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Incorporação e integração da Amazônia: perpetuação

da colonialidade
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Julyan Machado Ramos, Universidade Federal do December 17, 2019


Amazonas

Verde é a primeira cor que vem à cabeça quando falamos em Amazônia. Instantaneamente
nos vêm imagens mentais da grande floresta, sua imensidão, sua ermidade e etc. Mas ao
analisar os processos de construção histórica da Amazônia, das suas imagens e das suas
múltiplas dimensões internas, percebemos que o que parece natural na verdade não é tão
natural assim.

O surgimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em meados do século XIX,


assim como as primeiras produções “científicas” sobre a Amazônia, as expedições de
demarcação territorial, etc., foram fundamentais para o início da construção das imagens

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da região amazônica. Euclides da Cunha, por exemplo, a partir da sua passagem pela
Amazônia no início do século XX, deixou uma significativa produção textual que ao mesmo
tempo em que refletiu uma percepção contemporânea sobre esta terra, também contribuiu
para criar paradigmas interpretativos sobre a região que influenciaram de alguma forma o
pensamento nacional sobre a Amazônia. Ao realizar um minucioso trabalho para
compreender a construção do imaginário popular brasileiro sobre a Amazônia, Magali
Bueno destaca a predominância das imagens da “grande floresta verde” ou do “lugar do
atraso” que nos rementem aos primeiros esforços de construção conceitual do Brasil e da
Amazônia. O fato é que a imagem (ou imagens) da Amazônia, mais do que uma
representação de uma realidade concreta, foram também uma construção – não linear,
unilateral e estática. E mais do que uma construção, elas são imagens vindas de fora para
dentro, que foram absorvidas pelos amazônidas e nós mesmos as reproduzimos com
naturalidade. Assim, a Amazônia virou a “grande floresta”, “pulmão do mundo”, de “fauna
e flora exuberante”. Mas a Amazônia não é isso mesmo?

Na verdade, o termo Amazônia surge mais como uma referência ao território do vale
amazônico do que ao bioma amazônico. O seu emprego generalizado e reconhecido faz
sentido a partir do momento em que o Grão-Pará deixa de existir, dando origem ao
Amazonas e ao Pará. O termo funcionou perfeitamente para denominar a região das duas
províncias, cortadas pelo Rio Amazonas, que em grande medida foi o caminho para a
formação da sociedade amazônida a partir de 1616. Durante o período das primeiras
expedições europeias pela região no século XVI, o rio foi rebatizado pelos espanhóis,
nomeadamente pelo frei Gaspar de Carvajal, que acreditaram ter visto uma nação de índias
guerreiras, as quais se atribuiu o epíteto de amazonas, em referência à mitologia grega.
Assim surgiu a denominação Río de las Amazonas, que mais tarde serviria como sinônimo
para denominar a terra do grande rio, o Grão-Pará.

Por esta razão não podemos reduzir o termo Amazônia à floresta equatorial. Na verdade,
esta conversão do significado aconteceu justamente a partir do momento da construção
conceitual da região no final do século XIX – talvez pelo perigo que o termo pudesse
representar. Mas mais do que uma referência ao território, nós precisamos ver a Amazônia
mais como um conjunto entre a terra e o povo, pois pensar em história da Amazônia só faz
sentido se considerarmos o fator humano, pois a mata e a fauna não possuem história
como as sociedades humanas – ao menos não existe ramo da história científica que faça
esse tipo de estudo. O que à primeira vista pode parecer óbvio, como dizer que a Amazônia
se trata mais do território do que do bioma, na verdade pode não ser tão óbvio assim se
considerarmos toda a carga de imagens e preconceitos construídos sobre a Amazônia que
ainda são capazes de fazer um indivíduo do século XXI se impressionar ao saber que existe
“civilização” na região.

