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O Modelo Curricular do M.E.M.

– Uma Gramática Pedagógica


Para a Participação Guiada

Júlia Oliveira-Formosinho*

Introdução normas e crenças que podem ser próximas ou


distantes daquelas que o contexto organizacio-
nal da escola e da sala desenvolveram.
U m contexto pedagógico é antes de mais
um contexto social, logo, um contexto re-
lacional. A escola não é uma instituição auto-
O já clássico (inspirado e inspirador) traba-
lho de Kohlberg (1984) chama a atenção da in-
contida, isolada da sociedade, desenvolvendo terdependência entre a atmosfera moral da ins-
processos artificiais para instruir as gerações tituição como um todo e a atmosfera de cada
mais jovens. A primeira característica do pro- sala de aula. De facto, a atmosfera moral da
cesso educativo – e logo dos seus contextos (a instituição, já importante em si mesma, é tam-
sala e a escola) – é a sua dimensão social. bém importante na sua influência na sala de
O processo educativo desenvolve-se numa aula. Pode ser favorecedora ou impeditiva da
sociedade, a que pertence e para a qual deve atmosfera moral da sala onde quotidiana-
contribuir, fazendo um percurso participativo mente crianças e adultos desenvolvem (ou
de reconstrução guiada da cultura no encontro não) experiências de interacções e relações, de
das crianças com as crianças e das crianças respeito e amizade, de cuidados e justiça, de
com os adultos. envolvimento com o contexto social, de ma-
nutenção das normas negociadas no grupo.
A escola e a sala como contextos A investigação desenvolvida por Kohlberg
sócio-morais e a sua equipa releva o respeito pelos actores e
o respeito pelo contracto social acordado como

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A escola como contexto organizacional, dimensões centrais para a construção da escola
logo socialmente construído, desenvolve estru- como contexto sócio-moral.
turas, cria regras e normas relativas à vivência É então necessário (re) pensar a imagem dos
nessa sociedade organizada que, explícita e actores centrais do contexto pedagógico (as
implicitamente, veiculam princípios e crenças crianças e o professor) e as formas como de-
sócio-morais. senvolvem e usam o contrato social.
Os adultos e as crianças que interagem
neste contexto fazem-no em interdependência A agência da criança como valor
com essas estruturas, regras, normas sabendo-
se que eles próprios transportam, dos seus con- Segundo Barnes (2000), dispor de agência
textos sociais de origem, valores e princípios; significa ter poder e capacidades que, através
de seu exercício, tornam o indivíduo uma enti-
* Professora do Instituto de Estudos da Criança da Uni-
dade activa que constantemente intervém no
versidade do Minho – Colaboradora Científica do MEM. curso dos acontecimentos à sua volta.

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Não se está, com Parsons, a falar meramen- ças colaboram em processos de organização e
te de um poder activo dos seres humanos, lo- interacções para que a participação da criança
calizado na «psiche» e identificado com o po- seja guiada para metas. A colaboração dos ac-
der de escolha, mas antes na linha de Giddens tores e a intencionalidade das metas (instituir
como um poder para fazer a diferença, actuar na escola a democracia, reconstruir a cultura,
e construir e, mesmo, ir contra constrangimen- aprender a cidadania moral) desenvolve-se em
tos transformando as estruturas e os sistemas projectos e actividades cultural e pedagogica-
de que derivam os constrangimentos. mente valiosos. A participação guiada é um
A liberdade é essencial para o exercício da processo de colaboração. O adulto cria pontes
agência (tal como o é para o exercício da esco- entre o já conhecido e o ainda novo para que as
lha). Se os poderes internos só pudessem ser crianças possam aceder ao novo. A criança uti-
activados através de determinações externas liza como guia os recursos sociais do adulto
não poderíamos falar de agência. É constitu- que lhe oferece apoio e desafio para participar,
tivo do conceito de agência que a pessoa (com desempenhar papéis, na sua comunidade de
poder de intervenção) possa escolher cursos di- aprendizagem. Este encontro de subjectivida-
ferentes de acção, logo, tenha liberdade. O po- des, encontro de culturas, estimula e permite
der da escolha real requer o da liberdade. superação. O processo como um todo vai me-
diatizando a imersão na cultura e esta vai per-
A agência do professor como a mitindo a modificação, quer das formas de par-
capacidade de fazer a diferença ticipação da criança, quer das formas do adulto
na agência da criança guiar essa participação.
Este é um processo muito complexo que só
A agência do professor como poder para fa- se pode reinventar no quotidiano porque não
zer a diferença na pedagogia requer transfor- nascemos sozinhos, não crescemos sozinhos,
mar estruturas, sistemas, processos que even- não aprendemos sozinhos, nem os professo-
tualmente se constituem em constrangimento res…nem os alunos… A pedagogia dispõe de
à agência do aluno e, assim, a mediar. andaimes. A nossa criatividade pedagógica de-
Mediar a agência do aluno requer a com- pende da construção inter/intrapessoal dos
preensão da interdependência entre criança/ nossos andaimes.
/aluno que aprende e contexto de aprendizagem.
Os processos de aprendizagem que permi-
tem ao aluno intervenção constante no curso O modelo curricular como gramática
dos acontecimentos envolvem, na linguagem pedagógica
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de Giddens, o ser humano incarnado a exercer os


