou daquela causa
exterior). Esse hábito se adquire vinculando essa eventual tristeza a
ideias adequadas (as ideias das propriedades comuns que explicam os
comportamentos humanos) – o que, pouco a pouco, atenuará e mesmo
destruirá nossa tristeza. E no caso de afetos como o desejo de glória, de
dinheiro, de prazeres sexuais, esse trabalho de antecipação da imagina-
ção levará não a se desfazer de tais desejos, como se dá no caso do ódio
(renunciar a toda ambição, cupidez ou libido seria antes nocivo). Esse
trabalho levará antes a vivê-los diferentemente, numa prática do corpo
e da mente que lhes aumentem a respectiva potência. Tais desejos de
glória, dinheiro, prazeres serão então não mais passivamente vividos,
mas se tornarão os meios de uma vida ativa, consagrada à conveniên-
cia com os outros, assim como à inteligência dessa conveniência.

30. Ética, Parte V, proposição 7.

35
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O mais potente dos afetos

O conhecimento racional serve-se, portanto, do conhecimento ima-


ginativo para moderar, destruir ou até transformar do interior os afetos
passionais. É nesse sentido que há um ardil do conhecimento para com
a afetividade em Spinoza. A esse trabalho do conhecimento, simulta-
neamente racional e imaginativo, sobre a afetividade passional ajunta-se
um desdobramento da afetividade própria à razão mesma. Uma satisfa-
ção nasce do desenvolvimento das forças do conhecimento adequado –
satisfação que culmina no afeto intelectual que está no princípio de nossa
salvação: amor de Deus. Deixamos de lado a análise detalhada da quinta
parte da Ética, única via pela qual pode ser compreendido esse afeto par-
ticular de Beatitude (será que se trata ainda de um afeto?). Retenhamos
simplesmente – e já é muito – que é possível fazer um uso inteiramente
prático do pensamento spinozista, compreendendo pouco a pouco nossa
própria afetividade, ou seja, apreendendo, fundamentalmente, quais são
as relações entre conhecimento e afetividade.

NIETZSCHE
“Fazer do conhecimento o mais potente dos afetos”*
Olivier Ponton**

Em 30 de julho de 1881, Nietzsche envia uma carta entusiasmada a


seu amigo Overbeck, na qual admite que mal conhecia Spinoza, mas que
acabava de descobrir nele um maravilhoso precursor e afirma que a “ten-
dência geral” de Spinoza é idêntica à sua – essa tendência pode ser for-
mulada assim: “fazer do conhecimento o mais potente dos afetos”31. Esta
fórmula tem um estatuto particular, uma vez que Nietzsche se expressa

* Tradução de Bárbara Lucchesi Ramacciotti, professora adjunta da UMC-SP (Universidade de Mogi


das Cruzes). Revisado por André Rocha, doutorando da USP (Universidade de São Paulo).
** Pesquisador do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique).
31. Ver KSB 6, carta 135.

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O conhecimento como o mais potente dos afetos

com palavras de Spinoza (ou melhor, com as palavras de um livro de


Kuno Fischer sobre Spinoza). Nos textos desse período, Nietzsche rara-
mente relaciona o conhecimento a um afeto, pois o relaciona de prefe-
rência a um “impulso” ou a uma “paixão”32. Nosso propósito não é aqui,
no entanto, compreender o sentido que essa fórmula pode tomar na fi-
losofia de Spinoza, mas reconstituir o sentido que tem na filosofia de
Nietzsche. Fixamos, portanto, dois objetivos: 1) compreender essa fór-
mula nietzschiana no seu contexto original, isto é, na filosofia de Aurora
e de A gaia ciência; 2) examinar em que esta tendência para “fazer do co-
nhecimento o afeto mais potente” pode corresponder à “tendência geral”
do pensamento de Nietzsche, nesse período.

1. Gênese da fórmula

No final de julho de 1881, Nietzsche acaba de publicar Aurora e


está em Sils-Maria. Não é a leitura de Spinoza, mas o livro de Kuno Fis-
cher sobre Spinoza que está na origem da carta de 30 de julho: trata-se
do segundo volume do primeiro tomo da Geschichte der neuern Philo-
sophie, dedicado à escola cartesiana33. Nietzsche havia solicitado a Over-
beck, que o retira na biblioteca da Universidade de Basileia34.

32. Não trataremos aqui da assustadora questão da terminologia nietzschiana: qual a diferença precisa
entre “instinto” (Instinkt), “impulso” (Trieb) e “afeto” (Affekt)? Sobre esse ponto, ver Patrick Wotling, es-
pecialmente: Nietzsche et Le Probleme de la civilization, Paris, PUF, 1995, p. 91. A multiplicidade de ter-
mos parece se explicar principalmente pela diversidade de perspectivas de análise: um afeto é um impulso,
mas considerado do ponto de vista da sua “capacidade de ser afetado” é um impulso-pathos, um im-
pulso-sentimento. Evidentemente, se Nietzsche fala sobre afetos na carta de 30 de julho de 1881, é para
retomar o termo utilizado por Spinoza. Mas podemos dar a esse uso do termo “afeto” um sentido pro-
priamente nietzschiano: dizer que o conhecimento é o “afeto mais potente”, ou seja, que o impulso do
conhecimento é mais forte do que outros e que o pathos do conhecimento é o mais forte de todos –
o conhecimento é isto que me afeta mais intensamente, o que suscita em mim os sentimentos mais for-
tes: o conhecimento tornou-se para mim uma paixão.
33. Kuno Fischer, Geschichte der neuern Philosophie, I/2, Munique, Verlagsbuchhandlung von Fr. Vasser-
mann, 1880.
34. Ver a carta de 8 de julho de 1881. É necessário notar que Nietzsche, tendo recorrido várias vezes ao
Geschichte der neuern Philosophie, não pede a Overbeck para enviar-lhe os dois volumes dedicados à es-
cola cartesiana, mas apenas o dedicado a Geulinx, Malebranche e Spinoza, no qual somente Spinoza o
interessa (pede a Overbeck “o volume de Kuno Fischer sobre Spinoza”).

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O mais potente dos afetos

A carta de 30 de julho não é o único documento que testemunha a


leitura que Nietzsche fez do livro de Fischer: essa leitura é também a
fonte de notas, citações e comentários que Nietzsche escreveu em um de
seus cadernos, e que constituem agora os fragmentos 11[193] e 11[194]
da edição Colli e Montinari. Estes fragmentos têm um lugar especial nos
Nachlaß [textos inéditos] nietzschianos, uma vez que eles estão entre os
fragmentos consagrados ao pensamento do eterno retorno, e porque eles
precedem imediatamente o aparecimento da figura de Zaratustra35.
Nesses fragmentos, Nietzsche reproduz algumas passagens do livro
de Fischer, mas sublinhando as diferenças entre sua própria filosofia
(essas diferenças sendo marcadas por fórmulas como “Eu digo:…”,
“Ego:…”, “Eu, em contrapartida,…”). O primeiro ponto do fragmento
11[193] interessa-nos particularmente, uma vez que diz respeito direta-
mente à “tendência geral” definida na carta de 30 de julho: “Spinoza: em
nossas ações estamos determinados somente pelos desejos e afetos. É ne-
cessário que o conhecimento seja afeto para ser motivo. Eu digo: é pre-
ciso que ele seja ‘paixão’ para ser motivo.” Nietzsche retoma aqui quase
literalmente uma passagem do capítulo que Fischer dedica ao “valor dos
afetos” na filosofia de Spinoza: “Em nossas ações somos determinados a
agir somente pelos desejos e afetos. O conhecimento verdadeiro do bem
e do mal pode, portanto, ser o motivo do nosso agir, apenas se for afeto,
é somente enquanto tal que ele determina o nosso agir.”36
Fischer explica também que, se somos determinados apenas por
afetos, é sempre o mais potente dos afetos que nos determina: “Os afetos
podem ser vencidos apenas por outros afetos: é por isso que o conhe-
cimento verdadeiro do bem e o mal deve necessariamente ser afeto, para
poder ser motivo.”37 Fischer acrescenta que o conhecimento “determi-