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O objetivo deste ensaio é empreender uma reflexão ampla sobre os processos de
incorporação e integração da Amazônia ao estado nacional brasileiro, assim como suas
implicações e significados. Abordaremos o processo de inserção da Amazônia na unidade
territorial do Brasil a partir da afirmação da ordem imperial em 1823 e da sua reafirmação
em 1840, com o encerramento da cabanagem. A incorporação (ou inserção) é o processo de
anexação do Grão-Pará, afirmação e reafirmação do poder do Império do Brasil sobre a
Amazônia. Já o processo de integração diz respeito aos processos de estabelecimento
institucional do estado brasileiro na Amazônia, de construção e infraestrutura de conexão
com as demais regiões, e da afirmação de uma relação de subalternidade e dependência
comercial e econômica que se desenrolam a partir da segunda metade do século XX. A
proposta aqui é fazer uma análise panorâmica, sem a intenção de esgotar qualquer assunto
aqui mencionado, de um processo que tem decorrido por quase duzentos anos e que,
apesar da evolução dos estudos acadêmicos na Amazônia, parece ser incompreendido ou
ignorado – inclusive pela comunidade acadêmica. Trata-se de um esforço preliminar para
desnaturalizar o que entendemos como natural, para combater os silêncios, para construir
uma perspectiva realmente amazônida sobre a Amazônia, sobre a colonialidade contínua a
que estamos imersos e, principalmente, para provocar a inquietação, sugerindo a
necessidade de construirmos uma nova perspectiva sobre o nosso passado, presente e,
sobretudo, sobre o nosso futuro.

Portanto, buscaremos apresentar os aspectos mais gerais da formação histórica e política


da Amazônia, com o intuito de compreender estes processos de incorporação e integração
da Amazônia ao Brasil. Para iniciar a discussão sobre a incorporação, faz-se necessário
uma pequena retomada do processo de construção geral da Amazônia, definindo-a a partir
da experiência histórica concreta.

Incorporação

A primeira coisa que precisamos dizer é que Amazônia também tem história – esta
afirmação simples pode causar espanto e dúvidas em muita gente. E mais do que ter uma
história, esta história não se confunde com a história do Brasil ou com a história das
nações indígenas da América. A história da Amazônia é ligeiramente diferente da história
do Brasil – talvez este seja um dos motivos que a faz ser ignorada ou abordada de forma
extremamente superficial no decorrer do estudo da História Nacional.

História da Amazônia diz respeito diretamente ao processo que se iniciou com a


implantação do domínio colonial pelos europeus na região, pois foi a partir deste processo
que se formulou a sociedade ocidentalizada da Amazônia, do período da colonização e do
tempo presente. Portanto, em grande medida é a história do Estado do Grão-Pará, tendo
início efetivamente em 1616, a partir da instalação da presença fixa portuguesa no extremo
norte da América portuguesa, adentrando, na verdade, em territórios oficialmente
pertencentes à Espanha naquele momento. A experiência colonial na Amazônia percorreu
uma trajetória própria, construindo dinâmicas históricas específicas da região, embora não
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alheia certamente do contexto geral da colonização europeia do continente americano.

A coroa portuguesa criou duas colônias no continente americano: o Estado do Brasil e o


Estado do Grão-Pará. Embora o conhecimento deste fato tenha se disseminado
progressivamente, inclusive na educação básica, trata-se de um dado ignorado por parcela
significativa da nossa sociedade e população. Esta região, que aqui denominamos neste
momento como Grão-Pará, teve uma nomenclatura oficial que variou ao longo dos séculos
XVII e XVIII. Logo, Grão-Pará é usado com a finalidade de simplificar as nomenclaturas
mais extensas, cormo Estado do Grão-Pará e Maranhão ou Estado do Grão-Pará e Rio
Negro, sendo possível também usar o termo Amazônia, embora este tenha surgido somente
no século XIX.

A colonização no Grão-Pará seguiu padrões ora observáveis em outros espaços coloniais,


