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SUMÁRIO

Artigos dos docentes convidados

Por que música e inclusão? ...................................................................................................... 6


Viviane Louro e Lisbeth Soares

Contribuições das neurociências para a aprendizagem ............................................................9


Alex Andrade

Psicomotricidade e aprendizagem musical: caminhos paralelos ............................................13


Viviane Louro

Incluir os “incluídos”: discutindo escolhas do campo da didática das


aulas de música ......................................................................................................................19
Isamara Alves de Carvalho

Inclusão nas escolas de música: discutindo os paradigmas ....................................................30


Lisbeth Soares

A heterogeneidade na produção do Coral Cênico Cidadãos Cantantes .................................37


Júlio Cezas Maluf

Movimento que é dança: um projeto de inclusão ..................................................................45


Soraya Rebouças

O papel do teatro na inclusão social ......................................................................................50


Sérgio Zanck

Programa Educativo: públicos especiais ...............................................................................54


Margarete de Oliveira, Amanda Tojal

Música como forma da vida: uma análise do filme Sonata de Outono................................56


Sidney Molina
4

Artigos dos trabalhos apresentados

Oficina Inverso: teatro, dança e música – a cidadania da pessoa com deficiência


conquistada através da arte ......................................................................................................66
Eder R. da Silva, Luciano F. Grotto, Priscila F. M. Gasparini

O cinema, a vida e suas trilhas sonoras ....................................................................................74


João Lúcio de Moraes

Educação musical e inclusão escolar: uma aproximação teórica .............................................79


Martha Abrantes Gonçalves

O canto coral infantil como potencial instrumento de intervenção social:


projeto Cante Conosco .............................................................................................................85
Mirian Megumi Utsonomiya

Rios do Brasil: a musicalidade da população ribeirinha e suas reverberações


na vida da cidade ......................................................................................................................88
Mirna Domingos

A pedagogia do desejo e a antroposofia como ferramentas de inclusão social


de crianças em situações de risco através da educação musical ..............................................91
Mônica Leoni Mafei
5

A
rtigos dos docentes convidados
6

Por que música e inclusão?

Viviane Louro 1
Lisbeth Soares2
Organizadoras do Simpósio de Educação Musical Especial

Embora há muito ocorra a reflexão sobre a inclusão da pessoa com deficiência nos
diversos segmentos sociais, no âmbito da educação musical esta discussão ainda é recente.
Até pouco tempo atrás, somente a musicoterapia se propunha a refletir sobre o fazer musical
de pessoas com necessidades educacionais especiais – unicamente por um prisma terapêutico
– mas de uns anos para cá, os responsáveis pela educação musical começaram a preocupar-se
com esta temática, iniciando as discussões nesta área.
Apesar da inclusão ser vigente – e urgente – poucos são os educadores musicais
que estão, de fato, preparados para lecionar música a alunos com deficiência. Ainda é escasso
o número de pesquisas sobre esse assunto no campo acadêmico musical; além disso, pouco se
sabe sobre o desenvolvimento de materiais e metodologias específicas ou adaptadas para o
fazer musical artístico-pedagógico dessa população. Devido à necessidade de tal demanda,
não podemos deixar de lado essa discussão no âmbito da educação musical.
H. J. Koellreutter, conceituado educador alemão naturalizado brasileiro, afirma
que a educação musical é um meio de desenvolver todas as faculdades do homem, pois, ela

1
Doutorando em Neurociências pela UNIFESP. Mestre em música pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Bacharel em piano pela Faculdade de Artes Alcântara Machado (FAAM) com estágio no setor de musicoterapia
da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD). Professora de Música na Fundação das Artes de São
Caetano do Sul , sendo também responsável pelo Programa de Apoio Pedagógico e Inclusão nesta mesma
instituição. É organizadora do Simpósio de Educação Musical Especial e do site Música e Inclusão. É autora de
4 livros na área de educação musical inclusiva, consultora pedagógica em inclusão em diversas instituições
artísticas do país e palestrante em todo território nacional sobre esse tema. E-mail: viviane_louro@uol.com.br
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Mestre em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos. Pedagoga pela Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo, com especialização em Psicopedagogia da Educação Especial, realizada na
Universidade Metodista de São Paulo. É professora de Educação Especial em São Bernardo do Campo/SP desde
1998, atuando no Atendimento Educacional Especializado (AEE) na Educação Infantil e no Ensino
Fundamental. Também atua, desde 1993, como professora de Musicalização Infantil na Fundação das Artes de
São Caetano do Sul/SP, sendo professora responsável pelo Programa de Apoio Pedagógico e Inclusão na mesma
instituição. Trabalhou como tutora virtual e como professora do Curso de Licenciatura em Música da UFSCar,
na modalidade EaD. Atualmente é tutora virtual do curso de Licenciatura em Música da Ação Educacional
Claretiana. Autora do Material Didático “Música e Educação Especial” (Ação Educacional Claretiana). É
organizadora do Simpósio de Educação Musical Especial. E-mail: lisbethsoares@gmail.com
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trabalha a concentração, autodisciplina, capacidade analítica, desembaraço, autoconfiança,


criatividade, senso crítico, memória, sensibilidade e valores qualitativos. Apesar da maioria
das pessoas ter conhecimentos deste valor atribuído à música e de ser comum o discurso de
que “a música é para todos”, ainda é possível observar que há muitos preconceitos na área
pedagógica musical, talvez por falta de informações ou de conhecimentos por parte dos
envolvidos. Muitos professores de música acreditam que esta linguagem artística, quando
direcionada para uma pessoa com deficiência, só tem utilidade e função como terapia
ocupacional ou reabilitação, parecendo não acreditar na música como expressão artística,
meio de aprendizagem ou mesmo profissionalização dessas pessoas.
Isso talvez ocorra porque a sociedade, durante muito tempo, teve uma postura
assistencialista e institucionalizada em relação às pessoas com deficiências; ainda hoje, tais
atitudes demasiadamente paternalistas são reproduzidas nos diferentes contextos. Muitos
ainda creem que uma pessoa com deficiência precisa sempre de “cuidados”, precisa sempre
ser “reabilitado”, precisa sempre ser “como as demais pessoas”. Assim sendo, a música acaba
incorporando, dentro desse contexto, uma conotação de musicoterapia e não de educação
musical. Além disso, o sistema musical ainda carrega o peso do “romantismo”, época em que
a música foi colocada como uma arte para “poucos abençoados”, para pessoas que tinham
“dom” e “talento”. Este ideal de músico como sinônimo de “gênio” está presente nos dias
atuais, o que dificulta a inclusão de qualquer pessoa que não obedeça a estes padrões de
“perfeição” musical.
A produção artística de uma pessoa com deficiência, porém, pode ser tão boa
quanto a de um “não deficiente”. Logo, encarar a produção ou intenção artística de uma
pessoa que tenha determinada deficiência como fazendo parte somente de um processo
reabilitacional ou direcionar a educação musical para o mesmo – apenas para sua reabilitação
ou inclusão social – são atitudes que podem podar seu potencial artístico. Infelizmente, isto
ainda acontece no meio musical.
Há, também, o fato de que poucos professores de música têm acesso às
informações pertinentes às pessoas com deficiências durante seu processo de formação
pedagógica musical. Portanto, quando esses professores se veem diante de um aluno de
música que não está de acordo com os padrões físicos, intelectuais ou emocionais
estabelecidos pela sociedade, sua primeira reação é a de não querer dar aulas para este aluno,
ou ficar completamente perdido, sem saber o que fazer, sentindo-se inseguros. Mas, assim
como na educação regular há diversos tipos de adaptações pedagógicas, metodológicas e
mesmo físicas para ajudar o professor no processo de inclusão, no universo musical também
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há muitos recursos que podem ser utilizados e que poderiam ser disponibilizados a todos os
profissionais.
Certamente, o ideal seria que todos os professores de música possuíssem
formação ou pelo menos informações sobre os princípios da inclusão, sobre as adaptações
pedagógicas, metodologias especializadas, recursos materiais e físicos em relação à educação
musical especial, mas não é esta a realidade da maioria dos profissionais, gerando a
necessidade de uma busca independente por tais informações, o que requer disposição, tempo
e investimento financeiro. Infelizmente, nem todos os educadores musicais têm esses
recursos, dificultando assim a inclusão no processo pedagógico musical.
Portanto, para que a educação inclusiva ocorra de forma eficaz no contexto
musical, além de boa vontade é necessário compromisso dos educadores musicais e uma
política educacional eficaz por parte das autoridades, para que as pessoas com deficiências
tenham as mesmas oportunidades em relação à cultura, expressão artística e aprendizagem
musical. De acordo com Claus Bang “os deficientes têm o direito moral, cívico e legal de
receber um nível de educação artística semelhante ao das pessoas não deficientes” (RUUD,
1991).

Referências bibliográficas

ATACK. Sally M. Atividades artísticas para deficientes. Trad. Thaís Helena F. Santos.
Campinas: Papirus, 1995. 196 p. (Coleção Educação Especial).

GAINZA, Violeta Hemsy de. Estudo de psicopedagogia musical. Trad Beatriz A.


Cannabrava. 2. ed. São Paulo: Summus, 1988. 140 p. (Coleção novas buscas em educação).

GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Porto


Alegre: Artes Médicas Sul, 1994. 340 p.

RUUD, Even. (org). Música e saúde. Trad. Vera Bloch Wrobel, Glória Paschoal de Camargo
e Miriam Goldfeder. São Paulo: Summus, 1991. 175 p.

SANTOS, Luís Otávio Gomes do. Arte e reabilitação. Revista Integração, São Paulo, n. 7,
1989.

SILVA, Otto Marques da. A epopeia ignorada – A pessoa deficiente no mundo de ontem e
hoje. São Paulo: CEDAS, 1998. 470 p.

VASH, Carolyn. Enfrentando a deficiência: a manifestação, a psicologia, a reabilitação. São


Paulo: Pioneira, 1998. 283 p.
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Contribuições das neurociências para a aprendizagem

Alex Ferreira de Andrade 3

Resumo: Este artigo tem como objetivo elucidar as relações entre os processamentos da
informação na aprendizagem e suas inter-relações.

Palavras-chaves: neurociência; música; aprendizagem.

As neurociências

O que de fato são neurociências?


Neurociências, de modo esquemático, são divididas em cinco grandes áreas
neurocientíficas:

1) A neurociência molecular, que estuda a funcionalidade das moléculas cerebrais, por


exemplo, uma molécula de fluoxetina que recaptura as moléculas de serotonina
(neurotransmissor) mantendo-se mais tempo na região de sinapse, gerando a sensação de
prazer. A fluoxetina é a droga mais vendida no planeta e é utilizada para depressão.
2) A neurociência celular, que estuda como as células se estruturam e as suas
funcionalidades, como neurônios, glias, entre outras estruturas.
3) A neurociência comportamental, que estuda as estruturas ligadas a comportamentos
emocionais e fenômenos como sono, entre outras características.
4) A neurociência sistêmica, que estuda as regiões específicas que constituem sistemas
funcionais como o visual, motor, auditivo etc.
5) A neurociência cognitiva, também chamada de neuropsicologia, que se destina a
estudar as funções mentais complexas como linguagem, memória e aprendizagem, no qual
vamos focar nosso olhar (LENT, 2005).

3
Professor de flauta transversal e teoria musical em instituições especializadas ao atendimento cultural e
pedagógico de pessoas com múltiplas deficiências. Professor particular de música para crianças autistas.
Participou de diversos cursos na área da deficiência física, mental, autismo, surdez e psicomotricidade em vários
estados brasileiros. Ministra, constantemente, cursos e palestras para professores de música e pessoas ligadas à
área da deficiência. Atualmente, cursa pedagogia com licenciatura em Deficiência Mental pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie. E-mail: alexfda@yahoo.com.br
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Como então fazer a associação entre neurociências e educação? Chedid (2006, p.


132) menciona:

A Neurociência está reconstruindo o todo, através da necessidade de se


reunir saberes e olhares, ela está unindo esse homem, esta criança. Para sala
de aula, para educação, a Neurociência é e será uma grande aliada para
identificar cada ser humano, como único e para descobrirmos a regularidade,
o desenvolvimento, o tempo de cada um.

Por isso, a importância do estudo da neurociência, isto é, ela nos é útil para
conseguirmos fazer uma leitura diferenciada de cada aluno, para que possamos dialogar com
diferentes tipos de pessoas e articular novas práticas, diversificando estratégias, com o
objetivo de colaborar para que nossos alunos tenham maior possibilidade de aprender. —
“Afinal, o que o cérebro faz melhor é aprender, o cérebro se autorrenova a cada estímulo,
experiência ou comportamento” (JENSEN, 2002, p. 26).

Estruturas da aprendizagem e suas particularidades

Segundo Luria, o nosso cérebro possui três unidades funcionais hierarquizadas


para a aprendizagem que são responsáveis por todos os processos mentais como a percepção,
a cognição, linguagens, aprendizagens simbólicas da leitura, da escrita e da matemática.
A primeira unidade fica localizada na medula, tronco cerebral e estruturas
talâmicas, e são responsáveis pela regulagem do sono ou vigília e também os estados mentais.
A segunda unidade fica localizada em ambos os hemisférios nos lobos parietal,
temporal e occipital. Estes recebem, processam, modulam e armazenam as informações que
chegam do mundo exterior
A terceira e última unidade funcional, localizadas também em ambos os
hemisférios, nos lobos frontal e pré-frontal, tem a função de programar, regular e verificar a
atividade mental (FONSECA, 2004).
Vamos focar como funciona, em linhas gerais, o processamento no cérebro.
Processamento é como o cérebro recebe, usa, repassa e expressa a informação. Para melhor
compreensão, dividiremos de forma esquemática os seis tipos de processamentos, a saber:

1. Processamento visual – inclui o cérebro “ver” diferenças entre objetos, lembrar de


detalhes visuais, distinguir partes de um quadro, lembrar de características gerais e
coordenação visuomotora. Quando há uma falha nessa estrutura ocorre dificuldade na
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escrita e visualização de letras, números e notas musicais.


2. Processamento auditivo – é responsável em diferenciar sons e vozes, lembrar
palavras e números específicos, lembrar de sons, separar partes de palavras e diferenças
de timbres. Se ocorrem problemas nesse processamento a criança pode ter dificuldades
em decodificação de palavras; na escrita, ter dificuldade na estruturação de sentenças; e
na comunicação, dificuldade em expressão, na linguagem receptiva e na leitura.
3. Processamento sequencial (memória) – inclui a memória de curto e longo prazo
para detalhes, coordenação motora fina, organização geral, escrita mecânica,
velocidade de leitura, atenção a detalhes e sequência de palavras, pensamentos e ações.
Quando ocorre uma disfunção desse processamento ocorrem: escritas em espelho,
dificuldade em sequenciar letras, palavras; na leitura: dificuldade na fluência,
velocidade, decodificação, atenção e concentração; em matemática: dificuldade de
lembrar fórmulas.
4. Processamento conceptual – que compõe a memória, raciocínio, avaliação
espacial, pensamento inferencial, criatividade, compreensão de leitura, ritmo, música,
arte e conhecimentos gerais. Quando ocorre alteração desse processamento a pessoa
apresenta dificuldade na compreensão de textos, na criatividade, nas generalizações
matemáticas em associação a musical.
5. Processamento da fala – inclui memória, linguagem, leitura, atenção, raciocínio e
velocidade de resposta. São percebidas alterações nesse processamento quanto à
velocidade na leitura, na habilidade de focalizar a letra, de completar séries de
problemas, a velocidade na escrita e dificuldade de concentração.
6. Processamento atencional – inclui habilidade em focalizar a tarefa, detalhes,
controle e coordenação, organização, escrita mecânica e focalizar o material a ser lido.
Na disfunção dessa área há dificuldades na leitura musical, palavras, dentre outras
(CIASCA, 2004).

Com isso, percebemos como nosso cérebro processa informações de forma


integrada e utilizamos vários mecanismos para processar uma informação, como é inferido
que a música e a linguagem possuem desenvolvimentos muito próximos como os mecanismos
de memória e o desenvolvimento cognitivo (MCMULLEN, 2004).
Como também há evidência de uma interligação entre música e matemática que é
dialógica, uma complementaria a outra, auxiliando nas aprendizagens de ambas com apoio
visuoespaciais (ANDRADE, 2004).
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Dentro dessas relações pode-se perceber as ligações entre os mecanismos de


aprendizagem e as neurociências, que trazem uma linha tênue existente entre as diversas áreas
de conhecimento como visto acima em relação à música.
É de extrema importância que os professores tenham um estudo aprofundado das
estruturas da aprendizagem para que possam atribuir a sua prática melhores condições de se
relacionar de forma consciente com os educandos.

Referências bibliográficas

ANDRADE, P. E. Uma abordagem evolucionária e neurocientífica da música.


Neurociências, 2004, n. 1, p. 21-33.

CIASCA, Sylvia Ciasca (Org.). Distúrbios de aprendizagem: proposta de avaliação


interdisciplinar. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

CHEDID, Kátia A. K. Educação e neurociência. Neurociências, 2006, n. 3, p. 132-134.

FONSECA, Vitor da. Psicomotricidade: perspectivas multidisciplinares. Porto Alegre:


Artmed, 2004.

JENSEN, Eric. O cérebro, as bioquímicas e as aprendizagens. Um guia para pais e


educadores. Lisboa: Edições ASA, 2002. p. 29.

LENT, Roberto. Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociências. São


Paulo: Atheneu, 2005.

MCMULLEN E, Safrran JR. Music and languange: a developmental comparison. Music


Perception, 2004, n. 21, p. 289-311.
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Psicomotricidade e aprendizagem musical: caminhos paralelos

Viviane Louro 4

Resumo: O presente artigo tem por objetivo expor a importância do desenvolvimento


psicomotor diante da aprendizagem musical, bem como abordar de que forma déficits
psicomotores podem influenciar negativamente no processo de aprendizagem musical de
alunos com ou sem deficiência, dificultando, assim, a inclusão plena na educação musical.

Palavras-chaves: aprendizagem musical; educação musical; psicomotricidade; inclusão.

A psicomotricidade

Grande parte do desenvolvimento humano ocorre nos primeiros anos de vida,


através da coordenação das ações sensório-motoras, ou seja, através do perceber, se relacionar
e construir uma imagem interna do mundo exterior. O desenvolvimento, principalmente da
inteligência, depende das vivências que a pessoa trava com o mundo externo. Sendo assim, a
relação corpo-movimento-sentidos é de crucial importância para o amadurecimento global do
homem, para que ele possa assumir-se como ser no mundo e assim construir sua estória. Esse
processo de evolução, em princípio, natural a todos, é o que conhecemos por
psicomotricidade, ou seja: relação entre o pensamento e a ação, envolvendo também a
emoção (Nascimento e Machado, 1986). Sem o suporte psicomotor o pensamento não pode
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Doutorando em Neurociências pela UNIFESP. Mestre em música pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Bacharel em piano pela Faculdade de Artes Alcântara Machado (FAAM) com estágio no setor de musicoterapia
da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD). Professora de Música na Fundação das Artes de São
Caetano do Sul , sendo também responsável pelo Programa de Apoio Pedagógico e Inclusão nesta mesma
instituição. É organizadora do Simpósio de Educação Musical Especial e do site Música e Inclusão. É autora de
4 livros na área de educação musical inclusiva, consultora pedagógica em inclusão em diversas instituições
artísticas do país e palestrante em todo território nacional sobre esse tema. E-mail: viviane_louro@uol.com.br
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ter acesso aos símbolos e à abstração, isto é, a psicomotricidade é essencial para a construção
dos conceitos e aquisição da aprendizagem.

De uma forma mais didática podemos colocar:

Psi co motric idade

Psicológico Cognitivo Motor Fases do


(movimento) desenvolvimento

Ou seja, psicomotricidade é a relação entre os aspectos psicológicos-emocionais, a


cognição e a ação motora frente às fases do desenvolvimento do ser humano desde a
fecundação até o fim de sua vida. É a relação entre o QUERER FAZER (psicológico –
vontade); SABER FAZER (cognição – mental) e PODER FAZER (capacidade motora de
realização).

Um bom desenvolvimento humano depende de um bom desenvolvimento


psicomotor, que por sua vez, depende de uma boa maturação neurológica. Quando falamos
em maturação neurológica estamos falando das fases do desenvolvimento das estruturas do
cérebro. Quando falamos de desenvolvimento neurológico falamos de duas leis invariáveis no
homem, a saber:

CEFALO-CAUDAL – da cabeça para os pés.

PROXIMO-DISTAL – do eixo para as extremidades.

Isto é, o ser humano se desenvolve de cima para baixo e do centro para as


extremidades. A primeira coisa que se desenvolve no bebê são os músculos oculomotores,
depois a sustentação da cabeça, seguida da sustentação do tronco e por último das pernas, ou
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seja, de cima para baixo (cefalocaudal). Nenhuma criança anda antes de sustentar a cabeça, ou
senta, antes de desenvolver a visão, a não ser que ela tenha uma deficiência que a impeça de
se desenvolver em determinadas questões. Da mesma forma, a motricidade grossa é
desenvolvida antes da fina, ou seja, do todo para as partes (proximodistal). A criança
inicialmente desenvolve a preensão manual grossa que vai, com o passar dos anos, sendo
refinada e nunca ao contrário.