35. Os fragmentos 11[193] e 11[194] são posteriores ao fragmento 11[141], datado do início de agosto
de 1881, no qual Nietzsche formula pela primeira vez o pensamento do eterno retorno. Os fragmentos
anteriores a essa primeira formulação, como os fragmentos 11[132] e 11[137], comportam, no entanto,
reflexões sobre Spinoza: é, por conseguinte, bem no meio da sua “descoberta” de Spinoza que Nietzsche
“descobre” o pensamento do eterno retorno.
36. Kuno Fischer, op. cit., p. 494.
37. Ibidem, p. 495. Fischer reenvia aqui à proposição 14 da Parte IV da Ética.

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O conhecimento como o mais potente dos afetos

nará, portanto, nosso agir, apenas se for afeto, e o mais forte de todos os
afetos humanos”. Dessa força depende, com efeito, a nossa liberdade,
ou seja, a nossa liberdade em relação às paixões. Fischer explica que Spi-
noza distingue entre afetos “passivos” (as paixões) e “ativos”: “Se existe
em geral uma liberdade, essa pode consistir apenas em uma potência
que faz calar o poder das paixões, e essa potência pode encontrar-se
apenas nos afetos ativos” – quer dizer, no conhecimento: só o conheci-
mento é “pura atividade, potência exercida sobre as paixões ou liber-
dade”38. Acedemos, assim, à liberdade apenas se o conhecimento for em
nós “o mais potente dos afetos” (der mächtigste Affect). A fórmula re-
torna frequentemente sob a pluma de Fischer, especialmente no capí-
tulo consagrado “à doutrina da liberdade humana”39.
Antes de Nietzsche é, portanto, Kuno Fischer que vê na filosofia de
Spinoza o projeto de “fazer do conhecimento o mais potente dos afetos”.
Essa fórmula não deveria, no entanto, ser aplicada tal qual, ou seja, com
o sentido que tem no livro de Fischer, à filosofia de Nietzsche. A preci-
são do fragmento 11[193] é aqui essencial: para Nietzsche, o conheci-
mento é mais uma paixão do que um afeto − o que significa que “a ten-
dência geral” da sua filosofia é apenas aparentemente idêntica à de
Spinoza: a potência do conhecimento não é para ele “uma potência exer-
cida sobre as paixões” (Macht über die Leidenschaften), mas a potência de
uma paixão. Em outras palavras, e para utilizar os termos de A gaia ciên-
cia, o conhecimento não seria para Nietzsche “o meio” da felicidade, da
virtude ou da liberdade: afirmar que o conhecimento tornou-se paixão
é precisamente dizer que “o conhecimento quer ser mais que um meio”40.

38. Ibidem, pp. 457 e 459.


39. “O afeto mais potente anda de mãos dadas com o conhecimento mais claro” (ibidem, p. 512); “os afe-
tos ou desejos que provêm da razão são necessariamente mais potentes” (p. 513); o amor de Deus é “de
todos os afetos o mais potente” (p. 515); “o conhecimento claro nada mais é que o afeto mais potente ou
mais elevado” (p. 524); “o conhecimento claro é necessariamente o amor de Deus, o amor Dei intellec-
tualis: de todas as alegrias a única que é eterna, de todos os afetos o mais potente e o mais elevado” (p.
528). “O mais potente dos afetos” é inclusive o título de um parágrafo do capítulo consagrado à liberdade
em relação às paixões (pp. 512-3). Cf. a fórmula “Nossa razão é nossa maior potência” (p. 492) que Nietzs-
che copia no fragmento 11[193].
40. A gaia ciência, § 123.

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O mais potente dos afetos

2. O conhecimento tornou-se uma paixão

Num fragmento do período de Aurora, Nietzsche já assimilava a


paixão (mais precisamente a “plenitude da paixão”) “à vitória total de
só um afeto sobre os outros, de modo que lhe consagrássemos a vida, a
honra, etc.”41. A paixão é o triunfo “do mais potente dos afetos”. Mas
como o conhecimento, que geralmente se opõe aos sentimentos (a ciên-
cia é seca, clara, fria, ela sabe fazer calar o tumulto dos afetos), pôde tor-
nar-se paixão?

2.1. A união da cabeça e do coração


Nietzsche, com efeito, sempre procurou pensar (e criar) as condi-
ções de uma aproximação da “cabeça” e do “coração”, do intelecto e da
vontade – do conhecimento e das paixões. Mesmo nos primeiros livros
da sua “filosofia para espíritos livres” (Humano, demasiado humano;
Miscelânea de opiniões e sentenças, O andarilho e sua sombra), ou seja,
nos livros onde se esperaria que preconizasse um divórcio entre cabeça
e coração, uma liberação do espírito em relação às emoções e ao senti-
mento, Nietzsche recorda a necessidade das paixões e a inconsequência
de um espírito que procuraria extirpá-las: o terreno mais fértil é “o solo
das paixões vencidas” – mas tal solo existe apenas se há paixões a ven-
cer42. Nietzsche evoca, assim, o dia em que “o coração e a cabeça terão
aprendido a viver tanto perto um do outro quanto agora permanecem
distantes”43. Esse dia será o de uma cultura superior, que saiba dar ao
homem “um cérebro duplo”, de acordo com a imagem do aforismo 251
de Humano, demasiado humano: “A fonte de energia encontra-se em
uma esfera, na outra, o regulador: as ilusões, as ideias parciais, as pai-
xões devem ser usadas para aquecer, e, mediante o conhecimento cien-
tífico, devem-se evitar as consequências malignas e perigosas de um

41. Fragmento 8[94], inverno de 1880-1881.


42. O andarilho e sua sombra, § 53.
43. Ibidem, § 183.

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O conhecimento como o mais potente dos afetos

superaquecimento”. O futuro está, portanto, na coexistência feliz da ca-


beça e do coração. Num fragmento de 1875, Nietzsche desejava a pro-
dução de um homem em quem estariam reunidos “a mais elevada
inteligência e o mais ardente coração”44.
No início dos anos 1880, esse projeto evolui e se radicalizou: não se
trata mais apenas de aproximar a cabeça e o coração, mas de “fazer en-
trar o coração na cabeça”; não se trata mais de permitir “aquecer” o co-
nhecimento com as paixões, de encontrar nelas o seu alimento e a sua
energia, mas fazer do próprio conhecimento uma paixão.
Qualquer grande paixão é, no entanto, irracional: “a razão faz uma
pausa”, diz Nietzsche em A gaia ciência, e “o intelecto é reduzido ao si-
lêncio”45. Há, assim, homens em quem “o coração entra na cabeça e fala
apenas enquanto ‘paixão’”. Nietzsche toma precisamente como exemplo
“a desrazão” (Unvernunft) da paixão do conhecimento. Essa constitui,
portanto, um curioso paradoxo: compreende-se que o coração entra na
cabeça de um homem que sucumbe “à paixão do ventre”, mas é bas-
tante singular que o coração entre na cabeça daquele que consagra a
sua vida à ciência e ao conhecimento. Como esse estranho divórcio do
saber e da razão é possível?