ora exclusivos da região. Mas são bastante evidentes as distinções entre os sistemas
coloniais das duas colônias portuguesas. Enquanto no Brasil a sociedade colonial em larga
medida se sobrepôs às populações indígenas, seja por genocídio direto ou indireto, seja
somente pela superação quantitativa proveniente da imigração, dentre outros fatores, na
Amazônia a sociedade colonial era essencialmente indígena, mesmo que a maior parte
desta população já tivesse sofrido o processo da destribalização. Ou seja, a presença
indígena, tapuya ou mestiça, na sociedade ocidentalizada, por muito tempo permaneceu
hegemônica em relação aos demais grupos que também estiveram presentes na região.
Ainda hoje, mesmo com a população indígena etnicamente reconhecida sendo
extremamente reduzida e tendo ocorrido massivos processo de imigração, a larga maioria
da população da Amazônia apresenta uma evidente influência (cultural ou genética) amazonia,
antiga colonia
indígena, expressa inclusive na fisionomia. A colonização na Amazônia assumiu mais um conhecida
caráter de expansão e ocupação militar e religiosa do que de estabelecimento de uma como Grao
Para? nao
economia agroexportadora, tendo a força de trabalho negra como base, na proporção existiu
amazonia,
observada no litoral brasileiro. antiga colonia
conhecida
como Grao
Fazemos esta breve retomada porque podemos ser levados a pensar que a unidade Para, existia a
nacional brasileira, a sua configuração territorial e a presença da Amazônia no Brasil antiga
provincia do
provém da colonização portuguesa, como uma herança adquirida após a independência de Grao Para.
1822. Mas é preciso clareza sobre esses detalhes, sobre estes dados tão simples, mas que parece
os fatos
ignorar

são ignorados pela larga maioria da população e pela sociedade oficial. A Amazônia, antiga denaturalizand
o-os,
colônia conhecida como Grão-Pará, foi um estado colonial português autônomo, sem ignorand-os,
relação política com Brasil durante toda a época colonial. Esses dois séculos de autonomia parece ignorar
Belém e a
em relação ao Brasil resultou em duas sociedades drasticamente diferentes na primeira importania do
Grao-Para
metade do século XIX. Isto demonstra que afirmações como “estamos no Brasil desde
1500” são infundadas e muito menos é possível pensar nacionalidade ou identidade
brasileira na Amazônia em 1823 – na verdade nem nas demais regiões do Brasil em grande
medida.

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Quando acontece a independência do Brasil e fundação do Império em 1822, o Brasil não
existia: nem como unidade territorial e muito menos como nação. Mesmo nas regiões que
compunham o estado colonial do Brasil a noção de unidade-identidade brasileira era muito
vaga ou inexistente. Após a fundação do Império se inicia um efetivo esforço para construir
a unidade territorial. Dessa forma, as demais capitanias ou comarcas que faziam parte do
Estado do Brasil passaram pelo processo de “adesão ao Império”, que na verdade na
maioria dos casos se tratou de uma anexação forçada. Mas existe uma significativa
diferença entre a “adesão” de uma região como a Bahia ou como São Paulo e a “adesão” do
Grão-Pará. As demais regiões faziam parte do Estado do Brasil praticamente desde o início
da construção da colônia, enquanto que o Grão-Pará era um outro Estado colonial, ao invés
de uma comarca ou capitania brasileira. E a ausência de vínculos era tão grande que
mesmo alguns anos após a anexação, o contato entre as cidades de Belém e Rio de Janeiro
permaneceu extremamente reduzido, quase inexistente se comparado com as relações que
existiam entre Belém e outros portos da Europa e da América, especialmente na região
caribenha. Curiosamente, existe uma tendência por parte da historiografia brasileira em
considerar que a unificação das duas colônias se deu em 1774, ou após a criação do Reino
Unido do Brasil, em 1815. Mas essa tendência parece ignorar o grau de desconexão
existente entre a Amazônia e o Brasil e a historiografia amazônida tem se esforçado para
superar a perspectiva unilateral brasileira convencional.

A Amazônia começa a fazer parte do Brasil em agosto de 1823, com o episódio que ficou
conhecido como “Adesão do Pará”. Tratou-se uma anexação negociada com a classe
política de Belém que foi coagida a aderir ao Império pela ameaça de bombardeio e
bloqueio. Logo, a “adesão” não foi realmente uma adesão. No Grão-Pará havia partidários
da adesão ao Brasil, mas a anexação aconteceu à revelia da vontade local. Estes partidários,
na verdade, almejavam mais a transformação social do que a participação do Império do
Brasil a priori, pois antes aderiram à revolução do Porto. Houve até mesmo quem
vislumbrasse adesão à revolução pernambucana de 1817. O trágico episódio da adesão
(anexação) ao Brasil precedeu uma série de outras tragédias a curto, médio e longo prazo
na região.