E o que faz com que haja esse desenvolvimento adequado das funções
neurológicas? Principalmente as vivências, os estímulos dados à pessoa, essencialmente nos
seus primeiros anos de vida. Por isso, as vivências são tão importantes para o processo de
aprendizagem. Integram essas vivências: a criança perceber e tocar no seu corpo; os estímulos
auditivos, visuais, tátil-sinestésicos; estímulos do paladar e olfato; rolar, engatinhar, correr,
pular, brincar; ler, cantar... enfim, praticamente tudo!!!

Dentre os aspectos que envolvem o desenvolvimento psicomotor encontram-se:

• Esquema e imagem corporal: elemento básico e indispensável para a formação da


personalidade. É a maneira de perceber, através das sensações, seu próprio corpo; é o
identificar e saber nomear as diversas partes do corpo. O esquema é uma prática que
evolui com a exploração, imitação e vivência; é a noção tridimensional que temos de nós
mesmos. Esquema corporal se difere de imagem corporal, que é a figuração mental que
temos de nosso corpo, isto é, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós.
• Tonicidade: é o princípio organizador de toda atividade: contração e alongamento dos
músculos, estado de tensão/distensão das vísceras. É a partir do movimento que o
indivíduo descobre, utiliza e controla seu corpo. É através do corpo, ou seja, dos
movimentos e gestos que a pessoa se descobre no mundo, experimenta sensações e
situações, expressa-se, percebe a si e ao mundo. O controle da função tônica é importante
para que o sujeito disponha das possibilidades de evasão, relaxamento, tanto em repouso
como em ação.
• Equilíbração: base primordial de toda coordenação geral, assim como de toda ação
diferenciada dos membros superiores e do centro de gravidade. Combinação perfeita de
ações musculares com o propósito de sustentar o corpo sobre uma base. É dividido em
dois tipos: equilíbrio estático: movimentos não locomotores como ficar em pé, ou nas
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pontas dos pés; equilíbrio dinâmico: movimentos locomotores como andar, marchar e
correr.
• Lateralização: é a dominância lateral da pessoa que é construída por dados
neurológicos (hemisfério cerebral dominante) e hábitos sociais (destro ou canhoto).
• Lateralidade: é o eixo imaginário que divide o corpo em duas partes semelhantes,
mas que não são iguais (consciência de direção – direita/esquerda).
• Orientação espaço-temporal: orientação do mundo exterior referindo-se, primeiro ao
eu, depois a outros objetos ou pessoas em posição estática ou em movimento. A noção
espacial se desenvolve através dos primeiros movimentos que atua no campo espacial
limitado pelos seus deslocamentos, e que, com o tempo e vivência cria-se seu próprio
campo espacial, seu espaço próprio subjetivo. Capacidade de situar-se em função da
sucessão dos acontecimentos: antes, depois, durante; consciência de duração: longos e
curtos; capacidade de diferenciar ritmos regulares e irregulares e noções de tempo: lento,
rápido.

Portanto, uma pessoa que deixa de vivenciar devidamente seu corpo ou possui um
atraso em seu desenvolvimento psicomotor, devido a uma deficiência ou falta de estimulação,
pode apresentar sérios problemas quanto à construção de seu esquema corporal, temporal,
espacial, lateralização, coordenação motora, postura, entre outros. Consequentemente, tais
déficits poderão prejudicar o desenvolvimento da aprendizagem e a aquisição de habilidades.

No que se refere à deficiência, os problemas psicomotores são muito frequentes, o


que pode contribuir para uma dificuldade de aprendizagem. Por exemplo, é essencial para a
construção do esquema corporal, da consciência espacial e temporal que a criança role, se
arraste, engatinhe, ande, corra. Da mesma forma, para que ela possa se guiar pelo espaço é
necessário que haja um estímulo, que pode ser um som que lhe chame a atenção ou a visão de
um objeto que lhe agrade.

Assim sendo, uma criança que, por exemplo, nasceu com deficiência visual total
poderá ter um déficit no que se refere a seu desenvolvimento de marcha, ou mesmo de postura
já que, não possuindo estímulo visual, não sente tanta necessidade de ir em busca do objeto ou
de manter sua cabeça ereta, além do que, o fato de não ver dificulta sua locomoção
livremente, podendo acarretar uma distorção da construção espaço/tempo, da marcha e dos
movimentos de seu corpo.
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Música e psicomotricidade

Mas o que isso tudo que acabamos de abordar tem a ver com a aprendizagem
musical?

Ora, executar uma música seja cantando, tocando ou mesmo compreendê-la de


maneira aprofundada, depende totalmente de fatores psicomotores. Na música, há pulsação,
ritmos diversos, andamentos variados e formas distintas. Se uma pessoa não tem sua
consciência temporal bem estruturada, certamente terá problemas em identificar os itens
acima, pois, se ela não compreende o conceito antes ou depois, como saberá a sequência das
notas? Se não sabe diferenciar o rápido do lento, como compreenderá o andamento de uma
música? Da mesma forma, se não tem consciência de lateralidade ou noção espacial, como
saberá que, por exemplo, no piano as notas à direita ficam agudas e à esquerda graves? Se não
possui estruturação espacial, como conseguirá acertar a plaqueta do xilofone? Igualmente, se
o tônus não é adequado, como poderá executar um instrumento ou controlar a intensidade do
ataque fazendo soar sons fortes e fracos? Assim sendo, para uma aprendizagem musical plena,
é necessário que os problemas básicos em relação à psicomotricidade estejam resolvidos,
sejam os alunos pessoas sem ou com deficiência.

Se pararmos para analisar por um instante as metodologias mais utilizadas em


educação musical infantil, perceberemos que todas as propostas são baseadas em exercícios e
jogos que visam desenvolver aspectos do desenvolvimento da criança, isto é, aspectos
psicomotores. Práticas comuns das atividades pedagógicas musicais para crianças são: andar
pela sala na pulsação da música (tônus, equilíbrio dinâmico, consciência temporoespacial);
exploração de sons ambientais (estimulação auditiva, importantíssima para o desenvolvimento
psicomotor), percussão corporal (esquema corporal, noção espacial, tônus, lateralidade); jogos
de improvisação (estimulação da criatividade, expressão e conceitos); imitações de
movimentos com o corpo (estimulação visual, coordenação motora, esquema corporal); tocar
instrumentos de percussão ou outros (tônus, lateralização, orientação espacial, temporal e
esquema corporal); montar pequenos grupos instrumentais (tônus; equilíbrio estático,
consciência espacial e lateralização); cantar (estimulação do aparelho fonador (tônus),
articulação, respiração, afinação – esquema corporal). Ou seja, musicalização é estimulação
psicomotora a todo instante!!! A musicalização trabalha todos os aspectos psicomotores
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necessários, entre outras coisas, para uma boa aprendizagem futura, seja esta musical ou outra
qualquer.

Breve conclusão

Portanto, professores ou não de música, estejam atentos a seus alunos, pois


algumas dificuldades podem ser facilmente resolvidas com exercícios práticos e por vezes
divertidos, que enfatizam a questão da psicomotricidade. Nunca se esqueçam de que o aluno
traz consigo toda uma história de vida. Ele é a pessoa de hoje, mas é também a de ontem e a
de muitos anos atrás. Portanto, se houver uma falha durante esse percurso, alguns problemas
poderão surgir. Estejam sempre atentos aos fatores do desenvolvimento da psicomotricidade.

Referências bibliográficas

CANONGIA, Marly Bezerra. Psicomotricidade em fonoaudiologia. 2. ed. Rio de Janeiro:


edição do autor, 1986.

FONSECA, Vitor da. Psicomotricidade: filogênese, ontogênese e retrogênese. Porto Alegre:


Artmed, 1998.

GARDNER, H. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Porto Alegre:


Artes Médicas Sul, 1994.

GIL, Roger. Neuropsicologia. 2. ed. São Paulo: Santos, 2002.

LE BOULCH, Jean. O desenvolvimento psicomotor: do nascimento aos 6 anos. Trad. Ana


Guardiola Brizolara. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.

LOUREIRO, Maria Beatriz da Silva. Psicomotricidade. São Paulo: ISPE – GAE, 2003.

LOURO, et al. Educação musical e deficiência: propostas pedagógicas. São Carlos: edição
do autor, 2006.
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Incluir os “incluídos”: discutindo escolhas do campo


da didática nas aulas de música5

Isamara Alves Carvalho6

Universidade Federal de São Carlos

Ilza Zenker Leme Joly7

Universidade Federal de São Carlos

Resumo: O presente relato tem como objetivo principal apresentar e discutir alguns dados
coletados em recente pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de São Carlos, no período de 2002 a 2004. O objetivo geral e norteador
na elaboração da referida pesquisa foi: conhecer e discutir como os professores de
instrumento musical, que lecionam para crianças numa escola de ensino específico, relatam
seu processo de aprendizagem para a docência a partir de dois eixos centrais: ensinar e
avaliar. Partindo da temática sugerida nesta mesa-redonda centralizaremos o desenvolvimento
deste texto nos dados apresentados sobre os dilemas vivenciados pelos professores no início
da docência. Optamos pela pesquisa qualitativa e realizamos entrevistas de caráter
semiestruturado, em que participaram dez professores de instrumento. O diálogo final aponta

5
Texto apresentado no IV Simpósio de Educação Musical Especial – FEFISA/Santo André – SP (02, 03 e 04 de
novembro de 2007)
6
Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (2010). Desde 2009 é professora efetiva do
Departamento de Artes e Comunicação da UFSCar, atuando nos cursos de Licenciatura em Música (presencial) e
Licenciatura em Educação Musical (a distância pela UAB), do qual é coordenadora. Concluiu o Bacharelado em
Música - Flauta Doce em 1996 pela Faculdade de Artes Alcântara Machado. Foi professora de Rítmica na Escola
de Música da Fundação das Artes de São Caetano do Sul de 1993 a 2009, da qual foi coordenadora pedagógica
no ano de 2006. Na área de EaD exerceu atividade como tutora virtual do Curso de Educação Musical da UAB-
UFSCar, formadora no Programa Descubra a Orquestra (OSESP) e no Projeto Guri. Atualmente orienta a
elaboração de trabalhos de conclusão de curso de graduação e iniciação científica nas áreas de educação musical,
ensino de instrumento e uso de recursos tecnológicos musicais.. E-mail: profa.isamara@gmail.com.
7
Professora do curso de Licenciatura em Música com habilitação em Educação Musical na Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar), mestre em Educação Especial e doutora em Educação, professora orientadora no
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar. Coordenadora do programa de extensão “Educação
Musical na UFSCar”, fundadora e coordenadora do programa de formação de orquestras da UFSCar, regente da
Camerata Vivace e da Orquestra Experimental da UFSCar. E-mail: ilzazenker@gmail.com
20

algumas contribuições desta pesquisa no âmbito da formação docente dos instrumentistas e no


âmbito de produção acadêmica que enfoque o conhecimento produzido no diálogo entre os
docentes e os discentes de escolas de música.

Professores de instrumento: a realidade da escola pesquisada

A totalidade do grupo de dez professores entrevistados demarcou o início de sua


formação musical na infância. Podemos observar na Tabela 1 que, para oito professores, a
continuidade da formação musical foi caracterizada pela frequência numa escola técnica de
música. 60% dos professores frequentaram e concluíram o curso de formação musical
técnico8 profissionalizante na mesma escola que lecionam hoje, a Escola Fermata; 20% dos
professores fizeram sua formação técnico-profissionalizante em outra cidade do Estado de
São Paulo; 10% dos professores cursaram, mas não concluíram, e 10% dos professores não
cursaram escola de música de nível técnico-profissionalizante.

TABELA 1: Frequência em curso de Formação Musical Técnico-Profissionalizante.

Frequência em cursos de formação


Valores
Musical nível médio

Cursou a Escola Fermata 60%

Cursou outra unidade escolar 20%

Cursou, mas não concluiu 10%

Não cursou 10%

Nove dos dez professores entrevistados fizeram formação superior em música,


como podemos rever na Tabela 2. Sete professores cursaram bacharelado em instrumento, um

8
Nome fictício da escola de música onde leciona o grupo de professores pesquisados.
21

professor cursou bacharelado em composição e um professor cursou bacharelado em


instrumento, composição e regência.

TABELA 2: Distribuição das categorias de Formação Musical Superior dos participantes.

Formação Superior Valores Professores

P2, P4, P6, P7, P8, P9 e


Bacharelado em Instrumento 70%
P109

Bacharelado em Composição 10% P1

Bacharelado em Instrumento,
10% P5
Composição e Regência

Não cursou Ensino Superior 10% P3

As falas dos professores parecem indicar que a aprendizagem para o exercício


docente em música foi construída ao longo da carreira, partindo, entretanto, de referências
práticas destacadas de sua história pessoal-escolar. O estímulo profissional central para a
quase totalidade dos professores entrevistados foi projetado na imagem da carreira de
intérprete instrumentista. A reflexão sobre o mercado de trabalho ocorreu para muitos na
saída da faculdade e a possibilidade da docência como uma atividade paralela e complementar
pode ser verificada em suas falas, apresentadas a seguir.

“Eu queria tocar violão. Eu não tinha muito essa ideia: O que eu vou fazer da
minha vida? Como eu vou ganhar dinheiro? Nunca pensei nisso assim, né.
Eu queria tocar. Queria tocar e ter tempo para estudar (P4)”.

“Sem pensar muito no mercado de trabalho. Eu não pensei muito. Aí eu fiz a


faculdade, aí depois apareceram as oportunidades de dar aula. (...) Eu sabia
que não iria dar para viver de tocar. Eu até gostaria (...) Eu via que não ia
dar. Então, eu sabia que eu ia ter que dar aula (...), mas foi uma coisa que

9
P equivale a professor e o número ao lado significa a ordenação das entrevistas. Assim, P1 foi o
primeiro entrevistado.
22

nunca me preocupou assim, se eu ia ter um emprego ou não (P7)”.

Os professores recordaram episódios de sua trajetória escolar com detalhamento


do contexto espaço-temporal e perfil de seus professores de instrumento. É possível constatar,
a partir das falas, uma grande admiração pelos seus professores, considerados como modelos
para seu início na docência.

“Mestra PM, ela não foi a minha primeira professora de violino, mas foi a
pessoa mais importante da minha vida, durante muitos anos e... sabe
aquela... porto seguro?!” (P5).

Recordamos que do conjunto de professores pesquisados, 60% cursaram a Escola


Fermata. Dessa forma, podemos verificar também uma admiração focalizada pelo grupo de
professores e/ou conjunto de situações educacionais proporcionadas em seu período discente
na referida escola.

“Mexeu comigo assim, a forma como ele tratava a gente, a forma como ele
orientava, o carinho que ele tinha pela questão pedagógica, de como fazer a
gente entender e de como ele tirava as coisas da gente” (P4).

“Quando eu entrei na Escola Fermata, mudou completamente minha visão


em relação ao ensino. Era um grande espelho pra mim os professores da
Escola Fermata. Como eles explicavam as coisas. Eu nunca tinha estudado
música daquele jeito. Como era gostoso aprender daquele jeito, né” (P8).

A própria experiência é o segundo fator relacionado à aprendizagem para a


docência que podemos observar nas falas dos professores, e aqui sintetizar na expressão
compartilhada por P4 e P8: “aprendi a dar aula dando aula”. Juntando-se à própria
experiência, verificamos algumas menções à experiência de seus colegas, professores na
mesma escola ou músicos de orquestra que são professores em outros contextos.
23

Os modelos de seus professores de instrumento e/ou música, e tanto a experiência


própria como a de seus pares são as fontes de aprendizagem para a docência, observadas nas
falas dos professores.

Neste sentido, Tardif (2002) traz a formação escolar anterior e as condições reais
de trabalho como uma das fontes de desenvolvimento da docência, sendo a primeira tão forte
que pouco se desestabiliza com a formação docente acadêmica. Em relação aos saberes
proporcionados pela experiência em sala de aula, endossamos a opinião do grupo de
Mizukami (1999) e Pimenta (2002) de que deve haver discussão sobre a qualidade dos
saberes que a prática ofereceu no contexto de cada escola e na história escolar e pessoal de
cada professor. “Não nos acomodarmos com o que julgamos saber” (LACORTE, 2003, p.
78).

A experiência dos pares parece ser a única maneira de desestabilizar os saberes


adquiridos na formação e na experiência inicial. “Trocamos muitas figurinhas” (P7). Lacorte
(2003) valoriza essa troca entre os colegas, mas alerta para a necessária predisposição à
pesquisa e à transformação da prática, meditando, experimentando, questionando e criando (p.
79).

Considerações sobre uma concepção de educação para todos

A vida escolar se dá na interação entre sujeitos em movimento social, cognitivo,


econômico e político. Essa relação é dinâmica e poderá ser modificada para o favorecimento
ou desfavorecimento de um dos polos. Desta maneira, nossos saberes, valores e crenças sobre
educação, escola e sociedade constituirão a cena para todo o processo educacional (ensino,
aprendizagem e avaliação).

A obra de Paulo Freire, apesar de ter na educação de adultos seu eixo condutor,
apresenta-nos uma série de conceitos que poderão ser transportados para diferentes contextos
educacionais, possibilitando discussões, avaliações e revisões de nossas escolhas. Educação
para todos como direito de sujeito historicamente contextualizado. Educação para todos,
entendendo-se com “todos” diversidade de raça, de gênero, de renda, religião, saúde,
aprendizagem etc. Educação para todos, em que a diversidade não é obstáculo ou justificativa
24

para o não aprender e o tão popular fracasso escolar, e na qual o espaço escolar não é o único
privilegiado para situações de aprendizagem.

Educação para todos, na qual a situação não é, apenas está sendo, devendo, assim,
ser transformada para a promoção de todos. —É triste, mas, que fazer? A realidade é mesmo
esta. A realidade, porém, não é inexoravelmente esta. Está sendo esta como poderia ser outra
e é para que seja outra que precisamos, os progressistas, lutar” (FREIRE, 1999, p. 83).

Luckesi (1998) fala de outro conceito que consideramos pertinente para a


continuidade deste trabalho e posterior contraponto com os dados coletados. Amorosidade
como qualidade do ato de acolher a situação na sua verdade (como ela é). Para ele, o ato
amoroso permite o acolhimento, a inclusão do observado, da informação coletada, percebida e
só posteriormente qualificada e encaminhada para uma mudança. Incluir amorosamente um
aluno com dificuldades não significa, como declara, muitas vezes, o senso comum, colocá-lo
no colo e negar seus limites, o que não foi aprendido.

Sobre amorosidade, Freire (1998) complementa a necessidade de um “amor


armado”, de um amor que luta, que denuncia, que ao mesmo tempo acolhe e age com garra
para intervir no dia a dia de sua prática, em favor de si, de seus colegas, alunos, pais e da
grande sociedade.

Um amor armado de Paro (2001), Hoffman (2000, 2002a, 2002b e 2003), Luckesi
(1998 e 2003), Rios (2003), Vasconcellos (1998) e Moreto (2003 e 2004)10, que não aceitam
mais que a escola e a sociedade responsabilizem o educando por sua não aprendizagem.
Hoffman (2003) diz que muito tempo é perdido discutindo-se instrumento de coleta de dados
para avaliação e não concentramos energia e tempo suficientes para uma discussão sobre
metodologias de ensino, nem para uma melhor mediação entre educador e educando.

“Se fazemos da avaliação um exercício contínuo, não há razão para o


fracasso, pois sempre chegaremos a tempo para agir e intervir
inteligentemente no momento oportuno, quando o sujeito necessita de nossa

10
Os autores foram agrupados por compartilharem uma indignação contra o abuso das práticas avaliativas
autoritárias, excessivamente classificatórias e excludentes.
25

orientação e de nossa ajuda para evitar que qualquer falha detectada torne-se
definitiva” (MÉNDEZ, 2002, p. 17).

Alguns dilemas destacados pelos entrevistados

O tema “aprendizagem da linguagem musical” na Educação Musical Infantil foi


citado por cinco professores como uma questão bastante problemática e em relação à qual há
diferentes expectativas. Algumas questões foram levantadas: Pode e deve a aula de
instrumento auxiliar também na sistematização da linguagem musical? Podemos iniciar o
ensino de instrumento sem ter a leitura de partitura como pré-requisito? Por quanto tempo
conseguiremos encaminhar um curso de instrumento com crianças sem abordar aspectos da
linguagem musical? Os professores mostraram que este tema foi bastante conflitante no início
de sua prática profissional e hoje ainda demanda pesquisas e discussões.

P1 e P2 citam os métodos11 utilizados como a origem do dilema, pois esses têm


como pré-requisito o entendimento de alguns conceitos da linguagem musical, por exemplo,
pentagrama, clave do instrumento específico e proporção de duração, pulso, dobro e metade,
pelo menos.

P5 não recorda a presença dessa dificuldade em seus primeiros anos, porém, faz
um desabafo que denuncia quão desencontrados caminham ensino prático-instrumental e
ensino da linguagem musical. Em sua fala, constatamos P5 muito frustrado com os limites de
compreensão da linguagem musical apresentados por seus alunos nas aulas práticas. P5 tem
algumas expectativas a que os professores do núcleo de formação musical12 (iniciação
musical e níveis iniciais do curso livre), responsáveis direto pelo ensino da linguagem, não
correspondem.