seus poderes internos num contexto de liber- Sabemos que é pouco original falar na difi-
dade. A interdependência entre o poder para culdade de definir conceitos. Contudo, é um
intervir e o contexto do exercício desse poder facto que a polissemia dos conceitos, no âm-
requer do professor que o seu exercício profis- bito das ciências humanas e sociais, os torna de
sional comece no contexto como forma de difícil definição. Os conceitos de modelo peda-
criar condições de liberdade para o aluno po- gógico e modelo curricular oferecem definições
der participar com agência. diferentes consoante os autores e as tradições
teóricas em que se alinham. Apesar dessas di-
ferenças, parece que pode dizer-se que o termo
O professor como guia desta agência:
a participação guiada modelo pedagógico se refere a um sistema
educacional compreensivo que se caracteriza
Segundo Bárbara Rogoff (1990), nos proces- por combinar a teoria e prática. Dispõe, por-
sos de participação guiada, os adultos e as crian- tanto, de uma teoria e de uma base de conhe-

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cimentos explícita, desde o nível fundamenta- – as interfaces com a creche e o ensino pri-
dor da filosofia educacional, passando pelos ní- mário.
veis de uma teoria de ensino-aprendizagem e
de uma teoria de desenvolvimento até ao nível A acção profissional reflectida em torno
da consequente teoria de avaliação educacional. destas dimensões é central para o desenvolvi-
Um modelo pedagógico dispõe, assim, de mento da profissionalidade docente, no âmbito
um modelo curricular e de um modelo de for- da educação de infância, e o desenvolvimento
mação contínua e desenvolvimento profissional. profissional ao longo do ciclo de vida.
No âmbito mais geral do modelo pedagó- O modelo curricular baseia-se num referen-
gico definem-se as grandes finalidades educa- cial teórico para conceptualizar a criança e o seu
cionais e seus consequentes objectivos; no âm- processo educativo e constitui um referencial
bito mais restrito do modelo curricular conse- prático para pensar antes-da-acção, na-acção e
quente elaboram-se orientações, umas mais sobre-a acção. O foco é então a acção educativa.
gerais outras mais específicas, no que se refere O modelo curricular é um importante andaime
à prática educacional.1 para apoiar o professor na procura de um quoti-
O modelo curricular situa-se ao nível do diano com intencionalidade educacional onde
processo de ensino-aprendizagem e explicita as crianças se envolvam (Oliveira-Formosinho e
orientações sobre o contexto educativo nas Araújo, 2004), persistam, aprendam e desenvol-
suas várias dimensões: vam disposições para aprender.
Convém então sublinhar que este referen-
– o tempo como dimensão pedagógica; cial é por nós entendido como aberto e inclu-
– o espaço como dimensão pedagógica; sivo. É um referencial aberto porque não se
– os materiais como livro de texto; conceptualiza como um sistema educacional
– a interacção como dimensão pedagógica; encerrado em si próprio, antes pelo contrário,
– a observação e documentação como ga- contextualiza-se no quadro cultural envolven-
rante da presença da cultura da criança no te, ao serviço das sociedades, das comunidades
acto educativo; e das famílias. E assim, se torna em referencial
– a planificação como criação da intencio- inclusivo.
nalidade educativa; Um modelo curricular pressupõe ainda uma
– a avaliação como suporte à aprendizagem forma de pensar a formação dos profissionais
e como monitorização do processo ensino que optam por trabalhar nesse modelo, pois,
aprendizagem; como vimos, o modelo pedagógico inclui um
– a avaliação do contexto educativo como modelo de formação profissional prática. A