Ainda em 1823 uma revolta popular resultou num episódio que ficou conhecido como
Massacre do Brigue Palhaço. Foi uma revolta desdobrada da anexação onde os revoltosos,
que se levantaram contra os portugueses de Belém, foram aprisionados no porão de um
navio e mortos por asfixia com cal virgem. Forram estas 252 mortes que inauguraram a
ordem imperial brasileira na Amazônia. Este massacre gerou um grande trauma para a
população que ano após ano relembrava o acontecido – o mesmo ressentimento gerado
pelo episódio em questão acabou por ser vinculado à Cabanagem.

A partir de 1823 os conflitos sociais e políticos se acirraram no Grão-Pará e a tirania dos


presidentes enviados pelo império e sua negligência com as demandas da província
causaram frequentes revoltas e agitações, principalmente em Belém. Esta primeira fase de
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afirmação da ordem imperial brasileira na Amazônia culminou na eclosão da Cabanagem
em 1835, a maior guerra popular ocorrida no Brasil. Esta guerra teve início em Belém no
dia 7 de janeiro, com a tomada do poder politico pelo exército cabano, formado pela
população pobre da Amazônia – índios, mestiços e negros – e alguns membros da elite,
que logo abandonaram o movimento em razão da radicalização. Principalmente após a
retomada de Belém pelas forças legalistas, a guerra se alastrou por todo o vale amazônico,
subindo os rios da região até as fronteiras com os países vizinhos, resistindo até 1840,
quando houve a rendição definitiva dos cabanos. Os 252 mortos em 1823 se
transformaram em aproximadamente 30 mil com a repressão à cabanagem – a
reafirmação da ordem imperial brasileira na Amazônia.

A reafirmação da ordem brasileira, após sua maior contestação, teve altos custos para a
população do Grão-Pará, com uma mortandade jamais vista e com prejuízos materiais e
imateriais incontáveis. Dessa forma, a Amazônia passou a fazer parte do Brasil. Desde a
Cabanagem, os amazônidas jamais puderam reunir forças para mais uma vez contestar a
ordem imposta de fora pra dentro. Pelo contrário, a partir daí se inicia a fragmentação e o
enfraquecimento empreendido pelo Estado através da divisão territorial e política. E
afirmação da ordem nacional brasileira também implica em afirmação moral e ideológica
sobre o povo amazônida, que tem suas implicações na cultura e na forma como o povo
percebe a si próprio. Assim se inicia o processo de imposição da nacionalidade brasileira na
Amazônia.

Ao contrário dos demais países da América, que surgiram através da luta intensa contra o
colonialismo, tendo ampla participação popular nas guerras e grandes movimentações
espaciais, o estado brasileiro independente surge mais como uma continuidade do que
como uma ruptura. Seu processo de independência não foi empreendido com a
participação da população e sua unidade não foi construída pela vontade dos povos
aglomerados na unidade nacional. O Brasil surge como uma costura de povos, somente a
partir do segundo reinado é que se inicia de fato o processo de construção da nação
brasileira, da nacionalidade que deveria promover a unificação e integração do país.

Para um amazônida do início do século XIX, a anexação ao Império pode ter sido sentida
de forma muito diferente do que o foi para um mineiro ou para baiano, em razão da longa
trajetória colonial. Na verdade nem a língua portuguesa era falada pela população comum,
que até a segunda metade do século XIX tinha o nheengatu (Língua Geral da Amazônia)
como língua franca e hegemônica. A língua portuguesa somente se torna hegemônica com
a chegada massiva de imigrantes nordestinos . Do ponto de vista político, a adesão a um
Império unitário significou uma significativa perda de poder político e sobre o território
para as elites locais, que passaram ver a província ser governada por “estrangeiros”
desconhecidos.