11
Livros com exercícios técnicos e repertório de músicas específicas de cada instrumento.
12
Curso dividido em três módulos grandes: Iniciação musical (5 anos de duração / público: infantil), Curso livre
(6 semestres de duração / público: adolescentes e adultos), Profissionalizante Nível Médio (4 semestres de
duração / público: adolescentes e adultos)
26

“Eu vejo aluno que tem dificuldade em alguma coisa e o professor em


questão não ajuda aquele aluno a resolver.(...) aluno que faz iniciação
musical há 5 semestres e não sabe a diferença de linha e espaço (...)
Problema de não saber a diferença entre mínima e semínima. (...) Olha! Eu
tô muito decepcionado. (...)

Agora se o cara tem capacidade de tocar “Atirei o pau no gato” num violino,
afinado, não é possível que ele não consiga escrever quaternário” (P5)!

A área de educação musical nos mostra diferentes produções que refletem esse
embate entre prática instrumental e sistematização da linguagem. Segundo Fonterrada (2001)
os trabalhos desenvolvidos e sistematizados por educadores musicais da primeira metade do
século XX, tais como C. Orff (1895-1982), E. Willems (1890-1978), J. Dalcroze (1865-1950)
e Z. Kodály (1882-1967), são unânimes na orientação de que o professor deve criar situações
favoráveis à experimentação, manipulação e criação da música em seus diferentes aspectos:
audição, prática vocal, prática instrumental, improvisação e consciência corporal. A
sistematização da música como linguagem é entendida como etapa posterior, na obra desses
educadores.

Borges (1997) demonstrou as etapas contempladas em sua pesquisa com crianças


na faixa etária entre oito e nove anos, estudantes de flauta doce na EMIA (Escola Municipal
de Iniciação Artística) na cidade de São Paulo, entre os anos de 1984 e 1986. A autora
orientou-se pelas propostas pedagógicas de Edgar Willems e dividiu seu trabalho prático nas
seguintes etapas:

1. Preparação do mundo sonoro;


2. Desenvolvimento sensorial auditivo;
3. Introdução à leitura.

Borges (1997) explica sua escolha da seguinte maneira:

A introdução à leitura e escrita precisa ser feita com cuidado pois é a ponte
que possibilita aos alunos a passagem do “concreto para o abstrato” o que
permite afirmar que esta etapa só deverá acontecer na vida musical depois de
vencidas etapas anteriores (BORGES, 1997, p. 66).
27

Neste sentido, Gordon (2000) traz a ideia de que a audição (audição interior e
significativa) deve ser anterior à sistematização da linguagem e à destreza técnica
instrumental. Inicialmente, o estudante será estimulado a ouvir interiormente e a cantar
padrões tonais e rítmicos familiares. Só posteriormente fará a transposição para um
instrumento externo ao seu corpo.

Independente de por quanto tempo o ensino de leitura é adiado, quando os


alunos são primeiro ensinados a audiar (não só a imitar), eles sentem
invariavelmente o desejo de aprender a ler e a escrever a notação e fá-lo-ão
com mais sucesso (GORDON, 2000, p. 365).

Gordon (2000) questiona sobre o momento ideal de passar da fase de audiação


para a fase de associação simbólica. Ao olharmos para o aluno, a resposta será dada segundo
suas condições sociais, cognitivas, psicomotoras (SANTIAGO, 1994) ou de maturidade de
audiação (GORDON, 2000), por exemplo. Esses dados serão claros na mesma proporção que
refletirmos sobre as funções e objetivos de uma educação musical instrumental com crianças.
A necessidade da leitura deve ser clamada pela prática (GORDON, 2000 e TOURINHO,
2003), facilitando, assim, sua compreensão.

Não há um método único de sucesso garantido para todos. Assim, a adoção dos
diferentes métodos, justificados por P1 e P2 como sendo o motivo de uma pressão para a
urgente notação, parece demonstrar uma submissão das escolhas do professor de instrumento
em virtude de um método (conjunto de estudos técnicos ou repertório). O tal método ou livro
foi elaborado a partir de um referencial de criança-aluno, sociedade, época, que não
necessariamente condiz com o nosso e o de nossos alunos. Esta autonomia dada aos métodos
pode provocar um desconforto, pois os alunos reais não correspondem, muitas vezes, à
disponibilidade temporal, corporal, de interesse musical e técnico prevista por tais livros.
28

Referências bibliográficas

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instrumento musical. 177 f. Dissertação (Mestrado em Música). Instituto de Artes,
Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 1997.

FONTERRADA, Marisa T. O. De tramas e fios: um ensaio sobre música e educação. 2001.


459f. Tese (Livre-docência em Música) – Instituto de Artes da Universidade Estadual
Paulista, São Paulo, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 165.

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______. Avaliação, mito e desafio – Uma perspectiva construtivista. 31. ed. Porto Alegre:
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sobre Avaliação na Educação, nº 1, 2003, Curitiba. Não publicado.

______. Avaliar para promover – As setas do caminho. 2. ed. Porto Alegre: Mediação,
2002a. p. 217.

LACORTE, Marisa Rosana. A música como portadora de valores humanos essenciais. 213
f. Dissertação (Mestrado em Música). – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista,
São Paulo, 2003.

LUCKESI, Cipriano C. A base ética da avaliação da aprendizagem na escola. Congresso


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MIZUKAMI, Maria da Graça M. Os parâmetros curriculares nacionais: dos professores que


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Celestino Alves. Formação do Educador e Avaliação Educacional, v. 4. São Paulo: Unesp,
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29

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HENTSCHKE, Liane e SOUZA, Jusamara (Org.). Avaliação em música: reflexões e
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VASCONCELLOS, Celso dos S. Avaliação da aprendizagem: práticas de mudança por uma


práxis transformadora. 2. ed. São Paulo: Libertad, 1998. p. 125.
30

Inclusão nas escolas de música: discutindo os paradigmas

Lisbeth Soares 13

Resumo: O presente artigo propõe a discussão sobre as demandas atuais do ensino de música,
enfatizando a importância dos saberes musicais e dos saberes pedagógicos na atuação do
educador. Discute, também, a necessidade de rever os paradigmas, principalmente
considerando os princípios de educação para todos, apresentando algumas das práticas
inclusivas desenvolvidas em uma escola de música.

Palavras-chave: educação musical; educação especial; inclusão.

Educação musical: demandas atuais

O educador musical, nos dias de hoje, não deve mais ser aquele que apenas
transmite técnicas relativas aos instrumentos ou conceitos referentes aos elementos teóricos da
música; sua atuação deve estar pautada na reflexão constante sobre suas práticas e sobre os
desempenhos dos alunos, nos diferentes níveis. Várias autoras (DEL BEN, 2003,
BELLOCHIO, 2003; CARVALHO, 2004, SOARES, 2006) destacam que, para ensinar
música, saberes musicais e saberes pedagógicos são fundamentais, pois já não é mais possível
acreditar que apenas saber tocar um instrumento seja suficiente.
O diálogo com outras áreas de conhecimento, tais como psicologia, sociologia,
antropologia e filosofia também se faz necessário, visto que poderá fornecer subsídios “para a

13
Mestre em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos. Pedagoga pela Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, com especialização em Psicopedagogia da Educação Especial,
realizada na Universidade Metodista de São Paulo. É professora de Educação Especial em São Bernardo do
Campo/SP desde 1998, atuando no Atendimento Educacional Especializado (AEE) na Educação Infantil e no
Ensino Fundamental. Também atua, desde 1993, como professora de Musicalização Infantil na Fundação das
Artes de São Caetano do Sul/SP, sendo professora responsável pelo Programa de Apoio Pedagógico e Inclusão
na mesma instituição. Trabalhou como tutora virtual e como professora do Curso de Licenciatura em Música da
UFSCar, na modalidade EaD. Atualmente é tutora virtual do curso de Licenciatura em Música da Ação
Educacional Claretiana. É organizadora do Simpósio de Educação Musical Especial. E-mail:
lisbethsoares@gmail.com
31

compreensão do significado da música para o homem e dos papéis que ela pode desempenhar
na atualidade”. (FONTERRADA, 2007, p. 31). Para o educador musical, tais referências
podem colaborar para o entendimento da música como linguagem construída cultural e
socialmente, procurando quebrar com as dicotomias a muito estabelecidas, quais sejam:
música popular/música erudita; música de ontem/música de hoje; música de jovens/música de
velhos; música fácil/música difícil (BEINEKE, 2001; FREGA, 2007), já que estas parecem
indicar que há uma escala de valores, havendo músicas mais importantes do que outras.
Também é necessário que o educador musical reflita sobre o contato que as pessoas têm com
a música, pois este não está restrito às escolas especializadas, posto que existem diferentes
espaços – escolas, associações de bairro, ONGs, igrejas etc. – nos quais práticas musicais são
realizadas.
Segundo Fonterrada (2007, p. 30), “o valor atribuído à educação musical, em cada
época, é estreitamente dependente do valor conferido à música” e os educadores musicais
devem estar conscientes das demandas de seu tempo e das características das crianças, jovens
e adultos que estão envolvidos no processo de aprendizagem musical. É importante refletir,
também, que esse processo acontece de formas distintas, de acordo com as particularidades de
cada sujeito envolvido, o que implica em considerar que não há uma única maneira de
aprender e de ensinar.
Para Batres (2006), o futuro educador musical deve ser um “desconstrutor de
Paradigmas”, ou seja, deve ser um profissional que provoque mudanças sem deixar de
respeitar os saberes tradicionais e os seus próprios valores culturais, atuando de forma a
facilitar o acesso de todos ao conhecimento musical. (SOARES, 2006).

Os princípios da inclusão e a educação musical

O movimento da inclusão começou a tomar força no início da década de 1990,


com o intuito de valorizar a diversidade, sugerindo mudanças nas condutas dos profissionais,
nas instalações, nos mobiliários e nos currículos, permitindo o acesso de todos à escola e aos
diversos serviços oferecidos pela sociedade. Atualmente, as discussões sobre as práticas
inclusivas estão presentes nos diferentes níveis da Educação, não sendo exclusividade da
Educação Especial. Conforme Mendes (2005), no entanto, muito ainda deve ser feito, no
âmbito das escolas, das políticas públicas e das pesquisas científicas, para que a inclusão não
fique restrita a uma legislação que não é aplicada e para que realmente todos tenham acesso a
uma escola de qualidade.
32

Segundo Boltrino (2006, p. 77), a atenção à diversidade implica:

– la existencia de diferentes historias de vida em diferentes contextos; – el


reconocimiento de diferentes motivaciones, intereses, actitudes y
expectativas frente al objeto de conocimiento;

– la toma de consciencia de la existência de diferentes puntos de partida em


la contrucción de los aprendizajes debido a actitudes, conocimientos e ideas
previas de cada alumno;

– la admisión de la presencia de diferentes estilos, competencias curriculares


y contextos de aprendizaje dentro de una misma aula.

Tais elementos sugerem o respeito às individualidades e às particularidades, além


de uma reflexão sobre os paradigmas até então estabelecidos, principalmente àqueles
relacionados à padronização do ensino. No tocante ao ensino de música, são vários os
estudiosos que propuseram metodologias e modelos de atuação que valorizam as diferenças e
que proporcionam, tanto para os educadores quanto para os alunos, diversas possibilidades de
criação, de execução e de discussão, reforçando o aprendizado como um processo 14. No
entanto, segundo Beineke (2001, p. 57), a ideia de que intérpretes e compositores “pertencem
a uma classe especial, a classe daqueles que possuem o dom para a música”, ainda persiste, o
que é contraditório aos ideais de educação (e de educação musical) para todos.
Em escolas de música, o questionamento sobre hipotéticos limites que
determinados problemas ou deficiências possam trazer para o aprendizado de música e,
especialmente, para o aprendizado de um instrumento, surge com frequência. Segundo Louro
(2003), muitas pessoas não são aceitas nas escolas de música por não cumprirem
determinados pré-requisitos. Para Loureiro (2003), há o preconceito de que somente aqueles
com “dom inato” podem estudar música; no entanto, segundo ela, todos podem desenvolver-
se musicalmente, o que implica na necessidade de tornar a atividade musical realmente
acessível para todos. Brito (2003) ressalta que qualquer pessoa tem o direito de ter contato
com a música, sem o estabelecimento de pré-requisitos, pois o processo de ensino é o mais
importante.
Oliver Sacks (SACKS, 2007, p. 10), importante neurologista inglês radicado nos
Estados Unidos, destaca que:

14
Entre estes educadores convém destacar: Dalcroze, Orff, Koellreutter e Swanwick .
33

todos nós (com pouquíssimas exceções) somos capazes de perceber música,


tons, timbres, intervalos entre notas, contornos melódicos, harmonia e,
talvez, no nível mais fundamental, ritmo. Integramos isso tudo e
“construímos” a música na mente, usando muitas partes do cérebro.

Práticas inclusivas na escola de música

Na Escola de Música da Fundação das Artes de São Caetano do Sul (São Paulo),
foram iniciadas, em 2007, algumas atividades visando fornecer informações importantes e
orientações pedagógicas aos professores, bem como dar apoio aos alunos e seus familiares,
buscando o melhor desempenho destes no curso escolhido. Estas práticas fazem parte de um
projeto de apoio à inclusão, o qual visa colaborar com professores e alunos, em relação às
necessidades de adaptações de materiais, de procedimentos, de planejamentos e de currículos
no que diz respeito ao atendimento à diversidade. As ações realizadas até o presente momento
são as seguintes:

• Observações de aulas: foram realizadas algumas observações de aulas, com o


objetivo de acompanhar determinados alunos em relação à realização das atividades
propostas pelos professores e ao seu entrosamento com o grupo. Também foram feitas
observações para levantamento de dados que pudessem colaborar com o trabalho dos
professores. 
• Solicitação de relatórios clínicos: esta ação teve como propósito obter dados sobre os
alunos e iniciar o contato com outros profissionais. 
• Reuniões com os profissionais da área clínica: o objetivo foi obter informações
sobre os aspectos clínicos, além de fornecer elementos a respeito do desempenho dos
alunos na escola de música.
• Reuniões com os professores: discutir sobre os alunos em questão, procurando
encontrar alternativas e adaptações em relação a materiais, procedimentos e conteúdos. 
• Estabelecimento de um protocolo para declaração de saúde: após reunião com os
coordenadores da escola, um protocolo foi elaborado e entregue aos alunos, quando as
matrículas para o segundo semestre foram realizadas. 
• Reuniões com os pais dos alunos: estas reuniões foram realizadas com o objetivo de
34

coletar dados a respeito do histórico familiar, escolar e dos acompanhamentos clínicos. 


• Apoio aos alunos: acompanhamento nas aulas coletivas; oferecimento de aulas extras
e de reuniões de orientação. 
• Elaboração de materiais de apoio e/ou adaptados: elaboração de fichas contendo
figuras rítmicas ou notas musicais na pauta, ampliação de textos e partituras, adaptação de
modelos de relatórios, elaboração de provas diferenciadas, são alguns dos exemplos.

Tais ações estão baseadas nos princípios da educação inclusiva, segundo a qual a
escola deve preparar-se para atender a todas as necessidades decorrentes das diferenças entre
as pessoas, oferecendo diferentes oportunidades para o crescimento de todos. Ainda são ações
pequenas, mas que, aos poucos, vêm demonstrando a importância de um trabalho cooperativo
entre os diferentes profissionais, alunos e seus familiares, conforme ressalta Mendes (sd., p.5):

O poder das equipes colaborativas encontra-se na sua capacidade para fundir


habilidades únicas de educadores talentosos, para promover sentimentos de
interdependência positiva, desenvolver habilidades criativas de resolução de
problemas, promover apoio mútuo e compartilhar responsabilidades.

Algumas conclusões

De acordo com Soares (2006, p. 102):

a sociedade em geral parece não acreditar que pessoas com necessidades


educacionais especiais sejam capazes de aprender e de desempenhar funções
distintas, sendo papel da educação contribuir para que isto seja
desmistificado.

Particularmente em relação ao ensino de música, estas crenças parecem estar mais


presentes e mais arraigadas, principalmente por todo o histórico desta área, que ainda
privilegia a performance e algumas habilidades específicas. Wills e Peter (2000) ressaltam
que o educador musical deve buscar diferentes meios para favorecer o trabalho individual e o
trabalho em grupo, proporcionando situações em que cada um possa mostrar suas habilidades
e contribuir para o trabalho coletivo. Além disso, é função do educador musical planejar
atividades que possam ser realizadas de maneiras distintas, com materiais diversificados,
ainda que o objetivo seja trabalhar com o mesmo conteúdo.
É importante salientar, ainda, que o professor deve considerar que todos os alunos
são seres pensantes, com desejos e possibilidades de criação e que as atividades musicais
35

devem proporcionar oportunidades de demonstrar como estes veem o mundo e como se veem
no mundo, o que é preconizado, também pelas diferentes metodologias da educação musical.
Cabe ao professor fazer as adaptações necessárias, visando valorizar, sempre, as
potencialidades de todos. As escolas de música não podem ficar alheias a estas demandas,
considerando que a inclusão é um direito e uma conquista de todos.

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Madrid/Espanha: Ediciones Akal S.A., 2000.
37

A heterogeneidade na produção do Coral Cênico Cidadãos Cantantes

Júlio Cezar Giudice Maluf 15

Resumo: O Coral Cênico Cidadãos Cantantes atua como política pública (Secretaria de Saúde
/Cultura) de inclusão social pela convivência de diferentes atores sociais, visando a
constituição de grupo heterogêneo que se agrega em torno de uma tarefa comum, utilizando,
para isso, de espaços públicos, como o Centro Cultural São Paulo e a Galeria Olido no
desenvolvimento de suas atividades. Pretende-se nesta comunicação discutir a respeito da
interface possível entre canto coral, arte e saúde na contemporaneidade e o trabalho com
grupo heterogêneo, sob o ponto de vista da produção artística e a construção de sentidos no
Coral Cênico Cidadãos Cantantes. Para alimentar essa discussão lançou-se mão das ideias de
Samuel Kerr, Ana Mae Barbosa, Elizabeth M. F. Lima, Peter P. Pelbart e Foucault,
principalmente pela conformação do conceito de biopolítica, pelo qual revela uma sociedade
em que o controle, a categorização e a vigilância estão cada vez mais presentes. Este estudo
recupera o sentido da arte como um atributo humano capaz de transformar atitudes, lugares do
saber e lugares de existência.

Palavras-chaves: Coral; Coral Cênico; Inclusão; Doença Mental.

Introdução

O Coral Cênico Cidadãos Cantantes é vinculado à ONG “SOS Saúde Mental,


Ecologia e Cultura” e ao CECCO – Centro de Convivência e Cooperativa Parque Ibirapuera,
Coordenadoria de Saúde da Subprefeitura de Vila Mariana, São Paulo. Desde seu nascimento,
em 1992, realizou seus ensaios no Centro Cultural São Paulo (CCSP); sua equipe, de caráter

15
Bacharel em Composição e Regência pelo Instituto de Artes da Unesp (1990). Mestre em Música pela
Universidade Estadual Paulista – Instituto de Artes (2005). Atualmente é professor de música da Escola
Municipal de Iniciação Artística, regente do FALAMUNDO Coral com Imigrantes, na Galeria Olido, diretor
musical do Coral Cênico Cidadãos Cantantes e regente do Grupo Vocal Independente Canto Porque Gosto. Tem
experiência na área de Artes, com ênfase em Regência, atuando principalmente nos seguintes temas: coral e
cidadania, canto coral, coral, artes cênicas arranjo coral. E-mail: juliomaluf@terra.com.br
38

interdisciplinar, é composta por funcionários do CECCO e profissionais voluntários do campo


das artes, tornando-se um dos aspectos fundamentais para o manejo do grupo. Atualmente,
contamos com duas psicólogas, um músico, um orientador cênico e uma preparadora corporal,
além de estagiários dos campos da Psicologia e da Terapia Ocupacional. É importante
ressaltar que todos, técnicos da área da saúde, artistas, ou estagiários se colocam como
cantores do grupo.
A partir de 2006 os ensaios passaram a acontecer nas dependências da Galeria
Olido, todas as segundas-feiras pela manhã.
O grupo segue os princípios do CECCO, ao desenvolver políticas públicas de
inclusão social pela convivência entre diferentes atores sociais, agregando pessoas em
vulnerabilidade social ou de saúde com o público frequentador dos espaços públicos de lazer
e cultura da cidade, buscando, assim, a constituição de um grupo heterogêneo com propósito
comum. Entre esses frequentadores encontram-se os mais diversos perfis: estudantes,
aposentados, donas de casa, empregadas domésticas, desempregados, pessoas interessadas no
aperfeiçoamento artístico, ou provindas de campos de atuação específicos, por exemplo, das
áreas de psicologia e artes.
Ao estudar o grupo, algumas questões foram apontadas: a heterogeneidade do
grupo se restringe ao aspecto saúde/doença? A produção do Coral é potencializada pela
diversidade de perfis da qual se compõe? Estar num espaço público de cultura facilita com
que o trabalho se desloque do campo da saúde e transite pelo da cultura? A dificuldade em
lidar com o outro (o diferente) em nossa sociedade desconsidera singularidades e potência
criativa? E, por fim, quanto mais artístico o trabalho, maior será o alcance terapêutico para os
indivíduos nele envolvidos.
A estas questões seguiram-se outras: que condutas o regente deve ter à frente de
um grupo como este? É diferente? Qual é a ressonância desse processo para as pessoas
envolvidas nele? Quais são os sentidos desvelados a partir da produção artística do grupo?