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requisito para a avaliação da criança e base epistemológica desse modelo de formação,
como auto-monitorização por parte da é, assim, coerente com a base epistemológica do
educadora; modelo curricular para a educação da criança.
– os projectos como experiência da pes- Um modelo curricular é assim uma gramá-
quisa colaborativa da criança; tica que cria linguagem, significados e uma es-
– as actividades como jogo educativo; trutura conceptual e prática; um contexto de ex-
– a organização e gestão dos grupos como periência e comunicação com a experiência; um
garante da pedagogia diferenciada; contexto de acção e reflexão-sobre-a-acção. Tal
– a compreensão das interrelações entre to- como a gramática ele permite quer a prosa,
das estas dimensões da acção pedagógica quer a poesia e, mais que isso, permite várias
e das interfaces entre estas dimensões e prosas e várias poesias. Cada professor cria a
áreas curriculares; sua interpretação na construção da praxis, na
– as interfaces de escola com a comunidade sua sala de actividades, pela interpretação que
educativa e as famílias, os pais; faz do modelo curricular. Assim, este é, por sua

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vez, uma construção educacional interpretativa mento da Escola Moderna trouxe-me muitos
ao nível teórico e prático. Tal como a gramática, saberes, desenvolveu as minhas crenças e for-
também exige aprendizagem. Se por um lado, o taleceu a minha agência. Compreendi que esta
modelo curricular apoia a formação dos profis- comunidade dispõe de muitas memórias anti-
sionais, por outro exige apoio a essa formação. gas em que estão ancoradas as memórias ac-
Pedindo um empréstimo a Bach, uma «dose tuais. Compreendi que umas e outras são su-
bem temperada» de experiência, arte e apren- jeitas a debate na participação guiada. Aprendi
dizagem, através da acção comunicativa, no ainda que o Movimento da Escola Moderna
âmago de um processo colaborativo de forma- tem no modelo curricular de que dispõe uma
ção, que permita a cada profissional que o quer dupla gramática pedagógica (Niza,1996). O
utilizar uma co-construção do seu referencial, modelo curricular é visivelmente uma dupla
base para uma prática. Então esta prática refe- instância de mediação: constitui-se em partici-
renciada permitirá uma teoria da prática, uma pação guiada do educador que promove a par-
epistemologia da prática. ticipação guiada das crianças. E aqui reside o
O que atinge, apoia, verdadeiramente a segredo do seu encantamento: faz a relação,
criança e o grupo é esta prática e esta episte- faz as pontes entre os actores e entre os sabe-
mologia. É portanto, a acção da educadora, re- res. Pude ver que, no coração da acção educa-
flexiva sobre si própria, comunicativa com o tiva do MEM, se institui quotidianamente a
modelo curricular que co-construiu, partilhada comunidade sócio-moral no respeito pela
com os seus pares. Daqui se conclui que o mo- agência dos actores, na negociação que o con-
delo curricular é, assim, uma condição neces- trato social estimula. Pude confirmar que a
sária, mas não suficiente. São condições igual- criatividade pedagógica se faz em diálogo e
mente importantes o modelo de formação ao não no isolamento.
longo de todo o seu ciclo de vida que permita No modelo pedagógico do MEM estão liga-
criar uma cultura educacional e uma epistemo- dos inextrincavelmente o modelo curricular e o
logia da prática congruente. modelo de formação profissional (a auto-for-
Os modelos curriculares podem constituir mação cooperada). Mesmo na representação
um dos referentes para a criação desta cultura que a comunidade profissional faz do MEM o
educacional, se, como no âmbito do MEM,
movimento associativo em torno da formação
sustentarem e se sustentarem em grupos de
é tão importante como o modelo curricular.
formação cooperativos (Niza, 1997).
Assim, à dupla mediação – a mediação do
educador que promove a participação guiada
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O modelo curricular MEM como das crianças – deve juntar-se uma outra instân-
gramática pedagógica: uma dupla cia de mediação – a dos professores membros
mediação do Movimento. É esta outra mediação que re-
gula, interpreta e reinterpreta2 a gramática pe-
Acompanhar longamente a jornada de uma dagógica que vai regendo a acção do Movi-
comunidade de aprendizagem como é o Movi- mento, dos profissionais e das crianças.

1 Sobre os modelos curriculares ver Goffin, 1994 e

Epstein et al., 1996; Roopinaire e Johnson, 1993, Oliveira-


-Fomrosinho, 1998, Formosinho, 1996.
2 Ver Formosinho 1998; Nóvoa 1998.

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