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Obras tiradas do famoso “Spix & Martius”. O botânico alemão Carl von Martius, o zoólogo J. B. von Spix,
são considerados uns dos maiores cientistas a explorar o Brasil no século XIX. Reproduzido nos livros
“Brasiliana Itaú”, à páginas 178-181.
De toda forma, a anexação do Grão-Pará ao Brasil não significou a ruptura com o
colonialismo e a superação das contradições sociais montadas pela experiência colonialista
– não foi, portanto, uma independência. A incorporação da Amazônia marcada pela
continuidade da condição colonial e pela conversão do colonialismo português pelo
colonialismo interno brasileiro. O episódio de 1823 significou uma troca de metrópole, de
Lisboa para o Rio de Janeiro. A continuidade desta condição colonial se traduz na lógica da
relação estabelecida entre a Amazônia e o Brasil, e posteriormente, na forma como o estado
nacional vai perceber e atuar sobre este território. Na verdade, mais do que uma troca de
metrópole ou conversão, o que ocorre é um acirramento da exploração colonialista, que
ganhou proporções muito maiores e trágicas na Amazônia nas últimas décadas do século
XX, a partir da ditadura militar. É justamente nestas últimas décadas que um estado
nacional, o estado brasileiro, consegue definitivamente implantar um regime de
exploração colonialista na Amazônia, em proporção muito maior que a sonhada pelos
portugueses.

A continuidade da colonialidade na Amazônia não foi marcada somente pela relação de


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subalternização empreendida pelo estado brasileiro. Na verdade a estrutura social
permaneceu intacta quando houve a anexação do Grão-Pará. Como não houve uma guerra
patriótica, como nos países vizinhos, não houve ruptura ou transformações mais profundas
na hierarquia social e na distribuição das propriedades. Em larga medida, os portugueses
permaneceram no poder – visto que o estado brasileiro foi fundado por portugueses que
não viam Portugal como uma nação opressora, como aconteceu na América espanhola. A
própria intelectualidade do Império tentou reforçar a perspectiva da independência
pacífica, sem rupturas com a pátria mãe.

O processo de incorporação do Grão-Pará, além da marca da continuidade, também foi


marcado pela intensificação dos conflitos sociais internos e intensificação da repressão e da
violência. Assim como no período colonial português, estes processos de anexação e
reafirmação da ordem nacional brasileira na Amazônia são marcados pela violência; às
vezes individual, às vezes coletiva; Violência que nem sempre foi física, mas também
simbólica, moral e psicológica – o que é intrínseco ao colonialismo e à colonialidade.

Além das perdas materiais e das perdas humanas, a incorporação da Amazônia ao Brasil
também se traduz em perda cultural, especialmente a partir do segundo reinado, quando a
intelectualidade brasileira se propõe a construir o Brasil, a imagem do país e da
nacionalidade – marcada pelo eurocentrismo e pelo racismo – e a própria história
nacional. E é esta ideologia da nação brasileira que começa a ser irradiada do centro, do
Rio de Janeiro, para as periferias. Para além da imposição da nacionalidade, o processo de
repressão à Cabanagem e de enquadramento da população amazônida tiveram um efeito
traumático que resultou também desmoralização da sociedade formada por índios,
mestiços e negros. Estes processos e a divisão do Grão-Pará em duas províncias –
Amazonas e Pará – contribuíram igualmente, sobretudo no ocidente, para a perda do
vínculo com o próprio passado. Logo, sem a consciência histórica, a consciência cultural e a
autoconsciência do povo enquanto povo ficam gravemente comprometidas.

Integração

Como vimos, a Amazônia foi anexada ao Brasil em 1823. O Estado do Grão-Pará passou a
ser uma província de um império unitarista, onde o poder central tem um poder muito
maior sobre suas subdivisões do que num regime federalista. Desta forma o próprio
imperador do Brasil articulava o governo das províncias através dos presidentes que eram
nomeados para exercer o cargo em qualquer província. Assim o Grão-Pará passou a ser
governado diretamente por brasileiros de outras províncias e às vezes até mesmo por
portugueses.

Vale lembrar que as noções de identidade ainda são significativamente vagas para este
período. Logo os adjetivos como “brasileiro” ou “amazônida” são usados neste momento
mais como uma referência geográfica do que identitária. Além disso, no Grão-Pará, assim

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como nas regiões da colônia brasileira, os homens que participavam do jogo politico da
sociedade se consideravam portugueses da América – ou portugueses do Pará ou
portugueses de Belém e assim sucessivamente.