2.2. A transformação do conhecimento em paixão


O saber é, com efeito, usualmente associado à calma das paixões, a
uma visão distante e desinteressada, a uma espécie de indiferença – o
próprio Nietzsche anota em um fragmento de 1880: “o nosso saber é
forma mais enfraquecida da nossa vida instintiva”; quando a sensação
torna-se saber, as coisas “parecem-nos mais distantes e mais externas”46.
Há, no entanto, exceções, afirma Nietzsche, justamente os homens que
são passionais “pelas coisas do saber” (Dinge des Wissens), os homens,

44. Fragmento 5[188], de 1875. Sobre essas perguntas, permitimo-nos reenviar à nossa obra, Nietzsche.
Philosophie de la légèreté, Berlim/Nova York, Walter de Gruyter, 2007, pp. 254-316.
45. A gaia ciência, § 3.
46. Fragmento 6[64], outono de 1880.

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O mais potente dos afetos

que se comportam “para com as coisas distantes como se comportam


para com as mais próximas”, provam isso que Nietzsche chama “a pai-
xão para os abstracta” (Passion für Abstrakta): “a incapacidade de guar-
dar em face de uma abstração a sua distância e a sua indiferença, eis o
que constitui o pensador”47.
Nietzsche não fala mais, em seguida, de paixão do abstrato, mas de
“paixão da retidão” (Leidenschaft der Redlichkeit), de “paixão nova”
(neue Leidenschaft, passio nova) e, sobretudo, de “paixão do conheci-
mento” (Leidenschaft der Erkenntnis)48. Nos fragmentos de 1880, ele se
esforça para explicar o aparecimento de tal paixão e reconstitui um fe-
nômeno complexo, no qual se distinguem pelo menos três processos:

1 – um processo de sublimação: para fazer do conhecimento uma


paixão, é necessário primeiro “sublimar todos os impulsos de modo que
a percepção do que é estranho vá muito além e se acompanhe, no en-
tanto, de prazer”49. Há uma espécie de cristalização, no sentido stendha-
liano do termo cristalização, que se opera não sobre o ser amado ou
sobre “um ramo de árvore desfolhado pelo inverno”, mas sobre as abs-
trações, pensamentos, coisas distantes, que finalmente são percebidas
com mais acuidade e prazer50;
2 – um processo de repetição: “a repetição frequente” do conheci-
mento faz que o conhecimento seja cada vez menos penoso e cada vez
mais instintivo: quanto mais se conhece, mais se tem prazer em conhe-
cer e conhecer corretamente51;
3 – um processo de incorporação: os pensamentos não são mais
sensações enfraquecidas, mas sensações “fundidas aos instintos mais
fortes” (mit den stärksten Trieben verschmolzen)52. A essa metáfora da

47. Fragmento 6[65], outono de 1880.


48. Sobre a paixão do conhecimento, ver, principalmente, o livro de Marco Brusotti, Die Leidenschaft
der Erkenntnis, Berlim/Nova York, Walter de Gruyter, 1997.
49. Fragmento 6[67], outono de 1880.
50. Ver STENDHAL, De l’amour, cap. II. [Trad. bras. Do amor, São Paulo, Martins Fontes, 1999.]
51. Ver, por exemplo, o fragmento 6[265], outono de 1880.
52. Fragmento 6[65], outono de 1880.

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O conhecimento como o mais potente dos afetos

fusão acrescenta-se a do estímulo (no sentido de uma música ou de


uma dança estimulante: alguns leem a filosofia como “os italianos que
a assimilam (aneignen) a uma música, estimulados em sua paixão (in
ihre Leidenschaft hineinziehen)”53. Nos fragmentos de 1881, Nietzsche
menciona, sobretudo, a incorporação (Einverleibung), ou seja, um pro-
cesso de assimilação e de dissimulação na vida instintiva54.

Ao ler os fragmentos de 1880, não se sabe efetivamente se esse pro-


cesso tem êxito ou não: Nietzsche parece considerar, às vezes, que a nova
paixão já se impôs, outras vezes que está no ponto de aparecer. Em Au-
rora, essa ambiguidade é levantada: é claro que a nova paixão está lá (é um
fato, o objeto de uma constatação: “O conhecimento transformou-se, em
nós, em paixão”55), e também é claro que seu aparecimento ratifica um
crescimento de potência: se o conhecimento torna-se paixão, é porque “o
nosso impulso ao conhecimento é demasiado forte para que ainda possa-
mos estimar a felicidade sem conhecimento”. Para utilizar os termos da
carta de 30 de julho de 1881, o conhecimento transformou-se em paixão
porque se tornou um afeto mais potente – porque se tornou o afeto mais
potente. Mede-se aqui a distância entre Nietzsche e a doutrina de Spinoza,
tal como Kuno Fischer a apresenta no seu livro: isso que Nietzsche chama
“paixão” é basicamente o contrário de um afeto passivo, é um afeto mais
potente (por conseguinte mais ativo) que os outros56.
Ora, se é encontrando sua maior potência que o conhecimento
torna-se paixão, é porque, para Nietzsche, o conhecimento se completa
na paixão. Se examinarmos as características da paixão, pelo menos as

53. Fragmento 7[18], final de 1880.


54. Ver, por exemplo, os fragmentos 11[141], 11[162], 11[197], 11[261], 11[268] e 12[40], de 1881, 21[3],
de 1882. Cf. A gaia ciência, § 110.
55. Aurora, § 429.
56. Não trataremos aqui da questão dos afetos como vontade de potência: essa pergunta far-nos-ia sair
dos limites que fixamos (o período de Aurora e de A gaia ciência) – sobre esse ponto, ver, sobretudo,
Wolfgang Müller-Lauter, Nietzsche. Physiologie de la volonté de puissance, Paris, Allia, 1998. É evidente, no
entanto, que a ideia de um combate entre os afetos, que procuram cada um se impor sobre os outros e
ser reconhecido como “o mais potente dos afetos”, somente ganha seu significado pleno no âmbito da
“hipótese” da vontade de potência.

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O mais potente dos afetos

que Nietzsche distingue nos textos do início dos anos 1880, com-
preende-se que, para ele, o conhecimento era de certa maneira desti-
nado a tornar-se paixão. Concentrar-nos-emos, aqui, em duas dessas
características: o heroísmo e o desinteresse.

