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Texto 6 FILMAT

Como dissemos antes, trataremos neste texto do monismo metodológico, isto é, do


abandono do dualismo analítico-sintético. Também falaremos do naturalismo de Quine (esse é
o quinto ponto da lista de Quine de progressos do empirismo), pois esses dois tópicos estão
associados. Aliás, o naturalismo é uma característica absolutamente central do pensamento de
Quine.

Dizemos que uma doutrina é dualista quando essa doutrina sustenta que há dois tipos de
coisa em um dado domínio. Por oposição, uma doutrina é dita monista quando segundo essa
doutrina há apenas um tipo de coisa em um dado domínio. Aqui estamos interessados no
domínio dos enunciados. Para o dualismo analítico-sintético há dois tipos de enunciado, a
saber, os enunciados analíticos e os enunciados sintéticos. Já o monismo metodológico rejeita
essa divisão e admite um só tipo de enunciado.

Há várias concepções do que sejam enunciados analíticos e enunciados sintéticos. Para Kant
(1724 – 1804), enunciados analíticos são aqueles em que o conceito do predicado está contido
no conceito do sujeito e enunciados sintéticos são os outros, isto é, aqueles em que o conceito
do predicado não está contido no conceito do sujeito. Quine apresenta a posição de Kant
dizendo que enunciado analítico é aquele que atribui “a seu sujeito não mais do que o já
conceitualmente contido no sujeito”. Quine faz isso no ensaio Dois Dogmas do Empirismo
(vejam na Bibliografia do curso a referência da coleção Os Pensadores). Nesse ensaio Quine
critica e rejeita o dualismo analítico-sintético. Já Frege tem uma outra visão da analiticidade.
No parágrafo 3 de Os Fundamentos da Aritmética, ele especifica que no âmbito da matemática
um enunciado é analítico se ele pode ser demonstrado apenas a partir de leis lógicas gerais e
definições; caso contrário, esse enunciado é dito sintético. Assim, o projeto logicista de Frege
pode ser entendido como uma tentativa de mostrar que os enunciados da aritmética são
analíticos. A rejeição de Quine ao dualismo analítico-sintético parte da concepção segundo a
qual “um enunciado é analítico quando verdadeiro em virtude de significados e independente
de fatos” (vejam Dois Dogmas do Empirismo) e os enunciados sintéticos são aqueles cuja
verdade depende de fatos. Os fatos a que nos referimos aqui são fatos da experiência.

Um exemplo de enunciado analítico seria o seguinte:

Nenhum solteiro é casado.

Esse enunciado parece ser verdadeiro em virtude dos significados dos termos envolvidos.
Parece que não precisaríamos fazer uma pesquisa experimental de campo entrevistando
solteiros previamente selecionados para saber de cada um deles se é casado ou não. Sendo
solteiros, claro, eles não são casados e não haveria necessidade de fazer entrevista alguma.
Entretanto, Quine assinala que para sabermos que “solteiro” é definido como “homem não
casado” precisamos recorrer a um dicionário (podemos detalhar isso dizendo que precisamos,
em última análise, recorrer a um dicionário, isto é, precisamos recorrer a um dicionário, ou
recorrer a uma pessoa que recorreu a um dicionário, ou recorrer a uma pessoa que recorreu a
uma pessoa que recorreu a um dicionário, etc) e o lexicógrafo que elaborou esse dicionário é
um cientista empírico, ou seja, experimental (assim, alguém cujo trabalho está apoiado em
fatos da experiência).

Examinemos, como Quine, a situação de um ponto de vista mais geral.


Consideremos, em uma perspectiva empirista que remonta a Peirce (1839 – 1914), que o
significado de um enunciado seja dado por suas consequências experimentais. Assim,
enunciados analíticos seriam aqueles verdadeiros haja o que houver na experiência e
enunciados sintéticos seriam os outros. Ora, já estudamos o holismo de Quine e vimos que
segundo a doutrina holista um enunciado isolado não tem um repertório seu de
consequências experimentais; o que tem consequências experimentais é um bloco de
enunciados. Portanto, não faz sentido dividir os enunciados em analíticos de um lado e
sintéticos do outro. Lembrem-se da imagem de teia de crença a que nos referimos antes
quando dissemos, seguindo Quine, que mesmo enunciados da matemática e da lógica não são
imunes à revisão face a um insucesso experimental de uma teoria, desde que haja razões
suficientemente fortes para revisá-los. O dualismo analítico-sintético foi encarado por alguns
como uma ferramenta para explicar o que seria o caráter a priori da lógica e da matemática.
Mas para Quine, tal caráter a priori simplesmente não existe. A matemática e a lógica também
estão subordinadas à experiência (o que contraria grande parte da visão tradicional). Contudo,
voltando à imagem da teia de crença, é importante destacar que para enfrentar reveses
experimentais devemos fazer revisões que perturbem a teia o mínimo possível, e como
revisões na matemática e na lógica perturbariam muito a teia como um todo, devemos
guardar tais revisões como um último recurso, a ser usado apenas em um caso extremo. Nesse
ponto, devemos dizer alguma coisa sobre o naturalismo de Quine. Vejamos.