Mas quando finda o Império do Brasil, também se encerra o unitarismo do esta-do. O


federalismo da primeira república significou uma significativa “retomada” do poder para a
classe politica da região, atendendo aos anseios pela autonomia administrativa. Mas o
contexto do advento do federalismo era ligeiramente diferente do período da anexação:
agora não existia mais o Grão-Pará. Este fora dividido em duas províncias em 1850,
Amazonas e Pará, em razão da necessidade de o Império fortalecer sua presença no
ocidente amazônico diante das ameaças de invasão da região.

A divisão teve um significado ambíguo para a Amazônia, pois ao mesmo tempo em que a
elevação da comarca à condição de província teve resultados relativamente positivos,
também serviu para impedir a formação de uma consciência amazônida de identidade,
história e cultura comum e compartilha. A cisão da província dividiu um povo que estava
em formação há mais de duzentos anos (sem considerar a herança indígena milenar), que
tinha uma língua própria, o nheengatu, e que tinha na guerra da Cabanagem
experimentado uma unidade de luta para enfrentar as forças estrangeiras – a guerra
também constrói identidades. Essa divisão teve consequências mais trágicas (em termos de
consciência) no Amazonas, ao passo em que a quebra do vínculo com o Pará não foi
somente política: o amazonense desvinculou-se do próprio passado. Essa ruptura com o
passado determina a forma como um amazonense (ou depois um roraimense) se enxerga e
como enxerga a Amazônia.

O regime federalista, ao conceder autonomia aos estados, em grande medida contribuiu


para viabilizar a continuidade da unidade nacional construída pelo Império, visto que
atendia significativamente aos interesses e demandas das elites particularistas estaduais. A
concessão de autonomia aos estados amortizou as tendências centrífugas regionais, mais
evidentes durante o período regencial, evitando novas contestações sérias da unidade
nacional e, consequentemente, evitando sua fragmentação, como aconteceu na América
hispânica. Na verdade, juntamente com o desenvolvimento cada vez mais desproporcional
entre as regiões, os estados das regiões mais periféricas estariam gradualmente em maior
desvantagem e com menor chance para promover um movimento de ruptura com a
unidade nacional. A integração política, ao mesmo tempo em que reforçou indiretamente o
poder e a presença do estado nacional na Amazônia, serviu também para aumentar a
dependência e a subalternização dos estados à união. O federalismo também pode ser
percebido como uma estratégia desresponsabilização do Estado sobre as unidades
federativas, especialmente nos estados mais pobres, pois ao mesmo em que dava maior
liberdade para a governança local, deixava o estado mais desassistido – podendo ser
culpabilizado pela sua pobreza ou fracasso diante dos estados que prosperavam.

No contexto federalista, da primeira República, acontece a maior expansão territorial da


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Amazônia desde o tratado de Madri. O desenvolvimento da economia gomífera e a massiva
imigração nordestina que avançavam para o oeste, resultaram na ocupação de terras até
então pertencentes à Bolívia. A consequência desse processo foi a anexação da região que
hoje corresponde ao estado do Acre e ao sudoeste do Amazonas,em 1903, após um conflito
que, antes da anexação ao Brasil, permitiu o surgimento da República Acreana, proclamada
duas vezes.

Dentro do regime republicano, o Estado Novo instaurado por Getúlio Vargas pode ser
entendido como uma ruptura com o federalismo da primeira república, retomando
características unitárias – como no período imperial. Com o objetivo de empreender uma
verdadeira unificação da nação – que após cem anos da independência ainda se encontrava
fragmentada – Vargas promove uma intensa campanha para construir e fortalecer a
nacionalidade brasileira e combater as identidades regionais. É neste período que a
ideologia nacional se instala efetivamente na Amazônia – período, portanto, de integração
ideológica. Ainda durante a vigência do Estado Novo, no contexto da segunda guerra
mundial, acontece nova fragmentação territorial na Amazônia com a criação dos territórios
federais do Amapá, Rondônia e Rio Branco (Roraima) em 1943. Estes territórios passaram
a ser administrados diretamente pelo governo federal.