2.3. A filosofia heroica


a) A paixão se torna heroica
Uma das características mais gerais da paixão é o espírito de sacri-
fício. Isso que define o sacrifício define, com efeito, também a paixão:
“Um instinto é mais forte que o outro e sacrifica-o” – um afeto é mais
potente57. Nietzsche diz repetidamente: o sentido do sacrifício não dis-
tingue a grandeza ou a nobreza, mas apenas “a categoria das passiona-
lidades” (Kategorie des Leidenschaftlichen)58. Qualquer homem apaixo-
nado sacrifica-se: aquele que tem paixão por jogo, pelas mulheres ou
pelo vinho, a “volúpia desenfreada” se sacrifica muito mais do que
aquele que tem paixão pela justiça ou pelo conhecimento. O próprio
da paixão é que ela “não teme nenhum sacrifício”, e é nesse sentido de
sacrifício que se atinge a “plenitude da paixão”59.
Esse sacrifício pode ser pessoal ou universal: em Aurora, Nietzsche
evoca às vezes o pensamento (pensamento-limite, “pensamento mons-
truoso”) de uma humanidade que se sacrificaria pelo conhecimento.
Ele formula, assim, a hipótese de um sacrifício final e “um fim trágico”
ao qual se trataria resolutamente de aquiescer: “Sim, essa paixão nos
aniquila! Mas não é um argumento contra ela.”60 Não se pode ir mais
longe, não se pode sacrificar nada mais ao conhecimento. Essa ideia “de

57. Fragmento 6[137], outono de 1880: “Sacrifica-se, por exemplo, a sua própria criança à sua vingança.
Ou sacrifica-se a sua vingança à sua criança – tudo depende do sentimento que é mais forte.”
58. Fragmento 6[178], outono de 1880. O que faz a nobreza da paixão não é o sacrifício, é a escassez, a
singularidade do sacrifício: “Compete ao objeto da paixão enobrecê-la e deixar a marca de uma natureza
superior. […] Qualquer coisa, portanto, que deixa geralmente frio é objeto de paixão – é o que constitui
a natureza superior: seu gosto é orientado para exceções” (fragmento 6[175]).
59. Aurora, aforismo 429, e fragmento 8[94], inverno de 1880-1881.
60. Ibidem, §§ 45 e 429; fragmento 7[171], final de 1880.

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O conhecimento como o mais potente dos afetos

uma saída trágica do conhecimento” desaparece, no entanto, em A gaia


ciência: ela testemunha, sobretudo, o desejo de pensar o conhecimento
como uma paixão extrema, e o desejo de ir até o limite desse pensa-
mento. É preciso que o conhecimento se torne o mais potente dos afe-
tos para que se possa ter a ideia de um sacrifício tão monstruoso.
Mas o que conta não é somente a radicalidade do compromisso, é
também a própria estrutura do sacrifício: se a paixão é sempre sacrifí-
cio, o sacrifício não é sempre paixão. O que distingue o sacrifício apai-
xonado das outras formas de sacrifício é ser um sacrifício de si
(Selbst-Opferung), ou seja, um sacrifício de si por si mesmo. O homem
que se sacrifica em nome de uma paixão sacrifica a si mesmo (não é o
Estado ou a Igreja, por exemplo, que o sacrifica): Nietzsche opõe, assim,
“o sacrifício de si” ao sacrifício dos indivíduos pelos Estados e pelos
príncipes, a moral da maestria de si “à moral dos animais sacrificados”,
isto é, a uma moral na qual os indivíduos sacrificam-se (são sacrifica-
dos) com entusiasmo ao seu príncipe ou ao seu Deus (provando, assim,
um sentimento embriagante, mas de ilusória potência)61. Esse ponto é
essencial, pois permite compreender por que a paixão do conhecimento
opõe-se ao que Nietzsche chama civilização. Essa é definida como uma
tentativa de nivelamento, normalização e indiferenciação (cessação da
diferenciação) da humanidade: a nossa “sociedade de mercado” está,
segundo Nietzsche, para “transformar a humanidade em areia”. Resta a
pergunta: desejamos que a humanidade “termine no fogo e na luz” (sa-
crifique-se em nome do conhecimento) ou se perca na areia?62 Não é a
sociedade que deve sacrificar os seus indivíduos, são os indivíduos que
devem sacrificar a si mesmos: a paixão opõe-se à civilização.
Esse sentido do sacrifício e do sacrifício de si por si mesmo exige
uma virtude, ou, antes, uma qualidade sobre a qual Nietzsche quer fun-
dar isso que às vezes chama de sua “nova religião”: a Tapferkeit (“va-
lentia”, “bravura”, “coragem”, “audácia”)63. Num fragmento de 1880,

61. Ibidem, §§ 374 e 215.


62. Ibidem, §§ 174 e 229.
63. Fragmento 8[94], inverno de 1880-1881. Cf. o fragmento 8[1].

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O mais potente dos afetos

Nietzsche anota que a Tapferkeit “não é uma virtude, mas uma questão
de temperamento”64; também afirma, às vezes, que a Tapferkeit é um
sentimento e, ainda, “o sentimento mais elevado” (der erhebendste Ge-
fühl) – a mesma fórmula que utiliza para qualificar o sentimento de po-
tência65. Há, de fato, um parentesco psicológico e afetivo evidente entre
a Tapferkeit e o sentimento de potência, dado que toda vitória supõe a
Tapferkeit e dado que a Tapferkeit é o contrário do sentimento de fra-
queza e de medo. A Tapferkeit consiste primeiro em não temer nenhum
sacrifício, em enfrentar todos os perigos em nome de uma paixão, ousar
ser um indivíduo e se opor à civilização (essa se apoia, com efeito, sobre
“o sentimento da tradição”, ou seja, sobre o medo)66. É a própria força
de um afeto, de um impulso que se tornou mais potente que os outros,
é a própria potência de uma paixão que gera a Tapferkeit.
A paixão torna-se, por conseguinte, corajosa, brava, audaciosa; há
em toda paixão algo de heroico, algo como uma necessidade ou uma
vontade de perigo: Nietzsche escreve num fragmento de 1880 que é a
própria Tapferkeit que “reclama sua porção de perigo”67. Trata-se mais de
uma exigência dos impulsos do que de um ideal ou de um projeto cons-
ciente, trata-se de uma verdadeira necessidade fisiológica: “o coração deve
bater, os músculos, vibrar de atividade tensa”68. Tornou-se para Nietzs-
che uma questão de gosto: assim, anota num fragmento de 1880 que ele
glorifica “a aflição” do conhecimento, pois prefere “estar sempre preo-
cupado, com o coração batendo por causa de uma espera ou de uma de-
cepção”, a aspirar a uma coisa como “uma serena felicidade do conheci-
mento” – “não quero mais conhecimento sem perigo”, afirma ainda69.
Esse heroísmo se exprime em um lema que retorna frequentemente
em Aurora e nos fragmentos de 1880-1881: “Que importa eu!” (Was

64. Fragmento 4[85], verão de 1880.


65. Fragmentos 8[95], inverno de 1880-1881, e 4[197], verão de 1880.
66. Aurora, § 9.
67. Fragmento 3[26], primavera de 1880.
68. Fragmento 7[74], fim de 1880.
69. Fragmento 7[165], fim de 1880.