Trato com as diferenças dentro da produção musical

No decorrer da pesquisa foram recolhidas e analisadas algumas entrevistas com


integrantes do grupo. Em alguns relatos, o Coral aparece como uma fuga de um estado de
39

depressão, como “tábua de salvação”; em outro, esta experiência artística é vivida quase como
um milagre, possibilitando novos sentidos de vida, especialmente quando se trata da
realização de uma criação própria, carregada de vivência e subjetividade. Nas palavras de um
dos participantes: “compor uma música dentro da minha história”. Essa experiência, na visão
do cantor, deu lugar a uma ressurreição, um renascimento, dando vida a algo que ele já
julgava morto.
Algumas produções artísticas individuais demonstram a necessidade de expressão
que sintetiza outras necessidades, como a de falarem e serem ouvidas, de serem olhadas em
suas individualidades, em suas potencialidades, e não naquilo que lhes falta.
A participação de todos na construção do repertório a partir de suas vivências
pessoais e pesquisas em grupo, se aproxima muito da maneira do maestro Samuel Kerr pensar
a atividade coral. Kerr diz que a pesquisa, dentro de um projeto sonoro Coral, “(...) é irmã da
invenção e filha da canção. É a busca de um repertório sem ponto final. Tem muitos
caminhos, nem sempre musicais...” (KERR, S.; BREIM, R., 1989, p. 54). Em outro texto seu,
o autor reitera a importância da pesquisa e do resgate da memória do cantor e da comunidade,
como busca de elementos para se “oxigenar” a prática coral, numa perspectiva que busca
valorizar mais o processo (a pesquisa em si) que o resultado final, chamando a esse
procedimento de “partituras de utopia” (KERR, 2000, p. 12).
A ideia de o trabalho no Coral Cênico se dar pela produção artística e não apenas
pela convivência, direta ou indiretamente, perpassa praticamente todos os depoimentos dos
entrevistados, pois todos defendem o mesmo ponto de vista, que valoriza o indivíduo que faz
arte, e participa de um grupo que congrega os mesmos objetivos, no que diz respeito à
inclusão e ao respeito às diferenças. É interessante notar que o fazer artístico neste grupo
inclui lidar com o outro, e reconhecer o outro em suas diferenças e similaridades, pelo
respeito aos ritmos individuais, às escutas diversas e às diferentes vozes.
Num grupo com as características apontadas, é necessário desconstruir alguns
conceitos prévios acerca do trabalho Coral, que tem a homogeneidade sonora como meta, ou
mesmo alguns conceitos acerca da afinação e de se ter “boa voz para cantar”. O Grupo se
propõe a trabalhar com as diferenças e não apesar delas. Julga-se que este conceito seja atual
e necessário para a construção de uma sociedade mais tolerante do que aquela em que
vivemos. Como pontua Lima (2003b, p. 70): é no desejo das diferenças que a arte busca seu
alimento, não pelo interesse no exótico ou no diferente em sua subjetividade, mas sim nas
relações novas que podem ser criadas a partir dessa abertura ao outro.
Acredita-se que é na convivência com as diferenças que se dá a grande
40

singularidade desse projeto, e que essa condição influi tanto no campo da criação, quanto no
campo social, tendo alcance terapêutico não como fim, mas como consequência do
envolvimento dos participantes com a produção artística do grupo.

Construção do repertório

O processo de construção do repertório contempla a discussão em conjunto,


trazendo à tona assuntos de interesse do grupo num dado momento. Em geral, combina
composições ou poesias criadas pelos próprios integrantes do grupo, com músicas
“consagradas” no contexto da cultura brasileira, provindas do cancioneiro popular, do folclore
ou da chamada MPB.
Busca-se, também, na pesquisa de repertório, valorizar as potencialidades
individuais, como a de fazer um solo, falar um texto, tocar um instrumento, ou dançar. Na
construção do repertório investiu-se, por um lado, no trabalho do coro em uníssono, para que
os cantores pudessem se ouvir em suas diferenças, e ao mesmo tempo pudessem cantar
coletivamente, buscando a afinação, não como um fim único, mas como um processo. A
afinação teria de vir da melhora da qualidade de escuta que os integrantes pudessem ter entre
si.
Noutra direção, porém, ainda buscando uma eficiência musical, investiu-se na
incorporação ao repertório de algumas composições originais de seus integrantes. Isso trouxe
ao grupo uma maneira muito peculiar de cantar e atuar, o que possibilitou criar identidade e
dar ênfase ao caráter singular desse trabalho, a partir de uma real possibilidade de troca de
potenciais criativos, subjetividade e consciência do outro. Tal experiência proporcionou maior
liberdade ao Coral, dispensando modelos e normas preestabelecidas, ao mudar o foco do
campo da interpretação para o da criação.
Deve-se destacar que o grupo não quer que sua produção seja vista com
condescendência pelo público. Isso não quer dizer que esse sentimento não possa surgir, mas
os depoimentos revelam um desejo de que o trabalho seja avaliado por sua qualidade
intrínseca, e não por quem o faz. Um exemplo disso é o caso de Zé Ivan, um dos integrantes
do grupo, que atribui o seu “salto” para a reconquista de sua autoestima e capacidade
produtiva, ao fato de haver percebido que o público, durante as apresentações do Coral,
gostava das suas composições e de seus números como instrumentista de gaita.
41

Heterogeneidade e singularidades

Algumas singularidades do Coral Cênico Cidadãos Cantantes destacadas pelos


próprios integrantes nas entrevistas foram: a heterogeneidade do grupo; o caráter aberto do
trabalho, pois, estando em local público e de livre acesso, permite o fluxo contínuo de entrada
e saída de pessoas; o fato de o local de trabalho ter vínculo direto com a cultura; a inclusão de
portadores de sofrimento mental ou outras necessidades especiais; o estímulo à pesquisa e à
participação de todos na criação; o acolhimento do grupo e a “entrega” dos participantes ao
trabalho.
Pode-se refletir, a partir da análise das características singulares do Coral, que, se
por um lado, trata-se de um trabalho diferenciado daquele que, geralmente, se faz em grupos
corais, uma vez que nestes, preferencialmente, trabalha-se com grupos mais homogêneos, por
outro, também se distancia de trabalhos que visam à inclusão pela convivência dos diferentes,
por buscar a convivência nas diferenças e ter como meta uma produção cultural, procurando,
com isso, implicar em sua singularidade e potência criativa, todas as pessoas envolvidas nessa
construção.
Ao levantar, pelas entrevistas, os diferentes significados que tem a atividade do
Coral Cênico, um cantor utiliza o termo “anormal” (o que sai dos padrões instituídos), para
destacar o trabalho peculiar do grupo envolvendo criatividade, desenvolvimento pessoal e
cultura, trazendo uma conotação positiva para a palavra “anormal”, e propondo uma inversão
do uso comum do termo. É interessante refletir o quanto a criação artística oscila entre a
tradição e a transgressão, muitas vezes, colocando em questão os padrões de “normalidade”.
É seguindo esse respeito às diferenças e singularidades que o entrevistado
denomina de “anormal” a existência do Coral, ao mesmo tempo em que a coloca como
necessária na atualidade, entrando, assim, em sintonia com a crítica de Focault (1985) a uma
sociedade que controla e segrega, juntando os iguais e se fechando à convivência das
diferenças e do desvio. Nesse sentido, o Coral cumpre uma função da arte (ou melhor, do
artista) na sociedade, que é a da transformação, muitas vezes pela transgressão de valores
instituídos, para repensar associações, padrões, normas e conceitos. O artista Flávio de
Carvalho sintetiza esta idéia em uma frase: “a única arte que presta é a arte anormal”.
42

Considerações finais

Como resultado da análise detectou-se que a manifestação artística do Coral


Cênico ainda se configura como manifestação de grupo minoritário, circulando fora da cultura
hegemônica que, no máximo, a tolera, mas não a reconhece como manifestação artística de
fato. Ana Mae Barbosa (1998, p. 98) adverte sobre a importância dessas manifestações serem
reconhecidas, também, pela cultura dominante, pois, somente dessa forma, a resistência
aconteceria efetivamente, e não como concessão a grupos minoritários. Como sinaliza Pelbart
(1998), a busca de diferenciação não se dá pelo fechamento dentro de um tipo de
manifestação singular, pois, dessa maneira, não seria mais que outra forma de clausura. O
compartilhamento é fundamental (p. 66), desta forma, se confirma a importância do contato
do Coral Cidadãos Cantantes com outros grupos musicais que apresentam propostas
diferentes, assim como da realização de apresentações em contextos culturais diversos, e não
somente os ligados à saúde ou à atenção social.
A questão do perfil heterogêneo dos integrantes do grupo, em princípio, colocado
como mais um dos aspectos a serem investigados, no decorrer do trabalho foi se tornando um
dos pontos principais para a pesquisa, suscitando a questão da positividade dessa
heterogeneidade para a vida e para a própria criação artística, uma vez que a arte é geradora
de movimento e inquietude e, dessa maneira, se aproxima da vida.
A prática musical com grupos heterogêneos como esse, mostra-se, não só
possível, como instigadora. Com a apresentação e divulgação deste trabalho, espera-se que
músicos e artistas, assim como a própria Universidade, com sua responsabilidade na formação
de profissionais alinhados às condições sociopolíticas e culturais do país, possam estar atentos
a novas demandas e configurações de grupos que surgem na atualidade. É preciso repensar a
necessidade da arte na sociedade como produção, expressão e acesso, e não somente como
mercadoria de consumo, para com isso atingir o que Schaefer (1991) aponta como o primeiro
propósito da arte: “promover mudanças em nossas condições de existência” (apud
FONTERRADA, 2004, p. 321) e recuperar, no homem, sua potência criativa e transformativa.
É preciso, também, que se entenda afinação como processo. A afinação de si. A
afinação de si com o mundo. Estar em sintonia ou soar em simpatia, para afinar as diferenças
ou as dissonâncias, e não negá-las como presenças, na vida ou na música, e sim entendê-las
como movimento, estabelecendo-se as relações de onde vêm e para onde vão. Dessa forma,
compreende-se afinação como um constante movimento de busca de acomodação dentro de
43

uma dada harmonia, e que tal harmonia é, também, um dado cultural e histórico que pode e
deve ser entendido dentro de seu contexto.
O filósofo Focault aponta para o fato de que onde o poder se faz presente, é neste
mesmo lugar que irá se instalar uma força de resistência a esse mesmo poder (FOUCAULT,
p. 135-6, 1985; LIMA, 2003b; PELBART, 2003), ao propor a transformação da negatividade
da ação do biopoder, isto é, do poder sobre a vida, em positividade da biopotência, ou seja, do
poder da vida.
O Coral Cênico Cidadãos Cantantes se apresenta como possibilidade de
resistência quando constrói sua produção musical e artística sob o alicerce da diversidade de
seus integrantes, do uso de espaço público, e do trabalho interdisciplinar de sua equipe,
propondo o questionamento dos padrões de normalidade, musicalidade e eficiência na
atividade coral, trazendo, assim, benefícios a todos os envolvidos, sejam cantores ou
orientadores.

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SCHAFER, R. M. Patria and the theatre of confluence. Indian River: Arcana, 1991.
45

Movimento que é dança: um projeto de inclusão

Soraya Rebouças 16

Resumo: MASSAFÁ – Adolescentes em roda, é um grupo de danças pertencentes ao projeto


de inclusão desenvolvido pelo programa de artes da Educação Especial, em conjunto com a
Rede de Bibliotecas Escolares Interativas, que acontece nas escolas municipais de São
Bernardo do Campo – EMEBE Marly Buissa Chiedde, EMEB Sandra Cruz Martins Freitas, e
na Escola Estadual Faustina Pinheiro Silva17. Esta iniciativa foi uma busca das profissionais
Jane Sakae Machado, professora de apoio à biblioteca escolar e da arte educadora Soraya
Rebouças, em trabalhar com a inclusão de pessoas com e sem necessidades especiais que
ocupavam espaços físicos comuns, mas não se relacionavam. Na escola de educação especial
já existia um grupo de Danças Circulares; a partir dessa nova necessidade, a inclusão,
algumas vagas foram oferecidas para as outras duas escolas para os alunos que quisessem
dançar conosco. O grupo nesse novo formato teve início em agosto de 2006, e após um ano de
trabalho podemos observar que, apesar de um início tímido, reservado, que foi fortalecido
pela roda, onde dançávamos de mãos dadas um apoiando o outro, hoje nos tornamos mais
corajosos, confiantes e inovadores; criamos movimentos próprios e alimentamos o desejo de
explorar outros sons e outros limites que iriam além da roda.

16
Formada em Psicopedagogia pela Universidade São Marcos/SP e em Pedagogia com Especialização em
Educação Especial - área Deficiência Intelectual pela PUC/Campinas. Tem formação em Educação Artística
(Artes Cênicas) pela FAINC e Laban pela Escola livre de Danças de Santo André/SP. Trabalhou como
professora da Educação Especial na Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo/SP, desenvolvendo
também atividades na rede privada e terceiro setor. Atualmente, atende clinicamente como Psicopedagoga,
oferecendo consultoria a escolas sobre inclusão de pessoas com necessidades especiais.
É focalizadora de Danças Circulares, desenvolvendo ações nos parques públicos de São Bernardo do Campo, em
cursos de formação para professores, na Faculdade Aberta da Terceira Idade (FATI) e em Encontros de Dança.
E-mail: sorayareboucas@hotmail.com
17
Este projeto foi desenvolvido no ano de 2007.
46

Todo movimento pode ser interpretado como dança? O simples deslocamento no


espaço, pode ser interpretado como uma coreografia? As ações corporais, que representam
atividades diárias podem ser movimentos “dançantes”? Para alunos que apresentam
mobilidade comprometida e às vezes reduzida, a intenção do movimento será dança?
Bernhard Wosien, bailarino e coreógrafo alemão, saiu dos palcos europeus à procura dos
movimentos primitivos, dos movimentos utilizados em rituais, em busca de um movimento
mais puro! Cansado da crença de seus bailarinos que acreditavam na dança para poucos,
apenas para aqueles que tinham anos de técnica, formando, assim, dois grupos distintos,
aqueles que dançam e aqueles que assistem! Negando esse paradigma, Wosien sai de cena dos
grandes teatros e vai para pequenos povoados, resgatando nesses lugares a dança para todos, a
dança não como privilégio de poucos, mas a dança como pertencente a cada indivíduo e a
toda humanidade. O prazer da dança pelo compartilhar, por estar no mundo por ser humano e,
assim, resgatar um de seus instintos mais primitivos, o de mover-se com uma intenção
diferenciada, com uma intenção performática!
Nossa proposta de trabalho baseou-se, inicialmente, nessa ideia de Wosien, ao
procurar o movimento mais primitivo, que de fato pertencia à humanidade, ele encontrou em
pequenas cidades no interior da Europa, comunidades que ainda no século XX, dançavam
para comemorar nascimentos, casamentos e colheitas, e impressionado com a força desses
ritos, decidiu estudá-los mais a fundo e iniciou um resgate dessas danças tradicionais
folclóricas.
Em 1976 fez uma parceria com Findhom, que é uma fundação holística localizada
na Escócia, onde apresentou algumas danças, que na sua grande maioria eram dançadas em
círculo, os resultados foram surpreendentes, e de 1976 para os dias de hoje, centenas de
danças foram incorporadas ao conjunto do que passou a se chamar “Danças Circulares
Sagradas”, “Danças Sagradas” ou “Danças Circulares”. De Findhorn as Danças Circulares se
espalharam pela Europa e depois para o mundo todo. As Danças Circulares representam hoje
uma retomada de antigas formas de expressão de diferentes povos e culturas, acrescidas de
novas criações, coreografias, ritmos e significações próprias do homem inserido na realidade
atual.
Ao escolhermos as Danças Circulares para iniciar o trabalho com um grupo de
adolescentes que apresentavam necessidades educativas especiais, incluindo outros
adolescentes que não apresentavam as mesmas necessidades, buscávamos a versatilidade do
trabalho em círculo, pois, através dele conseguimos neutralizar a figura do bailarino principal,
posto que na roda somos todos um só, não existe uma hierarquia pre determinada com os
47

melhores na frente e os não tão melhores no fundo! A roda e as Danças Circulares, em sua
maioria, são dançadas de mãos dadas o que permite um maior conforto e segurança aos seus
integrantes; além disso, ao dançarmos em círculo e não em linha neutralizamos o medo do
erro, pois ele acaba passando despercebido pela grande maioria dos integrantes da roda.
Acrescentamos a essa escolha a criação de um repertório de movimento e uma ampliação do
universo cultural desses adolescentes. Esses adolescentes frequentam escolas da Rede
Estadual de São Paulo e da Rede Municipal de Ensino de São Bernardo do Campo, sendo
uma escola de Ensino Fundamental II (de 5ª à 8ª série), outra de Ensino Fundamental I (1ª à 4ª
série) e uma Escola de Educação Especial. Na escola de Educação Especial existe, desde
1998, um programa de Artes; esse programa aborda as várias linguagens da Arte e através
dele foi iniciado um trabalho em Danças Circulares com os alunos com necessidades
educativas especiais. Referido trabalho foi ampliado como um convite para participação de
alunos de outras escolas para que, além do trabalho com dança, pudéssemos trabalhar em uma
proposta de inclusão através da Arte.
Os resultados do trabalho têm sido muito satisfatórios, e além de grandes
conquistas no quesito inclusão acabamos conseguindo um resultado bastante expressivo em
qualidade de movimento. Por esse resultado apresentado resolvemos ampliar o trabalho,
acrescentando as ideias de Laban, a dança contemporânea, e o uso de objetos às Danças
Circulares. Nessa nova proposta baseamos nossa abordagem em funções cinéticas
elementares: dobrar, esticar e torcer.
O corpo dobra, estica e torce. Estas são as funções mecânicas do corpo humano
(há corpos que não dobram ou não torcem). Sim, são apenas três funções, e, a partir delas, o
mundo do movimento acontece. (RENGEL, 2006, p.17).
Percebemos que os alunos tinham grande dificuldade em interpretar o torcer,
como realizar esse movimento corporalmente, como colocar em oposição as partes do seu
corpo, e essa dificuldade não era apenas dos adolescentes com necessidades educativas
especiais, mas era uma dificuldade de todo o grupo. Para auxiliar nesse entendimento foi
acrescentado às aulas o uso de tecidos individuais e posteriormente um grande tecido. O uso
do tecido tinha a função de tornar visível, naquele suporte, os movimentos de dobrar, esticar
e, principalmente, torcer. Aos poucos notamos uma melhora qualitativa proporcionada pelo
uso dos tecidos, mas a essa melhora estava associada movimentos muito interessantes que o
grupo conseguiu junto a esse suporte, e assim surgiu a ideia de continuarmos com os tecidos
nas apresentações.
Estamos na nossa terceira coreografia após um ano e três meses de trabalho. Essa
48

coreografia foi elaborada para comemorarmos o nosso aniversário de um ano que foi no mês
de agosto de 2007, e foi apresentada no Teatro Cacilda Becker no Projeto Quintas Especiais
do Departamento de Cultura de São Bernardo do Campo, no Hospital Mário Covas de Santo
André, no I Encontro de Pacientes Reabilitados, na Escola Livre de Dança de Santo André, e
agora no IV Simpósio de Educação Musical Especial. Notamos que ao se apresentarem os
adolescentes que já eram do grupo a mais tempo – pois, como foi dito anteriormente existia
um grupo de danças na escola de educação especial –, mostraram mais tranquilidade, já os
adolescentes das outras escolas precisaram de mais tempo para enfrentarem suas barreiras
frente ao público. Quanto mais idade apresenta o adolescente mais dificuldade de se expor ele
demonstra. Para os adolescentes com necessidades especiais este trabalho tem sido positivo,
pois permitiu que pessoas da comunidade próxima à escola especial os vissem como capazes
de produzir, e assim, serem aceitos por colaborarem de fato com o grupo; e para os
adolescentes sem necessidades educativas especiais o trabalho também é muito importante,
pois os ensinou a respeitar o ritmo de pessoas com habilidades e competências diferenciadas,
mas capazes de produzir; outro fator bastante significativo foi a ampliação do universo social
e cultural desses adolescentes, que por pertencerem a classes sociais menos favorecidas não
tinham essa possibilidade, não só por questões financeiras mas, muitas vezes, pelo
desconhecimento, porque muitos nunca tinham entrado em um teatro. Contudo, não posso
dizer que seja um trabalho fácil de ser realizado. Essa união de grupos com interesses tão
distintos e tão iguais no que se refere à dança, gera desafios constantes a cada encontro, que
exigem dos profissionais envolvidos extrema habilidade. Pensando em todo esse percurso,
nosso último espetáculo foi batizado de Trajetórias:
No início era a rigidez da forma, pessoas que cruzavam os mesmos caminhos, mas
ainda não se conheciam... pouco a pouca a rigidez foi sendo quebrada e os movimentos mais
sinuosos e as pessoas mais felizes por estarem juntas trouxeram beleza, leveza para o palco...
por fim, perceberam que podiam trabalhar juntas e assim criar algo para todos! E só para não
esquecer como tudo isso foi possível voltamos à roda, onde todos somos um só!
O trabalho continua e apesar de muitas conquistas, sabemos que muito ainda
temos a Percorrer. O caminho se faz também ao caminhar e caminhando juntos, de mãos
dadas, nos fortalecemos como pessoas, que aprendem umas com as outras e se transformam à
medida que dialogam e vencem suas dificuldades.
49

Referências bibliográficas

BARTON, Anna. Dançando o caminho sagrado. Trad. Márcia Schubert. RAMOS, Renata
Carvalho Lima (Org.). São Paulo: Triom 2006.

GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Trad. Antônio Guimarães Filho e Glória Mariani. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. Trad. Anna Maria Barros de Vecchi e Maria
Sílvia Mourão Neto. ULLMANN, Lisa (Org.). São Paulo: Summus, 1978.

MARQUES, Isabel A. Dançando na escola. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

RENGEL, Lenira. Cadernos de corpo e dança: os temas de movimento de Rudolf Laban.


São Paulo: Annablume, 2006.

______. Dicionário Laban. São Paulo: Annablume, 2003.

WOSIEN, Bernhard. Dança: um caminho para a totalidade. Trad. Maria Leonor


Rodenbach e Raphael de Haro Junior. WOSIEN, Maria-Gabriele (Org.). São Paulo: Triom,
2000.
50

O papel do teatro na inclusão social

Sérgio Zanck 18

Um trabalho de qualidade, desenvolvido através de pesquisa (teórica e prática),


acompanhamento de resultados e constante busca de aperfeiçoamento, costuma atender a mais
de um objetivo. Muitos trabalhos artísticos acabam por se tornar educativos. Muitos trabalhos
de pesquisa acabam por se tornar educativos ou artísticos. Muitos trabalhos educativos
acabam por se tornar artísticos. E todos os envolvidos neste processo: orientadores,
professores, estagiários, alunos e artistas estão, ou deveriam estar de fato envolvidos. Desde
os que planejam e aplicam atividades até e os que participam das mesmas no “simples” intuito
de aprender. Quando falamos de teatro então, a participação dos “alunos” é fundamental, para
não se dizer determinante. Um orientador ou diretor de teatro pode chegar para um grupo com
diversas ideias, mas se estas não são as mesmas, ou no mínimo parecidas com as do grupo,
dificilmente o trabalho se desenvolverá de forma orgânica. Logicamente que falamos aqui de
grupos onde o trabalho é assumidamente coletivo. Existem diversos trabalhos teatrais
(principalmente no meio profissional) onde todas as ideias saem da cabeça de uma ou duas
pessoas e o elenco apenas as executa. Mas isso é um outro assunto.
Considerando, portanto, um grupo de teatro onde o trabalho é assumidamente
coletivo, no qual toda a produção é responsabilidade de todos, e uma mesma ideia pode se
ramificar em vários resultados: artísticos, investigativos, educativos. Como podemos não
pensar em inclusão? Parece um pensamento lógico. Mas, infelizmente, são vários os trabalhos
que vemos surgir com o “rótulo da inclusão”, mas que na verdade nos mostra uma série de
meros repetidores de coreografias, de acordes, de sequências e de ideias.

18
Ator formado pela Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Experiência profissional de 10 anos em
produção, criação artística e atuação, em teatro e música, bem como, em aulas de teatro para pessoas com
deficiências. Foi diretor artístico do Grupo Cênico-Musical Trupe do Trapo, formado por pessoas com e sem
deficiência. Como músico já participou de várias bandas em shows, gravações de CDs e da produção de trilhas
sonoras de várias peças teatrais. Como ator, atualmente estuda “teatro físico e circo-teatro”. Há dois anos
desenvolve a pesquisa “A música em cena e música que encena”, processo investigativo onde analisa as
diferenças e semelhanças das duas linguagens. E-mail: sergiozanck@hotmail.com
51

O deficiente, antes de mais nada, é uma pessoa de sentimentos humanos,


limitada em maior ou menor grau, como todos nós, mas com potencialidades
diversas. Encarar um artista, que é deficiente, com uma visão
preconceituosa, e criticar sua obra com benevolência, ou restrições ao fato de
sua condição, seria menosprezá-lo. (...) a produção artística de um deficiente
19
pode ser tão boa ou ruim como qualquer outra.

Mais do que pensar em “incluir” é preciso pensar em “entender” e “fazer


entender”. E isso se aplica não só para pessoas com deficiências, mas para qualquer indivíduo
que participa de uma atividade em grupo. Todas as pessoas são diferentes, têm
particularidades. Cabe ao orientador entender essas particularidades e estimular os
participantes a entenderem a si mesmos, os outros e esse coletivo formado por todos.

Por causa da natureza dos problemas de atuação, é imperativo preparar todo


o equipamento sensorial, livrar-se de todos os preconceitos, interpretações e
suposições, para que se possa estabelecer um contato puro e direto com o
meio criado e com os objetos e pessoas dentro dele. Quando isso é aprendido
dentro do mundo do teatro, produz simultaneamente o reconhecimento e
contato puro e direto com o mundo exterior. (...) Quando o aluno vê as
pessoas e as maneiras como elas se comportam quando juntas, (...) ele
adquire uma visão mais ampla do seu mundo pessoal e seu desenvolvimento
como ator é acelerado. O mundo fornece o material para o teatro, e o
crescimento artístico desenvolve-se par e passo com o nosso reconhecimento
e percepção do mundo e de nós mesmos dentro dele.20

No momento em que cada um entende a si mesmo, ao outro e a todos dentro do


grupo está feita a inclusão. Obviamente que esse processo não é tão simples assim, mas esse
pensamento pode servir de guia para se planejar um trabalho que tenha o intuito de promover
a inclusão social. Pelo menos para os quase 20 integrantes da Trupe do Trapo tem servido já
há mais de um ano.

19
Fragmento extraído da revista “Integração. Arte e reabilitação”, de matéria publicada em Dezembro de 1989.
20
SPOLIN, Viola. “Improvisação para o teatro”. 1963.
52

Trupe do Trapo

A Trupe do Trapo – grupo cênico-musical de inclusão social – surgiu em julho de


2006, a partir de uma oficina livre de música e teatro para pessoas com deficiências e da
terceira idade, idealizada por dois pesquisadores da área: Viviane Louro e Sérgio Zanck.
Totalmente independente, e com o intuito de fomentar o pensamento e a prática artística, para
um público que se vê sem muitas opções, o grupo já teve várias formações diferentes. Pessoas
entraram, pessoas saíram, mas o trabalho nunca parou. Improvisações teatrais, musicais, aulas
teóricas, exercícios, “excursões” a peças e apresentações musicais, processos de pesquisa,
discussão e criação coletiva, e hoje, após pouco mais de um ano do primeiro encontro de um
grupo de pessoas que mal se conheciam, o grupo possui um espetáculo que apresenta
regularmente, alguns apoiadores, um registro em livro e DVD, e mais importante que
qualquer um desses pontos citados: O grupo possui entre seus integrantes um “compromisso”,
um “contrato”, que não precisou ser redigido nem assinado. Um contrato que diz que para que
todos vivam bem, basta que entendam o seu espaço e o espaço do outro, e entender nesse caso
é dividir e respeitar.
Segundo Santos: “Tal como a Educação, a Arte propicia conhecimento e ao
caminharem, lado a lado, ambas somam esforços no sentido de criar um indivíduo melhor.”21

Referências bibliográficas

ARTE sem barreiras. Educação, arte e inclusão. Caderno de textos. Edição


especial. Anais do 1º Congresso Internacional. Ano 1, n. 2. Belo Horizonte:
PUC/ Minas: dezembro de 2002 a março de 2003.

ATACK, Sally M. Atividades artísticas para deficientes. Trad. Thaís Helena


F. Santos. Campinas: Papirus, 1995 (coleção Educação Especial).

BARATA, J. Oliveira. Estética teatral – Antologia de textos. Lisboa: Moraes


Editores, 1980.

21
SANTOS, Marilene Ribeiro dos. Fragmento extraído da apresentação do caderno de textos do
“Arte sem Barreiras”.
2002.
53

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003.


54

Programa Educativo Públicos Especiais

Margarete de Oliveira22
Amanda Pinto da Fonseca Tojal23
Pinacoteca do Estado de São Paulo – Núcleo de Ação Educativa

Introdução

O Programa Educativo Públicos Especiais (PEPE) da Ação Educativa da


Pinacoteca do Estado, é um trabalho voltado para grupos especiais, compostos por pessoas
com limitações sensoriais, físicas e mentais, e também para grupos inclusivos compostos por
pessoas com e sem essas limitações, e tem como objetivo possibilitar a acessibilidade física e
sensorial aos espaços expositivos desse importante acervo artístico, oferecendo de forma
permanente atendimentos especializados a esse público-alvo.
O programa visa introduzir e ampliar aos públicos especiais o conhecimento e a
percepção da arte e da produção artística brasileira do século XIX à atualidade, possibilitando
e incentivando o seu pleno acesso a esse museu, como também ao seu significativo
patrimônio artístico e cultural.
Com o objetivo de atingir tanto o público especial como também estudantes e
profissionais envolvidos nas áreas de museus, artes, saúde, educação especial e inclusiva, o
PEPE oferece:

22
Licenciada em Letras e Pós- Graduada (Lato Senso) em “Práxis Artística e Terapêutica: Interfaces da Arte e da
Saúde”, ambos pela USP. Possui experiência em projetos e ações educativas nas áreas de Arte, Literatura,
Educação e Educação Especial; Assessoria na área de Educação Especial em museus de arte e elaboração de
material didático multissensorial. Participou de vários congressos, cursos e seminários na área de iniciação
científica, arte e educação especial. Possui experiência como docente de cursos para formação de professores na
área de arte e inclusão. E-mail: moliveira@pinacoteca.org.br
23
Doutora em Ciências da Informação pela Escola de Comunicações e Artes /USP. tendo cursado o Mestrado na
mesma instituição. Especialização em Museologia pela Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo e curso
superior em Licenciatura em Educação Artística pela Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando
Álvares Penteado(FAAP). É atualmente sócia-diretora da Empresa ArteInclusão Consultoria em Ação Educativa
e Cultural. Contato: http://www.arteinclusao.com.br
55

 Atendimentos ao Público Especial

Esses atendimentos especializados têm por objetivo estimular e facilitar a


compreensão e a fruição de obras de arte pertencentes à exposição de maneira não somente
visual, mas também multissensorial, possibilitando a percepção e o conhecimento da arte por
meio de outros sentidos como o tátil, o olfativo, o sonoro, o cinestésico etc.
Para esses atendimentos, são realizadas visitas orientadas por educadores ao
acervo da Pinacoteca que organizam percursos multissensoriais no qual o público especial, de
acordo com as suas necessidades, poderá participar de atividades de exploração tátil de obras
tridimensionais originais, bem como a exploração visual e multissensorial de obras bi e
tridimensionais, intermediadas por materiais didáticos especialmente elaborados para esse fim
como reproduções em relevo de obras de arte, jogos sensoriais, maquetes táteis com a
localização e arquitetura do museu e publicações em tinta e braile.

 Cursos, Parcerias e Assessorias

Com o intuito de capacitar profissionais e estudantes das áreas de museus, artes,


educação inclusiva e saúde, como também estabelecer parcerias com instituições culturais,
sociais e educacionais, o PEPE oferece cursos, palestras e assessorias como forma de
desenvolver metodologias em ensino da arte na educação inclusiva, além da elaboração de
projetos de ação educativa e cultural inclusivos, tendo como referência o patrimônio artístico-
cultural da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

 Sonorização de obras do Acervo

O acréscimo de novos recursos multissensoriais possibilitou que em 2007, o


Programa pudesse implantar uma atividade proposta para sonorização de obras do acervo da
Pinacoteca. Para isto, foi gravado um CD composto com extratos sonoros e músicas.
Para extratos sonoros “foram utilizados sons do ambiente, onde há uma referência
direta com a cena retratada na obra”, recriando em ambiente sonoro para esta cena.
Para as músicas foi elaborado “um repertório do contexto histórico e da época em
que a obra foi concebida, ou ainda que tenha um correspondente narrativo, no caso das
músicas vocais” recriando o momento histórico e a circunstância da cena retratada.
Com essa proposta, o programa amplia as possibilidades de leituras, por meio de
56

outros sentidos. O repertório sonoro ampliou a investigação das obras, pois traduz em sons a
representação plástica visual, descrevendo cenas e contextualizando musicalmente e
historicamente as obras selecionadas, levando em consideração uma análise descritiva,
aspectos narrativos e aspectos históricos.
O que se pode notar nas visitas com os grupos, e em especial com grupos de
alunos com deficiências mentais e autistas, é que a música tornou-se uma grande aliada no
processo de apreciação da obra de arte. O recurso sonoro tem aproximado o grupo na
atividade de apreciação das obras, permitindo uma maior concentração, além de ampliar a
possibilidade de comunicação interpessoal, entre o grupo e o educador.
Diante da música, a criança ou adolescente que a princípio parecia não interagir
com o ambiente, a atividade e o seu grupo passou a reagir de forma mais participativa à
proposta apresentada.
Sendo assim, podemos observar que a utilização da música como recurso didático
nas visitas orientadas pelo Programa Educativo Públicos Especiais (PEPE) tem possibilitado
uma ampliação do canal de comunicação desses alunos, que em muitos casos é extremamente
comprometido quando se trata de grupos com deficiências mais graves.

Referências Bibliográficas

BERTEVELLI, Isabel. CD de sonorização de obras do acervo. Programa Educativo


Públicos Especiais – Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, 2006.

TOJAL, Amanda Pinto da Fonseca. Políticas públicas de inclusão de públicos especiais em


museus. Tese (Doutorado). ECA– USP. São Paulo, 2007.
57

Música como a forma da vida: uma análise do filme Sonata de outono

Sidney Molina24

Resumo: Este texto fez uma análise do filme Sonata de outono (Horstsonat), dirigido por
Ingmar Bergman (1918-2007), em 1978, a partir da forma musical clássica da sonata.
Procuramos mostrar como o título do filme não é uma metáfora, mas traduz com precisão a
forma escolhida pelo artista para a sua obra. Ao mesmo tempo sugerimos que o diretor sueco
amplia os horizontes da forma musical clássica, cujos ciclos, tensões, transições e
recapitulações passam a ser vistos como formas possíveis da vida humana.

O filme

Filme do diretor sueco Ingmar Bergman (1918-2007), lançado em 1978, Sonata


de outono tem atuações marcantes das atrizes Ingrid Bergman (1915-1982) e Liv Ullmann
(1939). A partir da narrativa dos encontros e desencontros entre mãe e filha, a obra trata das
dificuldades dos relacionamentos familiares, das frustrações resultantes desses vínculos, do
peso da experiência com doenças e com a morte e, acima de tudo, da quase impossibilidade
da expressão direta de sentimentos e emoções.
Charlotte (Ingrid Bergman) – a mãe – é uma pianista renomada, e cuja dedicação
à própria carreira parece ter gerado consequências decisivas para a vida de suas duas filhas:
Eva (Liv Ullmann), que é casada com o pastor de uma pacata paróquia do interior e vive uma
vida sem graça, quase sem sentido; e Helena, isolada em um quarto da casa da irmã por sofrer
de doença que – em estágio avançado – trava a sua locomoção e comunicação.
Mas, apesar de a música ser questão recorrente no filme, a trilha sonora preza pela
extrema economia: a Sonata op. 1 para flauta doce em fá maior de Haendel durante os
créditos iniciais;25 a memória de uma apresentação caseira de Leonardo – amigo e

24
Bacharel em Filosofia pela USP e Doutor pela PUC-SP. Atua como professor de Estética Musical e Violão da
Uni FIAM / FAAM (SP) e da Fundação Carlos Gomes (PA). É membro fundador do Quarteto de Violões
Quaternaglia e autor do livro Mahler em Schoenberg: angústia da influência na Sinfonia deCâmara n. 1
(Rondó, 2003). E-mail: sidney@quaternaglia.com.br
25
Cabe prevenir que a sonata barroca não deve ser confundida com forma sonata clássica. É esta última que será
utilizada por Bergman como forma do filme.
58

companheiro de Charlotte – tocando a “Sarabande” da Suíte n. 4 para violoncelo solo de


Bach; e a cena antológica, na qual o diálogo sem palavras entre mãe e filha acontece através
de duas performances integrais ao piano do Prelúdio n. 2, de Chopin. Dessa forma – e a
despeito de ser um filme onde a música ocupa um papel importante como tema – Sonata de
outono não pode ser considerado, em um sentido mais literal, um filme “musical”.
O objetivo central dessa análise é, no entanto, mostrar como o diretor tece a sua
trama a partir da própria forma musical da sonata, isto é, procuraremos apontar como uma
forma clássica, típica da música instrumental dos séculos XVIII e XIX, é utilizada como
estrutura, como mapa do próprio filme. Nesse sentido, aliás, passamos a perceber que o título
do filme não é uma metáfora, mas a revelação de uma escolha estrutural e formal, a adesão
completa de um diretor de cinema a um gênero musical. Nosso argumento principal passa
também pelo fato de Bergman ter ampliado o próprio alcance da sonata, que através de seu
filme deixa de ser uma forma tão só musical para se transformar em forma da própria vida,
como se ela mesma coordenasse forças, ciclos, conflitos e simetrias.

1. Formas de sonata

A forma de sonata tem sido utilizada, desde meados do século XVIII


(Classicismo), como base para a construção dos movimentos iniciais (allegro de sonata) de
sinfonias (obras para grande orquestra), concertos (obras para instrumento solista e orquestra),
música de câmara (como quartetos de corda), duos (como sonatas para violino e piano) ou
peças para instrumento solo (como sonatas para piano). Em um ensaio de 1787, Henrich
Christoph Koch define a sonata como a forma típica do primeiro movimento, que consta de
duas partes, cada uma das quais pode ser repetida. Segundo a sua descrição, a primeira parte
compõe-se de uma seção, enquanto a segunda tem duas seções. Na primeira seção, a
tonalidade mantém-se até que uma modulação à dominante (ou à relativa maior numa
tonalidade menor) conduza à suspensão na tônica da nova tonalidade. A segunda parte
começa, muitas vezes, com o tema principal na dominante e modula de volta à tônica. A
última seção começa, normalmente, com o tema principal na tonalidade do andamento. São
recapituladas as ideias melódicas da primeira seção. O trecho final do primeiro período, que
se desenvolvera na tonalidade dominante ou relativa, é agora repetido na tônica (GROUT;
PALISCA, 1994, p. 486).
Teóricos do século XIX como Reicha (1826) e Czerny (1848) já explicam a forma
de um modo mais próximo ao encontrado nos principais manuais utilizados pelos estudantes
59

de música hoje em dia. Em linhas gerais, podemos resumir a forma sonata da seguinte
maneira:

1) uma exposição (geralmente repetida), incluindo um primeiro tema ou grupo de temas


na tônica, um segundo tema ou grupo de temas (frequentemente mais líricos) na
dominante ou na relativa maior, e um tema final cadencial, também na dominante ou
na relativa maior. Os diferentes temas são ligados por transições ou pontes
modulantes;
2) uma seção de desenvolvimento, onde os motivos ou temas da exposição são
apresentados com novos aspectos ou combinações, no decurso das quais podem
efetuar-se modulações a tonalidades relativamente distantes;
3) uma recapitulação onde o material da exposição volta a ser apresentado na ordem
inicial, mas com todos os temas na tônica. Na sequência pode vir uma coda (trecho
conclusivo) (ROSEN, 1997, p. 30).

Para o pianista e teórico contemporâneo Charles Rosen, no entanto, é preciso


incluir o princípio do desenvolvimento motívico-temático – além de outros aspectos – para
caracterizar o estilo clássico e a forma sonata. É necessário recolher uma ampla gama de
aspectos lógicos e históricos para caracterizar o profundo senso de proporção e movimento
dramático que estão por trás da sonata. A forma sonata, para ele, contamina movimentos
lentos, rondó e minuetos, não sendo apenas uma forma do primeiro movimento (ou do
último), como rezam os manuais. A sonata é, assim, mais um tipo de proporção e
continuidade, que se modifica de acordo com a sua aplicação específica em um determinado
movimento. Sonata é um jeito de pensar a composição que caracteriza o estilo clássico, e que
possui diversas formas, as “formas de sonata” (ROSEN, 1987).

2. Introdução

O filme começa com o pastor Viktor observando a sua mulher sem que ela
perceba. Trata da relação entre o amor – “significado da vida” – e a impossibilidade de
exprimi-lo. Eva é amada plenamente, mas o pastor não consegue dizê-lo de forma que ela
acredite. O contato é sempre exterior, e o sentido inexoravelmente interno, incomunicável.
Eva já aparece como “motivo” musical do filme, isto é, com uma função
estrutural central, a partir da qual toda a obra é gerada. Nesse momento, ela escreve a carta
60

que trará a mãe para a sua casa no interior.