A partir de meados do século XX, a Amazônia começa a se configurar progressivamente


como um problema para o estado nacional – como apontavam os intelectuais brasileiros
desde a segunda metade do século XIX. Dessa forma, vemos as primeiras medidas do
governo nacional para lidar com a Amazônia enquanto região. Mas a ação do Estado só
começará a ser mais efetiva a partir da ditadura militar. O slogan “integrar para não
entregar” sintetiza bem a intenção dos governos militares em empreender um verdadeiro
programa de colonização e integração infraestrutural da Amazônia ao Brasil. Com os
governos militares o integracionismo brasileiro se intensifica de forma nunca vista
anteriormente. É neste momento que se inicia a montagem de uma verdadeira estrutura
colonialista de exploração econômica e ocupação territorial.

Não pretendemos abordar aqui as consequências trágicas que o integracionismo brasileiro


promoveu na Amazônia. Convém ressaltar que o discurso desenvolvimentista, configurado
como o discurso do interesse nacional pelo progresso, serviu e continua a servir para
justificar a imposição dos grandes projetos nacionais de desenvolvimento, que até hoje tem
produzido subdesenvolvimento e prejuízos ambientais e sociais na região norte. Pra piorar,
tanto o integracionismo e este desenvolvimentismo não ficaram restritos ao período da
ditadura militar (na verdade nem foram invenção dos militares), eles continuam ativos até
hoje. Mesmo nos governos supostamente progressistas o que se vê é a continuidade. Foi
assim que a Amazônia brasileira se constituiu historicamente dentro da unidade nacional e
os danos e prejuízos deste processo não ficaram restritos ao passado, pois fazem parte
também do tempo presente.

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O nacionalismo brasileiro, na medida em que possui uma face progressista diante do
contexto internacional quando assume um caráter anti-imperialista, também possui uma
face reacionária diante das contradições e desigualdades regionais internas do Brasil. A
própria construção e manutenção da unidade territorial foi conquistada através da
repressão violenta de todas as tendências e forças centrífugas da América portuguesa, junto
da imposição da ideologia da nação brasileira, igualmente teve caráter autoritário sobre os
povos periféricos do Brasil, visando suprimir as identidades regionais. Como este tipo de
processo sempre pesa mais para o lado mais fraco, a Amazônia foi a região que mais sentiu
o peso da construção da unidade nacional – para não falar dos povos indígenas, muito mais
frágeis do que o estado e o povo amazônida.

Significados da brasilidade

Esta discussão sobre o processo de incorporação e integração da Amazônia ao Brasil, além


de nos ajudar a ter uma compreensão mais abrangente e geral sobre os próprios processos
de formação de identidade nacional, nos ajuda principalmente a refletir sobre os seus
custos e significados mais profundos para os amazônidas hodiernos.

Como foi dito no início, trata-se de um esforço para desnaturalizar noções e imagens que
temos como naturais por termos, na Amazônia, uma consciência histórica muito vaga ou
totalmente inexistente (o que tem mudado gradualmente). Uma dessas naturalizações diz
respeito à presença da Amazônia na unidade territorial e nacional brasileira. Mas como
ficou claro, a Amazônia só passa a fazer parte do Brasil em 1823 a partir da sua anexação
imperial. Outra naturalização diz respeito à nacionalidade brasileira na Amazônia. Sem
que se tenha uma compreensão básica sobre os processos de anexação e integração a
tendência é que um amazonense, por exemplo, entenda a nacionaidade brasileira na
Amazônia como natural e perene, como uma herança direta da colonização portuguesa, ou
como se fôssemos brasileiros desde 1500. Na verdade, como vimos brevemente neste
trabalho, a nacionalidade brasileira é também uma construção histórica (como toda
nacionalidade), mas a sua expansão para a Amazônia foi significativamente diferente do
que foi a expansão para as outras regiões que faziam parte do estado colonial brasileiro.

Falar sobre a brasilidade, sobre a construção da nacionalidade brasileira, na Amazônia


demanda justamente a consideração desses processos de incorporação e integração e suas
implicações diretas e indiretas, de curto e longo prazo. Tanto processos como a repressão à
cabanagem, quanto a gradual inserção da Amazônia no jogo político e econômico do país
contribuíram para a instalação da nacionalidade brasileira na região, bem como para
suprimir a possibilidade do desenvolvimento de uma consciência nacional amazônida.
Afinal, se povos como os catalães ainda no século XIX podiam contestar a legitimidade da
soberania espanhola sobre a Catalunha e afirmar a identidade catalã, mesmo que esta
tivesse sido incorporada à Espanha há muito mais tempo que a Amazônia ao Brasil, por
que os amazônidas, com mais tempo de desconexão do que de anexação com o Brasil, não
poderiam também formular uma consciência nacional amazônida – ou ao menos uma
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consciência cultural regional mais forte, integrada e sólida?