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O conhecimento como o mais potente dos afetos

liegt an mir!) − lema que Nietzsche considera ao mesmo tempo “a ex-


pressão da verdadeira paixão” e “o último argumento” da Tapferkeit: é
necessário um eu heroico, um “eu de granito” (granitenes Ich) para dizer
“que importa eu!”70. Nietzsche pensa ter tomado esse lema de emprés-
timo dos estoicos, e cita às vezes os versos do Hino a Zeus, de Cleante,
que ele associa à sua paixão heroica ao conhecimento71. O “que importa
eu!” nietzschiano não conduziria, no entanto, à ataraxia estoica (muito
menos conduziria à beatitude spinoziana): não é vitória sobre as pai-
xões, mas vitória da paixão.

b) O conhecimento deve tornar-se heroico


A paixão define-se, portanto, pelo sacrifício. A Tapferkeit, o gosto
para o perigo e o desprezo heroico de si: ora, tudo isto também é exi-
gido pelo conhecimento. Para o conhecimento tornar-se paixão, deve pri-
meiro tornar-se heroico. Nietzsche repete isso nos fragmentos de 1880:
“Eu quero trazer para mim o estímulo heroico, que é necessário para
entregar-se à ciência!”; o conhecimento exige “a força do heroísmo”,
deve envolver-se “de um encanto heroico”72 − se há uma inscrição a gra-
var “acima da porta do pensador do futuro”, não é “Conheça-te a ti
mesmo” mas “que importa o eu!”73.
Essa visão heroica do conhecimento não é nova em Nietzsche: en-
contra-se já em O nascimento da tragédia (imagem evocada principal-
mente com a gravura de Albrecht Dürer, O cavaleiro, A morte e o diabo)
ou na III Consideração extemporânea (com o elogio da veracidade he-
roica, que define o homem em Schopenhauer). Na época de Aurora e de
A gaia ciência, este heroísmo toma, no entanto, uma dimensão nova: se
a paixão e, por conseguinte, o sacrifício, a bravura e o heroísmo são ne-
cessários, trata-se de pôr isto que Nietzsche chama “a grande questão
prática” ou “a grande questão”: deve-se cultivar sempre mais igualdade?

70. Fragmento 7[45], fim de 1880, § 494 de Aurora, e fragmento 7[102], fim de 1880.
71. Fragmento 15[59], outono de 1881. Cf. Aurora, § 195.
72. Fragmentos 7[159] e 7[157], fim de 1880, e 6[228], outono de 1880.
73. Aurora, § 547.

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O mais potente dos afetos

Deve-se deixar a humanidade enterrar-se “na areia frouxa” da civiliza-


ção? Para fazer essa pergunta, é necessário ousar opor-se à tradição, ar-
riscar-se “ao flanco do Vesúvio” – é necessário “viver perigosamente”
(gefährlich leben)74.
Ora, instalando-se ao pé do Vesúvio, a filosofia não é mais apenas
pensamento, mas experiência e experimentação: sacrificar-se ao conhe-
cimento é pôr sua vida em jogo pelo conhecimento, e um pensador põe
a sua vida em jogo fazendo experiências. Nietzsche declara enfaticamente
em Aurora: “Podemos fazer experiências [experimentiren] sobre nós
mesmos! Sim, a humanidade pode fazer isso consigo mesma! Os maio-
res sacrifícios ainda não foram oferecidos ao conhecimento.”75 Essa con-
cepção da filosofia como experimentação heroica assume seu sentido
pleno em A gaia ciência, com o pensamento que a vida pode ser enca-
rada como “um meio de conhecimento”, ou seja, como uma experi-
mentação (Experiment)76. Esse pensamento é efetivamente de um sa-
crifício de si, e só o compreendemos bem na perspectiva da paixão do
conhecimento: dizer que o amor do conhecimento é uma paixão, quer
dizer que o impulso do conhecimento tornou-se o mais potente de
todos – por conseguinte, significa dizer que o conhecimento não é mais
o meio para a felicidade, para a virtude e para a vida, mas que é a pró-
pria vida que se tornou o meio de conhecimento.
De modo geral, A gaia ciência corresponde à realização dessa filoso-
fia heroica, a afirmação deste“eu de granito” que Nietzsche esforça-se para
construir nos fragmentos de 1880 – os últimos aforismos do livro III, que
formam um pequeno catecismo nietzschiano, podem ser lidos como “as
frases de granito” (granitnen Sätze) dessa nova filosofia: oito fórmulas la-
pidares que são desenvolvidas no aforismo 283, no qual Nietzsche clama
aos seus desejos “uma época que levará heroísmo no domínio do conhe-

74. Fragmentos 8[1], 8[7] e 8[8], inverno de 1880-1881; fragmentos 6[163], outono de 1880; fragmento
8[34], inverno de 1880-1881, e § 283, de A gaia ciência.
75. Aurora, § 501. Cf. § 198, no qual Nietzsche explica que é preciso ter “muitas experiências interiores
grandes [Erfahrungen]”, ou o fragmento 6[448], outono de 1880, no qual ele afirma que os seus pensa-
mentos são também as suas experiências (Erlebnisse).
76. A gaia ciência, aforismo 324.

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O conhecimento como o mais potente dos afetos

cimento”, “uma época mais viril e mais bélica que saberá, sobretudo, re-
meter a coragem à honra [Tapferkeit]”77. Essa época será efetivamente a
de uma humanidade para a qual o conhecimento tornar-se-á o afeto mais
potente, um afeto tão potente que tudo poderá ser-lhe sacrificado.

2.4. O desprendimento
Se a paixão é definida pelo heroísmo, define-se também pela re-
núncia: todo sacrifício é renúncia, mas o sacrifício apaixonado é uma
renúncia dionisíaca (no sentido que Nietzsche dará a esta palavra no
aforismo 370 de A gaia ciência ou na Tentativa de autocrítica), uma po-
breza na superabundância e na plenitude.
Nietzsche reconstitui o mecanismo dessa renúncia no aforismo 304
de A gaia ciência, descrevendo o destino do homem apaixonado, que se
separa pouco a pouco de tudo o que não se incorpora à sua paixão – de
tudo o que resiste a esse processo de fusão, de estímulo e de dissimula-
ção, que descrevemos acima: “sem ódio nem aversão, vê hoje se separar
disto, amanhã daquilo, similar às folhas amareladas que um vento li-
geiro arranca da árvore: ou, ainda, não se apercebe mesmo dessa sepa-
ração, tão rigorosamente o seu olhar se fixa no objetivo, olhando,
sobretudo, para a frente de si, e nunca para o lado, nem para trás, nem
para baixo”. A paixão gera, assim, a indiferença, e um desprendimento
que Nietzsche opõe a qualquer espécie “de virtudes negativas”: não há
nela nenhuma abnegação, nenhuma vontade de renúncia ou de empo-
brecimento. Basicamente, não é o homem apaixonado que se separa
das coisas, são as coisas que se afastam dele, porque não lhe interessam.
O que define aqui a paixão é, por conseguinte, a ideia fixa, a foca-
lização sobre um único objetivo, um único objeto. A ideia fixa é tam-
bém, para Nietzsche, uma característica geral da paixão: ser apaixonado
significa pensar unicamente no que se ama. Nietzsche pôde encontrar
essa ideia em Stendhal, mas também em Pascal, que vê na digressão o
próprio do discurso amoroso (retorna-se sempre ao que se ama, não se