3. Exposição: tema A

A função de “tema A” de nossa sonata é ocupada por Charlotte. Ela chega


contando detalhes sobre a morte de seu amigo Leonardo. A pianista traz a força e a energia
dos temas iniciais da maioria das sonatas clássicas, e seu domínio temático é caracterizado
pelo calor, pela febre e por cores quentes – como o vestido vermelho, por exemplo. Charlotte
adiciona peso e materialidade a tudo: fisicamente ela faz questão de reiterar a dor nas costas;
psicologicamente, manifesta em diversos momentos sua “consciência pesada”.
Helena, filha mais nova de Charlotte que, doente, mora em um quarto da casa de
Eva, não é uma personagem com estabilidade formal suficiente para constituir o que os
musicólogos denominariam “tema”, mas surge como aquele elemento inesperado e misterioso
que – sobretudo em algumas obras de Beethoven – tem o poder de interferir nos temas e
modificar o seu sentido, além de pontuar as transições entre as seções. Um detalhe revela a
consciência de Bergman sobre o tipo de sonata que está construindo: após o jantar, em
conversa ao telefone com o empresário, Charlotte marca um concerto exatamente para o dia
17 de dezembro – dia em que Beethoven foi batizado.26
A transição para o “tema B” dá-se através do diálogo pianístico silencioso entre
mãe e filha: as tensões do Prelúdio em lá menor de Chopin escancaram as diferenças entre
elas, e antecipam a inevitabilidade do conflito que virá no desenvolvimento da sonata. Mas,
antes de fechar a primeira seção, será necessário expor o segundo tema: Eva.

4. Exposição: tema B

Eva ocupa a função de “tema B” da sonata – que, como vimos acima, costuma ser
frequentemente “mais lírico”. Sua apresentação é inaugurada pela conversa com a mãe no
quarto de Erik, filho de Eva e Viktor, que morreu afogado um dia antes de completar quatro
anos de idade: a exemplo do primeiro tema, portanto, o segundo também começa falando de
uma morte.

26
Há controvérsias sobre a data exata do nascimento do compositor alemão. A certidão de batismo traz a data 17
de dezembro. É provável que Beethoven tenha nascido no dia 16 de dezembro e tenha sido batizado no dia 17 do
mesmo mês. Cabe mencionar que a atriz Liv Ullmann (Eva) também nasceu no dia 16 de dezembro.
61

O contraste com Charlotte é total: Eva é o excesso de leveza, a ausência de


cristalizações, a inexistência de linha divisória entre planos de realidade, a depressão, a não
materialidade. O chamado de Helena permite uma conversa única entre Viktor e Charlotte,
assim como o pesadelo de Charlotte com Helena irá, logo depois, deflagrar o
desenvolvimento.
A “codeta” (trecho conclusivo) da exposição retoma, como é comum na maioria
das sonatas clássicas, elementos do primeiro tema, e Charlotte passa a ser novamente – por
alguns momentos – o foco do filme.

5. Desenvolvimento: tema B

Tal como algumas sonatas – sobretudo de Beethoven –os dois temas da exposição
serão submetidos a um desenvolvimento na segunda seção.27 Bergman opta por iniciar com o
“tema B”, e, ao contrário da exposição – que havia sido dominada por Charlotte – aqui Eva
terá mais espaço.
Ela expressa calmamente o seu ódio em relação à mãe, define a sua personalidade
como sufocada, e expõe a tese de que as palavras da mãe, em sua infância, “não combinavam
com o seu olhar”.
Há um acirramento da tensão entre Eva e Charlotte, o que mais uma vez concorre
para a caracterização dessa sonata como “beethoveniana”, já que o contraste dialético entre os
temas – inclusive no sentido estritamente hegeliano da expressão – é muito mais característico
da produção de Beethoven do que de autores como Haydn ou Mozart. Dentro desse contexto,
mesmo durante o desenvolvimento do “tema B” (Eva), Charlotte (“tema A”) tem o seu o
momento de reflexão, que apenas servirá de alimento para a filha levar sua fala às últimas
consequências. O clímax do filme ocorre nesse momento, com a revelação de uma passagem
da vida de Eva que seu marido desconhecia. Todas as personagens participam direta ou
indiretamente da cena, uma vez que Viktor, furtivamente, presencia a revelação da esposa,
enquanto Helena começa a gritar, como se quisesse dar também o seu próprio depoimento.
Eva conclui esse trecho com a constatação das injúrias da mãe passadas à filha,
com o cordão umbilical nunca rompido, com a afirmação do triunfo da mãe, e com a grave
sentença que atribui a “desgraça da filha” a um “prazer secreto da mãe”.

27
Frequentemente os autores de sonatas escolhem apenas um dos dois temas apresentados na exposição para ser
trabalhado no desenvolvimento.
62

6. Desenvolvimento: tema A

Charlotte terá nesse ponto o seu espaço de defesa, isto é, o “tema A” será também
submetido a um desenvolvimento. Ela fala de sua própria infância, e ressalta que nunca se
lembra dos rostos – nem o próprio, nem o de sua mãe, nem o das filhas. Afirma que nunca
amadureceu, que não tem vivido – apenas “existido” – e que não tem talento para buscar o
“sentido das coisas”.
Na transição para a reexposição, e simetricamente ao que havia ocorrido durante a
seção anterior, agora Eva (“tema B”) terá igualmente o seu momento de interferência, e revela
a relação de sua irmã com Leonardo, à qual atribui a deflagração incontrolável da doença.
O desenvolvimento, em sua tensão, conclui com o pedido de perdão de
Charlotte, não aceito por Eva, sincronizado com mais um chamado solitário, e aparentemente
inútil, de Helena.

7. Reexposição: temas A e B

Uma dificuldade formal, resolvida de modo virtuosístico por Ingmar Bergman, diz
respeito ao modo de realizar cinematograficamente a seção final da forma sonata. Ao
contrário das sonatas musicais, onde a recapitulação dos dois temas em sua condição original
é bem-vinda, como elo da memória e preparação para a conclusão, no cinema uma
reexposição poderia parecer artificial e redundante.
O artista sueco resolve a dificuldade e escapa do formalismo alternando as falas
de Charlotte (“tema A”) e Eva (“tema B”). Assim, Charlotte expressa o seu sentimento de
culpa ao silencioso empresário durante a viagem de volta no trem, enquanto Eva, deprimida,
busca no cemitério, o contato psíquico direto e sem fronteiras com o filho que morreu.
Ao mesmo tempo ocorre um encontro inédito entre Helena, o elemento
desencadeador que havia pontuado todas as transformações intrínsecas da obra, e Viktor – a
quem esteve destinada desde sempre a mera narração descritiva e exterior das relações entre
as personagens.

8. Coda

A conclusão tem início com uma citação literal da introdução: o mesmo


enquadramento, o mesmo cenário, e a mesma frase de Viktor: “às vezes, fico olhando minha
63

mulher sem que ela saiba”. Ao escrever uma segunda carta à mãe, Eva pede perdão. Fala em
misericórdia e persistência, em espaço para o amor. E afirma corajosamente que ainda não é
tarde demais.
Tal como ocorre nas sonatas clássicas, os temas parecem ter retornado a seu
estado inicial de pré-desenvolvimento, onde aparentavam certa independência um do outro.
Aqui, também Charlotte e Eva voltaram para as suas vidas comuns, assustadas pelo impacto
do encontro, arrependidas por não terem evitado o desfecho, e ainda incapazes de estabelecer
entre si uma comunicação madura. Nesse sentido, a forma sonata estabelece – ao reapresentar
os seus dois temas – um movimento cíclico inexorável, e evita deslizar para idealizações de
qualquer ordem.
Mas, da mesma forma como uma sonata de Beethoven pode revelar, nos detalhes
da reexposição ou da coda, uma transformação sutil dos temas que passaram pelo duelo do
desenvolvimento, a sonata que Bergman esculpe no tempo também traz, para a forma da vida,
pequenos detalhes para sempre impregnados na relação entre mãe e filha, após a exacerbação
do conflito.
Dois momentos podem servir de exemplo em Beethoven: como entender o
misterioso solo de oboé que interrompe o fluxo narrativo na reexposição da Quinta Sinfonia?
(BEETHOVEN, 1951, compasso 269). Ou a irrupção do movimento cadencial como princípio
unificador na Appassionata, que passa a ocupar cada vez mais espaço conforme o discurso
avança? (BEETHOVEN, 1980, p. 131).28
Em Sonata de outono os dois temas parecem um pouco mais fracos na
reexposição, apesar de aparentemente retomarem todas as suas características originais. E
uma singela sutileza pontua o final do filme: durante a leitura da segunda carta de Eva,
Bergman superpõe a imagem do olhar assustado de Charlotte, como se, para além de
condicionamentos de uma vida inteira, uma escuta precisa pudesse insinuar a possibilidade
inédita desse diálogo outonal, nas formas da sonata.

28
Trata-se da figura réb-réb-réb-dó, que surge pela primeira vez no compasso 10. Ver OLIVEIRA, 1979, p. 26.
64

Referências bibliográficas

BEETHOVEN, Ludwig van. Klaviersonaten (partitura). München: G. Henle Verlag, 1980.

______. Symphonie n. 5 (partitura). Paris: Heugel & C., 1951.

BERGMAN, Ingrid. Sonata de sutono (Horstsonat). Suécia, 1978. Continental Home Video
(DVD).

GROUT, Donald; PALISCA, Claude. História da música ocidental. Tradução de Ana Luísa
Faria. Lisboa: Gradiva, 1994.

HEGEL, Georg Friedrich. Estética. Tradução de Êlvaro Ribeiro Orlando Vitorino. Lisboa:
Guimarães, 1993.

OLIVEIRA, Willy Corrêa de. Beethoven, proprietário de um cérebro. São Paulo:


Perspectiva, 1979.

ROSEN, Charles. Formas de sonata. Tradução de Luis Romano Haces. Barcelona: Labor,
1987.

______. The classical style: Haydn, Mozart, Beethoven. New York: Norton, 1997.
65

A
rtigos dos trabalhos

apresentados
66

Oficina Inverso: teatro, dança e música – a cidadania da pessoa com


deficiência conquistada através da arte

Eder Ricardo da Silva29

Luciano Francisco Grotto30

Priscila Foger Marques Gasparini31

APAE – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Bauru (SP).

Resumo: O presente trabalho descreve o programa Oficina Inverso: teatro, dança e música,
desenvolvido na Escola de Educação Especial da APAE de Bauru (SP). Tal programa iniciou
suas atividades em 1997, e atualmente conta com a participação de 16 alunos da instituição,
com deficiência intelectual e múltipla; dois coordenadores: professor de Expressão Corporal e
professor de Educação Musical. O desenvolvimento do programa proporciona aos
participantes a oportunidade de expressar seus sentimentos e opiniões, além de toda uma
gama de atividades artísticas referentes às áreas de dança, teatro e música. No decorrer do
projeto constatou-se um aumento significativo quanto às habilidades artísticas, sociais e
independência no grupo.

Introdução

Este presente artigo descreverá categoricamente o trabalho da Oficina Inverso:


teatro, dança e música, desenvolvido na Escola de Educação Especial da APAE de Bauru (SP)
e a questão da pessoa com deficiência, na idade adulta, em relação às seguintes atividades
artísticas: música, dança e teatro.

29
Mestrando do Programa de Pós Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da
UNESP/Bauru. Graduado em Música – Habilitação em Educação Musical pela Universidade do Sagrado
Coração. Especialização em Educação Especial e Inclusiva pela Faculdade de Itápolis. Professor de Educação
Musical da APAE Bauru. Docente visitante na Universidade do Sagrado Coração nos cursos de Especialização
em Educação Musical e Educação Especial e Inclusiva. E-mail: ederprof@ig.com.br
30
E-mail: lucianogrotto@hotmail.com
31
E-mail: priscila.foger@yahoo.com.br
67

A importância desse assunto reside no fato de que a educação especial, ao longo


de sua história, vem crescendo substancialmente no que se refere a práticas educativas e
alternativas diferenciadas de ensino a seus usuários. Neste contexto, as atividades artísticas
assumem um caráter essencialmente funcional em relação à estimulação para um
desenvolvimento global da pessoa com necessidades educacionais especiais, inclusão social e
melhoria da qualidade de vida.

A produção artística e a inversão do olhar

Segundo Bueno (2002, p. 26), “a arte desempenha um papel fundamental no


desenvolvimento da pessoa com deficiência que se dá mediante as relações sociais e culturais
fazendo com que se relacione com o mundo e construa sua visão de mundo”.

Nesse sentido, faz-se necessário implementar atividades artísticas envolvendo a


dança, o teatro e a música, e disponibilizá-las às pessoas com deficiência, não somente com os
objetivos terapêuticos do trabalho, mas com o compromisso e envolvimento de todos os
participantes, inclusive dos profissionais, para que os artistas apliquem e exerçam suas
funções.

A Oficina Inverso, com um título bastante claro, requer um novo olhar da


sociedade frente às pessoas com deficiência, mostrando que são o “inverso” do que as pessoas
pensam. Os portadores de deficiência possuem capacidades e grandes habilidades para as
artes. E, através de “oficina”, cujo nome traz como significação “o lugar onde se exerce um
ofício, no qual ocorrem grandes transformações”32, é que a pessoa pode trabalhar sua própria
acepção33.

O trabalho educativo deve estar calcado nas capacidades da pessoa com


deficiência, investindo na superação desta, buscando a formação e construção do
conhecimento baseada na ação e desenvolvimento individual de cada um

32
OFICINA. In: Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD/LISA, 1996.
33
Percepção de si mesma.
68

A arte, neste contexto, exerce fundamental importância, não como via única de
inserção social para essas pessoas, mas como elemento mediador na construção do
desenvolvimento da pessoa com deficiência.

A cidadania

Segundo Pinsky (2003, p. 18), “a cidadania enfaixa uma série de direitos, deveres
e atitudes relativos ao cidadão...”, aquele indivíduo que estabeleceu um contrato com seus
iguais para utilização de serviços em troca de pagamento (taxas e impostos) e de sua
participação, ativa ou passiva, na administração comum, ou seja, qualquer atitude cotidiana
que implique na manifestação de pertinência e de responsabilidade coletiva.

A cidadania, pensando na pessoa com deficiência, está integralmente ligada ao


conceito de participação. Neto (1989, p. 8) define participação como: “tomar parte em alguma
coisa, ter parte em alguma coisa, fazer parte de algo, ser parte de uma coisa”. Nesse sentido,
compreende-se a questão da inclusão social como conceitua Sassaki (1997, p. 3):

Conceitua-se a inclusão social como o processo pelo qual a sociedade se


adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com
necessidades especiais e, simultaneamente, estas se preparam para assumir
seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo
bilateral, no qual pessoas ainda excluídas, e a sociedade buscam, em
parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a
equiparação de oportunidades para todos.

A participação acontece hoje quando a pessoa descobre que no seu


relacionamento com os outros seres humanos existe um espaço para que ela expresse, valorize
o que ela é, o que pensa, o que reflete, o que ela faz. Nessa expressão, pensamento, reflexão,
valorização, ela se realiza, sente-se útil, responsável e participante. E, participando, o ser
humano traça o caminho de seu próprio destino e desenvolvimento. Ao se falar em
desenvolvimento, se pensa em melhoria, progresso, em avanço político, econômico e social.
Sempre se tem a ideia de um movimento em direção a algo melhor, mais perfeito, ou seja,
uma transformação.
69

O teatro, a dança e a música na interdisciplinaridade

Nas últimas décadas, várias áreas de conhecimento, que têm o corpo como objeto
central de estudo, vêm buscando novas formas de apreensão dessa linha de pesquisa.
Analisando o corpo como um todo, sem padrões de normalidade, surgem assim novos
horizontes teóricos, como constata Bertherat (1991, p. 187), “a pessoa ao despertar o próprio
corpo, ao tornar-se gradativamente mais disponível a si mesma, modifica o comportamento
daqueles que devem “responder” à sua linguagem corporal”.

Muitas dessas propostas, em sua maioria interdisciplinares, vêm resultando em


novas dialogias sobre o corpo, estabelecendo interfaces com áreas como as ciências sociais,
neurociências, a educação, a linguística, dentre outras.

Explorar e desenvolver a habilidade de encenar implica em uma série de fatores,


cujos passos a traçar são: estudo do texto, personificação do personagem, postura de palco,
“desejo de domínio”34 (LOURO et al., 2006, p. 70), aquecimento e desaquecimento vocal,
entre outros.

Nas áreas da dança e movimento, conforme Laban (1990) recebemos do meio


externo as impressões que nos fazem reagir e, da mesma forma, projetamos para fora nossos
impulsos internos espontâneos através do corpo. A expressão corporal e cênica parte do mais
concreto e próximo, “fase da Descoberta”, até atingir a “fase criadora”, repercutindo, assim,
no desenvolvimento da linguagem interior e consequentemente na expressão e comunicação.
Devido a isso, podemos interferir positivamente nesse processo de respostas, citado
anteriormente, por meio de participação em grupos artísticos para que possamos reeducar
nossos sentimentos e emoções.

Do ponto de vista musical, segundo Yogi (2003, p. 17), “a música tem o dom de
envolver, unir, encantar, despertar emoções e desejos...”. Assim, é necessário que o trabalho
seja direcionado ao aprendizado e tenha-o como foco central desse processo. Por se tratar de
pessoas com deficiência, adapta-se a música ao indivíduo, no que se refere às suas
especificidades: técnica vocal, canto, ritmo e notação musical. Ao interligarmos as áreas
acima citadas, temos como base um complexo ativo de possibilidades, cujas habilidades

34
Desejo de domínio é a vontade que todos temos de dominar uma situação.
70

específicas são testadas e treinadas, a fim de que todos os participantes do grupo possam
identificar-se com seus atributos.

Reflexões sobre o percurso

A arte é ilimitada em suas linguagens e este trabalho mostrou que qualquer


pessoa, inclusive aquela que apresenta algum tipo de deficiência, pode criar e atuar,
expressando-se corporalmente. A atividade tem ainda um enfoque terapêutico, contribuindo
com o desenvolvimento cognitivo, físico, afetivo e social dos alunos. Diversas apresentações
foram realizadas e o grupo já foi aplaudido em muitos palcos, conquistando a inclusão ao “se
abrirem as cortinas”, sem impor ou pedir que se perceba a riqueza da diversidade.

Observamos, também, no dia a dia artístico dessas pessoas, que provavelmente


por já terem vivenciado inúmeras situações de minimização de seus valores e capacidades,
elas apresentam um nível alto de exigência consigo mesmas. E isso é reforçado pela
sociedade, mesmo que isso não ocorra de forma declarada. Se qualquer outra pessoa (que não
apresente algum tipo de deficiência) cometer erros durante um ensaio ou apresentação, talvez
fosse considerado um fato corriqueiro, causando frustração, mas, sendo superado facilmente;
um erro de um de nossos alunos tem certamente outra conotação, mais negativa inclusive,
pois é diretamente ligado à sua deficiência. Isso é percebido por eles e por seus familiares,
que também passam a cobrá-los, pelo alto desempenho sempre.

Objetivo geral

 Estimular a autoexpressão, promovendo o desenvolvimento de habilidades e talentos


artísticos para que a pessoa com deficiência seja incluída socialmente e exerça seu
papel de cidadão na sociedade.
71

Objetivos específicos

 Melhorar o relacionamento interpessoal no grupo;


 Observar – imitação;
 Perceber a relação indivíduo-mundo e os papéis sociais;
 Utilizar dos meios naturais de comunicação: linguagem, visão, audição e tato;
 Exercitar a liberdade de ação e criação;
 Contribuir para a elaboração e montagem de um espetáculo;
 Apresentar (enfrentamento das variáveis relacionadas).

Metodologia

Os ensaios possuem carga horária de oito horas semanais, em que são trabalhados
os aspectos referentes ao teatro – aquecimento corporal, postura e marcação de palco – à
dança – movimento associado ao ritmo – e à música – técnicas de expressão vocal, canto e
ritmo. De acordo com SILVA (2006, p. 28): “O desenvolvimento do ritmo auxiliará
substancialmente na fase de aquisição da linguagem oral, mesmo que esta apresente uma
frequência anormal (voz) e linguagem expressiva no que se refere à prosódia e inteligibilidade
da fala”.

Compreende, ainda, estudo teórico-prático sobre o assunto a ser desenvolvido


com o grupo, que realiza apresentações em âmbito municipal, estadual e nacional, e
constantemente é convidado para participar de diversos eventos sociais, empresariais e
educacionais de Bauru e região, reafirmando o potencial e expressão da pessoa com
deficiência por meio da arte.
72

Resultados

Os resultados obtidos apontam excelentes perspectivas e são demonstrados


através da relação da produção artística de cada um dos alunos com o seu cotidiano vivido.
Inclusive, nos levam a refletir sobre a importância da pessoa com ou sem deficiência
vivenciar várias linguagens: a música, o teatro e a expressão corporal. Nota-se um aumento
significativo quanto às habilidades artísticas, sociais e independência no grupo.

O presente trabalho mostra também que a igualdade social só será realidade


quando deixarmos a postura egoísta e capitalista que nos define atualmente, olhando ao redor
e enxergando no outro um meio de crescimento coletivo. É importante ouvir quem é excluído
para entender o que isso causa e produz; mas não devemos ver as pessoas com deficiência
apenas como vítimas, pois todos têm seus preconceitos.

Durante o processo, foi possível observar que as pessoas com deficiência têm
ainda muita dificuldade para se impor na sociedade, demonstrando um preconceito também
consigo mesmo quanto à sua capacidade. O processo artístico lhes proporciona encarar essa
dura realidade sem frustração, pois na arte não existem classificações, tabus etc., e para
exercitá-la não deve existir medo.

A fantasia se torna evidente quando o grupo envolvido neste programa desenvolve


o prazer de sonhar, podendo ser o que quiser e se desenvolver através da atividade realizada.
Esse é um processo dialético no qual o artista reedifica seus conceitos relacionados ao tema
desenvolvido e transforma os posicionamentos do público.