No ensaio Five Milestones of Empiricism, Quine caracteriza o naturalismo como “o abandono


do objetivo de uma filosofia primeira. Ele [o naturalismo] encara a ciência como uma
investigação sobre a realidade, falível e corrigível, mas que não responde a nenhum tribunal
supracientífico e não necessita de nenhuma justificativa além da observação e do método
hipotético-dedutivo”. O que o naturalista Quine quer dizer com isso é que não é possível que
um sistema filosófico externo à ciência sirva de fundamento para a ciência. A ideia, muito
tradicional em filosofia, de construir, fora da ciência, um fundamento (isto é, um alicerce tão
imune quanto possível à dúvida racional) para a ciência está associada ao desejo de evitar a
circularidade. De fato, se partíssemos dos princípios da ciência para alicerçar a ciência,
estaríamos fazendo um raciocínio circular. Para Quine, essa é uma limitação incontornável. Um
suposto fundamento para a ciência externo à ciência também precisaria de um fundamento.
Quine aceita a circularidade por ventura existente e sustenta que revisões, correções e
mudanças conceituais na ciência têm de ser feitas partindo-se de dentro da ciência. Lembrem-
se de que, como dissemos no texto 5, para Quine a filosofia faz parte da ciência (ela é uma
parte que se dedica às questões mais gerais e abstratas). No livro Palavra e Objeto, logo depois
da dedicatória, ele cita Neurath (1882 – 1945): “Somos como marinheiros que têm de
reconstruir seu barco em mar aberto, sem jamais poder colocá-lo em uma doca e reconstituí-lo
a partir de seus melhores componentes”. Essa é a imagem do barco de Neurath. Esse barco é a
ciência e não há como levá-lo para uma doca seca (isto é, um sistema filosófico externo) onde
ele seria reparado. Os reparos têm de ser feitos a partir de dentro (ou seja, de dentro da
ciência) enquanto esse barco navega.

O fato de que na visão naturalista de Quine a ciência deve ser julgada em seus próprios
termos e não nos termos de um sistema filosófico externo coloca uma pergunta interessante:
em que termos deve ser julgada a parte da matemática que não é aplicada na ciência? Claro,
essa parte varia no tempo, mas é razoável supor que haja partes da matemática que
provavelmente jamais terão aplicações na ciência (isso vale, em particular, para certos tópicos
de teoria dos conjuntos). Voltaremos a esse ponto adiante no curso.
Por fim, faço duas observações. A primeira é um comentário, muito breve, acerca de dúvidas
que surgiram sobre o nominalismo. Como disse antes, esse é um tema importante na filosofia
contemporânea da matemática, mas não vamos tratar dele mais detidamente aqui, pois o foco
de nosso curso é outro. Entretanto, podemos dizer o seguinte: nominalistas procuram, por um
lado, reformular teorias científicas, evitando os compromissos dessas teorias com objetos
abstratos e, por outro lado, mostrar que embora o uso de objetos abstratos da matemática
tenha enorme importância prática nas aplicações da matemática nas teorias científicas, os
mesmos resultados poderiam ser obtidos em teoria, não na prática, sem recorrer a esses
objetos abstratos. Esse é um trabalho gigantesco e tecnicamente muito elaborado (para uma
introdução, vejam o capítulo 7 do livro de Linnebo na Bibliografia). A segunda é uma
informação sobre Frege que pode ajudar no esclarecimento de algumas dúvidas. Frege, claro,
era um filósofo, mas também era um matemático profissional. Ele se doutorou na
Universidade de Gottingen em 1873 e foi professor no Departamento de Matemática da
Universidade de Jena de 1874 até 1917, quando se aposentou.

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