O que aconteceu com a sobreposição da nacionalidade brasileira na região foi também uma
amputação cultural e identitária. Além da absorção de uma identidade nacional forjada de
fora pra dentro, houve a progressiva negação do que vinha da própria terra. Talvez o caso
mais significativo seja o abandono da Língua Geral, onde um dos fatores para o declínio da
língua foi justamente a negação do que vinha da própria terra e remetia ao passado
indígena, que deveria ser esquecido. Por outro lado a fragmentação do Grão-Pará reduziu a
cultura e a identidade amazônida, que já estavam em formação há mais de duzentos anos
em culturas e identidades provinciais/estaduais. E uma das consequências mais
lamentáveis dessa amputação são as rixas e rivalidades entre amazonenses e paraenses,
populações que compartilham a mesma unidade histórica, linguística, cultural e etc.
Felizmente isso não é algo generalizado (mas realmente existe, como uma consequência da
divisão).

De qualquer forma, a instalação da identidade brasileira foi bem sucedida, sobretudo em


meados do século XX, onde a sociedade amazônida estava cada vez mais integrada à vida
política e econômica nacional, embora sempre de forma limitada. O fato é que a aceitação
da nacionalidade foi útil para a manutenção da ordem estabelecida pelo processo de
incorporação, evitando que a contestação ganhasse mais uma vez tendências à
desagregação nacional. Na Amazônia isso se traduz na aceitação da relação
endocostocostalista ou neocolonialista, que além de ser percebida de forma bastante vaga
pela população, parece insuficiente para promover a contestação que ponha em risco mais
uma vez a unidade territorial. Mas a colonialidade faz parte da realidade amazônica,
mesmo que seja percebida de forma vaga. Esta colonialidade contínua não é mais jurídica
como no período da colonização portuguesa ou mesmo no período imperial, visto que hoje
os cidadãos e os estados estão em um regime de igualdade – ao menos na lei. Mas é
econômica, infraestrutural, ideológica e moral. Ela é intrínseca à ação do estado nacional
na medida em que este impõe os grandes projetos nacionais de desenvolvimento e
integração na região à revelia das populações locais e dos povos indígenas, onde o interesse
nacional prevalece sobre o interesse regional/local.

Este é o preço que pagamos pela adesão ao Império. E é o preço que continuaremos a pagar
enquanto não houver uma verdadeira descolonização da Amazônia. Caso contrário,
permaneceremos a pagar muito caro pela continuidade da nossa condição de
subalternidade, afogados na colonialidade e incapazes de reagir e reverter esta situação de
forma efetiva.

Considerações finais

Propor uma abordagem humanizada e descolonial sobre a Amazônia não significa negar as
questões ambientais. Mas é antes de tudo um combate aos graves estigmas produzidos pela
relação endocolonialista estabelecida no processo de anexação da Amazônia e integração à
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nação. Contudo, falar em descolonização da consciência histórica e cultural popular na
Amazônia demanda antes de tudo de um esforço da própria comunidade acadêmica para
construir novos parâmetros interpretativos para Amazônia. Isto para que a Amazônia seja
cada vez mais amazônida (e não amazônica), compreendida de dentro pra fora e não ao
contrário, como tem sido desde o século XIX. Construir uma amazonidade pode ser a única
alternativa realmente eficiente para a superação real e definitiva dos paradigmas da
subalternização e do colonialismo – para que também a floresta amazônica sobreviva.
Falar em amazonidade é vislumbrar novas possibilidades no horizonte, mesmo que
distante, que estejam além da perpetuação da colonialidade.

Julyan Machado Ramos é graduando do curso de História da Universidade Federal do


Amazonas (UFAM).
Imagem em destaque – mapa do Grão-Pará feita para o livro “Em Tempos Cabanos” (2013), de
Antônio Pinheiro Cabral. Arte: Filipe Baratta.
Amazônia Latitude: ISSN 2692-7446 ( Print) | ISSN 2692-7462 (Online)
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