A troca com a plateia é espontânea e demonstra a relevância do trabalho, pois não


se aceita mais aplausos de compaixão pelo fato do elenco ser composto por pessoas com
deficiência, mas sim o reconhecimento de seu potencial e diferencial artístico, que se revela
na história escrita pelo grupo na comunidade de Bauru (SP).

Atualmente, a Oficina Inverso é patrocinada pela rede Confiança de


Supermercados, visto que é uma empresa de responsabilidade social e aceitou a proposta de
ser patrocinadora oficial do grupo, incentivando ainda mais o trabalho desses artistas mais que
especiais
73

Referência bibliográfica

BUENO, Roberta Puccetti. A arte, ensino e produção artística na diferença. In: Programa

Arte Sem Barreiras, Funarte, Caderno de textos. Rio de Janeiro: Quarted, 2002. p. 19-32.

BERTHERAT, Thérèse. O corpo tem suas razões: antiginástica e consciência de si. São

Paulo: Martins Fontes, 1991.

LABAN, Rudolf. A dança educativa moderna. São Paulo: Ècone, 1990.

LIMA NETO, Pedro Antonio de. A participação. São Paulo: Editora do Brasil, 1989.

LOURO, Viviane dos Santos; ALONSO, Luis Garcia; ANDRADE, Alex Ferreira. Educação

musical e deficiência: propostas pedagógicas. São José dos Campos/SP: Ed. do autor, 2006.

PINSKY, Jaime. Cidadania e educação. São Paulo: Contexto, 2003.

SASSAKI, Romeu. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: Wva

Editora, 1997.

SILVA, Eder Ricardo. A reação de bebês com deficiência à música: ritmo e andamento.

Monografia (Especialização em Educação Especial). Itápolis: Faculdade de Itápolis. 2006. 54

f.

YOGI, Chizuko. Aprendendo e brincando com música e com jogos. Belo Horizonte: Fapi,

2003.
74

O cinema, a vida e suas trilhas sonoras

João Lucio de Moraes 35

Resumo: Este trabalho relata alguns resultados alcançados pelas aulas de iniciação Musical,
ministradas na Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental Profª Botyra Camorim
Gatti da APAE de Mogi das Cruzes – SP no período de 2005 ao 1º semestre de 2007. 10
alunos participaram de práticas musicais coletivas e individuais, tomando contato com vários
estilos musicais além de terem acesso a instrumentos de percussão, teclado, plaquetas e cordas
(violão e baixo elétrico). Após uma primeira fase dedicada exclusivamente à prática musical,
o grupo passou a conhecer outras linguagens artísticas como o cinema, acompanhada de uma
breve introdução ao teatro. Esta segunda fase do trabalho proporcionou aos alunos uma nova
compreensão da música como auxiliar na narração e na compreensão do filme. Os gêneros e
personagens que foram apresentados e interpretados de uma forma cênica, simultaneamente à
execução de algumas trilhas sonoras, proporcionou aos alunos várias oportunidades de
apresentações artísticas e auxiliou no contexto interdisciplinar da instituição na inclusão dos
mesmos no mercado de trabalho.

Objetivos

O objetivo deste projeto foi proporcionar, de acordo com a filosofia da escola,


uma melhoria na qualidade de vida dos alunos que possuem necessidades educacionais
especiais (O'REGAN, 2007) através de um contato com a linguagem musical como uma
forma de expressão, além de auxiliar no aprendizado das demais disciplinas da grade
curricular.
Com a prática de música coletiva, vários elementos importantes como
concentração, socialização e cooperação foram trabalhados e indiretamente prepararam os
alunos para uma inclusão no mercado de trabalho. Visou, também, proporcionar
35
Bacharel em Comunicação Social pela UMC com especialização em Educação Musical pela Unicsul.
E-mai: luciomusicalizando@yahoo.com.br
75

apresentações musicais como uma forma de aumentar a autoestima de cada aluno, valorizando
esta experiência estética compartilhada com o público presente. Além de propiciar o acesso
aos elementos básicos da música, permitiu um contato com instrumentos de percussão, de
plaquetas, teclados e cordas (violão e contrabaixo elétrico) como um estímulo e preparação de
um estudo posterior de um instrumento específico.
Objetivou, ainda, após uma fase de adaptação com a música, o contato com outras
linguagens artísticas como o cinema, onde foram apresentados aos alunos alguns gêneros,
personagens, trilhas sonoras e uma breve introdução à representação cênica.

Fundamentação teórica

De acordo com a Teoria das Inteligências Múltiplas desenvolvida por Howard


Gardner (GARDNER, 1994) a identificação e o estímulo dessas inteligências dentre as quais
encontra-se a Inteligência Musical, pode auxiliar em outras áreas como no aprendizado de
outras disciplinas da grade curricular.
Quanto à musicalização, Murray Schafer no livro O ouvido pensante
(SCHAFER, 1991) propõe uma conscientização sonora, jogos musicais para uma vivência
dos elementos da música. Em outros pontos de seu livro, sugere um contato com outras
linguagens artísticas, como o teatro, as artes plásticas e a literatura e seus diálogos com a
música, alertando, porém, para que cada linguagem seja ensinada em seu devido tempo.
De acordo com as propostas pedagógicas de Shinichi Suzuki, o método informal
de aprendizado da língua materna, como a repetição constante, por exemplo, e a audição de
gravações é considerada uma forma eficaz para o ensino do instrumento (FONTERRADA,
2005), o que facilita o contato e o aprendizado musical de alunos com necessidades
educacionais especiais.

Metodologia

A partir de jogos musicais, canções, exercícios rítmicos e utilização de


instrumentos de percussão, os alunos começaram a tomar contato com alguns estilos musicais.
76

Esses estilos variaram entre músicas folclóricas, populares, de jazz e da música erudita. Cada
estilo foi apresentado através de gravações ou execuções musicais, para posteriormente ser
vivenciado pelos alunos.
Durante as aulas de musicalização das salas de Ensino Fundamental e da
Educação de Jovens e Adultos (EJA), alguns alunos demonstraram um maior interesse pela
prática musical proposta, demonstrando uma inteligência musical que precisava ser
estimulada tanto para se atingir alguns objetivos pedagógico-musicais, como para auxiliar na
linguagem, no relacionamento interpessoal, na noção espacial etc.
Em uma prática musical coletiva de um grupo formado inicialmente com dez
alunos, vários ritmos foram trabalhados como ritmos brasileiros e americanos, e através de
instrumentos de percussão como surdos, caixas, ganzás, pandeiros etc.
Em outra fase, instrumentos de plaquetas como metalofones e liras diatônicas
foram utilizados no trabalho melódico e harmônico. Nesse momento, houve o interesse de
alguns alunos em instrumentos de teclado e cordas (violão e contrabaixo elétrico).
Um repertório começou a ser formado com uma variação na instrumentação. Em
uma adaptação para O trenzinho do caipira, das bachianas nº 2, de Heitor Villa-Lobos, os 10
alunos que apresentavam diferentes graus de dificuldades de aprendizagem executaram este
arranjo com cerca de 30 instrumentos entre percussão, teclado e cordas. Outras adaptações
foram realizadas com músicas do próprio Villa-Lobos, dos Beatles etc., na questão do arranjo
e da instrumentação, conforme sugerem Louro, Alonso e Andrade, 2006.
No início de 2007, o projeto “O cinema, a vida e suas trilhas sonoras” começou
com a audição de algumas trilhas sonoras. A seguir, ocorreram discussões sobre o cinema,
seus gêneros mais comuns, seus personagens e as músicas compostas para eles. Um repertório
foi formado com temas de diversas épocas do cinema como: Missão impossível, A Pantera
cor-de-rosa, Tempos modernos e The wall.
Após assistir as cenas escolhidas que caracterizassem o gênero, ou personagem,
foram realizados alguns exercícios de reconstituição da interpretação corporal, conforme
sugere Marcos Napolitano em seu livro sobre a utilização do cinema na sala de aula
(NAPOLITANO, 2006).
Algumas cenas foram interpretadas pelos próprios alunos do grupo durante a
performance musical, realizando uma citação cênica a cada filme representado pelas trilhas
sonoras.
77

Resultados

Em 2005, com a adaptação de O trenzinho do caipira, de Villa-Lobos, o grupo


participou do Festival Nacional Nossa Arte, em Palmas – TO, conquistando o 1º lugar na
categoria Arte Musical, após vencer as fases Regional, em São Caetano do Sul – SP e
Estadual, em Araraquara – SP.
Além desses eventos foram convidados para tocar em teatros, clubes e escolas,
aumentando com isso a autoestima de cada componente.
Após esse estímulo à pratica musical, muitos componentes deste grupo
interessaram-se por um instrumento específico como o teclado, violão e contrabaixo elétrico e
foram agendados para aulas individuais, o que enriqueceu a qualidade técnica do grupo. Com
o exemplo apresentado pelos alunos deste grupo, vários alunos que anteriormente não
demonstravam interesse pelas aulas de musicalização ficaram entusiasmados e começaram a
participar de grupos paralelos ou mesmo a integrar o grupo inicial.
Com o trabalho “O cinema, a vida e suas trilhas sonoras”, o grupo participou do
Festival Regional Nossa Arte, em São Caetano do Sul, no Teatro Paulo Machado de
Carvalho, conquistando o 1º lugar. Após esse novo trabalho que incluiu várias linguagens
artísticas, o grupo foi convidado para apresentar-se em vários eventos entre eles o Fórum
Mundial de Educação, realizado em Mogi das Cruzes (SP).
Entre os alunos que participaram deste grupo, 50% encontram-se trabalhando em
empresas da Região, o que comprova o alcance dos objetivos iniciais.

Referências bibliográficas

FONTERRADA, Marisa T. de Oliveira. De tramas e fios: um ensaio sobre música e


educação. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

GARDNER, Howard. Estruturas da mente: A teoria das inteligências múltiplas. Porto


Alegre: Artes Médicas Sul, 1994.

LOURO, Viviane dos Santos; ALONSO, Luís Garcia, ANDRADE, Alex Ferreira de.
Educação musical e deficiência: propostas pedagógicas. Luís Garcia Alonso, Alex Ferreira
de Andrade. São José dos Campos – SP: Ed. do autor, 2006.
78

O'REGAN, Fintan. Sobrevivendo e vencendo com necessidades educacionais especiais.


Tradução Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2007.

SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. Tradução Marisa Fonterrada. São Paulo: Editora da
Unesp, 1991.
79

Educação musical e inclusão escolar: uma aproximação teórica36

Martha Abrantes Gonçalves 37

Resumo: O processo de inclusão escolar de alunos com necessidades educacionais especiais


vem acontecendo de forma lenta e desordenada. Estudar os principais teóricos da inclusão
possibilitará compreender como a educação musical poderá se inserir neste contexto de
mudanças. Este trabalho, portanto, tem dois grandes objetivos: reconhecer em que medida a
educação musical poderá ser utilizada como um recurso viável e uma ferramenta prazerosa
para a inclusão escolar, e analisar a inclusão escolar como uma estratégia importante no
retorno da educação musical às escolas, no momento em que os professores necessitarão de
todos os recursos disponíveis para promover essa inclusão escolar de forma íntegra e com
sucesso. O presente trabalho fixou como método a pesquisa bibliográfica, que será realizada
à luz dos estudos mais atuais sobre os temas. Como principais resultados encontrados deste
estudo, podemos destacar que a educação musical nas escolas regulares está ainda longe de
atingir o ideal, porém, o ensino de música caminha em direção ao fazer musical criativo, à
escuta musical crítica e esses conhecimentos são acessíveis a todos os indivíduos,
indistintamente, podendo de fato auxiliar a inclusão escolar. Por sua vez, a inclusão escolar
poderá ser um caminho através do qual a educação musical poderá voltar às escolas regulares.

Palavras-chave: educação musical, inclusão escolar, educação especial.

36
Monografia apresentada para conclusão do curso de Licenciatura Plena com Habilitação em Música do
Instituto Villa-Lobos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Unirio, sob a orientação da
Professora Dra. Maria Angela Monteiro Corrêa, em Julho de 2006.
37
Natural do Rio de Janeiro, Economista formada pela PUC-RJ em 1981 e graduada em Licenciatura em
Educação Artística com Habilitação em Música pela Unirio – RJ, em Junho de 2006. Na área de música,
dedicou-se à Educação Infantil, trabalhando em creches e escolas de Ensino Fundamental de 1999 a julho de
2007, no Município de Teresópolis, RJ. Trabalhou com crianças com deficiência visual. E-mail:
marthaabrantes@terra.com.br
80

Desde os primórdios, o mundo assiste a uma segregação histórica das pessoas


com deficiência. Na Antiguidade, os nascidos com problemas eram deixados para morrer,
prevalecendo a lei do mais forte. No final da Idade Média, as deficiências começaram a ser
vistas como demoníacas e muitas pessoas morreram em função dessa visão supersticiosa. Foi
um período marcado pela intolerância religiosa da Inquisição. As primeiras atitudes concretas
no tratamento das pessoas portadoras de deficiência foram tomadas por dois médicos:
Paracelso (1493-1541) e Jerônimo Cardano (1501-1576).
No século XVIII, começam a surgir no mundo as primeiras instituições
especializadas para surdos-mudos, cegos e paralisados cerebrais. É o início da educação
destinada aos deficientes.
No campo internacional, destacamos quatro marcos importantes nas leis e
documentos orientadores da Legislação sobre Educação Especial: a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, a Convenção sobre o Direito das Crianças, a Declaração Mundial sobre
Educação para Todos e a Declaração de Salamanca, as quais serviram de base para a
legislação brasileira sobre o assunto. No campo nacional destacamos três documentos ou leis
importantes: A Constituição Nacional, as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e
as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica.
O processo de inclusão escolar de pessoas com deficiência atualmente em curso
está longe do ideal. Ainda encontramos sérios problemas com relação à educação de alunos
que já fazem parte do contexto escolar sem efetivamente alcançarem a satisfação de suas
necessidades educacionais. Violência, preconceito, falta de incentivo por parte dos pais,
desinformação, problemas psicológicos e baixa autoestima são algumas das causas do
fracasso escolar, levando muitas vezes, à evasão.
Os alunos com necessidades educacionais especiais, apesar de estarem
fisicamente na sala de aula, terão de vencer barreiras de preconceito e falta de acessibilidade
e, na maioria das vezes, encontrarão professores despreparados e desinformados acerca de
suas necessidades e, principalmente, de suas possibilidades. É preciso apoio de toda a
sociedade para que a inclusão saia do âmbito da legislação e ocorra de fato. Com isso,
certamente as situações de despreparo e inabilidade nesse processo tenderão a desaparecer.
Os benefícios para todos os alunos vêm do fato de que as crianças enriquecem-se
quando têm a oportunidade de aprender umas com as outras nas salas de aula integradas,
adquirem valores relacionados com a inclusão e levam esses valores para a comunidade. Para
o professor, o benefício é indiscutível, uma vez que ele lida diariamente com as diferenças
que acontecem normalmente em uma classe. Uma sala de aula inclusiva irá aumentar as
81

possibilidades de trabalho desse professor, assim como sua capacitação para lidar com
diversas situações. O benefício para a sociedade é resultado das ações de apoio e do
aprendizado que as próprias crianças levarão para casa. Quando a sociedade é chamada a
participar de um processo como esse, não há como ficar alheia, porque valores como o da
igualdade, passam a dar um novo significado para a própria vida dentro dessa comunidade.
Assim, devemos utilizar todos os recursos que estiverem à nossa disposição e que
possam contribuir para esta efetivação. A educação musical neste contexto, é concebida aqui
como um recurso extremamente valioso, uma vez que diz respeito a um aspecto da nossa vida
cotidiana, das nossas relações com a emoção e com o afeto e que passa, neste momento, pela
busca de sua identidade como componente fundamental no sistema educacional brasileiro.
Na primeira metade do século XX, o trabalho com artes baseava-se na
transmissão de padrões e modelos das classes sociais dominantes. “Na escola tradicional,
valorizavam-se principalmente as habilidades manuais, os ‘dons artísticos’, os hábitos de
organização e precisão, mostrando ao mesmo tempo uma visão utilitarista e imediatista da
arte” (Brasil, 1997b, p. 23).
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), naquela época, o
ensino de arte era voltado, essencialmente, para o domínio técnico, mais centrado na figura do
professor, a quem competia “transmitir” aos alunos os códigos, conceitos e categorias que
tinham em comum, sempre, a reprodução de modelos. Ou seja, o professor detinha o
conhecimento e ao aluno cabia a atitude passiva no recebimento da informação.
Na linguagem musical, o Canto Orfeônico dominou o cenário escolar a partir dos
anos 30, tendo à frente o compositor Villa-Lobos. Este projeto pretendia levar a linguagem
musical a todo o país. Em função do momento histórico e político da época, em que vigorava
o Estado Novo, “o Canto Orfeônico, além de orientações musicais, procurou difundir ideias
de coletividade e civismo” (Brasil, 1997b, p. 24). Porém, acabou transformando a aula de
música em uma teoria musical, com a memorização de peças orfeônicas de caráter folclórico,
cívico e de exaltação. Foi substituído pela Educação Musical, que trouxe os métodos do suíço
Emile Jacques Dalcroze, do húngaro Zoltan Kodály e do alemão Carl Orff, para o cenário
escolar As contribuições dos pedagogos musicais brasileiros também ganham destaque nesta
fase, tais como as propostas de musicalização de Liddy Chiafarelli Mignone, o método Sá
Pereira, além das ideias do compositor e educador alemão Hans-Joachim Koellreutter. Assim,
passa a existir um outro enfoque no ensino de música: ela pode ser sentida, tocada, dançada,
além de cantada. Era a livre expressão dominando o cenário, levando contudo, a um
esvaziamento de conteúdos musicais na aprendizagem, pois carecia de um acompanhamento
82

mais técnico do professor na aula de música (Beyer, 2000). Atualmente, podemos contar com
diversas abordagens na educação musical, metodologias que garantem o aprendizado de
conceitos básicos e desenvolvem habilidades ligadas ao fazer musical, à apreciação e à
criatividade.
Por fazer musical, entendemos todas as formas através das quais o indivíduo
possa se relacionar com a prática musical, cantando, tocando algum instrumento, sozinho ou
participando de um grupo. O desenvolvimento da apreciação musical implica em
disponibilizar ao aluno uma gama de estilos musicais de forma que ele possa apurar um senso
crítico em relação à escuta dos sons, ou seja, uma escuta crítica.
Em relação à criatividade, enfatizamos a importância do aluno utilizar os
conhecimentos adquiridos nas aulas de música para desenvolver seu potencial criativo, seja
por meio de composições musicais, seja por construção de instrumentos musicais não
convencionais, ou ainda, pela elaboração de novas formas de fazer musical. O que precisamos
é que o espaço escolar seja efetivamente disponibilizado para que possamos colocar em
prática todo esse ferramental, e com isso garantir o acesso de todos à educação musical. A
educação musical na escola regular, por sua vez certamente beneficiará o processo de
inclusão, onde todos os recursos precisam estar disponibilizados. Nada mais justificado do
que poder contar com essa ferramenta tão prazerosa e capaz de potencializar o
desenvolvimento humano.
Para Garcia (2005) a contribuição da música no crescimento geral do educando
pode configurar-se como agente de desenvolvimento sensorial e emocional, estímulo mental,
como forma de sensibilização, além de proporcionar gratificação e êxito. A autora ressalta que
esses aspectos entrelaçados fundem a mente, o corpo e as emoções numa experiência
importante ao desenvolvimento dos processos cognitivos.
A proposta da educação musical não é profissionalizar, nos diz Soares (2004), ao
contrário, é desenvolver a sensibilidade estética e artística, assim como a imaginação e o
potencial criativo, além de favorecer a atenção, a percepção de detalhes e a memorização,
proporcionando aos alunos a oportunidade de fazer e apreciar música na sua realidade e de
outros contextos, ampliando sua visão de mundo.
Para confirmar essa ideia, França (2005) complementa que a música pode auxiliar
crianças portadoras de atraso do desenvolvimento ao “oferecer recursos motivacionais e
mobilizadores altamente adequados para o desenvolvimento da atenção, memória,
comunicação, habilidades motoras, amadurecimento emocional e socialização” (p. 4).
A música também pode favorecer o desenvolvimento emocional de pessoas com
83

necessidades especiais, a conscientização de si mesma, o despertar de emoções e da


espontaneidade, favorecendo, inclusive, a integração social e emocional, entre outras coisas.
“Isso significa que todos são capazes de aprender a se expressar musicalmente, não havendo
razões para a exclusão” (Soares, 2004, p. 1).
O professor de música que atua junto a uma escola inclusiva, precisa estar atento
às especificidades dos alunos com necessidades especiais, precisa estar familiarizado com as
tecnologias sobre materiais e acessórios ou adaptações que o auxiliem em suas atividades.
Muitas vezes, esses acessórios permitem que o aluno realize uma atividade para a qual não
estaria capacitado sem a sua utilização.
Ele precisa valorizar todos os resultados alcançados e ter atitudes positivas em
relação ao fazer musical do aluno. Com isso, salientamos a necessidade de se fazer uma
avaliação consciente das dificuldades e das limitações encontradas, para não criar no aluno, a
sensação de que não houve esforço na realização de determinada tarefa. Para o aluno com
necessidades especiais, os ganhos, por menores que sejam, são valiosos e isso deve ser
observado sempre.
Sabemos que a inclusão escolar engatinha, tropeçando em dificuldades como a
desinformação, o preconceito, a falta de políticas públicas e a presença de barreiras físicas.
Não mencionamos sequer a falta de incentivo aos profissionais docentes, que se agarram ao
seu trabalho por puro idealismo, sem qualquer outro tipo de estímulo. A educação musical nas
escolas regulares, por sua vez, está ainda longe de atingir seu ideal, mas as formas de
educação hoje colocadas à disposição dos professores e alunos, superam a noção de que
apenas quem tem habilidades específicas conseguirá ser musicalizado. O ensino de música
caminha em direção ao fazer musical criativo, à escuta musical crítica e esses conhecimentos
são acessíveis a todos os indivíduos, indistintamente. Reafirmamos que, da mesma forma que
a educação musical pode auxiliar no processo de inclusão escolar, este processo poderá ser,
por sua vez, um dos caminhos que levará a música de volta às escolas regulares.
84

Referências bibliográficas

BRASIL, Congresso Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Lei de diretrizes e


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<www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/decjomtien>. Acesso em: 05 maio 2006.