77. Ver Ecce Homo, “Por que escrevo livros tão bons: A gaia ciência”.

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O mais potente dos afetos

chega a falar de outra coisa)78. Um dos sintomas da paixão consiste em


perseguir-nos até em nossos sonhos79. A paixão é despótica, obsessiva,
toma posse da cabeça e do coração – tudo lhe é subordinado e sacrifi-
cado: “Quando comemos, passeamos, vivemos socialmente ou solita-
riamente, devemos determinar até o que há em nós de mais ínfimo ao
objetivo superior da nossa paixão”, afirma Nietzsche80. A paixão é, com
efeito, o domínio de um impulso, de um afeto sobre todos os outros: o
homem apaixonado tem apenas um único objetivo, satisfazer este im-
pulso. Ao tornar-se uma paixão (o afeto mais potente), o conhecimento
torna-se, por conseguinte, um objetivo, e torna-se mesmo o único obje-
tivo, ou seja, um objetivo que não saberia ser ao mesmo tempo um
meio. É o sentido do aforismo 123 de A gaia ciência: “O conhecimento
quer ser mais que um meio” – isso significa que não quer ser sujeitado
a nenhum outro impulso.
A paixão, por conseguinte, torna pobre, no sentido de nos impul-
sionar a desprender-nos do que é, para os outros, o objeto de desejo. O
próprio da paixão é que pode renunciar a tudo, exceto a si própria. É
precisamente porque não se pode renunciar ao que se ama apaixona-
damente que se pode renunciar a todo o resto: a paixão não teme ne-
nhum sacrifício, porque “nada teme, no fundo, senão a sua própria
extinção”81. Nietzsche apoia-se aqui na definição que Stendhal dá ao
amor-paixão em De l’amour [Do amor]. Amar apaixonadamente é ser
capaz de sofrer todos os empobrecimentos e todas as renúncias, para
poder continuar a amar.
Essa indiferença da paixão é de início indiferença ao olhar e ao jul-
gamento dos outros, indiferença a tudo o que pode adular a vaidade

78. Cf. PASCAL, Blaise. Pensées. Oevres complètes. Estabelecimento do texto por Louis Lafuma. Paris,
Seuil, 1963, p. 298.
79. Ver, sobre esse ponto, certos fragmentos autobiográficos, como os fragmentos 7[9] ou 7[156], final
de 1880. Cf. Aurora, aforismo 572: “Quando alguém, como o pensador, vive habitualmente na grande cor-
rente dos pensamentos e dos sentimentos, e mesmo nossos sonhos, na noite, seguem esta corrente: pede-
se à vida tranquilidade e silêncio.”
80. Fragmento 6[202], outono de 1880.
81. Aurora, § 429.

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O conhecimento como o mais potente dos afetos

dos outros: “Os homens apaixonados se importam pouco com o que


pensam os outros, o seu estado os eleva acima da vaidade.”82 Nietzsche
inspira-se aqui na distinção schopenhaueriana entre a vaidade e o or-
gulho: em Aforismos para a sabedoria de vida, Schopenhauer opõe, com
efeito, o orgulho, que consiste em ser interior e firmemente convencido
do que se quer, e a vaidade, que consiste em convencer a si mesmo do
que se quer resignado pelo olhar e pelo julgamento dos outros83. O apai-
xonado não é vaidoso, mas orgulhoso – é isto o que faz sua liberdade: o
que pensa não depende do que pensam os outros.
Ora, essa indiferença e essa liberdade, esse desprendimento da pai-
xão, constituem também uma exigência ou uma consequência do co-
nhecimento: Nietzsche explica, assim, que a indiferença é “o funda-
mento do espírito científico” (“uma coisa não nos concerne, nós podemos
pensar o que quisermos, não há nem vantagem nem desvantagem para
nós”) e que o progresso do conhecimento acompanhou-se de um au-
mento das coisas indiferentes (“o mundo não cessou de fazer-se cada vez
mais indiferente”)84.
Nietzsche retorna frequentemente, nos fragmentos de 1880 e em Au-
rora, à necessidade para o pensador de viver na independência e na po-
breza, reformulando, assim, o ideal do Andarilho e a sua sombra e da filo-
sofia para o espírito livre em geral – o “ideal do sábio pobre” (Ideal des
armen Weisen) e da “pobreza voluntária e idílica”, com o qual Nietzsche faz
doravante seu lema: “Pobre, feliz, e independente!”85 O pensador deve ter
uma vida “simples e heroica”, deve “viver com modéstia” (wohlfeil leben)86.
Essa simplicidade heroica depende, no entanto, do próprio pensa-
dor. É uma “pobreza apaixonada”, por conseguinte, dionisíaca, dado que

82. Aurora, § 394. Nietzsche reivindica às vezes essa indiferença: ver, por exemplo, o fragmento 11[1], de
1881, no qual propõe buscar receitas para “tornar-se indiferente ao elogio e à censura”, e § 289, de A gaia
ciência.
83. Nietzsche retoma essa definição da vaidade especialmente no § 385 de Aurora.
84. Fragmento 11[110], de 1881.
85. Fragmento 7[111], final de 1880, e § 206 de Aurora.
86. Fragmento 4[208], verão de 1880, e § 566 de Aurora. Fragmento 6[341], outono de 1880, e § 566 de
Aurora.

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O mais potente dos afetos

o homem que tem espírito é, para Nietzsche, o mais rico e o mais po-
tente dos homens: deve poder “privar-se sem tomar ares de mártir” – so-
mente pode privar-se de tudo, porque renunciar ao melhor (ou seja, ao
conhecimento) seria para ele uma “insuportável privação”87. Mas o co-
nhecimento, que torna essa simplicidade suportável, tem também ca-
rência de uma tal simplicidade, para aceder à independência de espírito
que lhe é necessária. O conhecimento, a pobreza e a liberdade são in-
dissociáveis: o amigo da verdade é também o amigo da independência:
“Eu sou apaixonado pela independência”, afirma Nietzsche, “sacrifico-
-lhe tudo”; a independência é o berço “da paixão do infinito.”88 Essa
independência pode tomar a forma do isolamento, ou mesmo do de-
senraizamento e do exílio: “Somos emigrantes”, dispara Nietzsche,
emigrantes que aspiram à “independência absoluta.”89 Reencontra-
-se, assim, a figura do andarilho que se acha no coração da filosofia
do espírito livre.
Não há, portanto, conhecimento sem independência, e não há in-
dependência sem simplicidade – pelo menos sem uma simplicidade he-
roica e dionisíaca. Não se trata de uma simplicidade negativa, que seria
a consequência de um processo de empobrecimento e de perda de po-
tência, mas de uma simplicidade da superabundância, simplicidade do
que se sente de modo tão rico, tão forte e tão livre que permite viver no
exílio e na pobreza. Também não há, por conseguinte, conhecimento
sem paixão, dado que só a paixão pode engendrar tal simplicidade: um
afeto tornou-se mais potente, porque um impulso reduziu todos os ou-
tros ao silêncio, por isso a vida pode ser simples e heroica: há apenas um
impulso a satisfazer e tudo lhe é sacrificado.