85

O canto coral infantil como potencial instrumento de intervenção social:


Projeto Cante Conosco

Miriam Utsunomiya 38

Fundamentação teórica

O canto em grupo não escolhe raça, cor, classe social. É uma forma de expressão
em colaboração mútua, desenvolvendo o respeito pelo espaço do outro, organização interior,
disciplina, atenção, percepção auditiva e conhecimento corporal. O canto em grupo não requer
grandes investimentos financeiros nem recursos especiais. O baixo custo de manutenção de
grupos desta natureza, permitem retornos imensuráveis para aqueles que nele investem, pois
atendem às determinadas necessidades pessoais daqueles que participam, e institucionais –
por parte da organização que a promove –, reafirmando a sua imagem perante a comunidade,
desenvolvendo, assim, um marketing institucional saudável, através do incentivo às artes –
marketing cultural (VAZ, 1995, p. 225) – e do exercício da cidadania – marketing social
(UTSUNOMIYA, 2001).

Objetivos

a) Oferecer a crianças da rede pública de ensino um espaço de socialização do


conhecimento musical através do cantar em grupo, unindo a alegria do cantar e os
benefícios do ensino da música, implícitos nas atividades desenvolvidas no canto coral;
b) Dar oportunidade aos alunos bolsistas do curso de Bacharelado em Música de, através
de monitoria voluntária, acompanhar um trabalho com regência coral.

38
Meste em Música pela Escola de Comunicaçãoes de Artes (ECA/USP). Bacharel em Música pela Escola de
Música e Belas Artes do Paraná e Pedagoga pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. É professora no
curso de bacharelado em música e coordenadora do PROMUS – Programa de Difusão da Cultura Musical da
Universidade Cruzeiro do Sul. Regente de corais infantis.
86

Metodologia

O Projeto Cante Conosco é desenvolvido numa escola estadual da zona leste de


São Paulo/SP, cuja escolha deveu-se a dois critérios: a) proximidade do campus central da
Universidade, facilitando a participação dos alunos bolsistas do curso de bacharelado em
Música e considerando a contribuição da Universidade com relação à responsabilidade social
para com a comunidade na qual está inserida; b) afinidade da direção da escola com o projeto,
a fim de facilitar o envolvimento da comunidade na execução do mesmo.
Os ensaios são semanais com duração de uma hora (das 12h00 às 13h00), todas as
terças-feiras na escola. Em cada ensaio, há um período inicial de sensibilização e
conscientização da percepção auditiva rítmica e melódica, através de jogos e brincadeiras que
envolvem exercícios de expressão corporal e vocal, seguido da prática de repertório, sempre
com uma contextualização do mesmo. Juntamente com esses elementos, há um trabalho
direcionado no sentido de se desenvolver os aspectos psicológicos e de sociabilização de cada
criança, possibilitados pelo exercício da dinâmica de condução de um grupo de canto coral.
As apresentações coroam os esforços aplicados pelo grupo e incentivam na
continuidade do processo de aprendizagem e interação.
Todo esse processo contribui para o crescimento individual da criança em vários
aspectos: cultural, psicomotor, musical, social e emocional e, para os monitores, constitui-se
em uma grande oportunidade de aprendizagem profissional e exercício da cidadania.

Resultados obtidos

Cerca de 300 crianças passaram pelo projeto desde a sua implantação, em março
de 2005. O coral já gravou músicas para trilha sonora de um DVD – documentário e
participou de inúmeras apresentações. Duas delas com a participação de Orquestras
(ASSATEMEC de Itu/SP e Orquestra de Câmara Intermusic).
Mais do que dados quantitativos, temos inúmeros depoimentos de professores da
escola que testemunharam o crescimento individual das crianças participantes do coral,
principalmente no que diz respeito à concentração, disciplina e maior facilidade no processo
de alfabetização.
87

Referências bibliográficas

HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. A música e o risco: etnografia da performance de crianças e


jovens. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

TOURINHO, Irene. Usos e funções da música na escola pública do 1º grau. Associação


Brasileira de Educação Musical. Fundamentos da Educação Musical, maio. 1993. v. 1.

UTSUNOMIYA, Fred Izumi. O conceito de marketing social. O desafio da gestão da


comunicação institucional de organizações do terceiro setor brasileiro. Dissertação
(Mestrado). Universidade de São Paulo: 2001. p. 137-45.

VAZ, Gil Nuno. Marketing institucional: o mercado de ideias e imagens. São Paulo:
Pioneira, 1995.
88

Rios do Brasil – a musicalidade da população ribeirinha e suas


reverberações na vida da cidade

Mirna Domingos 39

Sobre o projeto da APAE

A APAE de São Paulo trabalha há 46 anos com a missão de prevenir a


deficiência, facilitar o bem-estar e a inclusão social da pessoa com deficiência.
O Programa Arte, Cultura e Esporte foi especialmente estruturado para ir ao
encontro da atual diretriz da organização que é a inclusão, bem como a equidade. Inovando as
práticas no campo do multiculturalismo no intento de potencializar e estimular a convivência
entre pessoas com e sem deficiências.

Sinopse

A proposta deste projeto visa introduzir as linguagens artísticas na vivência


cultural do participante através do tema: “Rios do Brasil – a musicalidade da população
ribeirinha e suas reverberações na vida da cidade”.
Os participantes vão mergulhar no universo sonoro musical, partindo de suas
origens, sua história, suas lembranças, resgatar músicas de nosso cancioneiro popular,
ampliando de forma prazerosa o repertório cultural do grupo. Ao fazer uma viagem por nosso
país através de canções, manifestações populares, danças e crenças, o participante também irá
traçar um paralelo com o repertório musical de seu cotidiano.

Metodologia
Nas oficinas de desenvolvimento da musicalidade, as técnicas utilizadas ocorrem
de acordo com a necessidade e interesse do grupo e seus participantes, fundamentado em
Swanwick (modelo “T.E.C.L.A”). A proposta inicial foi de que, a partir da vivência e do
conhecimento dos participantes, construir o repertório das cidades brasileiras que eles já
conhecem.

39
E-mail: mirnadomingos@gmail.com
89

Objetivos Gerais

 Aprender a conhecer e se beneficiar com o aprendizado;


 Realizar projetos comuns e preparar-se para gerir conflitos, desenvolvendo a
compreensão do outro e a percepção das interdependências;
 Desenvolver competências, a fim de enfrentar diferentes situações e trabalhar em
equipe.

Objetivos específicos

 Promover a experimentação timbrística;


 Reconhecer timbres, sequências básicas rítmicas e melódicas;
 Provocar a experimentação com os parâmetros sonoros;
 Desenvolver a autoexpressão sonoro-corporal-musical;
 Recriação de canções e composições;
 Inter-relação com outras expressões artísticas.

Estratégias

 Organizar ritmicamente e monitorar o comportamento do participante;


 Melhora nas habilidades: atenção, percepção, relação entre a audição e outras
modalidades sensoriais;
 Oferecer ao participante a possibilidade de pesquisar maneiras diferentes de produções
sonoras.

Resultados

Desenvolvimento dos objetivos propostos com aquisição do reconhecimento,


discriminação e execução de diferentes ritmos incorporados em nossa cultura através das
vivências sonoras.
O exercício de unir o mesmo tema musical em diferentes versões mobilizou os
participantes a procurar e trazer CD's para compartilhar com o grupo “suas músicas”
desterritorializando, criando novos espaços sonoros e a consequente apropriação do
90

trabalho.
A pesquisa sonora de timbres, ritmos e observação das melodias resultou na
harmonização em conjunto das músicas que o grupo apresentou durante o trabalho e
descoberta de novas habilidades pessoais.
A observação em outros territórios artísticos (teatro, artes visuais) proporcionou,
também, tornar audíveis os movimentos, gestos e formas como trilha sonora e efeitos
especiais, utilizando-se de instrumentos construídos a partir de recicláveis.
O crescimento e desenvolvimento da musicalidade proporcionaram aos participantes
o autoconhecimento, melhora da autoestima, sociabilização, crescimento pessoal e do grupo
e conhecimento geral, através da pesquisa dos lugares das músicas trabalhadas.
91

A Pedagogia do desejo e a antroposofia como ferramentas de inclusão social


de crianças em situação de risco, através da educação musical

Mônica Leoni Maffei 40

Resumo: este trabalho foi realizado dentro do Projeto Axé na cidade de Salvador, Bahia,
usando como base as Pedagogias do Desejo e a Antroposófica, ou seja, respeitando o desejo
de cada criança e o ritmo de aprendizado de cada uma delas. As crianças que participaram
deste grupo estavam em situação de altíssimo risco, algumas morando nas ruas da cidade,
outras com situação familiar bastante complicada. O trabalho realizado através da música teve
início de uma forma tradicional de ensino, dentro de uma sala de aula. Quando foi decidido
sair da sala e passar para um espaço externo e amplo, houve a possibilidade de uma
distribuição diferente das crianças de forma que elas podiam se concentrar e se ouvir melhor e
os educadores conseguiam ter uma relação individualizada com o educando. As crianças
tiveram a possibilidade de escolher o instrumento que gostariam de tocar, e isso despertou
nelas a vontade de aprender. Crianças inquietas e com baixo grau de concentração, passaram a
estudar o instrumento durante duas ou mais horas seguidas, tocando muito concentradas.
Como resultado deste trabalho, ao final de seis meses, depois de um belíssimo processo, elas
haviam preparado um repertório de oito músicas. O grupo pôde se apresentar tanto dentro do
próprio projeto, como em outros lugares da cidade.

40
Mônica Leoni Maffei – Flautista formada pela Faculdade Paulista de Artes em 1986, concluiu o mestrado em
Pedagogia Musical na Universidade de Frankfurt, Alemanha no ano de 1994. Também na Alemanha, se formou
no curso para professores em Pedagogia Waldorf. Entre 2000 e 2004 trabalhou no Projeto Axé em Salvador, BA,
dando oficinas de música e aulas de instrumento para crianças e adolescentes em situação de risco. Atualmente,
trabalha com crianças e adolescentes em situação de risco na cidade de Botucatu, SP. Atua, também, como
regente de coral, professora de flauta transversal, flautista e oferece oficinas de musicalização e sensibilização
dos sentidos para grupos de adultos. Concluiu, em julho deste ano, o curso Antropomúsica: Música para o
Desenvolvimento Humano na Arte, Pedagogia e Terapia, e cursa, atualmente, no conservatório de Tatuí, o curso
de Improvisação em MPB e Jazz. E-mail: mleoni@bol.com.br
92

Introdução

Este trabalho, desenvolvido no “Projeto Axé”, foi feito com um grupo de 13


crianças, com idade entre 11 e 13 anos. Elas estavam em situação de altíssimo risco, algumas
morando nas ruas da cidade ou com situação familiar bastante complicada, outras faziam uso
de drogas e algumas tinham complicações com o juizado de menores. As crianças chegavam
ao Projeto, muitas vezes, bem alteradas, em virtude do que tinham vivido no dia anterior.
Elas, às vezes, estavam completamente apáticas, outras vezes hiperativas ou agressivas. Elas
estudavam em escola pública no período da tarde, e pela manhã, participavam do projeto.
O trabalho começou dentro de uma sala, onde se tentou envolver as crianças numa
mesma atividade com todas seguindo um mesmo rítmo de trabalho. A maioria tinha um
comportamento bem difícil, algumas mal conseguiam ficar sentadas, e às vezes, eram bastante
agressivas. Algumas aceitavam bem o que estava sendo oferecido e queriam continuar na
atividade, outras não, ficavam dispersas, começavam a atrapalhar os que estavam interessados
ou simplesmente saíam da sala. Estava bastante óbvio que alguma mudança era necessária,
mas qual?
Quando o trabalho saiu da sala e foi para um local externo, mais amplo, abriram-
se novas possibilidades, tanto da interação entre educador e educando, quanto da forma como
trabalhar o conteúdo; abriu-se a possibilidade de trabalhar vários conteúdos ao mesmo tempo
e de forma individualizada.
Vários instrumentos foram distribuídos pelo espaço: um teclado, um metalofone,
flautas, violões e instrumentos de percussão. Os educandos se dividiram espontaneamente em
pequenos grupos e escolheram o instrumento que queriam experimentar. Tocaram este
primeiro instrumento e depois foram para o próximo, experimentando, assim, todos eles. Cada
criança teve a liberdade de escolher o instrumento que gostaria de tocar, e sabia claramente
qual queria. Nas aulas que se seguiram, cada criança pôde estudar o instrumento que tinha
escolhido. Inicialmente, as crianças aprenderam as notas e um pouco da técnica do
instrumento, depois, aos poucos, foram aprendendo músicas, algumas já conhecidas delas e
outras que eram novidade. Primeiro músicas simples, que tinham a escala como base, como
“Minha canção” ou “Brilha, brilha estrelinha”, e depois, músicas um pouco mais complicadas,
como “Canto do povo de algum lugar”, “Asa branca”, “A casa”, entre outras. Cada etapa
vencida no instrumento era uma enorme felicidade.
Foi emocionante ver crianças, que mal conseguiam ficar quietas dentro da sala,
conseguirem ficar uma, duas, e às vezes até mais horas, sentadas tocando o seu instrumento.
93

Para este tipo de trabalho foi necessário que os educadores estivessem muito atentos e
perceptivos para o que estava acontecendo com cada criança, em cada dia de atividade.
A continuação deste trabalho foi bastante fluida, pois as crianças se envolveram
de tal forma, que a maior dificuldade que tivemos, foi quando alguns dos instrumentos não
estavam disponíveis.
Todos os dias a atividade começava com todos juntos, para se resolver um
eventual problema, ou para ouvirmos alguma música nova ou ler algum texto. No final do
período, todos se reuniam novamente e tocavam juntos. Com isso, deu-se a socialização do
grupo, eles começaram a se ouvir e aprenderam a esperar a sua hora de tocar. Quando uma
criança conseguia aprender uma música, ela ajudava, por espontânea vontade, outras que
estavam com mais dificuldade.
No final de seis meses, quando todos tinham um repertório com oito músicas bem
ensaiadas, puderam fazer várias apresentações dentro e fora do projeto, com um
comportamento muito bom e com bastante responsabilidade. A alegria e o bem-estar ficava
estampado nos rostos das crianças a cada apresentação.

Resultados

• Crianças que no começo do trabalho tinham um comportamento bem complicado,


agora conseguiam ficar uma, duas horas estudando o instrumento, de forma muito
concentrada.
• Foi possível socializar o grupo, onde eles aprenderam a escutar os outros, aprenderam
a hora de tocar e a hora de silenciar.
• Depois de seis meses de trabalho tínhamos um grupo com teclado, metalofone, quatro
flautas doce, dois violões e percussão, com um repertório de oito músicas.
• Foram feitas várias apresentações dentro do próprio projeto e também em outros
espaços, para um público externo.

Discussão

Quando a proposta é trabalhar com crianças em situação de risco, a primeira coisa


em que devemos pensar é com quais crianças estamos trabalhando. O que elas realmente
precisam? Se pensarmos no histórico de vida delas, poderemos ver que o que mais lhes falta é
uma estrutura familiar, adultos que lhes deem atenção, orientação e carinho. Se a intenção é
94

acolhê-las, então, devemos começar atendendo suas necessidades. Qual seria a melhor forma
de conseguir isso? Colocando 30 crianças dentro de uma sala e querendo que elas fiquem
quietas e aprendam o que pensamos que seja importante para elas? Ou será que se deve pensar
numa forma estrutural onde seja possível oferecer a elas um atendimento individualizado,
onde cada criança possa se expressar individualmente e sempre tenha alguém que a escute
com atenção? Essas crianças estão acostumadas com espaços abertos, elas experimentam uma
liberdade de escolha grande, dentro das possibilidades que lhes são oferecidas.
O espaço utilizado tem uma grande influência no tipo de atividade que pode ser
desenvolvida. Se o espaço pensado são salas fechadas, dificilmente dois ou três educadores
terão a possibilidade de atender individualmente cada criança. Se o espaço pensado for com
salas abertas, mais amplas ou, simplesmente, o mesmo espaço pensado de forma diferente,
pode oferecer a possibilidade ao educando de escolher a sua atividade, ou escolher uma
possibilidade dentro desta atividade. Se o espaço possibilitar que ele trabalhe sozinho por um
tempo, o educador poderá lhe dar um atendimento individualizado, quando isto for necessário.
Esta questão do espaço se torna mais evidente em relação ao trabalho com a
música. Para se conseguir trabalhar verdadeiramente a questão musical, temos de poder
trabalhar a questão do silêncio e do ouvir conscientemente. Isto só pode acontecer se o espaço
o permitir.
Uma das coisas mais importantes que essas crianças podem receber é a
possibilidade do silêncio. Elas vivem em espaços, geralmente pequenos, e com muitas
pessoas, onde a possibilidade do estar só e ouvir o silêncio são quase nulas. Oferecer esta
possibilidade para elas é um enorme presente. Além disso, a música lhes oferece a
possibilidade de reconhecerem o seu próprio valor, de perceberem que elas têm a capacidade
de produzir algo muito bonito e que as outras pessoas valorizam.
Quando elas aprendem a ouvir os instrumentos que estão tocando, têm a
possibilidade de ouvir o seu próprio interior e sentir o seu ritmo interno. Elas aprendem a
ouvir os outros com atenção e a hora correta de agir e de interagir.
A possibilidade de escolha é de enorme importância para todos, sejam crianças,
adolescentes ou adultos. Qualquer atividade que parta do desejo individual é feito com mais
dedicação, concentração e vontade. A escolha é de enorme importância como treino da
vontade pessoal, pois muitas dessas crianças não sentem desejo, pois nunca lhes foi dada a
possibilidade da escolha. O que acontece quando todos são forçados a participar ao mesmo
tempo de uma mesma atividade é que perdemos a chance de aproveitar o interesse do aluno a
favor do aprendizado. Simplesmente porque cada um tem o seu tempo, tem seu foco
95

individual num determinado momento.


Os projetos que trabalham com crianças e adolescentes no período fora do horário
escolar, deveriam ter o cuidado de oferecer para os educandos a possibilidade de escolher a
atividade da qual eles gostariam de participar. Isto poderia ocorrer de duas formas (entre
outras possíveis). Uma delas seria de médio ou longo prazo, onde o educando escolhe uma
oficina da qual gostaria de participar e assume o compromisso de participar desta atividade de
forma satisfatória, até alcançar o objetivo proposto. A outra seria a possibilidade de haver um
espaço de tempo no qual o educando fizesse o que estivesse com vontade: ler, desenhar,
brincar, ouvir música, assistir algum filme, trocar ideias ou simplesmente não fazer nada,
como acontece com todas as crianças que têm a possibilidade de ficar em casa no período que
não estão na escola. É claro que isso envolve toda uma estrutura diferente da que existe
normalmente.
Toda criança e adolescente precisa da atenção individual de um adulto em algum
momento. Na escola, eles ficam num grupo grande, e o professor não tem a possibilidade de
oferecer esta atenção. Se nos projetos, que têm a proposta de acolher essas crianças e
adolescentes nos horários em que não teriam onde ficar, eles não tiverem os momentos de
atenção individual, dificilmente terão em outro lugar, de forma satisfatória e positiva. Esta
questão é colocada geralmente num lugar secundário, como um momento de escuta, quando o
educando está causando alguma dificuldade ou está com algum problema sério. Este fator é de
suma importância e deve ser colocado como prioridade, pois muitas questões podem ser
resolvidas com um pouco de atenção individual diária. É claro que este momento requer muita
paciência e carinho e deve ser realizado por pessoas que tenham um vínculo com os
educandos.

Conclusão

Agindo dentro da Pedagogia do Desejo, onde as crianças têm a possibilidade de


escolher o que elas querem fazer, em que elas possam expressar os seus desejos e agir de
acordo com eles, pode-se obter um resultado maravilhoso.
Se for possível respeitar o ritmo de cada educando, perceber o que ele está
pedindo naquele momento, e oferecer-lhe algo de acordo com esse pedido, como funciona
dentro da Pedagogia Antroposófica, é possível fazer com que a criança consiga descobrir o
melhor que existe dentro de si, e que ela é capaz de trazer isto para fora de uma forma artística
e bela.
96

É possível chegar a resultados satisfatórios, dentro de um espaço relativamente


curto de tempo, com crianças em situação de vida complicada e com comportamento difícil,
desde que se respeite o desejo e o ritmo próprio de cada um.

Referências bibliográficas

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