87. Fragmento 6[341], outono de 1880, e § 566 de Aurora.


88. Fragmentos 3[124], primavera de 1880, e 7[91] e 7[13], final de 1880.
89. Fragmento 6[31], outono de 1880. Cf. “antes emigrar”, § 206 de Aurora. Cf., igualmente, o fragmento
7[9], do fim de 1880, no qual Nietzsche explica que a paixão do conhecimento despedaça “as relações de
simpatia”: alusão evidente a Wagner, cuja figura é central em todos os textos sobre a independência e a
renúncia.

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O conhecimento como o mais potente dos afetos

2.5. Um amor impossível


O conhecimento, portanto, tornou-se paixão. Mostramos que essa
transformação era uma realização90: o conhecimento encontra sua ver-
dade e sua plenitude na paixão do conhecimento, porque o conheci-
mento encontra na paixão a simplicidade heroica da qual tem necessi-
dade. Mas a paixão é apenas uma realização? Não há na paixão algo de
impossível, de destruidor, de infeliz, uma dimensão necessariamente
trágica da qual seria preferível desviar-se? Ao transformar-se em amor-
-paixão, o amor do conhecimento pode continuar a ser um amor feliz?
O impulso mais potente pode ser satisfeito?

a) Amor do conhecimento e amor das coisas


Para responder a essas perguntas, é necessário primeiro interro-
gar-se “o que se ama” quando se diz que se ama o conhecimento. A pai-
xão do conhecimento é, com efeito, também amor às coisas, abertura
ao que não está em mim, ao que me é estrangeiro, remoto, exterior. O
lema “Que importa eu!” é a expressão da verdadeira paixão, porque a
verdadeira paixão me faz sair de mim mesmo, empurra-me para fora de
mim, para as coisas: é “a maneira extrema de ver algo fora de si”91. Em
fragmento de 1880, Nietzsche observa que Pascal nunca poderia dizer
“Que importa eu!”, pois considerava a salvação da alma a única coisa
importante – a posição de Pascal corresponde ao “mais profundo
egoísmo”, é fundamentalmente anti-heroico: “o eu é detestável”, mas
nunca se deve “desviar o olhar de si”92. A paixão desvia-nos de nós, por
isso arranca-nos essa constante preocupação conosco, típica do cristia-
nismo93. Ora, Nietzsche mostra que a preocupação consigo mesmo ti-
picamente cristã e pascaliana acompanha-se paradoxalmente “de uma

90. Aqui, o termo do original, accomplissement, tem o sentido de realização, mas uma realização que é
quase uma destinação, pois o autor trabalha com a ideia de que para Nietzsche é um destino do conhe-
cimento tornar-se paixão. (N. do T.)
91. Fragmento 7[45], final de 1880.
92. Fragmentos 7[158] e 7[106], final de 1880.
93. Nietzsche evoca também Byron, que, como escrevia Stendhal, “constantemente era ocupado de si e
do efeito que produzia sobre os outros” (fragmento 7[151], final de 1880).

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fuga de si” (Selbstflucht): o amor ao próximo consiste, segundo ele, em


pensar nos outros por sentir pouco prazer em pensar em si. Desde
então, é mais agradável desviar o olhar para o exterior: o amor a Deus
consiste em “dissolver-se em Deus” como em um “fora de si” (assim
como Byron tinha sede por ações “porque estas desviam-nos mais ainda
de nós mesmos do que os pensamentos, os sentimentos e as obras”)94.
Nietzsche retoma aqui contra o cristianismo a análise pascaliana do di-
vertimento: por preocupar-se constantemente com a salvação de sua
alma, o cristão dissolve-se, no entanto, em Deus. No caso da paixão, o
paradoxo é inverso: tendo o olhar desviado de si mesmo, entretanto, o
homem apaixonado encontra e afirma a si mesmo. A paixão é ao
mesmo tempo desprezo de si (“que importa eu!”) e afirmação de si.

b) A fábula de Don Juan do conhecimento


Essa aptidão que define a paixão, aptidão para desviar o olhar de si
para ver algo fora de si, é evidentemente uma aptidão essencial ao co-
nhecimento – aqui o conhecimento ainda exigia a paixão. Como diz
Nietzsche em Aurora, o pensador tem necessidade “de justiça e de amor
em relação a tudo o que existe”95. É necessário voltar-se para as coisas e
é necessário amá-las, é necessário “calor e entusiasmo” para conhecer e
para ver (somente quando uma coisa nos interessa muito é que a vemos
realmente)96.
Não há conhecimento sem amor: é o que mostra ao contrário a fá-
bula de Don Juan do conhecimento97. Essa fábula narra o destino trá-
gico daquele que conhece sem amar (“falta-lhe amor às coisas que
conhece”). A chave desse aforismo é o capítulo LXIX, de Do amor, de
Stendhal, no qual Don Juan é contraposto ao Werther de Goethe:
Werther é a figura “do homem apaixonado”, enquanto Don Juan é um
caçador (“o amor de Don Juan é um sentimento no gênero do gosto

94. Aurora, § 549. Cf. o fragmento 7[96], final de 1880, e os §§ 131 e 516 de Aurora.
95. Ibidem, § 43.
96. Ibidem, § 339.
97. Ibidem, § 327.

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O conhecimento como o mais potente dos afetos

pela caça”, diz Stendhal) – e é um caçador que, tanto para Stendhal


como para Nietzsche, se refugia finalmente no desgosto e no aborreci-
mento (“é, enfim, pregado à sua decepção” e, não encontrando mais
nada que comer, é ele que se transforma em um “convidado de pedra”).
Para o Don Juan do conhecimento, o conhecimento é apenas um di-
vertimento, no sentido pascaliano do termo.
Ora, o que caracteriza o Don Juan do conhecimento é o mesmo
que caracteriza todo caçador, sente mais prazer em caçar do que na presa.
O mesmo se dá com a paixão do conhecimento: o que importa é “a in-
quietação da descoberta”98. Aliás, Nietzsche afirma explicitamente em
um aforismo de Aurora: “Um vai à caça para apanhar verdades agradá-
veis, o outro, verdades desagradáveis. Mas o primeiro também tem mais
prazer na caça do que na presa.”99 Na paixão do conhecimento, a caça
não tem, porém, nada de divertimento ou de fuga de si: é amor verda-
deiro, amor-paixão no sentido stendhaliano do termo. Não é distração,
mas inquietação.

c) Um amor infeliz
A diferença fundamental entre a paixão do conhecimento e a caça
do Don Juan do conhecimento é, portanto, esta: paixão é amor. A pai-
xão parece ser mesmo, acrescenta Nietzsche, um amor infeliz: “Talvez
sejamos nós mesmos, à nossa maneira, os amantes infelizes!”100 Nietzs-
che inscreve-se ainda na esteira de Do amor, de Stendhal, mas também
na esteira do Tristão, de Wagner, e de uma concepção romântica e cristã,
uma visão crística do amor. Aliás, ele assume essa herança complexa no
aforismo 429 de Aurora, no qual não hesita em declarar: “O cristianismo
se atemorizou alguma vez com um semelhante pensamento? O amor e
a morte não são irmão e irmã?” Em uma primeira versão, Nietzsche
havia escrito assim: “Todo homem que ama quer morrer.”

98. Aurora, § 429.


99. Ibidem, § 396. Cf. o fragmento 7[129], do final de 1880, no qual Nietzsche volta mais uma vez à
análise de Pascal contra o cristianismo, evocando o cristão que se distrai partindo “para a caça de seus
pecados”.
100. Aurora, § 429.

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Se há prazer pela caça, esse prazer é, por isso, “uma sombra da bea-
titude”101. Há na paixão do conhecimento uma obscuridade (Düsterkeit)
que define de fato, para Nietzsche, a paixão em geral: toda grande paixão
é “um braseiro silencioso e sombrio”102. Nietzsche às vezes afirma mesmo
“a beatitude da desgraça do conhecimento”103. Esse oxímoro resume um
dos paradoxos centrais do código do amor-paixão, tal como descreve
Stendhal em Do amor: o amante infeliz não trocaria por nenhum preço
o seu amor (a sua desgraça) contra um estado de indiferença.
Mas por que a paixão do conhecimento seria, por conseguinte, um
amor infeliz? Por que a sua beatitude deveria ser “sombria” e obscure-
cida pela melancolia? Simplesmente porque o amor do conhecimento
é sem dúvida um amor impossível: o drama da paixão do conheci-
mento consiste em desviar o olhar de si para ver algo fora de si – mas o
que vê fora de si nada mais é do que si mesmo. Isso que Nietzsche
chama “a aterrorizante comédia” do conhecimento: na caverna do saber,
o homem reencontra apenas o seu próprio fantasma e os seus próprios
órgãos104. Essa comédia, que significa talvez “a impossibilidade do co-
nhecimento”, dá a chave do enigmático aforismo 423 de Aurora: a be-
leza da natureza é muda (o mar que se estende cintilante, o céu em
espetacular crepúsculo), não pode falar; e ao contemplá-la somos ten-
tados a abandonar-nos ao seu grande silêncio (“monstruoso mutismo”)
e, assim, “cessar de ser um homem” (ou seja, parar de falar, de pensar,
de conhecer). O que fala na natureza é sempre o homem, e o prazer de
conhecer não é senão “um prazer humano”105.
A paixão do conhecimento é um amor infeliz, porque é o amor do
homem para conhecer as coisas, no entanto, o homem conhece apenas
ele mesmo quando procura conhecer as coisas: “O amante do conheci-
mento deseja unir-se às coisas e vê-se separado delas – é esta a sua pai-

101. Fragmento 7[19], final de 1880.


102. Aurora, § 471.
103. Fragmento 7[65], final de 1880.
104. Aurora, §§ 539 e 483.
105. Ibidem, § 483.

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xão.”106 Qualquer conhecimento é uma humanização da natureza. A ciên-


cia não é apresentada, em A gaia ciência, senão como “uma humaniza-
ção a mais fiel possível das coisas” – humanização que Nietzsche associa
a uma verdadeira tragédia: a “tragédia prometeica de todos os buscado-
res do conhecimento”107. A liberação de Prometeu simboliza aqui a de-
sumanização da natureza, e parece que Nietzsche renuncia veemente-
mente à esperança de tal desumanização. Na versão definitiva de A gaia
ciência, essa esperança é substituída por uma desdivinização da natu-
reza e uma renaturalização do homem: “Quando todas as sombras de
Deus cessarão de obscurecer nossa vista? Quando teremos desdivinizado
totalmente a natureza? Quando nos será permitido naturalizar os seres
humanos com a natureza pura, novamente descoberta e liberada?”108
Talvez poderemos liberar a natureza de Deus, mas liberá-la do homem
parece impossível: mesmo as matemáticas, segundo Nietzsche, são ape-
nas “o meio para o universal e derradeiro conhecimento do humano”109.
Em outras palavras, Nietzsche duvida da possibilidade de uma in-
corporação total da verdade. Reflete especialmente no que chama “a
verdade última do fluxo contínuo de todas as coisas”: o “tudo flui” he-
raclitiano “não suporta a incorporação”; o nosso corpo, os nossos im-
pulsos e os nossos órgãos rejeitam-no110. “A crença no persistente é
necessária à vida.” Ora, Nietzsche afirma e repete: o fato de o conheci-
mento ser, em última análise, impossível (no sentido “do ceticismo úl-
timo” formulado no aforismo 265 de A gaia ciência: as verdades do
homem são apenas “os erros irrefutáveis do homem”) não suprime a
paixão do conhecimento – muito pelo contrário: de acordo com a ló-
gica do amor-paixão que é um amor infeliz, “a bela impossibilidade” é,
sem dúvida,“o último encanto da paixão”111. A paixão do conhecimento

106. Fragmento 11[69], de 1881.


107. A gaia ciência, aforismos 112 e 300.
108. Ibidem, § 109. Nietzsche primeiro tinha escrito: “Prometeu nem sempre é liberado de seu abutre.”
109. Ibidem, § 246.
110. Fragmento 11[162], de 1881.
111. Fragmento 15[26], outono de 1881.

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consiste, por conseguinte, no fundo, em desejar o impossível, justamente


por ser um desejo apaixonado é por isso mesmo possível: só quem ama
apaixonadamente o conhecimento pode amá-lo sabendo que ele é im-
possível, e ama ainda mais apaixonadamente quanto mais sabe que é
impossível. O conhecimento precisava ainda se transformar em paixão:
precisava porque o conhecimento é impossível, e também para que se
continue, apesar de tudo, a amá-lo.
Quem ama apaixonadamente o conhecimento pode, portanto,
amar e procurar o conhecimento sem ter necessidade de crer em virtu-
des, nem mesmo na possibilidade do conhecimento – que o conheci-
mento não torna feliz e que seja sem dúvida impossível, não altera em
nada: ele apenas, talvez, o ame mais apaixonadamente. É, assim, o pró-
prio destino da filosofia que se joga nessa transformação do conheci-
mento em paixão, nessa vitória do conhecimento como “mais potente
dos afetos”. Para que a filosofia continue possível, os filósofos precisam
começar a compreender que o conhecimento (a incorporação da ver-
dade) é, sem dúvida, impossível, é necessário que não seja mais amor-
-prazer, mas amor-paixão do conhecimento. Se a filosofia é amor, como
dizia Platão, não é um amor que procura ser feliz, mas um amor que
zomba de ser infeliz. A paixão do conhecimento é a única maneira de
realmente amar a verdade, ou seja, de amá-la nela mesma e por ela
mesma: a paixão não faz do conhecimento o meio, mas o objetivo da
vida (a vida não sendo mais o objetivo em si, mas o meio do conheci-
mento). Transformando-se em paixão, o conhecimento suscita, assim,
uma verdadeira inversão dos valores: não é mais a vida que dá sentido ao
conhecimento, é o conhecimento que dá sentido à vida.
Mostramos que, para Nietzsche, essa inversão era necessária, que o
conhecimento e a paixão eram destinados a reencontrar-se. Esse reen-
contro suscita uma revisão profunda, anti-idealista e antiplatônica do
velho conceito de filosofia: o filósofo de Aurora e de A gaia ciência é esse
que ama tanto o conhecimento, que o ama com tanto rigor e coragem,
com tanta paixão, que não tem necessidade de crer na felicidade ou na
possibilidade do conhecimento para continuar a procurá-lo. É a pai-
xão que, paradoxalmente, torna o amor realista.

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